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Brasília Carlos Ferreira Organizadora

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Brasília Carlos FerreiraOrganizadora

A presença constante nos sessenta anos de existência das universidades, a

versão física do livro consagra uma tradição que ultrapassa meio século no

caso da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Inicialmente,

esses livros, compondo acervos trazidos pelas faculdades que constituíram a recém-criada

Universidade do Rio Grande do Norte, tornaram-se a semente da Biblioteca

Central Zila Mamede – BCZM e das publicações surgidas desde os primeiros

passos da Imprensa Universitária, depois Editora Universitária.

Hoje, contando com as grandes vantagens oferecidas pela tecnologia, outra fronteira editorial se apresenta

com uma significativa produção de e-books lançados pela Editora da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – EDUFRN e acessíveis por meio do Repositório Institucional da UFRN. Dessa

forma, ampliou-se sistematicamente o uso do livro em nossa universidade.

Em reforço dessa ampliação, tornou-se importante a atuação da Secretaria

de Educação a Distância – SEDIS. Uma e outra modalidade editorial

apresentam-se em rica produção no contexto das comemorações dos

sessenta anos, representada por um conjunto de obras impressas que atinge

o número de 18 livros, além do expressivo catálogo de e-books

lançado pela EDUFRN, com ênfase para a publicação acadêmico-científica com acessibilidade.

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A presença constante nos sessenta anos de existência das universidades, a versão física do livro consagra uma tradição que ultrapassa meio século no caso da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Inicialmente, esses livros, compondo acervos trazidos pelas faculdades que constituíram a recém-criada Universidade do Rio Grande do Norte, tornaram-se a semente da Biblioteca Central Zila Mamede – BCZM e das publicações surgidas desde os primeiros passos da Imprensa Universi-tária, depois Editora Universitária.

Hoje, contando com as grandes vantagens oferecidas pela tecnologia, outra fronteira editorial se apresenta com uma significativa produção de e-books lançados pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – EDUFRN e acessíveis por meio do Repositório Institucional da UFRN. Dessa forma, ampliou-se sistematicamente o uso do livro em nossa universidade. Em reforço dessa ampliação, tornou-se importante a atuação da Secretaria de Educação a Distância – SEDIS. Uma e outra modalidade editorial apresentam-se em rica produção no contexto das comemorações dos sessenta anos, representada por um conjunto de obras impressas que atinge o número de 18 livros, além do expressivo catálogo de e-books lançado pela EDUFRN, com ênfase para a publicação acadêmico-científica com acessibilidade.

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ReitoraÂngela Maria Paiva Cruz

Vice-ReitorJosé Daniel Diniz Melo

Diretoria Administrativa da EDUFRNLuis Álvaro Sgadari Passeggi (Diretor)Wilson Fernandes de Araújo Filho (Diretor Adjunto)Judithe da Costa Leite Albuquerque (Secretária)

Conselho EditorialLuis Álvaro Sgadari Passeggi (Presidente)Alexandre Reche e SilvaAmanda Duarte GondimAna Karla Pessoa Peixoto BezerraAnna Cecília Queiroz de MedeirosAnna Emanuella Nelson dos Santos Cavalcanti da RochaArrailton Araujo de SouzaCarolina TodescoChristianne Medeiros CavalcanteDaniel Nelson MacielEduardo Jose Sande e Oliveira dos Santos SouzaEuzébia Maria de Pontes Targino MunizFrancisco Dutra de Macedo FilhoFrancisco Welson Lima da SilvaFrancisco Wildson ConfessorGilberto CorsoGlória Regina de Góis MonteiroHeather Dea JenningsJacqueline de Araujo CunhaJorge Tarcísio da Rocha FalcãoJuciano de Sousa LacerdaJulliane Tamara Araújo de MeloKamyla Alvares Pinto

Luciene da Silva SantosMárcia Maria de Cruz CastroMárcio Zikan CardosoMarcos Aurélio FelipeMaria de Jesus GoncalvesMaria Jalila Vieira de Figueiredo LeiteMarta Maria de AraújoMauricio Roberto Campelo de MacedoPaulo Ricardo Porfírio do NascimentoPaulo Roberto Medeiros de AzevedoRegina Simon da SilvaRichardson Naves LeãoRoberval Edson Pinheiro de LimaSamuel Anderson de Oliveira LimaSebastião Faustino Pereira FilhoSérgio Ricardo Fernandes de AraújoSibele Berenice Castella PergherTarciso André Ferreira VelhoTeodora de Araújo AlvesTercia Maria Souza de Moura MarquesTiago Rocha PintoVeridiano Maia dos SantosWilson Fernandes de Araújo Filho

Secretária de Educação a Distância Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo

Secretária Adjunta de Educação a DistânciaIone Rodrigues Diniz Morais

Coordenadora de Produção de Materiais DidáticosMaria Carmem Freire Diógenes Rêgo

Coordenadora de RevisãoMaria da Penha Casado Alves

Coordenador EditorialJosé Correia Torres Neto

Gestão do Fluxo de RevisãoRosilene Paiva

Digitalização de OriginaisRenata Ingrid de Souza PaivaCapaCamilla Serejo

DiagramaçãoCamilla Serejo

Finalização para digitalClara Wanderley

Revisão Linguístico-textualValnecy Oliveira Corrêa Santos

Revisão TipográficaRenata Ingrid de Souza Paiva

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O PAPEL DO LIVRO EM SESSENTA ANOS DE UNIVERSIDADE FEDERAL

DO RIO GRANDE DO NORTE

Ângela Paiva Cruz – Reitora da UFRN

Embora pareça uma tautologia enfatizar-se a importância do livro tradicional, impresso em papel, no cotidiano de uma insti-tuição universitária, nunca é demais chamar a atenção para sua importância em um tempo em que, por razões óbvias, verifica--se uma forte tendência a privilegiar o livro eletrônico.

Ninguém ousará negar a importância de contar com um suporte informacional que corresponda à velocidade presen-te no dia a dia das sociedades nas quais o uso da tecnologia tornou-se imprescindível. Contudo, a existência do livro físico – em alguns casos assemelhando-se a descobertas preciosas em minas ainda não tocadas pela internet – é igualmente inegável e justifica o evento editorial dos sessenta anos.

Notável é o caso de obras diretamente relacionadas com o evento, como, por exemplo, o livro iconográfico 60 anos, 60 olhares ou a reedição do memorável discurso do historiador Luís da Câmara Cascudo, que marcou a instalação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, à época ainda estadual. Não menos importantes, as reedições da História do Rio Grande do Norte, de Rocha Pombo – para a qual projeta o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte uma edição

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eletrônica – e o conjunto de livros que trata de seca e açudagem e estudos econômicos do estado, clássicos que não envelhecem, ambos, já tendo merecido edições da Coleção Mossoroense e da Fundação José Augusto, chegam à academia em novas edições.

O atual lançamento coloca-se à altura do ocorrido na década anterior – justamente quando se completaram os cinquenta anos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – oferecendo ao leitor da academia, e também à socieda-de norte-rio-grandense, interessados na valorização da cultura potiguar, um acervo bibliográfico que ficará como marco nas comemorações do sexagenário da UFRN.

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“O passado traz consigo um índice misterioso que o impele à redenção”. (Walter Benjamim, li Tese).

Lauro Reginaldo da Rocha, Bangu. Quantos de nós que

estudamos a história dos trabalhadores em nosso país ou que militamos nos movimentos ligados a tais personagens, pode-remos dar significado, materialidade a esse nome? Ou, dito de outra forma, quantos de nós conhecemos o mossoroense, o operário, o sindicalista, o militante político, o secretário geral do PCB aos 24 anos, o hóspede involuntário de tantas prisões, onde viveu a experiência da violência repressiva até o limite da tortura, o homem? Não muitos, infelizmente.

Ele existiu e dedicou toda a sua vida a uma militân-cia que, rompendo barreiras geográficas, esteve no interior de episódios marcantes, qualificando-o como personagem e expectador privilegiado, de um período fundamental de nossa história política: os anos 30. Seja como militante operário, envolvido na organização de seus iguais, seja como militante partidário, empenhado na formação de uma identidade políti-ca coletiva, numa trajetória que caminhou sempre na direção da construção de uma precoce cidadania, nesse, ainda hoje, imenso país de não-cidadãos.

Essa vida e esse anonimato são aqui resgatados, através de sua memória. Paradoxalmente, esse olhar que se estende em direção ao passado nos remete de volta ao presente, trazendo

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consigo a urgência de algumas reflexões, porque apresen-tar essas memórias é também tocar diretamente a questão essencial do mundo moderno: a relação entre o indivíduo e a história. Ou, posto de outra maneira, a contradição entre o homem objeto e o homem sujeito, aqui resgatado pela lembran-ça. O percurso que fazemos entre o indivíduo e sua obra, embora nos delineie um cenário fragmentado por ações incompletas e intenções irrealizadas, também nos resgata a esperança, ao mostrar que o homem pode ser sujeito. É um homem sujeito, que estamos dando a conhecer.

Tentemos delinear em traços largos sua trajetória e, ao final, teremos um personagem completo: daqueles que, para além de uma ação significativa, existe como pessoa de uma forma ainda mais forte e marcante.

Sua história começa em Mossoró, oeste do Rio Grande do Norte, nos anos 1920, cumprindo o que se espera de um ser nordestino: filho de uma família numerosa, pobre, que sofre a primeira perda afetiva logo cedo, seu pai, a doença cerceando a vida; estudando com dificuldades; trabalhando desde logo nas tarefas compatíveis com sua idade e desempenhando formas diversas da luta pela sobrevivência: pintor de paredes, agricul-tor, professor, tipógrafo.

Acompanhar sua história, relatada por ele mesmo nestas memórias, foi uma forma de materialização de relatos descontínuos apreendidos aqui e ali, no decorrer de uma pesquisa sobre os trabalhadores em salinas de Mossoró, nos anos de 1930. Das entrevistas, dos depoimentos e dos relatos emergia, com insistência, a grafia e o som de uma palavra já então transfor-mada em um qualificativo que se referia a muitas e diversas lutas: os Reginaldos. Àquela época, chamava-me a atenção o tom de intimidade com que as lembranças resgatavam esses

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sobrenomes. Os prenomes eram muitos: Antônio Raimundo, Glicério, Reginaldo, Lauro, Amélia, Jonas... Eram tantos que pareciam estar sempre em todos os lugares, em todos os fóruns, em todas as arenas onde, mais que os trabalhadores, os pobres de todas as categorias e de todas as origens, reafirmavam e manifes-tavam, de alguma forma, sua condição humana. Fomos ficando íntimos. Ao final do trabalho, eu já poderia relatar suas vidas como se fossem pessoas próximas, familiares. Essa intimidade com a família, cujos rostos desconhecia, longe de me satisfazer, mais e mais aguçava a minha curiosidade e o meu interesse.

A pesquisa foi concluída e a lacuna permaneceu: apesar do cerco montado, quando já estava bem próxima a oportuni-dade de conhecer um dos membros da família, Lauro, o único sobrevivente dos irmãos Reginaldos e o que, pelos relatos de que dispunha, tivera a trajetória mais expressiva – questões de ordem privada me afastaram do alvo ansiosamente perse-guido. Somente quase 10 anos depois, conseguiria encontrá-lo. Chamava-me a atenção que uma figura que tivera uma vida pública, Secretário Geral do PCB por duas vezes, em período singular da atuação daquele partido, além de uma intensa expe-riência organizativa junto aos trabalhadores, fosse tão desco-nhecido, tão ausente dos círculos dos iniciados na militância e na história, tão desapercebido em sua existência.

Ao conhecê-lo enfim, ao final dos anos de 1980, pude rapi-damente entender o motivo de sua ausência. A minha fantasia construíra a imagem de um homem alto, de fala forte e incisi-va, transmitindo determinação e dureza, mas encontrei uma figura pequena, de uma fragilidade física marcante, tímida e extremamente modesta. A emoção que senti, ao apertar a sua mão – aquela bem íntima de quantos se embrenham nas vere-das agrestes da pesquisa de reconstrução histórica, ao se ver

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frente a frente à sua presa, intensamente perseguida e afinal alcançada – confundiu-se com uma enorme perplexidade. Assim era ele, mas não era ele. Foi preciso algum tempo para que o meu foco se ajustasse à pequenez da imagem ali enquadrada.

Quando começamos a conversar, aquela voz pequena, quase sussurrante, mais e mais me desconcertou. No ser que eu buscara um leão, encontrara a figura amena e pacífica de um cordeiro. Aos poucos fui saindo do meu espanto inicial e sintonizando na sua frequência. Lauro Reginaldo da Rocha era um homem que se emocionava ao falar de sua família, de sua infância, que não se colocava como o herói, o ator principal de seus relatos, que se caracterizava por uma modéstia dificilmente encontrada.

Durante a entrevista, os anos de 1930 foram ganhando concretude através de sua narrativa. Aos poucos, o espaço e o tempo da história foram sendo preenchidos por paisagens humanas em movimento, sons, cores, cheiros, rumores de vozes e ecos de lutas. A exclusão como condição, se contrapondo a experiência da resistência, os trabalhadores ousando se afir-marem em sua dignidade. O povo emergindo como protagonista da sua existência social, no Nordeste de 60 anos atrás, em busca de uma cidadania, ainda hoje, perseguida.

Não se pense, todavia, que se trata de um discurso amargo ou triste. Apesar das atribulações decorrentes de um posicionamento a contrapelo dos interesses mais conserva-dores e excludentes, para além das vivências dolorosas das perseguições, prisões e torturas, não é a voz da vítima que se ouve. Mesmo as incompreensões e desencontros, experiências penosas que permearam as relações com seus pares, não foram capazes de fazê-lo ressentido. Ao contrário, é a esperança que ganha corpo na sua fala, é a reafirmação de sua trajetória o que ele faz, ao ser convidado a avaliar o passado.

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A resposta em forma de pergunta – O que seria eu, se não tivesse entrado nessa luta? – aponta para a modéstia e a grandeza. Ele se retrai como personagem, sobrepondo à sua atuação individual, a importância da luta. Então, já não é o homem que escolhe a luta como modo de vida, mas a dimensão da luta que engrandece e dá sentido à sua própria existência.

No decorrer da entrevista, foi tomando corpo a ideia de publicação de suas memórias. Menos que uma homenagem, a importância de dar a conhecer um pouco de nossa história. Porque preencher o espaço vazio da memória das lutas sociais, resgatando-as do esquecimento, é uma maneira de reafirmar não apenas a existência de um homem em particular, mas a de milhares de homens e mulheres que tal como ele, ousaram perseguir com seus atos a utopia da dignidade humana.

Quando falava de Mossoró, podia-se surpreender um brilho diferente em seus olhos. Sentia saudades. Nos quadros que pintava, retratava com sensibilidade o povo e a cidade que deixara, para trás, há 60 anos. Lauro Reginaldo da Rocha morreu no dia 4 de abril de 1991, aos 83 anos. Pensava voltar, mas foi impedido, primeiro pelas urgências da militância e depois pelos desafios da sobrevivência.

É esse homem e esse relato que temos em mãos. Aqui está um pouco da história negada, da história que se fez e se faz, cotidianamente, por rostos anônimos e corpos ignorados. E que no seu fazer contínuo, vão construindo para além da expe-riência da intolerância e exclusão, uma teia de possibilidades a serem concretizadas. Nele, não encontraremos a voz que se mostra, mas que se esconde e, ao esconder-se, é que se dá a conhecer em toda a sua grandeza, em toda a sua humanidade. Leiam com atenção, ele nos fala sem rancor e sem mágoa e nos mostra como se pode ser capaz de se abstrair de seus interesses

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pessoais em benefício de interesses gerais, coletivos. Sem reque-rer, por isso, sequer uma colocação honrosa no pódio da arena de lutas onde fez de sua vida um contínuo enfrentamento.

Brasília Carlos FerreiraNatal, junho de 1991

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I – INÍCIO DE UMA VIDA

Nasci a 17 de agosto de 1908, na cidade de Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte, região do chamado polígono das secas.

Nesse recanto do Nordeste brasileiro, a ausência de grandes montanhas, florestas ou acidentes geográficos de importância, toma a paisagem triste e monótona. Somente ao longe, para o sul ou sudoeste, essa monotonia é quebrada pelos primeiros relevos da chapada do Apodi ou, ao norte, já próxi-mo a costa, pelo contraste que as pirâmides alvas das salinas oferecem aos olhos; ou, ainda, pelos carnaubais que acompa-nham os rios com suas palmas sempre verdes e tremulantes, em qualquer época do ano, mesmo quando o sol causticante das longas estiadas queima toda a vegetação, resseca rios e fontes, devastando o solo de uma imensa superfície antes rica e produtiva. Nesse modo, em que a natureza se apresenta ora acolhedora, ora agressiva, vivia uma família da qual eu era o último rebento: meu pai, minha mãe e doze filhos.

Eu ainda não completara um ano de idade quando um acontecimento veio transtornar a felicidade que reinava em nosso lar: meu pai foi atacado de uma afecção pulmonar e, pouco tempo depois, faleceu.

A doença de meu pai, logo constatada a gravidade, desnor-teou a minha mãe que passou a se dedicar, inteiramente, ao seu bem-amado. Fiquei largado e esquecido pelos cantos e, só depois da morte de meu pai, quando as coisas começaram a serenar, é que vieram cuidar de mim. Verificaram então, que o meu estado de saúde era lastimável: debilitamento geral, gânglios linfáticos do pescoço estourados, atestando que uma batalha séria se travara no meu organismo. O ser, que mal começava a viver, já lutava, instintivamente, contra a morte e a vencia. O

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carinho e o desvelo de minha mãe e de minha irmã Melhinha ajudaram-me a sarar. Os vestígios dessa batalha, porém, iriam ficar gravados pelo resto da vida no físico e na saúde. O fato é que o primeiro combate estava ganho.

Aquele menino raquítico se mostrava obstinado em viver e viveria, com efeito, “intensamente”, como veremos nessas memórias. Os antepassados de nossa família – os Rochas, os Nogueiras, os Leites e os Bertoldos do Amaral – foram os primeiros povoadores que se estabeleceram nas ribeiras dos rios Jaguaribe (CE), Mossoró, Apodi e Upanema (RN), nas últimas décadas do século XVII. Tomando posse das terras conquistadas aos índios e a partir das sesmarias, esses pioneiros passaram a viver da criação de gado e da lavoura.

Essas famílias se uniram entre si pelo casamento e, nessa união, entrou também o elemento indígena, os remanescentes dos bravos cariris, que haviam sido vencidos e escorraçados de suas terras pelas tropas coloniais, depois de heroica resistência, numa guerra desigual e impiedosa. Em toda a região do nordes-te brasileiro, idêntico fenômeno ocorria: núcleos colonizado-res se formavam, dando partida a difícil, tenaz e quase sempre dramática ocupação da terra. Dos numerosos obstáculos que esses pioneiros encontraram para continuar na posse e cultivo do solo conquistado, um se agigantou sobre todos, constituindo o mais sério desafio: o fenômeno das secas, problema que nenhum governo foi capaz ou não se interessou por resolver, até hoje.

Em 1827, diz a história, houve uma das mais terríveis secas do Nordeste. Levas e levas de flagelados enchiam as estradas em direção à costa, fugindo da calamidade. Na cidade de Aracati, um antepassado de nossa família – João Pedro Nogueira – teve que abandonar seus pertences e, com mulher e filhos, se incorporar aos grupos de imigrantes, rumo ao Pará, onde passou a viver.

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Nessa região amazônica explodiu, na época, a gran-de revolução popular que ficou na história com o nome de A Cabanagem. Era a guerra dos índios, dos caboclos nordestinos e do povo humilde “das cabanas” contra a exploração impiedosa a que viviam submetidos; era a luta dos brasileiros contra o domínio de Portugal, pois a independência proclamada em 1822 continuou “ignorada”, durante muitos anos, pelos dominadores estrangeiros, da Amazônia.

Nessa revolução, tomaram parte e foram líderes desta-cados do movimento os filhos de João Pedro Nogueira: Manoel, Geraldo e Eduardo. A revolução cabana conseguiu derrotar várias expedições militares que tentaram dominá-la. Numa guerra prolongada, os insurretos foram fechando o cerco em torno da capital do Pará, até que conseguiram tomar o poder e constituir um governo popular revolucionário. Três governadores foram seguidamente aclamados pelo povo em armas: o primeiro foi Clemente Malcher; o segundo, Francisco Vinagre; o terceiro Eduardo Francisco Nogueira, popularmente chamado Angelim.

O terceiro governo cabano acabou sendo derrotado por uma poderosa esquadra da Marinha de Guerra Imperial, enviado do Rio de Janeiro. Angelim foi preso e deportado para a ilha Fernando de Noronha, onde permaneceu cumprindo pena até que foi anistiado, decorridos dez anos. Ocorreu um fato na vida de Angelim que viria se repetir, cem anos depois, com nossa família: sua esposa acompa-nhou-o no exílio e lá, no presídio de Fernando de Noronha, nasceu Filomena-Clara, filha do casal. A repetição dessa ocorrência será narrada no prosseguimento destas memórias.

A Cabanagem, no dizer de Caio Prado Júnior, “foi um dos mais, se não o mais notável movimento popular do Brasil”.

Durante alguns anos a nossa família viveu dos poucos bens deixados por meu pai: duas casas e uma fazendola de gado

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em formação. Esse espólio, entretanto, não podia durar muito tempo, dada a falta de um homem experiente que tomasse a direção da casa. Minha mãe enviuvou muito jovem e viu-se à braços com uma filharada miúda para criar e educar, numa época difícil e num meio de precários recursos. Foi quando sobreveio a famosa seca de 1915.

Eu tinha, então, apenas 7 anos de idade, mas muitos fatos desenrolados, durante essa calamidade, ficaram gravados para sempre na minha memória. A miséria atingiu proporções assusta-doras, as levas de flagelados enchiam a cidade. As últimas cabeças de gado que tínhamos já haviam sido consumidas e a alimenta-ção tornava-se cada vez mais difícil. Lembro-me muito bem dos recursos de que minha pobre mãe lançava mão para alimentar aquela enorme família. Um dos alimentos mais frequentes era uma paçoca feita de coco, farinha de mandioca e rapadura, “pisados ao pilão”, por serem esses produtos de mais baixo preço e mais fáceis de serem adquiridos. Um outro era, por nós conhecido, como o “mingau da caridade”. Era uma derivação, por deficiência de ingre-dientes, do famoso “cabeça de galo”. O primeiro era feito com água, sal, farinha de mandioca e um pouco de banha (quando havia...), fervidos numa panela de barro. Quando a “matéria prima” era mais farta e se dispunha de um ou dois ovos, alho e pimenta para misturar ao ralo pirão, tínhamos a segunda versão, melhorada, do quebra-jejum, ou seja, o “aristocrático” cabeça-de-galo... Convém frisar que tais alimentos geralmente, para desespero nosso, chegavam com bastante atraso...

Muitas lágrimas custaram à minha mãe esse quadro sombrio de nossa existência. Um dia vi entrar em nossa casa um carregador, com uma máquina de costura na cabeça. Houve um reboliço. Minha mãe aflita, não queria receber aquele objeto tão caro para a época e para os nossos parcos recursos. Jonas

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– um dos meus irmãos mais velhos – fora o autor da ideia da compra da máquina e dizia que o negócio já estava ajustado e que nada mais restava a fazer senão começar a usá-la. Prometeu trabalhar para ajudar no pagamento das prestações.

A máquina ficou. E foi aí que se revelou a força de vontade de minha mãe. Ela tornou-se, repentinamente, uma costureira, trabalhando dia e noite com Melhinha – outro exemplo de abne-gação e desvelo – tomava conta da casa e dos irmãos menores, cozinhando, lavando, passando roupa, preparando as lições e mandando-nos à escola. A entrada daquela máquina, em nossa casa, marcou o fim de uma fase de indecisões e desorientação e fez surgir o início de uma luta séria e encarniçada pela sobrevivência. Ela ajudou a criar duas gerações, pois também elaborou o sustento para os netos.

Quando minha mãe falava de meu pai (Manoel Joaquim da Rocha, também chamado Manoel Reginaldo da Rocha Nogueira) era como se falasse de um semideus. Através de suas palavras e de suas estórias, é que fiquei conhecendo a bondade desse exemplar chefe de família, desse pai que nunca ergueu o braço para bater num filho, num tempo em que os castigos corporais eram, via de regra, a única maneira de educar, até mesmo nas escolas. Ainda hoje lastimo que de meu pai nada tenha ficado em minha memória, nem sequer um retrato nos restou.

Para compensar essa falta, tive uma segunda mãe, na pessoa de minha irmã Melhinha (Amélia da Rocha Nogueira). Ela cuidava de mim com verdadeiro carinho e dedicação.

O povo nordestino se acostumou a mencionar fatos de outrora ligando-os à época de calamitosos acontecimentos passados: “- isto ocorreu durante a seca dos dois setes (1877), ou dos três seres (1777)”.

O fenômeno das secas vem se repetindo, sistematica-mente, através dos séculos, com tendência a se eternizar.

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Aparentemente, é como se a natureza, com a cumplicidade de desalmados exploradores nacionais e estrangeiros, conspirasse contra o povo laborioso, visando a quebrar-lhe a resistência e tirar-lhe a vontade de viver. E é incrível como esse povo resiste.

Essas considerações provêm de fatos ocorridos na minha infância e que hoje vão repassando na minha memória como o desenrolar de um filme impressionante, com cenas ora nítidas, ora meio apagadas pelo tempo.

No ano de 1917, a natureza “pregou mais uma peça” a esse povo sofredor: em vez de secas, tivemos enchentes. O reverso da medalha não foi menos cruel do que a face principal. As chuvas torrenciais fizeram transbordar os rios, transforman-do várzeas em imensos lagos, dizimando lavouras, matando o gado, destruindo lares. A desgraça bateu, novamente, à porta da gente trabalhadora.

Durante essa enchente ocorreu um acidente que veio atingir em cheio uma família vizinha, a de Miguel Soares, a nós ligada por laços de parentesco. As pesadas chuvas pareciam não ter mais fim, o rio Mossoró invadiu áreas nunca atingidas, água por todos os lados, crianças pegando piabas nas ruas e dizendo que tinham caído das nuvens. Nós estávamos empe-nhados em esvaziar a água de dentro da casa com vassouras e latas, quando veio tia Alta, muito aflita, perguntando se tínhamos visto seu filho Luizinho de uns 4 ou 6 anos, que estava desaparecido. Sabíamos que ele estivera tomando banho de chuva, como fizeram todas as crianças. Iniciou-se, então, a busca geral pela cidade, sem resultado. Foi quando alguém teve uma lembrança. Próximo da nossa rua havia um buraco ou depressão, não me recordo bem. As águas tinham coberto totalmente o terreno, formando um grande lago. Quem sabe se o

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menino não teria caído lá? A busca constatou a triste realidade e o cadáver do nosso amiguinho foi retirado do poço.

A natureza não se conformava em reduzir um povo à miséria, roubava-lhe, também, os entes mais queridos.

O meu ingresso no Grupo Escolar 30 de Setembro foi motivo, para mim, de grande contentamento. Minha irmã incutiu-me, desde cedo, o gosto pelo estudo. Ela preparava-me a roupa, ensinava-me as lições e arranjava-me as merendas que suas mãos milagrosas faziam surgir num passe de mágica. Levando as lições “na ponta da língua”, não foi difícil que eu chamasse a atenção da professora, D. Celina Guimarães, que, vendo o meu desembaraço, passou a utilizar-me como auxiliar no desasnamento dos mais atrasados.

O meu progresso na escola foi rápido e minha “precep-tora” doméstica passou a ter dificuldades cada vez maiores em preparar-me as lições: até que um dia ela verificou que seus conhecimentos já não eram suficientes para atender ao aluno que progredia. Ela não pôde esconder a sua emoção. Abraçou com alegria o seu aluno, por ver o seu grau de adiantamento, mas havia tristeza em sua fisionomia, é que perdera a sua imen-sa satisfação de servir, de ajudar ao seu irmão predileto.

Essa minha paixão pelos livros haveria de me causar, mais tarde, um grande desgosto e revolta, quando tive que sufocar essa minha “veleidade” pelo saber, por absoluta falta de recursos para continuar meus estudos.

Hoje, mais conformado, já me dou por satisfeito por ter aprendido o suficiente para compreender “o porquê” das desigualdades e injustiças sociais e por ter dado o melhor de minha vida à gigantesca batalha que se desencadeou no mundo inteiro contra o nazifascismo e pela supressão do iníquo regime

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de exploração do homem pelo homem e sua substituição por uma sociedade justa e humana, a sociedade socialista.

Em fins da primeira grande guerra mundial, tive que deixar o Grupo Escolar 30 de Setembro para ir frequentar a escola Paulo de Albuquerque, da qual era professor meu irmão mais velho, Raimundo Reginaldo da Rocha. Essa mudança operou em mim uma reviravolta completa. O meu novo profes-sor, Raimundinho, era filósofo e as suas aulas e palestras me fascinavam. Nunca mais vi um professor que ensinasse como ele, que falasse daquela maneira convincente e entusiástica. Assistir às suas aulas era como assistir a um comício. A sua eloquên-cia deixava os alunos atentos, imóveis, com os olhos brilhantes de emoção. Nas suas aulas de educação moral e cívica, aprendi que o benefício que se presta ao próximo só tem valor quando desprovido de interesses ou segundas intenções. “Fazer o bem sem esperar recompensas”, deveria ser o ideal de todos... E o patriotismo que ele pregava não era um patriotismo balofo do “me ufano do meu país”. Era o amor ao povo humilde, colocado em primeiro plano. Todo o nosso ideal patriótico deveria estar em função do progresso de nossa Pátria, em função do bem-estar e da felicidade de nossa gente. Não era um patriotismo guerreiro, de autômatos, de brigar sem saber o porquê, mas um patriotismo baseado na fraternidade universal, na paz e na liberdade.

No que se refere ao combate às crendices e superstições, o professor Raimundinho era arrasador. Para ele só existia a ciência. Era nela que ele depositava a sua fé. Só tomava conhecimento daquilo que a ciência tivesse comprovado, ridicularizando toda e qualquer hipótese de existência de seres sobrenaturais. A filosofia do professor não era uma filosofia de palavras, ele aplicava-a na prática. Viveu para fazer o bem aos seus semelhantes. Quando passava pela escola um aluno pobre,

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mas estudioso e inteligente, ele dedicava-se a esse aluno, esti-mulava-o, dava-lhe tudo que estivesse ao seu alcance, roupas, livros e até alimentos. Preparava-o e encaminhava-o para o ensino superior. Muitos deles chegaram a se formar e se desta-caram na vida pelo valor pessoal e pela cultura.

O professor Raimundo Reginaldo não foi um peque-no burguês de visão estreita e acomodado. Ao contrário, foi o primeiro a lançar ideias marxista-leninistas, em Mossoró, e incentivar os seus irmãos a organizarem os primeiros núcleos do “partido da classe operária”, em terras nordestinas. Na revolução de 1935, ele lutou de arma na mão nas ruas de Natal, ao lado de sua filha Amélia, de 16 anos de idade. Liberou todos os presos da Cadeia Pública. E, após a tomada do poder, distribuiu, fartamente, gêneros alimentícios à população necessitada, em nome do Governo Revolucionário.

Com a derrota da insurreição, ele e a filha empreenderam uma fuga espetacular, passando por Mossoró, onde nasceram e viveram, disfarçados: ele de cego, ela de guia, com a barriga volumosa, com enchimento de pano, fingindo mulher grávida. Ambos sabiam o que lhes aguardava, caso caíssem nas mãos da polícia. Dormiram no mato, crivados de carrapatos, picados de mosquitos e demais insetos, passando fome e sede. Com sangue frio e paciência, conseguiram atravessar os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará e escapar da prisão, das torturas e humilhações a que seriam submetidos.

O professor Raimundo Reginaldo, o revolucionário que recusou, com altivez, a oferta que lhe fez um ex-governador do Estado do Rio Grande do Norte, de uma cadeira de deputado como início de uma carreira política em troca de abandonar suas ideias; o homem bom que teve de renunciar a tudo que lhe era mais caro, desde o emprego até a própria família; esse

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militante digno e valoroso da Revolução Libertadora, morreu no interior do Piauí, onde sua filha casou e lhe deu netos. Como relata sua filha Amélia – em carta transcrita ao final destas memórias – ele permaneceu com sua fisionomia tranquila mesmo depois de morto, como se estivesse em paz com a sua consciência. Homens como esse, o povo jamais esquecerá.

Aquele ambiente de pobreza exerceu profunda influên-cia na minha formação. Na escola, os livros me falavam das riquezas do nosso país, dos seus recursos naturais, e o que eu via, em torno de mim, era fome e miséria, gente vestindo farrapos, crianças e adultos esqueléticos. Não podia compreender as causas desse contraste. Ouvia falar de povos adiantados, sábios fazendo grandes descobertas e, ao meu lado, um povo analfabeto, embrutecido e apalermado pelo sofrimento. Não me conformava com esse contrassenso. Estranha sensibilidade essa minha. Desde criança, me tocava a dor alheia, quando não era a minha própria dor que me atormentava.

Esses pensamentos me roubaram muito da minha infância, porque muito cedo comecei a indagar se o mal era incurável ou se havia alguma solução. Eu não sabia formular perguntas, era uma criança calada, mas procurava ouvir Raimundinho. Não havia, a princípio, premeditação. Eu ia passando, despreocupadamente, via o mestre conversando na sua rodinha, chegava mais perto e escutava. E perdia a noção do tempo e das coisas. Depois, passei a frequentar assiduamente aquelas palestras. Todas as tardes – como era, aliás, costume nas cidades do interior – vizinhos, parentes e amigos reuniam--se em nossa casa para conversar. A reunião era espontânea. Eles vinham chegando isolados ou em grupos e iam sentando. Não havia cadeiras para todos, os da casa arranjavam-se em caixotes ou ficavam de pé.

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Falava-se da política, de secas, de marchas da fome, até chegar ao assunto da época, “a revolução russa”. Por incrível que pareça, aquela cidadezinha longínqua não estava isolada do resto do mundo. Não havia rádio nem televisão, mas as notí-cias importantes do que se passava em lugares os mais remotos do globo ali chegavam pelo telégrafo, pelos jornais e revistas, fazendo vibrar aquela pequenina parcela da grande massa humana que cobre a superfície terrestre.

Sentado no chão, a um canto, eu aguardava a palavra do mestre. Era ele que esclarecia as minhas dúvidas, a sua voz, para mim era um clarão nas trevas. “O povo russo, dizia ele, encontrou o caminho de sua libertação, quebrou as correntes da opressão, implantou o socialismo e vai agora criar um mundo novo, diferente, de paz, de conforto e de progresso”. E fazia desfi-lar diante de meus olhos atônitos, como se eu estivesse diante de uma realidade palpável, os heróis daquela revolução vitoriosa, a figura deslumbrante de Lenine à frente. E eu me via, de repente, na minha imaginação, no meio de seres fantásticos, de fuzil em punho, lutando, partindo cadeias, quebrando grilhões.

Era a voz do mestre, que falava sempre sorrindo, quem acabava o devaneio, chamando-me à realidade: “Cada povo deverá resolver sua própria situação. Nada cairá do céu por acaso, o preço da liberdade será muito suor, sangue e lágrimas. O próprio povo trabalhador – que tudo produz e nada tem – terá que decidir e traçar o seu destino. Na união, está o segredo de nossa força, pois isolados nada valemos. Os trabalhadores nada têm a perder com a revolução, mas a ganhar têm um mundo”. Concluía recitando uma estrofe da “Internacional”: “Para não ter protestos vãos/ Para sair deste antro estreito/ Façamos nós por nossas mãos/ Tudo que a nós diz respeito”.

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Não me recordo bem quando foi que descobri aquele tesouro. Lembro-me que as estantes de livros da sala de Raimundinho passaram a ser uma agradável surpresa para mim. Não sabia como foram parar ali obras tão boas, os clássicos da literatura, as correntes mais diversas de pensamento estavam ali repre-sentadas, desde “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, até as obras de Karl Marx, Engels e Lenine. Eu devorava aqueles livros com sofreguidão, largando no meio os que não conseguia entender, indo até o fim e, às vezes, relendo aqueles que maior impressão me causavam.

Ler bons livros é como viajar por mundos desconhecidos, é como transpor novos horizontes. O pensamento se eleva, o saber se renova. Que cabedal de experiências e de conhecimentos eles contêm! Eu me sentia feliz por contar com aquela boa fonte que era a biblioteca de meu irmão, onde eu ia procurar matar a minha sede de conhecimentos. Muito aprendi naqueles livros.

Um dos maiores passos que o homem deu na senda do progresso foi quando passou a gravar pensamentos e fatos. Voltando-se para o passado, a vista do homem só alcança com precisão até a época em que os nossos ancestrais começaram a escrever ou garatujar. Daí para trás a história vai se perdendo nas lendas e nas conjecturas, até se apagar totalmente, restando apenas, aos estudiosos da paleontologia, os despojos encontrados nos fósseis.

Mas, o livro não é somente um repositório de fatos e expe-riências, é também o espelho mais fiel do espírito humano. Por meio dele podemos conhecer o grau de progresso e de cultura de um povo, seja do presente, seja do passado mais distante. Penetrar nele é penetrar num mundo que não tem fim.

Sobre a origem dos livros marxistas encontrados na biblioteca do professor Raimundo Reginaldo, encontrei mais

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tarde a solução do enigma no livro “Elizeu Viana, o Educador”, do escritor Walter Wanderley, páginas 180 a 194. Nesse livro, há um depoimento precioso da nossa antiga professora Cetina Guimarães, de saudosa memória. Dona Cetina possuía uns livros de Marx, Engels e Lenine e, querendo se desfazer, resolveu presenteá-los aos irmãos Reginaldos: “ Eis que chega – à sua casa – o menino Lauro Reginaldo”. Ela entrega-lhe um enorme pacote contendo os referidos livros para que entregue a Raimundo Reginaldo.

Foi desta maneira que eu mesmo, sem me dar conta, conduzi aquelas preciosas joias literárias que fui encontrar, mais tarde, nas estantes de meu irmão Raimundinho, que tanta impressão me causaram e que me nortearam para o resto de minha vida. Este gesto magnânimo de D. Cetina acrescentou à minha admiração por ela, o meu mais profundo reconhecimen-to. Obrigado! E muito obrigado, querida professora.

Quando fui fazer o exame de admissão ao curso de professor na Escola Normal, notei que havia surpresa por parte dos presen-tes. Eu ainda era um garoto, usando calças curtas, e a minha compleição franzina fazia com que eu parecesse ainda mais jovem.

A minha antiga professora do Grupo Escolar, dona Cetina, esposa do diretor da Escola Normal, Elizeu Viana, olhou-me com curiosidade e perguntou: “—Lauro, em quantos anos você espera tirar o diploma de professor? Tomei a pergunta como um desafio e respondi: “—Vou me esforçar ao máximo para não repetir nenhum ano. Sou pobre e não posso perder tempo. Creio que minha resposta agradou a professora, que dizendo “muito bem”, retirou-se com um sorriso.

Cumpri a promessa. Fiz o curso sem reprovações ou repe-tições, mas isto me custou muito esforço e sacrifício. Eu não estava preparado para aquele curso, pulei etapa, não tinha

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dinheiro suficiente para comprar todos os livros e o regime de subalimentação em que vivia se constituíram em embaraços seríssimos aos meus estudos.

À noite, eu procurava reunir aqueles apontamentos rabis-cados em cadernos, durante as aulas. Havia matérias que não me davam muito trabalho, mas a tal de matemática ocasio-nou-me muitas tonteiras. Quando eu dormia, ainda vinham pesadelos terríveis, eu procurando alcançar pedaços de pão e o pão se transformava em algarismos, os malditos algarismos fugindo, sempre fugindo.

Na parte da manhã, eu trabalhava na fábrica de cigar-ros de Humberto Jovino ou na de Hemetério Leite; e isto me dava alguns trocados para pequenas despesas. À tarde, eu ia à escola. A falta de livros foi atendida com a feliz ideia, surgida não me recordo por quem, de estudo em conjunto. Eu, Raimundo Nonato, Mário Cavalcanti e Lauro da Escócia, quando se aproximava a época das provas, nos reuníamos na casa deste último para repassar as lições. Lucrei muito com esses estudos em comum. Quando um encontrava dificuldades numa matéria o outro ajudava; e assim solucionávamos proble-mas de geometria, esclareciam-se leis de física ou pontos de pedagogia. Nos intervalos, surgiam as piadas e as célebres anedotas e isso amenizava os estudos, formava um ambiente cordial, de camaradagem.

A minha passagem pela Escola Normal deixou-me gratas recordações. Quanto mais tempo se passa, mais sinto sauda-des daqueles ótimos professores, daqueles colegas, daquela “irmandade” que ali se reunia à procura da luz sagrada do saber e que a luta pela vida dispersou, conduzindo-nos por diferentes caminhos.

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II – BUSCANDO CAMINHOSA Liga Operária – As primeiras escaramuças

Naquela época, o mundo passava por grandes trans-formações. A crise provocada pela primeira grande guerra ocasionou uma onda geral de greves e de lutas populares. A revolução soviética, por sua vez, surgiu como um estímulo e uma esperança. As grandes massas trabalhadoras de todos os países tinham agora um rumo certo a seguir, organizavam-se sindicatos por toda a parte, o anarquismo cedia lugar a criação de poderosos partidos políticos da classe operária: os Partidos Comunistas.

Em nossa cidade, esse movimento teve repercussão imediata. Um punhado de idealistas, tendo à frente Raimundo Reginaldo, Oscar Amaral, Lindolfo Arruda e outros, lançou as bases da Liga Operária que evoluiu rapidamente, construindo sede própria, criando um grupo escolar para filhos dos associa-dos e organizando biblioteca. Essa Liga transformou-se, mais tarde, numa sociedade de simples beneficência, mas no início ela desempenhou papel importante na formação da consciência política dos trabalhadores. Ali realizavam-se grandes manifes-tações e nas comemorações de Primeiro de Maio, hinos revo-lucionários, como “A Internacional” de Eugene Polier e Pierre Degeiler, eram cantados como se fossem simples canções popu-lares. “O Trabalho” jornal da Liga Operária, era um semanário que disseminava ideias e, apesar de sua orientação confusa, foi um desbravador, um pioneiro das lutas sociais.

Iniciou-se, então, uma campanha por aumento de salá-rios para os trabalhadores da estrada de ferro, que tinham nível de vida baixíssimo, em regime de vales, em condições desumanas de trabalho. Durante essa campanha, meu irmão

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Rochinha (Alexandre Reginaldo Rocha), junto com o padeiro Chico P. Macaco, organizou uma crítica carnavalesca focali-zando a exploração. Um representava o papel do diretor, outro fantasiou-se de capataz e os demais componentes do grupo representavam uma turma faminta de “cassacos” da estrada. A crítica fez grande sucesso, mas o sargento Antenor, chefe de destacamento policial, recebeu instruções para acabar com ela. E o fez à sua maneira violenta. De revólver em punho atacou o bloco de foliões, dando-se o choque inevitável do qual ele, o arbitrário agente da lei, saiu levando desvantagem.

No dia seguinte chegou à cidade uma numerosa força da polícia militar, comandada pelo tenente Laurentino. Essa força, armada até os dentes, em formação de combate, efetuou o assalto a uma imaginária fortaleza que nada mais era do que a humilde residência de minha mãe, que nada tinha a ver com as ocorrências. Com a aproximação da tropa, minha mãe e minha irmã fugiram pelos fundos, abrigando-se em casa de parentes. Encontrando a casa fechada e sem gente, os soldados arrobaram as portas à coices de fuzil, quebraram móveis, potes e panelas, num verdadeiro ato de vandalismo.

De nada valeram nossos protestos. Eu, que aprendera na escola que “o lar é um asilo inviolável”, passei a ver até que ponto valem as leis, comecei a ter as primeiras aulas práticas – e muito mais verdadeiras que as recebidas na escola – de que tanto as leis quanto as autoridades estão sempre à serviço das classes dominantes. O entrevero terminou com a nossa prisão, onze membros da família Reginaldo nas grades, eu, no meio deles. Esse foi o meu “batismo de fogo”, aos 15 anos de idade.

No meu fraco entendimento, eu achei que aqueles vândalos cometeram um grave erro. Para mim sempre foi claro, lógico e racional que a fome não se mata com coices de fuzil,

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e sim com alimentos. O alimento continuou a não chegar às mãos dos famintos.

Aqueles que nasceram em berço de ouro, aqueles que desconhecem a miséria não poderão jamais compreender o verdadeiro sentido desta palavra, FOME. Eu não me refiro, é claro, a uma fome ocasional, mas à fome do dia a dia, imposta pela escassez frequente, continuada e pela ausência total, por longos períodos, de alimentos indispensáveis à nutrição e à sobrevivência. Eu a conheço muito bem, ela viveu ao meu lado. Eu a vi estampada nas faces de outros, como se eu estivesse diante de um espelho. Aquele olhar parado, os olhos fixando um ponto qualquer no espaço sem nada ver, aquele ar apaler-mado de faces encovadas, o pensamento divagando à toa, ora fixando-se, angustiado, em imaginárias iguarias, ora não se fixando em nada, como se o cérebro tivesse parado. De repente vem aquela reação, aquele desejo de investir, de quebrar tudo, esse desespero que, muitas vezes, levou os flagelados a atacar mercados, a avançar contra as bancas dos “marchantes” e deixar, num minuto, as suas pedras-mármores limpas, sem qualquer vestígio de carne.

A fome costuma completar, em poucas horas, o trabalho que as lideranças revolucionárias levaram longos anos lutando para conseguir, o de levar as massas populares a se decidirem a lutar e até mesmo a empreender o assalto final pela tomada pelo poder.

A história universal está cheia de exemplos. Foi a fome quem levou o povo francês a enfrentar os caminhões e derru-bar a bastilha. Foi a fome que derrubou o poderoso império dos czares, na Rússia. Foi a fome quem levou o povo chinês a expulsar de seu solo os exploradores estrangeiros, levando--os de roldão para fora do continente, implantando mais um

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poderosíssimo estado socialista no mundo. A fome desconhece a razão, leva ao desespero e o desespero não teme a força. Num certo sentido a fome é um grande general.

Entretanto a teoria e a prática nos ensinavam que esse general, por si só, era inconsequente, que ele jamais soluciona-ria de vez os problemas do povo trabalhador, se ficássemos à sua espera, na expectativa de soluções espontâneas e milagrosas. As revoluções mencionadas acima tanto a revolução burguesa, na França, como as revoluções socialistas na Rússia e na China não teriam sido vitoriosas se não tivessem sido dirigidas por organizações poderosas e por grandes líderes, que lhes deram uma orientação política justa e adequada.

Nós achamos que era necessário e urgente criar organizações partidárias e de massas (sindicatos e outras) capazes de reparar, orientar e dirigir as nossas lutas, desde as pequenas e imediatas até as grandes e decisivas. Assim pensando, criamos a primeira célula da Juventude Comunista sob a orientação do professor Raimundo Reginaldo. Esta célula foi constituída, no seu início, por Lauro, Saraiva Mariano e Soares. Pelos meus cálculos, isto ocorreu em fins de 1924 ou começo de 1925, quando eu tinha de 15 para 16 anos de idade. Esse foi o ponto de partida para um longo e paciente trabalho no terreno da organização.

Alguns anos depois, enquanto eu participava da reorgani-zação do Partido em Fortaleza-CE (1929 a 1931), em Mossoró-RN, era criado o primeiro Comitê Regional do P.C., por iniciativa de Antonio Reginaldo Sobrinho, meu irmão.

A notícia de nossa prisão e da depredação da casa de minha mãe se espalhou até as localidades vizinhas. A partir desses acontecimentos, começamos a ser procurados por pessoas que desejavam conversar e conhecer nossas ideias. O

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mais procurado era Raimundinho, por ser o mais velho e o mais capacitado a dar esclarecimentos.

Certo dia, meu irmão Luizinho (Moba) trouxe à minha presença um senhor de Areia Branca, cidade próxima a Mossoró, que desejava conversar comigo. Todo o seu jeitão era de um camponês, mas aquele calo no ombro e as rachaduras nos pés definiam, sem margem de dúvidas, tratar-se de um salineiro. Iniciando o “papo”, ele começou dizendo que era católico e queria saber se as nossas ideias eram contra a religião.

Eu respondi com outra pergunta: – Como podemos ser contra a religião, se nossa mãe, Luzia da Rocha, é católica fervo-rosa e, diariamente, antes de pegar a máquina de costura, vai à missa, na Matriz da cidade, como é do conhecimento geral? Em nossa família, há católicos, protestantes e materialistas. Nós somos, pois, pela liberdade de crenças e se algum dia alguém quiser tolher a sua liberdade de ser católico, venha nos procurar que lutaremos ao seu lado, sem qualquer vacilação.

O visitante riu, parecendo satisfeito com a resposta. E apresentou outra dúvida: “Dizem que vocês são pela violência. Acontece que a minha religião cristã prega a paz e a harmo-nia entre os homens”. Então empatou, respondi, porque nós também não temos nenhum prazer em brigar. Somos todos trabalhadores, ordeiros, chefes de família. Só brigamos quando somos obrigados e encurralados, em nossa própria defesa ou em defesa de uma causa justa. O nosso sonho é que, num futuro próximo, haja um mundo de paz e felicidade para todos. Nós achamos que não haverá paz na terra enquanto houver o sistema capitalista e por isto lutamos contra ele. Acho justo que devemos lutar pela paz, porque a paz é harmonia, é tranquilidade para pensar, para trabalhar, para produzir, para amar, para usufruir todas as coisas belas da vida. Mas, nem

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sempre, este bem precioso que é a paz pode ser mantido, susten-tado. Vivemos num mundo de agressões e chega o momento em que a paciência enche e enche tanto, que temos de tomar uma atitude antes que o saco estoure.

A violência é a característica básica do capitalismo, este regime que nos é imposto pela força. Uma paz alicerçada na desigualdade e na injustiça, uma paz imposta pela tirania, uma paz humilhante e desumana, uma paz de cemitério, esse tipo de paz é difícil fazer com que o povo acate e suporte. Essa acusação de que somos desordeiros é antiga, mas, vem sempre com o endereço errado. Vamos analisar a coisa direitinho, para vermos quem são os desordeiros.

Através de uma longa e penosa experiência temos observado o seguinte: quando a pobreza tem fome e pede pão, acaba levando pau. Não é isto o que acontece? Quando o operário faz greve, vem a polícia e baixa o cacete, prende e espanca. Os cárceres estão sempre cheios. Os sindicatos são invadidos, os comícios são dissolvidos a bomba de gás e a bala, operários, camponeses, estudantes e populares são presos, torturados e assassinados.

Quem pratica tanta violência, tantos crimes? Somos nós? É esta a paz que devemos aceitar? “Mas vocês não pretendem tomar o poder?” Tornou a perguntar o nosso interlocutor. — Nós achamos que o regime que aí está é um regi-me injusto e cruel, que já caducou, e que deve ser substituído por um governo popular capaz de realizar reformas radicais destinadas a acabar com a pobreza e o atraso do nosso povo. Se os homens que estão de cima não gostam de desordem e de violência, é muito simples, entreguem o governo ao povo e está tudo resolvido, na paz, no amor e na concórdia. “E vocês acham que eles vão entregar tudo de mão beijada?” — Há muita gente

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que acredita nessa hipótese. Para lhe ser sincero, eu, pessoal-mente, não acredito. Que me desculpem, mas acho essa hipótese uma besteira. Olhemos para o mundo e vejamos o que aconteceu ou está acontecendo em toda face da terra. O sistema capitalista sabe, mais que ninguém, que os seus dias estão contados, mas, luta, encarniçadamente, ferozmente, desesperadamente, para se manter no poder. Não é isto o que acontece? Podemos ainda ter ilusão?

Depois de uma longa conversa nos despedimos – eu e o católico – em boa paz e harmonia.

As ideias marxista-leninistas atingiram em cheio a famí-lia Reginaldo. Como uma semente plantada em solo fértil, elas nasceram, cresceram e se expandiram com uma força extraor-dinária. Raimundinho foi o primeiro a recebê-las e propagá-las. E eu o irmão mais moço, ainda criança fui o segundo a aceitá--las, com um entusiasmo e uma alegria de quem descobre um novo mundo. Logo a seguir aderiram, o Toínho, depois Jonas, o Glicério, os outros irmãos e vários descendentes. Apenas um se manteve contrário, foi Joãozinho (João Reginaldo da Racha, “João da Mata”), mas foi uma resistência peculiar, como veremos nos fatos que vou relatar.

Em 1924-1925, os outros irmãos já estavam casados, somente eu e ele ainda estávamos solteiros, morando com nossa mãe. Joãozinho, vez por outra, puxava conversa comigo sobre política, ora fazendo perguntas, ora contestando. Eu procurava sempre esclarecer as questões por ele formuladas, de acordo com o meu entendimento. As nossas relações continuavam sem quebra da cordialidade.

Num certo dia, porém, ele “me chamou às falas” sobre a estante de livros que eu mantinha na sala. Nessa estante, esta-vam meus livros de estudo (escolares), os livros marxistas e os

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de literatura em geral. Joãozinho achava que havia na estante livros perigosos (obviamente os marxistas), e que deviam ser retirados dali sem perda de tempo, levados para outro local ou mesmo destruídos, antes que a polícia viesse confiscá-los.

Senti, imediatamente, que estávamos, eu e ele, sendo vítimas do chamado terror cultural e eu não estava com dispo-sição de me curvar, gratuitamente, a esse tipo de pressão. Calmamente, eu procurei explicar que todos os livros que ali estavam tinham sido comprados legalmente nas livrarias, com muito sacrifício financeiro. Que eu desconhecia qualquer edital expedido pelas autoridades policiais classificando os livros em perigosos ou não perigosos. Que as mesmas autoridades constituídas permitiram que se editassem os livros e os vendes-sem livremente. Se depois de tudo isso, a polícia, sem qualquer esclarecimento e sem nenhum aviso, viesse à nossa casa para confiscá-los, isso seria uma violência inqualificável e, como tal, devia ter o nosso repúdio.

Argumentei ainda que se os livros eram perigosos em nossa casa, também seriam em qualquer local onde fossem levados. E que não seria justo transferir um risco desta ordem para as costas de um parente ou amigo. Quanto a eu mesmo destruir os meus livros, isto eu não faria “nunca”! O assunto ficou nesse pé, mas, Joãozinho não se conformou. Dias depois ele veio a mim e disse que se os livros não fossem retirados da casa, ele os queimaria.

Nessa altura lembrei-me de tudo o que eu tinha lido sobre a história da inquisição, suas fogueiras e suas crueldades, e respondi com firmeza: — Está muito bem. Vamos então fazer um acordo, quando eu não estiver em casa, você pode queimar meus livros. Depois, quando você também não estiver em casa, eu pego os seus móveis (ele estava se preparando para casar),

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levo seus móveis para o quintal e faço uma fogueira. Ficaremos quites, elas por elas.

Depois dessa discussão, eu procurei meus irmãos mais velhos – Jonas e Toínho – e narrei todos os fatos. Eles me disse-ram que iam falar com Joãozinho, para eu ficar tranquilo. Ele não queimaria nenhum livro e os livros continuariam onde estavam. Não sei o que eles disseram a Joaozinho. Sei apenas que ele nunca mais tocou no assunto. Nossa amizade continuou como se nada tivesse acontecido.

Esse episódio, contado assim destacado do conjunto de toda a nossa história, daria uma ideia falsa da personalidade desse Reginaldo. Ele jamais foi um reacionário, um desleal, um desfibrado. Muito ao contrário. Nunca exigimos dele qualquer participação em nossa atividade política, mas nas horas difí-ceis, quando vinha o acocho, ele estava sempre do nosso lado, compartilhando conosco de tudo que desse e viesse. Era nessas ocasiões que ele mostrava a sua calma e a sua coragem, a sua solidariedade e a sua altivez. Nunca nos abandonou nas horas difíceis. Sempre que íamos presos, lá estava ele também no xadrez, do nosso lado, calmo e tranquilo, preso somente por nos defender.

Tempos depois cheguei à conclusão de que toda aquela confusão sobre os meus livros não passou de um blefe, Joãozinho nunca teve a intenção de concretizar suas ameaças. Ele estava apenas querendo nos proteger, de forma errada, mas sincera, da feroz repressão que se desencadearia mais tarde sobre nós.

O fato que passo a relatar veio fortalecer esta minha conclusão. Em fins da década de 1930 eu e Joãozinho – ambos casados – estávamos morando em Fortaleza. Certo dia, está-vamos trabalhando numa oficina no centro da cidade, de portas fechadas, por ser domingo. Alguém bateu e Joãozinho

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foi atender. Era a polícia política que me procurava, com ordem de prisão.

Sem abrir a porta, Joãozinho mandou que os “tiras” aguardassem, foi até onde eu estava e disse: “É a polícia, fuja, rápido”. Como eu me recusasse a fugir, ele foi me empurrando para uma porta dos fundos que dava para outra rua, dizendo que era a mim que procuravam e não a ele, que ele não estava implicado em política, enquanto eu estava, que os “tiras” não tinham visto a mim e portanto não tinham certeza da minha presença, que eu era mais útil aqui fora do que atrás das grades. Com essa conversa, foi me levando até a porta dos fundos.

Depois de me empurrar para a rua, trancou o portão por dentro e foi, calmamente, se apresentar aos policiais que esperavam na porta da frente. E como a estória que contou aos “ditos-cujos” sobre o meu paradeiro, não convenceu, acabou sendo preso no meu lugar. Por aí se pode tirar uma conclusão sobre o caráter do meu irmão Joãozinho, o João da Mata, aquele que outrora ameaçou tocar fogo nos meus livros.

Nessa época, um líder começava a despontar no cenário político norte-rio-grandense: o advogado João Café Filho. O seu prestígio, todavia, ainda estava restrito aos meios operários de Natal e a gente miúda das cidades mais desenvolvidas do Estado. Ele se apresentava como elemento da oposição à velha oligarquia perrepista, representativa dos privilegiados grandes fazendeiros do café, da qual o povo brasileiro já estava mais do que farto.

O sr. Café Filho ligou-se a massa operária, através dos sindicatos, tomando posição em defesa de seus anseios e reivin-dicações. Com sua palavra fácil e seus discursos inflamados, não foi difícil que seu prestigio se expandisse, rapidamente, e se firmasse no meio da classe trabalhadora e de outros setores da

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população. Por todos estes motivos, seria demasiado sectarismo de nossa parte se não procurássemos fazer frente única com o novo líder ou se simplesmente ignorássemos a sua existência.

Certo dia, tivemos a notícia de sua vinda a Mossoró. Essa notícia chegou com uma antecedência de apenas algumas horas, era nosso desejo preparar uma recepção condigna, mas o tempo era curto, pouco se podia fazer em cima da hora. Procuramos, apressadamente, reunir os componentes da banda de música local, convidamos o maior número de companheiros e amigos e fomos esperá-lo na praça da Matriz.

Recebemos o líder com abraços e vivas, enquanto fogue-tes espocavam no ar. Formou-se um cortejo que o acompanhou até a residência de meu irmão Raimundo Reginaldo, no bairro Doze Anos, onde o visitante ficou hospedado por algumas horas. Ali estava, em nossa casa humilde, o homem que haveria de ser o Presidente da República, sem que nós pudéssemos imaginar que tal coisa um dia viesse a acontecer.

Acreditamos que os tradicionais chefões da política oficial também, nem sequer, sonharam com esta eventualidade. Caso contrário, ninguém lhes tiraria a primazia nem o prazer de serem os hospedeiros do ilustre visitante. Ao invés da indi-ferença e mesmo da hostilidade com que assistiram à passagem do líder populista pela cidade, os maiorais da política teriam feito a ele a mais rica e calorosa recepção, com flores, tapetes e rapapés e tudo o mais de que são hábeis e experientes.

Quanto a nós, não permitiriam sequer que nos aproximás-semos. Aliás, esta proibição seria perfeitamente desnecessária, porque nós, nesse caso, de foram alguma chegaríamos perto. Mais adiante, noutros capítulos destas memórias, veremos as guinadas que este mundo dá e de que maneira fomos recom-pensados pelas ações de cortesia que praticamos.

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Em 1925, aos 17 anos, integrando a 22ª turma que se formara, terminei o curso da Escola Normal e recebi o grau de professor.

Muito embora fosse grande meu contentamento pelo sucesso alcançado, eu me sentia fraco de conhecimentos, era como se apenas tivesse transposto um obstáculo, restando muito a caminhar. A realidade, no entanto, era que aquele diploma na mão, significava que eu nada mais tinha a fazer do que sair por aí a fora a espalhar instrução, baseado naqueles precários conhecimentos adquiridos.

No ano seguinte, parti para esse destino, por ter sido nomeado professor de uma escola isolada na cidade de São Miguel, lá nos limites do Rio Grande do Norte com os Estados do Ceará e Paraíba. Naquele tempo, os meios de transporte eram precários, tive que viajar em lombo de burro, com um grupo de “comboeiros”, numa viagem longa e fatigante.

A cidadezinha de São Miguel, situada em cima de uma serra, tinha o aspecto calmo e simpático das cidades do interior. Ao penetrar nas primeiras casas, encontrei vestígios deixados pela Coluna Prestes que por ali passara havia pouco tempo. Dentre esses vestígios, recordo-me de uma frase zombeteira escrita na parede da sede dos correios por um sargento da Coluna, que dizia: “Os negalistas, digo, legalistas fugiram vergo-nhosamente”. Seguia-se a assinatura do sargento, cujo nome o tempo me apagou da memória.

Lamentei profundamente que na passagem da Coluna Prestes por São Miguel eu não estivesse presente. Tive a sensa-ção de ter chegado atrasado a um almejado encontro. Caso eu estivesse presente, a Coluna, provavelmente, teria conquistado mais um soldado.

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Nessa época, já pertencia à Juventude Comunista. Certamente, iria expor minhas ideias a Prestes e a outros líderes da Coluna. Esse meu encontro com Prestes, todavia, viria se reali-zar muitos anos depois, conforme será relatado mais adiante.

No meu curto período de professorado, uma coisa me desagradou seriamente: não receber os meus vencimentos em dia. O pagamento ao funcionalismo estava com um atraso de 3 meses. Não é que me faltasse nada – o crédito vigorou, perfeitamente, e sem restrições – mas isso me tirou uma certa independência de atitude que sempre procurei manter. Certa vez, a pessoa que me hospedara em sua casa e me franqueara tudo o que viesse a precisar, pediu-me para que assinasse um telegrama dirigido a certo político da capital. Não era nada de grande importância, tratava-se apenas de felicitações por aniversário e eu, por amizade e gratidão, assinei, mas não gostei. Quando eu felicitar alguém por alguma coisa, mesmo que seja um aniversário natalício, quero ter minhas razões para isso, sobretudo, deve ser por livre e espontânea vontade. É uma questão de temperamento e de princípios.

Logo no início das aulas, esbarrei com uma grande difi-culdade: a falta de alunos. À escola só comparecia um pequeno número de crianças, filhos de negociantes e artífices do centro da cidade. Só havia, no lugar, uma escola particular, por sinal de frequência também não muito grande. Onde estariam, então, os outros meninos? Resolvi percorrer os arredores da cidade à cata de alunos e pude verificar a causa daquela ausência – POBREZA. Os filhos dos lavradores pobres, uns não podiam comparecer às aulas por falta de roupa e calçado, outros por terem que ajudar os pais no trabalho e assim melhorar ou garantir o sustento.

Contra o regulamento escolar, resolvi permitir que os meninos comparecessem com a roupa que tivessem, de chinelos

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ou descalços. Isto trouxe uns poucos alunos, mas não resolveu a situação. Uns, provavelmente, não compareciam por cons-trangimento, o mais certo, porém, é que os pais não podiam abrir mão da indispensável ajuda de seus filhos na luta pelo pão. Diante desse estado de coisas, passei a compreender que a luta contra o analfabetismo era um problema muito mais sério do que a princípio me parecera. Não era possível resolvê-lo sem que se elevasse o padrão de vida do povo, o mal era de conteúdo, essencialmente, econômico-social. E aí começava outro proble-ma muito mais profundo e complexo.

Percebi que a pobreza e o analfabetismo andavam sempre de mão dadas, que onde havia maior pobreza era justamente onde havia maior atraso, mais analfabetismo. Ambos os males, produtos de uma sociedade subdesenvolvida, jamais seriam resolvidos sem que houvessem as transformações revolucio-nárias, cuja plataforma estava sendo lançada na ordem do dia, nos grandes centros urbanos do país.

Por outro lado, eu mantinha a minha vontade de continuar os meus estudos e estava convencido de que isso não seria possível se eu continuasse naquela vidinha sacrificada e de resultados escassos que eu seguia.

A decisão foi tomada. Abandonei o ensino, voltei para Mossoró e passei a trabalhar com meu irmão João Reginaldo, na pintura da propaganda. Matriculei-me no Colégio Diocesano, visando fazer os preparatórios para ingressar numa faculdade.

Os nossos rendimentos deveriam dar para alimentação, roupa, outras despesas indispensáveis e para pagar as mensa-lidades, livros etc., do curso programado.

Quanto ao trabalho profissional em si, não havia dificul-dades. A sua natureza se enquadrava, perfeitamente, à nossa

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vocação artesanal. De modo que, inicialmente, tudo corria bem, os compromissos iam sendo pagos em dia, sem problemas.

Depois vieram os períodos de crise de trabalho, compli-cando tudo. Dos meios de que lancei mão, numa luta inglória para manter de pé meus ilusórios planos, não escapou sequer o cabo da enxada. Logo das primeiras chuvas, lá estava eu, no roçado de Chico Freire, jogando ao solo sementes de milho e de feijão, na esperança de uma boa safra.

As minhas ilusões se desvaneceram. A faculdade que eu sonhara fechou suas portas para mim, porque não tive dinhei-ro para pagar meus estudos. Eu descobri, contudo, que havia outra faculdade também muito útil e importante, gratuita, sem barreiras, sem restrições, sem móveis, sem paredes, sem professores catedráticos e sem diplomas. Suas salas de aula eram a praça pública, as ruas, os campos. Sua sede nosso imenso Brasil, o mundo, o espaço infinito. Seus professores, o povo, a humanidade, a vida! Eu já estava matriculado nessa faculdade e não me apercebera. Muito aprendi nela. E continuo aprendendo.

No cenário turbulento do Nordeste, uma narrativa como a que estamos fazendo não seria completa nem verdadeira se não fosse entrecortada de lances de tragédia. Isso fez parte de nossa vida e de nossa história. Vejamos o que aconteceu no ano de 1927.

Nós vínhamos do roçado com uma carroça cheia de milho verde, feijão e melancia, quando encontramos, vindos da cidade, um grupo de comboieiros que nos transmitiu a notí-cia alarmante de que Lampião, com seu grupo de cangaceiros, estava há duas léguas de Mossoró vindo em direção ao bairro Alto da Conceição. Enviara um emissário ao Prefeito com um ultimato exigindo dinheiro. Como não foi atendido, esperava-se

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a qualquer momento o ataque à cidade e dizia-se, caso vencesse, “seria difícil prever as consequências”.

Tivemos que tocar os bois com mais pressa, para evitar que fôssemos atingidos pelo tiroteio. Nós morávamos, nessa época, no bairro Doze Anos, próximo da linha férrea. Os subúr-bios não estavam defendidos do ataque. Somente os pontos centrais da cidade estavam entrincheirados (casa do prefeito, banco, comércio etc.). De sorte que os cangaceiros, vindos pelo Alto da Conceição, teriam que passar em frente ou próximo à nossa rua para atingir seu objetivo, o centro urbano.

Entramos na cidade deserta, a quase totalidade da popu-lação havia se retirado. Descarregamos a carroça, fomos jantar e ainda estávamos à mesa quando começou o tiroteio. Eu e meu irmão Joãozinho saímos para a calçada para ver a briga. Recolhemos várias pessoas da família Eufrásio, com mulheres e crianças, que vieram se abrigar em nossa casa. Tanto a nossa casa como a deles ficava próximo à linha férrea, por onde passa-riam os cangaceiros, sendo que a deles era de paredes de taipa, vulnerável às balas de fuzil.

O tiroteio foi se aproximando, as balas começaram a zoar nos nossos ouvidos, até que uma encravou-se na parede, muito perto de nossas cabeças. Foi quando resolvemos entrar e fechar as portas. Alguns minutos depois, os cangaceiros passaram em frente ao leito da estrada, atirando e cantando “mulher rendeira”.

A fuzilaria durou toda a noite. As mulheres e crian-ças acomodaram-se num quarto e os homens na sala. Assim passamos toda a noite, acordados, ouvindo o pipocar intermitente. Pela manhã, cessado o fogo, saímos para ver o resultado e encontramos grupos de defensores da cidade arma-dos de fuzis. Ficamos sabendo o resultado da refrega, o ataque

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tinha sido rechaçado, Lampião se retirara para os lados do Ceará, deixando morto o “cabra” Colchete que foi arrastado até o patamar da Matriz. Logo depois foi encontrado ferido com dois balaços, o famoso Jararaca, que foi preso e trazido para a cadeia. Dias depois, foi retirado da prisão, alta noite, e levado para o cemitério, algemado e ali apunhalado e jogado, ainda com vida numa vala previamente cavada.

Foi voz corrente que não esperaram o seu último suspiro que foi abafado pela terra jogada às pressas sobre o corpo agoni-zante. Os autores do trucidamento alegaram que o mesmo lhes aconteceria, caso os cangaceiros viessem a triunfar. A vingança estava, assim, consumada por antecipação. Com essa justificati-va, “os defensores da ordem e da lei”, por suas próprias palavras, se nivelaram aos que eles mesmos chamavam de bandidos.

A verdadeira história do Brasil ainda não foi contada. Com exceção de fragmentos contidos em livros esparsos, muitos deles difíceis de serem encontrados nas livrarias, o que existe de nossa história é aquela versão oficial ou oficiosa, bonitinha, superficial, “cantiga de ninar”, ensinada nas escolas. Nessa falsa história, a independência do Brasil foi obra de um gesto altruís-tico do imperador Pedro I, a abolição da escravatura foi um ato magnânimo da princesa Isabel, a proclamação da República foi uma dádiva que o marechal Deodoro da Fonseca, bondosamen-te, espargiu sobre as cabeças dos brasileiros.

O povo, com suas lutas heroicas, com seu imenso sacri-fício, com suas vidas imoladas nos milhares de quilombos, na cabanagem amazônica e na cabanada do Nordeste, na balaiada, na Confederação do Equador, na revolução praieira, na guerra dos Farrapos, em todas as revoluções e levantes dos séculos passados e deste século, o povo – o herói principal desse grande drama – não entra em cena, é esquecido.

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Para que não se diga, no entanto, que ele foi totalmente desprezado, lembraram-se de Tiradentes. Na praça que tem o seu nome, no Rio, bem perto do local em que ele foi enforcado, ergueram uma estátua... De Tiradentes? Não. De D. Pedro I...

A nova “Faculdade” na qual, voluntariamente, ingressei e que passei a chamar de Faculdade Revolucionária do Povo – FRP –, não me ensinava mentiras. Suas aulas eram práticas, reais, verdadeiras. Nada exigia de mim, a não ser uma dose muito grande de esforço e sacrifício, coisas que me acompanha-ram e que, por conseguinte, eu não poderia estranhar. Exigia também, que eu fosse, essencialmente, autodidata, ou seja, eu devia ver, ouvir e sentir tudo o que se passasse em volta de mim e procurar compreender e tirar minhas conclusões. Eu devia usar a cabeça, o raciocínio, não de forma parada, como um mero espectador, mas de maneira atuante, participante.

O que eu via em torno de mim? Milhões de seres humanos vivendo em condições de extrema penúria e atra-so, sem o mínimo de conforto e de assistência; as populações rurais vegetando como animais, dizimadas pelas endemias, a desnutrição devastando, de preferência a infância, enquanto, nas cidades, o operariado não tinha lei que lhe protegesse a vida e o trabalho.

Via também as lutas titânicas do povo para melhorar suas condições de vida e a repressão brutal que, consequente-mente, se desencadeava. As invasões nos sindicatos, as prisões, os espancamentos, os assassinatos, as deportações para Ilha Grande, para Fernando de Noronha e para a Clevelândia, onde morriam de beribéri, doença causada pela deficiência alimen-tar. As masmorras espalhadas, por esse Brasil afora, sempre lotadas e sempre prontas a recolher e a devorar novas vítimas.

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A FRP me ensinava – e no mundo inteiro os fatos confirmavam – que só com a organização e com a luta esse estado de coisas poderia mudar. Passei a escrever em jornais da capital debatendo os problemas que nos afligiam. Procurei criar organizações sindicais e partidárias. Os primeiros resul-tados começaram a surgir. Grupos de operários salineiros, da construção civil e de outras profissões me procuravam para discutir as bases de sua organização.

Elementos das classes dominantes passaram à contraofensiva.

Não tardaram as ameaças, coisas que não me assustavam. Foi se tornando, contudo, mais difícil arranjar trabalho e esse tipo de represália tornou minha vida mais difícil.

Houve uma reunião de família. Nessa reunião foi decidido que eu iria me transferir para a capital do vizinho Estado do Ceará, onde iria ocupar novo posto, em terreno mais amplo, na luta libertadora. Enquanto isso, o núcleo já existente continua-ria o trabalho já iniciado. Em cumprimento da decisão tomada, eu e minha companheira partimos de imediato.

O primeiro emprego que arranjei em Fortaleza foi nas oficinas gráficas do Correio do Ceará. Depois trabalhei, em outras oficinas como tipógrafo e esta profissão tornou-se mais tarde de grande utilidade para o Partido, quando passei a exer-cer este ofício e a formar novos quadros profissionais, sem nenhum egoísmo. Quanto à moradia, como não podia deixar de ser, foi um bairro pobre que me acolheu, uma favela que existia por trás da rua Benfica.

O rumo do sindicato estava traçado, não havia outro caminho a seguir. Era necessário e urgente despertar, na cons-ciência daqueles companheiros, a noção do seu valor, de sua

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força e de seus direitos, congregá-los em organizações de classe, nas quais suas reivindicações fossem debatidas e defendidas.

O Sindicato da Construção Civil foi o ponto de partida para essa campanha de organização. Fomos às portas das fábri-cas e aos bairros operários, a palavra sindicato caiu como uma voz de comando há muito esperada. Dentro de pouco tempo, conseguimos agrupar núcleos fortes do operariado têxtil, dos transportes urbanos, dos gráficos, alfaiates, padeiros, empre-gadas domésticas e outros.

Os comícios nos bairros e na praça de Pelotas torna-ram-se célebres, à voz dos líderes operários juntava-se a pala-vra vibrante dos tecelões. Cada discurso era um depoimento surpreendente sobre as condições de vida do povo trabalhador, era um libelo candente contra uma sociedade que relegava à condição de simples páreas aqueles que construíam toda a sua riqueza e o seu patrimônio.

As primeiras assembleias foram realizadas na sede do sindicato da construção civil, na praça Coração de Jesus. Depois foi preciso alugar um casarão, na rua 24 de Maio, antigo conven-to de freiras e lá passaram a funcionar todos os sindicatos novos e o Bloco Operário Camponês, organização de âmbito nacional cuja direção central estava na capital da República.

Nessa ocasião, passamos a editar um semanário “Voz Proletária” do qual eu era diretor, acumulando as funções de tipógrafo, impressor, revisor e xilógrafo. Muitas falhas devem ter saído nesse despretensioso jornal, mas ele expressava bem os sentimentos e os anseios da época e desempenhou, brava-mente, a sua função de procurar unificar a classe operária em torno de um ideal comum, que era o desejo de uma vida digna e melhor para os que trabalham.

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A experiência adquirida com esse jornal foi de grande proveito, pois tive mais tarde que repetir essa proeza em outros lugares, em Natal, no Rio, em São Paulo e na Bahia, quando o famigerado Estado Novo nos forçou a confeccionar jornais clandestinos, tendo que fazer títulos e cabeçalhos gravados em madeira, à canivete, para suprir a falta de tipos para os mesmos e em condições mais difíceis que se possa imaginar.

Como sempre acontece, o nosso trabalho não demorou a inquietar os poderosos e a reação começou com uma campanha difamatória contra as organizações nascentes. Dentre muitas coisas absurdas que eles diziam nessa campanha, uma provocou muitos risos nos meios operários, a de que estávamos à serviço do “ouro de Moscou”. Que excelente imaginação a desses senho-res! – diziam uns. É preciso ter muito “crânio” para idealizar uma coisa dessa. O Gomes, um operário que estava sempre a pilheriar, saiu-se com esta: “Quem sabe se esse ouro de Moscou não está vindo mesmo e “Eles” estão roubando no caminho?” Acrescentava irônico: “Quem disso cuida, disso usa”.

Neste clima de entusiasmo e otimismo, o nosso traba-lho de arregimentação continuou a progredir, as adesões eram frequentes, o nosso prestígio crescia nas fábricas e nos bairros, confirmando todas as nossas previsões.

A minha preocupação fundamental era a organização do Partido Comunista. Eu estava consciente de que a existência de um partido marxista-leninista era condição indispensá-vel para o desenvolvimento das lutas da classe operária e do povo laborioso em geral. Em conversas particulares, procurei sondar o ambiente e fiquei sabendo que já havia sido criado um Comitê Regional do PC, por iniciativa do operário (pedreiro) José Joaquim de Lima, mas deixara de funcionar.

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Partindo desses dados, não foi difícil o meu trabalho. Dentro de pouco tempo, estava funcionando o novo CR e as primeiras células foram estruturadas entre os têxteis, gráfi-cos, construção civil, transportes urbanos etc. A partir daí, passei a ter mais confiança e firmeza em nossa organização, em nossas forças.

Um dos redutos onde a exploração e a ganância se faziam sentir com mais desfaçatez era a Light, a famosa companhia de capitais estrangeiros.

Muitas fábricas e empresas nacionais, especialmente as de pequeno porte, compreenderam a justeza de nosso movi-mento, passaram a tratar com mais respeito seus servidores e a atender em alguns casos, seus justos reclamos. Criava-se, então, nessas pequenas indústrias, um ambiente de entendimento e cooperação entre empregados e patrões. A Light, senhora absoluta e poderosa, fez ouvido de mercador às reivindicações operárias, manteve-se intransigente a todo e qualquer apelo de melhoria de salário, os memoriais aprovados em assembleias sindicais e enviados a Companhia não eram tomados sequer em consideração. Esgotados todos os recursos persuasórios, resolveram os operários, em assembleia geral, apelar para o último recurso, a greve. Esta foi declarada, os bondes parali-saram, afetando a vida da cidade. Um Comitê de Greve passou a funcionar na sede dos sindicatos. A solidariedade do povo surgiu generosa e eficiente.

Diariamente saíam “bandos precatórios” dos grevistas, conduzindo pelas ruas da cidade, as bandeiras nacional e do sindicato solicitando ajuda. Nas bandeiras “choviam” donativos em dinheiro e mercadorias. Na sede dos sindicatos, caminhões paravam à porta e descarregavam sacos de feijão e farinha que os comerciantes enviavam para os grevistas. Açougueiros

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mandavam bandas de boi, das padarias vinham balaios cheios de pão, todas as manhãs.

A sede do Sindicato era um torvelinho contínuo. Era impressionante a solidariedade da população com o movimento paredista e não me recordo de outro movimento em que essa manifestação de apoio tenha sido superada.

Fui incumbido da publicação de um “Boletim de Greve” que saía diariamente, dando conta do movimento, estimulando e exortando os operários a prosseguirem na greve até a vitória final. Parte da imprensa colaborou com os grevistas, desta-cando-se O Ceará, diário de Matos Ibiapina, e essa ajuda muito influiu no resultado da parede, que terminou com a vitória das justas reivindicações operárias.

Uma surpresa, todavia, estava reservada aos trabalhado-res. Terminada a greve, quando o trabalho retomava seu ritmo normal, começaram as represálias por parte da companhia imperialista, que passou a despedir aos poucos os funcionários que mais se destacaram no movimento. Como não havia, nessa época, leis de estabilidade no trabalho, velhos servidores que passaram toda vida a enriquecer o truste do transporte urbano e da energia elétrica, viram-se de repente postos na rua sem nenhuma indenização.

Com essa dura experiência, o operariado aprendeu a necessidade de cerrar fileiras em torno de seus líderes diante da falta de escrúpulos por parte dos exploradores estrangeiros. A união e a firmeza constituem sempre uma força poderosa de que dispõe a classe operária para fazer valer os seus direitos. Tudo o que de útil se conseguiu até hoje, nessa longa trajetória, deve-se a essas duas palavras mágicas, sempre que elas foram postas em prática.

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Certa manhã, quando me dirigia ao trabalho, fui abor-dado por policiais. Um deles disse-me que o delegado “fulano” desejava falar comigo convidando-me a acompanhá-los até a delegacia. Compreendendo que tal convite era uma variante mais educada da célebre expressão “esteja preso”, não tive dúvi-das em seguir tão má companhia.

Ao chegar no Distrito que também era sede da Guarda Civil, não fui apresentado a nenhum delegado, mas, simplesmen-te, trancado num xadrez, sem explicações. Não havia no cubículo nenhum móvel, nem água, nem instalações sanitárias. Procurei acomodar-me no chão cimentado e aguardar os acontecimentos.

As horas foram se escoando, a noite já se aproximava e nenhuma refeição me foi servida – eu estava com o café da manhã – o estômago começou a reclamar falta de alimentos. Havia, ao lado, um cubículo com vários presos comuns, eu perguntei a um deles se “naquela casa” não se costumava comer. Ele respondeu que nos dois primeiros dias não era costume “a casa” fornecer comida aos presos. Ele não sabia explicar se era por medida de economia ou se era um meio hábil de provocar a voracidade dos detentos, a fim de que pudessem engolir, sem vômitos, a horrível boia que teriam de enfrentar mais tarde.

Procurei botar em prática a filosofia fatalista contida no velho provérbio que, ouvi de meus avós: “aquilo que não tem remédio, remediado está por natureza”. Deitei-me no chão e esperei que o sono me apaziguasse o estômago e o espírito.

Quem já esteve preso sabe que o pior de uma prisão são as primeiras horas de seu começo e as últimas de seu fim. No primeiro caso, a emoção é causada pelo impacto e pela frustra-ção de quem acaba de perder a liberdade. No segundo, é pela ansiedade de quem está prestes a recuperá-la. Nessas horas é que o sono foge e a imaginação trabalha desordenadamente.

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Eu procurava dormir, mas não conseguia. Coisas que numa situação normal seriam para mim claras e corriqueiras, apresentavam-se, no meu pensamento, como absurdas, incom-preensíveis. O fato de que pudesse haver indivíduos que, na defesa de seus privilégios de classe, fossem capazes de praticar as maiores vilanias, me parecia, naquela hora, uma incoerência, um absurdo. Procurava fazer um paralelo entre a abnegação, o desprendimento e o heroísmo dos revolucionários que lutam por um mundo melhor e o egoísmo, a mesquinhez e a cruelda-de dos que defendem um regime injusto, iníquo e caduco e a disparidade crescia de tal forma na minha imaginação, que eu chegava a crer que estava exagerando. O esforço mental que eu fazia levou-me ao cansaço e este ao sono.

O segundo dia de prisão transcorria sem alteração, a fome aumentava, um prolongado silêncio se apoderou do cubículo ao lado, todos pareciam dormir um sono hibernal. Ouviam-se apenas os passos dos guardas no corredor e suas vozes de quando em quando.

À tarde, dentre os guardas que passavam em frente ao cubículo vi um a quem conhecia do Rio Grande do Norte. Chamei-o pelo nome, ele mostrou-se surpreso ao ver-me naquele estado, saiu à rua voltou e fez passar um pão pelas grades. Também se prontificou a levar ao conhecimento de minha família a minha situação e o meu paradeiro, o que real-mente fez, em boa hora, pois eu estava como desaparecido, uma comissão de líderes sindicais andava a minha procura pelos distritos, inclusive naquele em que eu realmente estava e todos negavam a minha detenção.

Descoberto o meu paradeiro, a trama policial caiu por terra. Era quase noite quando fui levado à presença do tal dele-gado. Sentado no seu “bureau”, tinha na mão um folheto que eu

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reconheci ser um que eu publicara há poucos dias, com minha assinatura. Nesse folheto, eu falava da situação dos trabalha-dores e concitava-os a ingressarem nos seus sindicatos, único caminho seguro para a solução de seus problemas.

Mostrando-me o folheto, o delegado – que parecia bem-humorado – iniciou o que seria, talvez, a tal conversa para a qual eu fora convidado: “Senhor Reginaldo, eu gostei do seu livrinho. O senhor escreveu com alma e tudo o que o senhor diz aqui é a pura verdade. “Mas”, (nesse “mas” estava o xis do problema) o senhor há de compreender, nem toda verdade deve ser dita. O mundo sempre foi errado e continuará sendo errado e não seremos nós que haveremos de endireitá-lo. O que o senhor diz, embora esteja certo, não convém que o diga. O senhor é bem-intencionado, mas está com isso fazendo perigosa agitação, está lutando por um ideal impossível”.

Eu estava surpreso com aquelas palavras. O delegado parecia disposto a puxar conversa, mas eu ou por uma natural desconfiança ou pelo mau-humor que me provocara os dois dias de fome no xadrez, fiquei mudo diante daquela loquacidade. Por fim, diante do meu mutismo, parou, olhou-me por algum tempo com certa curiosidade e disse que eu estava livre e que podia ir embora. Como naquele momento era este o meu único desejo, não esperei que ele repetisse a ordem, fui dando o fora daquele recinto, antes que ele se arrependesse. Quando cheguei à rua respirei fundo o ar puro da liberdade.

Na sede dos sindicatos, fui recebido por inúmeros compa-nheiros e fiquei sabendo o que ocorrera. Uma comissão de representantes sindicais saíra a minha procura, providenciara um habeas corpus, percorrera as redações dos jornais e inicia-ra uma campanha em minha defesa. Antes que o movimento tomasse maior vulto, resolveram libertar-me.

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É evidente que a “filosofia panglossiana” do delegado não podia me convencer. O meu raciocínio deve ser demasiadamente simplista, pois eu não podia alcançar a “razão suficiente” pela qual tudo que estava acontecendo tinha que ser assim mesmo, não podia compreender precisamente por que as coisas não podiam ser de outra maneira. De acordo com aquelas esdrúxu-las teorias conformistas e conservadoras, “o presunto foi feito para que afortunados barões o saboreiem e se fartem a vida toda”. A fome... bem, a fome existe para que milhões de seres sintam as suas convulsões.

Isso é muito bom para quem vive nas torres do caste-lo apreciando o desfilar interminável dos párias, mas, para os párias, propriamente ditos, não há argumento por mais engenhoso e eloquente que seja, capaz de convencer de que vivemos no melhor dos mundos e que é perigoso pretender transformar o regime injusto e desumano em que vivemos. A lei da sobrevivência, do instinto, que fala mais alto. A própria espécie humana teria deixado de existir não fora a luta constan-te que desde os seus primórdios vem sustentando contra tudo o que possa constituir um obstáculo à sua existência, a marcha inexorável de seu progresso.

Eu estava com os párias, era um deles, sofria com eles. Nós queríamos “viver”, precisávamos “viver”. A vida, na verdadeira acepção da palavra, não podia ser privilégio de uns, ainda mais tomando-se em conta que os párias eram justamente a classe produtora, que tudo constrói. A compreensão de seus direitos e de seu valor começava a despontar na consciência do povo, já começavam a chegar adesões do interior, a nossa responsabili-dade aumentava, era preciso atender aos pedidos de orientação e ajuda que nos faziam das cidades mais próximas.

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O PC, com sua linha política marxista-leninista, já tinha sido reorganizado e passou a assumir o seu posto de vanguarda. Na zona noroeste, tendo por base Sobral e Camocim, esboçava--se um movimento unificador, de lá veio um pedido para que enviássemos uma pessoa para orientar na criação de sindicatos e comitês. O assunto foi debatido em reunião e eu fui designado para ir a essas cidades prestar assistência. Dentro de algumas horas, eu deveria estar pronto para partir, no desempenho de minha tarefa. E isso aconteceu.

Acomodei-me num ônibus que fazia a linha Fortaleza-Sobral e aguardei a partida. Em breve, o velho carro estava avançando pela estrada poeirenta. De um lado e do outro, a paisagem ia, vagarosamente, surgindo e vagarosamente ficando para trás, sempre se renovando nos detalhes, mas mantendo o mesmo aspecto de terra devastada, esse já tão conhecido aspecto de pobreza estampado em tudo, no homem esquelético e andrajoso, nas crianças barrigudas, nos magros animais, nos mocambos cobertos de palha, no que fora outrora um roçado, na vegetação garranchenta e queimada pelo sol, nas ossadas de animais, nas cruzes que surgiam aqui e acolá na beira da estrada.

Era como se estivéssemos assistindo ao desfilar intermi-nável de enfermos – a natureza, homens e animais morrendo aos poucos, sem assistência e sem amparo. Enquanto o coletivo avançava na estrada, eu refletia: e dizer que sob os nossos pés está uma das mais ricas terras do mundo! Por quanto tempo ainda teremos que ver e sentir essa calamidade? Entra governo e sai governo, todos prometem tomar providências e solucionar o mal e o que se vê é a situação se perpetuar e se agravar.

Eu ia com a missão de fazer chegar a esses compatrio-tas uma mensagem de fé e de esperança, fazer com que eles

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compreendessem que nem tudo estava perdido, que o nosso destino estava em nossas próprias mãos. Era uma tarefa dificí-lima, não dispúnhamos de meios nem de recursos para difundir a nossa palavra, tínhamos que agir como modernos apóstolos, num trabalho persistente, individual, de persuasão.

Não me recordo quanto tempo durou esse penoso desfilar de imagens doentias, sei que finalmente surgiram as primeiras casas da cidade de Sobral, de aspecto bem diferente: limpa, com residências confortáveis, com um centro comercial movimenta-do, como se ali morasse uma elite vivendo à parte, em completo contraste com o ambiente desolador que a circundava.

Procurei me ligar aos companheiros ali residentes e fiquei sabendo, por meio deles, que a cidade estava cheia de boatos de um levante em Camocim, que tinha seguido para lá um contingente da Polícia Militar, apurando-se mais tarde, que tudo fora mentira, não passara de um pretexto para prisões e perseguições ao movimento de organização que se iniciava.

Tratei de seguir para a região falsamente conflagrada. Eu deveria tomar um trem pela manhã para Camocim. Quando já estava na plataforma da estação, vieram a mim quase correndo esbaforidos, um civil e dois soldados e me deram voz de prisão.

O policiamento da cidade estava sob a chefia de um subdelegado atrabiliário que fez grande estardalhaço com a minha detenção, como se tivesse posto a mão no indivíduo mais perigoso do mundo. Fui recolhido a um xadrez da Casa de Detenção e ali fui informado pelos presos comuns de que o verdadeiro delegado major Firmo, estava ausente e que, ao contrário de seu substituto, era homem ponderado, segundo a opinião dos mesmos informantes. Uns dois dias depois ele chegou, assumiu o posto e mandou pôr-me em liberdade.

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A vida continuava nesse ritmo agitado, quando recebi uma carta do Rio Grande do Norte comunicando a minha convo-cação para o serviço militar. Isto significava que eu tinha que deixar Fortaleza onde já residia há cerca de dois anos, onde já me ambientara e formara meu círculo de companheiros e de amigos. Além disso, eu gostava dos nossos vizinhos cearenses, do seu espírito comunicativo, franco e solidário, mas não tinha outro jeito. Dirigi-me à minha cidade natal, lá me apresentei às autoridades responsáveis e aguardei as passagens para seguir, com outros recrutas, para a capital do Estado, onde estava sediado o 29 B.C.

Já estava pronto para seguir quando rebentou a chamada “revolução de 30”. As aspas em “revolução” significam que o conceito que tenho desse vocábulo é bem diferente do que foi aquele movimento. Revolução, para mim, é todo movimento armado que visa a tomada do poder de uma classe que já desem-penhou sua missão histórica e a sua substituição por outra de conteúdo revolucionário e progressista, ou ainda, os movimen-tos que visam a libertação de um povo oprimido e subjugado por potências estrangeiras, as chamadas “revoluções libertadoras”.

No movimento de 1930, o que houve foi uma simples troca de homens no poder, um grupo de fazendeiros cedeu lugar a outro grupo de fazendeiros, a hegemonia dos latifun-diários manteve-se em toda a linha, não me consta que tenha havido sequer uma simples reforma agrária ou que tenham tomado alguma medida visando à libertação de nosso país do jugo imperialista. Ao contrário, novos compromissos e novos onerosos empréstimos foram contraídos, o domínio dos trustes internacionais continuou. O que houve em 1930 foi a maior farsa de que se tem conhecimento em nossa história, o início da hegemonia dos trustes norte-americanos, em detrimento

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da hegemonia do capitalismo inglês, que até então dominara, absoluto, o país.

Deixemos de parte as divagações e voltemos à narrativa. A cidade amanheceu repleta de boatos. O movimento irrompera em todo o país, tropas gaúchas, conforme diziam, faziam misérias por onde passavam, os “perrepistas” estavam sendo passados pelas armas e os comunistas passavam por maus lençóis.

Um juiz de direito, conhecido inimigo da Aliança Liberal, para se pôr em boa situação com a “revolução” vitoriosa, perdeu a dignidade, juntou-se a um grupo de desclassificados e saíram todos, armados de paus, dando caça aos “extremistas”. Cenas degradantes, indignas de um representante da justiça, que deveria se colocar em posição bem mais elevada, acima das paixões políticas e fora das arruaças.

Vieram me avisar que “determinada pessoa” havia espalhado o boato e denunciara que me vira à frente de um grupo armado, avançando não sei em que direção nem contra quem. Não dei importância ao boato idiota e sai à rua ver o que se passava. Quando cheguei ao centro da cidade, fui “cercado” por um grupo de capangas armados de rifles, extravasando bravura por todos os poros. Esses valentões de tristes figuras não se envergonharam em exibir um arsenal para prender um homem sozinho e desarmado, que nunca passara sequer por uma escola de luta livre.

Compreendi logo que se tratava do mesmo truque do juiz, isto é, “perrepistas” que “viraram a casaca” em cima da hora e procuravam se pôr à salvo de possíveis represálias por parte dos liberais e garantir suas posições de mando. Fui levado até a sede dos Correios e ali fiquei detido até a chegada das forças da “Aliança”. Havia uma confusão de autoridades, não se sabia

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bem quem era governo, se os “carcomidos” ligados ao regime deposto ou se a gente que acabava de vencer.

Com a chegada das tropas (uns duzentos homens, em vez dos cinco mil propalados) a situação se esclareceu. José Otávio, Amâncio Leite e outros, os legítimos liberais, se manifestaram contra aquela farsa grotesca e eu fui posto em liberdade.

No dia seguinte, parti para Natal, a fim de servir nas filei-ras do Exército. No quartel do 29 BC, onde me apresentei, notei que havia uma movimentação interna fora do comum, um entra e sai contínuo, que interpretei como consequência das mudanças do governo decorrentes da “revolução”. Com isso, o engajamento dos recrutas convocados ia sendo protelado. Enquanto esperáva-mos, íamos participando do “rancho” e do exercício que um cabo ia dirigindo, para “desenferrujar as juntas”. Um belo dia, fomos informados de que os recrutas casados estavam dispensados do serviço militar. Eu estava enquadrado nessa dispensa. Arrumei a trouxa e voltei para a minha “vidinha” de civil, já que, como soldado, fui julgado desnecessário.

O partido achou necessária a minha atuação no Rio Grande do Norte e, em decorrência de uma resolução nesse sentido, passei a residir em Natal, nas Rocas, o bairro dos operários e pescadores.

Numa Conferência realizada pelo Partido, em Natal, fui eleito membro do novo Comitê Regional – assim eram chamados, naquele tempo, o que hoje designamos por Comitês Estaduais – com a função no Secretariado, de agitação e propaganda (agit-prop). Essa função agit-prop me agradava. Eu já a exercera no Ceará e passou a se repetir na minha atividade partidária pelo fato de eu ser tipógrafo, o que facilitava o desempenho do cargo, no que se refere à sua parte prática. Conforme o Partido Comunista havia denunciado previamente, o novo

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governo instituído pela chamada “revolução” de 30 continua-va indiferente à sorte do povo trabalhador, a sua política era continuação da defesa dos latifundiários e fazendeiros do café, era a continuação dos empréstimos e da penhora de país aos trustes estrangeiros, particularmente ao imperialismo ianque. O povo? O povo que se arranje.

Nessa época, fomos encontrar o senhor Café Filho no posto de chefe de Polícia do Estado. Já não tínhamos, diante de nós, aquele “oposicionista” que combatia de inflamados discursos, os “desmandos” do governo e com quem, alguns anos atrás, tentamos fazer frente única na defesa da classe traba-lhadora. Agora, ele fazia parte do próprio aparelho estatal, na sua função mais clara e mais chocante, incumbido que era da manutenção a qualquer preço, da ordem e das instituições do regime implantado com a referida “revolução” de 30, e que iria descambar na cruenta e odiosa ditadura neofascista do Estado Novo. De nossa parte, o compromisso que tínhamos era com a nossa classe, com a nossa consciência, com o povo laborio-so. E pusemos mãos à obra, ao trabalho de conscientização e organização sindical. Eu, José Praxedes, Epifânio Guilhermina, Agostinho, Aristides Galvão, Acrísio e vários outros operários lançamos as bases da União Geral dos Trabalhadores, começan-do pelo setor ferroviário e pela Força e Luz Nordeste do Brasil, cujos sindicatos estavam em fase de organização. A União Geral funcionava no Alecrim e um jornalzinho “O Proletário”, passou a circular semanalmente.

O que estava acontecendo no Rio Grande do Norte não era um caso isolado. No país inteiro, uma grande parcela da massa popular começava a se dar conta de que caíra no “conto do vigário”, com aquela farsa da “revolução” de 1930. De sorte que os nossos apelos para a organização não tardaram a ser

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atendidos e à sede dos sindicatos afluíam trabalhadores em número crescente. Isto amedrontou os governantes e a repres-são não tardou a entrar em ação.

Como dissemos, o senhor Café Filho era o chefe de polí-cia e não o era por acaso. O seu reduto era o Sindicato dos Estivadores. Noutros setores o seu prestígio fora abalado desde que mandara prender um líder operário por divergir de sua política. Isto, porém, foi uma pequena amostra do que iria acontecer mais tarde. Sentimos, desde então, que os nossos passos estavam sendo vigiados, tipos suspeitos surgiam por toda a parte, destacando-se o “tira” João Nunes dos Reis, conhe-cido pela alcunha de Maria Gorda.

Tornava-se cada vez mais evidente a tendência de certos setores responsáveis pelos destinos de nosso país a reprimir pela brutal violência as lutas populares, substituindo as leis que eles mesmos elaboraram pelo regime da força, do arbítrio. Isto sempre acontece em toda a história do sistema capitalista, nos momentos de crise, quando a situação do povo se agrava, quando aumenta o desemprego, quando as lutas populares começam a surgir, as camarilhas dominantes sentem-se amea-çadas e inseguras, passam a não confiar mais nas formas de dominação até então em vigor – as chamadas democracias burguesas – e, através de um golpe de estado implantam a ditadura. O que o povo chama, na sua pitoresca linguagem, de “apelar para a ignorância”.

Acontece ainda que, nessa época, o fascismo – a forma mais bestial que se conhece da dominação capitalista – começa-va a se expandir pelo mundo, a partir da Itália e da Alemanha, constituindo-se num estímulo para os apologistas dos regimes de força dos países subdesenvolvidos, como o Brasil.

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O senhor Café Filho, que iniciara sua carreira política com apelos demagógicos aos trabalhadores, enveredou pela trilha da repressão e as prisões e deportações não tardaram.

A gente humilde do Nordeste é de uma grande simplici-dade na exteriorização de seus sentimentos. Um olhar ou um gesto singelo é suficiente para revelar um mundo de paixões, tanto nas horas de felicidade como nas de amargura. É um povo que se habituou a conter suas emoções. As manifestações espalhafatosas, tão comuns noutras paragens, são gestos raros ali, onde uma palavra oportuna e expressiva tem, muitas vezes, o valor de um discurso.

Apesar dessa característica simplória, oriunda do meio em que fomos criados, quem nos visse naqueles dias de setem-bro de 1932 não teria dificuldades em perceber a alegria que tomara conta de nossas vidas, suplantando as preocupações de uma existência árdua e incerta. Isso porque, em nosso lar, nascera uma filha – esse fato por si só já diz tudo – a presença de um recém-nascido parece nos trazer novo estímulo, a gente sente reviver, tem a responsabilidade e a esperança em dias melhores, a fantasia toma conta de nossa imaginação.

Esse estado de espírito nos assaltara, nós vivíamos naque-les dias embalados por sonhos e projetos e sonhar acordado é uma forma de suavizar a vida.

Depois de um dia de trabalho intenso, era com alegria e ansiedade que eu me dirigia para casa, com o pensamento volta-do para aquele pequenino ser que há dias transformara nosso lar num mundo à parte. Uma noite, quando cheguei próximo à minha residência, deparei-me com João Reis e outros policiais em atitude de expectativa. Há dias que eles andavam rondando nas imediações em franca espionagem, mas a consciência de

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que nenhum crime havia cometido me deixava tranquilo, não lhes dei importância.

De nada valeu essa tranquilidade. Ali mesmo fui preso e levado para a delegacia. Minha casa foi invadida. João Reis obrigou minha esposa a se levantar da cama – ainda cumpria resguardo de um parto difícil – e isso para que ele farejasse o colchão a procura de manifestos inexistentes. Essa ignomínia era apenas uma parte de outras idênticas que, nessa mesma noite, estavam sendo levadas a efeito em outros lares – no de José Praxedes, no de Agostinho e no de Acrísio – seguidas de inúmeras prisões.

Há poucos minutos eu caminhava para casa, feliz, o pensamento voltado para minha família e agora eu marchava em silêncio para a prisão, amargurado e enojado. Aquele estado de espírito confiante que há pouco me embalava, aquele otimis-mo que me fazia ver subjetivamente o céu mais azul, a natureza mais bela transformara-se não mais em revolta – o fato de ser preso já ia se tornando coisa banal, mas, simplesmente, em asco. Eu me sentia como se me tivessem poluído as vestes com algo fétido. Quando me fizeram entrar num xadrez escuro da dele-gacia das Rocas, não pude deixar de murmurar: “Há qualquer coisa de podre no reino da Dinamarca”. A porta de ferro do cubículo foi fechada atrás de mim e o seu ruído característico ecoou no silêncio da prisão.

Há uma particularidade nos fatos ocorridos nessa ocasião que vale a pena mencionar. As cenas descritas anteriormen-te transcorrem no mais absoluto silêncio. As poucas palavras a mim dirigidas não passaram de ordens secas: Vamos! Siga! Entre! Nenhuma explicação ou pergunta me foi formulada. O lógico seria que me dissessem de que espécie de delito eu era

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acusado e caso eu tivesse realmente cometido tal delito, que eu respondesse por ele na forma da lei.

Esperei em vão pela hora em que fosse chamado a prestar contas dos meus atos ou a ouvir as acusações que me seriam feitas, para que eu tivesse a oportunidade de apresentar as minhas razões e a minha defesa. Eu não podia entender os motivos dessa esquiva. Cheguei a pensar que eles estivessem com vergonha dos seus atos ou que estivessem com medo de um confronto na qual eu passasse de acusado a acusador, com possível repercussão na opinião pública.

A primeira hipótese – a da vergonha – risquei imedia-tamente de minhas conjecturas, por achá-la completamente absurda. Restava a segunda, a do receio de um confronto pelos resultados negativos que lhes pudesse causar perante a opinião etc. etc. Achei esta suposição mais plausível e nela me firmei, mas restava ainda outro problema importante a resolver, “o da nossa libertação”.

Com o péssimo e atávico costume de raciocinar que me acompanha desde criança (isto parece lógico, mas há pessoas que embora tenham essa preciosa faculdade parecem não gostar muito de usá-la), botei a cabeça para funcionar. Bem, visto não haver depoimentos, acusações nem formação de culpa, só pode-mos esperar que a qualquer momento nos mandem embora, tudo não passou de um lamentável engano. Nessa convicção também me fixei, muito embora a experiência nos aconselhasse a não confiar muito nesse tipo de gente que se arvora do direito de nos tutelar, mesmo contra a nossa vontade.

Depois de uns quatro longos dias de espera, chegou finalmente a hora de sermos chamados. Pela manhã, a porta do cubículo se abriu e fui levado a uma sala em que já estavam os companheiros Agostinho e Acrísio. Mandaram-nos sentar e

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esperamos alguns minutos até que veio um senhor, provavel-mente, um delegado. Sentou-se no seu bureau, olhou-nos com atenção e com um gesto mandou que nos levassem sem nada nos dizer nem perguntar.

Fomos colocados num carro, sempre com a presença do policial João Reis a dirigir as operações e o veículo começou a rodar pelas ruas da cidade. Continuava aquele silêncio, nenhu-ma explicação nos foi dada nem ninguém ousava indagar.

No princípio, eu pensei que íamos ser postos em liberdade, mas, desde o momento em que nos mandaram entrar no carro, achei que seria demasiada gentileza se eles nos mandassem para casa de automóvel. Que significava aque-le passeio pela cidade? Talvez fôssemos a outra repartição da polícia preencher alguma formalidade. Depois disso, então sim, nos mandariam embora.

Mas, que significava aquilo? O carro agora estava rodando em direção ao cais do porto. Foi nessa ocasião que um pensa-mento me assaltou: Será que estamos sendo deportados? Não. Não é possível. Estamos com a roupa do corpo, sem dinheiro, e eles seriam tão desumanos a ponto de não deixarem sequer que nos despedíssemos de nossas famílias?

Agora já não tínhamos dúvida. O carro chegou ao cais, fizeram-nos saltar e embarcar numa canoa acionada por remos, ela tomou a direção de um navio ancorado na barra.

A tensão nervosa aumentou ao máximo, a ansiedade e o rancor estavam estampados nos nossos semblantes. Não era mais possível continuar aquele silêncio. Indagamos o que significava tudo aquilo e a resposta foi lacônica: “Vocês vão ser deportados ... “

Tudo aconteceu como num relâmpago. Agostinho desfechou um tremendo soco na cara de João Reis. Este

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desequilibrou-se, quase tombou n’água, mas aprumou-se e o contragolpe veio numa coronhada violenta que abriu uma brecha na cabeça de nosso companheiro. Procuramos ir em seu auxílio, mas fomos segurados pelos policiais e no tumulto a canoa ameaçou virar. Era um gesto de mera solidariedade de nossa parte, pois, naquelas circunstâncias, qualquer reação seria inútil e somente uma explosão de nervos podia explicar aquela atitude.

Isso aconteceu já próximo ao navio. Daí a pouco, a canoa atracou no seu costado, subimos a escada e nos vimos diante de uma pequena multidão constituída de tripulantes e passageiros reunidos no tombadilho, donde assistia às cenas lamentáveis. O nosso aspecto era alarmante, roupas em desalinho, Agostinho todo ensanguentado e João Reis com um olho tapado pelo soco que levou.

O comandante do navio leu o papel que lhe foi entregue pelos policiais, mas recusou-se a receber-nos naquele estado. Falou em irregularidade, disse da sua responsabilidade, resol-vendo por fim ir à terra para se entender com as autoridades e resolver a situação.

Ficamos à espera, sempre cercados pela assistência que se formara, de passageiros e tripulantes do navio. Os olhares de espanto foram se transformando em gestos de simpatia, à medida que iam-se inteirando da nossa condição de presos polí-ticos e da maneira brutal como estávamos sendo deportados. No meio dos presentes, havia um rapaz com fisionomia de japonês que nos olhava com insistência, não dizia uma palavra, mas não arredava o pé dali.

Por fim, voltou o comandante. Ficamos sabendo que o nosso destino eram as prisões do Rio de Janeiro, de tenebrosa fama, e que um cabo e um soldado nos escoltariam até lá. Ao

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entardecer, o navio levantou ferros e transpôs a barra. O nosso adeus resumiu-se num olhar dirigido ao casario da cidade de Natal, que foi se distanciando, lentamente, até perder de vista.

À noite, descemos para o beliche de terceira classe que nos deram por homenagem. Ali reunidos, Agostinho foi dizen-do, à guisa de desculpa: “Sei que não devia ter feito aquilo, mas não pude me controlar. Aquele soco saiu sem me dar tempo a refletir”. Não se preocupe com isso, disse-lhe eu, realmente devemos ter calma nessas ocasiões, mas o que está feito, está feito. Talvez o teu soco ainda vá para história e a história seria muito monótona se não houvesse, vez por outra, um murro para variar.

Nisto entrou, no beliche, aquele rapaz, cara de japo-nês, que nos olhava com insistência no tombadilho. Trazia um embrulho debaixo do braço o qual nos entregou com um sorriso amável. Continha maços de cigarro e outros objetos de uso pessoal. Vinha nos trazer palavras de estímulo. Disse ser estudante no Pará, filho de Japoneses, mas nascido no Brasil. Ganhara uma bolsa de estudo e dirigia-se para o Rio. Iniciou conosco uma palestra interessantíssima, mostrando-se atraído pelas questões sociais. Citou as obras de Karl Marx e de Lenine que tinha lido.

Esse rapaz tornou-se um ótimo companheiro de viagem, procurava sempre uma ocasião em que os guardas se afastavam e vinha nos fazer companhia. A sua conversa elevada e agradá-vel era um conforto para nós naqueles dias de depressão. O seu nome, o seu paradeiro, tudo o tempo apagou, mas o seu gesto fraternal ficou na nossa memória para sempre como um símbolo.

A prisão flutuante continuava o seu trajeto rumo ao sul, a próxima escala seria Recife. Ali chegamos numa manhã. O navio só sairia no dia seguinte, acharam por bem nos entregar

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à guarda da polícia política pernambucana, não fossem os peri-gosos elementos fugir. Um carro nos transportou até a polícia central onde ficamos expostos durante horas diante de uma turma de “tiras”, para que ficassem nos conhecendo. À tarde, fomos transportados para um cubículo de uma delegacia, onde tivemos que dormir sobre bancos de pedra. No dia seguinte, fomos recambiados ao navio-prisão.

A viagem prosseguiu sem incidentes, em cada porto, a vigilância era redobrada, os agitadores vermelhos deviam ser lavados para bem longe para que as classes dominantes pudes-sem dormir seu sono tranquilo. A solução de um problema social resumia-se, no entender das autoridades, a um caso de polícia. Bastava prender e deportar alguns “cabeças” para que a paz voltasse a reinar e, se isso não bastasse, medidas mais drásticas seriam adotadas, contanto que nada viesse perturbar o sossego desses afortunados senhores.

Soubemos, mais tarde, que outro navio procedente de Natal seguia a mesma rota do nosso, trazendo outros deporta-dos, mais dois, se não me falha a memória. Parece ter havido um erro nos cálculos das autoridades. A deportação de três não lhes pareceu suficiente para garantir a paz no Estado e aumentaram o número para cinco.

A muitos poderá parecer ridículo que a chave da uma questão social de tal envergadura pudesse estar na simples prisão e de deportação de cinco operários, mas a triste realida-de residia no fato de que a desgraça se abatera sobre cinco lares, deixando famílias inteiras sem arrimo, crianças ao desamparo. Com isso, julgavam que estava salva a Pátria, pelo menos no Rio Grande do Norte.

Três anos depois ou melhor, em 1935, com a revolu-ção que tomou o poder por quatro dias naquele Estado, ficou

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demonstrado que o problema não era tão simples como supu-nham aqueles hábeis defensores da tranquilidade e da ordem.

Quando o navio atracou em frente a um dos armazéns do cais do porto do Rio de Janeiro, já investigadores nos aguar-davam junto à escada. Os dois policiais que nos escoltavam entregaram a estes um envelope e dali fomos levados à Polícia Marítima, na avenida Rodrigues Alves. Lá, encontramos os policiais numa grande bebedeira, comemorando o término da revolução paulista, que coincidiu com o dia de nossa chegada.

Os montes de garrafas vazias pelos cantos, a tremen-da algazarra e as expressões congestionadas dos convivas tornavam o ambiente opressivo, de franca irresponsabilidade. Sentados num banco, nós aguardávamos o nosso destino. Nisto um “tira”, completamente embriagado, sacou de um revólver e, apontando o cano no meu rosto bradou: “Então vocês são comunistas e andam reclamando liberdade? Vocês querem mais liberdade do que nos dá o nosso presidente Vargas? Seus f...p ... “ E desandou numa série de palavrões, agitando trêmulo a arma na nossa frente.

Se a cena tivesse sido representada por pessoa normal – se é que uma pessoa normal pode ser capaz de tal desatino – não me teria, talvez, causado apreensão, mas aquele indivíduo já cambaleava, parecia possesso, não fosse aquele trabuco detonar “casualmente”. A atração pelos copos, todavia, era bem maior do que o desejo de brincar com a vida dos outros e, finalmente, pudemos respirar aliviados, quando o “sherlock” foi arrastado pelos seus colegas para perto das garrafas e prosseguiram a sua já avançada bebedeira.

Horas mais tarde fomos levados para a Polícia Central. Dias depois fomos transferidos para a Casa de Detenção. Esse velho presídio compunha-se de três pavimentos. Cada

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pavimento era formado por duas alas de cubículos fronteiri-ços, com uma escada espiral ligando as galerias. Num desses cubículos, na segunda galeria, fomos colocados os três depor-tados políticos juntos com presos comuns da mais heterogênea composição, assaltantes, punguistas, ventanistas, descuidistas e pederastas. O ambiente não podia ser pior, parecia ter sido escolhido à dedo. Nessa convivência forçada com indivíduos cuja deformação moral atingira o máximo da degradação, assis-timos às cenas mais horripilantes. De um desses antros, situado em frente ao nosso, vimos ser arrastado fora o cadáver de um infeliz morto a estocada por outro infeliz por questões sexuais. Cenas desse tipo eram frequentes.

A promiscuidade no casarão da rua Frei Caneca era absoluta. Ali viviam em comum homens que haviam cometido, ocasionalmente, um delito, com outros já completamente irre-cuperáveis. Velhos calejados no crime, com jovens iniciantes. Sentenciados à longas penas com centenas de presos “à ordem do chefe” – designação que se dava aos que eram mantidos ali ilegalmente, durante muitos meses e às vezes por anos, à ordem do chefe de polícia, sem culpa formada, aguardando a liberdade ou a deportação para Ilha Grande.

A Ilha Grande era o terror dos presidiários. Os que conseguiram voltar de lá contavam horrores: fome, beribéri, trabalhos forçados (arrastar vigas na mata), castigos corporais, as surras com o famoso “cipó-camarão”. As partidas para a Ilha Grande eram sempre anunciadas de surpresa, à meia-noi-te. Quando isso acontecia, podia-se contar como coisa certa algumas tentativas de suicídio, sendo os pulsos cortados à gilete a mais comum. Aconteciam às vezes nessas ocasiões, agressões à faca entre desafetos, numa tentativa desesperada de fugir ao embarque iminente e apavorante. Nesse ambiente

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de insegurança e de incertezas, nós vivíamos encolhidos num canto, em constante expectativa contra possíveis provocações. Dias amargos e tristes passamos naquela masmorra, a pensar nas famílias que ficaram entregues à solidariedade dos paren-tes e amigos, na terra distante.

Quando conseguimos reatar a correspondência com nossas famílias, ficamos sabendo que tinha sido iniciado uma campanha em nossa terra natal, pela nossa liberdade. Soubemos também que pessoas de nossa família pediram a nossa liberda-de diretamente ao senhor Café Filho, e que este disse que nós tínhamos sido postos em liberdade no momento em que desem-barcamos no cais do porto do Rio de Janeiro. Para desmascarar o embuste Manoel Assis, meu sogro, enviou por intermédio do doutor Amâncio Leite (meu parente) uma carta por mim escrita da Casa de Detenção, com carimbo da censura, dirigida à minha esposa, para que fosse mostrada ao senhor Café Filho.

O tempo corria e nós continuávamos naquele nefando cubículo da Casa de Detenção da rua Frei Caneca, sem saber o que nos aguardava. Certo dia, porém, notamos um movimen-to de guardas fora do comum. Ficamos atentos e a seguir um preso comum veio trazer a notícia, chegaram vários “comunas” daqui do Rio. Realmente, tratava-se de correligionários nossos. Eles foram instalados num cubículo amplo da segunda galeria e mais tarde como já esperávamos, veio uma ordem da dire-ção do presídio para que fôssemos transferidos para o mesmo alojamento onde estavam os presos políticos recém-chegados.

Foi grande a nossa alegria. Fomos recebidos pelos novos companheiros com calorosos abraços. Eles já haviam sido avisados da nossa presença, através das ligações com o Rio Grande do Norte. Ali, estavam um Jornalista, um estudante, um marítimo, um alfaiate e alguns outros operários. Tinham

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sido presos em comícios relâmpagos realizados em estações ferroviárias e bairros da cidade.

Estava restabelecida a nossa ligação com as organiza-ções da capital, cessara o nosso isolamento. Através do Socorro Vermelho (organização de ajuda aos presos políticos, que foi extinta em 1945), passamos a receber assistência jurídica. Fomos informados de que os nossos advogados já estavam tratando de nossa defesa e não tardaria a nossa liberdade. Passamos a receber também ajuda em alimentos, roupas, cigarros e outras utilidades.

Dentre os recém-chegados havia um rapaz muito jovem, judeu, alfaiate, que trabalhava próximo da antiga Praça 11. Era um companheiro muito simpático, boa palestra, sempre alegre, apesar da sua situação ser a pior de todos nós. Por ser polonês de nascimento, aguardava sua deportação para a Polônia, coisa que ele temia e dizia o motivo, “vou ser entregue à polícia do ditador José Pilsudski. Tenho informações de atrocidades come-tidas por essa polícia. Gostaria de viver no Brasil. Gosto daqui, mas sei que não voltarei. Estou conformado, porque sei que o futuro nos pertence, o povo sairá vitorioso dessa luta”. E voltava a sorrir. O seu sorriso permanente parecia ser um escudo, uma autodefesa contra qualquer depressão. Dias depois, quando já estávamos em liberdade soubemos de sua deportação. Nunca mais tivemos notícias dele.

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III – MÃOS À OBRA!

O alvará de soltura veio para nós, os três norte-riogran-denses. Os demais presos políticos continuariam aguardando a sua vez. Recebemos de um dos companheiros presos, o local e a senha para a ligação com o PC lá fora e aguardamos os guardas que nos levariam até o portão. Uma vez na rua, resolvemos dar umas voltas pela cidade, tomando todos os cuidados para não sermos seguidos.

Tudo correu dentro das normas estabelecidas e ao entardecer, tomamos um trem “Maria Fumaça” rumo a um subúrbio longínquo. Chegamos à noite a um pequeno sítio, onde um cearense nos recebeu amistosamente. Respiramos aliviados. Estávamos “dentro” do partido. O nosso pensamento era voltar o quanto antes para o nosso Estado, enfrentar novamente “as feras”, começar tudo de novo. Na primeira reunião transmiti-mos à direção central esse nosso desejo.

Como resposta nos disseram, “em primeiro lugar os companheiros terão que participar de um curso de capacitação marxista-leninista. Nesse curso, os problemas da aplicação da linha política do partido serão analisados de forma autocrítica, à luz do marxismo etc. etc. Esse curso durará alguns meses e estamos certos de que todos sairão dele com seus conhecimen-tos e capacidade de luta reforçados. Então, discutiremos com os companheiros onde e como cada um poderá dar à Revolução a sua valiosa contribuição”.

Essa notícia me causou a maior alegria. Sempre desejei estudar, isso já foi dito no começo da narrativa. Essa era uma oportunidade que eu jamais hesitaria em aproveitar, ainda mais em se tratando desse tipo de estudo.

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O curso foi dividido em duas turmas, funcionando em locais diferentes e independentes. Os instrutores eram, Isidoro, Júlia e um jovem cujo nome de guerra não me recordo, todos três componentes de uma delegação do Bureau Sul-americano da IC que se encontrava no Brasil. Como não podia deixar de ser, gente do mais alto gabarito. Os outros instrutores eram membros do CC do partido, dentre eles um operário tecelão (ótimo companheiro), de elevada cultura, conheci-do como Mauro. Os alunos de minha turma eram militantes do Rio e dos Estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e São Paulo. A outra turma, da qual fazia parte o Miranda, tinha idêntica composição.

O curso desenvolvia-se da seguinte maneira: o instrutor fazia uma exposição sobre um tema programado e, em seguida, abria os debates, dando a palavra aos alunos, dispondo a cada um determinado tempo para expor seus pontos de vista, sua interpretação, concordando ou discordando, de acordo com a natureza do assunto em debate. Era um sistema democrático, o debate era estimulado ao máximo.

Chegou a vez da discussão em termos da aplicação da linha política do BP do Partido. Foram lidos vários documentos e ficamos sabendo que havia uma crise muito séria na direção. Tinham sido cometidos erros de direita encobertos com frases e atitudes esquerdistas, “obreiristas”. Os debates tinham sido abertos em reuniões do Comitê Central, surgiam críticas seve-ras, alguns dirigentes não concordaram com as críticas e houve defecções, abrindo claros na direção. Foi lida uma declaração do Secretário Geral do Partido, o companheiro Astrogildo Pereira, na qual ele dizia não concordar com as críticas a ele dirigi-das e, assim, deixava o cargo ia para as “torrinhas” assistir ao desenrolar dos acontecimentos. Anos depois vim a conhecer

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pessoalmente Astrogildo, tendo guardado a melhor impressão da sua cultura, simplicidade e espírito de companheirismo.

Nós já vínhamos notando uma certa diminuição da ativi-dade da direção, falta de assistência aos Comitês Estaduais, omissões etc., e ali estava a explicação. Entretanto, nós, os alunos, estávamos diante de fatos consumados e só nos cabia analisá-los, colher os ensinamentos e apresentar sugestões.

Procurei tirar o máximo de aproveitamento do curso e quando ele terminou, senti que tinha dado um grande passo à frente na minha experiência e nos meus conhecimen-tos. Agora era só aguardar o momento de voltar para o meu “habitat”, o Nordeste.

Terminado o curso, fiquei numa casa do subúrbio, aguar-dando as passagens para meu regresso ao Nordeste. Ansioso como estava para retornar ao meu estado e com a inativida-de forçada em que se encontrava, os dias passavam lentos, enervantes e não aparecia ninguém da comissão nacional de organização com a decisão sobre o meu destino.

Finalmente, um dia chegou o Martins. Trazia um ar de mistério e, após cumprimentos, foi logo me dizendo, “prepa-re-se para sair, vamos a uma reunião importante”. Todas as reuniões não são importantes? Perguntei, tentando torná-lo mais explícito. “Esta é especialmente importante. Você vai ver”, disse-me sorrindo.

Sem procurar “esticar” o assunto preparei-me rápido e dentro de poucos instantes estávamos a caminho. Depois de muitas voltas, chegamos ao local da reunião. Já estavam na sala alguns companheiros. Depois outros chegaram, inclusive o Izidoro, o membro da delegação do Bureau Sul-Americano da IC a quem me referi anteriormente. Eu estava nada mais nada menos, numa reunião do Comitê Central do Partido. Eu

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me sentia feliz em estar ali no meio de tantos “cobras”, mas continuava a não entender nada.

Aberta a sessão, o presidente, dirigindo-se a mim, disse mais ou menos o seguinte: “Temos a satisfação de informar ao companheiro Bangu (era o meu nome de guerra) que a direção máxima do Partido, de comum acordo com a delegação do Secretariado Latino-americano da IC resolveu elegê-lo, por “cooptação”, membro do Comitê Central para ocupar o cargo do Secretário Geral do PC até o próximo Congresso”.

A minha surpresa foi imensa. A emoção tolheu-me a fala por alguns instantes. Eu tinha então 24 anos de idade, disseram que era o acontecimento inédito na história do PC, eu nunca podia imaginar que tal coisa viesse um dia acontecer.

Procurei retomar o meu autodomínio e passei a falar: Eu me sinto muito honrado e comovido com a distinção e a confiança em mim depositadas. Entretanto, eu pergunto se os companheiros pensaram bem, se não cometeram um erro de superestimação da minha capacidade, de meus méritos, ao depo-sitarem em minhas mãos cargo de tamanha responsabilidade.

A isto respondeu o presidente: “Pode ficar tranquilo companheiro. Tudo foi muito bem pesado e bem medido. Havia outros nomes na lista de candidatos, mas foi você mesmo o escolhido. Conte com o nosso apoio e a nossa ajuda. O nosso Partido precisa superar suas falhas e se por à altura de sua grande missão. Precisamos ter confiança em nós mesmos e partir para frente. Coragem!”

Essas palavras me causaram um grande estímulo. A reunião continuou, mas eu não podia me fixar nos debates. Minha vida sofrera uma guinada brusca, eu senti, de repen-te, que tudo ia mudar, a partir daquele momento. Finalmente

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a reunião terminou. Cada companheiro que se despedia procurava me encorajar.

Ao chegar em casa, procurei colocar em ordem as minhas ideias, aos poucos fui recuperando a calma e a confiança. Bem, agora tenho que organizar minha vida aqui no Rio e providen-ciar a vinda imediata de minha família. Tenho que elaborar um plano de trabalho em função do meu novo cargo de Secretário Geral do Partido. Tenho que verificar e acompanhar o funcio-namento dos secretariados da organização, de agit-prop, de trabalho sindical e de organizações de massas, tenho de cuidar da assistência aos Estudos, à JC ao SV tenho que ter uma visão global dos problemas nacionais, tenho que estudar muito! E disse comigo mesmo: “ora, muito bem, “seu” Lauro! Veja só que abacaxi te arranjaram ...”

Não posso negar, no íntimo, eu me sentia feliz e uma grande vontade de me empenhar, com todas as forças, na reconstrução do Partido se apoderou de mim.

A situação do país se agravava rapidamente. O governo provisório de Getúlio ia se tornando cada vez menos provisó-rio e as bases de uma ditadura iam sendo cravadas em nosso solo. O integralismo se expandia com o bafejo do nazifascismo, que estimulava a ação de seus asseclas nativos de dentro e de fora do governo. Os sindicatos eram controlados pela polícia, a repressão e a espionagem tornavam a ação dos revolucionários dura, difícil.

Nesse estado de tensão, começamos a trabalhar. A dire-ção do partido foi reconstituída, o entrosamento dos antigos membros com os novos promovidos passou a dar os resultados previstos. O Bureau Político, ora com 7, ora com 9 dirigentes se reunia periodicamente, analisava os acontecimentos nacionais e traçava os planos de ação, dentro da estratégia elaborada pelo

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Comitê Central. Enquanto isso, um secretariado composto de 3 a 5 elementos tinha uma função opinativa, dinâmica, com reuniões duas vezes por semana, acompanhando, de perto a execução dos planos traçados. Esse secretariado era constituído pelo Secretário Geral, a Secretária de Agitação e Propaganda, o Secretário de Organização, o Secretário Sindical ou do Trabalho de Massas, de acordo com as circunstâncias.

Havia uma equipe constituída na maioria de ativistas com experiência de trabalho partidário, com pouca formação teórica, mas com muita disposição para a luta.

Assim, passamos a realizar uma política de concentração de forças no trabalho de massas, visando os setores fundamentais da produção, os transportes marítimos e ferroviários, as indústrias principais. Reativamos o trabalho militar, passamos a preparar e a enviar reforços para os Estados, com instruções para intensi-ficar o trabalho no campo, como tarefa de máxima importância.

Nessa época, o oportunismo de direita, tal como acontece hoje, na maioria dos velhos partidos comunistas, não existia em nossas fileiras. Havia sim desvios ora de direita, ora de esquer-da, que procurávamos combater dentro do nosso entendimento e capacidade ideológica.

Estávamos plenamente conscientes de que as classes domi-nantes (nunca entregariam o poder “de mão beijada”, jamais renunciariam aos seus privilégios, a não ser pela violência. Nunca surgiu, em nossas fileiras, nessa época, qualquer ilusão ou veleidade no que concerne à conquista do poder por vias pací-ficas ou eleitorais. Alguém que preconizasse a tomada do poder pelas massas populares por outro caminho que não fosse pela luta armada, cairia no ridículo. Para nós, este era o princípio básico, a conclusão lógica do marxismo-leninismo. Dentro dessa

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perspectiva revolucionária, nossa ação só poderia ser encami-nhada no sentido de preparar o Partido para esse desfecho.

Era fundamental para nós nunca perder de vista que o Partido Comunista era um Partido Revolucionário, no verda-deiro sentido da palavra, um partido que não deveria esperar indefinidamente, na passividade e na burocracia, que o poder viesse às nossas mãos por uma dádiva dos céus. Ao contrário, deveria se preparar e preparar as massas para (com as massas) conquistar o poder, tornando o nosso país, o nosso povo, livre do jugo imperialista. Teria de criar as bases para as transfor-mações socialistas, sem outra alternativa que não fosse pela violência, pela luta armada, única linguagem capaz de ser entendida “pelos que estão no poder”.

Norteados por esses princípios, a nossa ação não tardou a dar seus frutos. O Partido crescia rapidamente, nossos apelos ao povo, no sentido de se organizar, começaram a ser atendi-dos, novas forças vieram se incorporar à ação, criando as bases para a formação de ampla frente única, que viria mais tarde a se concretizar.

O fascismo no plano internacional, avançava a passos largos para a segunda guerra, na sua tentativa de dominar o mundo e afogar em sangue as aspirações de liberdade e de progresso de todos os povos. Para enfrentar essa iminente ameaça, o Partido comunista tinha de realizar um supremo esforço para vencer o seu atraso e se colocar à frente das lutas populares, para cumprir sua missão de vanguarda.

A nossa atividade não tinha limites. O excesso de trabalho, as reuniões cansativas, as noites mal dormidas, a alimentação nem sempre à altura das necessidades, levaram--me, depois de certo tempo, ao enfraquecimento físico, à estafa. Uma velha bronquite da infância que julgava curada, veio à

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tona. O BP achou por bem aliviar minha carga, substituindo-me por Miranda na primeira Secretaria. Continuei no Secretariado, como Secretário de Agitação e Propaganda depois de uma licença para recuperação.

O Miranda tinha o dom da palavra fácil, era capaz de passar horas a fio dissertando sobre um tema sem se cansar. Juntando esse fato ao seu natural dinamismo, acabou conquis-tando as simpatias e se firmando no posto, passando de secretário interino a efetivo.

Um membro do BP, certa vez, me alertou contra possíveis manobras que Miranda vinha pondo em prática para alcançar o posto. Não dei importância. Achei ridícula e até mesmo indigna de revolucionários uma luta desse jaez. Eu jamais me envolveria numa disputa sem princípios, simplesmente, pela conquista de postos de direção. Tudo seguiu normalmente, o importante era tocar o trabalho para frente, a nossa ação continuou dentro do mesmo espírito de camaradagem e do mesmo entusiasmo.

Chegamos, assim, à segunda metade do ano de 1934. Foi quando recebemos um comunicado de convocação de um congresso da IC a ser realizado em Moscou. O nosso Partido deveria enviar uma delegação. Foi convocada uma reunião Plenária do Comitê Central para decidir sobre o assunto. Nessa reunião, foram eleitos os cinco representantes: Miranda, eu, Caetano Machado, Elias e Jovino, todos membros do CC. Caetano Machado era um padeiro de Recife, remanescente da Coluna Clero Campeio. Essa coluna foi o resultado de um levante popu-lar, ocorrido por volta de 1926, em Pernambuco, cujos compo-nentes iniciaram uma marcha para se juntar à Coluna Prestes, tendo sido desbaratada por forças governistas e seu líder – Cleto Campelo – morto em combate.

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Nesse ponto, é necessário um esclarecimento: a IC era a organização que unia todos os PCs do mundo. Funcionava em Moscou é óbvio, por ser a União Soviética, naquela época, o único país socialista existente no globo, capaz de permi-tir o seu funcionamento livre e sem restrições. Esta era a 3ª Internacional e foi dissolvida em 1943. A 1ª Internacional foi criada sob a orientação de Karl Marx, em 1864, com o nome de Associação Internacional dos Trabalhadores. A 2ª Internacional surgiu em 1889 e tomou orientação oportunista.

A viagem da delegação a que vínhamos nos referindo, era por conta do nosso Partido e a estadia em Moscou durante a Conferência era por conta da IC.

O dinheiro, estritamente necessário, foi arrecadado pela nossa organização e a seguir embarcamos na 3ª classe de um navio rumo à França. Tudo correu normalmente. O pior foi atra-vessar toda a Europa de trem, incluindo nesse trajeto a travessia do território alemão dominado pelo nazismo. Embora nossa documentação e nossa bagagem estivessem em ordem, nas paradas de trem nas estações, ficávamos quietos e cautelosos nas poltronas, vendo o desfilar arrogante, nas plataformas, dos pelotões nazistas, os seus repetidos “Heil Hitler!”, o seu farejar constante de cães de caça.

Éramos passageiros em trânsito, sem direito a descer em território germânico. Talvez por este motivo ou talvez porque “o faro” dos nazistas não estivesse num bom dia, o certo é que fizemos a penosa travessia sem atropelos.

No território polonês, a tensão diminuiu. Tivemos que descer em Varsóvia e aguardar num hotel outro trem, rumo a uma cidadezinha da fronteira com a URSS. Dois dias depois, pisamos em território soviético. Nesse momento, os semblan-tes se transformaram. Passageiros que antes se mantinham

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cautelosos e retraídos, agora se abraçavam, emocionados, “pela primeira vez em minha vida posso dizer, sem medo de ser preso: “Yo soy comunista!”

Tomamos um novo trem, agora com as insígnias da URSS. A composição passou a correr em direção a Moscou, cortando o lençol branco formado pela neve. Nada de paisagem, somente aquela brancura de doer na vista, a visibilidade reduzida pela nevasca caindo incessantemente.

Depois de horas e horas de ansiedade, chegamos à capital da grande nação soviética. Na gare, já estavam à nossa espera Prestes é Silo Meireles. Abraços e palavras acolhedoras de uma recepção simples, mas calorosa. A seguir, tomamos os automó-veis que nos levaram ao hotel onde ficamos hospedados. Nesse mesmo hotel, já residiam há anos, desde que foram exilados, o casal, Otávio e Laura Brandão, e seus filhos.

Eu saí do Brasil convencido de que levava uma roupa capaz de enfrentar o frio russo. Para isso, tinha comprado o sobretudo mais espesso, o terno mais quente que encontrara nas lojas do Rio e de São Paulo. Puro engano.

Logo que chegamos ao Hotel em Moscou, nossa roupa foi examinada pelos companheiros residentes e considerada inadequada. “A temperatura aqui, costuma descer além de 30 graus abaixo de zero. Com essa roupa você pode apanhar pneu-monia”. Fizeram-me calçar umas botas de feltro à altura dos joelhos e vestir um sobretudo acolchoado com 3 centímetros de espessura, luvas, gorro de pele etc. Somente olhos, nariz e boca ficaram descobertos.

Quando saímos à rua, principalmente quando paramos por alguns instantes sobre a neve, é que verificamos que sem essa roupa, teríamos virado sorvete.

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Nos primeiros encontros no COMINTERN, fomos infor-mados de que o Congresso da IC tinha sido adiado e que em seu lugar seria realizada uma Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina, aproveitando a presença de delegações do Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Cuba, Bolívia e México.

Poucos dias depois a Conferência foi instalada num dos salões do velho edifício sede da IC. O conclave tinha por finalidade realizar um balanço da situação dos partidos e das perspectivas revolucionárias de cada país.

Os debates dividiram-se em duas partes. Na primeira parte, foi discutida, de forma geral e sem quebra de sigilo, a linha política dos Partidos Comunistas latino-americanos, de características semelhantes, de modo a permitir um intercâmbio de experiências, sobretudo no trabalho de massa. Na segunda parte, cada delegação debatia entre si, mais detalhadamente, as perspectivas revolucionárias de seu país e as medidas de organização a serem adotadas como conclusão dos trabalhos da Conferência. Evidentemente essas decisões deveriam ser subme-tidas à direção e ratificadas pelo Comitê Central de cada partido.

No desenrolar da Conferência, o Brasil passou a atrair as atenções dos delegados pela gravidade de sua situação econômi-ca e política, pela miséria e condições sub-humanas das massas e camadas de sua população, aguçamento das contradições das lutas de classes, perspectivas de uma saída revolucionária para solução de seus problemas fundamentais e para a libertação do seu povo.

Em princípios de 1935, quando voltamos ao Brasil, a Aliança Nacional Libertadora já tinha sido lançada. Sua expan-são, em todo o país, assumiu proporções rápidas e imprevistas.

As adesões das personagens de projeção, dentre elas governadores de Estados (Moreira Lima do Ceará e Pedro

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Ernesto do Rio de Janeiro) davam a dimensão e a amplitude da frente nacional que se iniciava. Por outro lado, as caravanas que percorriam os estados eram recebidas e aplaudidas com entusiasmo pelas massas populares; a palavra de ordem Pão, Terra e Liberdade começou a ser a bandeira de luta de camadas cada vez mais amplas da população.

Surgiam núcleos da A.N.L., surgiam também novas orga-nizações de estudantes, de mulheres e de operários, enquanto começava a penetração entre as populações camponesas.

Enquanto isso, o integralismo era repudiado, seus comí-cios eram hostilizados e dissolvidos violentamente pelo povo.

O que se passava no Brasil, naquela época, não era um fenômeno fortuito criado artificialmente pela imaginação dos comunistas, como atribuem certos críticos. Era uma crise polí-tica grande pelo descontentamento geral e que atingia também seriamente as forças armadas. Esse descontentamento, mais cedo ou mais tarde, explodiria – como explodiu – em movi-mentos insurrecionais, dos quais está cheia a história do Brasil, desde a era colonial.

O que havia de novo nesse período importantíssimo de nossa história era a existência de um Partido Comunista – jovem e com pouca experiência, mas audacioso e combativo – que se, pôs à frente dessas lutas. Porque nas lutas passadas (eu me refiro ao caráter insurrecional), ele não participou ou porque ainda não existia ou porque, por esta ou aquela razão, não se fez presente. Esse fato novo, de capital importância, é o que esses famosos críticos ignoram ou fingem ignorar.

Numa tarde, saí de casa para um encontro com uma companheira da União Feminina, na rua Mariz e Barros, em frente ao Instituto de Educação. Eu era assistente dessa organização. Estava à espera no ponto, quando notei a presença

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de dois indivíduos mal-encarados que me olhavam com insis-tência. Um deles parecia que eu já tinha visto em algum lugar, mas não me lembrava onde. Pensei que pudessem ser assaltan-tes, mas logo concluí que eram “tiras” e senti instintivamente que ia “entrar em cana”.

Minha primeira preocupação foi evitar que a pessoa que eu esperava chegasse de repente e viesse falar comigo, caindo na esparrela. Procurei me afastar do local e quando andei alguns passos os caras vieram na minha direção, em manobra envolvente, tentando cortar minha retirada. Achei o procedimento dos indivíduos muito estranho e senti rapida-mente a necessidade de resistir à prisão (agressão ou sequestro, sei lá), achei por bem tumultuar o local para que a pessoa que eu esperava pudesse se afastar, levando a notícia de acidente à nossa organização.

Instintivamente, tomei o cuidado de só me defender, sem nunca atacar. Os “tiras” tentavam me agarrar eu me esquiva-va; novas tentativas, novas negaças. Apareceram mais pessoas, “fechou-se o tempo”, quando vi tinha se formado um “bolo” medonho em volta de mim, eu não sabia quem era polícia e quem não era. Revólveres brilhando no ar, eu não compreendia donde me vinham as forças para resistir a tanta gente, o certo é que uma hora eu estava agarrado, de repente eu estava solto.

O tumulto crescia e se prolongava, parecia não ter fim. Nisso apareceram dois marinheiros e entraram na briga. Na confusão, eu pensei que eles estavam contra mim, mas notei que eles me defendiam, não sei o que deu no juízo deles. Acho que ficaram revoltados de ver tantos policiais agredindo um rapaz franzino e desarmado e que viram logo não se tratar de nenhum marginal; ou talvez, por uma natural aversão aos métodos de violência policial. Por qualquer uma dessas razões ou por outras

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quaisquer, o certo é que eles não tiveram dúvidas: entraram no “bolo” em minha defesa, o que foi, pelo menos para mim, a ideia mais genial que eles devem ter tido em toda a sua vida.

Quando os policiais erguiam os revólveres para me dar coronhadas – uma vez que, atirando corriam o risco de atingir até mesmo os seus colegas – os marujos aparavam o golpe e diziam “não batam no homem! Num homem como esse não se bate!”

Já havia mais de trinta pessoas na briga, a confusão conti-nuava, o tempo corria e os policiais não conseguiam me levar. Por fim, os dois marinheiros propuseram um acordo (sem que eu fosse consultado...) os policiais me levariam, mas, eles acom-panhavam até o Distrito, para que não acontecesse nenhuma violência contra mim. A proposta foi aceita, me puseram num carro e me levaram para o Distrito da Praça Saenz Pena. Quando falaram em Distrito da Praça Saenz Pena, respirei aliviado.

Ao entrarmos na Delegacia, um dos “tiras” foi logo dizen-do para seus colegas de plantão: “arranjem uma jaula para essa fera!” A jaula que me arranjaram foi um cubículo sem cama e sem móveis de espécie alguma. Nesse ponto, eu achei que eles estavam com a razão, afinal, para que uma fera quer cama? Os dois marinheiros se mantiveram todo o tempo vigilantes e só depois que fui trancado no xadrez foi que eles se retiraram.

Deitei-me no chão de cimento duro e frio, morto de cansa-do, e pensei: vejam só quanta ironia, indivíduos mal-encarados, armados, suspeitíssimos, sem se identificarem, sem apresen-tarem qualquer ordem judicial de prisão legalmente expedida, investem contra um cidadão que transita pacatamente pela rua e que não cometeu nenhum crime; tentam prendê-lo, agredi-lo ou sequestrá-lo (sei lá). Esse cidadão reage contra a violência e, no fim, ele é quem é a fera. Dá para entender?

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No dia seguinte, fui levado à presença do delegado do Distrito, que registrou o fato no livro de ocorrências. A seguir, fui transferido para a casa da Detenção e lá fiquei até que um advo-gado, por meio de um habeas-corpus, conseguiu minha liberdade.

Lição da história: se eu não tivesse feito aquela “quizum-ba”, acredito que coisas mais graves teriam me acontecido.

Linhas atrás, manifestei a hipótese de ter sido vítima de sequestro, no incidente descrito. É possível que alguém conside-re isso fantasia, na suposição de que este tipo de violência seja coisa de nossos dias. Para elucidar, vou citar um fato ocorrido naquela época, ressalvando-se a imprecisão nos detalhes, pois tenho que recorrer, exclusivamente, à minha memória, passa-dos quarenta e tantos anos.

O jornalista e humorista Aparício Torelli – o “Barão de Itararé” – destacou-se pelas suas críticas maliciosas ao regime discricionário de então, através do seu jornal A Manhã. Certo dia, ele teve o seu escritório invadido por indivíduos armados que dizendo ser da polícia, prenderam-no e conduziram-no, de olhos vendados, num carro, para o local ignorado. Nesse local, espancaram-no, rasparam-lhe a cabeça e submeteram-no a toda sorte de humilhações. Depois, largaram-no numa estrada deserta. Voltando ao seu local de trabalho, o “Barão” continuou, normalmente, a sua atividade, sem se deixar intimidar e colo-cou na porta um cartaz com as caricaturas dos sequestradores espancando a vítima e mais estes dizeres: “ENTRE SEM BATER”.

Antes de reiniciar minhas atividades, tive um encontro com Miranda. Depois de falarmos sobre vários assuntos, ele me comunicou que a cúpula estava preocupada com a minha segurança, em face dos últimos acontecimentos e que eu deve-ria me ausentar do Rio por alguns tempos, para “despistar a polícia”. Disse que a Bahia estava precisando da ida de uma

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pessoa experiente para levantar o Partido, que estava em crise, e que eu era a pessoa indicada etc. Perguntou o que eu achava. Respondi-lhe que era um militante do Partido sempre pronto a cumprir suas decisões. E que a tarefa difícil, desde que necessá-ria, era um desafio e ao mesmo tempo um estímulo para mim.

Alguns dias depois dessa conversa, eu estava viajando para Salvador. A situação do Partido na Bahia era pior do que eu imaginava e do que informara Miranda. Havia dois compa-nheiros enviados do Rio, Ferreira e Bagé, mas o Comitê Estadual não funcionava.

Nas primeiras cartas que enviei ao Secretariado Nacional, informei com detalhes sobre essa desorganização. Não podia mesmo que porventura o quisesse dar informações baluartistas, como estranhamente diz o falecido Leôncio Basbaum, no seu livro de memórias. Simplesmente porque a direção nacional já estava inteirada dessa desorganização, tanto assim que fui enviado para aquele estado, justamente com a missão de levan-tar o Partido. Lembre-se de que Miranda era o Secretário Geral do Partido e era baiano. Por essas razões era impossível que não soubesse, pelo menos por alto, o que havia em seu estado natal.

Como sempre fui otimista com relação às possibilidades de criação de organizações revolucionárias, achei que a missão de reorganizar o Partido na Bahia era perfeitamente realizável e uma questão de tempo, bastando para isso, que tivéssemos confiança no povo trabalhador, que não tivéssemos medo dele (como alguns pretensos políticos parecem ter), que falássemos na sua linguagem, dos seus problemas e de suas aspirações. Dizer, simplesmente, que não existia nada e deixar que continue a não existir é uma atitude conformista. Quando não existe nada, a gente procura criar e, se houver força de vontade e persistência, a gente acaba criando.

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Quem disse que não existia nada estava exagerando. Havia alguns elementos e com eles traçamos um plano de traba-lho muito simples de acordo com as possibilidades do momento, tendo como tarefas imediatas: 1) recomposição de um CE peque-no, prático e ativo; 2) montagem de uma tipografia clandesti-na para tiragem de manifestos e outros impressos, através dos quais pudéssemos transmitir mensagens a certas camadas da população.

Com referência ao primeiro item, conseguimos formar um CE com apenas 3 elementos e começamos a fazê-lo reunir. Quanto ao segundo item, tínhamos um prelo e algumas caixas de tipo e tínhamos o tipógrafo. Faltava alugar uma casa, comprar móveis e material e, para isso, faltava o dinheiro.

Leôncio Basbaum, antigo membro da direção nacional do Partido Comunista, estava na Bahia, em boa situação financei-ra, dono de uma ou várias lojas varejistas. Eu o conhecia desde 1925, 1926, somente através de cartas. Quando eu estava no Rio Grande do Norte e ele no Rio de Janeiro, era através dele que eu recebia instruções do partido para o trabalho de organização da JC de cujo primeiro núcleo criado eu estava à frente. Procurei Leôncio e pedi a sua ajuda financeira para montar a tipografia clandestina, no que fui atendido.

Eu estava informado, desde quando assumi a primeira secretaria nacional do PC em 1933/1934, que Leôncio afastara--se da direção do partido por divergências e, posteriormente, foi expulso por ter participado de lutas fracionistas contra o Partido, mas como eu não participei das reuniões em que esta decisão foi tomada e não estava suficientemente inteirado do seu caso, julguei por bem dar-lhe um crédito de confiança, sob minha inteira responsabilidade. Comuniquei e submeti a

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questão à decisão do Secretário Nacional, o qual ratificou a minha atitude.

Com a ajuda financeira do Leôncio, montamos a imprensa clandestina e começamos a imprimir prospectas e inclusive fize-mos uma reedição do jornal, órgão do Comitê Central do Partido.

Tudo era feito com as maiores dificuldades, não só pela escassez de militantes, como também pela própria natureza do trabalho ilegal. Com minha volta súbita ao Rio, como será relatado mais adiante, evidentemente as coisas se tornaram mais difíceis.

Em novembro de 1935, eu apenas iniciara meu trabalho na Bahia, quando a imprensa escrita e falada começou a divul-gar as notícias sobre os levantes de Natal, Recife e Rio.

Essas notícias me causaram um grande espanto. O que estava ocorrendo era para mim, inesperado e confuso. Embora eu tivesse conhecimento do que estávamos vivendo, especial-mente no Nordeste, uma situação explosiva, não podia entender aquela sequência de levantes, virtualmente, anulando o fator surpresa, que poderia ser decisivo a nosso favor. Como também não entendia porque a insurreição partia da periferia e não do centro, dos quartéis e não das massas.

Entretanto, o que mais me desgostava era o fato eu estar fora da ação, sem nenhuma condição de participar pessoal-mente da luta. Tive que me conformar com a condição de expectador, em vista das condições desfavoráveis em que nos encontrávamos na Bahia. Resta-nos agora, fazer um ligeiro retrospecto dos acontecimentos, como ponto de partida para uma análise mais substancial no futuro.

Já em 1931, o 21 BC, sediado em Recife, havia se revolta-do tendo sido dominado e, em consequência, transferido para Natal. O 29 BC que estava em Natal, foi mandado para Recife.

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A troca deu o seguinte resultado: em 1935, enquanto o 21 BC se revoltava em Natal, o 29 BC também se levantava em Recife.

O Exército atravessava um período de inquietação em face de um antigo regulamento militar que permitia o desli-gamento de cabos e sargentos após oito anos de serviço ou por limite de idade. Os cabos e sargentos lutavam pela revogação dessas medidas. Mais precisamente, era a continuação do antigo descontentamento que culminou com as revoltas tenentistas de 1922, 1924 e 1926, e que a chamada “revolução de 30” não conseguiu resolver.

No dia 23 de novembro, ou seja, dois dias depois do levan-te de 1935 a Guarda Civil de Natal havia sido dissolvida sem mais nem menos, atirando ao desemprego centenas de pessoas, dentre as quais muitos chefes de família. Esses homens, com instrução militar, vieram engrossar as fileiras dos descontentes.

O levante de Natal, embora tendo partido do quartel, teve a participação não só de soldados; cabos e sargentos mas também a adesão popular de operários, funcionários públicos e inclusive de mulheres, que lutaram, bravamente, de armas na mão, nas ruas de Natal.

Em Recife, apesar de inesperado, o levante teve também a participação de populares, inclusive de crianças. “Em Olinda, um grupo de civis conseguiu apoderar-se dos pontos estratégi-cos. O prefeito, o delegado e outras autoridades foram presos”. “Lamartine resistiu, com dezoito homens, de onze horas da manhã de domingo até as duas horas da tarde: eram populares, inclusive crianças, que faziam o reabastecimento das posições rebeldes, correndo perigosamente de um ponto para outro. Uma delas caiu ali mesmo, cortada pela metralha”. (Hélio Silva, “A Revolução Vermelha”, Civilização Brasileira, p. 302-308).

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No Rio, por incrível que pareça, não houve participação de civis. O 3 RI revoltou-se, dominou a situação no quartel, pren-deu toda a oficialidade, mas ficou impossibilitado de se locomo-ver da Praia Vermelha, devido o cerco. Não houve sequer um grupo de combate de civis, que saísse à rua e tentasse impedir que esse cerco se completasse. Na Escola de Aviação, outro foco de revolta militar, ocorreu idêntica situação.

As causas da miséria e do atraso das populações nordesti-nas – o latifúndio, as secas e a falta de assistência aos pequenos e médios lavradores e criadores – continuavam sem solução. O descontentamento popular em consequência, já vinha crescendo há anos e às vezes nos períodos de secas, resultavam em ataques às feiras e trens de mercadorias pelos flagelados. Nas ribeiras do Mossoró e do Assu, tinham surgido os primei-ros focos de guerrilhas operário-camponesas encabeçados por Miguel Moreira, Manoel Torquato e outros.

Do ponto de vista nacional, contribuíram para o agra-vamento da situação, o fechamento da Aliança Nacional Libertadora – a maior organização de frente única já criada no país e a expansão do integralismo, com a ajuda do nazifascismo e sob o beneplácito oficial.

Todos esses fatos indicam que existia, naquela época, uma situação favorável às explosões de revoltas parciais e locais, antes que tivéssemos atingido o ponto culminante para uma insurreição de caráter nacional, com possibilidades do assalto final para a tomada do poder, tanto do ponto de vista da radicalização e politização das massas, como da preparação do Partido e das forças de vanguarda.

Segundo depoimento de vários participantes do levante de Natal, os líderes militares, em novembro de 1935, estavam dispostos a irem à luta com ou sem a participação do PC. Em

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face dessa alternativa, poderíamos indagar: era possível ter evitado o levante de Natal? Talvez sim. Pelo menos o Partido deveria ter feito todo o possível para adiá-lo. A partir do momen-to em que não conseguíssemos impedir ou adiar o levante, seria justo cruzarmos os braços, negar o nosso apoio e participação? Isso seria indigno de um partido revolucionário e resultaria na sua total desmoralização perante as massas. Não devemos justificar nossos erros, mas as lamentações não conduzem a nada de proveitoso.

Do ponto de vista da experiência e do amadurecimento da consciência política do povo brasileiro, a revolução de 1935 constitui “o fato mais importante” de toda a nossa história.

Aquele mês de novembro de 1935 valeu mais, do ponto de vista da conscientização do nosso povo, do que todos os longos anos de pregação feita nesse sentido. Não sei mesmo, que espécie de ensaio poderia ter sido mais valioso para a forma-ção e o amadurecimento da consciência revolucionária do povo brasileiro do que as jornadas heroicas de novembro de 1935.

A reação procura por todos os meios, desvirtuar o verdadeiro caráter daquele movimento, chamando-o de “intentona comunista”. Tenta difamar e caluniar os seus participantes e os seus líderes, com estórias fantásticas de assassinatos de oficiais dormindo, quando todo mundo sabe ser isso impossível, diante do fato de que todos os quartéis estavam de prontidão, de sobreaviso.

Tanto na época da insurreição de 1935 como nos anos posteriores, durante o Estado Novo fascista e até os dias atuais, essa campanha difamatória e caluniosa dos meios reacionários vem sendo secundada pelo “trabalho” sistemático desenvol-vido no mesmo sentido pelos falsos teóricos, pelos grupelhos trotskistas e divisionistas de vários matizes. A pretexto de

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realizar a crítica e de escrever a história, deturpam os fatos, mentem descaradamente e procuram jogar lama nos líderes e militantes dessa fase difícil, mas riquíssima de experiências, de nossa história revolucionária, não poupando sequer a memória dos nossos heróis e mártires trucidados pela polícia.

Estamos certos de que as novas gerações saberão colher a experiência e o estímulo decorrentes do nosso gesto, da nossa atuação e do nosso sacrifício. Em toda derrota, há um germe para futuras vitórias. É isso que precisamos entender. Não há presente sem passado. Não haverá futuro sem presente.

Os revolucionários de 1935 deram ao povo brasileiro um exemplo de iniciativa de audácia e de bravura. Mostraram – e isto é fundamental – que não se combate o fascismo com simples palavras, que a luta contra o regime de exploração e opressão não se faz com conversa fiada.

É inútil tentar jogar areia nos olhos do povo. O povo brasileiro não é uma criança e já conhece esse tipo de engodo. Toda análise das nossas lutas passadas só será útil se for feita de forma honesta, sem paixão, com espírito construtivo. As campanhas difamatórias, as calúnias e os embustes só podem interessar ao sistema vigente, à sua máquina brutal repressiva.

No dia 23 de novembro de 1935, sábado, ao meio dia, irrompeu a revolta no quartel do 21 BC em Natal. Os revolto-sos dominaram fácil a situação. O Cel. José Otaviano foi para o quartel da Força Pública onde organizou a resistência, com a participação do Major Luiz Júlio, comandante da Força Pública. A resistência durou até a manhã do dia seguinte, dia 24.

Dominada a situação, assumiu o governo uma junta revolucionária assim constituída: “aprovisionamento” – José Praxedes de Andrade, operário sapateiro; “defesa” – Quintino Clementino de Barros, Sargento; “interior” – Lauro Cortez Lago,

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funcionário; “viação” – João Galvão, estudante; “finanças” – José Macedo, funcionário dos Correios e Telégrafos.

Nas oficinas do antigo órgão oficial “A República” foi impresso, sob a “direção do professor Raimundo Reginaldo da Rocha, o primeiro e único número do jornal “A Liberdade”, órgão do novo governo revolucionário. Este jornal divulgou um manifesto ao povo, com as diretrizes e com a palavra de ordem, “Todo o poder à ANL, Aliança Nacional Libertadora.”

Por ordem do governo, foi feita a distribuição gratuita de alimentos à população necessitada e faminta. A revolução se estendeu rapidamente pelo interior, chegando a dominar as cidades e vilas vizinhas de Macaíba, Ceará Mirim, São José de Mipibu, Vila Nova, Lagoa de Montanha, Nova Cruz, Goianinha, Canguaretama, Panelas, São Gonçalo, Santa Cruz e Arês.

Em Natal, durante o levante, um grupo revolucionário dirigido pelo professor Raimundo Reginaldo da Rocha e sua filha Amélia, jovem de 18 anos aproximadamente, atacou e dominou um foco de resistência, a cadeia pública. Durante o ataque os presos foram libertados.

Continuava o meu trabalho na Bahia, no sentido de reerguer o Partido, quando recebi uma carta do Secretariado Nacional, dizendo para que eu seguisse, com urgência, para o Rio.

Imediatamente, comuniquei o fato ao CE da Bahia há pouco reconstituído, a quem passei a ligação da tipografia clan-destina que estava sob minha responsabilidade. Recomendei também ao companheiro Ferreira, tipógrafo, que procurasse o Basbaum que era médico, para tratamento de saúde, pois estava com sintomas de impaludismo. Parti para o sul, preocupado com o trabalho apenas iniciado em Salvador e que não houve tempo de consolidar.

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Chegando ao Rio, entrei em contato com o Secretariado Nacional e fui informado dos motivos do meu chamado. Disseram-me que, por indicação de Prestes, eu fora designado para ocupar o cargo de Secretário Geral do Partido, em substitui-ção a Miranda, que tinha sido preso. Pela segunda vez, assumi o mais alto posto do PC, premido pelas circunstâncias, sendo que desta vez numa situação muito mais difícil e dramática.

Depois da derrota da insurreição de novembro de 1935, as prisões começaram a atingir os membros da cúpula: Berger, Ghioldi, Miranda e outros tinham caído. Embora o aparelho dessa cúpula, inclusive o de Prestes, fosse independente da nossa organização, nós vivíamos em constante sobressalto. A caça a Prestes pela polícia era sentida até no ar.

Fizemos a recomposição do Secretariado Nacional e passamos à ação com o máximo cuidado para evitar novas quedas. O fundamental era fazer todo o possível para que a direção nacional do partido continuasse funcionando, em contato com os Estados, mantendo a unidade orgânica e polí-tica. A situação era difícil, a repressão policial e a espionagem tornavam a atmosfera pesada, mas íamos tocando para a frente.

Estávamos traçando um novo plano de trabalho, quan-do ocorreu o desastre: “a prisão de Prestes”. Os detalhes de prisão da Prestes se espalharam rapidamente, de boca em boca. Víamos o povo andando nas ruas, calado e triste. Ficamos sabendo que a polícia cercou e invadiu a casa da rua Honório e, ao apontar as metralhadoras contra Prestes, Olga Benário sua esposa, abriu os braços num gesto espontâneo de proteção.

Tempos depois, outra notícia estarrecedora se espalhou, Olga Benário Prestes foi entregue ao nazismo pela ditadura de Vargas. Num campo de concentração da Alemanha, ela foi assassinada, depois que deu à luz a uma filha, Anita Prestes.

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Anita foi arrancada das garras do nazismo pela campa-nha mundial que se fez em sua defesa, encabeçada por dona Leocádia, mãe de Prestes.

Nas primeiras reuniões que tivemos do Secretariado após a prisão de Prestes, decidimos continuar funcionando normal-mente, no Rio. Em vista de jornais terem publicado fotografias de alguns de nossos companheiros, essa decisão, todavia, torna-va-se difícil e arriscada. Tivemos que tomar outra resolução, a de transferir por algum tempo a direção nacional para Recife.

A operação mudança não era fácil, pois não havia estradas de rodagem naquela época e, consequentemente, o transporte terrestre era uma aventura. Mesmo assim, decidi-mos que dois seguiriam por terra, eu e o Martins, e os outros membros do Secretaria seguiriam por via marítima. O plano foi traçado e cuidadosamente executado. Uns dois meses depois de ter saído do Rio, a Direção Nacional estava funcionando na cidade do Recife.

O primeiro Estado com o qual estabelecemos ligação foi o Rio Grande do Norte. A repressão ali, como nos demais Estados do Nordeste, colocava nossas organizações partidárias na defensiva, funcionando a dura penas. Os melhores militantes estavam presos, deportados ou foragidos. Mesmo em Recife, onde precisávamos ter uma base de apoio, o partido ressentia-se da falta de quadros para uma reestruturação mais firme.

Quando saímos do Rio, algumas dúvidas que ainda tínha-mos quanto à eventual existência de focos de luta armada pelo interior se esvaneceram. Os remanescentes dos levantes de Natal e de Recife que tentaram marchar para os sertões, tinham sido destroçados e apanhados por tropas que, alerta-das, vinham em sentido contrário. Algumas delas andavam perseguindo Lampião.

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Longe do centro político do país, o Rio de Janeiro, a Direção Nacional sentia-se deslocada e meio fora de ação. Tínhamos ido para Recife em caráter provisório, mas agora era preciso abreviar o nosso retorno.

De qualquer maneira, a nossa ida ao Nordeste foi útil não só do ponto de vista da segurança mas também pelo contato que tivemos com a real situação partidária. Passamos mais alguns meses em Recife, preparando com calma, as condições para a volta. O nosso destino agora era São Paulo.

Não obstante vivermos num clima de constantes apreen-sões e de dificuldades sem conta, nunca descuramos o nosso trabalho de direção, em todos os setores de atividade, dentro dos limites de nossa compreensão, dos recursos e das possi-bilidades de que dispúnhamos, por mais que os agentes da reação – os trotskistas e divisionistas de várias facções – tentem denegrir o nosso passado, não poderão encobrir nem deturpar os fatos por muito tempo, a verdade acabará emergindo.

Vamos citar um episódio que ficou gravado para sempre em nossa história. Em 1936, rebentou a guerra civil na Espanha. Havia, nesse país, um governo de coalisão recentemente eleito que programou realizar grandes reformas sociais, pondo fim ao domínio de uma oligarquia aristocrática, retrógrada e medieval que, através dos séculos, vinha mantendo a Espanha como um dos países mais atrasados da Europa.

As ditaduras nazifascistas da Alemanha e da Itália trama-ram a derrubada desse governo. Armaram seus títeres, os generais da quinta coluna falangista, os Franco e companhia. Esses traidores se sublevaram e abriram caminho para os tanques, aviões e tropas mandados por Hitler e Mussolini.

O povo espanhol e seu governo não estavam prepara-dos e não puderam conter forças tão poderosas. A guerra civil

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espanhola tornou-se uma das mais encarniçadas que se conhe-ce. O nosso Partido Comunista reuniu e deliberou prestar todo apoio e ajuda ao povo irmão. A consulta foi feita e da Espanha veio a resposta: “Dispomos de gente suficiente para combater. Precisamos de oficiais e técnicos”.

Foi nessa ocasião que se verificou o elevado grau de consciência e desprendimento dos nossos companheiros mili-tares. Foram muitos os que, deixando aqui suas famílias e seus interesses pessoais, se prontificaram a seguir. Partiram incontinente para a Espanha, onde tiveram atuação destacada nos combates: Carlos da Costa Leite (que foi promovido a major pelo governo espanhol), Guei da Cunha, o tenente França, Correia de Sá, Apolônio de Carvalho e outros.

Apolônio de Carvalho, depois que terminou a guerra espanhola, permaneceu vários anos na França participando, com sua esposa da resistência ao nazismo, sendo ambos conde-corados por atos de bravura.

Depois de uma ligeira parada no Rio, seguimos para São Paulo, onde a direção do Partido pretendia se estabelecer por um longo período. Chegamos ao nosso destino e tivemos que cooptar três elementos para recompor o Bureau Político, sendo um deles o secretário do CR de São Paulo como era de praxe; e outros dois para substituir em caráter temporário Martins e Lacerda que estavam em Moscou. Os três cooptados foram os seguintes: Paulo (Hermínio Sacheta), Luiz (Hílio Manna) e Barreto (Heitor Ferreira Lima). Todos indicados pelo Comitê Regional. Hílio Manna e Sachetta ficaram incumbidos do setor de finanças, função que já vínhamos exercendo.

Fizemos restrições ao Barreto porque era do nosso conhecimento que ele já tinha pertencido a Direção Nacional nos idos de 1932-1933 e fora expulso do Partido por atividades

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divisionistas. Achamos estranho que ele tivesse voltado ao Partido em São Paulo, sem que a direção nacional tivesse sido avisada. Só depois de muitas explicações e justificativas por parte do CR, foi que resolvemos aceitá-lo.

Transcorria o ano de 1937. Contrariando os desejos continuístas de Vargas, o problema de eleições para presidente da República veio à tona. Através da imprensa, as correntes políticas passaram a uma ação mais concreta, as pressões culminaram com o surgimento dos primeiros candidatos. Primeiro surgiu Armando Sales de Oliveira, com o apoio do antigo PRP. Depois, surgiu o nome de José Américo, ligado a setores da antiga Aliança Liberal e apoiado por um grupo de intelectuais de esquerda.

Os fatos indicavam que os planos de Getúlio eram de evitar eleições e continuar no poder, reforçando a ditadura. Para ganhar tempo, seus pregoeiros criavam impasse impug-nando os candidatos surgidos e reclamando um “tertius” que, embora não declarassem, não era outro senão o próprio Getúlio.

Foi convocada uma reunião do Bureau Político para deba-ter o problema. À reunião compareceram os titulares Bangu, Morena, Câmara Ferreira, Elias, Dreifus, Xavier, Paulo Sachetta, Luiz (Hílio Manna) e Barreto (Heitor F. Lima). Abrindo os deba-tes sobre a ordem do dia, as eleições, o Secretariado pela voz de Bangu apresentou os seguintes pontos de discussão: Primeiro: o inimigo principal, no país, contra quem devíamos concen-trar o nosso ataque era “a ditadura”; Segundo: um balanço da correlação de forças entre a revolução e a contrarrevolução, indicava que o PC atravessava uma fase difícil, decorridos dois anos apenas da derrota da insurreição de 1935, lutando pela sobrevivência e para conquistar e manter um mínimo que fosse de contato com a massa; Terceiro: para tentar frustrar os

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planos de continuação e reforçamento da ditadura, o PC devia lutar pela vitória de um candidato à presidência da República que tivesse maior possibilidade de restabelecer as liberdades democráticas. Esse candidato, a nosso ver, era José Américo; Quarto: o nosso apoio a esse candidato seria direto ou indireto, dependendo da adoção pelo candidato, de um a plataforma de governo que incluísse um mínimo de programa de interesse nacional popular.

O “trio” Paulo-Luiz-Barreto, usando plenamente do direito de defender suas opiniões, apresentou a tese da equi-distância com relação aos candidatos à presidência ou seja: “o não envolvimento” do PC na campanha eleitoral, a não ser para desmascarar a todos, pondo no mesmo saco a ditadura e os candidatos que pretendiam substituí-la. Isto significava que o PC, segundo interpretamos, devia se meter no casulo da falsa pureza ideológica, cruzando os braços. Essa atitude, “por estra-nha coincidência”, correspondia perfeitamente aos interesses continuístas da ditadura.

Os defensores da equidistância, contudo, não podiam se queixar: tiveram toda liberdade de defender seus pontos de vista, certos ou errados. Só que depois de longos debates, na hora da votação, ficaram em minoria, só os seus três votos apareceram.

Aparentemente, saíram conformados da reunião, como é justo e democrático. A minoria se submete à maioria e toca para frente. Dias depois, eles lançaram manifesto ao público, com ataques ao Partido e acusações pessoais e caluniosas aos seus dirigentes, citando além dos pseudônimos, os nossos nomes verdadeiros. O mais importante: levaram todo o dinheiro do Partido que estava em seu poder, pois eles, como foi dito, eram tesoureiros.

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O golpe foi violento e traiçoeiro. A situação ficou difí-cil para nós sob todos os pontos de vista, inclusive da segu-rança. Não tínhamos recursos, nem aparelhagem suficiente nem tempo para convocação de uma conferência nacional. Era urgente tomar uma decisão. Alguns dirigentes de nosso Partido, Honório, Fernando Lacerda e outros estavam em Moscou. Havia uma organização, a IC à qual nosso PC era filiado. Por que não apelar para sua decisão?

Reunimos o Secretariado Nacional e decidimos reunir todos os impressos publicados pelo grupo divisionista e todo o material editado por nós. Designamos um membro do Secretariado, Xavier, para ir a Moscou levando todo esse material para que a IC, com a participação dos nossos dirigen-tes que lá estavam, decidisse sobre o que estava ocorrendo em nosso Partido. Como Secretário Geral e como principal acusado pelo “trio” divisionista, escrevi uma carta pondo meu cargo à disposição do Partido e da própria IC. Nessa carta, eu dizia que continuaria desempenhando minhas funções até ser substituído.

Logo que o nosso emissário chegou ao seu destino e fez a entrega do material acompanhado do seu relatório verbal, a rádio de Moscou, que naquela época era muito ouvida no Brasil, começou a irradiar uma mensagem expulsando o grupo divisio-nista-trotskista: Paulo (Hermínio Sachetta), Luiz (Hílio Manna) e Barreto (Heitor Ferreira Lima). Com isso, estava liquidado a faça-nha do grupelho, desmascaradas as suas mentiras e calúnias.

Quanto à minha renúncia, não foi sequer tomada em consideração. Pela terceira vez, tive que assumir o cargo de Secretário Geral do PC sem nunca ter pedido ou feito qualquer empenho para tal, muito embora eu me sentisse honrado com a distinção, não vou agora me acobertar com o manco da falsa

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modéstia. Também nunca me queixei do peso que carreguei nos ombros durante tantos anos. Os apertos e as agruras que passei fazem parte da luta, acho tudo muito normal num partido revolucionário de vida ilegal, que sofre toda sorte de restrições e de dificuldades.

Quanto às ofensas e calúnias que os provocadores e divi-sionistas infiltrados nos dirigiam, não nos causam surpresas. Afinal de contas, o trabalho do aparelho da repressão não consta somente da agressão física de prisões e torturas. Outras formas sutis de agressão são postas em prática, na vã tentativa de desmoralizar a revolução e seus líderes. Isso sempre ocorreu no mundo inteiro.

Tais ataques e injúrias, partindo de trânsfugas e inimigos declarados da classe operária, têm razão de ser, apresentam-se dentro de uma certa lógica. Se em vez desses ataques e calúnias, esses indivíduos nos dirigissem elogios, aí sim, nós ficaríamos bastante surpresos e seriamente encabulados.

O que é importante ressaltar é a firmeza com que o nosso Partido reagiu diante das provocações do grupelho trotskista. Apesar de debilitado pelos golpes sucessivos desferidos pela ditadura, o PC se manteve coeso e disciplinado, destacando-se a campanha eficiente de Otávio e Laura Brandão, através da Rádio de Moscou.

Voltemos ao assunto da campanha para as eleições de 1937, que serviu de pretexto para toda a ação nefanda do grupo divisionista. Não houve apoio do PC a nenhum candida-to, simplesmente porque deixaram de haver candidatos. Como todos sabem, não houve eleições presidenciais de 1937. Getúlio deu o golpe, como se esperava. A ditadura do “Estado Novo” tomou novo impulso e a história novos caminhos.

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Depois dos acontecimentos de São Paulo, a direção nacio-nal do Partido voltou para o Rio, disposta a ficar em definitivo. Realmente ficou de fins de 1937 a princípios de 1940.

Este foi um período dos mais duros de nossa história. Isso porque a partir do golpe branco de 1937 que o famigerado Estado Novo atingiu seu auge, com a criação do seu respaldo jurídico, com o controle absoluto da imprensa falada e escrita através do DIP, com o domínio dos sindicatos e organizações de massa pela polícia política, com a espionagem generalizada e com a repressão fascista mais brutal.

Apesar de tudo, a direção do Partido conseguiu se firmar no Rio de Janeiro, montando seus aparelhos, sua imprensa ilegal, penetrando nas empresas, reatando suas ligações com os Estados.

O ambiente era tenso, de terror e de guerra e era nesse clima que tínhamos de trabalhar. Era preciso esclarecer a opinião pública, dizer em manifestos e jornais ilegais o que não era possível divulgar legalmente, concitar o povo para a luta contra o inimigo comum da humanidade, o nipo-nazifascis-mo. Isso tinha que ser preparado na absoluta clandestinidade, sabendo cada um de antemão, o que nos aguardava, caso fôsse-mos presos, sabendo claramente que éramos todos candidatos às câmaras de torturas dos carrascos de Felinto Müller.

Foi com esse objetivo que instalamos nossa tipografia (mais uma) na rua Engenho do Matos, em Tomás Coelho, onde foram residir o companheiro Júlio Barbosa, sua esposa, D. Alice, e filhos menores.

Júlio e D. Alice – de saudosa memória – eram um casal que conquistava amizade logo aos primeiros contatos. Havia um entendimento perfeito entre ambos, não era preciso argúcia para se perceber que eles se amavam seriamente. Numa época de expectativas e sobressaltos, a calma dos dois era absoluta,

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viviam como se nada existisse de anormal em redor. Sabiam manter uma prosa agradável, era um prazer conviver com eles.

Eu morava, na ocasião, na Piedade e fazia, diariamente, o trajeto a pé de casa até a oficina ilegal, passando pela Botija e pela estação Tomás Coelho, levando os originais para compor e imprimir. Ensinei ao Julie Barbosa a profissão de tipógrafo e ele passou a tomar conta do serviço, mas o material tipográfico era insuficiente, eu tinha que ajudá-lo. Tinha que corrigir provas e fazer clichês em madeira, a canivete (xilogravura), não só para suprir a escassez de tipos para os títulos, como também para a ilustração do jornal. A tarefa mais difícil era fazer um velho prelo funcionar sem barulho, quando sua maior reivindicação era a aposentadoria, mas o material saía.

Jornais e manifestos, aos milhares, eram entregues ao aparelho de organização para a distribuição. Outros candidatos voluntários às salas de torturas transportavam esse material em trens, navios ou caminhões para os mais longínquos rincões do país. Assim, a mesma palavra de incentivo de orientação podia ser lida pelo trabalhador amazonense, nordestino, gaúcho ou paulista. Esses leitores anônimos também eram candida-tos eventuais às salas de torturas, porque alguém que fosse encontrado com um desses impressos era o suficiente para ser considerado suspeito de comunista e levado aos pavorosos tormentos medievais.

Os candidatos às salas de torturas não eram grupos isolados de aventureiros e visionários. Eles faziam parte de uma cadeia imensa e poderosa espalhada por todos os países do mundo, disposta a esbarrar por todos os meios o avanço das hordas fascistas e assegurar o triunfo das forças do progresso e do socialismo.

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IV – AS PRISÕES

A casa onde eu morava no morro da Piedade era uma meia-água modesta, localizada numa rua discreta com quin-tal na frente e nos fundos. O local era de meu agrado. Sossego completo, as crianças – três nessa época – dispondo de espaço e de sol. Havia uma saleta com a estante de livros, um convite ao descanso e a meditação.

Naquele dia, passei a manhã em casa reunindo e comple-tando a matéria para o jornal. Ao meio-dia já estava tudo pronto. Fui chamado para o almoço, à mesa encontrei os meni-nos sentados era um prazer ver aqueles tiquinhos de gente compenetrados, procurando manejar os talheres como pessoas grandes. Terminando o almoço, me despedi da mulher e das crianças e saí rumo à tipografia, seguindo o costumeiro trajeto.

Na casa da rua Engenho do Matos, encontrei o portão aberto. Estranhei este detalhe porque nós havíamos combina-do que o portão seria mantido trancado – uma chave estava em meu poder – isso como medida de segurança, indicando “caminho livre” e também para evitar que pessoas estranhas entrassem sem avisar e ouvissem o barulho da máquina. Pensei em não entrar, seguir em frente. O sexto sentido me alertava contra qualquer coisa de anormal, mas lembrei-me que esse fato já tinha ocorrido por duas vezes e tratara-se apenas de esquecimento. Resolvi, então, entrar. Subi cautelosamente os degraus. A porta de entrada estava encostada. Antes de bater, olhei pela janela aberta que dava para a sala de estar. Policiais armados até os dentes estavam de tocaia, vinham acompanhan-do meus passos desde o portão. Esperavam apenas a minha entrada na sala e como se viram descobertos, avançaram feito loucos para a porta, de arma em punho. Num gesto instintivo,

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tentei a fuga. Atiraram, mas foi no justo momento em que eu pulava os degraus na descida, não me acertaram. Continuei correndo, até que fiquei encurralado, com uma cerca de arame farpado pela frente. Não era mais possível escapar, estava preso.

Fui conduzido até a tipografia. Num quarto estavam detidos Júlio, D. Alice e as crianças. Eu fui levado para o outro quarto, puseram-me numa cadeira, nela fui amarrado com as mãos para trás. A polícia resolvera manter-nos ali, durante toda a tarde, na esperança de que alguém mais caísse na armadilha – coisa que não aconteceu – e aguardando a escuridão da noite para conduzir-nos para a Polícia Central.

A turma que ali estava – logo vim a saber – era constituí-da, justamente, dos espancadores e torturadores da seção de explosivos: Cegadas, Pequenino, Monteiro e outros. Também aquelas caras não podiam negar. A ferocidade estava estam-pada nelas de maneira inconfundível. Um deles, o Cegadas, sentou-se à minha frente e iniciou uma brincadeira para ele, certamente, muito divertida: com a mão espalmada começou a bater em cima do meu coração. As cuteladas obedeciam a um ritmo determinado. No princípio não me incomodou, mas com a continuação, comecei a sentir os seus efeitos. Os minutos foram passando, até que as pancadas passaram a abalar todo o meu corpo, produzindo um horrível mal-estar. Aquilo parecia não ter fim e só terminou quando o carrasco sentiu-se cansado.

Entendi que aquelas pancadas “inocentes” no órgão vital não passava de uma preparação visando quebrar a resistência física para os golpes decisivos que viriam depois. Para eles, era apenas um aperitivo. À noite, chegou um carro de polícia. Eu e o Júlio fomos colocados nele, espremidos entre os “tiras”, e o veículo tomou o rumo do centro da cidade.

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“PRIMEIRO DIA”

Chegamos à Polícia Central. Fui levado à uma sala onde estavam sentados, em poltronas enfileiradas, os maiorais da polícia. Eu estava de espírito prevenido contra os interroga-tórios, sabia que eles iam começar a qualquer momento. Fitei um ponto qualquer no espaço, procurei nada ver nem ouvir do que se passava naquela sala. Algumas perguntas foram feiras. Elas, no entanto, chegavam aos meus ouvidos sem sentido, como se não fossem dirigidas a mim. Um indagou a origem de uma marca que havia no meu rosto, outro perguntou onde eu mora-va. Como nenhuma pergunta teve resposta, um silêncio total passou a reinar na sala.

Muito tempo se passou. Todos me olhavam como se nunca tivessem visto gente, até que um deles ordenou: “Podem levá-lo”.

Os mesmos que me prenderam – Cegadas, Monteiro e Pequenino – conduziram-me através de corredores e salas. Em certa altura, recebi uma pancada na nuca – um murro ou um coice, não sei bem – que me projetou de encontro a umas cadeiras. Depois, uma porta se abriu e fui empurrado para uma espécie de corredor quadrado, com piso de ladrilho. Em cada parede desse quadrado havia uma porta, sendo que uma delas dava para uma privada e as outras para salas.

“Vá tirando a roupa!” — Ordenou um dos tiras. Comecei a me despir, enquanto eles tiravam o paletó e

arregaçavam as mangas. Fiquei só de cuecas. “Tire tudo!” — Rosnou o mesmo sujeito. Fiquei comple-

tamente nu. Eu não tinha ilusões, sabia que estava diante de uma

situação decisiva, de vida ou de morte. Sabia que o medo e o

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desespero seriam a minha ruína. Concentrei, pois, todos os meus esforços para manter a calma e não me apavorar.

Fui obedecendo às ordens sem inúteis relutâncias. Fui encostado a um canto da parede. Surgiu uma corda amarraram meus pulsos, um braço foi esticado para um lado e amarrado na maçaneta de uma das portas e o outro braço atado a outra maçaneta da porta do banheiro. A seguir, os pés também foram amarrados. Fiquei completamente imobilizado, de braços aber-tos como um crucificado.

Abriram uma caixa de espetos de bambu, lisos, achata-dos, pontiagudos. Outros apetrechos: um alicate, um sarrafo curto para servir de macete, garrafas com líquidos, uma bacia. Um dos policiais aproximou-se e bradou: “Como é, seu f. da p., vai dar o serviço ou não vai? Ele verificou que eu não estava com nenhum desejo de dar serviço, pois continuei calado.

Começou, então, a operação. Segurou firme um dedo de minha mão, colocou um espeto de bambu debaixo da unha e começou a bater com o sarrafo, como quem crava um prego. Contraí todos os músculos, cerrei os dentes. O espeto penetrou nas carnes, ultrapassou toda a unha. É impossível descrever aquela dor, tive que sufocar um urro na garganta, o meu primeiro impulso foi gritar berrar, mas contive-me. Depois, passaram aos outros dedos. Um a um os espetos iam sendo cravados, as unhas iam ficando levantadas e roxas, o sangue gotejando sobre o ladrilho.

Enquanto eu me mantinha em silêncio, os monstros cantavam. Acompanhavam o seu nefando trabalho ao ritmo de um estribilho que servia na época de propaganda pelo rádio dos cigarros Adelfi, como se aquilo não passasse, para eles de um divertimento. Na sua gíria, os espetos passaram a ter o nome dos cigarros. Havia uma ligação entre a propaganda dos cigarros

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Adelfi e o “trabalho” dos carrascos. As carteiras desse cigar-ro traziam vales que davam direito a prêmios aos fumantes e os torturadores eram também premiados pelos seus chefes, sempre que conseguiam arrancar alguma confissão de suas vítimas. Uma ideia digna de seus autores.

Todos os dedos da mão esquerda estavam cravejados com os espetos, passaram para a mão direita. O martírio não parecia ter fim. O serviço era feito, porém, com calma. Os espe-tos iam ficando enterrados, não havia pressa em retirá-los, eles davam a impressão de que as unhas cresceram de repente e viraram garras.

Eu contava os dedos espetados e os que faltavam espe-tar, calculava o tempo em que eu tinha de me manter com os músculos e os nervos tensos e fazendo aquele esforço tremendo para não gritar. Quando os dez dedos das mãos ficaram todos enfeitados, respirei fundo e julguei ter vencido aquele primeiro “round”. Enganei-me, o porque o primeiro “round” não termi-nara. Com surpresa vi que eles se abaixavam e começavam a meter os espetos nas unhas dos pés.

As torturas prosseguiram pela noite a dentro, o sadismo tomando as formas mais variadas: “mordidas” de alicate na barriga, torceduras dos testículos, queimaduras com ponta de charuto.

Finalmente, exaustos e suados, os algozes suspenderam as operações. Com o alicate arrancaram, uma a uma, as farpas das mãos e dos pés. Puseram numa bacia um líquido que disse-ram ser água vegetomineral e mergulharam meus dedos nessa água, à guisa de assepsia. A seguir, fui levado para uma sala ao lado, a alguns passos apenas do local das torturas.

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“SEGUNDO DIA”

Na sala onde me colocaram, puseram um investigador para me vigiar. Esse vigia, sentado à minha frente, tinha ordens para me manter de pé num canto de parede, de maneira nenhu-ma devia deixar que eu sentasse, dormisse ou cochilasse.

No início, o sentinela não teve dificuldade em cumprir sua missão. Dormir eu não podia, mesmo que quisesse. Logo após a minha retirada do “quadrado”, trouxeram para lá outras pessoas. Do canto onde eu estava ouvi vozes assustadas de homem e de mulher choro de criança, as mesmas ordens de “tira a roupa” e, a seguir, gritos pavorosos martelaram os meus ouvidos.

A porta que dava para o “quadrado” estava aberta e eu a dois passos dela. Os gritos e os soluços eram tão perto que me abalavam os nervos, podia ouvir perfeitamente as batidas do sarrafo nos espetos de bambu, era como se eles estivessem pene-trando em minha própria carne. As gargalhadas dos tiras, os deboches e os palavrões vinham de roldão com os gemidos das vítimas e me invadiam os sentidos, sem que eu pudesse fugir daquele inferno, eu tinha que suportá-lo, até quando, não sabia. Perdi a noção do tempo, todas as janelas estavam fechadas, as luzes acesas, não podia distinguir a noite do dia. Distinguimos o dia da noite pela visão: luz e sombra. Agora outros sentidos entram em função para a divisão do tempo. As horas de silêncio correspondem ao dia. Quando as carnes começam a ser dilace-radas no “quadrado”, quando os gritos, os ais e as gargalhadas enchem o espaço, é porque a noite chegou.

O suplício não sofre intermitência. Durante a noite, ele é violento, brutal, arrasador. De dia, o sofrimento é lento, morre--se aos poucos pela fome, pela sede. Morre-se devagarinho, de

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pé, as carnes se consumindo, o corpo diminuindo e afinando até ficar um esqueleto, a pele colada aos ossos.

De vez em quando, me vem um pensamento que procuro afastar: a mulher e os filhos. Não sei o que está havendo com eles, mas não posso pensar neles, sei que qualquer sentimenta-lismo é perigoso, o melhor é mudar as ideias para outra coisa, fazer de conta que eles não existem, muito embora isso muito tenha me custado.

Os dedos estão dormentes, não há dor localizada em nenhum ponto, porque é o corpo todo que me dói. Aperto os dedos e das unhas sai um sangue preto, pisado com mau cheiro.

Não sentia fome ainda, mas a sede ia aumentando cada vez mais, percebi que ela ia se tornar uma obsessão, no meu maior tormento. Procuro também afastar do pensamento a palavra água, mas é impossível. No mictório ao lado, deixaram a descarga automática funcionando, o barulho da água chega aos meus ouvidos como o som de uma cascata, sem parar.

Começo a sentir as pernas bambas, mas sou forçado a continuar de pé, sob a ameaça de uma correia larga que o inves-tigador empunha, à minha frente.

O tempo foi se escoando até que a noite chegou, pois ali estava a turma de espancadores para confirmá-la. Fui nova-mente levado ao “quadrado”. Agora, os apetrechos são outros: uma enorme palmatória, maços de jornais, indicando que novas formas de torturas iam ser postas em prática.

Fui amarrado de forma a deixar as mãos livres para receber pancadas de palmatória. Esta passou a funcionar pelo braço dos espancadores, o revezamento era feito quando um se sentia cansado. As mãos ficaram inchadas, redondas. Depois, passaram a bater nas nádegas, até deixar em carne viva. Por último, fui amarrado numa cadeira, esta foi deitada ao solo,

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deixando-me com os pés para cima. Reiniciaram as palmadas, agora na sola dos pés.

Nessa noite, estava presente um rapazinho ainda moço, de uns 18 anos presumíveis, que estava treinando para espan-cador. Quando iniciaram a pancadaria, esse rapaz ficou de tal forma excitado que dava gargalhadas feito louco, fingia soltar foguetes, imitava o seu chiado e estampidos, pulava, subia nas portas feito macaco, saltava lá de cima ao solo, tornava a subir, tornava a pular, dava gritos histéricos, num espetáculo inédito, coisa nunca vista nem imaginável.

A pancadaria continuava, minhas carnes começavam a rachar e o desgraçado do tarado a gritar e a pular como um possesso. A seguir, fui amarrado em forma de crucificado, trouxeram os jornais, acenderam tochas e começaram a me chamuscar como quem pela um porco. O cheiro de carne chamuscada e de cabelos queimados encheu o “quadrado”. Acenderam fogueiras aos meus pés, o calor tremendo e a fuma-ça me asfixiavam, a sede aumentou, a garganta ressecou. Os carrascos iam, alternadamente, lá fora, para respirar. Eu não podia sair dali. Estava sendo assado vivo.

E o miserável histérico a pular e a gritar delirantemente.

“TERCEIRO DIA”

Comecei a sentir uma dor de cabeça esquisita, insuportá-vel. Era um peso bem na nuca que aumentava gradativamente, como se qualquer coisa estivesse comprimindo e esmagando o meu cérebro. Pensei em traumatismo e na possibilidade de vir a perder o uso da razão. Fiquei desejando que a loucura

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viesse, na ilusão de que ela me tornaria insensível às dores e ao sofrimento.

O meu raciocínio, todavia, continuava a funcionar, ora atabalhoadamente, ora com perfeita lucidez, o corpo resistindo de tal forma as torturas, que me surpreendia. Nunca imaginara que o meu físico raquítico pudesse suportar tanta pancada, sem comer, sem beber e sem dormir. Quantas vezes desejei perder os sentidos, um desmaio qualquer que me aliviasse por alguns momentos, mas, nada de vertigem. Até a velha bronquite que outrora tantas noites de sono me roubara, desapareceu.

A fome começou a me atormentar. O estômago passou a latejar, comecei a sentir umas batidas enjoadas e persistentes nesse órgão, como se para ele tivessem se transferido as batidas do coração. Já devia estar chegando a noite, quando me trouxe-ram um prato de comida. Era farofa com carne seca. Antes de começar a comer, pedi água. Disseram-me: “Coma. Depois vem água”. Fiquei desconfiado daquele depois. A sede era maior do que a fome, eu sabia que não ia poder engolir aquela farofa sem água, com a boca ressecada, sem saliva.

Tentei comer. Ao por, na boca, a primeira colherada, compreendi que me haviam armado uma cilada: a comida era puro sal, tentavam aumentar a minha sede ao máximo, ao desespero. Botei fora a comida que estava na boca e afastei de mim o prato. Os investigadores trocaram entre si olhares irônicos, como se quisessem dizer: “Que pena! Não caiu”. Eles não compreenderam, porém, uma coisa: se em vez de farofa fosse água com sal, talvez eu tivesse bebido, tal era a sede que me atormentava.

Mais tarde fui levado ao “quadrado”. Amarrado, com os braços em cruz, aguardei os acontecimentos.

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Vi, no chão, a caixa com os espetos de bambu, o sarrafo, o alicate, a bacia e as garrafas, o material para o suplício das unhas. Como eu já havia passado por aquela espécie de tortura, julguei que aqueles apetrechos não estavam a mim destinados. Entretanto, a sala de torturas é uma caixa de surpresas, nunca se pode prever o que vai acontecer. Logo pude constatar o meu engano, os “adelfis” estavam ali à minha espera.

O rito infernal ia se repetir, preparei-me para enfren-tá-lo. Começaram a cravar os espetos sob as unhas, reabrindo as feridas, fazendo espirrar sangue e pus. Em vez de contrair os músculos, relaxei-os por completo e gritei com toda a força que me restava. Verifiquei que esta era uma forma melhor de suportar o martírio.

Quando os espetos foram cravados em todos os dedos das mãos, começaram a praticar uma nova variação de tormento. Com alicate retorciam os espetos nas feridas, de modo a que a parte mais larga das farpas ficassem para cima. As unhas ficavam, assim, suspensas ao máximo, restando presas apenas os dois cantos laterais. Depois as farpas foram retiradas dos dedos das mãos e, novamente, cravadas nos dedos dos pés, repe-tindo o que haviam feito no primeiro dia. Com a inovação do retorcimento do bambu.

Novas fogueiras de jornais foram acesas – parecia que o desejo dos monstros era me assar em fogo brando – o calor aumentava a sede, aquela sede que se tornara ideia fixa.

Depois, passaram a puxar o órgão sexual com o alicate e a torcer os testículos. Essa forma de tortura ocasionava dores horríveis. Os órgãos estavam inflamados, eu temia pelas conse-quências. Lembrei-me do que aconteceu com um companheiro Ceará – uma das vítimas desses brutais espancamentos – que

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ficou urinando por um buraco, em consequência de pancadas nos órgãos genitais.

O curioso é que os carrascos deixaram de fazer pergun-tas, certamente, por julgá-las inúteis, diante do meu silêncio, pois todas as que fizeram ficaram sem resposta.

“QUARTO DIA”

Os novos métodos de tortura que a polícia estava pondo em prática eram considerados por ela própria como científicos. Os algozes recebiam ordens para evitar lesões físicas ou aleijões que pudessem, mais tarde, “dar na vista” e produzir provas “visuais” irretorquíveis nas vítimas. Só que esses métodos, frequentemente, falhavam. Quando um ficava louco, quando outro punha termo à vida ou quando um terceiro – num gesto instintivo – tentava a fuga ou resistia à prisão era alvejado impiedosamente pelas costas, a “ciência” dos métodos torna-va-se uma irrisão. Tais “falhas” eram consideradas apenas como acidentes lamentáveis, mas sem importância.

Dentro dessa orientação “científica”, havia um médico acompanhando os trabalhos, com a missão de avaliar a nossa resistência física ou fazer soerguer as forças a um corpo que baqueasse. O médico que nos assistia – o doutor Mariozinho – era um sujeito pequenino, franzino. Ele veio me examinar. Olhou-me, pegou no meu pulso, auscultou. E concluiu que meu estado físico era excelente, que eu era de uma resistência fora do comum.

Esse elogio, noutra oportunidade, muito me teria desva-necido, mas, naquela ocasião, ele queria dizer que eu estava em

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condições de suportar as torturas e que estas podiam continuar sem perigo.

Eu sempre tive um grande respeito e admiração aos médi-cos, sempre achei nobre e honroso o seu mister de salvar vidas e diminuir os sofrimentos da humanidade, mas ali estava um, empenhado justamente no contrário, em prolongar os padeci-mentos de seus clientes. Essa era mais uma estranha revelação da “caixa de surpresas” da Polícia fascista do “Estado Novo”.

Enquanto o clínico me examinava, o meu raciocínio diva-gava. Esse médico consegue entrar com facilidade em nosso organismo, vai ao coração, aos pulmões, pode vasculhar tudo por dentro. Há um ponto em que ele não conseguirá penetrar: no nosso pensamento. Isso porque, se ele conseguisse adivinhar o que estou pensando a seu respeito, na cerca eu levaria agora mesmo, mais um bofetão ou um pontapé.

O doutor foi embora, mas sua visita agravou o meu estado de nervos. As esperanças de que as torturas pudessem ter um fim próximo se desvaneceram. Agora eu já sabia que as torturas iam continuar por muitos dias, pois o médico não acabara de concluir que o meu estado físico era excelente?

Tive a impressão de que o peso da nuca aumentara vários quilos, a cabeça parecia que ia estourar.

A descarga do mictório continuou a funcionar. Ininterruptamente, o ruído da cascata enchia os meus ouvidos. A fome ia diminuindo – ela só me atormentou até o terceiro dia – enquanto que a sede ia aumentando. Tinha vontade de gritar: —Água! Água! Contive-me. Eu não devia dar demons-tração de fraqueza e de desespero. Continuei de pé no canto da parede, oscilando, me firmando ora num pé, ora noutro. Eu tinha que jogar o peso do corpo numa perna enquanto a outra descansava. Procurei me distrair espremendo as unhas,

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dedo por dedo, fazendo sair um pus fedorento, que estava sempre se renovando.

Senti um estremecimento quando ouvi os primeiros passos no “quadrado”. Era a turma de espancadores que chegava com as novas vítimas. A sinfonia dantesca enche o ar. É uma repetição dos mesmos palavrões, gargalhadas e gemidos.

A mistura das gargalhadas com os gemidos me causa uma estranha sensação, a inconsequência dos sons me desconserta. Naquelas circunstâncias, a manifestação simultânea dos dois sentimentos diametralmente opostos – a dor e o prazer – era mais uma revelação da “caixa de surpresas”, eu jamais vira ou imaginara coisa igual.

Depois que cessaram aqueles gritos, chegou a minha vez. Naquela noite, com o diagnóstico do médico declarando que eu ainda estava em bom estado físico, os tarados caíram sobre mim com verdadeira volúpia. Um torcia um braço, outro torcia um dedo, outro apertava a garganta, pareciam urubus na carniça. Quando eu arquejava e as pernas cambaleavam, eles suspendiam as operações. Depois que eu reanimava, eles recomeçavam, procurando sempre os pontos mais sensíveis, as articulações, os órgãos genitais, os pulmões e o coração.

A imaginação criadora dos verdugos é fértil. Eles estão sempre a descobrir pontos vulneráveis no organismo e a cada descoberta exultam como se tivessem descoberto um tesouro. Isso aconteceu quando eles descobriram um calo, muito sensí-vel, no meu pé. Com um cabo de vassoura passaram o resto da noite a bater sobre o calo. É impossível descrever o que senti. Dessas pancadas originou-se um tumor entre os dedos, o pé inchou, ficou redondo como uma bola.

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“QUINTO DIA”

Pelos meus cálculos, os torturadores chegaram mais cedo. A simples presença dos monstros nos causa um inexprimível estado de apreensão e desassossego. Ficamos na expectativa de que um golpe traiçoeiro nos seja desferido a qualquer momento e nos sentimos completamente indefesos.

Monteiro aproximou-se e repetiu a pergunta que me fizeram desde o primeiro dia: “Onde é que você mora?” Permaneci calado.

O Pequenino, rindo, largou esta bomba: “Não é preciso dizer. Já estivemos lá, na sua casa, na rua tal. Sua mulher está perto de ter criança. Quando ela nos viu entrar na sua casa, com as metralhadoras nas mãos, teve um ataque de nervos, quase que aborta, tivemos que chamar o médico às pressas”. Continuou a dar detalhes sobre a casa para demonstrar que não estava mentindo.

Senti uma coisa esquisita pelo corpo, como se o sangue tivesse parado nas veias. Há pouco eu me indagava que espécie de golpe eu ia receber e este acabava de ser desfechado, fria e bruscamente, naquela notícia acachapante. O coração passou a bater desordenadamente, o torniquete que me comprimia o cérebro parecia ter dado várias voltas. Tive vontade de dizer: Miseráveis! Torturem-me! Cortem-me em pedaços! Mas, não mexam na minha família. A custo me contive, eu não podia perder a calma nem topar “provocações”, tinha que aparentar indiferença. Continuei imóvel e mudo.

Agora eles podiam a qualquer momento, trazer a minha mulher e os filhos para a sala das torturas, como já fizeram com outros. Com o estado adiantado de gestação e os nervos abala-dos em que se encontrava, a mulher não resistiria a uma tal

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prova. Restava a esperança de que a polícia, com seus métodos científicos, não quisesse correr os riscos e as responsabilidades da morte de uma parturiente em tais circunstâncias, com a consequente repercussão que poderia ter na opinião pública. Essa esperança, todavia, me parecia frágil e eu me sentia agora num estado da maior aflição.

Aos meus ouvidos, chegava o som de uma cachoeira. Donde vinha esse barulho? E eu me lembrava: é a descarga do banheiro, ao lado. Eu sentia que ia acabar enlouquecendo. A boca estava ressecada, a garganta me ardia. Passei a estudar um meio de pôr fim a tudo isso. Sabia que estava num segundo ou terceiro andar, mas as portas e janelas estavam fechadas. O “tira” continuava sentado à minha frente, não arredava o pé.

Procuro afastar do pensamento a ideia do suicídio. Espremo os dedos, o pus fedorento nunca para de sair das feri-das. É isto o que eu faço sempre que procuro afastar um mau pensamento. Aperto e solto rápido as pontas dos dedos, o líqui-do purulento dá uns estalinhos esquisitos sob as unhas.

Do “quadrado” chegam os primeiros sinais de atividade. Preparo o espírito para enfrentar mais uma noite de terror.

Quando se aproxima a hora das torturas, todos os nossos sentidos se aguçam. O instinto nos coloca na situação de um animal acuado, fisicamente sem nenhuma chance de defesa. Moralmente, porém, há um escudo com o qual nos protege-mos: é a convicção de que nos batemos por um ideal justo e humano, a certeza de que o nosso sacrifício não será em vão e que o regime de iniquidades em que vivemos terá fatalmente que ruir, mais cedo ou mais tarde, diante da avalanche dos que têm fome de pão e sede de justiça. Esta convicção, em nenhum momento, me abandonou.

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Quando os gritos cessaram, chegou a minha vez, fui levado ao “quadrado”. Os meus pés deslizam sobre uma massa pastosa. É o sangue ainda quente dos companheiros que me antecederam.

Mais uma vez fui amarrado às maçanetas das portas. Os carrascos reiniciam as torturas vasculhando as feridas das unhas. As farpas de bambu são espetadas e reviradas, as gotas de sangue e pus das mãos e dos pés vão se juntar às poças já existentes no ladrilho. O ar está impregnado de um cheiro sufo-cante de coisa podre, suor e fumo. Quase não posso respirar.

De vez em quando sinto uma picada nas pernas ou nos braços, o corpo estremece: são as pontas de cigarro ou de charu-to acesas que são encostadas à minha pele. Essas queimaduras deixam marcas passageiras, mas feitas de surpresa, abalam ainda mais os nervos já em frangalhos.

As bolhas e pequenas chagas vão se multiplicando pelo corpo, como se tivéssemos sido atacados de varíola. Cada hora, cada minuto que passa, sentimos que um pouco de nossa vida se consome e se esvai.

“SEXTO DIA”

Depois que saí do “quadrado” fui acometido de um acesso de sono. De pé no canto da parede desandei a cochilar, a cabeça pendia irresistivelmente para frente, como se eu perdesse de repente os sentidos. Um estalo forte como um tiro me desper-tou bruscamente. Esse estampido era produzido por uma larga correia que o investigador sentado à minha frente, vibrava sobre a mesa. A primeira pancada me produziu um susto tal que o corpo todo estremeceu. O “tira” achou graça.

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A dor de cabeça atingiu o máximo. O peso na nuca tornou--se uma coisa louca, insuportável. A vigília forçada de vários dias, as torturas, a fome, a sede, os sobressaltos, o cansaço, tudo isso acumulado, chegou a um ponto que as últimas reservas de resis-tência física iam se esgotando. A cabeça novamente pendeu para a frente, para a quase inconsciência. Nova pancada, novo sobressalto.

Faço um esforço sobre-humano para não cochilar, pois as pancadas na mesa funcionam como se fora na minha cabeça, mas não tenho forças para impedir os cochilos. Então, a cena se repete, numa sequência interminável de cochilos, pancadas e despertar assustado, cochilos, pancadas, cochilos, pancadas ...

As pernas tremem, cambaleio, mas consigo a custo me manter em pé. Não consigo, porém, manter a cabeça firme. O tormento continua. A pancada e o susto que abalam todo o meu corpo só poderiam ser evitados se fosse possível impedir o sono.

A cabeça pende mais uma vez. Num segundo sonho com um estimulante, um remédio fantástico que me mantém acor-dado e me salva da tortura. Nova pancada me faz estremecer e me traz à realidade da vida, ou melhor, à realidade da morte. Sinto a cabeça como se ela não fizesse mais parte do meu corpo, como se fosse uma coisa à parte, nela se concentrando todas as dores, todas as reações e as últimas pulsações.

Escutei os “tiras” dizerem que estávamos na semana santa, revivia-se o martírio de Cristo. Então, eu pensei: talvez tudo isto esteja acontecendo em nome dos ideais cristãos. Eles vivem falando em “ideais cristãos”, será que eles interpretam e aplicam os ideais cristãos dessa maneira, arrancando unhas, matando lenta e cruelmente as pessoas? A expressão “ideais cristãos” ficou no meu juízo, girando sem querer sair.

Naqueles momentos, a sonolência sobrepujou a todas as demais sensações – a sede, as pontadas no estômago, as dores

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nas pernas, as queimaduras. Cada vez que a cabeça pendia para a frente era como se eu caísse num vácuo. A queda não era o pior, mas o medo da pancada fazia com que eu a temesse e fizesse todo esforço para evitá-la.

O “tira” estava atento, aguardava apenas o momento em que minha cabeça descambasse para desfechar o golpe fatídico. Eu não tinha forças para me conter, as pancadas e as quedas no abismo vão se amiudando, o meu cérebro não aguenta mais, parecia que ia estourar.

Procurei decifrar o semblante do “vigia”, o riso de gozo e de ironia estava sempre presente no seu rosto, não consigo distinguir nenhum vestígio ou traço de humanidade. Terá ele família, filhos?

As pancadas tornaram-se mais frequentes, há um ferrei-ro batendo o malho numa bigorna, a bigorna é o meu cérebro. Cheguei a um ponto em que não conseguia mais coordenar nenhum pensamento. Em certos momentos não sabia onde eu estava nem o que estava acontecendo.

Alguém veio tirar-me daquela aflição. Seguro por um braço fui levado, como um sonâmbulo, para a sala de tortura. Lá estava o trio sinistro à minha espera, com todos os apetre-chos para a outra forma de suplício. Todos os meus sentidos passaram a “estado de alerta”, milagrosamente despertos da letargia que há pouco me prostrava.

Os inquisidores recomeçaram a manipular num corpo que é quase um esqueleto, onde a dor está generalizada, mas onde eles descobrem sempre pontos nevrálgicos. Remexem mais uma vez, as feridas. Chafurdam-se no pus com volúpia. Ao som das gargalhadas e do deboche, conseguem dar continuidade ao seu trabalho nefando, em mais uma noite de terror.

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“SÉTIMO DIA”

Nos momentos de crise, eu achava que tudo ia acabar. Caía no desânimo e chegava a desejar que a morte viesse o quanto antes para pôr termo ao martírio. Depois vinha a reação. Pensava nas coisas bela da vida, no lar, nos filhos, no despontar de um dia radiante, o sol iluminando campos verde-jantes, imaginava multidões desfilando, felizes, na grande festa da vitória. E voltava aquela esperança de que eu tornaria ao mundo dos vivos. O organismo reagia, parecia readquirir as forças perdidas, eu lutava para viver.

A descarga do mictório mais uma vez rouba-me o deva-neio. A sede faz-me delirar. Imaginei todos os meios de fazer chegar aos lábios ao menos umas gotas d’água. No banheiro não há pias nem torneiras. A descarga do mictório espalha a água no azulejo, não há meio de apará-la com as mãos. Além do mais, quando vou à privada, um “tira” me acompanha a dois palmos de distância.

Morrer de sede vendo a água se derramar aos meus pés tem qualquer coisa de diabólico. Sou acometido de súbitos e estranhos desejos como o de rolar pelo chão, rir, gargalhar, mas ainda tenho forças para reprimir os desvairados impulsos. Começava a pensar, com essa capacidade de autodomínio, se eu vier a ficar louco, certamente, serei do tipo calmo, silencioso. Terá isso algum sentido, alguma lógica?

Tive, de repente, uma ideia. Eu poderia aproveitar minha própria urina para matar a sede. Eu estranhava o fato de ainda ser possível urinar, não sabia donde vinha aquele líquido aver-melhado, se eu há sete dias não bebia nem comia. Era o processo de desidratação, concluí depois.

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A urina era pouca e eu passei a retê-la, por economia, aguardando um momento de descuido do “vigia” para apará-la com a mão e beber. Esse momento chegou, afinal. O investi-gador afastou-se por um minuto, eu enchi a mão e bebi em rápidos goles. O líquido quente e salobro deixou um gosto esquisito na boca.

Por alguns instantes, aquele latejar insuportável no estômago diminuiu. A sede, porém, não passou. Ao contrá-rio, exacerbou-se. A obsessão pela água continuou a me atazanar o juízo.

O efeito calmante da urina quente no estômago foi passan-do, as batidas enjoadas voltaram. Agora eu tinha que esperar o líquido juntar na bexiga e o investigador se descuidar. Esse descuido era hipotético. Eu fazia um esforço para definir meus atos, queria saber se estava agindo como uma pessoa sã ou se já estava fora do meu juízo. Chegava à conclusão de que minhas reações eram normais, eu não podia agir de outra maneira.

Era impossível continuar com aquela sede, eu tinha que beber água de qualquer maneira. Do mictório era impossível. Restava o vaso da privada. Sim, no vaso da privada estava a solução. Eu tinha noção exata dos riscos que ia correr. Certamente não ia escapar de uma infecção. Isso demonstra que meu raciocínio ainda regula, pensava eu. Mas, não importa o que virá depois. Qualquer morte é preferível a morrer de sede. Resta agora aguardar uma oportunidade, esperar um descuido do investigador.

Direi ao “tira” que preciso ir à privada, ele me acom-panhará e se colocará dois passos de distância, mas haverá um momento em que ele dá as costas e eu aproveitarei esse momento. Não sei porque não tive essa ideia antes. Nojo? Nessas alturas, quem sou eu para ter nojo, se estou a um passo da cova,

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onde serei devorado pelos vermes? Foi assim que aquela ideia repugnante nasceu e se robusteceu na minha cachola. Só resta-va o momento de pô-la em prática.

O investigador que veio render ao que estava de vigia, fez esta revelação surpreendente: “Hoje não vai ter sessão de esculacho, é Sexta-feira da Paixão”.

Trocando em miúdos, isto queria dizer que a sala de torturas não ia funcionar nesse dia, em sinal de respeito a cruci-ficação de Jesus Cristo. O cúmulo da hipocrisia!

Imaginei o Cegadas ajoelhado aos pés de um padre confessando os seus pecados, dizendo que torturou crianças, que colocou uma dessas crianças de 4 anos de idade, junto com o pai e a mãe – todos completamente nus – num corredor quadra-do, arrancando-lhes as unhas e praticando as mais torpes sevícias. O padre, naturalmente, surpreendido e horrorizado com a revelação, ficaria hesitante por não dispor de meios nem de autoridade para punir tão nefando crime. Acabaria dando alguns conselhos ao monstro, recomendando-lhe, como peni-tência, rezar alguns padre-nossos e ave-Marias.

Perdoem-me, os católicos. Não quero ser irreverente. Quero apenas ser fiel ao meu relato e dizer como funcionava o meu raciocínio, naquelas circunstâncias.

“OITAVO DIA”

Na noite anterior – Sexta-feira da Paixão – graças aos ideais cristãos da polícia fascista, não fui levado à sala das torturas. Não fiquei sabendo se lucrei ou se perdi com a benevolência religiosa dos tiranos, pois o meu desejo era que

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terminasse logo o suplício, qualquer que fosse o fim a mim destinado: viver ou morrer.

O “quadrado” deixou de emitir os seus gritos e gemidos infernais, o silêncio emendou com o da noite, até o dia seguinte. Agora só ouço a voz que vem de dentro de mim com uma força irresistível: ÁGUA! Tenho que beber água de qualquer maneira! A sede está me deixando louco.

Torno a pensar no vaso da privada. Já fui algumas vezes até lá, com o propósito de beber água, mas o investigador que me acompanha não dá oportunidade, fica grudado como um carrapato. Tenho que ter cuidado para não despertar suspeitas, o melhor é esperar a mudança da guarda.

Os acessos de sono são, agora, intermitentes. Nos interva-los surgiu um novo fenômeno até então desconhecido: a cabeça tomba repentinamente para a frente, mas de maneira rápida, numa sacudidela incontrolável. Creio que é uma consequência dos cochilos e dos sustos produzidos pelas pancadas da correia de couro sobre a mesa. As sacudidelas transformaram-se num cacoete insistente e penoso. Tiraram do vigia a oportunidade e o prazer de estalar a sua correia, pelo menos até que outro acesso de sono volte a me atacar. Só o aperto na nuca não me larga e continua a progredir. As dolorosas pulsações e o peso na nuca são duas coisas difíceis de descrever, eu nunca havia sentido nada na vida que se assemelhasse àquilo.

O doutor Mariozinho é um médico atento ao “seu servi-ço”, tem vindo diariamente me examinar e suas conclusões são sempre as de que eu ainda possuo reservas suficientes para continuar a suportar os suplícios. Ele repete os elogios às minhas qualidades de nordestino resistente, acostumado a aguentar as durezas da vida. Talvez ele pense que o nosso corpo esteja revestido de uma couraça protetora toda especial, que

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nos torna invulneráveis e insensíveis. O médico policial é uma espécie de batedor da “turma do esculacho”: vem sempre na frente. Depois do seu “diagnóstico”, fui levado ao “quadrado”.

Os espancadores reiniciaram o seu trabalho com certa apatia, como se realizassem uma tarefa demasiadamente corri-queira. Depois, foram se reanimando, como que estimulados por um estranho e cruel sentimento que aos poucos desperta e se agita em seu íntimo. Dentro em pouco são acometidos de verdadeira exaltação.

Os carrascos dão vazão ao seu sadismo, vão se reversando na pancadaria. Com a desidratação do organismo, o meu hálito se tornara insuportável. Parecia que estava podre por dentro. Percebi que o mau cheiro incomodava até mesmo os espanca-dores – eles que estavam habituados a lidar com a podridão e que pareciam sentir-se bem em revolvê-la. Passei a usar o meu mau hálito como autodefesa, à moda maritacaca: disfar-çadamente jogava o bafo na cara do algoz mais próximo. Ele recuava tonto. Tudo que posso fazer com vocês no momento, dizia comigo mesmo.

Em algumas ocasiões, os “tiras” davam mostras de cansa-ço, faziam uma pausa e o silêncio reinava por alguns minutos. Surgia, então, da sala vizinha – de onde comandava as opera-ções – o detetive Veras e vinha incentivar seus sequazes: “Baixa o pau nesse f.d.p.! Ele está bancando o “queixo duro”, mas aqui não tem disso não, ou ele fala ou vai ficar mudo para sempre”.

A voz de comando era obedecida. Incontinente, os mons-tros caiam sobre mim feito um furacão: socos, pontapés nas canelas, membros retorcidos, o mundo girava, o terreno fugia sob meus pés. O meu corpo transformara-se numa carcaça, mas o massacre prosseguia.

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O que mais me revoltava eram os apelos à delação: “Fala Bangu! Fala e te daremos água, cessaremos as torturas! “Eu pensava, se eu ao menos pudesse dizer também alguns pala-vrões! Nem isso eu podia dizer, para desabafar. Eu tinha que “engolir” os insultos calado, minha única resposta era o silêncio, apenas o silêncio.

Na oitava noite de torturas, paguei em dobro pelo “descanso” da Sexta-feira da Paixão

“NONO DIA”

Naqueles dias amargos, quando as forças pareciam querer me abandonar, eu procurava coordenar minhas ideias e pensava nos milhões de injustiçados que há por esse mundo afora. No meio dessa multidão imensa, eu distinguia caras bem conhecidas, gente do meu sangue, e sentia que não estava me sacrificando por uma causa estranha, ela me pertencia de corpo e alma. Nessas ocasiões, eu sentia desejo de viver para lutar por essa causa e para ver a sua vitória. Era isso o que me dava ânimo para resistir e viver.

A luta entre a vida e a morte estava travada, era difícil prever qual seria a vitoriosa. Sempre que eu fazia um esfor-ço para raciocinar, a dor de cabeça aumentava, eu sentia uma sensação esquisita, parecia que qualquer coisa se rompia no meu cérebro, algo como um véu e envolvia, amortecendo-o, paralisando-o. Impossível era saber quanto tempo durava esse estado de letargia. Quando, afinal, as ideias iam voltando e se aclarando, era como se eu tivesse saído de um pesadelo.

Dirigi-me ao reservado, acompanhado pelo investigador. Sentei-me no vaso da privada e aguardei o momento, mas o

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vigia não se afastava da porta, a um passo de distância. Em dado momento, ele virou as costas, fazendo menção de se retirar. Aproveitei o ensejo, levantei-me rápido e, com as duas mãos em concha, apanhei um punhado d’água do vaso. No momento em que levava a água à boca, recebi um bofetão, por trás. Era o investigador quer voltava no justo momento. A água se espalhou pelo meu rosto, frustrando o meu intento.

Voltei para o canto da sala, para o meu lento suplício. Foram-se as minhas esperanças de chegar aos lábios gotas d’água mesmo poluída. Continuei de pé, não sei, não compreen-do como as pernas conseguem sustentar o corpo e aguardo a hora de ser levado mais uma vez ao “quadrado”. A hora chega, a cena se repete.

O meu físico tornou-se um esqueleto insignificante, os “tiras” se aproveitam disto para me apelidarem de “Pequenino”. Fico revoltado com o gracejo, ao me lembrar que um dos tortu-radores, de alta estatura tem a mesma alcunha. Nada posso fazer para impedir essa forma sui generis de sadismo, que é a dos algozes se divertirem às custas de suas vítimas.

Descrever as torturas dessa noite seria repetir noites já descritas: os espetos nas unhas, o remexer de feridas purulen-tas, as torções de membros descarnados.

O rapazinho histérico que pulava e gritava durante as torturas não mais apareceu. Teria sido recolhido a algum hospí-cio? A ausência do bufão parecia ter tirado a inspiração aos carrascos que agem pachorrentamente, a sua lentidão prolonga o meu sofrimento, melhor seria que tudo acabasse de uma vez. Fico pensando que essa fleuma é calculada, que ela faz parte dos “métodos científicos” ensinados pelos nazistas e de que os policiais nativos se vangloriam.

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Sinto que a morte está rondando, a qualquer momento um golpe em falso pode produzir o fim. Não é isso o que me apavora e sim o fato de que a agonia se prolongue, é sobre-hu-mano o esforço que faço para me manter em pé.

De vez em quando minhas pernas cambaleiam, meu corpo fica suspenso pelas cordas que prendem meus pulsos, as mãos, inchadas, ficam roxas, quase negras. Isso me obriga a realizar um esforço enorme para me sustentar nas pernas e aliviar a dor dos pulsos. Por fim, as últimas reservas de resis-tência física se esvaem, meu corpo descamba definitivamente, até ficar inerte. O meu esqueleto é arrastado até a sala contígua.

“DÉCIMO DIA”

Mais uma vez fui atado ao “pelourinho”. As torturas recomeçaram. Os carrascos se esforçam para imprimir maior inspiração ao seu mister, mas isto vai se tornando cada vez mais difícil diante da minha fraqueza, do meu estado pré-agônico.

Por sua vez, o tal monstrinho histérico – o que gritava, ria, pulava e rolava no chão durante o massacre – continuou desa-parecido. Sua ausência parece ter diminuído o entusiasmo dos espancadores, tornando-os de tal forma fleumáticos que os seus chefes de vez em quando irrompiam de supetão no “Quadrado” para estimular seus asseclas, para evitar arrefecimentos.

As torturas prosseguem com maior ânimo, inexorável o esqueleto insistindo teimosamente, os meus gritos transforma-dos em longos gemidos arquejantes, incontroláveis, entravam pela noite a dentro, pareciam não ter fim.

De repente, houve uma correria na sala vizinha. Ouvia-se uma pancada na janela, barulho de vidros partidos caindo

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no chão. Gritos fortes vibraram no espaço: “Abaixo a ditadura fascista! Viva Luís Carlos Prestes! Os “tiras” passavam correndo feito loucos, sons desconexos, confusão, agarra, agarra. Senti que uma coisa muito grave estava acontecendo.

O tumulto foi aos poucos diminuindo até chegar a um silêncio total. Em segundos, a notícia se espalhou: Joaquim Câmara Ferreira – o companheiro Jurandir – que vinha sendo torturado, aproveitou um descuido do “tira” que o vigiava, correu para uma janela partiu com um soco o vidro e cortou os pulsos, ao mesmo tempo que gritava as frases acima descritas.

Foi operado na mesma hora, ficando fora de perigo de vida. A morte que lhe aguardava muito mais pavorosa viria muitos anos depois, quando foi massacrado sob torturas pela polícia de São Paulo.

“DÉCIMO PRIMEIRO E DÉCIMO SEGUNDO DIAS”

Vou perdendo a noção do tempo e das coisas. Os meus sentidos se embotam. As vezes tenho dificuldade em saber que parte do corpo me dói, onde estou, o que está havendo. Quando a mente se aclara, sinto que está se esvaindo o que me resta da existência, que minha vida está por um fio, a qualquer momento os prognósticos do doutor Mariozinho poderão ir “pro beleléu”. Os “tiras” já não insistem para que fique de pé durante o dia – insistência que agora seria improfícua, a não ser que arran-jassem um meio de escorar o meu esqueleto.

Desperto, constantemente, de um estado de inconsciên-cia, como se acordasse de um sono profundo, e fico em dúvida se tive um desmaio ou se simplesmente dormi. Acredito que esses intervalos de inconsciência são momentâneos, mas a

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recuperação dos sentidos traz de volta as dores, a angústia, a apreensão.

Ouço vozerio na sala vizinha. Os torturadores chegaram. Ordenam que me levem ao “quadrado” dos suplícios. Faço esfor-ço para caminhar, mas o estado de fraqueza me faz cambalear, os “tiras” me seguram pelos braços. Carregam-me. Amarram-me nas maçanetas das portas, fico dependurado pelas cordas, oscilando como um pêndulo. As torturas recomeçam. Param quando sentem que preciso ser reanimado. Reiniciam depois, para depois parar e depois recomeçar.

No 12º dia, chegou ao fim. Entrei em agonia. Fui estendi-do de costas no chão. Perdi os sentidos. Não sei quanto tempo permaneci nesse estado de coma. Também não sei o que fizeram para que eu voltasse à vida. Ao que parece, esta voltou lenta-mente. Aos poucos fui recuperando os sentidos.

Primeiro vi umas sombras que se moviam confusamente. Depois verifiquei que estava deitado no chão e em volta de mim estavam os espancadores e seu estado-maior, todos de cócoras me olhando com curiosidade. O doutor Mariozinho estava mais perto, ergueu minha cabeça e passou a despejar lentamente uma xícara de leite na minha boca, o líquido desceu aos poucos na garganta, aos poucos fui me reanimando.

Depois de permanecer nesse estado por muito tempo, o doutor Mariozinho segurou meu pulso e ao cabo de alguns segundos sentenciou: “Não adianta insistir. Este não aguenta mais”. Outro chefe ordenou, aborrecido: “Levem esse queixo--duro para a sala dos detidos”.

Dois “tiras” me ergueram e me carregaram, através de salas e corredores, para o local indicado. Deitaram-me no chão de uma solitária, onde só cabia uma pessoa.

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“A SALA DOS DETIDOS”

A sala dos detidos da Polícia Central não era bem uma sala. Era uma série de cubículos separados por um corredor. Esses cubículos estavam superlotados de presos políticos, todos em regime de incomunicabilidade. A insegurança e o terror eram a constante entre esses presos, pois a qualquer momento alguém podia ser retirado para interrogatórios, dos quais quase sempre voltava todo rebentado, quando voltava.

Certa vez, vi caminhar vagarosamente pelo corredor, seguro por dois investigadores, um corpo descarnado de um rapaz franzino, ainda jovem, quase não se aguentando em pé. Era Pascácio, um operário pernambucano, companheiro inte-ligente, firme, um caráter a toda prova. Diziam que ele estava sendo submetido às torturas e o seu estado de nervos ultra-passou os limites do suportável. Foi ao banheiro, apanhou uma lata de soda cáustica, inexplicavelmente, esquecida lá e bebeu o seu conteúdo. Não morreu na hora, mas o estômago devolvia todo alimento que ingeria e seu corpo foi afinado, as carnes se consumindo, até sucumbir, depois de longo sofrimento.

Quanto ao meu estado físico, a recuperação começou. A alimentação fornecida aos presos era horrível, mas os compa-nheiros faziam chegar ao meu cubículo um reforço em frutas e outros alimentos mais leves, de acordo com meu estado de fraqueza. Aos poucos, fui recuperando as forças até chegar ao meu estado normal.

Para tratar dos doentes, os cubículos da sala de detidos formavam um amplo hospital. A polícia dispunha de “enfer-meiros”, ou melhor dito, de “tiras” arvorados nessa função. As equimoses feridas, tumores e unhas semiarrancadas eram

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tratadas por esses enfermeiros para evitar, o mais possível, que deixassem marcas e aleijões denunciadores.

O companheiro Jorge da Silveira Martins, advogado, neto do Ministro de Estado nos anos finais do Império, teve um dese-quilíbrio nervoso e passava dias e noites gritando. O Silveira, que lá fora vivia a defender gratuitamente a todos os que neces-sitavam dos seus serviços profissionais, era agora também vítima das torturas que ele tanto combatera e denunciara.

A ditadura do “Estado Novo” podia se vangloriar de que estava bem aparelhada para a repressão. Tinha salas de torturas, tinha torturadores treinados por técnicos nazistas e tinha médi-cos e enfermeiros para servi-los e acompanhá-los. Fabricavam aleijados, neuróticos e loucos, mas não faltavam enfermarias, hospitais e manicômios. Tudo isso ali mesmo, dentro do próprio velho casarão da rua da Relação. Matava e fabricava suicidas, mas os cemitérios estavam lá fora para enterrá-los.

Transpor os portões dos calabouços fascistas era transpor as portas de um inferno.

A minha família criou um problema para a polícia. A mulher sem recursos de espécie alguma, em vésperas de ter filho, com três crianças sem terem para onde ir nem com quem deixar, pois não tínhamos nessa época parentes no Rio, era um embaraço. O parto era considerado perigoso, em vista das crises nervosas da parturiente, em tais circunstâncias poderia chegar ao conhecimento da opinião pública e repercutir, desfavoravel-mente, contra o governo.

No Rio Grande do Norte, os nossos parentes tomaram conhecimento rápido de nossa prisão e passaram a se movi-mentar no sentido de interrogar a polícia, através dos políticos, sobre o que estava ocorrendo e sobre o paradeiro da mulher e das crianças. A polícia encontrou a solução: mandou todos

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– mulher e filhos – para o Rio Grande do Norte, entregando-os ao meu sogro, que os recebeu de braços abertos, apesar do seu minguado ordenado de Secretário da Escola Normal.

Logo depois veio a notícia, numa carta: “parto difícil, a criança nasceu morta. Aliás, morta já estava, há dias, no ventre materno, segundo a informação. A mãe estava salva! O prestígio da ditadura não fora arranhado, se é que realmente poderia ser, por tão pouco. Os policiais podiam dormir tranquilos, não haveria recriminações.

Na “sala dos detidos” continuava cubículo isolado, estava um baleado. (Honório de Freitas Guimarães). Uma operá-ria de São Paulo estava noutro cubículo de mulheres, com as unhas arrancadas, em estado lastimável. Magra, franzina, tinha passado pelas torturas mais cruéis, mantendo-se numa atitude digna e corajosa.

Elias Reinaldo, outro operário pernambucano, andava se arrastando apoiado em muletas improvisadas. Fora ataca-do de polinevrite, em consequência das pancadas que lhe deram nas pernas.

Matias outro mártir, ficou com a região pubiana em chagas, que viraram cicatrizes, proveniente das queimaduras com tochas de jornais, “trabalho” da trinca Cegadas, Monteiro, Pequenino. A esposa desse companheiro, com os nervos abala-dos, acabou pondo termo a própria vida em São Paula. Nunca é demais repetir que a ditadura dessa época – como todas as suas congêneres – mantinha rigorosa censura aos meios de difusão, não permitia que esses crimes fossem divulgados, a não ser através de sua própria versão, manipulada, deformada.

Os dias, as semanas e os meses iam passando e não havia nenhum indício de quando a nossa situação ia se modificar. O desejo de todos era sair do “inferno” (polícia central). Ir ao

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purgatório (casa de correção). Essa classificação vulgar era feita zombeteiramente pelos “tiras” e simbolicamente correspon-dia à realidade. Isso porque poucos tinham esperanças de ser libertados. Os que não esperavam ter essa sorte, desejavam pelo menos tirar sua cadeia, grande ou pequena, em sossego.

Todavia, lá fora, as coisas não andavam muito tranquilas. A segunda guerra mundial começou. O nazismo iniciou a inva-são dos países da Europa, no seu sonho de dominar o mundo. A cartada fora lançada. Qual seria a posição do Brasil nessa luta decisiva? Era essa a pergunta que todos faziam.

“A SOLITÁRIA”

Mais de um ano passamos no inferno da Polícia Central, num ambiente de torturas, vilania, gritos, choros, insegurança, desespero, pressões, ameaças, crueldades, pavor, morte, suicí-dio. Toda essa avalanche de agonia e sofrimento que desabou sobre nós e nossa gente e que procuramos palavras para expri-mir e não encontramos, tudo que dizemos parece sem sentido, confuso e distante da realidade.

Entretanto, repentinamente, a situação lá fora começou a mudar o rumo da ditadura. Os navios da marinha mercan-te brasileira começaram a ser torpedeados pelos submarinos alemães, sob o pretexto de que transportavam mantimentos para os aliados. O povo, em grandes manifestações de rua, exigia que o Brasil participasse da guerra ao lado das Nações Unidas.

Sob pressão interna e externa, o governo de Getúlio Vargas teve que se definir e a guerra contra o eixo acabou sendo declarada. A ilha de Fernando de Noronha – ponto estratégico avançado no Atlântico – teve que ser evacuada às pressas. Os

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presos políticos que lá estavam, na sua maioria militares da Revolução de 1935, foram trazidos para o Rio e alojados na Casa de Correção. Em seguida também fomos transferidos para lá.

Dessa forma, em decorrência da guerra e das grandes transformações que se operava na vida dos povos de todo o mundo, a máquina da repressão, no Brasil, começou a perder o seu ímpeto, como se uma mão invisível tentasse travar as suas engrenagens. Estava findo o período tenebroso para os presos que estavam na Polícia Central.

A mim e ao Matias estava reservada mais uma surpresa. Em vez de nos colocarem juntos com os demais presos políticos, puseram-nos isolados numa solitária, sem qualquer justificativa, em frente ao cubículo em que estava Ari Berger. Este compa-nheiro ficou louco pelas torturas que sofreu e pela morte de sua esposa. Ela e Olga Benário Prestes foram entregues aos carrascos de Hitler pela polícia de Felinto Müller. Ambas foram assassinadas nos campos de concentração da Alemanha nazista.

Ari Berger passava dias e noites gritando, ficamos impos-sibilitados de dormir durante muito tempo, até que aos poucos fomos nos acostumando. O cárcere onde estava Berger não podia ser comparado a nenhuma jaula. A jaula do animal mais feroz permite o contato visual entre a fera e o mundo exterior. No antro em que estava Berger, nem isso era possível.

Tratava-se de um cômodo com apenas um vão alto, com grade de ferro que não permitia ver seu interior, mesmo de longe. Havia uma área ao lado, cercada por muros elevados, intransponíveis, com um portão de ferro, única entrada para os guardas. Embora nossa solitária ficasse bem em frente e nos banhos de sol pudéssemos, às vezes, chegar até ao pé do paredão, jamais pudemos ver sequer a sua sombra. Podíamos acompanhar seus passos pelos ruídos, mas vê-lo, nunca!

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Durante todo o tempo que estivemos na solitária, ou seja, durante muitos meses, nunca vimos entrar na prisão de Berger nenhum médico ou enfermeiro. Somente os guardas e faxineiros entravam lá, uma vez por outra, para limpeza. Quando terminou a guerra, em 1945, Berger foi anistiado, junto com todos os presos políticos e seguiu para a Alemanha Oriental. Lá foi submetido a longo tratamento de saúde. Depois soubemos de sua morte.

Do outro lado, por trás da nossa cela, ficava o pavilhão onde estavam alojados os demais companheiros. Nas horas de recreio eles jogavam futebol e sua algazarra chegava aos nossos ouvidos, nós ficávamos um pouco mais animados, mas, depois que eles silenciavam, a nossa solidão voltava mais depressiva.

Havia uma promessa de que nosso isolamento, injustifi-cável, iria terminar, que breve seríamos colocados juntos aos demais companheiros, mas o tempo corria e nada acontecia.

Os dias de visita constituíam uma pausa na monotonia de nossas vidas de isolamento na solitária. Nessa época, eu não tinha visitas, minha família continuava no Rio Grande do Norte, mas eu ficava contente só em ver a alegria do Matias, quando vinha alguém visitá-lo, de São Paulo, onde estavam morando sua companheira e sua filha.

Num desses dias como sempre, ele preparou-se, feliz, na expectativa desse encontro reanimador. A visita não veio, mas veio uma carta. Uma carta não é o mesmo que uma visita, mas sempre traz notícias, palavras de carinho e de alento.

Ele abriu o envelope com sofreguidão, tirou o papel e começou a ler. Sua fisionomia foi se transtornando, ele foi fican-do pálido e trêmulo, pensei que ia desmaiar. Na expectativa de mais uma desgraça, perguntei ansioso, o que tinha aconteci-do. Ele não disse uma palavra. Entregou-me a carta e caiu no pranto. A carta dizia que a sua esposa tinha se suicidado. Fora

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encontrada morta no banheiro. Que mais posso escrever neste capítulo? Qualquer coisa que eu acrescente me parece inútil.

O fim do nosso isolamento na solitária chegou, afinal. Fomos transferidos para o pavilhão em que estavam os outros companheiros e recebidos com o regozijo comum entre velhos amigos nessas ocasiões. Agora, podíamos praticar esportes, ler, estudar, conversar, ter informações mais amplas do que se passava por esse mundo afora. Toda essa terapia seria utilizada por nós, avidamente, para restaurar o físico e a mente, abalados pelas torturas e pelo longo período de isolamento. Aconteceu, nessa época, um caso curioso, que não podemos deixar de regis-trar: Depois de nossa vinda para a Casa de Correção, trouxeram também os “quintas colunas” – espiões nazistas apanhados em flagrante, quando indicavam, por meio de estações de rádio clandestinas, o roteiro dos navios mercantes brasileiros para que os submarinos alemães levassem-nos a pique, matando milhares de compatriotas e causando grandes prejuízos à nação.

Esses espiões e sabotadores nazistas ocupavam uma ala de um pavilhão, com o maior conforto. Cheios de dinheiro, conseguiam móveis, geladeiras, rádios e tudo mais que dese-jassem. Pareciam verdadeiros marajás. A cozinha do presídio lhes servia, com horário essencial, no refeitório, uma comida de superior qualidade, verdadeiros banquetes, comparada com a boia chinfrim que era servida aos presos políticos brasileiros, nacionalistas, comunistas e os próprios guardas.

A disparidade era tão chocante, que foi tirada uma comis-são para ir falar com o diretor do presídio e pedir que pelo menos, nos fosse servida uma comida igual à que era servida aos “quinta colunas”. O nosso pedido foi, imediatamente, atendido e passamos a ter um tipo de refeição que eles chamavam de “dieta” e que muitos dos nossos jamais tiveram, mesmo quando estavam lá fora.

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“A ILHA GRANDE”

Fomos avisados da nossa ida para a Ilha Grande. A Ilha Grande, como presídio, tinha uma pavorosa fama. Em capítu-lo anterior destas memórias, fizemos ligeiras referências ao pavor que a Ilha Grande inspirava aos presos comuns. Quanto aos presos políticos, meus irmãos Jonas Reginaldo da Rocha e Antonio Reginaldo Sobrinho lá estiveram por dois anos, quando vieram deportados do Rio Grande do Norte, juntamente com centenas de outros companheiros, após a revolução de 1935.

Era diretor do presídio, naquela época, o famoso Canepa, que se celebrizou pelas crueldades que infligia aos presos em geral, que tinham a infelicidade de cair sob sua guarda. Presos comuns e presos políticos viviam sob regime de trabalho forçado, obrigados a carregar Vigas, perigosamente, pelas montanhas, sem ter em conta a constituição física e a saúde de cada um.

Jonas, com um pouco mais de resistência, conseguiu subsistir aos maus tratos. Toinho, mais fraco, não resistiu e chegou a ser carregado nas costas pelo conterrâneo Epifânio Guilhermina que demonstrou, na hora da aflição, o seu elevado espírito de solidariedade, o que fez reforçar a estima e o apreço que sempre tivemos por ele.

Toinho voltou da Ilha Grande com os nervos abalados, nunca mais recuperou a saúde, acabando seus dias tristemente, num hospício, em Natal.

O mundo, entretanto, dá muitas voltas. A nossa ida agora para a Ilha Grande, já não inspirava pavor. O Brasil, como já foi dito, entrou na guerra ao lado das nações democráticas para combater o nazifascismo. Seria difícil prever qual a reação do nosso povo e dos pracinhas, após a vitória, diante da existência da ditadura do Estado Novo, com seus cárceres apinhados, com

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seus crimes e atrocidades. Não seria fácil fazer o povo enten-der essa contradição. Enquanto ele sacrificava sua vida para derrotar o nazismo na Europa, aqui mesmo em nosso país, se mantinha de pé uma ditadura implantada nos mesmos moldes nazistas. Além disto, as ruas das cidades estavam cheias de inscrições pedindo anistia e, nas manifestações populares de todo o país, era esse o clamor das multidões.

O governo de Getúlio sentiu que chegara a hora de recuar. Transferiu os presos políticos para a Ilha Grande e entregou a direção do presidio ao Coronel Nestor Veríssimo, caudilho gaúcho, ex-participante da Coluna Prestes, o elemento indicado para abrir caminho à transformação democrática e à anistia.

Um transporte da Marinha nos levou à Ilha Grande. Ao desembarcar, em Dois Rios, fomos recebidos na praia, por funcionários do presídio, que ali mesmo procederam a nossa identificação. Horas depois, estávamos instalados nos alojamen-tos a nós reservados.

No dia seguinte, depois do café, os portões foram abertos e pudemos sair, ir à praia, passear pelas ruas. Só não podíamos sair da vila sem permissão.

Nos primeiros passeios, ficamos conhecendo a figura curiosa do Coronel Nestor Veríssimo. Ele andava montado numa burra pachorrento e foi assim que o vi pela primeira vez: gordo, estrábico, fala mansa, costumava quebrar a seriedade de algu-mas conversas com um palavrão chistoso. Diziam que tinha o corpo cheio de marcas de perfurações por balas. Era um tipo patriarcal com fama de corajoso e justiceiro.

Os presos políticos da Ilha Grande (nacionalistas, socia-listas e comunistas) se consultaram e tomaram uma resolução com referência à guerra que o Brasil estava enfrentando, sob a bandeira das Nações Unidas, contra o nazifascismo. De acordo

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com a resolução, nós, os presos políticos mencionados, nos colo-cávamos à disposição do governo brasileiro a fim de seguir-mos, voluntariamente, para o front da guerra contra o eixo nazifascista. Finda a guerra, voltaríamos dispostos a cumprir, normalmente, até o fim, as penas a que fôramos condenados.

O nosso oferecimento formal representava apenas uma tomada de posição, pois não tínhamos ilusões quanto a sua aceitação, não só pela absoluta falta de bases jurídicas mas também por motivos discriminatórias de caráter ideológico, fáceis de imaginar.

A nossa decisão foi encaminhada através da direção do presídio. Entretanto, nenhuma resposta chegou até nós. Como fora previsto, a nossa proposta não foi sequer tomada em consideração.

Entre os “quinta colunas” presos na Ilha Grande, havia um rapaz brasileiro, tipão forte, carrancudo que chamava a atenção pelos motivos de sua prisão. Ele tinha sido convocado para as fileiras do exército e incluído no Corpo Expedicionário Brasileiro. Quando se aproximou a hora de embarcar para o front da Itália, ele deu um tiro no próprio pé, para fugir ao seu dever. De fato, não embarcou, mas foi preso e processado. Vangloriava-se do seu ato vergonhoso.

O coronel Nestor Veríssimo, diretor do presídio, abriu a possibilidade de trabalho aos presos políticos. Os que volun-tariamente quisessem, poderiam trabalhar, recebendo uma pequena remuneração. Essas frentes de trabalho constavam de serviços de pedreiro (construção de casas residenciais, sendo uma para hospedagem das visitas dos próprios presos políticos), carpintaria (construção de uma lancha no estaleiro existente), pintura, fabrico de carvão na mata próxima etc.

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O trabalho remunerado era importante, especialmente, para os que tinham família e não recebiam “montepio” ou qual-quer outro rendimento. O trabalho em si permitia também, uma mudança para melhor no sistema de vida seguido até então, pois a maioria dos presos políticos vivia encerrada nos cubículos, fabricando quinquilharias, dormindo ou passando o tempo com jogos e bate-papos quase sempre inúteis.

Com o novo trabalho proposto, os presos passariam a ter uma vida mais sadia, ao ar livre, alguns teriam oportunidade de aprender uma profissão, outros de exercitar a que já possuíam. Aconteceu que certos líderes presumidos, que não tinham gran-de necessidade de dinheiro nem estavam muito habituados ao trabalho profissional, deram o contra. Muitos estranharam que alguém pudesse ser contra o trabalho. Uma coisa tão normal, tão necessária e mesmo imprescindível à vida do operário. Conjecturas surgidas daqui e dali atribuíam a ciúmes dos tais líderes, receio infundado de perderem o controle de seus lide-rados, que iam se afastar de sua proteção.

Foi convocada uma assembleia do coletivo para resolver o assunto. Nos debates, os inimigos do trabalho declararam finalmente, as razões de sua atitude. Segundo eles, o trabalho proposto pelo diretor oferecia o seríssimo perigo de corromper alguns companheiros mais fracos. Por isso estavam contra. Esse conceito de fragilidade, essa suspeitosa acusação lançada no ar dessa maneira, indiscriminadamente, era vexatória e desconcertante.

O argumento em si era frágil demais e não foi difícil a réplica dos favoráveis ao trabalho. Disseram estes que trabalhar é um direito pelo qual lutam os povos em todo o mundo e que qualquer tentativa de impedir o exercício desse direito era uma violência. Mais grave ainda, era essa violência, quando partia

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de quem justamente devia defender e apoiar essa justa causa. Disseram mais, que o trabalho nunca foi meio de corrupção para o trabalhador e sim de subsistência. Sendo um meio de subsistência, tentar impedi-lo é mais do que uma violência, é uma ação desumana.

Quanto à corrupção, corrompe-se aquele que é corrup-tível e o corrupto, na sociedade capitalista, encontrará sempre meios de se corromper, quando bem o desejar. Se o trabalho fosse um fator de corrupção, que seria da classe operária, que vive do trabalho, seu único meio de vida? A discussão prosseguiu horas e horas a fio. Depois de três dias seguidos de calorosos debates a mesa teve que submeter o caso a vota-ção. A maioria votou pelo trabalho. Os inimigos do trabalho não se conformaram com a derrota. Abandonaram o coletivo, mudaram-se para outra galeria e formaram um novo coletivo minoritário. Realizaram a cisão sem fundamento, desnecessá-ria e ridícula.

Uma vez que não conseguiram “acaudilhar” a todos os companheiros, conformaram-se em ser chefes de uma minoria.

Trabalhou quem quis. Quem não quis não trabalhou, porque ninguém foi obrigado a nada. E ninguém se corrompeu nem se desonrou para desespero dos falsos profetas. Quando houve a anistia, vi “trabalhistas e não trabalhistas” abraçados, na maior alegria. Mais tarde em liberdade, estavam novamente irmanados na mesma luta. As pequenas querelas desaparecem, sempre que há um ideal mais forte.

Um grupo de presos políticos em abaixo assinado, requereu ao Coronel Nestor Veríssimo permissão para que todo aquele que assim desejasse, pudesse morar com sua família na Ilha Grande. O requerimento baseava-se na existência de um antigo projeto de criação de colônias agrícolas para presidiários, no qual estava

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incluída essa permissão. Segundo nos informaram, o diretor do presídio levou o ofício diretamente ao presidente Vargas, tendo sido por este despachado favoravelmente.

Em vista desse atendimento, todos os presos políticos passaram a ter direito de mandar buscar suas famílias para a Ilha, com casa de graça para morar, podendo retirar, sema-nalmente, os gêneros alimentícios em espécie, correspondente à etapa a que cada um tinha direito como detendo. Viveriam fora do presídio, tendo apenas que se apresentar na portaria pela manhã e à tarde e seus filhos podiam frequentar a Escola Pública existente na vila.

Como já havia o direito ao trabalho parcialmente remu-nerado, ficariam assim com a subsistência garantida, modesta, mas suficiente. O ofício solicitando a nossa moradia na Ilha foi assinado (se não me falha a memória) por Mauro, Brás, Azevedo, Bonfim, Epifânio Guilhermina, eu e outros.

Na margem do rio havia um velho edifício abandonado, que noutros tempos fora o hospital. Nós mesmos, os futuros moradores, restauramos, pintamos e dividimos o casarão em apartamentos, cada qual escolheu o seu. O tenente França tomou posse de uma casinha desabitada que havia próximo à praia e, caprichosamente, transformou-a num pequeno “bangalô”.

Antes desses preparativos, eu já tinha consultado, por carta, minha família sobre sua vinda para a Ilha. A resposta afirmativa veio rápida e decidida. Agora era só aguardar.

Quanto aos recursos financeiros para a viagem, ficou por conta da “campanha de ajuda aos presos políticos e suas famílias”, que funcionava no Rio e nos Estados. Graças ao traba-lho formidável de solidariedade encabeçado pelos abnegados companheiros Jorge da Silveira Martins, Fernando Lacerda e

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muitos outros, a importância suficiente foi arrecadada e envia-da ao Rio Grande do Norte.

O difícil, para minha família era realizar essa viagem por terra, já que a vinda por mar era impossível, devido aos frequentes torpedeamentos dos navios brasileiros pelos submarinos alemães. Estradas de rodagem, praticamente, não existiam e uma viagem como essa, na época, era uma verdadeira temeridade.

Minha mulher, com as três crianças, resolveu enfrentá-la. Arrumou a trouxa e se pôs na estrada. O filho mais velho tinha 6 anos de idade, o menor 5 e a menina 4.

Para se ter uma ideia do feito, vamos descrever o roteiro. Essa viagem, nos dias atuais, é uma viagem comum, de ônibus, e leva 4 ou 5 dias. Naquele tempo, ela foi realizada da seguinte maneira: de Mossoró a Natal, em caminhão do Correio; de Natal a Recife, de trem; de Recife a Petrolina, num jipão do Exército; de Petrolina a Juazeiro, na Bahia, de barca; de Juazeiro a Pirapora em Minas, pelo Rio São Francisco, de gaiola; de Pirapora a Belo Horizonte de trem, com baldeações; de Belo Horizonte ao Rio de Janeiro de trem, idem; do Rio a Mangaratiba, de trem; de Mangaratiba a Abraão (Ilha Grande), de Lancha (a balalaika); de Abraão a Dois Rios de ônibus.

Com mais de 2 meses de viagem, chegaram ao presídio da Ilha Grande, a mulher e os três filhos. Magros e queimados de sol, de fazer dó, mas chegaram. Ainda com saúde, alegres e felizes.

A minha família, da mesma forma como as outras que iam chegando, já encontrou a casa pronta, com móveis impro-visados e utensílios domésticos indispensáveis. Para isso, favoreceu o espírito de solidariedade e ajuda mútua e também o fato de que muitos ali eram operários especializados. Tínhamos, de boa qualidade, marceneiros, pedreiros, pintores, mecânicos,

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ferramenteiros, além daqueles que tudo fazem e de tudo enten-dem um pouco e que são utilíssimos nessas horas. Tudo de graça, pelo sistema do cooperativismo.

Para garantir e reforçar a alimentação, já havíamos iniciado a criação de galinhas, patos e cabritos. Tínhamos, ao lado da casa, o rio que dava alguns robalos e bem perto estava a praia, onde a pescaria de arrastão nos fornecia peixes fresqui-nhos, quase sempre com fartura. O leite e as verduras vinham da vacaria e da horta do presídio. Aos domingos, havia uma feirinha dos caipiras, onde podíamos nos abastecer por bons preços, de frutas e algo mais que nos faltasse.

As crianças se recuperaram rapidamente da longa viagem, ficaram fortes e foram entrando para a escola, à media que iam atingindo a idade. Assim, ia transcorrendo a nossa vida de presidiários, agora amenizada com as novas medidas humanizadoras.

Entretanto, à tarde, quando parávamos de trabalhar, quando o sol começava a se esconder no horizonte, é que a gente fazia esforço para afugentar a tristeza e evitar a depressão. É que, por mais que procurássemos nos convencer de que tudo ia bem, não conseguíamos sufocar os nossos anseios de liberdade.

Não estávamos com nenhuma corrente nos pés (também pudera!), os “quadrados”, as “as salas de detidos” e as “solitá-rias” ficaram para trás, mas estávamos numa ilha-Prisão.

Tudo corria normalmente. No Cassino dos Guardas, realizou-se uma festa dos funcionários do presídio. O Coronel Nestor Veríssimo esteve presente. Depois que tudo terminou, ele sentiu-se mal. Disseram que houve qualquer complicação relacionada com seus antigos ferimentos. A doença agravou-se rapidamente. Alguns dias depois estava morto.

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Em substituição ao falecido, assumiu a direção do presídio o Major Coimbra, também gaúcho. O novo diretor manteve todas as regalias instituídas pelo seu antecessor, demonstrando boa vontade no tratamento com os presos políticos. Decididamente, uma aura aprazível estava amenizando nossas penas. Só faltava a anistia. Estávamos certos de que ela não tardaria a chegar.

Nas frentes de combate da grande guerra, começou a derrocada das tropas do “eixo”.

No campo decisivo da Europa, pelo Leste, a fina flor do exército nazista era tangida de roldão pelo exército vermelho. Pelo Oeste, com a abertura da segunda frente pelos aliados, a fuga dos outrora orgulhosos representantes da pretensa raça superior era em sentido contrário, em direção a Berlim. No Sul, no front da Itália, onde combatia a valorosa Força Expedicionária Brasileira, fechava-se o grandioso cerco. Só restava às feras nazistas o seu próprio covil, onde seriam definitivamente dizimadas.

19 de abril de 1945. Foi decretada a anistia ampla para todos os presos políticos no Brasil. Quando a notícia chegou ao presídio da Ilha Grande, embora já fosse esperada, a primeira reação que nos causou foi de perplexidade. Depois, a realidade foi se formando aos poucos em cada um, até se transformar numa alegria geral, transbordante, incontida. Alegria de quem se sente renascer para uma nova vida. A festa espontânea, cada qual festejou ao seu modo, sem limites de tempo ou de progra-mação. Um transporte da Marinha foi posto à disposição do diretor do presídio, para nos levar para o continente.

A situação de Adauta, esperando bebê para aqueles próxi-mos dias, nos tirou a chance de viajarmos todos juntos para a liberdade. Combinamos, então, que eu iria na frente, com todos os demais anistiados, a fim de providenciar o arranjo de nossa

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nova residência no Rio e dar os primeiros passos na procura de trabalho. Ela continuaria por uns dias na Ilha com as crianças aguardando minha volta que seria breve. Assim combinado, embarquei com todos para a grande cidade.

Quando desembarcamos no Cais do Porto, uma multidão festiva nos aguardava. Os que tinham família no Rio, foram recebidos e conduzidos por seus parentes. Os que não tinham, como era o meu caso, encontraram amigos e correligionários prontos para ajudar.

À minha espera e também do jovem nordestino Ademar, estava o saudoso Saul, companheiro de lutas dos velhos tempos. Ele nos recebeu com grande alegria e, depois de palavras anima-doras, nos levou até o seu carro, a sua famosa baratinha. Dentro em pouco estávamos em sua confortável residência.

A minha maior dificuldade era para alugar uma casa. Naquele tempo, os proprietários de imóveis exigiam altas luvas por um contrato de locação e eu como é fácil de se deduzir, saíra da prisão sem um níquel no bolso.

Saul, todavia, tinha uma agradável surpresa para mim. Nos terrenos de sua mansão, havia uma casa vazia, com dois cômodos e ele a pôs à minha disposição até que eu pudesse me arranjar. Nela fiquei por dois anos, quando consegui mudar para uma casa própria, adquirida com muito trabalho e muito esforço.

Quanto ao emprego, o meu plano era recorrer a uma de minhas habilidades profissionais (desenhista, tipógrafo etc.), quando fui informado por um amigo de que havia uma oficina de maquetes na Av. Venezuela, de propriedade de Zanini. Esse trabalho, dizia o amigo, seria o recomendado para mim, em vista da minha facilidade em assimilar esse tipo de atividade.

Fui, no dia seguinte, e fiquei conhecendo Zanini – essa figura humana excepcional, esse artista e arquiteto nato, no

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dizer de Lúcio Costa. No fim de um ligeiro papo, eu já estava empregado. A oficina era bem montada, com uns 30 operários, dividida em setores especializados: desenho, pintura, corte, armação e acabamento. Comecei como desenhista, realizan-do tarefas. Três meses depois, passei a desenhar e a dirigir a confecção das primeiras maquetes. Um ano depois, eu era o encarregado de toda a oficina. Após dois anos, quan-do Zanini mudou-se para São Paulo, montei meu próprio estúdio de maquetes.

Quando voltei à Ilha Grande, alguns dias depois da Anistia, já encontrei meu novo filho que nascera no dia 10 de maio. Na primeira lancha, embarcamos para o Rio, eu e toda a família.

Aí começou tudo de novo. Fomos morar na casa que o Saul nos emprestara. É fato que não havia nada dentro dela, preci-sávamos de móveis, utensílios domésticos, roupas e alimentos.

Eu tinha diante de mim um desafio. Passei a trabalhar com denodo e entusiasmo, dia, noite, domingos e feriados e me sentia feliz, como se as próprias dificuldades me empur-rassem para frente e me encorajassem. O meu esforço visava apenas criar os meios suficientes para educar os filhos e manter a família dentro de um padrão de vida razoável e digno. Com o decorrer do tempo, eu ia conseguindo o meu propósito, à custa do meu próprio esforço.

O Partido estava agora com nova direção, numa fase de franco desenvolvimento, facilitado pela legalidade e pela eufo-ria criada com a derrota do nazifascismo e pelo surgimento de novos Estados Socialistas e novas democracias. Eu tinha a impressão de que eu não estava fazendo falta ao Partido, pelo menos não me tinham procurado, até então, para as “grandes tarefas”.

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Pelo sim, pelo não, procurei estabelecer contatos com alguns dos novos dirigentes, a fim de “oferecer os meus présti-mos” e saber se eu podia ser útil em alguma coisa. Encontrava, contudo, sempre grande dificuldade em falar com esses compa-nheiros, estavam sempre muito ocupados, num entra-e-sai apressado dos seus gabinetes de trabalho nas sedes legais do curto período de legalidade do partido. Tinham sempre reuniões, encontros e tarefas muito importantes, pediam para aparecer noutra ocasião.

Com receio de que pudesse estar importunando, não mais os procurei. Aproveitei a folga que esses “mui ativos” compa-nheiros bondosa e tacitamente me concediam e continuei o meu trabalho de organização partindo das bases, nos bairros, que já havia começado.

Aqui começa um novo capítulo dessa história que terá desenvolvimento no segundo volume destas memórias.

* * *

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Caro tio Lauro, Depois de tantos anos sem termos oportunidade de qual-

quer comunicação, é com muita alegria que recebo suas notícias. De minha parte, vou dizendo o que ocorre por aqui e relembrando os acontecimentos do passado, tanto quanto permita a minha memória enfraquecida pela doença.

Na tarde do dia 23 de novembro de 1935, rebentou a Revolução Libertadora na capital do Rio Grande do Norte. O movimento teve início com o levante do quartel do 21 BC onde os sargentos, cabos e soldados dominaram a situação num golpe de surpresa.

Enquanto isso, grupos de civis e militares atacavam outros redutos da reação. No ataque ao Esquadrão de Cavalaria, houve fraca resistência e as nossas forças conseguiram se apoderar do quartel, depois de rápido tiroteio. Na Detenção, onde havia um destacamento da Polícia Militar, um grupo dirigido por papai conseguiu dominar a situação e libertar todos os presos.

O foco que deu maior trabalho foi o do quartel da Polícia Militar, que já estava reforçada com a presença dos oficiais do 21 BC que para lá se dirigiram, de suas residências. No ataque a esse quartel se concentraram todas as nossas forças militares e civis, já disponíveis por terem dominado os outros focos de resistência. Este combate foi duro e difícil. Começou às 19 ou 20 horas do dia 23 e durou toda a noite. Ao amanhecer do dia 24, parou a resistência. Na cidade de Natal e noutras cidades vizinhas, o poder passou para as mãos do povo.

Já nas vésperas, no dia 23, o governador do Estado, acompanha-do do seu secretariado, havia se refugiado, primeiro numa residência particular e depois no Consulado da Itália.

O novo Governo Revolucionário Popular, com o programa da Aliança Nacional Libertadora, foi instalado na Vila Cincinato, antiga

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residência dos governadores do Estado. Esse novo governo ficou assim constituído: José Paredes de Andrade (Operário) - Abastecimento; Sargento Quintino Clementino - Defesa; Lauro Cortez Lago - Interior; João Batistas Galvão - Viação; José Macedo - Finanças.

A primeira medida da Junta Revolucionária foi a requisição de gêneros alimentícios e sua distribuição entre a população necessitada. Durante três dias, essa distribuição de alimentos foi realizada, com muita receptividade e satisfação por parte do povo. Quando alguém, ao receber os alimentos, agradeceu comovido, um companheiro nosso respondeu que não precisava agradecer, pois lhe pertenciam e que estávamos apenas fazendo com que fosse devolvida uma pequeníssi-ma parcela do que foi surrupiado dele.

Outra medida adotada pela Junta Revolucionária foi o lança-mento do jornal “A Liberdade”, órgão do governo para comunicação e orientação do povo, cabendo a papai a direção da editora. No primeiro e único número de “A Liberdade”, foi publicado um manifesto ao povo além de outras proclamações.

A participação de civis, trabalhadores de ambos os sexos, deu grande força à revolução. Papai, embora não tenha sido membro da Junta Revolucionária, foi um dos líderes do movimento. Epifânio Guilhermina – operário de grande coragem – sua esposa Nilinha e muitos outros revolucionários civis participaram bravamente das ações militares. Eu entrei na festa e procurei fazer o que estava nas minhas forças.

Antes, houve um fato interessante. O governador do Rio Grande do Norte, o doutor Rafael Fernandes, era nosso antigo conterrâneo de Mossoró e, devido a esse velho conhecimento, fez a meu pai, em certa ocasião, uma insensata proposta. Meu pai deveria abandonar suas ideias comunistas e como recompensa, seria incluído numa chapa eleitoral e seria eleito deputado estadual. Papai, embora sentindo--se ofendido com tal proposta, manteve a sua calma e firmeza de

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sempre e respondeu-lhe que não trocaria suas ideias por todo o ouro do mundo.

Depois disso, o doutor Rafael ordenou a nomeação do professor Raimundo Reginaldo, meu pai, para lecionar na Detenção, julgando assim castigar aquele gesto de altivez e dignidade. O resultado foi que no momento em que explodiu o levante do 21 BC papai libertou todos os presos da Casa de Detenção, seus alunos, sem esquecer, evidente-mente, o dever de doutriná-los.

Muita gente se admira com a tomada do poder em Natal, não foi tão difícil quanto se esperava. Na realidade, o povo apoiou a revolução e quem não apoiou, também não ficou contra. Acontece que o descontentamento do povo, que é permanente, estava no auge, aumentado pelas secas recentes, pelo desemprego, pelas dificuldades da vida.

Houve ainda outro fator que veio agravar a situação. Uns três dias antes de começar a revolução, a Guarda Civil foi dissolvida. O motivo, diziam, era que o governo do Estado não confiava nela, porque ela estava ligada aos partidos políticos da oposição. Era a velha politicagem colocada em primeiro plano, em vez da solução dos problemas sociais e humanos.

Com a tomada do poder, o povo matou sua fome, andou de graça nos bondes, pela primeira vez se sentiu em liberdade, fez a sua festa, comemorou o grande feito, inédito na sua história.

Infelizmente, durou pouco. A nossa vitória dependia de outros Estados. Em Recife, a luta começou, mas o tempo corria e a decisão favorável não vinha. Havia nuvens negras no ar.

A gente estava preocupada, havia uma expectativa muito gran-de. Eu e papai não sabíamos, exatamente, o que estava acontecendo, os planos gerais não chegavam até nós, nem competia a nós conhecê-los. Dessa maneira, ficamos na espera dos acontecimentos.

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Na quarta-feira, veio a notícia da derrota da insurreição em Recife. Em seguida, as tropas da contrarrevolução começaram a marchar contra Natal, ameaçando com o cerco funesto.

Nossas forças de vanguarda que marchavam para o inte-rior foram derrotadas, nos primeiros choques que tiveram com as tropas adversarias mais numerosas e melhor armadas. O Governo Revolucionário achou que a espera do cerco seria desastrosa, um sacri-fício inútil e resolveu abandonar as posições. Deu ordem para a retirada.

Começou o nosso drama, a fuga difícil e espetacular, para evitar um mal maior, para não cair nas malhas da polícia que sabía-mos ser cruel e desumana. Saímos de Natal. Eu, papai e um garoto que morava conosco em Natal, de nome Eucário. Andamos a noite toda até chegar em São José do Mipibu, onde nos arranchamos na casa de um simpatizante do Partido. Fiquei escondida num quarto, na casa dessa família, durante cinco dias. Papai refugiou-se no mato, mas sempre mantendo a ligação comigo.

Chegou uma ordem para que todas as casas suspeitas fossem revistadas e eu tive que me refugiar onde papai se encontrava, na mata. Passamos três meses nesse esconderijo, nos alimentando de frutas silvestres e dormindo no chão sob uma árvore, à beira de uma lagoa onde não transitava gente e nem era habitada. Quando a fome aper-tava, Eucário ia sozinho a cidade mais próxima comprar alimentos.

Passados uns três meses, saímos à procura de outro refúgio onde pudéssemos viver melhor. Voltamos à casa do simpatizante e pedimos ao mesmo que nos comprasse roupas e mantimentos, para seguirmos a nossa jornada. Feita a compra, recomeçamos a marcha a pé, até atingir uma cidade cujo nome não me recordo. Lá, tomamos um trem com destino a Recife.

Sentamos em lugares diferentes, distantes um do outro. Depois de algumas horas de viagem papai, me fez sinal, fui até onde ele esta-va. Ele disse: “Há policiais no trem e fomos reconhecidos. Temos que

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saltar na primeira parada, antes de chegarmos a uma cidade, pois somente aí eles se decidirão a nos prender”.

Ficamos prevenidos até que o trem fez uma parada para abastecer de lenha. Quando o trem deu partida, pulamos com o trem em movimento. Os policiais pularam também, mas com atraso e isso nos deu distância. Saímos correndo e perseguidos pelos indi-víduos, até encontrar um matagal, onde nos escondemos. O Eucário continuava nos acompanhando e sendo útil por ser um garoto e não ser procurado.

Ao amanhecer do dia seguinte, resolvemos caminhar. Só que agora andamos de volta, em direção a Natal, para despistar a polí-cia. Chegando a Natal, fomos à residência de um simpatizante, onde fiquei escondida com sua família. Papai juntou-se a uns madeireiros e passou a trabalhar com eles, tirando madeira no mato. Logo comprou uma casa de palha onde passou a morar. Um dia, chegaram os homens da higiene publica, os “mata-mosquito” de combate à malária. Um deles, ao entrar na casa, reconheceu papai foi a Natal e voltou com a polícia. Cercaram a casa, mas papai sempre alerta, conseguiu fugir, escapando por um triz.

À noite, quando escureceu, ele foi até a casa onde eu estava escondida e informou todo o ocorrido. Aí resolvemos partir novamen-te, dessa vez com destino a Juazeiro, no Ceará. A fuga em direção ao sul, via Recife, onde houve o levante fracassado, mostrou ser impra-ticável, escapamos de boas. Restava tentarmos o caminho do oeste. Para chegarmos ao Ceará, tínhamos que atravessar todo o Estado do Rio Grande do Norte, passando por Mossoró, por nossa terra natal. Os riscos dessa travessia foram calculados. Tínhamos uma boa base de apoio: a nossa família numerosíssima, o conhecimento do terreno, uma organização partidária e de massas, cujas bases foram lançadas por nossa família. Por outro lado, a reação também estava concen-trada lá, os nossos companheiros e amigos deveriam estar passando

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por grandes apertos. O fato de que éramos também conhecidos pelos inimigos, era um fator negativo.

Como se vê, havia prós e contras, sobretudo contras. Precisávamos ter muita calma, sangue-frio e astúcia. Muita astúcia. Procuramos nos convencer de que havia, em nós, pelo menos uma pequena dose de cada uma dessas coisas necessárias e começamos a caminhada.

O nosso corpo estava em chagas, cheio de feridas produzidas pelos carrapatos, mosquitos e espinhos, mas continuamos marchan-do, evitando os lugares povoados, evitando transeuntes, andando e se escondendo, andando e se escondendo, andando e se escondendo.

Um dia, chegamos aos arredores de uma cidade onde morava um parente nosso. Esperamos o anoitecer. Quando escureceu, papai foi até a residência desse parente, que tinha também uma casa de negócio. Aproximou-se cauteloso e quando viu que não tinha gente estranha, entrou rápido e pulou o balcão, causando-lhe um grande susto sem querer. A partir daí, passamos a ter o calor de uma assis-tência e de um apoio como há muito não tínhamos. Partimos para Mossoró. Infelizmente, por um mero acaso, o olho do inimigo funcio-nou e a polícia ficou sabendo da nossa presença na região. Esses nossos parentes, cujo único crime era ser nossos parentes, foram presos, não escapou sequer a minha velha, boníssima e queridíssima avó madrinha Luzia. A polícia queria que eles indicassem nosso paradeiro, ameaçou-os de espancamento e torturas, mas ninguém disse nada, ninguém sabia de nada, nós estávamos em lugar seguro.

Com grande peso na consciência por ter causado tanto trans-torno aos nossos entes queridos, apressamos nossa partida. Papai disfarçou-se de cego e mendigo e eu de guia com a roupa cheia de enchimento de pano, fingindo mulher grávida. Assim, atravessamos a cidade de Mossoró de ponta a ponta, onde somos mais conhecidos do que bolacha.

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Conseguimos atravessar a zona perigosa do oeste de nosso Estado. Com o coração apertado, íamos deixando, para trás, aquela terra e aquela gente muito querida, uma grande tristeza nos manten-do em silêncio, sem coragem de dizer uma só palavra.

Passamos a palmilhar as terras do sertão cearense. Estávamos mais tranquilos, tínhamos a impressão de que o perigo havia diminuído, mas a nostalgia continuava, inexplicável, contraditó-ria. Essa nova jornada continuou sem incidentes, até que chegamos a Juazeiro. Fixamos residência na rua Padre Cícero. Tempos depois, papai encontrou, casualmente, um primo seu, Zacarias Rocha, que morava no Crato.

Papai montou uma bodega e eu fui morar, por uns tempos, na casa desse primo. Papai não suportou a saudade e resolveu voltar a Mossoró para se encontrar com mamãe. Conseguiu ir e voltar sem incidentes, tomando as necessárias cautelas. Embora tenha tomado essas precauções, a polícia acabou tomando conhecimento de sua passagem por lá. Tempos depois, um advogado amigo de Zacarias veio avisar que tinha chegado uma precatória de Mossoró pedindo a nossa prisão.

Tivemos que “desarranchar” rapidamente e fugir, desta vez na direção do Piauí. Fomos morar numa fazenda do interior desse Estado e ali ficamos conhecendo uma família, gente muito boa e amiga. Foi quando conheci Chiquinho, um rapaz dessa família, com quem me casei depois.

Papai, desde algum tempo, não vinha passando bem de saúde. Sentia uma agonia no peito, proveniente do coração. Um dia ele come-çou a conversar comigo a respeito dos filhos que tinha deixado em Natal. No correr dessa conversa, ele disse que achava que não ia mais ver os filhos. Eu disse que isso era um desânimo passageiro, logo ele ia pensar diferente.

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Depois, ele pediu para eu cantar ‘A Internacional’, o hino de sua paixão. O hino relembrava as suas lutas passadas, os seus ideais de redenção do povo brasileiro. Notando que ele estava muito comovido, eu não quis cantar. Ele insistiu e eu não pude continuar me esquivan-do. Comecei a cantar. As lágrimas começaram a cair dos seus olhos. Eu parei de cantar e procurei mais uma vez reanimá-lo.

Passado algum tempo ele começou a passar mal. A agonia de que vinha se queixando, voltou forte, violenta. Fui depressa chamar Chiquinho, que nessa época era meu noivo. Ele veio e achou a situação grave e partiu imediatamente à procura do médico. Eu fiquei aflita, papai não melhorava e eu sem saber o que fazer para tirá-lo daquela agonia. Quando o médico chegou ainda tentou salvá-lo, aplicando uma injeção, mas foi tarde. O coração parou para sempre.

A morte não o desfigurou em nada. O seu rosto ficou tranquilo, numa serenidade incrível. Parecia que estava apenas dormindo. Chiquinho levou o corpo para a casa de seus pais e tomou todas as providências para o enterro. Um mês depois eu e Chiquinho nos casamos.

Aí está, caro tio, num relato sucinto, o que foi a Revolução Libertadora de 1935 em nossa terra, o que foi feito nos 4 dias de gover-no e o seu desfecho. Tudo ocorreu tão rápido, não houve tempo nem condições sequer para iniciar a execução de outros pontos funda-mentais do programa de governo da Aliança Nacional Libertadora.

As reformas agrária, urbana e do ensino, as medidas para libertar nosso país das garras do imperialismo e para acabar com a pobreza e o atraso de nosso povo vão continuar como uma bandeira de luta desfraldada pelo tempo afora, até que sua vitória seja alcançada.

Essa vitória dependerá de nós e de todo o povo. A nossa fé continua. Aqui termino esta carta, enviando a todos da família o meu forte abraço.

Da sobrinha,Amélia Nogueira Feitosa (Amélia Reginaldo)

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OBS.: Relato da carta de minha sobrinha Amélia Nogueira Feitosa (Amélia Reginaldo) combatente da Revolução de 1935, em Natal.

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Estas são as Memórias de Lauro Reginaldo da Rocha, o BANGU. BANGU não conseguiu ver suas memórias publicadas, como gostaria. Sua publicação agora, é uma homenagem ao militante e ao ser humano que transcedeu sua condição indi-vidual, para, generosamente, empenhar sua vida na realização da utopia de uma sociedade justa. Essa opção pode soar estra-nha – nesse tempo carente de sonhos – mas nos leva a indagar uma pergunta crucial: qual a utopia que escolhemos para dar sentido às nossas trajetórias?

Agradecemos ao CCHLA, através do Professor José Lacerda Felipe e ao Dr. Paulo Afonso Linhares, que contribuí-ram para viabilizar esta publicação.

CAPA Arte: Ana Amélia Fernandes, sobre retrato de Lauro

Reginaldo da Rocha. (1989) Fonte: Brasília Carlos Ferreira Impressão: Editora Universitária Digitação do Texto Final: Cibele Nunes.

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Este livro foi produzido pela equipe editorial da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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