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Pág. 1 de 21 BRAZIL, M. C. . Sobre os campos de vacaria do sul de Mato Grosso.Considerações sobre terra e escravidão [1830-1889]. In: MAESTRI, Mario & BRAZIL, M. C. Peões,vaqueiros, cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil. 1 ed. Passo Fundo: Editora de Passo Fundo, 2009, v. 1000, p. 219-250. SOBRE OS CAMPOS DE VACARIA DO SUL DE MATO GROSSO Considerações sobre terra e escravidão [1830-1889] 1 . Maria do Carmo Brazil* Palavras chaves: latifúndio; criação bovina; mão-de-obra 1. Limites historiográficos Apesar de a produção pastoril ter sido praticamente a base econômica de toda a história brasileira, paradoxalmente é pequeno o fluxo de estudos historiográficos dedicados especificamente a essa atividade, mesmo naquelas regiões em que desempenhou papel essencial, como, no caso de Mato Grosso. A historiografia brasileira sobre o tema não deixa dúvida a respeito da importância da produção pastoril em nosso passado. 2 Apesar desse reconhecimento, em âmbito nacional, e de vários autores terem abordado desde cedo tangencialmente essa questão, como apenas assinalado, a carência de estudos sobre o tema é indiscutível. 3 Essa lacuna historiográfica reflete-se em Mato Grosso, que não dispõe de uma produção mais refinada sobre o processo de formação do latifúndio a partir da introdução, consolidação e desenvolvimento da produção pastoril. Mais comumente, a historiografia regional abordou a produção pastoril mato-grossense nos seus aspectos gerais, compreendidos como escassamente dinâmicos. Esse é caso dos estudos realizados por Virgílio Correa Filho, dominantemente voltados para a planície pantaneira, atrelados aos poderes constituídos e expressos nas obras Pantanais Mato-grossenses (1946), Fazendas de Gado no Pantanal mato-grossense (1955), A Propósito do boi pantaneiro. Monografias cuiabanas (1926). 4 *Docente do PPGH da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutora em História Social pela FFLCH/Universidade de São Paulo (USP). 1 Agradecimentos à Isabel Camilo de Camargo, mestranda do Programa de Pós-graduação em História/UFGD/MS. E-mail: [email protected]. 2 Cf. GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da província do Brasil. Rio de Janeiro: INL/ Ministério da Educação e Cultura, 1965; SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 4 ed. São Paulo: CEN; EdUSP, 1971; CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2 ed. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000; SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. 7 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1982; BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1977. 3 Consultar por exemplo: GOULART, José Alípio. Transporte nos engenhos de açúcar (1959); Meios e instrumentos de transporte no interior do Brasil (1959); Tropas e tropeiros na formação do Brasil (1961); O cavalo na formação do Brasil (1964); Brasil do boi e de couro (1965); O ciclo do couro no Nordeste (1965). 4 CORREA FILHO, Virgílio. Pantanais Mato-grossenses Devassamento e ocupação. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/CNG, 1946. Biblioteca Geográfica Brasileira. Fazendas de Gado no Pantanal mato-grossense- Documentário da vida rural n° l0- Rio de Janeiro: Ministério da

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BRAZIL, M. C. . Sobre os campos de vacaria do sul de Mato Grosso.Considerações sobre terra e escravidão [1830-1889]. In: MAESTRI, Mario & BRAZIL, M. C. Peões,vaqueiros, cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil. 1 ed. Passo Fundo: Editora de Passo Fundo, 2009, v. 1000, p. 219-250.

SOBRE OS CAMPOS DE VACARIA DO SUL DE MATO GROSSO

Considerações sobre terra e escravidão [1830-1889] 1.

Maria do Carmo Brazil*

Palavras chaves: latifúndio; criação bovina; mão-de-obra

1. Limites historiográficos

Apesar de a produção pastoril ter sido praticamente a base econômica de toda

a história brasileira, paradoxalmente é pequeno o fluxo de estudos historiográficos

dedicados especificamente a essa atividade, mesmo naquelas regiões em que

desempenhou papel essencial, como, no caso de Mato Grosso.

A historiografia brasileira sobre o tema não deixa dúvida a respeito da

importância da produção pastoril em nosso passado.2 Apesar desse reconhecimento, em âmbito nacional, e de vários autores terem abordado desde cedo tangencialmente

essa questão, como apenas assinalado, a carência de estudos sobre o tema é

indiscutível. 3

Essa lacuna historiográfica reflete-se em Mato Grosso, que não dispõe de

uma produção mais refinada sobre o processo de formação do latifúndio a partir da

introdução, consolidação e desenvolvimento da produção pastoril. Mais comumente,

a historiografia regional abordou a produção pastoril mato-grossense nos seus

aspectos gerais, compreendidos como escassamente dinâmicos. Esse é caso dos

estudos realizados por Virgílio Correa Filho, dominantemente voltados para a

planície pantaneira, atrelados aos poderes constituídos e expressos nas obras

Pantanais Mato-grossenses (1946), Fazendas de Gado no Pantanal mato-grossense

(1955), A Propósito do boi pantaneiro. Monografias cuiabanas (1926). 4

*Docente do PPGH da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutora em História Social

pela FFLCH/Universidade de São Paulo (USP). 1Agradecimentos à Isabel Camilo de Camargo, mestranda do Programa de Pós-graduação em

História/UFGD/MS. E-mail: [email protected]. 2 Cf. GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da província do Brasil. Rio de Janeiro: INL/

Ministério da Educação e Cultura, 1965; SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em

1587. 4 ed. São Paulo: CEN; EdUSP, 1971; CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2 ed.

Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000;

SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. 7 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1982; BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. São Paulo: Melhoramentos,

1977. 3 Consultar por exemplo: GOULART, José Alípio. Transporte nos engenhos de açúcar (1959); Meios e

instrumentos de transporte no interior do Brasil (1959); Tropas e tropeiros na formação do Brasil (1961);

O cavalo na formação do Brasil (1964); Brasil do boi e de couro (1965); O ciclo do couro no Nordeste

(1965). 4CORREA FILHO, Virgílio. Pantanais Mato-grossenses – Devassamento e ocupação. Rio de Janeiro:

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/CNG, 1946. Biblioteca Geográfica Brasileira. Fazendas de

Gado no Pantanal mato-grossense- Documentário da vida rural n° l0- Rio de Janeiro: Ministério da

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Além de Correa Filho, temos alguns estudos isolados voltados para áreas

específicas do Pantanal, como os de Carlos Vandoni de Barros e José de Barros

Maciel. 5 São escritos realizados por descendentes de José de Barros, um dos

fundadores da dinastia de pioneiros6 (nos dizeres de Pedro Calmon) da região

pantaneira e que contribuíram para nutrir o gênero da biografia romanceada e as

memórias por ordem crescente de interesses. Sobre a região de rio Brilhante e

Sant’Ana de Paranaíba, surpreendentemente arrolamos apenas o trabalho de cunho memorialístico de Hildebrando Campestrini e Acyr Vaz Guimarães. 7

A obra intitulada História de Mato Grosso do Sul, ao dedicar algumas

páginas ao processo de ocupação dos Campos de Vacaria e cercanias, serviu de base

para estudos técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). 8

A partir de sua obra germinal, Campestrini produziu Sant’Ana do Paranaíba: Dos

caiapós à atualidade (1999), com objetivo de contribuir à construção da história do

município, tendo como fundamento a trajetória das famílias pioneiras.9 Vemos esse

trabalho como mais uma reprodução do tradicional culto às classes proprietárias do

passado, ainda tão comum na região, mas que não deixa de ser um ponto de partida para análises científicas.

No rol de pesquisas acadêmicas dispomos de apenas dois trabalhos dedicados

à pecuária em Mato Grosso. Um de autoria de Luiz Miguel do Nascimento e outro

de Paulo Marcos Esselin. 10 O primeiro trata-se do trabalho defendido, em 1992,

como dissertação de mestrado, sob o título As charqueadas em Mato Grosso:

subsídio para um estudo de história econômica, cujo recorte temporal envolve o

período entre 1873 e 1960. Observamos que Nascimento não discutiu o processo de

desenvolvimento da economia criatória no sul de Mato Grosso como um todo, pois

seu enfoque restringiu-se à expansão da ordem capitalista na região pantaneira, com base na indústria da carne.

O segundo trabalho é o brilhante trabalho de pesquisa A pecuária no

processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul mato-

grossense (1830-1910), apresentada por Paulo Marcos Esselin, em 2003, como tese

de doutoramento no Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências

Agricultura - Serviço de informação agrícola, l955. A Propósito do boi pantaneiro. Monografias

cuiabanas, Rio de Janeiro: Pongetti, 1926. 5BARROS, Carlos Vandoni de. Nhecolândia – Opúsculo escrito em comemoração à Primeira Feira

Agropecuária realizada na Fazenda Santa Rita, município de Corumbá – atestado eloqüente da luta pelo

progresso na riquíssima região nhecolandense. Mato Grosso: s.e. 1934. MACIEL, Jose de Barros. A

pecuária nos pantanais de Mato Grosso: Tese apresentada ao 3º Congresso de Agricultura e Pecuária.

São Paulo: Imprensa Metodista, 1922. 6 CALMON, Pedro - História da Casa da Torre - Uma dinastia de pioneiros, Livraria José Olympio

Editora,1958; BRAZIL, Maria do Carmo. (Revista) 7 CAMPESTRINI, Hildebrado e GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. Campo

Grande: Academia sul Mato-Grossense de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do

Sul, 1991. 8 MAZZA, Maria Cristina Medeiros [et AL]. Etnobiologia e Conservação do Bovino Pantaneiro. Corumbá: Embrapa, 1994, p. 14,15. 9 CAMPESTRINI, Hildebrado. Sant’Ana do Paranaíba: Dos caiapós à atualidade. Paranaíba: Prefeitura

de Paranaíba, 1999. 10 NASCIMENTO, Luiz Miguel. As charqueadas em Mato Grosso. Subsídio para um estudo de história

econômica. Assis, SP: Departamento de História da Faculdade de Ciência e Letras da Universidade

Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp), 1992. ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária no

processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul mato-grossense (1830-1910). Porto

Alegre, RS: Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/Porto Alegre), 2003.

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Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O autor discute

o papel desempenhado pela pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento

econômico do Mato Grosso e investiga a origem dos primeiros bovinos introduzidos

na planície fluvial do pantanal sul, bem como as características do meio físico que

permitiram excepcionais condições para operar a reprodução do rebanho. Algumas

páginas da obra são dedicadas à região leste do antigo Mato Grosso, espaço onde se

assentavam os Campos de Vacaria e os Sertões dos Garcia (Sant’Anna de Paranaíba).

É certo, portanto, que Mato Grosso dispõe de grandes lacunas

historiográficas sobre o tema, em detrimento de ser uma região de raízes

essencialmente pastoris. Mesmo sobre o pantanal ainda é irrisória a produção

acadêmica em torno do processo evolutivo da produção pecuária. Além disso,

poucos historiadores procuraram dialogar dialeticamente com os elementos da

realidade, presentes nos relatos memorialísticos ou outras peças informativas

similares, como forma de construir a história regional. Assim, a reflexão sobre a

ocupação deste espaço singular traduz a certeza de que a pesquisa histórica sobre as correntes de povoamento e os aspectos da vida material da parte sulina de Mato

Grosso permanece ainda como uma floresta primitiva, à espera de seus

desbravadores.11

A exemplo da historiografia sul-rio-grandense são escassos os trabalhos

gerais de historiadores sobre a evolução das fazendas pastoris do meridião mato-

grossense.. Daí a importância de se centrar esforços na definição do perfil da

propriedade pastoril, unidade produtiva que alavancou o desenvolvimento do atual

estado de Mato Grosso do Sul.

Nesse sentido, procuramos refletir sobre o processo de formação do latifúndio a partir da introdução, consolidação e desenvolvimento da produção

pastoril em áreas do sul de Mato Grosso, especificamente o Sertão dos Garcia, porta

de entrada para os Campos de Vacaria, no século 19, considerando as formas

jurídicas de formação da propriedade (sesmeira; compra; posse; ocupação livre,

etc.), a evolução das técnicas produtivas (marcação, castração, rodeios etc.) e as

relações de trabalho (livre e escravizada).

Espaço pastoril

Cabe enfatizar inicialmente que os trabalhos existentes sobre esse espaço brasileiro, sobretudo no que se referem à gênese da economia pastoril, restringem-se

à história recente da região, ou seja, à análise do processo de colonização do sul de

Mato Grosso a partir da década de 1940, quando o governo Vargas [1930-1945]

implantou a política de interiorização do Brasil, conhecida como Marcha para

Oeste, cujo objetivo era povoar os espaços vazios das regiões do Oeste e da

Amazônia brasileira, e expandir a abrangência da produção capitalista-mercantil do

Brasil12.

11 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro. Uma contribuição para o estudo

dos caminhos fluviais. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas.

São Paulo-SP. 1999, p. 262. (Tese de Doutorado). 12 Schwartaman, Simon( org.) - Estado Novo, um auto-retrato , Brasília: Ed. UNB, l982, p.21. (Arquivo

Gustavo Capanema). Ver também 12 Figueiredo, José Lima. O Rio Paraná no Roteiro da Marcha para o

Oeste. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro: CNG, jan./mar., 1942, p.143. Vargas, Getúlio- A

Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, l938-l944, l0 vols.

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O ponto fulcral de nossas inquietações, e que redundou nesta reflexão, refere-

se, mais especificamente, ao passado histórico-pastoril da região de Sant’Ana de

Paranaíba, conhecida por Sertão dos Garcia, e de Rio Brilhante, denominada

Campos de Vacaria. Espaço rendilhado pelos rios Paraná, Paranaíba, Sucuriú,

Verde, Pardo, Anhanduí Vacaria, e Brilhante, se constituiu, em diversos pontos, em

pouso obrigatório para os viandantes que perscrutavam os sertões mais internos de

Mato Grosso por variados motivos, entre os quais se destacavam a busca de fama, riqueza e poder. Nesses pontos de descanso os caminheiros roçavam o mato,

preparavam o acampamento, arranchavam-se, ceavam, armavam redes. Alguns

sertanistas permaneciam por mais tempo nos pousos, pois desenvolviam lavoura de

milho, feijão e mandioca, e só depois de se colher seus frutos, prosseguiam

viagem13. Não raro, os pousos e varadouros mato-grossenses transformavam-se em

importantes arraiais ou em áreas difusoras de populações oriundas do centro-sul

brasileiro.

A existência de inúmeros documentos existentes nos arquivos regionais

envolvendo, sobretudo grandes pecuaristas e trabalhadores escravizados e livres pobres, também despertou nosso interesse em estudar o passado dos núcleos pastoris

de povoamento do sul de Mato Grosso (Figuras 1 e 2). Com este enfoque, é possível

contribuir para que se retire os trabalhadores escravizados e camponeses pobres do

anonimato preexistente no discurso historiográfico regional 14. Despojados de

merecida cientificidade, os raros escritos sobre o segmento social subalternizado

encontram-se restritos aos depoimentos isolados, memórias das ditas elites regional

e local, dados dispersos nos inventários, documentos cartoriais ou detalhes quase

imperceptíveis ou ligeiramente registrados nas narrativas dos viajantes que passaram

pela região no século 1915.

13 AMORIM, Marcos Lourenço. O Segundo Eldorado brasileiro. Navegação fluvial e sociedade no

território do ouro. De araraitaguaba a Cuiabá – 1719-1838. Dourados, MS: UFGD, 2004, p. 33.

(Dissertação de Mestrado). 14 CAMARGO, Isabel Camilo de. BRAZIL, M.B. Sant’Ana de Paranaíba no século XIX: aportes para o

debate sobre latifúndio e escravidão. Anais XXV Simpósio Nacional da ANPUH -12 a 17 de julho de

2009. Fortaleza, CE, 2009, p. 281. 15 Ibidem.

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Figura 1 – Localização dos campos de Vacaria de Mato Grosso delineado em mapa com divisão político- administrativa contemporânea e editado por Omar Daniel/FCA/UFGD.

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Figura 1 – Croqui de localização dos campos de Vacaria, sertão dos Garcia e do

trajeto de Joaquim Francisco Lopes, no sul de Mato Grosso.

A existência de um passado escravista regional ainda causa estranhamento a

muitos moradores locais, por acharem impensável que a escravidão tenha alcançado

os mais remotos recantos do Brasil, como é o caso do dos Campos de Vacaria e do

Sertão dos Garcia. 16 Empenhar esforços sobre esse espaço constituído por anseios,

necessidades e contradições sociais significa lançar luz sobre a problemática do

latifúndio, dos campos, das barrancas dos rios, das fazendas, como materialização de

ricas e complexas relações sociais, envolvendo produção, dominação e resistência. 17

O passado missioneiro das fazendas pastoris

Na década de 1570 Domingos Martinez de Irala, como governador de

Assunção, e representante dos colonizadores espanhóis despachou para a conquista

de terras sul-americanas, dois de seus capitães, munidos de apreciáveis expedições:

Nuflo Chavez e Rui Diaz Melgarejo. Cabia a este último explorar as ribanceiras do

rio Paraná e a Nuflo Chavez a tarefa de colonizar a planície de Xarayés (região do

Pantanal), sobretudo a região da Gaíva, onde deveria ser fundado um forte18.. Rui

Diaz Melgarejo remontou o Paraná e fundou Ciudad Real na confluência do Piquiri

e, em 1579 recebeu ordem para explorar o território dos nuarás, famoso por seus verdejantes campos. Escolheu a margem direita do M’botetey (rio Miranda),

tributário do Paraguai, onde fundou a cidade de Santiago de Xerez. Teve pouca

duração a cidade fundada por Melgarejo, devido às reações dos nativos. Invadida

pelos guatós em 1579, a cidade de Santiago de Xerez teve uma segunda fundação em

1593, à margem direita do Miranda por iniciativa de Ruy Diaz de Guzmán 19.

Os primeiros religiosos espanhóis chegaram ao Novo Mundo no início do

século 17 com a missão de cristianizar os nativos americanos. Fundaram dez

reduções na província do Guairá, hoje estado do Paraná. Entre 1610 e 1634, as

missões ergueram na região do Prata mais duas reduções: a do Itatim20 [sul do antigo Mato Grosso] e a do Tape [atual estado do Rio Grande do Sul], na bacia do

rio Uruguai. A partir daí os religiosos foram pontuando de reduções grande parte da

região platina, destacando-se entre as mais famosas os Sete Povos das Missões, na

margem esquerda do rio Uruguai.

16 Ibidem. 17 Ibidem 18 Relato de Ruy Diaz de Guzman, citado por Pedro Moura em Bacia do Alto Paraguai – Revista do

Conselho Nacional de Geografia. Rio de Janeiro: CNG, 1943, p. 27; 19 Cf. BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro... Op. cit., p. 114. 20GADELHA, R. M. A. F. As Missões Jesuíticas do Itatim: um modelo das estruturas sócio-econômicas

coloniais do Paraguai (séculos XVI e XVII). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980 . Ver também SOUSA, N.

M. A redução de Nuestra Señora de la fe no Itatim: entre a cruz e a espada (1631-1654). Universidade

Federal de Mato Grosso do Sul: Dourados, 2002. Dissertação de Mestrado. COSTA, M. F. História de um

País Inexistente: O Pantanal entre os Séculos XVI e XVIII. São Paulo: Kosmos, 1999.

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Logo os missionários promoveram a introdução do gado vacum, cavalar,

muar e ovino ciente de sua importância à sobrevivência das reduções. O gado

adquirido desenvolveu-se e propagou-se pelos currais e fazendas às margens dos

rios Paraná, Uruguai e Paraguai. Surgiram assim os primeiros núcleos criatórios de

gado. A idéia era promover a fixação dos nativos, sobretudo guaranis e, depois,

acumular riqueza para região missioneira baseada nos referidos rebanhos.

É preciso destacar que o surgimento do povoado castelhano de Xerez representou o gênesis do criatório bovino em espaço mato-grossense21. Os espanhóis

seguiam em caravanas, carretas puxadas por juntas de bois; levavam sementes para o

cultivo, utensílios para o início de suas atividades e também pequenos rebanhos de

bovinos e eqüinos22. Este gado criado à solta, não recebiam maiores cuidados.

Entretanto, as incursões bandeirantes ao explorar o interior da America do

Sul alcançaram essas reduções jesuíticas e seus campos de cria. A partir daí, as

penetrações interioranas, propulsionadas por fatores geopolíticos, econômicos e

sociais atingiram Guairá em 1628. Sem saída os missionários abrigaram os nativos

sobreviventes nas reduções de Santo Inácio e Loreto e, em seguida refugiaram-se nas missões estabelecidas entre os rios Paraná e Uruguai; os paulistas aproveitaram-

se da retirada para destruir as povoações de Vila Rica e Ciudad Real, situadas

respectivamente na margem esquerda do rio Ivaí e junto à foz do rio Piquiri; alguns

habitantes conseguiram se dirigir para o Paraguai, onde fundaram nova povoação às

margens do rio Jejuí. Signo da posse espanhola, a região foi invadida e destruída

pelos bandeirantes luso-paulistas em 1632, assinalando o domínio português.

Depois do esfacelamento de Xerez (1633), os padres jesuítas foram obrigados

a abandonar a redução e se refluírem com muitos nativos para a margem direita do

Uruguai, por absoluta incapacidade de enfrentar os invasores em condições iguais, no referente, sobretudo, ao armamento necessário. Segundo o Informe da

Companhia de Jesus, esboçado pelo historiador português Jaime Cortesão, os

jesuítas acabaram deixando cerca setecentas cabeças de gado vacum aos neófitos.23

Outras centenas de animais ficaram na antiga povoação juntamente com

aqueles utilizados como tração: bois, éguas, cavalos e mulas, que haviam desgarrado

do rebanho e se criaram sem trato algum. 24 Sem dispor do costeio dos nativos, as

manadas se espalharam pelo território e retornaram ao estado selvagem25. Mesmo

abandonado e sem manejo o gado multiplicou-se na condição de bagual. Criado

naturalmente por mais de meio século o gado selvático se proliferou, constituindo-se no casco inicial da pecuária sul mato–grossense, depois de sobreviveram

silvestremente em ambiente favorável, propício à criação. 26

A derrota dos pólos de colonização espanhola e o completo despovoamento

de Itatim levaram os luso-brasileiros a perscrutar novos territórios sementeiros de

cativos, necessários às atividades primário-exportadoras do nordeste brasileiro.

21 ESSELIN, Paulo Marcos; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado. Terra onde o gado criou o homem e definiu o latifúndio. História – Debates e Tendências. Revista do Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade de Passo Fundo, v.7, n.2, jul./dez.2007. (Dossiê a Fazenda Pastoril e a

escravidão), p. 101-117. 22 Ibidem. 23 CORTESÃO, Jaime (org). Manuscritos da Coleção de Angelis (jesuítas e bandeirantes...). Rio de

Janeiro: Biblioteca Nacional/ Divisão de Obras Raras e Publicações. 1951, v. 2, p. 19. 24 Ibidem. 25 ESSELIN, Paulo Marcos; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado. Terra onde ...Op. cit. 26 Ibidem..

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Historicamente, o cativeiro foi a organização econômica que melhor se adaptou à

valorização das terras americanas, devido à impossibilidade histórica da

conformação de mercado de trabalho livre. Não há dúvida de que o próprio

desenvolvimento capitalista europeu floresceu, também, graças à feitorização do

homem americano e, depois, africano. 27

Além da preagem dos nativos para escravização, as razões oficiais luso-

brasileiras em avançar a linha raiana de Tordesilhas eram revestidas pela idéia de encontrar metais preciosos, que segundo as lendas estariam nos montes refulgentes

do Peru. 28 Nessa trajetória, os paulistas destruíram missões jesuíticas espanholas,

estabeleceram rotas, descobriram minas e criaram circunstâncias para a ocupação e o

povoamento de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.

Com a descoberta das minas de ouro em Cuiabá (1718), a parte sul de Mato

Grosso deixou de ser objeto de interesse por parte dos mamelucos paulistas. Em O

Brasil do Boi e do Couro29, obra publicada em 1965, José Alípio Goulart lembra que

a introdução do gado em áreas mato-grossense foi quase concomitante com a do

garimpeiro e a do faiscador. O governador de São Paulo, Rodrigues Cezar de Meneses, ciente da necessidade de rebanho na região das minas, emitiu regimento

(1725) incentivando os criadores a estabelecer currais naquelas paragens30.

Cavalcante Proença informa que algumas reses penetraram na região pelas mãos da

gente de Piratininga. Luiz D’Alincourt arrisca dizer que as primeiras cabeças

procederam de Camapuã.31 Esse gado tangido seja por luso-brasileiros, colonos

castelhanos, paulistas ou criadores de Goiás, acabou misturado ao gado dos campos

da Vacaria. 32

Nos primórdios da ocupação de Mato Grosso, priorizava-se o ouro em

detrimento dos rebanhos selvagens formados depois da destruição da missão de Itatim. Tanto desinteresse, por parte de espanhóis e portugueses, permitiu que os

rebanhos bovinos e eqüinos se multiplicassem ao longo dos anos.

Para se ter uma idéia, em 1682, alguns anos antes da descoberta do ouro

cuiabano, uma das mais importantes bandeiras, organizada na cidade de Sorocaba,

partiu para o sul de Mato Grosso, tendo como capitão-mor Pedro Leme da Silva.

Maravilhado com os rebanhos bovinos e eqüinos, sem donos, Pedro Leme optou

pela formação de um arraial nas vacarias sulinas de Mato Grosso. 33

Em suas constantes incursões pela região, os portugueses nominaram essas

áreas de vacaria, dada a presença dos rebanhos silvestres. Delimitava-a Pedro Taques, em meados do século 18, depois de afirmar que, nos campos assim

chamados, existiam enormes rebanhos, sem haver algum senhor possuidor de tanta

grandeza, não só de gados vacuns, mas também dos animais cavalares. 34

27 MAESTRI, Mario. História da África Negra Pré Colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p.42-

43. 28 HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Visões do Paraíso – Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p.99. 29 Goulart, José Alípio. O Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1965. (Coleção Ensaios

Brasileiros – Homens e Fatos, n. 3, dois volumes). 30 Ibidem, p. 41. 31 Ibidem, p. 61. 32 Ibidem, p.42 33 TAUNAY, Affonso. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: TYP. Ideal, 1930.v.1 e 6. 34 Ibidem. Ver também PASTELLS, Pe. Pablo. Historia de la Compañia de Jesús en la Província del

Paraguay. Madrid: Librería general del Victoriano Suárez, 1912, p. 142..

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A reconquista dos Campos

No início do século 19, os campos da Vacaria do sul de Mato Grosso (Figura

1), esquecidos desde o funesto aniquilamento das missões, agregavam enormes

rebanhos de gado. Os relatos conhecidos, tanto de espanhóis radicados em

Assunção, como os de luso-brasileiros de São Paulo, são unânimes em afirmar a

presença desses rebanhos na parte sulina de Mato Grosso. Este gado silvestre, criado

extensivamente, veio mais tarde transformar-se na fonte de atração àqueles que desejavam ocupar a região, a partir da pecuária.

Na planície pantaneira, por exemplo, havia extensos campos de pastagens

nativas providos de salinas naturais que, influenciados por marcantes períodos de

seca e de água abundante, determinou os modos de adaptação do homem pantaneiro à

região. Destaque-se, nessa fisiografia constratante dos pantanais, a abundância dos

barreiros em áreas que vão desde a barra do rio Jauru até os campos alagados do

Taquari e o Apa. Os barreiros são terrenos salgados, caracterizados como

eflorescência salino-salitrosa presentes da área baixa do vale do rio Paraguai muito

procurados pelo gado, por inúmeros animais silvestres, como antas, veados que escavam, lambem e refocilam a terra por causa do sal.

Os depósitos de sal encontram-se em toda a depressão paraguaiana,

sobretudo além dos limites nacionais, na região do Chaco35. Todavia, a eflorescência

das salinas participa da vasta paisagem dos pantanais e se dispõe de forma latente

nas lagoas ou baias de água salgada. Na região do rio Negro, nos baixios para onde

correm os cursos do rio Miranda, Negro e Taquari, os barreiros se multiplicam.

Próximo ao Porto da Manga, no rio Paraguai, Candido Mariano da Silva Rondon arrolou, no início do século 20, 170 lagoas, das quais 93 constituíam-se em salinas36.

A presença das baias salgadas promove a excelência dessa região,

transformando o Complexo do Pantanal numa referência mundial enquanto

expressão de beleza e de campo natural de pastagem. Nos espaços mais elevados da planície, os rebanhos alçados podiam ser perfeitamente recolhidos. Além disso, no

século 19 as terras ainda eram tidas como devolutas e os grupos nativos que as

ocupavam, menos resistentes do que no início da conquista. A região conhecida como Campos de Vacaria (mais ao sul do pantanal),

inserida no bioma cerrado, também foi propícia às atividades agropecuárias, embora

também sofresse interferências ambientais, sobretudo quanto ao regime das águas,

estiagens e geadas. A bióloga Roseli Senna Ganem37 explica que o bioma Cerrado é

o segundo maior do Brasil, depois da Amazônia. Originalmente, o Cerrado ocupava

dois milhões de km2, o que equivale a 24% do território nacional. Localizado no Planalto Central, apresenta interface com todos os principais biomas da América do

Sul (Amazônia, Mata Atlântica, Caatinga, Chaco e Pantanal), sendo um grande

corredor de biodiversidade38. Para Ganem o bioma constitui um mosaico de

fisionomias vegetais, que variam das formas campestres aos ecossistemas florestais,

35 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro... Op. cit., p. 97-98 36

Cf. Rondon, Cândido Mariano da Silva. - Relatório das Linhas Telegráficas de Mato Grosso. Rio de

Janeiro: Comissão Rondon, 1907. 37 GANEM, Roseli Senna [et al]. Ocupação humana e impactos ambientais no bioma cerrado: dos

bandeirantes à política de biocombustíveis. IV - Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-

Graduação em Ambiente e Sociedade ( ENANPPAS). Brasília, 4, 5 e 6 de junho de 2008. 38 Ibidem, p. 3.

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com alta riqueza de espécies e grande número de endemismos (ocorrência de uma

dada espécie em área restrita).

Diferentemente dos campos sulinos brasileiros, caracterizados por vastas

áreas de vegetação graminóide-herbácea, as vacarias de Mato Grosso não eram

contínuas. Distinguia-se por se constituir num tablado mesclado por vegetação

arbóreo-arbustivo, ora de cerrado, ora de matas de galerias.

Até as três primeiras décadas do século 19, os gentios bilreiros ainda eram senhores daquelas paragens, quando ocorreu sua ocupação pelos entrantes

mineiros39, atraídos pelas grandes extensões de vegetação rala, principalmente

campos, com pastagens naturais e pela forte presença de gado alçado. Famílias

inteiras de colonos, oriundas de Minas Gerais migraram, para ocupar parte dos

sertões devolutos das Vacarias mato-grossenses.

No período regencial (1831-1840), problemas políticos decorrentes do

processo emancipatório e de questões de ordem econômica, atinentes, sobretudo à

crise da economia escravista exportadora, resultaram na escassez de recursos e no

clima de insatisfação entre as Províncias e o Governo Central, constituídas por revoltas populares que se estenderam, igualmente, por todo o Império. Em Mato

Grosso esse movimento político ficou conhecido como Rusga, o qual foi deflagrada

na noite de 30 de maio de 1834, com duração de alguns meses, marcando o triunfo

do movimento liberal e federativo nativo local e a completa desarticulação das

forças tradicionais, representadas pelos comerciantes lusos portugueses.

A fenômeno da Rusga trouxe significativos desdobramentos para a Província.

Expressivo número de revoltosos rumou para o sul de Mato Grosso, foragidos da

justiça por crimes praticados contra portugueses em várias cidades da Província e

arredores de Cuiabá. Alguns se internaram pela região ao logo do rio Paraguai, povoando as margens dos rios Taboco e Nioaque, avançando para os vales dos rios

Miranda, Aquidauana e Negro, chegando até as proximidades do rio Apa (fronteira

com o Paraguai).

Portanto, diante das questões políticas, do declínio da mineração, do fracasso

das tentativas agrícolas e de problemas políticos internos do Império, acentuaram-se

as correntes de penetração constituídas por criadores de gado.

Na obra Etnobiologia e Conservação do Bovino Pantaneiro, organizada por

Maria Cristina Medeiros Mazza e outros, em 1994, consta que algumas frentes

migratórias oriundas do Triângulo Mineiro, do nordeste brasileiro e do interior de São Paulo, voltadas para a criação de gado, já realizavam, conforme referimos,

significativas incursões nos sertões de Mato Grosso. 40

A corrente proveniente do Nordeste entrava por Goiás para instalar-se na

região de Cuiabá e Vila Bela; a procedente de Minas Gerais e São Paulo; penetrava

pelo sul de Mato Grosso, atingindo, sobretudo, a região de Coxim. 41 Depois, os

criadores de Vila Bela e Cuiabá, seguindo o curso fluvial do São Lourenço e seus

afluentes, avançaram no Pantanal tentando alcançar o sul de Mato Grosso.

39 Sobre a migração mineira, especificamente sobre as fazendas de criar do nordeste paulista, consultar

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado & BRIOSCHI, Lucila Reis (orgs.). Na estrada do Anhanguera:

uma visão regional da história paulista. São Paulo: FFLCH/USP, 1999. Ver também LARA, Mario. Nos

confins do Sertão da Farinha Podre. Povoamento, conquistas e confrontos no Oeste de Minas. Belo

Horizonte: s.ed., 2009. (Fomentado pela Lei Rouanet) 40 MAZZA, Maria Cristina Medeiros [et al]. Op. Cit. p. 14,15. 41 CORRÊA FILHO, V. Fazendas de Gado no Pantanal mato-grossense- Documentário da vida rural n°

l0- Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura - Serviço de informação agrícola, l955.

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Famílias pioneiras

Interessa-nos particularmente analisar como o espaço pastoril, envolvendo a

região de Sant’Ana de Paranaíba e Rio Brilhante - Sertão dos Garcia e Campos de

Vacaria, respectivamente - convertida em objeto historiográfico, veio se tornar

importante marco do discurso patriarcal e da expansão territorial, a partir da vocação

pastoril, desempenhando significativo papel na legitimação dessa ideologia mantida ainda hoje na historiografia brasileira.

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Figura 2. Ocupação da Região de Sant’Ana de Paranaíba - Sertão dos Garcia, delineado em mapa com divisão político-administrativa contemporânea e editado por Omar Daniel/FCA/UFGD.

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De acordo com as reflexões de Peter Burke a tradição histórica tinha como

preocupação temas nacionais ou internacionais, cortando obliquamente as

proposições regionais. Isto significa dizer que a abordagem tradicional colocou à

margem da história muitos aspectos das atividades humanas, considerando que estas

devem ser entendidas na perspectiva da história total. 42

Segundo o historiador Ângelo Emílio da Silva Pessoa43, desde autores como Oliveira Vianna, Nestor Duarte, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio

Prado Jr., Costa Pinto até a produção historiográfica mais recente, a família, sob os

mais variados matizes, tem sido estudada a partir de diferentes abordagens e

tendências, ensejando reflexões e debates sobre questões decisivas na formação

histórica brasileira44. Distintos em suas análises e em suas finalidades, os referidos

autores45 não deixaram de destacar o papel fundamental da família na conformação

social e política do Brasil46.

Nesse sentido, a análise, envolvendo os Campos de Vacaria, implica em

discutir o papel das famílias no processo de ocupação, e também impõe a utilização de categorias teóricas para definir o instituto da família, família oligárquica, família

patriarcal, etc. Importante contribuição sobre o tema expressa-se na tese de

doutoramento As ruínas da tradição: a casa da torre de Garcia D'ávila. Família e

propriedade no nordeste coloquial, defendida em 2003, pelo historiador Angelo

Emílio da Silva Pessoa, já referido47. Em denso estudo sobre família e propriedade

no nordeste colonial e imperial, o autor discute a irradiação do discurso patriarcal

traduzido no culto aos pioneiros e as variadas estratégias utilizadas por grandes

proprietários e pecuaristas na aquisição, ampliação e manutenção de poder, como

formas distintas de obtenção de cargos, favores, ligações de casamento e tramitações de heranças48.

42 BURKE, Peter (Org), A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo:

UNESP, 1992. 43

PESSOA, Angelo Emílio da Silva Pessoa. As ruínas da tradição: a casa da torre de Garcia D'ávila.

Família e propriedade no nordeste coloquial.. 2003. (Tese de Doutorado em História Social,

FFLCH/USP). 44Ibidem, p. 12 45 Cf. VIANNA. Francisco José de Oliveira. Populações Meridionais do Brasil: História Organização –

Psycologia. 4 ed. São Paulo: Nacional.1938. DUARTE, Nestor. A Ordem Privada e a Organização

Política Nacional:Contribuição à Sociologia Política Brasileira. São Paulo: Nacional, 1939. FREYRE.

Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. 30. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. FREYRE. Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência

do Patriarcado Rural e desenvolvimento urbano. 2 ed 3 vols. Rio de Janeiro: José Olympio 1951.

HOLANDA. Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 17 ed. Rio de Janeiro: José Olympio. 1984

PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo.20.ed.São Paulo.Brasiliense. 1987. pg 286.

PINTO, Luiz de Aguiar da Costa. Lutas de Famílias no Brasil (Introdução ao seu estudo), 2ª. Edição. São

Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1980. 46 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. As Ruínas da Tradição .... Op.cit. p. 12. 47Ibidem. 48

Ibidem, p. 4.

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Os pioneiros das famílias Garcia Leal, Barbosa e Lopes atravessaram os campos da

região de Sant’Ana de Paranaíba e, depois Rio Brilhante, iniciando a história do

povoamento do sul do Estado. Parece extemporâneo propor estudos sobre essas

famílias, integrantes do patriciado rural do sul de Mato Grosso, em detrimento de

abordagens mais recentes que propõem explicar o processo histórico a partir da

visão que integre os segmentos trabalhadores socialmente subalternizados.

Um ponto levantado por Peter Burke refere-se à escrita tradicional a partir dos segmentos dominantes, ou seja, a partir da valorização das figuras ilustres como

generais, estadistas, etc. A crítica do historiador inglês vai para os historiadores que

desconsideram a história dos sujeitos comuns, desconsiderando que estes constroem

também a história – e diríamos, com destaque.

A partir das orientações da Nova História, é preciso considerar tanto a

história de vista de cima como também a vista de baixo, aproveitando a participação

dos diferentes atores sociais nesse processo.49 Entretanto, entendemos também que

não é anulando o segmento dominante do “horizonte historiográfico que estaremos

produzindo uma história da perspectiva dos vencidos [...]50 considerando que dominação e resistência são expressões inseparáveis de uma mesma equação. Daí a

necessidade de desenvolver estudos que apreendam a questão num sentido

diacrônico e, assim capturar os aspectos mais relevantes para a compreensão da

formação histórica do Brasil.

A corrente migratória originária de Minas Gerais, mais especificamente do

Triangulo Mineiro, e interior de São Paulo penetrou na Província através de

Sant’Ana de Paranaíba (sertão dos Garcia). Minas tornou-se uma das principais

regiões provedoras de bovino destinado ao melhoramento daquele gado

remanescente do passado missioneiro. A historiografia regional dá conta de que a região de Sant’Ana de Paranaíba,

via de penetração para os Campos de Vacaria, era primordialmente habitada por

ameríndios do grupo lingüístico Jê - os caiapós. Entre os anos de 1739-1755, o

espaço tornou-se bastante freqüentado pelas expedições paulistas, que tinham como

objetivo a captura de nativos para escravização. 51 Entretanto, apenas na década de

1830, ocorreu a chegada de ocupantes não nativos, oriundos de Minas Gerais, como

as famílias Garcia Leal, Rodrigues da Costa, Correia Neves, Barbosa e Lopes.

José Garcia e Januário Garcia Leal tornaram-se líderes dessa frente de

ocupação. Desse ponto, a corrente se expandiu em direção ao interior da parte sul da Província, abrangendo a conhecida com Campos de Vacaria (Figura 1) e, mais tarde

a região de Campo Grande, hoje capital de Mato Grosso do Sul, cuja toponímia

revela seu passado pastoril.

As terras integrantes do patrimônio das famílias ocupantes do sul de Mato

Grosso basearam-se no sistema sesmeiro que se estendeu pelos atuais municípios da

região. Imensas propriedades pastoris formaram-se sob domínio desses migrantes

oriundos de Minas Gerais. Arraiais, vilas e cidades desenvolveram-se a partir da

construção de inúmeros ranchos, erguidos rusticamente nas barrancas de rios

49 Cf. BURKE, Peter (Org), A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo:

UNESP, 1992. 50 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. As Ruínas da Tradição .... Op.cit. p. 242. 51 AYALA, S. Cardoso e SIMON, F. O Municipio de Sant’Anna de Paranayba. In:Albu m graphico do

Estado de Matto Grosso (EEUU do Brazil) Corumbá, Hamburgo: 1914, p. 419. CAMPESTRINI, H.

Sant’Ana de Paranaíba. De 1700 a 2002. 3ª. Edição. Campo Grande, MS: IHGMS, 1997, p. 36-41.

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inexplorados ou nas vizinhanças de vendas, tabernas ou pousos construídos em

curvas de estradas.

Desde o período colonial, o caráter do sistema de sesmarias, ligando terra e

posse de cabedais gerava canais exclusivos, diretos e indiretos, de acesso a terra por

grandes produtores. 52 Além disso, o instituto sesmarial por muito tempo garantiu

poderes políticos aos sesmeiros-latifundiários, responsáveis por processos de

sujeição e dependência de segmentos subalternizados fossem eles escravizados ou livres (lavradores, posseiros, pequenos proprietários e demais moradores). O

processo de subalternização desdobrava-se na relação clientelista e traduzia-se na

troca de apoio e nos laços de submissão pessoal, geradores da violência privada de

grandes proprietários. A violência, portanto, era parte articulada das relações sociais

contidas na organização agrária colonial. 53 Em âmbito nacional, sobretudo no Nordeste, os diversos relatos oficiais

destacam o papel de algumas famílias que se aventuraram pelos sertões, garantiram

o domínio das terras a partir da expansão dos currais54 à custa de estratégias políticas

de aquisição, manutenção e ampliação do patrimônio, recorrendo, não raro, a procedimentos fraudulentos. 55 Algumas fontes referentes às questões de terras56

destacam principalmente a importância das famílias pioneiras na conquista e a

incorporação de vastas extensões de terra ao corpo da nação brasileira. Mas a

dificuldade de calcular o tamanho dos latifúndios, dada a imprecisão e a falta de

clareza da fiscalização deu origem a inúmeras demandas judiciais que alcançam os

dias atuais57.

Família e Igreja

Em 1836, erigiu-se a primeira igreja, graças à iniciativa da família Garcia e

do padre Francisco Sales de Souza Fleury. Este último, investido no cargo de capelão, era encarregado da assistência espiritual aos ocupantes dos sertões

devolutos de Sant’Ana de Paranaíba, como assinalado, porta de entrada para os

Campos de Vacaria.

Observe-se que a região do antigo sul mato-grossense era uma fronteira

flutuante58, disputada por redes internas e externas de povoamento. Na região em

questão, uma vez realizada a ocupação, foram implantadas as estruturas políticas e

eclesiásticas, movidas por funcionários, proprietários, padres que agiam com chefes

políticos, os quais disputavam poder com fazendeiros ou se inseriam no seio desse

segmento, concorrendo ao mando local. Este parece ter sido o caso de Francisco de Sales Souza Fleury, oriundo da cidade de Franca, interior de São Paulo. Segundo

documentos reunidos no livro Como se de ventre livre nascido fosse, publicado em

52 Sobre o sistema sesmarial consultar LIMA. Ruy Cirne. Pequena História Territorial do Brasil:

sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura. 199() (Edição Fac-similar). 53 Sobre a dimensão da violência privada, o código do sertão, formas de dominação, hábitos costumeiros e da miséria conferir, entre outros, FRANCO. Mª Silvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem

Escravocrata. São Paulo: Ática, 1974, p.26-27. 54 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. As Ruínas da Tradição .... Op.cit. p. 34 55SANTOS F. Lycurgo. Uma Comunidade Rural no Brasil Antigo (aspectos da Vida Patriarcal no Sertão

da Bahia nos Séculos XVIII e XIX) São Paulo: Nacional. 1956. pg. 55. 56 CORREA FILHO, Virgílio Questões de terras. Secção de Obras d’O Estado de São Paulo, 1923, p.3. 57 Sobre o tema consultar PORTO. José da Costa. O Sistema Sesmarial no Brasil. 2 ed. Brasilia. Ed. da

UnB, 1979. 58 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro... Op. cit.p. 110-215.

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1994 pela Fundação de Cultura 59, o referido pároco exercia poder senhorial que

envolvia terras, cativos, agregados e homens livres de poucas posses.

Por mais de trinta anos, Fleury desempenhou papel social de suma

importância para o segmento proprietário, sobretudo, considerando que ele era o

responsável pela realização de casamentos, batizados, rezas e missas, cerimônias

religiosas que ensejavam relações inter-senhoriais, manifestações de poder e

autoridade sobre os segmentos subalternizados. A força política do padre Fleury tornou-se mais visível com o processo de

superação do escravismo. Entretanto, para explicar o aumento do potencial político

de Fleury, é preciso discutir o contexto histórico brasileiro a partir da segunda

metade do século 19.

A extinção do tráfico (1850) e os desdobramentos dele decorrente levaram a

classe dirigente do Império a conceder novos poderes ao governo para solucionar a

questão do elemento servil. Sob a batuta dos grandes proprietários, foram assim

criadas as leis emancipadoras, prevendo a extinção da escravatura de forma lenta,

gradual e indenizada. A extinção legal do tráfico internacional de africanos também alterou o

monopólio de poder no que tangia a política de terras. O governo imperial acionou

os dispositivos da Lei de Terras, os quais foram criados, em 1850, com o objetivo de

preservar o monopólio de poder (a terra), sob controle da classe hegemônica (os

latifundários escravistas). Sob a direção política dessa classe, utilizando-se de um

mecanismo jurídico, surgiram determinadas dificuldades ao trabalhador livre de

acesso à terra, enquanto se facilitava a apropriação da mesma pelos grandes

proprietários, através do instituto do reconhecimento das posses.

À medida que o grupo dirigente via seus monopólios ameaçados - terra e trabalhado escravizado - passou a propor medidas para assegurar tais monopólios.

Ou seja, já que a escravidão ficou tendencialmente condenada com a extinção do

tráfico internacional, o grupo tratou de deslocar o peso da dominação do cativo para

a posse da terra60. No período colonial, o sistema tradicional de aquisição de terra

era assegurado por dois instrumentos da Coroa Portuguesa: Carta de Doação e pelo

Foral. Ligada aos princípios das capitanias hereditárias, a propriedade territorial

originou-se nas concessões de sesmarias ou através de simples posses como o

objetivo de promover a ocupação, o desenvolvimento e o povoamento territorial.

Efetivamente, com a aprovação da Lei Imperial de Eusébio de Queirós

(1850), extinguindo o tráfico internacional de trabalhadores africanos, criou-se a

necessidade da reorganização do trabalho. A transição do trabalho escravizado para

o trabalho livre, somada à redefinição de um novo estatuto que passou a orientar a

estrutura fundiária, decorreu das novas estruturas econômicas e sociais organizadas a

partir do século 19: "A expansão dos mercados e o desenvolvimento do Capitalismo

motivaram uma reavaliação das políticas tradicionais da terra e do trabalho"61.

Assim, até 1822, o sistema tradicional de aquisição de terra permitia o fácil acesso a

59 Cf. PENTEADO, Yara [org.] “Como se de ventre livre nascido fosse....”: cartas de liberdade,

revogações, hipotecas e escrituras de compra e venda de escravos. 1838-1888. Campo Grande, MS: SEJT,

MS; SEEEB, MS; Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, DF, 1993. [Arquivo Público

Estadual, MS. 60 BRAZIL,

61 COSTA, Emília Viotti da. Políticas de terras no Brasil e nos Estados Unidos. In. Da monarquia à

República: momentos decisivos, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 244-247.

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terra através de doações de sesmarias e, de 1822 a 1850, através do sistema de

“posse livre”.

Com a extinção do tráfico internacional, proibiu-se, pela Lei de n. 601,

18.09.1850 [Lei de Terras], que as terras públicas ficaram entregues sem ônus.

"Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas, por outro título que não sejam o

da compra". Porém, como assinalado, o caminho à apropriação da terra, sem

pagamento, aos grandes proprietários, seguia viabilizado pela possibilidade de

reconhecimento das posses. Tratava-se nos fatos de proibir ou dificultar a posse da

terra pelo homem livre, nacional ou emigrado, para obrigá-lo a vender sua força de

trabalho, em mercado de trabalho livre62. Tanto a Lei de terras como a Lei da

extinção do tráfico funcionaram como verdadeiros dispositivos, utilizados em

momentos de crise, pela classe proprietária para assegurar o monopólio de poder sob

seu controle no momento em que o Brasil foi sendo integrado no mercado mundial.

Daí a aplicação dessa lei, sobretudo com a supressão do escravismo63.

A primeira lei emancipacionista (Lei Rio Branco - n. 2.040 de 28.09.1871)

criava um fundo emancipador para compra de alforrias seletivas. Para cumprir os

dispositivos da Lei, o então presidente da Província de Mato Grosso, dr. Francisco

José Cardoso Júnior, libertou 62 escravos em 25 de março de 1872, como juramento

à Carta Constitucional. Durante 1872-1873, os escravizadores deviam registrar seus

cativos (Matrícula Especial), nas coletorias dos municípios, pois cabia ao Presidente

da Província a distribuição dos recursos do Fundo de emancipação. A lei priorizava

as famílias escravizadas, depois os indivíduos por ordem de preferência. Em um livro aberto para Matrícula Especial, os escravizadores tinham de

indicar o nome e uma série de outras informações para cada escravizado que

possuíam. Registravam-nos nas mesmas coletorias, e também de forma nominativa,

informavam as mudanças demográficas e sociais de escravizados adultos e menores.

As coletorias eram compostas pelo Promotor Público, pelo Coletor e pelo presidente da Câmara. Por outro lado, os párocos deviam fornecer informações sobre os

nascimentos e óbitos de cativos64.

Portanto, as leis e medidas imperiais não podem ser vistas como planos de

liquidação da escravidão. Mas sim como estratégias consensuais visando atenuar às

pressões externas e internas e, ao mesmo tempo, manter a escravidão até seu último

fôlego. Essas medidas foram variadas: tráfico interprovincial; as alforrias seletivas

pelo fundo de emancipação; as manumissões concedidas para assinalar batizados,

casamentos etc.; facilidades de alforrias a partir do pecúlio escravo; deslocamento

dos escravos urbanos para a empresa agrícola, etc. Nessa nova empreitada, em âmbito regional, mais particularmente na região

Sant’Anna de Paranaíba, ganhou realce uma figura emblemática daquele tempo: o

padre Francisco Sales de Souza Fleury. Para garantir o monopólio de terras e de mão

de obra no momento de superação do escravismo colonial, Fleury mediou inúmeros

processos de manumissões incluídos em heranças de famílias escravizadoras

regionais, como a de José Garcia Leal e a de dona Maria Garcia Tosta.

62 BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira Negra. Dominação, violência e resistência escrava em Mato

Grosso -1718-1888. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo (Editora da UPF), 2002, p.

153-158. (Coleção Malungo). 63 COSTA, Emília Viotti da. Políticas... Op. Cit. 64 Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-188. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.

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Esse papel de intermediador de alforrias concedidas para assinalar batizados

e casamentos levou alguns analistas a vê-lo equivocadamente como militante

abolicionista, conforme afirmações a seguir: “O sul de Mato Grosso foi pioneiro na

luta abolicionista. Sem discursos, sem alarde, os líderes daqui foram conseguindo a

alforria dos escravos. Em Santana do Paranaíba, o Padre Francisco de Sales Sousa

Fleury conseguiu a liberdade de inúmeros deles, iniciando com o exemplo de casa,

alforriando os seus. Acrescente-se que padre Fleury teve de sua escrava [Joaquina], quatro filhos”65.

O discurso de Hildelbrando Campestrini revela que além de agenciador do

segmento dominante o padre soube muito bem defender seus próprios interesses.

Quando viu seus monopólios ameaçados lançou mão de mecanismos capazes de

prolongar ao máximo seus poderes, conforme evidenciam os documentos contidos

no Livro de notas do Cartório de Santana do Paranaíba, de 1865. Consta em um

desses documentos que o padre Francisco de Sales Souza Fleury alforriou Angelo,

de 20 anos, Belmiro, de 25 anos, e Romana de 18 anos, todos os filhos dele próprio

com a liberta Joaquina. Porém, eram alforrias condicionadas, pois os escravizados teriam que continuar servindo-o até “perfazer cada um a idade de trinta anos, findo

os quais entrarão no gozo pleno de sua liberdade, como se nascessem de ventre livre.

[...] rogando-lhes, todavia não desampararem a sua mãe, e aos seus irmãos até que se

case ou fique emancipada a última irmã.66”

A rota dos pioneiros

Na década de 1830 entraram pela costa leste de Mato Grosso os

colonizadores interessados em suas potencialidades pastoris. Tratavam-se das

famílias Garcia Leal, Rodrigues da Costa, Correia Neves, Barbosa e Lopes. Na companhia de parentes, agregados e trabalhadores escravizados, estabeleceram-se a

três léguas de Sant’Anna Paranaíba, próximo do ribeirão Ariranha, com objetivo de

desenvolver plantagem, engenho e, sobretudo, cultura pastoril. Genros e filhos de

Januário Garcia Leal Sobrinho permaneceram por muito tempo nesse lugar antes de

partirem para a região que deu origem a cidade de Três Lagoas. Luís Correa Neves

fincou raízes ao sul da vila de Sant’Anna, em águas do rio Quitéria.

Indispensável nessa verdadeira rede de dominação era a montagem da

estrutura administrativa, como igreja, para estabelecimento da autoridade

eclesiástica, e repartições capazes de abrigar tabelionatos, os ofícios de notas, registros públicos, escrituras e outros documentos. Em 1836, foi erigida a paróquia

Sant´Ana do Paranaíba, pela junção de esforços da família Garcia e do padre

Francisco Sales de Souza Fleury, já referidos. Dois anos depois foi instalado o

distrito administrativo subordinado à comarca de Mato Grosso, sediado em Cuiabá.

Antonio Gonçalves Barbosa, por sua vez, saiu de Sant’Anna de Paranaíba e

penetrou no espaço sulino mato-grossense, atraído pelas narrativas sobre a

preciosidade dos Campos de Vacaria, os quais se constituíam de terrenos planos e

úberes, águas excelentes e muito gado alçado. Defendido por nativos, e cobiçado por

colonizadores castelhanos e luso-brasileiros, esse espaço caracteriza-se por dispor

65 CAMPESTRINI, Hildebrando. Os escravos no sul de Mato Grosso. Instituto Histórico e Geográfico de

Mato Grosso do Sul. Disponível no site http://www.ihgms.com.br , desde 19/ 12/2007. 66 Livro de nota 03, documento n. 2, p. 119-120. Cartório do 1º. Ofício de Sant’Anna de Paranaíba, 1865.

Page 19: BRAZIL, M. C. . Sobre os campos de vacaria do sul de Mato ... · 1 de 21 BRAZIL, M. C. . Sobre os campos de vacaria do sul de Mato Grosso.Considerações sobre ... 2 Cf. GÂNDAVO,

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dominantemente da vegetação do cerrado, o segundo maior bioma brasileiro, ainda

hoje muito utilizado para a criação do gado.

Nos relatos monçoeiros, reunidos na obra História das bandeiras paulistas

(1951) de Afonso d’ Escragnolle Taunay, constam a presença de gado selvagem,

constituído em manadas deixadas pelos jesuítas das missões. 67 Segundo o itinerário

traçado pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, os Barbozas teriam capturado

cerca duzentas cabeças de gado vacum bravio para começarem o criatório68. Essa família geralista de Minas chegou à região trazendo algumas cabeças para mesclar

com o gado selvático da região, conforme também mencionamos. 69 Convencidos de

que o sul de Mato Grosso dispunha de bons pastos e de que era um lugar promissor,

os Barbosa rumaram para o interior da região levando cativos e provisões

necessárias. Dos latifúndios formados as famílias pioneiras lograram prestígio,

riqueza e poder. Instalaram fazendas, estenderam mais e mais suas posses,

alcançando novas terras, transpondo rios. E toda a parte sul do antigo Mato Grosso

foi sendo ocupada por colonizadores interessados na aquisição de terras e no

potencial bovino. O Itinerário das viagens de Lopez publicada na Revista do Instituto Histórico

e Geográfico Brasileiro em 1848 acompanhava Antonio Gonçalves Barbosa seu

genro Gabriel Francisco Lopes que, em 1839, se fixou num local a que denominou

de Fazenda Boa Vista, entre os rios Vacaria e Brilhante, sendo um dos primeiros

ocupantes, depois da retirada das missões castelhanas, em 164870.

Logo chegaram ao sertão dos Lopes, grande leva de sul-rio-grandense, com

suas famílias, e dispondo de seus pequenos rebanhos de bovinos, eqüinos e ovinos,

vieram também se instalar na região. Os descendentes dos Lopes buscaram as

margens dos rios Brilhante, Vacaria e Dourados71. Mas ainda havia muita terra devoluta para atender a avidez dos especuladores.

Legitimando o latifúndio.

Um exemplo de procedimentos ilícitos de usurpação de terras, refere-se a

João da Silva Machado, barão de Antonina, vulto proeminente da região do Paraná,

que na segunda metade do século 19 procurou garantir a posse do território que

abrangia a região de Sant’Ana de Paranaíba, Rio Brilhante, Miranda, Nioaque,

Aquidauana, Ponta Porã, Porto Murtinho e Bela Vista. Somadas a essas terras, o

barão buscou a legitimação de extensas áreas do norte do Paraná. Em 1848, João da Silva Machado já era dono de vasto patrimônio fundiário, propriedades em São

Paulo e estados circunvizinhos. Às vésperas da promulgação da Lei de 1850, o barão

imediatamente procurou apropriar-se de forma privada do amplo território que hoje

se constituem em eminentes municípios de Mato Grosso do Sul.

67TAUNAY, Afonso d’ Escragnolle. História das bandeiras paulistas. São Paulo: Melhoramentos/INL/MEC, 1975. T. III, p. 139. (Relatos Monçoeiros). 68

Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de Antonina para descobrir uma via de

comunicação entre o porto da vila de Antonina e o baixo Paraguai na Província de Mato Grosso; feitas

nos anos de 1844 e 187 pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo Mapista inglês João

Henrique Elliot.. O Documento foi doado ao IHGB pelo Barão de Antonina e em seguida foi feita a

transcrição do manuscrito inédito para efeito de publicação. Cf. Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1848, vol. 10, p. 153-262. 69 GOULART, Alípio. Op. Cit., p. 61. 70 Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão....Op. cit, p. 260. 71 Ibidem.

Page 20: BRAZIL, M. C. . Sobre os campos de vacaria do sul de Mato ... · 1 de 21 BRAZIL, M. C. . Sobre os campos de vacaria do sul de Mato Grosso.Considerações sobre ... 2 Cf. GÂNDAVO,

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Hildebrando Campestrini e Acyr Vaz Guimarães lembram: “Sabia o barão de

Antonina que seria promulgada uma lei [Lei de terras de 1850] facultando a todos os

posseiros o direito de requerer, como propriedade, a terra de domínio público, sob

ocupação, qualquer que fosse sua extensão; ambicionando terras do sul de Mato

Grosso, contratou os serviços do sertanista Joaquim Francisco Lopes, que além de

conhecedor da região, tinha nelas os irmãos Gabriel e José Francisco, de quem

saberia, naturalmente, tudo o que viesse a servir aos interesses do barão.” 72 (Figura 1).

Foi assim que o Barão de Antonina contratou os serviços do Joaquim

Francisco Lopes, experiente conhecedor daquelas paragens, e do mapista inglês João

Henrique Elliot. Além disso, o referido sertanista encarregado contava também com

a ajuda de seus irmãos Gabriel e José Francisco Lopes, alguns dos primeiros

ocupantes do vale dos rios Vacaria e Brilhante. A intenção do barão era, com verbas

públicas, abrir uma via de comunicação fluvial do Paraná até o baixo Paraguai,

beneficiando as terras que pretendia legitimar como patrimônio privado. Consta,

segundo a crônica de Hildebrando Campestrini que, “em 1847 Lopes e comitiva entraram pelo rio Ivinhema e chegaram a Albuquerque, anotando o percurso, com

detalhes riquíssimos, principalmente os referentes aos primeiros povoadores e aos

índios”73.

Cabe lembrar que a Lei de 1850 propunha, entre outras medidas, que o

Estado passasse a exercer rigoroso controle sobre o espaço agrário. Impunha

também as condições para converter sesmarias em documento negociável, na forma

de propriedade privada, quanto à recognição e à titulação efetiva das posses, obtidas

anteriores à promulgação da referida Lei. Mas, conforme observou o cientista social

Luiz A.C Norder, o tênue limite entre o público e o privado, entre a legislação e os jogos políticos, permitiu a continuidade e a ampliação do processo de concentração

fundiária. 74 Emergia, nesse contexto, o grileiro, figura indispensável no processo de

expansão da ocupação de terras. Graças à habilidade em legalizar terras junto ao

poder estatal, o grileiro dispunha de dois dispositivos essenciais: a falsificação de

títulos de sesmarias ou a montagem dos processos de regularização de posses

supostamente anteriores a 1850. 75

O processo dos Embargos de Mato Grosso, publicado em 1924 pelo

advogado Astolpho Rezende, na obra O Estado de Mato Grosso e a supostas terras

do Barão de Antonina, comprova a falsificação de posse do barão e acusa seu agente Joaquim Francisco Lopes de “arranjar algumas escrituras de terras em Mato Grosso,

para fim de converter-se em grande proprietário de latifúndios naquela província [...]

de posse dessas escrituras que eram na sua quase totalidade escritura de mão, o

72 CAMPESTRINI, Hildebrando e GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 1991, p.41. 73 CAMPESTRINI, Hildebrando . As derrotas do Sertanejo. Instituto Histórico e Geográfico de Mato

Grosso do Sul. Disponível no site http://www.ihgms.com.br , desde 19/ 12/2007. 74 NORDER, Luiz A.C., Políticas de Assentamento e Localidade: os desafios da reconstituição do

trabalho rural no Brasil. Tese de Doutorado. Departamento de Sociologia Rural: Universidade de

Wageningen, 2004, p.6; Sobre as raízes do sistema público nacional arraigado no patriarcalismo e nas

relações indistintas entre o público e o privado consultar FRANCO. Mª Silvia de Carvalho. Homens

Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Ática, 1974. 75 NORDER, Luiz A.C., Políticas de Assentamento...Op. cit., p.6.

Page 21: BRAZIL, M. C. . Sobre os campos de vacaria do sul de Mato ... · 1 de 21 BRAZIL, M. C. . Sobre os campos de vacaria do sul de Mato Grosso.Considerações sobre ... 2 Cf. GÂNDAVO,

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referido barão fez delas um simulacro de registro, perante o vigário da freguesia de

Miranda”. 76

Fatores como imprecisão referente ao tamanho das propriedades, carência de

demarcação e suspeitas quanto à fiscalização determinaram demandas judiciais que

se prolongaram por longos anos, algumas alcançando as primeiras décadas do século

2077.

Na porção sul de Mato Grosso, a apropriação territorial, na forma de propriedade privada, realizada pelo barão de Antonina foi judicialmente contestada

pelo Estado, considerando sua notável dimensão, cuja extensão alcançava milhares

de hectares contíguos. Entretanto inúmeros latifundiários lograram alcançar a

regulamentação das sesmarias doadas, sobretudo durante o Império e mesmo terras

obtidas por meios fraudulentos foram legitimadas e convertidas em títulos de

propriedade privada. 78

A formação das classes dominantes locais e regionais foi marcada pela

instauração de eficazes procedimentos de apropriação privada da terra no Brasil e

fez ampliar a exclusão social79. As reações das forças sociais submetidas ao poder latifundiário-escravista ensejaram a montagem de um aparato político repressivo e

autoritário como fatores inerentes aos diferentes momentos da história brasileira,

justificando análises mais detidas sobre o tema na região80.

76 REZENDE, Astolpho. O Estado de Mato Grosso e as supostas terras do Barão de Antonina. Rio de

Janeiro: Papelaria Sta Helena – S. Monteiro & Cia Ltda, 1924, p. 35. Sobre Política de terras e de mão de

obra ver: BRAZIL, Maria do Carmo e SABOYA, Vilma Eliza T. de. Política de terras e a política de

mão-de-obra no Brasil e seus reflexos na Província de Mato Grosso. Campo Grande: PROPP/UFMS, 1994. (Pesquisa financiada pela UFMS). Ver também SABOYA, Vilma. A Lei de Terras (1850) e a

política Imperial – seus reflexos na Província de Mato Grosso. Revista Brasileira de História. São Paulo,

1995, v.15, n.30, p. 130-132. (Dossiê Historiografia – Propostas e Práticas). 77 Cf. PORTO. José da Costa. O Sistema Sesmarial no Brasil. 2 ed. Brasilia. Ed. da UnB, 1979. 78 NORDER, Luiz A.C., Políticas de Assentamento...Op. cit., p. 7. 79

Ibidem.

80 Ibidem.