brasil, refúgio do olhar: trajetória de um fotógrafo

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31 Brasil, Refúgio do Olhar: Trajetória de um fotógrafo exilado no Rio de Janeiro dos anos 1940 Brasil, un refugio del mirar: la trayectoria de un fotógrafo en el exilio en Rio de Ja- neiro en la década de 1940 Mauricio LISSOVSKY 1 Resumo: Ensaio biográfico sobre a trajetória profissio- nal de Kurt Klagsbrunn – fotógrafo austríaco, fotojor- nalista e correspondente da Life no Brasil, na década de 1940 –, elaborado a partir de imagens e documentos de seu arquivo pessoal. Sugere-se que este estudo de caso colabora para iluminar o papel de toda uma geração de fotógrafos imigrantes, oriundos da Europa Central, cuja contribuição para a história da fotografia brasileira ainda é pouco conhecida. Banidos de sua terra natal, falando línguas que poucos compreendiam, o único patrimônio destes profissionais era a visão formada nos valores es- téticos da “nova escola fotográfica”. Por seu intermédio, o Brasil começa a ser fotografado por inéditos “olhos modernos”. Palavras-chaves: história da fotografia; fotógrafos imi- grantes; fotografia brasileira; fotojornalismo. Resumen: Ensayo biográfico acerca de la trayectoria profesional de Kurt Klagsbrunn (1918-2005) – fotógrafo austríaco, fotoperiodista y reportero de la Life en Brasil, en los años 1940 – desarrollado en base en las imágenes y documentos de su archivo personal. Con este estudio de caso intentase iluminar a toda una generación de fotó- grafos inmigrantes, oriundos de la Europa Central, cuya contribución para la fotografía brasileña es todavía muy poco conocida. Banidos de su rincón natal, hablando idiomas que pocos comprehendían, el único patrimonio 1 Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Comu- nicação da ECO/UFRJ. Historiador, roteirista, doutor em Comunica- ção pela ECO/UFRJ. E-mail: [email protected]. de estos profesionales era la visión formada en los va- lores estéticos de la “nueva escola fotográfica”. Por su intermedio, el Brasil empieza a ser fotografiado por iné- ditos “ojos modernos”. Palabras clave: história de la fotografia; fotógrafos imi- grantes; fotografia brasileña; fotoperiodismo. Há uma zona de sombra na história da fotogra- fia brasileira. Ela se estende desde a segunda década do século XX até os anos que se seguiram ao fim da Segun- da Guerra Mundial. Uma lacuna historiográfica que só recentemente começa a ser preenchida com algumas pes- quisas acadêmicas, uns poucos livros, e a recuperação e organização de escassos acervos. Um esquecimento que corresponde a toda uma geração de fotógrafos, oriundos da Europa Central, que vêm dar ao Brasil na condição de refugiados ou imigrantes que procuram escapar da crise econômica e da perseguição política ou racial. Sabemos que os esquecimentos não são naturais. Resultam quase sempre de processos sociais que vão esta- belecendo o que é publicamente memorável (o que deve e merece ser lembrado), em meio a disputas em torno do sentido da história e daquilo que as gerações posteriores devem tomar como modelos a seguir. Às vezes, o brilho particular de certo acontecimento suscita narrativas que, como um trovão, terminam por abafar os rumores dos eventos concorrentes. Foi, de certo modo, o que aconte- ceu no campo da literatura. O chamado “modernismo” teve seu ato inaugural na “Semana de 22”. A polêmica em torno do evento e o prestígio crescente de seus pro- tagonistas acabaram por condenar à relativa obscurida- de toda uma geração de escritores que, sob a rubrica de “pré-modernos”, foram pouco a pouco sendo relegados ao ostracismo, desaparecendo dos livros didáticos e da história canônica das letras brasileiras. Hoje, sobrevivem confinados a pequenos círculos de estudiosos ou entre uns poucos aficionados “anacrônicos”. 2 Algo similar sucedeu na arquitetura. Os anos 1930 são marcados pelas disputas entre grupos de ar- quitetos filiados a diferentes correntes arquitetônicas. O trajeto vitorioso do modernismo corbusiano é perfeita- mente visível no percurso que vai da sede do Ministério da Educação (1936-1945), no Rio de Janeiro, à Pampu- lha (1942-1944) e finalmente a Brasília (1957-1960). Mas os vestígios do “esquecimento” que essa trajetória de sucesso produziu demoraram muito a ser notados. Em larga medida porque parte da estratégia utilizada pelos modernistas brasileiros junto às autoridades aos meios 2 Para um brilhante exemplo de ensaio de revisão, em que a moder- nidade desta geração esquecida é repensada, ver SUSSEKIND 1987.

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Brasil, Refúgio do Olhar: Trajetória de um fotógrafo exilado no Rio de Janeiro dos anos 1940Brasil, un refugio del mirar: la trayectoria de un fotógrafo en el exilio en Rio de Ja-neiro en la década de 1940

MauricioLISSOVSKY1

Resumo: Ensaiobiográficosobreatrajetóriaprofissio-naldeKurtKlagsbrunn– fotógrafoaustríaco, fotojor-nalistaecorrespondentedaLifenoBrasil,nadécadade1940–,elaboradoapartirdeimagensedocumentosdeseuarquivopessoal.Sugere-sequeesteestudodecasocolaboraparailuminaropapeldetodaumageraçãodefotógrafosimigrantes,oriundosdaEuropaCentral,cujacontribuiçãoparaahistóriadafotografiabrasileiraaindaépoucoconhecida.Banidosdesuaterranatal, falandolínguasquepoucoscompreendiam,oúnicopatrimôniodestesprofissionaiseraavisãoformadanosvaloreses-téticosda“novaescolafotográfica”.Porseuintermédio,oBrasil começa a ser fotografado por inéditos “olhosmodernos”.

Palavras-chaves:históriadafotografia;fotógrafosimi-grantes;fotografiabrasileira;fotojornalismo.

Resumen: Ensayo biográfico acerca de la trayectoriaprofesionaldeKurtKlagsbrunn(1918-2005)–fotógrafoaustríaco,fotoperiodistayreporterodelaLifeenBrasil,enlosaños1940–desarrolladoenbaseenlasimágenesydocumentosdesuarchivopersonal.Conesteestudiodecasointentaseiluminaratodaunageneracióndefotó-grafosinmigrantes,oriundosdelaEuropaCentral,cuyacontribuciónparalafotografíabrasileñaestodavíamuypoco conocida. Banidos de su rincón natal, hablandoidiomasquepocoscomprehendían,elúnicopatrimonio

1ProfessorepesquisadordoProgramadePós-graduaçãoemComu-nicaçãodaECO/UFRJ.Historiador,roteirista,doutoremComunica-çãopelaECO/UFRJ.E-mail:[email protected].

deestosprofesionalesera lavisión formadaen losva-lores estéticosde la “nuevaescola fotográfica”.Por suintermedio,elBrasilempiezaaserfotografiadoporiné-ditos“ojosmodernos”.

Palabras clave:históriadelafotografia;fotógrafosimi-grantes;fotografiabrasileña;fotoperiodismo.

Háumazonadesombranahistóriadafotogra-fiabrasileira.ElaseestendedesdeasegundadécadadoséculoXXatéosanosqueseseguiramaofimdaSegun-daGuerraMundial.Uma lacunahistoriográficaquesórecentementecomeçaaserpreenchidacomalgumaspes-quisasacadêmicas,unspoucoslivros,earecuperaçãoeorganizaçãodeescassosacervos.Umesquecimentoquecorrespondeatodaumageraçãodefotógrafos,oriundosdaEuropaCentral,quevêmdaraoBrasilnacondiçãoderefugiadosouimigrantesqueprocuramescapardacriseeconômicaedaperseguiçãopolíticaouracial.

Sabemosqueosesquecimentosnãosãonaturais.Resultamquasesempredeprocessossociaisquevãoesta-belecendooqueépublicamentememorável(oquedeveemereceserlembrado),emmeioadisputasemtornodosentidodahistóriaedaquiloqueasgeraçõesposterioresdevemtomarcomomodelosaseguir.Àsvezes,obrilhoparticulardecertoacontecimentosuscitanarrativasque,comoumtrovão,terminamporabafarosrumoresdoseventosconcorrentes.Foi,decertomodo,oqueaconte-ceunocampodaliteratura.Ochamado“modernismo”teveseuato inauguralna“Semanade22”.Apolêmicaemtornodoeventoeoprestígiocrescentedeseuspro-tagonistasacabaramporcondenarà relativaobscurida-detodaumageraçãodeescritoresque,sobarubricade“pré-modernos”,forampoucoapoucosendorelegadosaoostracismo,desaparecendodos livrosdidáticosedahistóriacanônicadasletrasbrasileiras.Hoje,sobrevivemconfinadosapequenoscírculosdeestudiososouentreunspoucosaficionados“anacrônicos”.2

Algo similar sucedeu na arquitetura. Os anos1930 sãomarcados pelas disputas entre grupos de ar-quitetosfiliadosadiferentescorrentesarquitetônicas.Otrajetovitoriosodomodernismocorbusianoéperfeita-mentevisívelnopercursoquevaidasededoMinistériodaEducação(1936-1945),noRiodeJaneiro,àPampu-lha(1942-1944)efinalmenteaBrasília(1957-1960).Masos vestígios do “esquecimento” que essa trajetória desucessoproduziudemorarammuitoasernotados.Emlargamedidaporqueparte da estratégia utilizadapelosmodernistas brasileiros junto às autoridades aosmeios2Paraumbrilhanteexemplodeensaioderevisão,emqueamoder-nidadedestageraçãoesquecidaérepensada,verSUSSEKIND1987.

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artísticoseintelectuais,foi(re)escreverahistóriadaar-quiteturabrasileiraapartirdosvaloreseprincípiosquemaisfacilmenteseajustavamaosseus.Valoresqueter-minarampororientarasprimeirasdécadasdapolíticadepreservaçãodopatrimônio artístico e arquitetôniconoBrasil. (LISSOVSKY; SÁ 1996)Em virtude disso, porexemplo,oRiodeJaneiroperdeempoucosanosquase90%dasedificaçõesecléticasquecaracterizavamocen-trodacidadeeosbairrosdaZonaSul,próximosaele,como Flamengo e Botafogo.No roldão do ecletismo,desaparecemoneocolonialeoutrasexpressõesarquite-tônicascomasquaisomodernismotevedemedirforçasnoseunascedouro.

Mas,aocontráriodoquesepassana literaturaenaarquitetura,ondeasomissõesvãopoucoapoucosendoreconhecidas,aindahámuitoporfazeremrelaçãoàfotografia.Aindaquea“históriaoficial”dafotografiabrasileiranãotenhasidoescrita,certocânonefotográfi-cobrasileirofoitacitamenteestabelecidonasúltimasdé-cadas.Temosumaextensabibliografia,tantoacadêmicacomode“livrosdearte”,sobreafotografiaoitocentista.Em particular em torno de Pedro II e dos fotógrafosdaCorte.JáoiníciodoperíodorepublicanoémarcadopelasimagensdareformaurbanadacapitalfederaledaexplosãometropolitanadeSãoPaulo.

Maséaíqueoesquecimentocomeça.Osecosdasvanguardasfotográficaseuropéias,queeclodemnosanos1920,nãosãoouvidosnoBrasil.NãohavianenhumfotógrafobrasileiroestudandonaBauhaus,comoacon-teceucomoargentinoHoracioCopolla,queserácapazdereproduzirnaBuenosAiresdadécadade1930asdes-cobertas e osmaneirismos da chamada “NovaVisão”–expressãocunhadapeloartistaeprofessorhúngaroLa-zloMoholy-Nagy,queconcebeuoprimeiro“currículo”defotografiadafamosaescoladedesign.Aproposiçãomais oumenos implícita desta história canônica é queafotografiabrasileira,entreasdécadasde1920e1940,permaneceu prisioneira damesmice, até que um novofotojornalismo,surgidonarevistadoO Cruzeiro –apar-tirde1944,massobretudoaolongodadécadade1950–viesseacolocaroBrasilnocaminhodamodernidadefotográfica.

Defato,assimcomooretratoburguêscaracte-rizou a fotografiado séculoXIX, a imagem fotográfi-cadominantenoséculoXXfoiadasrevistasilustradas.SurgiramnaAlemanha,enoiníciodadécadade1930jáhavia70periódicosilustradose20agênciasfotográficasindependentesematividade,apenasemBerlim.(LEDO1998:85)StefenLorent(1901-1997),editordeumdosmais respeitadossemanáriosdaépoca,aMünchner Illus-

trierte Presse, foio responsávelpeladifusãodo formatonaInglaterraenosEstadosUnidos.Húngaroeanti-na-zista,LorentfoipresoassimqueHitlerchegaaopoder,em1933.Depoisdelibertado,instala-seinicialmentenaInglaterra,criandoasprimeirasrevistasdefotojornalis-modopaís:aWeekly Ilustrated(1934)eafamosaPicture Post(1938),“apublicaçãomaisrepresentativadesteparfeliz:fotojornalismoemodernidade”(LEDO1998:84).Omodeloderelaçãoentretextoe imagem,criadoporLorent,servirádeinspiraçãoparaperiódicosnomundointeiro,comoanorte-americanaLife(1936),decujacria-çãofoiconsultor.

Nestas revistas, os fotógrafos começam a sertratadoscomdestaqueeseusfeitosexaltados.NaLife,asubalternidadedosescritoresquasesempreosobrigavaa carregar asmalas e equipamentos dos colegas. Con-ta-sequeno casodeMargaretBourke-White (então, amaisfamosafotojornalistadomundo),orepórtertinhaa tarefaadicionalde lavar-lheas roupas. (TAGG2009:108)A feição geral destas revistas corresponde a umaestratégiamidiáticaque,simultaneamente,ressaltaafo-tografia comopráticamoderna, enalteceoveículoquefazdelasuaestrela,transformaseusrepórteresfotográ-ficosemheróise,finalmente,formaeeducaseupúblico.Folheando-as,oleitoraprendeaobservaromundocomosolhosmodernosdeumfotógrafodeatualidades.Emumapassagemfamosa,de1927,SiegfriedKracauerdiziaque,emfunçãodasrevistasilustradas,“oprópriomundoadquiriu um ‘rosto fotográfico’, [...] pois este se fundenocontínuoqueseformacomosinstantâneos”.(KRA-CAUER2009:75-6)

BastaumapassadadeolhosnapioneiraWeekly Illustrated para observarmos como estes elementos vãosendoarticulados.Noiníciode1936,glorifica-seumdeseus fotógrafos por descer até as profundezas de umaminadecarvão(“UndergroundLives”,11/01/1936),edepois,outroque fezflagrantes surpreendentesdeumespetáculodebalé (“FrozenBallet”, 15/02/1936).3 Na proezafotográfica,homememáquina,heroísmoetéc-nica,seconfundem.Nãoéporcasoqueasrepresenta-çõesemqueestescorpossehibridamtornam-setãofre-qüentes,comonocasodoex-librisdeKurtKlagsbrunn,refugiado austríacoque se torna fotógrafoprofissionalno Rio de Janeiro. (FIGURA 1) Ainda em 1936,WI lançaumsignificativoconcurso:“Bringoutyourevery-day snap” – que convida os leitores a remeterem seusflagrantes cotidianos à redação.4Caso a foto fossepu-

3AcoleçãodaWeekly IllustratedestádisponívelnaseçãodeperiódicosdaBritishLibrary.4Desdeoinício,emfinsde1936,aLifetambémmanteráumaseçãodefotografiasdoleitor,alémdatradicionalseçãode“cartas”.

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blicada,oleitorrecebiaumalibracomopagamento–omesmovalorpagoaosfotógrafosprofissionaisfreelancers.Afotografiavitoriosaseriapremiadacom50libras.Nãoháqualquerintençãonoticiosanomaterialenviado:sãofotos domésticas, algumas compretensões “artísticas”,masemvirtudedestapromoçãoosleitorescomeçamasercreditadosjuntoàsimagensantesdosfotógrafospro-fissionais.

FIGURA1Ex-libris de Kurt Paul Klagsbrunn. No desenho, a Leica que traz ao Brasil

em 1939.

Otratamentodadoaumafotografia,publicadaem29/08/1936,na“páginadoleitor”(quandooprêmiojáhaviasubidopara100libras)éumexcelenteexemplodecomoavalorizaçãodeveículoarticula-seàeducaçãodoolhardeseupúblicoeoestímulodeumanovapráti-cafotográficacotidiana:umameninaquebrincaemumbalançoéfotografadadebaixo,contraocéu.Arevistaexulta:

‘Esseéoângulo!:Osfoto-leitores[snap-shooting readers]doWeekly Illustrated con-tinuam a produzir resultados de altonível.Aqui,àdireita,umacenacotidia-na dramatizada pelo ‘ângulo’ – apenasdisparando-sedorés-do-chão–emvez

datradicionalposiçãononíveldoolho.Existemaindainúmeros‘novos’ângulosaseremdescobertos.

O comentário da revista é praticamente umaparáfrasedaconclamaçãovanguardistaqueofotógrafosoviéticoNicolaiRodchenkopublica,em1928,emres-postaaumacartaanônimaqueoacusavade“plagiar”osmodismos“imperialistas”dosfotógrafosocidentais:

Nafotografiaexistemvelhospontosdevista, o ponto de vista de uma pessoaqueestáempénosoloeolhaparafren-te,ou,comoeuochamo,a‘foto-umbi-go’,comacâmeranaalturadoestôma-go.Euestoulutandocontraestepontode vista e levarei adiante uma luta porfotografias em todas as posições quenão a ‘posição-umbigo’, enquanto elaspermanecerem sem reconhecimento.Os ângulosmais interessantes são, ‘decimaparabaixo’e‘debaixoparacima’,eexisteaindamuitotrabalhoaserfeitonesse campo. (RODCHENKO 1989:246)

Apartir de junho de 1937, o círculo se fechacomachegadadeanunciantesdecâmeras,filmeseequi-pamentos fotográficos.Ao ladodapáginados leitores,paraondeestesagoraenviampequenas“matérias”com-binandofotosetextoschamadassnap-letters,umanunciodecâmeraproclama:“Paraumacomposiçãoperfeitadassuas fotos,vocêprecisadosrefinamentosdeumaVoi-gtlander”.Otrabalhodosprofissionaistambémsetornaoportunidadede fazerpropaganda.Acimada reprodu-ção de uma fotografia da exuberanteAbadia deWest-minsterporocasiãodacoroaçãodeJorgeVI,podemoslera“manchete”:“EleconfianosfilmesAgfa”:“Ele”,JamesJarché,omaisconhecidofotojornalistabritâniconaépoca;e“Agfa”,agrandefabricantealemãdefilmesepapéisfotográficos.

Cercadeumadécadadepois,O Cruzeiro iráre-produziralgunsdestesprocedimentos,queacabamporconferiràrevistaaresdeinauguração,comoseumnovomododeolhar e fotografarhouvessenascidoali. (PE-REGRINO1991)OpapeldeO Cruzeiro,edesuaequi-pebrilhantedefotógrafos, narenovação(emesmo,nainvenção) do fotojornalismo brasileiro é incontestável.

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Porém,estemesmobrilhotendeaobnubilar todaumadécadaemqueopaíscomeçaaservistoefotografadopor olhosmodernos pela primeira vez.Os fotógrafosqueprotagonizaramestecapítulodahistórianuncafor-maramummovimentoe,emsuamaioria,nãoexerciamaprofissãoemseuspaísesdeorigem.Espalharam-sepeloBrasil,noperíodoentre-guerras, trabalhandocomoau-tônomos, abrindo seuspróprios estúdiosouprestandoserviçosaórgãospúblicos.Aindaquealgunsdosnomesque integraram esta geração esquecida comecem a seragorarememorados,agrandemaioriadestesfotógrafosimigrantespermaneceignorada.Esuaobra,maisainda.

Emalgumaspoucasocasiões,épossívelobservá-lostrabalhandoemconjunto.Infelizmente,omaissigni-ficativodestesempreendimentoscoletivos,coordenadopelofotógrafoalemãoPeterLange,permanece inédito.LangeeraofotógrafofavoritodoMinistrodaEducaçãoeSaúdedoEstadoNovo,GustavoCapanema,efoien-carregado,em1942,deilustraraObraGetuliana–umli-vromonumentalcujoobjetivoeradivulgarasrealizaçõesdopresidenteVargas:

As fotografias remanescentes desteprojeto constituem um impressionanteacervo de mais de 600 imagens, pro-duzidas por profissionais brasileiros eeuropeus (particularmente refugiadosdeguerraalemães).Influenciadospelasvanguardasfotográficaseuropéias,reali-zaramumempreendimentoestéticora-dicalmentenovonafotografiabrasileiraqueaquedadeVargas,em1945,impe-diudevir apúblico.Enquantoos tex-tosdaObraGetuliana têmumcarátereminentementeburocrático–relatóriosinsossosdasrealizaçõesgovernamentais–,suasfotografiaspretendiamserbemmaisdoquemerasilustrações.Confor-mam um gigantesco empreendimentopedagógico e publicitário autônomo,quefazusodeváriasestéticasmodernaspararepresentar“a invençãodofuturonopresente. (LISSOVSKY;JAGUARI-BE2006:90-1)

NointuitodetornarvisívelamodernizaçãodoBrasil após a revoluçãode1930,o livro foi concebidocomouma“pedagogiadoolhar”,endossandoacrençamodernistanacapacidadeeducativadafotografia,quejávinhasendotestadanasexposiçõesfotográficasdoEsta-

doNovo.Talcomonasrevistasilustradasenasexposi-çõescívicas,afotografiadeveria,simultaneamente,mos-trareensinaraver.A“legiãoestrangeira”daGetuliana,quepassaváriosmesesviajandopeloBrasilembuscadossinaisdeumamodernidadequerefletisseaaçãodoesta-do,eraconstituídapelosalemãesPeterLange(cujoex-tremorigorformalimprimesuamarcaportodaaobra),ErichHess,PaulStilleepelo teuto-chilenoErwinVonDessauer.Umadécadadepois,épossívelreencontrarvá-riosdelesnabemsucedidasérie“Istoé...!”daEditoraMelhoramentos,que, trazendo textos emcinco línguasdiferentes,destinava-seaoturistanacionaleestrangeiro.5 Láestãopresentes,porexemplo,osalemãesErichHess,SaschaHarnisch6,AliceBrill(tambémrefugiada,porémmaisjovemqueosdemais)eAloisFeichtemberger(aus-tríaco,masdeumageraçãoanterior),entreoutros.

Esteensaiobiográficodedica-seaumdosmem-brosmaisdestacadosdestageraçãode fotógrafosemi-gradosdaEuropaCentral,oaustríacoKurtKlagsbrunn(1918-2005),que,adespeitodemanterlaçosdeamizadecomestegrupo,nãotomoupartenasiniciativasmencio-nadasacima.7Autordeumaobramonumentalemtodososcamposdaatividadefotográficaque,até2013,jamaishaviasidoapresentadaemlivro.(LISSOVSKY;MELLO2013) Além de seu valor documental e artístico, suasfotografias,emparticularasproduzidasnosanos1940,guardamofrescordadescobertadoBrasilporumjovemfotógrafoeuropeu,umolharcuriososobrea terraquelheserviuderefúgio.(FIGURA2)

5Forampublicadosentre1953e1958:Isto é São Paulo!; Isto é Minas Colonial!; Isto é Bahia!;Isto é o Rio de Janeiro!.6Responsávelpelas ilustraçõesdosegundovolumedeAparência do Rio de Janeiro,deGastãoCruls,editadoem1949.7MasestápresentenafamosacompilaçãodeimagenssobreoRiodeJaneiro(Cidade Maravilhosa: Rio de Janeiro e seus arredores),publicadapelaLivrariaeEditoraKosmosEmseuarquivo,encontramosfotosquelheforamoferecidasporváriosfotógrafosimigrantescomoEricHess,CarlosMoskovics(húngaro,queadquirefamacomofotógrafoteatral)eMarioBaldi(igualmenteaustríaco,quechegaaoBrasilem1921,retornandoàEuropanofinaldécada,vindoa instalar-sedefi-nitivamente noBrasil, em1934, onde atuou como fotógrafo deANoite).

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FIGURA2Kurt Klagsbrunn, à direita, de chapéu, em viagem a Minas Gerais, 1947.

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Kurt Paul Klagsbrunn nasceu em Viena, em06/05/1918,segundofilhodeumafamíliajudiadeclassemédia.Tinhaolhosazuis,conformeanotadoemsuacar-teirademotorista.Seupai,LeopoldKlagsbrunneraquí-mico,donodeumnegóciodeprocessamentoecomérciodecarvão.Desde1933,aÁustriaviviasobumaditaduranacionalista.Oparlamento estava fechado, os partidosproibidos, vários direitos suspensos.Mas, ao contráriodaAlemanha,asrestriçõesdenaturezapolíticaaindanãotinhamincorporadoasleisraciaisanti-semitasqueimpe-diamoacessoàeducaçãoeoutrosserviçospúblicosouodesenvolvimentodeatividadeseconômicas.Issoajudavaapreservarcertaaparênciadenormalidade,eexplica,emparte, porque a comunidadede judeusdeViena, entreosquais,SigmundFreud,levarátantotempoparadar-secontaqueacrescentedifusãodomilitarismoedaideolo-gianazi-fascistaemseupaís(Hitler,afinal,eraaustríacodenascimento),ameaçavasuaexistência.OsirmãosPe-tereKurtKlagsbrunnseguem,portanto,naescola.8

Em1936,aos18anos,Kurtforma-senocole-gialeatradicionalviagemcomemorativadeférias–que

8As informaçõesbiográficasarespeitodeKurtKlagsbrunnresul-taramdepesquisanoarquivopessoaldofotógrafo,conservadopelafamília.

osjovensaustríacoscostumavamrealizarsemacompa-nhiadospais–foiparaumaestaçãodeesquinaPolônia.Seguindoospassosdoirmãomaisvelho,Kurtpassanosexames de ingresso para a Faculdade deMedicina em1937ecomeçaafreqüentarocursonoinvernode1938.Odesejodesetornarmédicotomacorpojuntocomogostopelafotografia.Afamíliadispõedeváriascâmerasemformatosvariados.AsfavoritasdeKurteramprova-velmenteasalemãsSuperBaldinaeArtiflex(ambas6x6).Comelasfarásuasprimeirasexperiênciasdefotógra-foamador,processandoeampliandosuas imagensemumlaboratóriodoméstico.

Duranteadécadade1930,afotografiaamado-rahaviaexplodidonaAlemanhaeemoutrospaísesdaEuropaCentral (onde a língua alemã era corrente nosprincipaiscentrosurbanos).Estimuladapeladifusãodasrevistas ilustradase facilitadapela invençãodasmáqui-nas de pequeno formato, como aErmanox e a Leica,centenasdemilharesdefamíliasalemãs,austríacas,hún-garase tchecaspassama fotografare ser fotografadas,commaioroumenoracuidadetécnicaeartística.UmaondaquelogoseespalharáparaFrança,InglaterraeEs-tadosUnidos.ALeica,quehaviainiciadoaproduçãodesuacâmerarevolucionáriaem1927,comcemunidadesporano, já fabricavacemmilcâmerasanuaisem1933.Ogostopelafotografiaespalha-setãorapidamentequeem1929,emStuttgart,realiza-seagigantescaexposiçãointernacionalFilm und Foto,commaisdemilfotografias.GustavStotz,principalcuradordaexposição,assinalavaqueopróprioolhardaspessoashaviasidoafetadopela

“novavisão”dosfotógrafos:

Nósvemosascoisasdiferentementedeagoraemdiante:nãoemsentidopictó-ricoouimpressionista.Hojeosobjetosparecemimportantes,deummodoquenunca foram considerados antes: umlaçodesapatos,porexemplo,umabo-binadefio,um tecido, umamáquina...Elesnos interessamporsuasubstânciamaterial, por sua simples realidade decoisas…(COKE1982:19)

Naquelemesmoano,Fifo–comoaexposiçãosetornouconhecida–,viajaparaZurique,Berlim,DantzigeViena.Nãosabemosseomeninodeonzeanosesteveentreosmilharesdepessoasquevisitaramestaexposiçãoesedeixaramcontaminarporestenovomododever“ascoisas”,masécomosolhosimpregnadosdenovidades

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fotográficasqueKurtviajarádaÁustriaparaoBrasil,àsvésperasdaSegundaGuerraMundial.

Ocompassodeesperaemqueviviamosjudeusaustríacos,assimcomooquerestavadaoposiçãodemo-crática e socialistanopaís, encerra-se em13/03/1938,quando sobrevém aAnschluss – a anexação daÁustriapelaAlemanhanazista.Paramuitasfamílias judias,nãohámais condição de fugir. Para outras, os dias que seseguemsãodeintensospreparativos.Benssãovendidosetransferidosilegalmenteapreçosirrisórios,passagenscompradas, vistos obtidos (frequentemente através dosubornodeautoridadesdiplomáticas).Em07/08/1938,afamíliaKlagsbrunnconseguedeixarVienaabordodeumaviãoDC-2dacompanhiaholandesaKLM,rumoaRotterdameLondres.MasodestinofinaléLisboa,umadasportasdesaídadaEuropaparaaAmérica,emparti-cularparaosrefugiadosquebuscavamchegaraoBrasil,ondeumirmãodeLeopoldKlagsbrunnjávivia.Ascâ-meras fotográficas da família haviam sido confiscadas,masKurt,entãocom20anos,não temqualquerespe-rançaderetomarosestudosdemedicinanoexílio.Levanabagagemummanual de fotografia, editadonaquelemesmoanoemHarzburg,naAlemanha,Die Neue Foto-Schule(a“novaescolafotográfica”),duascâmeras(umaSuper-Baldina–preferidadosfotojornalistasalemães–eumaLeica,provavelmenteadquiridanomercadonegro),eoolhareducadona“novavisão”.

EmPortugal,maisoitomesesde incertezaatéquefinalmenteumvistoparaoBrasilfosseobtido.Em15/03/1939,osKlagsbrunnchegamaoRiodeJaneiroabordodonavioalemãoGeneral Artigas.OPãodeAçúcar,naentradadabaíadaGuanabara,erauma imagemtãopoderosa que a companhia de navegação alemãHam-burg-Sudcolocavaofamosomorronosanúnciospubli-citáriosdesuasrotas.AvisãodaPraiaVermelha–localdoprimeirobanhodemar–tornou-seopontodevistafavoritodojovemfotógrafo.Éláqueretrata,porexem-plo,aMissBrasilde1949.(Figura3)

FIGURA3AgoianaJussaraMarques,MissBrasil1949.

A família escolhe o bairro de Laranjeiras, nazona sul do Rio de Janeiro, para morar. Kurt jamaisviveráemoutraregiãodacidade.Nosmesesseguintes,alémdetomaraulasdeportuguês(aoquetudoindica,erafluenteeminglês,oquelheabrirámuitasportasnoBra-sil),fazcontatoseprocuratrabalhojuntoaoutrosfotó-grafos imigrantes estabelecidosnoRio de Janeiro.Emseuprimeiroserviçoprofissional– frascosdeperfumepara um periódico comercial chamadoBrasil Perfumista – atradiçãodaSachfotographie (“fotografiadeobjetosin-dividuais”),talcomopraticadapelosfotógrafosalemãesda“NovaObjetividade”,foidegrandevalia.Ospoucosserviçosquepresta(inclusivetirandoretratosdosvizin-hosparadocumentos),permitemquevá investindonacompraderefletoreseequipamentos.Olaboratórioeoestúdioimprovisadosfuncionam,porenquanto,nacasadafamília.

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Em12/02/1941,suacarreirafazumainflexãodecisiva.KurtcomeçaatrabalharparaaTurismoBrasil-América (Brazilian American Travel Bureau), tira carteiradetrabalhoe,em17/05,travacontatocomoescritóriodarevistaTimenoBrasil.Emjunho,sente-sesuficiente-mente seguroparapedirdemissãodaBrasil-Américaetirarseuprimeiroalvarádeestúdiofotográfico.Emou-tubrodomesmoano,começaatrabalharparaInterame-ricanadePublicidadeefotografaoaparelhoeaslâminasdafamosaGillette“azul”,responsávelpelaaposentado-riadanavalhanascasasdasfamíliasmodernasbrasileiras.Em 04/01/1942, conhece Henry Bagley, jornalista daAssociatedPress,mais tarde correspondentedeguerradaagênciajuntoàstropasbrasileirasnaItália.

Talvez a fluência em inglês tenha permitido aKlagsbrunn aproximar-se de uma rede norte-america-naformadaporagênciasdenotíciasepublicitáriasqueacabarápor terpapelestratégicoparaoDepartamentodeEstadodosEUAnosprimeirosanosdaguerra.Namedidaemqueasituaçãoeuropéiasecomplicacomoavançoalemão,passaraa servitalparaosnorte-ameri-canosconsolidarsuahegemoniaecombateraexpansãodo nazi-fascismo no continente.O recém-criadoOffice of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA)éen-carregadodeconcebereimplementara“políticadaboavizinhança”,quevisavadivulgaroAmerican way of life eosvaloresdademocraciaamericanaaosuldoRioGrandeecriarumaimagemfavoráveldoslatinosparaconsumoamericano,apresentando-oscomoaliadosconfiáveisnaeventualidadedeumaguerracontraoEixo.

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AOCIAAatuavanoBrasilemestreitacoopera-çãocomoDIP–oDepartamentodeImprensaePropa-gandadoEstadoNovo.Alémdaspolíticaseconômicas,dosacordoscomerciais,tambémasaúde,ointercâmbioculturaleapropagandaforampensadasapartirdosob-jetivosestratégicosdadefesadocontinenteedoesforçodeguerranorte-americano.NaóticadosEUA,oBrasilchegouaseravaliadocomo“amaisimportanteeamaisperigosadetodasasRepúblicasdoSul”9,devidoàgran-decolôniaalemãnoSuleademoradeVargasemdefinirparaqueladodaguerrapenderiaaparticipaçãobrasileira.(MOURA1980)10

Afotografianãotinhaumpapelsecundárionasatividadesdaagência.SegundoRobertLevine,setemilfotografias eram distribuídas por ela, mensalmente, a1250 jornais e revistas dohemisfério. (LEVINE1998:21)Tratava-se,convémenfatizar,deumaviademãodu-pla:opúblicoamericanorecebiaseuquinhãodeimagenssimpáticasdosvizinhosbrasileiros–maximamente re-presentadas porCarmemMiranda eZéCarioca – en-quanto o público brasileiro era inundado de imagens“quentes”daguerraedomododevidaamericano.

Adistribuiçãoemmassadefotografiasematé-riaspelaagênciadevia-se,emlargamedida,àspreocupa-çõesdoDepartamentodeEstadonorte-americanocomasituaçãodaimprensabrasileirae,obviamente,comasposiçõesdosprincipaisjornaislocaisarespeitodaguer-ranaEuropa.No iníciode1940,ogovernobrasileirohavia suspendidoacensurapréviaaos jornais (que,noentanto, continuavam sujeitos a punições sempre quepublicavamalgoque“sabiam”contrariaroregime).Emfevereiro deste ano, a embaixada norte-americana en-viauminformeaWashingtoncaracterizandoadecisãocomoum“avanço”,aindaqueaimprensabrasileiranãopudesseserconsiderada,deplenodireito,“livre”.Acor-respondênciaacrescentavaqueodiretordeimprensadoDIPrevelaraqueaintençãodogovernoeradiminuirlen-tamenteonúmerodeperiódicosemcirculaçãonoRiodeJaneiro (negandoa renovaçãodesuas licenças).11 O objetivodoDIP,compartilhadopelosnorte-americanos,seria“melhorarasituaçãofinanceiraequalidadedosór-gãosdeimprensa”.(DE40.02.12)Nestesentido,ovolu-meeocorretodirecionamentodapublicidadecumpriam

9AreflexãoédeW.Guest,funcionárionorte-americano,emcartaaNelsonRockfeller,em1941.OinformeprossegueafirmandoqueosalemãesnutremomesmosentimentocomrelaçãoaoBrasil(MOTA1995:10-11),p.10-11.10ParaasexpectativasalemãsemrelaçãoaoBrasil,talcomoexpres-sasnoscinejornaisgermânicosanterioresàguerra,verLISSOVSKY;BLANK2010.11SónoRiode Janeiro, em1940,circulavam513periódicose23jornaisdiários.

tambémumpapelhigiêniconadepuraçãoda imprensalocal.

Igualmente vital, paraoDepartamentodeEs-tado,eraaatuaçãodasagênciasdenotíciaseórgãosdepropagandadospaíseseuropeusnoBrasil.Entre20e22deabrilde1940,ocorrenoRiodeJaneiroumareuniãode funcionários ediplomatasnorte-americanos lotadosnasdiversasembaixadasdaAméricaLatinaparaavaliarasituaçãogeraldocontinentefaceaoconflito(inclusiveoseventuais“teatrosdeguerra”naAméricadoSul).Váriosinformessãopreparados.UmdelesdetalhaasituaçãodapropagandadeguerraestrangeiranoBrasil.

Enquantoapropagandasoviéticaecomunista,porexemplo,éconsiderada“ineficaz”,eotrabalhodasagênciasnoticiosas ingleses (BBCeReuters)aquémdesua importância e possibilidades, a agência de notíciasalemã–Trans-Ocean–dispunhade101empregadossónoRiodeJaneiro.Suainfluência,noentanto,eraredu-zida, porque os “principais jornais brasileiros parecemserpró-aliados”.Aagênciaalemãabasteceriaapenastrêsperiódicos(GazetadeNotícias,Meio-diaeAPátria),querecebiamcadaumdelesdezcontosderéis(cercadeU$500,aocâmbiodaépoca)semanaisparaveicularasno-tícias doReich.O relatório informa queOGlobo, um“importantevespertino”,haviarecusadoumaofertadeU$3.750semanaisparajuntar-seaestes.(DE40.04.19)

Énosmarcosdestaavaliaçãoqueoesforçodeguerranorte-americanovaidelegaraoOCIAAamissãode“difundirinformações”nocontinente.OOfficerefe-re-seaestatarefacomo“campanha”,valendo-seaquidojargãomilitar,masnãoperdedevistaque“suaprincipalarmaeraodinheiro”.(IAA42.04.15)Oqueestavaemjogo,sabidamente,eramoscoraçõesementesdoslatino-americanos, cujos sentimentos deveriam ser avaliados,monitorados e influenciados. As primeiras “pesquisasdeopinião” realizadas emváriospaíses sul-americanosocorreramnestecontexto.Deinício,ogovernobrasilei-roresisteaestetipodesondagem,apontodeumcon-selheirodaembaixadaamericananoBrasil (JohnF.Si-mons)escreveraoSecretáriodeEstado,emWashington,que a idéiadeumapesquisadeopiniãonão seriabemvistapelogovernobrasileiro.Emvistadisso,noBrasil,comoemoutrospaíses latino-americanos, aspesquisasforamrealizadasporoperadoreslocaistreinadosnomé-todoGallupdemodoanãocaracterizá-lascomoiniciati-vaestrangeira.(LEVINE1998:23)12

Em15deabrilde1942,ummemorandodaDi-visãoRegionaldoOCIAA,determinava,apedidodeRo-

12Issoexplicaa inclusãodopatronímico“brasileiro”nonomedoIBOPE,fundadoem1942,nocontextodesta“transferênciadetec-nologia”.

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ckefeller,queocaráterpragmáticodestasrelaçõescomosEstadosUnidosfosseenfatizadopelapropagandademodo a convencer os latino-americanos que o comér-cio comosEstadosUnidos era lucrativopara todos eque a cooperação comercial acarretaria uma elevaçãodospadrõesdevidanohemisfério. (IAA42.04.15)Foiparaalcançaresteobjetivoqueseconcebeumadasmaiscuriosas(eprovavelmenteeficazes)iniciativasdoOIAAneste campo, oAdvertising Project, implementado a par-tirde1942.Entresuasmotivaçõesoriginaispodeestaruma carta, enviada por Assis Figueiredo, funcionáriodoDepartamento de Imprensa e Propaganda do Bra-sil, em03/05/42,diretamenteaNelsonRockefeller.Acorrespondênciaalertavaqueacampanhadesubmarinosdosalemãesprejudicavaachegadadeprodutosnorte-a-mericanosaomercadobrasileiro,corroborandoassimasensaçãode“isolamento”dopaís,ameaçadifundidapela“máquina de propaganda alemã”. Figueiredo descrevemuitoenfaticamenteosprejuízosà“causadasAméricas”casoestaimpressãoprevalecesse.(IAA42.05.03)

Emmeados domesmo ano, oOCIAA elabo-raumplanoparamanternaAméricaLatina apublici-dade de produtos norte-americanos, mesmo que estesnãoestivessemdisponíveisparaavendaemfunçãodoesforçodeguerra.Acampanhapublicitáriadeveria serlevadaacaboemparceriacomainiciativaprivada.Em07/08/1942,sãoexpedidascartasaempresaseagênciasdepublicidadecomoaT.B.BrownLtd,deNovaYork,conclamando-asautilizarosjornais,rádioseoutrasfor-masdepublicidadepara“difundiroevangelhodapolí-ticadaBoaVizinhança”,sustentandoque“centenasdemilharesdemensagenspodemserlevadasaospovosdasAméricasdiariamenteecontribuirmuitoparaconquistarsuaconfiançaeboavontade”.Tratava-sedeuma“guerrapsicológica”,paraaqualtodososexportadoresamerica-nosdeveriamcolaborar.(IAA42.06.02)13

QuandoKurtKlagsbrunnfazseuprimeirocli-que de uma lâmina de barbear, seguramente não tem

13AnúnciosparaestimularosexportadorestambémeramveiculadosnosEstadosUnidos.Umdeles, sobamanchete.“RockfellerpedeàIndústriaqueuseanúnciosnasAméricas”reproduzaseguintedecla-raçãodoCoordenador:“‘Nomomento’,elediz,‘osnossosindustriaiseexportadorestêmdificuldadeparafornecermuitosprodutosnor-malmenteexportadosparaosmercadosdohemisfério.Masquandoavitória foralcançada , as indústriasvãovoltar-senovamenteparaosprodutosdeumaeconomiaemtemposdepaz.AboavontadeeasmarcasquesemantiveremduranteaGuerravãocontarquandoocomércionormalforretomado.’UmexemplotípicodosanúnciosdifundidosnaAméricaLatina é o de uma empresa deprojetos demáquinaseequipamentosdeprecisão,sediadaemBuffallo,NY,pu-blicadonaediçãodeoutubrodaRevistaAéreaLatinoAmericana.Aempresasediz“amigadobombardeiro”eofereceseusserviçospara“DespuésdelaVictoria.”(IAA42.06.02)

noçãodopapelestratégicoqueestetipodeimagemco-meçavaaterparaoesforçodeguerranorte-americanoeachamada“defesacontinental”.Mas,tinhaplenaclare-zadaslimitaçõesepreconceitosqueumfotógrafocomsotaquegermânicoencontravanoBrasildaquelesanos.UmepisódiorelatadoporEricHess, fotógrafoalemãomeio-judeu,nascidoemHamburgo,quechegaaoRiodeJaneiroem1936éexemplar.TalcomoKlagsbrunn,Hessnãopossuiqualquerexperiênciaprofissionalanterior;fa-ziafotosdesuasviagens,apenas.Masem1936,vendoocercosefecharemtornodele–começaaserdiscri-minadonaShell,ondetrabalhavahámaisdecincoanos– consegue um visto de turista para o Brasil: compraumaLeica,edespacha-separaoRiodeJaneiro(nãosemantesfotografarasOlimpíadasdeBerlimparaenrique-ceroseuportfólio).Hess,quemaistardeparticipariadograndeesforçodaObraGetuliana, tornar-se-á,apartirde1937,oprincipalfotógrafodorecém-criadoServiçodoPatrimônioHistórico,cujosarquivosguardampartedesuaobra.Umavez,fotografandoemPetrópolisape-didodoPatrimônio,em1940,acaboudetidoepreso:“Osenhoréalemão.Nãopodefotografar”–disseram-lhe.Mesmodepoisdeesclarecidoomal-entendido,ofotó-grafotevequedeixarcomapolíciatodososseusfilmeseequipamentosquesóforamrecuperadosdiasdepois,comaintervençãodiretadogovernadorAmaralPeixoto.(HESS1983:14)Mesesdepois,emRecife,oproblemaserepete:“ComoumalemãoémandadodoRiodeJa-neiro...paratirarfotografiasdanossacidade,quandoossubmarinosestãoaquinanossacosta?”MesmodepoisdeumaconsultatelefônicaaoministrodaGuerra,Ge-neralDutra,EricHesssópoderáfotografarasigrejasdeOlindaacompanhadodeumpoliciallocal.UmaamigadafotógrafaAliceBrill,quechegouaoBrasilem1934,com14anos,contaqueapesarde“refugiadasdonazismo”,eramconsideradas“súditas”doEixo,esópodiam iràpraiacomum“salvo-conduto”emitidopelapolícia(que,demodogeral,valiapor24horaseeramuitodifícildeseobter):“viagensdeférias”,sóparaointerior.(IMS2005:18)14

É neste contexto de desconfiança em relaçãoaosfotógrafosgermânicos,masdecrescente intercâm-biodeimagensentreoBrasileosEstadosUnidos,queKlagsbrunnlograobterem24/12/1941,juntoaorepre-sentanteparaaAméricadoSuldo“EscritórioAustría-co”deLondres,umdocumentocomprobatóriodequenãohaviaqualquer“objeçãopolítica”aele,sendopessoa

14MesmoGevieveNaylor,apesardenorte-americanaeportadoradeumsalvo-condutodoDIP,assinadopelopoderosoLourivalFontes,serádetidaváriasvezesdurantesuaviagemaoNordesteem1942,sobsuspeitadeespionagem.(MAUAD2008:207)

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conhecida“desteescritório”como“emigrantepolítico”.Taldocumentoatestava,emoutraspalavras,queofotó-grafonãoeranazista,vivendoforadaÁustriaemvirtudedeperseguiçãodoregimevigentenaquelepaís.Depossedeste atestado de bons antecedentes político, pode in-tensificarseusserviçosparaasrevistasnorte-americanas,paraaAssociated PresseparaaUniãoNacionaldosEstu-dantes,daqual se aproximaria comomembroativodaresistênciaanti-fascista.15

Apartirde1942,comosnegóciosmelhorando,Kurt compraumaRolleiflexe investebastante emseuestúdioelaboratório.Apaisagemdacidade,avidadoscariocas,eocarnaval,claro,foramosprimeirosemaisrecorrentes temasde suaobra.AmísticadoRio, comsuaspraias,cassinosenight-clubs,erapautafreqüentenasrevistas norte-americanas.16 Copacabana, a essa altura,jáeraobairromaisfamosodacidadeealia juventudecarioca começa a assumir um jeitomais despojado nomododesevestiredesecomportar.Opointdaselites,noentanto,continuavasendooJockeyClub,naGávea.NãohaviamelhorlugarparaumadamaouumcavalheiroseremnotadosegarantirumclichêemrevistasilustradascomoOCruzeiro eFon-fon, cliente freqüentedas fo-tografiasdeKlagsbrunn.NosdiasdeGrandePrêmio,oJockey transformava-senaprincipalpassareladaselitescariocas.Enchia-sedefotógrafos,aserviçodaimprensaoudosprópriosfotografados.Era láquenovosmode-losrecém-copiadosdaEuropaeram“lançados”,comasjovensdasmelhoresfamíliasservindocomomanequinsparafotógrafosqueas“surpreendiam”,elegantes,ator-cereapostardiscretamentenoscavalos.

KurtKlagsbrunntrabalhaparadezenasdeperi-ódicosbrasileiros,comdestaque,nosanos1940,paraaRevistaSombra,publicaçãobi-mensalrefinada,emcujoprimeiroeditorialAugustoFredericoSchmidtescreveu:“Essa publicação vai fixar o lado elegante e civilizadodoBrasil”.(CERBINO;CERBINO2011)Afotografiasocial será uma das importantes vertentes do trabalhodofotógrafoque,graçasaisso,noslegouumimpressio-nanteregistrodocumentaldoscostumesdaselitesbra-sileiras no período. Suas fotografias são um fantásticotestemunho domodo como esses segmentos vão ree-laborandosua imagememummundoquese transfor-ma rapidamente.Nestas fotografias, os antigosmodos

15Em1943,colaboracomabarracadaÁustriano‘NataldaVitória’,sendodesignadopelodelegadonoBrasildaAmericanFederationof AustrianDemocrats , como“patriota austríaco”e“amigodaÁus-tria”.16OBrasiléumadasprincipaismatériasdaprimeiraediçãodare-vista Lifeem23/11/1936.ORiodeJaneiroestárepresentadopelascalçadasdepedrasportuguesas,pelabaíadaGuanabara,ditaamaisbonitadomundo,epelafestadaPenha.

senhoriais sãopostosde ladoecomeçamosaverumafamília“moderna”figuradaàmaneiradaspersonagensglamorosasdocinemahollywoodiano:homensemulhe-resfumamelegantemente,sentam-seinformalmentenasescadasdasmansões,escutamdiscosdejazznaseletrolaseparticipamdeweekendsnaserraounasilhasdabaíadaGuanabara.(FIGURA4).

FIGURA4Week-endnaIlhadeBrocoió,baíadaGuanabara,pertencenteàfamíliaGuinle,em1948.Emprimeiroplano,dechapéu,opríncipe

D.PedroGastãodeOrleanseBragança.

MasoolhardeKurtnãoserestringiaapenasàsáreasnobresdacapital.Em1949,começaa fotografarparaaAçãoSocialArquidiocesana(ASA)eacompanhaotrabalhosocialdaIgrejaCatólicanasperiferiaspobresdacidade.Comofotógrafocomercialepublicitáriodepres-tígio, seuarquivo inclui campanhasdepropaganda im-portantescomoadosrefrigerantesGuaráeCoca-Cola,darededecosméticosetratamentodebelezaElisabethArdenedalojadedepartamentosSears.Ainauguraçãodestaúltimarendeu-lheumensaionaLife,publicadonaediçãode27/06/1949.Também,pudera,oeventoatraiumultidões. A revista destacou que “nunca houve umainauguraçãocomoadoRiodeJaneiro”:

Amassacomeçouasejuntarnoalvore-cerepermaneceunafilaporhorasafioatéqueasportasseabrissem...Umnún-cio apostólico abençoou a instituição.Os123milcompradoresamontoaram-senascozinhasmodelo,lançaram-sefei-tomoscassobreasgeladeirasevoltaram

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para casa com tudo que puderam, dealgodãoabsorventeasementesdezínia.

Os eletrodomésticos, assim como as cortinasdeplásticoparaboxdechuveirorepresentavamasidéiasdemodernidade,praticidadeeconfortoqueatraíamosconsumidoresbrasileirosdopós-guerra,cujodesejoha-viasidocuidadosamentecultivadoduranteaguerra.Asgeladeirasforamvendidas35%maisbaratoqueemqual-queroutralojadacidadeeesgotaram-seemmenosde24horas.Kurtfotografou,eaLifepublicou,osatulhadosdepósitosdaloja,antesdainauguração,ecompletamentevazios,depois.Asescadasrolantes,rarasnaépoca,eramuma atração aparte, e também foram fotografadasnosmais variados ângulos. Chegaram a transportar 16milpessoasporhoranesteprimeirodia.

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AproduçãodeKurtKlagsbrunn,noquetangeaosanos1940,excedeemmuito, tantoemquantidade,quantoemvariedade,adosfotógrafosnorte-americanosThomasD.McavoyeHartPrestonque,comfreqüência,serviramàLife,noBrasil(esteúltimoéresponsávelpelaantológicamatériacomabailarinaecoreógrafaErosVo-lúsia,capadaediçãode22/09/1941),bemcomoaquelesque,aserviçodoOIAA,comoKidder-Smith(encarre-gado,em1942,deproduzirmaterialparaumaexposiçãodearquiteturabrasileiraantigaemoderna,noMoMAdeNovaYork),GenevieveNaylor(queresidenoRiodeJa-neiroentre1940e1942,comoembaixatrizda“boavon-tade”)eAlanFisher(querecebeuamissãoderegistrarostrabalhosdaFundaçãoRockfellernaAmazônia,tambémem1942)realizaramnopaísnomesmoperíodo.

MasdetodoomaterialqueKlagsbrunnprodu-ziunosprimeiros anosde sua carreira, omais pessoale raro diz respeito aomovimento estudantil. TrabalhaseguidamenteparaaUniãoNacionaldosEstudantes,aFederaçãoAtléticaEstudantileosdiretóriosacadêmicosdaEscolaNacionaldeBelasArteseFaculdadeNacionaldeDireito.Desdejulhode1942,omovimentoestudan-tilanti-fascistanoBrasilvinhaganhandoforça,promo-vendopasseatasnoRiodeJaneiroeSãoPaulo.Nomêsseguinte, as organizações estudantis tomam posse doClubeGermânia,naPraiadoFlamengo,noRiodeJanei-ro,quesetornasededaUNEedoDCEdaUniversidadedoBrasil.Éprovávelqueofotógrafotenhapercebidoaocupação do clube alemãopelos estudantes brasileiros

comouma revanche simbólicadaocupaçãodaÁustriapelo regimenazista.Torna-seumafiguraconhecidadetodosnasededaUNE,comoatestaumanotapublicadanoperiódicodaentidade,emnovembrode1942,sobotítulo“Kurt,ofotógrafoeestudanteaustríacoanti-nazis-ta”:“KurtéumbomamigonossoepassaboapartedeseutemponasededaUNE.TemacompanhadotodososmovimentosuniversitáriosdoDistritoFederal–équasemembrohonoráriodaUNE.”Eoprópriofotógrafoseexplicava:“Souaustríaco,vocêssabem.OnazismomeexpulsoudaÁustria e eu vimpara oBrasil.Encontreimuitospatríciosaqui efizumaporçãode relaçõesen-treosbrasileiros.Osestudantesentão,têmsidoosmeusmelhores amigos”.Emseuarquivoencontram-semaisdeumacentenadeflagrantesdasmanifestaçõesorgani-zadaspelosestudantesemproldaentradadoBrasilnaguerraeemapoioaospracinhasbrasileiros.(FIGURA5)Duascartasdeapresentação,de1945,atestamqueKurtera“fotografooficial”daComissãodeAjudaàFEBdaLiga deDefesaNacional e daComissãoEstudantil deAjuda à FEB. Seu engajamento levou-o a permanecerao lado dos estudantes nosmovimentos pela redemo-cratizaçãodoBrasil(asmanifestaçõespelaAnistiaepelaConstituinte),produzindoemvirtudedissoumregistrohistóricovalioso.(FIGURA6)

FIGURA5JantardeconfraternizaçãooferecidopeloDepartamentoJuvenildaLigadeDefesaNacional,em1943,nosalãonobredasededaUNE,aosdelegadosbrasileirosnaConferênciadaJuventudepelaVitória,quehaviasidorealizadaemMontevidéu.Amesaem“V”simbo-lizaaexpectativadevitórianaguerra.FotodeKurtKlagsbrunn,publicadanarevistaMovimento,órgãooficialdaUniãoNacional

dosEstudantes.

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FIGURA6EstudantesdaEscolaNacionaldeBelas-ArtespintamcartazesemfavordaAnistiadospresospolíticosdoEstadoNovo,em1945.

DuranteosanosdoGovernoDutra,otrabalhocomorepórter fotográficodogrupoTime/Lifepermiteque realize várias viagenspeloBrasil e também lhedáacessoaosbastidoresdapolítica,muitasvezesvedadosa fotógrafos independentes ou de veículosmenos im-portantes.Oponto alto destas reportagenspolíticas é,seguramente,aConferênciadePetrópolis,em1947,queresultounaassinaturadoTratadoInteramericanodeAs-sistênciaRecíproca(TIAR),quandoaGuerraFriatoma-vacorpoeogovernobrasileirovoltariaacolocarParti-doComunista na ilegalidade.KurtKlagsbrunn foi umobservadorprivilegiadodasnegociaçõesemtornodestedocumento,fotografandotantooseventosoficiaiscomoosbastidoresdaConferência.Suasnotaseasdarepórterqueoacompanhou,ConnieBurwell,sãoumprecisotes-temunhoadicionalacercadoquesepassouali.

AConferênciadeveriateracontecidonoRiodeJaneiro,masogovernoDutra,comointuitodecompen-sar as perdas doQuitandinha emvirtudedaproibiçãodojogo,optouporrealizarláoevento.MasoHotelnãodispunhadecobertoressuficientesemuitosdiplomatas,hospedadosdesdeavéspera,numanoitedefrio inten-so,tiveramqueusartoalhasdebanhocomocobertoressuplementares.Segundorelatosdos jornalistas,este tó-pico,eopreçodouísquenobardohotel(U$2.50),fo-ramostemasmaisdebatidosnasprimeiras18horasdenegociações.Em solidariedade aos colegas, o chefe dadelegaçãodeHondurasJuanCáceres,sentou-senobarapós a sessãode abertura, com suaprópria garrafa de

uísque,distribuindogenerosasdoses aosdemaisdiplo-matas. (BURWELL1947)Comogestodeboavontadee panamericanismo explícito, a agência de publicidadenorte-americana McCann Erickson montou um standdaCoca-Colaparamatara sededosdelegadosnos in-tervalos das discussões.Um contraponto ao cafezinhobrasileiroqueeraservidooitovezespordianoplenáriodaconferência(Figura7)

Figura7StanddaCoca-Colaserverefrigeranteadiplomatasemilitarespre-sentesàConferênciaInteramericanapelaManutençãodaPazeda

SegurançanoContinente.HotelQuitandinha,Petrópolis,1947.

Em1947,KurtmudaseuestúdioparaoEdifícioSãoBorja, naAvenidaRioBranco (ondepermaneceráaté 1969, quando abandona parcialmente sua carreiraprofissionalemvirtudedeumAVC).Tornava-se,assim,vizinhodeinúmerosestúdiosdefotógrafos imigrantes,comoEricHess,CarlosMoskovicseSaschaHarnisch,quehaviamseinstaladonaregiãodaCinelândia.Aestaaltura, já trabalha com vários assistentes. Entre estes,umasedestacaapontodetornar-sesuasócia.ÉJudithMunk,refugiadahúngara,quechegaaoBrasilem1949.PormeiodeumacunhadaquetrabalhavanaempresadecosméticoseembelezamentofemininoElisabethArden,soubequeofotógrafodacompanhianecessitavadeumalaboratorista.Judithhaviaseaperfeiçoadonafotografiaenomanejodasquímicasdolaboratórioduranteaguerra,quando trabalhou falsificandopassaportespara a resis-tênciahúngara.Logodeuumjeitodepedirumamáquinafotográficaemprestadaaopatrãoecomeçoutambémafotografar.Jeitosacomascrianças,culta,fluenteemale-mãoefrancês,rapidamenteconstituiusuaprópriaclien-

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telaetornou-sesóciadeKurtpelosvinteanosseguintes.Ashabilidadesde relaçõespúblicasde Juditheram tãoeficazesque,graçasaosconhecimentosqueadquirefo-tografandoeventospolíticos–oprópriopresidenteGe-túlioVargasconstantementerequeriasuapresençajuntoaelenascerimôniasoficiais–conseguetirarospaisdaHungria,em1952.(MUNK2007:67-75)

Pode tersidoporsugestãodeJudithqueKurtrealizaumensaiosobreaIlhadasFlores,nabaíadaGua-nabara, local de “quarentena” dos refugiados onde elahaviavividoporoitodias.AIlhadasFloresera,desdeoúltimoquarteldoséculoXIX,oprincipallocaldequa-rentenadosimigranteseuropeusnoRiodeJaneiro.Alipermaneciamaté receberemautorizaçãoparaentrarnacidade.Nosanosqueseseguiramàguerra,amaioriadosrefugiadosécompostaporimigrantesdaEuropaOrien-talqueseopunhamaocomunismo.17OensaiodeKurté um raríssimo ebelo registrodosprimeiros dias des-tecontatoinicialdosimigranteseuropeuscomoBrasil.Umafotografiaemparticularparecetransporparaumacenaidílicaochoqueeasensaçãodeestarumtantoforadomundodos jovens refugiados. (Figura8).Recriaçãoheterotópica na qual, em torno da sanfona, como nasnoitesprimaverisdaEuropaOriental,cançõesqueserãoembreveesquecidassãoemolduradasporexóticaspal-meirastropicais.

FIGURA8Quarentena de imigrantes na Ilha das Flores. Rio de Janeiro, 1949.

17Duranteaditaduramilitarqueseseguiuaogolpede1964,aIlhadasFloresfoiutilizadacomoprisãopolíticaelocaldetortura.Láesti-veramencarcerados,pormaisdeumano,entreoutros,osobrinhodeKurtKlagsbrunn,VictorHugoKlagsbrunnesuaesposaMartaMariaKlagsbrunn,sobcujaguardaestáoacervodofotógrafo.

Os fotógrafos franceses que se estabeleceramnoBrasilnosanosdaguerra–cujosexpoentessãoJeanManzon,MarcelGautherotePierreVerger– jáchega-ramprofissionalizados,comexperiênciapréviaemcam-pos como o fotojornalismo e a fotografia etnográfica.Sua condição de “aliados” na guerra, sua latinidade e“simpatia”,eapenetraçãodaculturafrancesanaselitesbrasileiras, certamente contribuírampara uma inserçãoprofissionalmaisqualificadapoucotempoapóssuache-gada.Ademais–eesteéofatomaiscurioso–tiveramsuavidaeobraobjetodeseguidasrevisõeshistóricaseediçõescuidadosasnosúltimosanos.

AtrajetóriadeKurtKlagsbrunn,emsuaprimeiradécadadeatividadeprofissionalnoBrasil,ajudaailumi-narumasériedeoutrospercursos,igualmenterelevantesparaahistóriadafotografiabrasileira,emparticularnasdécadasde1930e1940.Emquantidademuitomaior,osfotógrafosoriundosdaEuropaCentralraramenteexer-ciamessaprofissãoemseuspaísesdeorigem.Banidosdaterranatal, falando línguasquepoucoscompreendiam,seuúnicopatrimônioeraoolharqueformaramna‘novaescolafotográfica’.18TendochegadoacidadescomoRioeSãoPaulo,ondeosestúdiosderetratosestavambemestabelecidosdesdeoséculoXIX,sãoobrigadosaseau-to-inventarprofissionalmente,ocupandoespaçosvazioscomofotógrafospúblicos(prestandoserviçosdepropa-gandaedocumentaçãoparaórgãosgovernamentaisdetodanatureza), comerciais (produzindo aprimeiras fo-tografiaspublicitáriasdequalidadenopaís)e,comonocaso,deKurtKlagsbrunn,tambémafotografia“social”,conferindotomde“reportagem”aregistrosdecasamen-tos,aniversáriosefestaschiquesnasresidênciasdasfamí-liasabastadas.Ascircunstânciasdaguerraosinduziramamanterumperfilmaisbaixo,evitandoaexposiçãopúbli-caquequasesemprelhescausavaconstrangimento.EricHess,porexemplo, lembra-sedesituaçõesemquesuachegadaaumacidadedointerioreranoticiadanojornallocalcomosefosseavisitadoprópriobraçodireitodeHitler(olídernazista,Rudolf Hess).Emlargamedida,ascondiçõesemquetrabalharamnestesprimeirosanoseaextremaheterogeneidadedesuasobras–típicasdeuma “viração” de imigrante – contribuíram emmuitoparaoseuposterior“esquecimento”.Hoje,noentanto,essadiversidade,quearquivodeKurtKlagsbrunnreflete,éoquelhesconfereinteresseevalorhistóricosingulares.

Em1950,comocorrespondentedaTime/Life,KurtcobreaCopadoMundonoRiodeJaneiro.Foto-

18Háumaanedotaexemplararespeitodeumdestesrefugiados,queteriaganhadosuaLeicaemumjogodecartasabordodonavioemviajava.EmbarcousapateironaAlemanhaedesembarcoufotógrafonoBrasil.

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grafaaconcentraçãodeváriasequipeseestápresentenogramadodoMaracanãemtodososjogosdoquadrangu-lardecisivo,inclusivenaderrotadoBrasildiantedoUru-guai.FindaaCopa,viajadefériasparaosEstadosUni-dos,deondesóretornaránoanoseguinte,passandoporCuba,EquadorePeru.Éaprimeiraviagemaoexterior,dezanosapóssuachegadaaoRiodeJaneiro.Osanosdaguerraficaramparatrás.ÉjácomolhosimpregnadosdeBrasil que este refugiado austríaco irá fotografarossignosdoprogressonosarranha-céusnova-iorquinoseaculturamestiçadasnaçõeslatino-americanas.Masistojáéoutrahistória.

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Recebido:02/04/2013Aprovado:30/04/2013