bruna lima a mulher negra no poder um longo … · fêmea, sã que conduz. terra-chão, terreiro,...

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Revista Persona :: 51 BRUNA LIMA Tributo às mulheres negras guerreiras. A força propulsora do desenvolvimento nacional, ontem, hoje e sempre. Do sequestro em África - a escravização que marcou sua chegada ao Brasil, em condições sub- humanas - à escalada rumo aos espaços de poder e decisão. Um retrato nítido que denuncia o racismo e a persistência das desigualdades raciais e de gênero. A MULHER NEGRA NO PODER UM LONGO CAMINHO A SER PERCORRIDO Terra Negra África-mulher princípio-ninho. Mátria-África matriz transformadora. Telúricas poeiras e montanhas se fundem. Criadoras e Criaturas se confundem. Terra, planeta de seios fartos, que a todos alimenta. Terra, trilha chã, que produz, trilha fêmea, sã que conduz. Terra-chão, terreiro, segurança e firmeza... meu caminhar primeiro. Terra ora, cultura gera, ora cultivahera. Mulher, terra, existência que seperpetua. Tás, oyás euás, negras terras, mulheres negras... Resistência que se cultua! Neuza Pereira - Poetisa, diretora executiva do Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher – Cedoicom.

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Revista Persona :: 51

BRuNA LiMA

Tributo às mulheres negras guerreiras. A força propulsora do desenvolvimento nacional, ontem, hoje e sempre. Do sequestro em áfrica

- a escravização que marcou sua chegada ao Brasil, em condições sub-humanas - à escalada rumo aos espaços de poder e decisão. Um retrato

nítido que denuncia o racismo e a persistência das desigualdades raciais e de gênero.

A MULHER NEGRA NO PODERUM LONGO CAMINHO A SER

PERCORRIDO

Terra NegraÁfrica-mulher princípio-ninho.

Mátria-África matriz transformadora.

Telúricas poeiras e montanhas se

fundem.Criadoras e Criaturas se

confundem.Terra, planeta de seios fartos,

que atodos alimenta.

Terra, trilha chã, que produz, trilha

fêmea, sã que conduz.Terra-chão, terreiro,

segurança efi rmeza...

meu caminhar primeiro.Terra ora, cultura gera, ora

cultivahera.Mulher, terra, existência que

seperpetua.Tás, oyás euás, negras

terras,mulheres negras...

Resistência que se cultua!

neuza pereira - Poetisa, diretora executiva do Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher – Cedoicom.

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52 :: Revista Persona

VENTRE ESCRAVIZADOO UMBIGO DO BRASIL

O solo pátrio deve incansável respeito ao ventre escravizado e aos seus frutos. Nenhuma outra mulher teve uma saga tão

importante de trabalho, suor e vida

Vieram de longe como seus irmãos, filhos, maridos, sobrinhos e vários outros des-conhecidos. Vítimas da violência de um regime escravocrata que compromete a

História do Brasil. Trazidas acorrentadas nos porões dos navios, 50% faleciam antes de chegarem para serem vendidas em hasta pública. Não falavam o português, sentiam o banzo das cores e tradições de seus países, sentiam falta do poder que lá deti-nham.

A mulher escravizada, aos olhos do colonizador, tinha o seu valor medido pelas crias que pudesse

gerar. A estéril e aquela cujo filho vies-se a falecer eram vistas como crimino-sas, chegando a ser chicoteadas. Na visão da época, nenhuma propriedade era mais proveitosa que a das negras moças, quando eram fecundas.

Na sociedade escravagista e coloniza-dora, clérigos, padres, colonos, senhores feudais, todos violavam as mulheres ne-gras, alguns se amancebavam no intuito de aumentarem o número de crias, como quem promove o acréscimo de um reba-nho.

A mulher negra tinha, além de sua função no trabalho da “casa grande”, de prestar serviços sexuais ao senhor, seus filhos e confrades. Porém, esta mancebia não lhe proporcionava nenhuma regalia. Os frutos desta relação tampouco eram livres.

A relação de desigualdade e abuso de poder com as negras numa sociedade de senhores brancos era brutal, sobretudo, quando o sentimento de ciúme determi-

nava que a “sinhá” a mutilasse, por ser ela objeto de desejo de seu marido. No entanto, ela devia total gratidão a esta sinhá, que a recebia para os serviços domésticos quando os da roça eram desumanos para seu físico.

NA VISÃO DA ÉPOCA, NENHUMA PROPRIEDADE ERA MAIS

PROVEITOSA QUE A DAS NEGRAS MOÇAS, QUANDO ESTAS ERAM

FECUNDAS

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AS QUITANDEIRAS NA ECONOMIA NACIONAL

Precursoras da caderneta de poupança, as vendedoras ambulantes no período escravagista tiveram importante desempenho na

economia brasileira

Elas, escravizadas e alforriadas, estavam em todas as praças, ruas, povoados e ci-dades. vendiam tudo, eram as quitandei-ras. Com seus tabuleiros, cestas – algu-

mas carregando os filhos nas costas - iniciavam o sistema de poupança ao economizar os dividen-dos de suas vendas, atualmente tão utilizado.

Os artistas que retrataram essa época são pródigos nessas gravuras. As autoridades escra-vocratas sentiam receio pela ameaça que elas representavam ao sistema. Eram centenas de mulheres trafegando e fornecendo alimentação em todos os rincões. Na Revolta dos Malês, em 1815, na Bahia, foram apontadas, ao lado de Lui-za Mahim, como co-responsáveis pelo levante armado. na Inconfidência Mineira, também várias constam no “Auto da Devassa” como informantes dos conjurados.

Quando escravizadas, o fato de ganharem as ruas, longe da dominação dos senhores, embo-ra o lucro de suas vendas retornassem a eles, já lhes dava uma certa sensação de liberdade. Com frequência conseguiam arrecadar mais que esta-belecido pelo senhor, permitindo-lhes, assim, a obtenção da sonhada carta de alforria.

Para as mulheres livres, era um comércio ren-tável. Foram elas as precursoras das micro-em-presas, visto que para comerciarem dependiam de uma licença municipal. O escritor Eduardo França Paiva destaca a vida da ex-escrava Bár-bara Gomes de Abreu, que chegou a expandir seu comércio em Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro.

Remanescentes dessa época são as baianas do acarajé, hoje reconhecidas como Patrimônio ima-terial da Nação Brasileira.

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Na trajetória de resistência e luta, que dura mais de 4 séculos, o nome de Dandara é símbolo de coragem. Ela era mulher do líder Zumbi dos Palmares, o Spár-taco brasileiro. valente e corajosa, foi responsável pela

formulação e implementação das estratégias e planos de ataque e defesa no Quilombo de Palmares, localizado entre os atuais estados de Alagoas e Pernambuco. A sociedade quilombola de Palmares foi criada em fins do século XVI e resistiu por aproxima-damente setenta anos, até 1695.

Dandara também contou com a força e sabedoria de várias outras mulheres, com destaque para Aqualtume e Acotirene. Quando da queda do Quilombo, Dandara suicidou-se para não voltar à condição de escrava.

Como ela, há que se registrar também a luta da Rainha Ze-ferina, representante do quilombo do urubu, em Salvador. Se-gundo relatos da época, ela conduziu parte da resistência negra na capital baiana.

Teresa de Benguela, a líder do Quilombo de Quariterê, no Mato Grosso, também merece destaque no cenário de resistência e luta e pela liberdade. Ela comandou a estrutura política, eco-nômica e administrativa do Quilombo, mantendo um sistema de defesa com armas trocadas com os brancos ou resgatadas das vilas próximas.

Outra guerreira negra que figura entre as notáveis do aboli-cionismo é a escrava Anastácia. Considerada uma das grandes mártires da causa negra, ela foi uma das inúmeras vítimas do re-gime de escravidão no Brasil e sofreu, como tal, os abusos e arbi-trariedades do sistema. Por ser muito bonita, padeceu do assédio do homem branco e da inveja das mulheres e filhas dos senhores de escravos. Por ter resistido bravamente, foi perseguida e tortu-rada. Obrigada, durante dois anos, a usar no rosto uma máscara de ferro, que só era retirada na hora de se alimentar, sua imagem é santificada, com muitos devotos em todo país.

Polêmica e controversa, Chica da Silva é mais uma personagem importante na história de oposição à barbárie do Brasil escravocrata. Mulher de personalidade e lideran-ça feminina, era uma das poucas que sabia ler e escrever. Foi libertada pelo contratador de diamantes João Fernandes

O SONHO DE LIBERDADE

Guerreiras, audaciosas, líderes, muitas se insurgiram contra a

opressão da escravatura. Umas maquinaram fugas. Outras criaram

Quilombos, tudo pelo direito à liberdade que lhes era negado

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de Oliveira, homem a quem fez escravo de seus desejos. Cheia de poder e riqueza, garantiu a alforria para mais de 100 escravos, cooperou com aqueles que queriam fugir do cativeiro e induziu o companheiro a libertar aqueles que encontrassem diamantes com mais de 60 quilates. Deste ato resulta a libertação de mais da metade da população escrava de Diamantina (MG), muito antes da promulgação da Lei Áurea. Sua atuação mais expressiva foi no âmbito da política, sendo reconhecida por ter financiado a causa da Inconfidência Mineira.

A trajetória da maranhense Adelina configura mais um exemplo da participação feminina na consolidação de redes e estratégias voltadas à concretização dos ideais de liber-dade. Filha e cativa do mesmo explorador, cresceu alimen-tando a revolta contra os escravocratas e, vendendo seus charutos pelas ruas de São Luís, aliou-se aos estudantes abolicionistas. Ela era o grande trunfo dos rebeldes, cola-borando permanentemente com a causa da liberdade na distribuição de informações, aviso aos ativistas das ações da polícia e auxílio na fuga de escravos.

Era de fato um período de grande agitação política, mar-cado, sobretudo, pela influência do ideário de liberdade, igualdade e fraternidade cunhado na Revolução Francesa.Contemporânea dessa efervescência libertária, cita-se uma personagem também esquecida pela historiografia brasilei-ra: Maria Felipa de Oliveira. A ela é atribuída a lideran-ça de um levante de cerca de 40 pessoas, entre mulheres, homens e índios, na queima de 42 embarcações de guerra portuguesas que estavam aportadas na Praia do Convento, prontas para atacar e dominar Salvador. Exímia capoeirista, ela costumava remar sua canoa de itaparica até o Cais Dou-rado, em Salvador, para jogar capoeira de Angola com os lu-tadores da cidade, aproveitando para colher informações so-bre as manobras dos portugueses na capital, com o objetivo de reforçar as estratégias da resistência. Era também espiã de guerra, enganando a vigilância portuguesa. Não à toa é tida como a heroína negra da Independência da Bahia.

Outra mulher guerreira que também soube fazer bom uso de sua mobilidade e conhecimento das ruas, vielas, passagens e esconderijos da capital soteropolitana foi Lui-za Mahin. Quintandeira como muitas das escravas libertas em seu tempo, ela atuava como articuladora dos revolto-sos, trocando bilhetes entre eles, sob a proteção de crian-ças que, a pretexto de comprar suas iguarias, ajudavam-na em sua missão. Fez de sua casa um refúgio para os rebela-dos e participou de um dos episódios mais emblemáticos da história da resistência negra na Bahia, a chamada Revolta dos Malês.

Chiquinha Gonzaga, apesar de sua pele clara, era filha de uma mulher negra e rendeu-se, também, aos apelos aboli-cionistas da época. Na rua vendia as partituras de sua música para angariar fundos e alforriar escravos. Participava de mo-bilizações pela causa da liberdade e chegou a ser presa. van-guardista sob todos os aspectos, foi a primeira compositora do Brasil. Escandalizou toda uma geração com o seu maxixe, ritmo cuja dança era considerada obscena. É ela a autora da clássica marchinha de carnaval “Ô Abre Alas”.

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A manutenção da religiosidade de matrizes africanas também é símbolo de resistên-cia. Nessa luta contra a opressão, a reli-gião professada por mulheres e homens

escravizados era uma forma de libertação. Como afirma o Secretário Executivo da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, José Marmo Silva, as religiões de matrizes africanas, confor-me sua origem na África, localização geográfica no Brasil e interação com outros grupos não negros (índios e brancos) tomam diversas denominações: umbanda, Candomblé (em suas variações de An-gola, ketu, jejê, ijexá), Tambor de mina, Tambor de Caboclo, Terecô, Encantaria, Jurema, Xangô,

Xambá e Batuque. O número de terreiros conti-nua crescendo, e segundo pesquisadores já ultra-passam a marca de 60 mil espalhados no país.

As mulheres são o centro do poder nas religi-ões de matrizes africanas, muitas divindades são femininas e recebem diferentes denominações, a depender da nação. As sacerdotisas, também co-nhecidas como mães-de-santo, são poderosas, a exemplo de mãe Menininha do Gantois, eternizada na voz de Maria Bethânia, ao cantar:

“...Ah! minha mãe,

Minha mãe menininha,

Ah! Minha mãe,

Menininha do Gantois...”

O seu terreiro, o de Gantois, frequentado por personalidades políticas e artísticas, hoje é co-mandado pela ialorixá Mãe Carmen de Oxaguiã.

As líderes das comunidades de terreiro são mantenedoras da memória e da tradição da cultura e religiosidade afrobrasileiras e atuam no enfren-tamento ao racismo, ao sexismo, à intolerância religiosa, à violência contra a mulher. O trabalho é em prol da promoção dos direitos humanos e da igualdade racial e entre homens e mulheres.

Na Bahia, destaca-se, a título do trabalho social que desempenha, Mãe Hilda Jitolu, cujo nome já foi indicado para o Nobel da Paz e tem regis-trado seu nome entre aqueles que incentivaram a criação do Memorial Zumbi dos Palmares. Tam-bém são grandes lideranças religiosas no estado da Bahia Mãe Stella de Oxossi, do Ilê Axé Opô Afonjá; Ekedi Sinha, da Casa Branca; Makota val-dina, do Tanuri-Junçara.

No RJ, Mãe Beata de Iemanjá é uma referên-cia: faz parte do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e é integrante do Fórum Espiritual para a Paz Mundial. Na região norte, há que se registrar o trabalho de Mãe Nalva, uma das principais arti-culadoras da Rede Nacional de Religiões Afrobrasi-leiras e Saúde do estado do Pará.

A RELIGIOSIDADE NO FEMININO

Perseguidas por seus ritos e práticas religiosas, as mulheres escravizadas eram temidas e vistas como feiticeiras. Hoje, são

mães-de-santo e reafirmam o valor da cultura africana no Brasil

Mãe Menininha do Gantois

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POR UMA CULTURA DE PAZA Lavagem do Bonfim e a Irmandade da Boa Morte tipificam a

contribuição das religiões afrobrasileiras para uma mensagem de respeito à diversidade

Na Bahia, na segunda quinta-feira depois do Dia de Reis, comemorado em 06 de janeiro, duas

religiões se unem para um ritual religioso em comum – a lavagem do Bonfim, praticado por católicos e adeptos do candomblé.

A inusitada parceria percorre 8 km de ruas baianas, cantando hi-nos de adoração às duas principais divindades, Nosso Senhor do Bon-fim e Oxalá, configurando um dos maiores exemplos brasileiros da sinergia entre as religiões, muitas vezes intitulada sincretismo religio-so.

A junção entre as religiões tem origem na época da escravatura, quando portugueses e escravos, juntos, preparavam a capela para a festa de encerramento da novena de devoção ao Nosso Senhor do Bonfim. Hoje, cer-ca de 1 milhão de pessoas se reúnem anualmente para a celebração.

Além dos fiéis, participam bandas, grupos cultu-rais de manifestação folclórica, turistas e curiosos. Muitos se vestem de branco para a ocasião, que é a cor de Oxalá. Mulheres trajadas de baianas, com vestidos brancos, turbantes e braceletes, lideram o cortejo, que sai da igreja da Conceição da Praia, no bairro Dois de Julho em Salvador (BA), por vol-ta das 10 horas da manhã, após o término de uma missa. Elas seguem carregando vasos com a água perfumada que é derramada nos degraus da igre-ja de Nosso Senhor do Bonfim.

Irmandade da Boa Morte

Formada exclusivamente por mulheres negras com idade, geralmente, acima dos 50 anos, a Festa da Boa Morte há anos atrai centenas de turistas brasileiros e estrangeiros, ávidos em observar e participar de uma comemoração única.

vestidas de baiana ou em trajes de gala, nas co-res branca, preta e vermelha, enfeitadas com belís-

simas jóias, as mulheres da irmandade percorrem as ruas da cidade de Cachoeira, considerada a ci-dade mais negra da Bahia, cumprindo uma tradição secular que celebra a alforria de negros escravos.

De acordo com o historiador Odorico Tavares, a origem da irmandade da Boa Morte remonta ao início do século XiX, na igreja do Rosário da Barro-quinha (Salvador). Segundo ele, os JEJE seriam os responsáveis pela sua organização, que tinha como objetivo levantar fundos para a compra de cartas de alforria e dar proteção e encaminhamento aos negros fugidos.

Já o escritor Sebastião Heber fala sobre a his-tória da irmandade. Diz que Maria, mãe de Cristo, não morreu, teve apenas uma “dormição”. Fechou os olhos na terra e os reabriu no céu, onde vive junto de seu filho. O nome Boa Morte, da única remanescente das 600 irmandades que habitaram a Bahia do início do século XiX, vem desta crença que remonta ao catolicismo dos primeiros séculos.

“A Festa é uma das mais importantes manifesta-ções religiosas na Bahia, sendo um dos momentos mais ricos e ainda bem presente no nosso tempo, quando o sincretismo mimético acontece de modo original e bem particular”, frisa Sebastião Heber.

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Tanto para historiadores, quanto para compositores como João da Bahia, Pi-xinguinha e Donga, o samba nasceu na casa da Tia Ciata, com a música “Pelo

telefone”.

Essa baiana, nascida Hilária Batista de Almei-da, buscou o Rio de Janeiro para uma vida me-lhor. Tornou-se famosa por seus quitutes, por ser mãe-de-santo e, sobretudo, pelo samba que rola-va até altas horas em sua casa, conhecida como “Pequena África”.

Era casada com João Batista da Silva e com ele teve 14 filhos. Na sua casa, na Praça Onze, segundo Pixinguinha, “tocava-se choro na sala e samba no quintal”. Essa divisão é explicada pelo fato do choro ser tolerado pela polícia, enquanto

o samba era considerado coisa de marginal.

Estrelas memoráveis deram continuidade ao samba de Tia Ciata, que faleceu cercada de res-peito e reconhecimento de todas as camadas so-ciais. Destacam-se: Clementina de Jesus, rai-nha do partido alto, com seu timbre de voz incon-fundível; Dona Ivone Lara, a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de escola de

samba; Jovelina Pérola Negra, que ajudou a consolidar o que é chamado hoje de pagode; Leci Brandão, cantora, compositora e umas das mais importantes intérpretes de samba da música po-pular brasileira; Alcione, ganhadora de todos os Prêmios Tim de Música já realizados; Elza So-ares, a negra de voz rouca e inconfundível que recebeu o prêmio de “Cantora do Milênio”, confe-rido pela rede britânica BBC; entre outras.

A nova geração tem dado pluralidade ao ritmo. Na Bahia, as meninas da Ban-da Didá tocam, com seus tambores, o samba, o reggae e o funk, numa mistura de ancestralidade e contemporaneidade. Essencialmente desenvolvido com base na vertente negra, as ritmistas desen-volvem, além da boa música, um traba-lho de conscientização e valorização da cultura e das tradições afrobrasileiras.

Didá, na língua iorubá, quer dizer po-der da criação. E é isso que elas fazem. Costuram um novo tempo e montam um cenário de respeito à mulher. São 400 integrantes no projeto social, que aprendem informática, lidam com dese-nho e criam peças e estampas, além do artesanato.

O NASCIMENTO

DO SAMBA

Elza SoaresNão deixe o samba morrer... Não deixe o samba acabar...

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Ao contrário do que se pensa comumen-te, quando se toca na questão da saúde da população negra, é fundamental levar em consideração as questões relaciona-

das ao impacto do racismo, das desigualdades ra-ciais, socioeconômicas e de gênero.

De acordo com o Ministério da Saúde, as doen-ças e agravos mais frequentes na população negra podem ser agrupados nas seguintes categorias: a) geneticamente determinados – tais como a doença falciforme; b) adquiridos em condições desfavorá-veis – desnutrição, anemia ferropriva, doenças do trabalho, DST/Hiv/aids, mortes violentas, morta-lidade infantil elevada, abortos inseguros, sofri-mento psíquico, estresse, depressão, tuberculose, transtornos mentais (derivados do uso abusivo de álcool e outras drogas); e c) de evolução agravada ou tratamento dificultado – hipertensão arterial, diabetes melito, coronariopatias, insuficiência re-nal crônica, câncer, miomas uterinos.

Segundo estudiosos do assunto, o que existe, de fato, e precisa ser considerado, é a influência de fatores de diversas ordens, que vão desde às reais condições de vida, passando pela opressão de gênero e de raça, na incidência dessas enfer-midades.

A médica e fundadora do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde de São Paulo, Maria José de Oliveira Araújo, compartilha dessa opinião. “Sozinha, a genética não explica as condições de saúde da população negra. Minha tendência, en-quanto leiga em genética, é achar que a maioria das doenças que matam as mulheres negras está diretamente ligada às condições de vida e ao im-pacto do racismo”, defende.

Os dados socioeconômicos referentes à popu-lação negra por si só já confirmam essa afirmação. Segundo estatísticas oficiais, divulgadas pelos or-gãos do governo, iPEA e iBGE, muitas mulheres negras encontram-se abaixo da linha de pobreza e entre elas a taxa de analfabetismo é maior, se comparada a das mulheres brancas. Soma-se a isso o menor acesso aos serviços de saúde de boa qualidade.

Como mostram algumas pesquisas, ainda que as mulheres negras tenham acesso aos serviços, são discriminadas no atendimento, não têm aces-so a informações corretas, e acabam por conviver

com maior risco de adoecer e morrer de deter-minadas doenças, inclusive aquelas que poderiam ser facilmente prevenidas, como por exemplo, as mortes durante a gravidez, o parto ou no pós-par-to (mortes por causas maternas).

Retrato das Desigualdades

Dados da Pnad, apresentados na pesquisa Retrato das Desigualdades no Brasil do Fundo das Nações unidas para o Desenvolvimento das Mulheres - uNiFEM e iPEA mostram que a pro-porção de mulheres que nunca realizaram exa-mes preventivos de câncer de colo de útero ou mama é maior entre as negras. Os números mostram que no Brasil 36,4% das mulheres a partir de 25 anos nunca fizeram o exame clínico de mama, sendo que entre as brancas a propor-ção é de 28,7% e entre as negras a proporção sobe para46,3%.

A PATOLOGIA É SOCIALMuitas das doenças que acometem as mulheres

negras advém da opressão de gênero e raça

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Segundo a pesquisa, em um primeiro mo-mento esta desigualdade poderia ser explicada pelo fato de que as mulheres negras têm menos educação formal e menores rendimentos – o que dificultaria seu acesso aos serviços. No entanto, mesmo entre as mulheres que têm mais de 12 anos de estudo, as desigualdades permanecem: 10,5% das mulheres brancas com este nível edu-cacional nunca fizeram exame clínico de mama.

Estes números apontam para desigualdades na qualidade do atendimento, evidenciam práti-cas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de trabalho, resultantes de precon-ceitos e estereótipos racistas, próprios do racis-mo institucional.

O racismo institucional abarca ainda outros aspectos refletidos nos procedimentos e nas nor-mas das instituições e sua existência nos serviços e instâncias do Sistema Único de Saúde – o SuS foi oficialmente reconhecida pelo Ministério da Saúde durante o ii Seminário Nacional de Saúde da População Negra, realizado no Rio de Janeiro, em outubro de 2006.

Quanto à saúde mental, a mulher negra per-manece em desvantagem em relação à mulher branca, uma realidade diretamente associada ao racismo, à discriminação e a desvalorização so-cial do ser feminino e negro.

No Brasil ainda são poucos os estudos que evi-denciem o efeito do racismo na saúde mental da população negra e, especificamente, da mulher negra, contudo, ele é apontado pelos médicos e pesquisadores como fator determinante de vá-rios transtornos mentais e sofrimentos psíquicos desenvolvidos por mulheres negras, de todas as faixas etárias, no Brasil.

Para a psicóloga Maria Lu-cia Silva, do instituto Amma Psiqué e Negritude, o racismo pode desencadear, entre outros inúmeros prejuízos, um forte desequilíbrio emocional. “Com a negação de sua imagem, iden-tidade e valor, a mulher passa a sofrer cotidianamente com a angústia e a ansiedade, e isso a faz sofrer muito. O racismo tira a voz do sujeito”, declara.

Morte Materna é um indica-dor da desigualdade Social e de Gênero

Nas estatísticas sobre mor-talidade materna, a desigual-dade entre brancas e negras também é bastante visível. De

acordo com a enfermeira, doutora em Saúde Pública e especialista da temática, Alaerte Le-andro Martins, a incidência maior desse tipo de morte ocorre principalmente entre as mulhe-res negras de baixa renda e escolaridade.

De acordo com o Ministério da Saúde, a chance de uma mulher negra morrer durante a gravidez, o parto ou o pós-parto é duas vezes maior quando comparada às brancas. As desi-gualdades podem ser ainda maiores a depender da região de residência dessas mulheres.

Luiza Bairros, atual secretária de Promoção da igualdade do Estado da Bahia, tem como uma das prioridades de gestão influenciar a agenda da saúde no Estado. uma das metas a ser alcan-çada é a redução da mortalidade materna, com a ampliação do acesso às ações e aos serviços de qualidade, assistência ao pré-natal e ao parto.

“Temos, desde o ano passado, intensificado o diálogo com a Secretaria Estadual de Saú-de para que seja reestruturada a área técnica de saúde da mulher. Sabemos que, em todo o Brasil, os índices de mortalidade materna são sempre maiores entre as mulheres negras. Sa-bemos também que nosso estado, em especial na região metropolitana de Salvador, as mu-lheres vítimas desse tipo de morte são negras, jovens, moradoras de bairros periféricos. Sei que as mortes maternas que ocorrem no estado da Bahia têm grande impacto nos índices na-cionais. Tenho certeza que, na medida em que consigamos, na Bahia, fortalecer o pacto nacio-nal pela redução da morte materna e neonatal, estaremos cumprindo nosso compromisso de zelar pela vida e pelos direitos das mulheres negras”, avalia a secretária.

Luiza Bairros

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MULHERES NEGRAS EM AÇÃO

“Somos bonitas e nos amamos” A representação da recusa ao ideário de embranquecimento

Norteado pelo enfrentamento à falsa ide-ologia de democracia racial, há anos dis-seminada no Brasil, o movimento negro luta pelo fi m do racismo e contra a dis-

criminação, pela conscientização e empoderamen-to de negros e negras.

Seus participantes esbanjam o orgulho por per-tencerem a um grupo que forjou com suor e san-gue o desenvolvimento do Brasil e rejeitam o mito do embranquecimento.

Nessas organizações, terreno fértil para as dis-cussões sobre a discriminação e a exclusão social, é imprescindível destacar a atuação e a militância das mulheres negras. inspiradas na-quelas que lutaram incansa-velmente nos séculos Xvi e Xvii pela sobrevivência e dignidade, hoje as mulheres negras seguem ativistas na luta contra a dupla opres-são de que são alvo cotidiana-mente: o racismo e o machismo.

RETROSPECTIVA DE LUTA

Embora os movimentos sociais expres-sivos envolvendo grupos negros sejam cita-dos em todos os períodos de nossa história, somente a partir de 1930, com a fundação da Frente Negra Brasileira, as mobiliza-ções contra o racismo e em prol da igualdade racial tiveram repercussão nacional.

A organização pregava a recusa sistemáti-ca ao ideário de branqueamento por meio de mecanismos de afi rmação da negritude e chegou a contabilizar 60 mil associados, espalhados em estados como São Paulo, Mara-

nhão, Sergipe, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Boa parte do suporte fi nanceiro da entidade vi-nha dos bailes organizados pelas “Rosas Negras”, um grupo de mais de 30 mulheres que garantiam a infra-estrutura das festas. Segundo relatos da época, além do suporte econômico eram também as mulheres as grandes responsáveis pela mobilização da entidade, “eram elas que faziam todo o movimento”.

Em 1936, seis anos após a sua fundação, a Frente Negra Brasileira teve suas atividades encer-radas pela ditadura de Getúlio vargas.

DO PRETOGUÊS DE LÉLIA GONZALES À CRIOULICE DE LUCIA XAVIER

Mas o sonho não acabara. A ditadura e o golpe militar de 1964, caracteri-

zados pela repressão e comba-te aos movimentos

sociais, não foram capazes de silen-

ciar os ideais da mobili-zação pelo fi m do ra-cismo. Com

a retomada da democracia,

ativistas negros - mulheres e homens

- ajudaram a com-por o cenário político do país. Na década de

1970, projetos foram re-tomados e novos grupos

e associações formados. É quando nasce o Movimento

Negro Unifi cado - MNU.

Além de uma trajetória repleta de ini-ciativas bem sucedidas, que deram origem à criação de vários grupos de combate ao

racismo, o MNu é reconhecido também por sua representatividade feminina, sobretudo na

fi gura da professora Lélia Gonzáles.

das mulheres negras. inspiradas na-quelas que lutaram incansa-velmente nos séculos Xvi e Xvii pela sobrevivência e dignidade, hoje as mulheres negras seguem ativistas na luta contra a dupla opres-

racismo e o

RETROSPECTIVA

Embora os movimentos sociais expres-sivos envolvendo grupos negros sejam cita-dos em todos os períodos de nossa história, somente a partir de 1930, com a fundação

Frente Negra Brasileira, as mobiliza-ções contra o racismo e em prol da igualdade racial tiveram repercussão nacional.

A organização pregava a recusa sistemáti-ca ao ideário de branqueamento por meio de mecanismos de afi rmação da negritude e chegou a contabilizar 60 mil associados, espalhados em estados como São Paulo, Mara-

DO PRETOGUÊS DE LÉLIA GONZALES À CRIOULICE DE LUCIA XAVIER

Mas o sonho não acabara. A ditadura e o golpe militar de 1964, caracteri-

zados pela repressão e comba-te aos movimentos

sociais, não foram capazes de silen-

ciar os ideais da mobili-

a retomada da democracia,

ativistas negros - mulheres e homens

- ajudaram a com-por o cenário político do país. Na década de

1970, projetos foram re-tomados e novos grupos

e associações formados. É tomados e novos grupos

e associações formados. É tomados e novos grupos

quando nasce o Movimento Negro Unifi cado - MNU.

Além de uma trajetória repleta de ini-ciativas bem sucedidas, que deram origem à criação de vários grupos de combate ao

racismo, o MNu é reconhecido também por sua representatividade feminina, sobretudo na

fi gura da professora Lélia Gonzáles.

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62 :: Revista Persona

Antonieta de Barros

Benedita da Silva

Andreza Sá

“No Brasil, falamos o pretoguês, minha gen-te,” afirmava sobre a diferença da fala brasileira e da fala portuguesa, principalmente pela con-tribuição plural dos negros.

Co-fundadora do MNu, do instituto de Pes-quisa das Culturas Negras - iPCN e do Coletivo de Mulheres Negras - Nzinga, Lélia é tida como uma das principais responsáveis pela introdu-ção das discussões sobre gênero e raça em di-ferentes espaços públicos.

um exemplo seguido e difundido por Sue-li Carneiro, doutora em Filosofia da Educação que, à frente do Geledés - Instituto da Mulher Negra, desenvolve um trabalho político e jurídi-co para a melhoria da situação geral do negro no país e, especificamente, da mulher negra. Sueli é também a responsável pelo Programa de Direitos Humanos - SOS Racismo, braço jurídico do Geledés, onde uma equipe de seis advogados oferece assistência legal gratuita a vítimas de discriminação racial em São Paulo. O instituto promove campanhas de proteção à imagem do negro nos meios de comunicação e funciona como um centro de informações sobre o tema.

Segundo Vera Soares, feminista do Centro de Informação à Mulher - CIM de São Paulo, o tra-balho de Sueli criou uma ponte entre o movimen-to negro e o movimento feminista e estabeleceu uma parceria efetiva e necessária para ambos. “O primeiro documento que li sobre questões de gê-nero e raça era de Sueli Carneiro, em 1985. E me fez mudar de atitude quanto aos problemas en-frentados pelas mulheres negras”, afirma Vera.

Lúcia Maria Xavier de Castro é mais uma das expoentes do movimento de mulheres ne-gras no Brasil. Ela é coordenadora da Organiza-ção de Mulheres Negras Criola do Rio de Janeiro e secretária-executiva da articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras, que foi fundada em 2000 no processo preparatório da 3ª Conferên-cia contra o Racismo, a Xenofobia e intolerância Correlata, realizada em Durban, África do Sul, em 2001.

Apesar da fala tranquila e sotaque genuina-mente carioca, ela destaca: “Não basta vencer as más condições de vida se continuarmos sendo representadas como o mal da sociedade, as que parem e criam bandidos ou aquelas destinadas à exportação”.

Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil

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Revista Persona :: 63

No campo político, afunilado por uma cultura patriar-cal, Antonieta de Barros é uma referência. Re-mete aos anos 30, onde em Santa Catarina, es-tado conservador, de colonização europeia, uma

afro-descendente, filha de uma lavadeira e de pai ignorado, formou-se educadora e conseguiu ser eleita para deputada estadual.

Nessa área, Benedita da Silva, atual Secretária de Ação Social e Direitos Humanos do estado do Rio de Janeiro, tam-bém é exemplo. Foi a primeira senadora e governadora do Estado do Rio de Janeiro, com uma trajetória brilhante para quem nasceu na Favela do Chapéu Amarelo.

Na diplomacia, Marise Ribeiro Nogueira Guebel rom-peu os obstáculos impostos pelo preconceito racial e, oriunda de Escola Pública, filha de uma agente administrativa e de um torneiro mecânico, ingressou na carreira diplomática. A respeito desta conquista, declara: “Espero que meu exemplo sirva para mostrar às pessoas como eu, mulher, negra, mãe e de meia idade, que é possível, com perseverança, ocupar o espaço social a que temos direito”, declara.

Para a magistrada Neuza Maria Alves da Silva a cami-nhada também foi árdua. Desembargadora do Tribunal Re-gional Federal em Brasília, essa baiana de Salvador, cita o exemplo de sua mãe. “Foi uma mulher de poucas letras, que me ensinou a não ser arrogante, mas também não ser sub-missa, mas sim, tudo obter por meio do estudo, com digni-dade”, conta.

A trajetória da advogada Andreza Sá, também asseme-lha-se às demais. Formada em Direito pela Universidade Ca-tólica de Salvador, com Mestrado em Coimbra, ela declara que sua vida daria um livro. “Já fui vendedora de batata frita na porta do Clube Português da Bahia. Hoje, advogo no Brasil e em Portugal”. Para ela, que já sofreu, passou fome e ven-ceu, “acreditar e lutar é preciso. Todos nós podemos”.

Neide Castanha também acredita nisso. Acredita tanto que teve sua atuação frente o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre crianças e Adolescentes (Cecria) reconhecido pelo Senado, no dia 5 de março deste ano. Na ocasião ela foi uma das agraciadas com o Prêmio Bertha Lutz, que ho-menageia mulheres de destaque na luta pelos direitos das mulheres. “A Conquista de direitos não pode ter idade, prin-cipalmente no campo dos direitos humanos das mulheres”, afirma.

MULHERES NEGRAS NO PODER: UM CAMINHO A SER

PERCORRIDOAlgumas mulheres já conseguiram ultrapassar

barreiras e superar as desigualdades de oportunidade

Marise Ribeiro

Neuza Maria

Neide Castanha

Antonieta de Barros

Benedita da Silva

Andreza Sá

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Edson Santos, ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da igualdade Racial da Presidência da República, em entrevista exclusiva, fala do trabalho da SEPPiR na ela-

boração de políticas afirmativas voltadas à população negra brasileira. Para ele, a Lei Áurea não se efetivou e o negro tem pressa.

Políticas de Gênero

Entende o ministro que sua Secretaria, em par-ceria com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, tem desenvolvido um trabalho importante na superação da discriminação racial e de gênero que vitimiza mulheres negras de todas as idades.

Edson Santos destaca o quadro de desigualdades, mas pontua que nunca houve, na esfera governa-mental, tanta sensibilidade e compromisso para com esse tema. Em relação às mulheres, ressalta que são as negras as mais suscetíveis às piores condições de vulnerabilidade social. Elas ocupam as funções de menor remuneração. “90% das empregadas domés-ticas são mulheres negras, das quais apenas 1/3 têm carteira assinada”, destaca.

Para transformar essa realidade, sua secretaria e o Ministério do Trabalho têm o programa “Trabalho Doméstico Cidadão”, que visa promover e assegurar

os direitos trabalhistas dessa categoria. “A mulher ne-gra tem menos acesso à informações, aos serviços e às ações de planejamento familiar. Muitas vezes têm um número maior de filhos e mais dificuldades em avançar nos estudos. Com pouco estudo, inserem-se no mercado de trabalho com menores salários, em-bora, na maioria das vezes, seja a espinha dorsal e a chefe financeira de sua família”, descreve.

Para o ministro, as mulheres negras estão mais vulneráveis também no âmbito na saúde. ”A promo-ção da igualdade racial não pode estar desvinculada de todas as demais ações voltadas para o desenvol-vimento econômico e social do país, e as políticas de seguridade social, incluindo a saúde, são essenciais. Também temos que garantir mais integração com o setor privado. É preciso ampliar as políticas afirmati-vas neste setor”, explica.

Lei áurea não está completa

A abolição da escravatura, que juridicamente li-bertou os negros, não os retirou dos porões da so-ciedade. A luta pela liberdade, cidadania e dignidade persiste, mesmo após 120 anos.

Como caminhos para a promoção da igualdade, o ministro destaca como prioridades a aprovação do Estatuto da igualdade Racial, em processo de apre-ciação na Câmara dos Deputados, e a Lei de Cotas, que se encontra no Senado. Além disso, aponta as políticas voltadas para as comunidades remanescen-tes dos quilombos, com ênfase na titulação das terras e no acesso a bens e serviços básicos.

Outro tema importante que o ministro chama a atenção está no setor da educação. Para ele, a Lei 10.639/03, que determina a inclusão, em todo o currículo escolar, de conteúdos relacionados com a História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na for-mação da sociedade nacional, resgata a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. “A afirmação do or-gulho de nossa identidade negra é um dos maiores ganhos a partir da prática efetiva da Lei”, declara.

“Betinho dizia que quem tem fome, tem pressa. Eu digo: quem vive sob o peso da discriminação his-tórica também. O negro tem pressa!”, finaliza.

CAMINHOS PARA A IGUALDADE

As situações de vulnerabilidade que estão submetidas as mulheres negras podem ser muito maiores

Edson Santos, Ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

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O Fundo de População das Nações unidas (UNFPA) é uma agência da ONU de coope-ração internacional para o desenvolvimen-to que promove o direito de cada mulher,

homem, jovem e criança a viver uma vida saudável, com igualdade de oportunidades. A instituição apóia os países na utilização de dados sociodemográficos para a formulação de políticas e programas de redu-ção da pobreza. Além disso, contribui para assegurar que todas as gestações sejam desejadas, todos os partos sejam seguros, todos os jovens fiquem livres do Hiv e que todas as meninas e mulheres sejam tratadas com dignidade e respeito

PROPOSTAS, INICIATIVAS E RESULTADOS

Para Fernanda Lopes, oficial de Programa em Saúde Reprodutiva e Direitos do uNFPA, faz parte das ações da instituição trabalhar com as perspecti-vas de promoção da igualdade racial, de combate ao racismo e enfrentamento às desigualdades de gêne-ro. “Ao longo dos últimos anos temos apoiado mu-lheres adultas e jovens em iniciativas que resultem na ampliação de sua participação no controle social de políticas públicas. investimos na ampliação das habilidades das mulheres e das jovens em defender seus direitos, principalmente aquelas que perten-cem a grupos discriminados, como as mulheres ne-gras. Temos investido na formação, na mobilização, na elaboração de produtos de comunicação e, so-bretudo, no apoio às iniciativas vindas das próprias mulheres, por meio das Redes das organizações não governamentais lideradas por elas”, explica.

De acordo com Fernanda, a parceria e o apoio na produção e veiculação de cadernos temáticos na Revista Persona Mulher nasceu dentro desse con-texto, com o objetivo de levar informação de qua-lidade, abordando assuntos pertinentes à realidade das mulheres e que, de alguma forma, sejam capa-zes de mobilizar e sensibilizar para a necessidade de transformação.

A atuação do uNFPA, segundo ela, está focada na promoção dos direitos das mulheres e na cons-trução de um espaço democrático e mais iguali-tário, tanto para mulheres negras, como brancas, adultas, adolescentes, idosas, que vivem com Hiv e AIDS, com deficiência, enfim, para a garantia de uma sociedade onde todas as mulheres possam participar da formulação, do monitoramento e da avaliação das políticas públicas, dos programas e

ações do governo e que, sobretudo, tenham seus direitos reprodutivos efetivados. “Quando as mu-lheres decidem voluntariamente o tamanho de suas famílias, elas têm oportunidades de decidir sobre outras dimensões de sua vida, no presente e no futuro”, afirma.

Quanto às ações afirmativas em favor da igual-dade racial e de gênero em curso no Brasil, Fernan-da declara que os resultados têm sido expressivos e já configuram um exemplo a ser seguido por outros países, mas destaca: “ainda há muito por fazer para que, em nossa sociedade, haja uma real democra-cia racial”. Para ela, são muitas as ações afirmativas que o Brasil apresenta como modelo. “A criação das Secretarias de Políticas para as Mulheres e de Pro-moção da igualdade Racial é um bom exemplo de ação a ser replicada em outros países. A Lei 10. 639, de março de 2003, que institui a inserção da histó-ria e cultura da África e dos afrodescendentes nos currículos escolares do ensino fundamental e médio, é outra experiência que tem ganhado destaque no cenário internacional. Quanto à Lei de cotas, embora já viesse sendo desenvolvida em outros lugares do mundo, o Brasil soube adequar à sua realidade e essa adequação, que é um processo, também poder vista como modelo”, avalia.

No âmbito da saúde, Fernanda destaca o ano de 2006 como um divisor de águas. “Foi nesse ano que o Conselho Nacional de Saúde aprovou a Política Na-cional de Saúde integral da População Negra. O SuS tem agora uma política que marca o compromisso do governo com as questões que incidem nesse gru-po populacional. A partir desse momento, o racismo passou a ser visto, também pelo governo, como um determinante nas condições de saúde da população.

O UNFPA NA PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Fernanda Lopes