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    PEDROANTONIOVIEIRA

    ROSNGELADELIMAVIEIRA

    FELIPEAMINFILOMENO

    Organizadores

    Passado e Presente na Anlise dos Sistemas-Mundo

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    Pedro Antonio Vieira; Rosngela de Lima Vieira; Felipe Amin Filomeno

    Conselho EditorialImmanuel Wallerstein, Fernando Novais, Hoydo Lins, e Francisco Luiz Corsi

    Projeto grco, diagramao e capaRita Motta - www.editoratribo.blogspot.com

    RevisoSrgio Meira

    ImpressoGrca e Editora Copiart Ltda

    1 Edio - 2012 - So Paulo SP

    CIP-BRASIL. CAALOGAO-NA-FONESINDICAO NACIONAL DOS EDIORES DE LIVROS, RJ

    B83

    O Brasil e o capitalismo histrico : passado e presente na anlise dos sistemas-mundo /organizao Pedro Antonio Vieira, Rosngela de Lima Vieira, Felipe Amin

    Filomeno.- So Paulo, SP : Cultura Acadmica Editora, 2012.327 p.

    ISBN 978-85-7983-386-1

    1. Capitalismo - Brasil - Histria. 2. Capital (Economia). I. Vieira, PedroAntonio. II. Vieira, Rosngela de Lima. III. Filomeno, Felipe Amin. IV. Srie.

    13-1521. CDD: 330.1220981 CDU: 330.142.23(81)

    043362

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    Sumrio

    Introduo ............................................................................................................7Passado, presente e uturo da anlise dos sistemas-mundo no Brasil

    Pedro Antonio Vieira, Rosngela de Lima Vieira,Felipe Amin Filomeno

    SEO 1

    FUNDAMENTOS DA ANLISE DOS SISTEMAS-MUNDO

    Captulo 1A anlise dos sistemas-mundo como movimento do saber......................17

    Immanuel Wallerstein

    Captulo 2A perspectiva dos sistemas-mundo: undamentos e tendncias.............29

    Eduardo Barros Mariutti

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    O CAPITALISMO CONTEMPORNEO

    Captulo 3

    O m do longo sculo XX ...............................................................................77

    Beverly Silver e Giovanni Arrighi

    Captulo 4

    Continuidades e transormaes na evoluo dossistemas-mundo ................................................................................................97

    Christopher Chase-Dunn e Roy Kwon

    Captulo 5

    Desigualdades mundiais de renda: em direo a uma

    perspectiva crtica .......................................................................................... 137

    Roberto Patricio Korzeniewicz

    Captulo 6

    Das eras douradas aos tempos bicudos do capitalismo mundial: prticas

    empresariais e ilicitudes como estrutura.................................................. 169

    Antonio Jos Escobar Brussi

    SEO 3

    O BRASIL NO SISTEMA-MUNDO CAPITALISTA

    Captulo 7

    A economia-mundo, Portugal e o Brasil no longo sculo XVI (1450-1650) ................................................................................................................. 207

    Pedro Antonio Vieira

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    Captulo 8A cadeia mercantil do ca produzido no Brasil entre 1830 e 1929..... 265

    Rosngela de Lima Vieira

    Captulo 9A mudana institucional em perspectiva histrico-mundial: competiotransnacional e propriedade intelectual na agricultura de soja da Amricado Sul ................................................................................................................ 297

    Felipe Amin Filomeno

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    IntroduoPASSADO, PRESENTE E FUTURO DA

    ANLISE DOS SISTEMAS-MUNDO NO BRASIL

    PEDROANTONIOVIEIRA(Universidade Federal de Santa Catarina)

    ROSNGELADELIMAVIEIRA(Universidade Estadual Paulista-Marlia)

    FELIPEAMINFILOMENO(Universidade Federal de Santa Catarina)

    experimentando um sentimento de grande jbilo e de realizao

    que entregamos ao pblico de lngua portuguesa este que o primeiro li-

    vro produzido no Brasil completamente dedicado Anlise dos Sistemas-

    Mundo (ASM).

    O sentimento de jbilo e realizao se deve a que o livro vem luz

    mais ou menos treze anos depois que um grupo de proessores do entoDepartamento de Economia (hoje Economia e Relaes Internacionais)

    da Universidade Federal de Santa Catarina se juntou para estudar autores

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    no lidos no curso de Economia, tais como Karl Polanyi, Fernand Braudel,

    Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi. Os seminrios envolveram pro-

    essores e alunos de outros cursos, que aos poucos oram se dispersando evoltando para suas respectivas linhas tericas, enquanto ns j no podamos

    azer o mesmo, tal oi nosso entusiasmo com as obras de Fernand Braudel,

    Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi. Continuamos ento a estud-las,

    incorporando-as em disciplinas da graduao e da ps-graduao, de modo

    que, aos poucos, monograas e dissertaes oram elaboradas tendo como

    reerencial terico a ASM.

    Em 2006, oi criado o Grupo de Pesquisa em Economia Poltica dosSistemas-Mundo (GPEPSM), que no ano seguinte organizou em Florian-

    polis o I Colquio Brasileiro em Economia Poltica dos Sistemas-Mundo.

    Desde ento, o Colquio realizado anualmente, tendo sido organi-

    zado pelo Pro. Antonio Brussi na Universidade de Braslia (2009),

    pelo Pro. Eduardo Mariutti na UNICAMP (2011), e pela Proa.

    Rosngela de Lima Vieira na UNESP-Marlia (2012). A continuidade dos

    Colquios e sua organizao em outras universidades que no sua sede ini-cial, a UFSC em Florianpolis, revelam a diuso da ASM pelo meio acad-

    mico brasileiro, diuso que, ademais das limitaes daqueles que lideram o

    processo, enrenta diculdades inerentes a qualquer inovao, mas que, no

    caso especco, parecem decorrer de certas peculiaridades do meio acad-

    mico vis--vis a ASM.

    No que segue, e no limite do espao desta Introduo, indicaremos

    estas peculiaridades, comeando pelas peculiaridades da ASM. Como reiteraImmanuel Wallerstein neste volume, a ASM nasceu como um protesto con-

    tra as Cincias Sociais, particularmente a sua expresso dominante nos anos

    1970, a teoria da modernizao. Para impensar as Cincias Sociais, quatro

    princpios metodolgicos oram desenvolvidos no processo de criao cole-

    tiva da ASM: as Cincias Sociais deveriam ser histricas, a unidade de anlise

    deveria ser o sistema mundial (em lugar da economia/estado/sociedade na-

    cional), a temporalidade de reerncia deveria ser a longue durebraudeliana

    e o enoque necessariamente unidisciplinar (WALLERSEIN, 2002). No

    dicil perceber o quanto esta proposta desaava cada disciplina em particular

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    INTRODUO

    e o conjunto delas. Desde 1974, quando oi lanado o primeiro volume de

    O Moderno Sistema-Mundo, obra seminal de Wallerstein, a ASM avanou

    bastante nos EUA, mas no muito ora dele, embora o suciente para serconsiderada por Wallerstein como um movimento do saber (ver o seu texto

    neste volume). Na Amrica Latina, a entrada da ASM nos circuitos acadmi-

    cos oi praticamente nula at o incio da dcada de 2000. At onde vai nosso

    conhecimento, somente no Mxico existe uma contribuio relevante, a de

    Carlos Antonio Aguirre Rojas. No Brasil, embora ossem lidos, Wallerstein e

    Arrighi no tinham inspirado programas de pesquisas consistentes. Por qu?

    Se temos em mente seus quatro princpios metodolgicos, compreens-vel que a ASM enrentasse grandes barreiras. Comecemos pelas resistncias

    mais gerais, quer dizer, no exclusivas do Brasil.

    Em primeiro lugar, assim como em todos os processos de trabalho, tam-

    bm no labor cientco, instalou-se uma diviso do trabalho, que, ao se revelar

    to eciente na gerao de conhecimento quanto na de objetos, oi se repro-

    duzindo e se constituindo em uma slida estrutura - neste caso, uma estrutura

    do saber da economia-mundo capitalista (LEE, 1998). E as estruturas limitame condicionam as aes humanas. No caso das Cincias Sociais, esta diviso do

    trabalho no s se expressa na separao entre as diversas disciplinas Econo-

    mia, Sociologia, Cincia poltica, Histria, Antropologia, entre outras como

    tambm em especializaes dentro de cada uma delas. Alm das universida-

    des, esta organizao do trabalho cientco replicada nas agncias governa-

    mentais de omento pesquisa, dando lugar a uma rede de interesses (cargos,

    prestgio, complementaes salariais, nanciamentos etc.) que pode dicultare mesmo suocar propostas metodolgicas que desaem ostatus quo.

    Ao serem transplantadas para a Amrica Latina, as Cincias Sociais

    oram adaptadas s condies econmicas, polticas e intelectuais dos vrios

    pases da regio nas dcadas de 1950 e seguintes, marcadas, at a dcada de

    1980, pelo embate entre dois grandes projetos civilizatrios no contexto da

    Guerra Fria: o desenvolvimentismo, entendido como a busca, pelos pases

    da regio, dos padres de riqueza e bem-estar vigentes nos pases chamados

    desenvolvidos atravs do capitalismo, e o socialismo, que seria a promoo

    do bem-estar e justia social atravs da socializao dos meios de produo.

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    No meio acadmico latino-americano, estes dois projetos civilizatrios

    oram incorporados nos pensamentos cepalino-desenvolvimentista e mar-

    xista-revolucionrio, os quais, em que pesem as dierenas, so tributriosdas cincias sociais do sculo dezenove e, principalmente, adotam o estado/

    economia/sociedade nacional como unidade de anlise para o estudo das

    permanncias e da mudana social. O nacionalismo metodolgico expresso

    naquelas duas vertentes correspondeu a projetos polticos que tomavam o

    estado/economia/sociedade nacional como espao prioritrio da ao pol-

    tica. eoria e prtica interagiam para privilegiar o espao nacional. De ato,

    ambas as correntes tericas passaram a ver no estado nacional o agente prin-cipal da mudana desenvolvimento/industrializao para os cepalinos e

    implantao do socialismo para os marxistas.

    Quando colocados em prtica simultaneamente, os quatro princpios

    metodolgicos da ASM alteram signicativamente os objetivos, procedi-

    mentos e resultados das pesquisas sobre a mudana social, originando um

    outro programa poltico, e assim, mais uma rea de atrito com acadmicos-

    militantes das duas correntes antes mencionadas. Entretanto, o prprio de-

    senvolvimento da economia-mundo parece estar trazendo gua para o moi-

    nho da ASM. Por um lado, os dois processos civilizatrios e suas expresses

    acadmico-cientcas perderam ora aps 1980 e, por outro, a atual (quar-

    ta) onda de globalizao1est azendo at o cidado comum perceber que a

    humanidade compartilha um nico e mesmo mundo. Ao compartilhar esta

    percepo, que tambm contribui para expor as limitaes da perspectiva

    nacional, tambm o meio acadmico e intelectual - especialmente as novas

    geraes de cientistas sociais - est mais aberto a enoques sistmicos.A presente obra tanto um resultado, como, esperamos, um ator impul-

    sionador desta abertura. No Brasil, algumas obras de Immanuel Wallerstein

    1A primeira ocorreu no sculo XIII e oi estudada por Janet L. Abu-Lughod no livro Be-ore European Hegemony Te World System A.D. 1250-1350 (Oxord Univertity Press,1989); a segunda, iniciada pelos portugueses no sculo XV, deu lugar, j no XVI, ao que se

    convencionou chamar Os Grandes Descobrimentos e ao nascimento da Economia-MundoCapitalista; a terceira, no sculo XIX, liderada pela Gr-Bretanha, deu lugar ao queHobsbawn chamou a era do Imperialismo e praticamente incorporou todo o globo terrestre Economia-Mundo Capitalista.

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    INTRODUO

    e Giovanni Arrighi, dois dos principais expoentes da ASM, tem sido publi-

    cadas. Poderamos at dizer que, neste aspecto, Arrighi tm sido mais co-

    nhecido porque seus trs principais livros tm edio brasileira2. Contudo,nenhum dos quatro volumes da obra seminal da perspectiva, Te Modern

    World-System, de Immanuel Wallerstein, mereceu uma edio brasileira3.

    Considerando que o conhecimento desta obra undamental para o contato

    direto com os undamentos sistmicos, histricos e unidisciplinares da ASM,

    podemos imaginar a lacuna que isto implica para a ormao das novas ge-

    raes de pesquisadores. Alm de Arrighi e Wallerstein, continuam com-

    pletamente desconhecidos no Brasil pesquisadores que tm dado contribui-

    es importantes para a ASM, como o caso de Christopher Chase-Dunn

    e Roberto Patrcio Korzeniewicz.

    Faltava tambm no Brasil uma obra dedicada inteiramente ASM e

    que apresentasse, alm dos autores estrangeiros, as contribuies que pesqui-

    sadores brasileiros esto dando para este campo de estudos. O presente livro

    o primeiro passo nesta direo. A inteno dos organizadores oi oerecer

    uma obra em que a ASM aparea tanto em discusses terico-metodolgicasquanto em pesquisas empricas, abarcando tanto o passado quanto o presen-

    te, do Brasil e do mundo. Assim, a coletnea de textos revela a pluralidade e

    o potencial da ASM para o estudo da mudana social e dos problemas que

    aigem a humanidade na atual conjuntura do sistema-mundo capitalista.

    Na parte I do livro so discutidos os undamentos e tendncias da An-

    lise dos Sistemas-Mundo. No texto de abertura, Immanuel Wallerstein az

    uma espcie de recuperao da evoluo, das pretenses e dos dilemas atuaisda ASM. A tese central do criador da ASM que A anlise dos Sistemas-

    Mundo mais do que uma perspectiva; tambm mais do que uma teoria, se

    que uma teoria. um movimento do saber, e isso de crucial importn-

    cia para o desenvolvimento uturo das cincias sociais histricas. Como se

    v, a ASM est sendo vista no apenas como uma inovao epistemolgica,

    2O leitor no ter diculdade de encontrar essas obras, razo pela qual no as relacionamos aqui.3 Os dois primeiros volumes oram publicados por Edies Arontamento de Portugal, masesto esgotados.

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    mas sim como um movimento social, uma ora de mudana social, no cam-

    po do saber. Como movimento de mudana, o destino da ASM est indis-

    soluvelmente ligado evoluo da economia-mundo capitalista. No captulo2, Eduardo Mariutti aponta as condies para o surgimento da Anlise dos

    Sistemas-Mundo, ocando em dois contextos histricos, a modernidade e o

    perodo de 1945 a 1968 para, na sequncia, analisar criticamente a evoluo

    desta perspectiva, balizando a anlise em torno da sua oposio radical

    teoria da modernizao e apontando os pontos de convergncia com o ma-

    terialismo histrico.

    A parte II do livro contm trabalhos dedicados anlise da conjun-tura atual do sistema-mundo capitalista. No captulo 3, Giovanni Arrighi

    e Beverly Silver utilizam a teoria dos ciclos sistmicos de acumulao para

    analisar as transormaes associadas ao governo de George W. Bush, crise

    mundial inaugurada em 2008, e ascenso da China. O trabalho, que um

    dos ltimos de Arrighi, uma extenso da anlise eita em O Longo Sculo

    XX(por Arrighi) e em Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial

    (por Arrighi, Silver e colaboradores).No captulo 4, Christopher Chase-Dunn e Roy Kwon analisam o

    capitalismo contemporneo da perspectiva evolucionria e comparativa

    dos sistemas-mundo. Fenmenos como a Primavera rabe, o movimento

    Occupy Wall Street e a ascenso de governos de centro-esquerda na Am-

    rica Latina so situados num esquema analtico que considera trs horizon-

    tes temporais: 500, 5.000 e 50.000 anos.

    No captulo 5, Roberto Patricio Korzeniewicz, que tem empregado aASM para estudar a desigualdade mundial de renda, avalia o impacto que

    as transormaes que tm caracterizado a economia-mundo nos ltimos

    vinte anos e a crise atual tiveram sobre a estraticao e a mobilidade so-

    cial em nvel mundial. Aps oerecer uma anlise emprica do problema,

    Korzeniewicz usa o trabalho de Giovanni Arrighi para mostrar por que tan-

    to as abordagens dominantes quanto as crticas so incapazes de explicar a

    reduo recente da desigualdade mundial. O autor conclui ressaltando al-guns dos dilemas enrentados atualmente por aqueles que visam promover

    uma ordem mundial mais igual e solidria.

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    INTRODUO

    No captulo 6, Antonio Brussi argumenta que prticas empresariais

    ilcitas, como o descaminho (contrabando) e a pirataria nos dias atuais, so

    traos estruturais do sistema-mundo capitalista. Em uma anlise que vai des-de a hegemonia holandesa, passando pelo sculo americano at a atualidade,

    Brussi demonstra que tais inovaes tico-empresariais, embora rejeitadas e

    at mesmo combatidas no contexto de sua ocorrncia, acabam por banaliza-

    rem-se com o passar do tempo, transormando-se em prticas correntes dos

    negcios do ciclo de acumulao que ez emergir aquelas inovaes.

    A parte III do livro composta de trabalhos que aplicam a perspectiva

    dos sistemas-mundo em estudos sobre o Brasil. No captulo 7, Pedro AntonioVieira insere Portugal e sua colnia americana no desenvolvimento da eco-

    nomia-mundo capitalista no longo sculo XVI. O autor argumenta que o

    sucesso do Estado e da sociedade portuguesa do Antigo Regime em impedir

    o pleno desenvolvimento de ideias e prticas capitalistas em seus domnios,

    mas no no sistema-mundo, ez com que Portugal se atrasasse relativamente

    s regies mais dinmicas, de modo que, por volta de 1650, Portugal e o

    Brasil estivessem rmemente situados na perieria da economia-mundo.No captulo 8, Rosngela de Lima Vieira az uma interpretao do

    desenvolvimento da caeicultura no Brasil usando o conceito de cadeia mer-

    cantil da Anlise dos Sistemas-Mundo. A autora mostra a distribuio es-

    pacial das diversas atividades que compem a cadeia mercantil do ca no

    perodo 1830-1929, apontando as relaes e assimetrias existentes entre os

    diversos componentes da cadeia mercantil entre si e destes com a economia-

    mundo capitalista.No captulo 9, Felipe Amin Filomeno aplica a Anlise dos Sistemas-

    Mundo ao estudo da mudana institucional, utilizando a metodologia da

    comparao incorporada. O autor mostra que o ortalecimento dos direitos

    de propriedade intelectual na agricultura de soja da Amrica do Sul aps

    1980 oi a reproduo, em escala regional e setorial, de uma tendncia mun-

    dial associada ao declnio da hegemonia dos EUA. No caso de Argentina,

    Brasil e Paraguai, a reproduo desta tendncia oi acilitada pela competi-o entre estados e produtores rurais da regio por tecnologia e mercados

    estrangeiros.

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    Por m, os organizadores querem agradecer a todos os autores que,

    alm dos textos, oram sempre solcitos no atendimento dos prazos e das

    demandas burocrticas inerentes publicao de um livro.ambm expres-

    samos nossos proundos agradecimentos Pr-Reitoria de Ps-Graduao e

    ao Programa de Ps-Graduao em Relaes Internacionais da Universida-

    de Federal de Santa Catarina pelo apoio nanceiro a ns concedido.

    Bibliografia

    LEE, Richard. Structures o Knowledge. In: HOPKINS, .K.; WALLERSEIN,

    I.(orgs.). Te Age o ransition-rajectory o the World-System, 1945-

    2025. London & New Jersey: Zed Books e Pluto Press (Australia), 1998.

    WALLERSEIN, I. O m do mundo como o concebemos:Cincia Social

    para o sculo XXI. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

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    C A P T U L O 1

    A Anlise dos Sistemas-Mundocomo movimento do saber

    IMMANUELWALLERSTEIN1

    A Anlise dos Sistemas-Mundo mais do que uma perspectiva; tam-

    bm mais do que uma teoria, se que uma teoria. um movimento do saber,

    e isso de crucial importncia para o desenvolvimento uturo das cincias

    sociais histricas. Um movimento do saber um movimento social intelectual.

    Ele prope uma reorientao no modo como organizamos nosso entendimen-

    to do mundo. No caso da anlise dos sistemas-mundo, ela se baseia na rejeiodas categorias das cincias sociais herdadas do sculo dezenove. Ela prope

    substituir estas categorias por uma nova cincia social histrica.

    No decorrer dos milnios, quase todo argumento, proposio ou con-

    ceito nas cincias sociais histricas provavelmente tem sido armado milha-

    res de vezes. raar a histria dos conceitos um interessante, e, algumas

    1Doutor em Sociologia pela Columbia University, atualmente Senior Research Scholar naYale University e, de 1976 a 2005, oi diretor do Fernand Braudel Center da State Universityo New York - Binghamton.

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    vezes, vlido exerccio de histria intelectual. Mas somente quando um

    conceito ou conjunto de conceitos adotado por uma minoria suciente-

    mente ampla de pessoas que ele se torna capaz de aetar a evoluo correntedo conhecimento coletivo.

    Quando esta dimenso alcanada, pode-se alar deles como sendoum movimento do saber, o que signica que h um grupo de pesquisado-res sucientemente grande em nmero e coerentes o bastante em termos deorganizao para sustentarem suas posies nos debates coletivos e, talvez,

    vencerem esse debate no decorrer do tempo. Por certo, se e quando eles che-gam a vencer o debate, ento esses conceitos constituiro um novo modo deanlise, temporariamente dominante e, por sua vez, sujeito a ser posterior-mente desaado pelos novos movimentos do saber.

    As premissas hoje dominantes nas cincias sociais histricas oram esta-belecidas aproximadamente entre 1850 e 1945. Estas premissas oram analisadasno relatrio da Comisso Gulbekian, que eu presidi.2O contexto em que es-tas oram adotadas oi o do estado do sistema-mundo naquele mesmo perodo.Era o perodo de auge da dominao poltica, econmica e cultural do Ocidente

    sobre o sistema-mundo. No modo de pensar do setor dominante do sistema-mundo, havia dierenas radicais entre o o Ocidente e o resto.

    Este contexto mudou depois de 1945. E as novas realidades globaisapresentaram vrias dissonncias em relao ao modelo organizacional dascincias sociais histricas vigente em 1945. As duas principais mudanas narealidade global depois de 1945 oram (1) a elevao dos EUA ao papel depotncia hegemnica e a peculiar relao estabelecida por eles com a URSS,e (2) a considervel ora que os movimentos antissistmicos tradicionais

    vieram a demonstrar por todo o sistema-mundo no perodo ps-1945.O modelo organizacional das cincias sociais baseado na dierena

    epistemolgica radical entre o Ocidente e o resto levou a uma clara seg-mentao disciplinar no modo de estudar cada um desses epaos. Emer-

    giu uma clara diviso do trabalho acadmico. A pesquisa sobre o passado

    das sociedades ocidentais oi atribuida Histria. As sociedades ocidentais

    2I. WALLERSEIN et al., Open the Social Sciences: Report o the Gulbenkian Commission onthe Restructuring o the Social Sciences, Stanord, CA: Stanord Univ. Press, 1996. Este relatriooi traduzido para 25 lnguas. No Brasil, oi publicado pela Cortez em 1996.

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    AANLISEDOSSISTEMAS-MUNDOCOMOMOVIMENTODO SABER

    contemporneas se tornaram o oco do trio de disciplinas nomotticas aEconomia estudando o mercado, a Cincia Poltica estudando o estado, e a

    Sociologia estudando a sociedade civil. O estudo do mundo no ocidentaloi dividido entre a antropologia, que estudava os pequenos grupos, as assimchamadas tribos, e os estudos orientais, investigando as grandes, mas con-sideradas congeladas, altas civilizaes. Este padro de estudo teve proble-mas para lidar com as novas realidades ps-1945. Isto provocou um debatesobre se, e de que modo, se poderia adaptar as premissas dominantes paratorn-las mais relevantes a estas novas realidades globais.

    No perodo que vai mais ou menos de 1945 a 1965/70, houve quatrodierentes tentativas de adaptar as premissas dominantes das cincias sociaismundiais a estas novas realidades globais. Cada tentativa parecia realizar al-guns ajustes plausveis no modelo, mas cada um delas demonstrou ao nalsuas limitaes.

    A primeira e possivelmente a mais importante tentativa oi da teoriada modernizao. Em lugar de separar o estudo do mundo civilizado doestudo do resto do mundo como se ossem lugares epistemolgicos distintos,

    a teoria da modernizao tentou historicizar as dierenas entre os dois espa-os. Ela argumentava que o mundo desenvolvido no era ontologicamentedierente do mundo subdesenvolvido, mas apenas estava rente dele notempo. Os pases subdesenvolvidos poderiam alcanar os pases desenvolvi-dos aprendendo com os modelos dos pases mais avanados e azendo certasmudanas essenciais nas suas prticas scio-culturais.

    A segunda tentativa oi a da teoria da dependncia, que emergiu pri-meramente da anlise centro-perieria da CEPAL (Comisso Econmica

    para a Amrica Latina e o Caribe) sob Ral Prebisch, e depois oi elaboradacom uma nase mais poltica por diversos intelectuais latino-americanos esul-asiticos. Dierente da teoria da modernizao, a teoria da dependnciatinha um outro modelo de tempo. Opondo-se ideia de que todos os estadoscomearam no mesmo ponto, com alguns avanando mais rapidamente queos outros, os tericos da dependncia enatizavam o desenvolvimento dosubdesenvolvimento (para usar a amosa expresso de Gunder Frank)

    Isto signicava que do mesmo ponto de partida, algumas regies se

    moveram para rente para se tornarem desenvolvidas e outras se moveram

    adiante no tempo para se tornarem subdesenvolvidas. Concluiu-se que as

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    OBRASILEOCAPITALISMOHISTRICO

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    mudanas essenciais para realizar o catching-up no estavam na arena socio-

    cultural mas nas arenas econmica e poltica. Somente desta maneira, pode-

    riam os pases subdesenvolvidos sair da sua posio de inerior.A terceira tentativa oi a do revisionismo marxista, que tomou duas

    ormas. A primeira variante oi uma consequncia do amoso discurso de

    Khrushchev no 20o. Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica

    em 1956. Do mesmo modo que a teoria da modernizao, o modelo sovi-

    tico ps-1956 historicizou a dierena, e o caminho proposto para realizar o

    catching-up acabou se tornando surpreendentemente similar ao deendido

    pela teoria da modernizao, com uma dierena crucial: a verso soviticasugeria que o pas/modelo avanado, a ser imitado, era a URSS e no os EUA.

    A segunda e possivelmente mais importante variante do revisionismo

    marxista tomou outra direo. Ela oi lanada pela discusso sobre o modo

    de produo asitico que teve lugar primeiramente na Hungria e em alguns

    pases da Europa Ociental. O modo de produo asitico oi um dos con-

    ceitos menos elizes de Marx e oi abertamente banido por Stlin. er dado

    credibilidade renovada a este conceito gerou duas consequncias tericas.Provocou o questionamento da automaticidade da sequncia de modos de

    produo que supostamente iria do comunismo primitivo ao mundo comu-

    nista do uturo. Desse modo possibilitou discutir a validade do conceito ilu-

    minista do progresso inevitvel e unilinear.

    A segunda consequncia diz respeito ao debate da questo nacional.

    Se alguns pases (ou sociedades, ou ormaes sociais), mas no todos, pas-

    saram por um modo de produo asitico (ou algo coisa equivalente), issosignicava que no havia mais um nico caminho que todos os pases deviam

    percorrer. Isto implicava que a anlise social marxista de partes especcas do

    mundo deveria se basear nas particularidades histricas destas partes do mun-

    do. O marxismo clssico era essencialmente nomottico. Esta discusso levava

    na direo de uma epistemologia idiogrca. Ela permitia anlise marxista

    deixar de tentar encaixar a histria do no-ocidente em uma sequencia deri-

    vada da anlise do pensamento e das instituies europias.

    A quarta tentativa oi aquela baseada no conceito braudeliano de longue

    duree sua dupla nase na importncia central da histria socioeconmica

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    AANLISEDOSSISTEMAS-MUNDOCOMOMOVIMENTODO SABER

    combinada com a minimizao da importncia da histria poltica epis-

    dica, a assim chamada histoire vnementielle. Este ataque historiograa

    poltico-diplomtica narrativa tradicional alcanou grande sucesso em par-tes signicativas da comunidade histrica mundial.

    A limitao de cada um dos trs primeiros revisionismos terem con-

    tinuado a considerar estados/sociedades/ormaes sociais como entidades

    autnomas separadas que seguem caminhos autnomos paralelos, em die-

    rentes velocidades, em direo a um uturo mais ou menos inevitvel. Isso

    impedia explicar a contnua polarizao das dierentes regies do sistema-

    mundo, polarizao que parecia estar se ampliando em vez de estar se re-duzindo. A limitao do caminho braudeliano oi que seus praticantes ten-

    deram a connar seu trabalho anlise dos sculos XV ao XVIII e estavam

    amplamente despreparados para olhar tanto para o tempo presente quanto

    para o longo itinerrio de mudana histrica atravs dos milnios.

    O que desez o relativo sucesso de todas as quatro ormas de revisio-

    nismo oi revoluo mundial de 1968. Para sermos exatos, a primeira preo-

    cupao dos estudantes e da juventude que lideraram as diversas rebeliesque ns associamos a 1968 no eram as esturuturas do saber. Em seus ataques

    s vrias estruturas de autoridade, eles estavam acima de tudo preocupados

    com o que eles viam como as execrveis consequncias da hegemonia dos

    EUA, bem como com o que muitos (talvez a maioria) deles consideravam o

    conluio sovitico com os Estados Unidos. Em segundo lugar, eles estavam

    preocupados com o racasso dos movimentos antissistmicos histricos em

    chegar ao segundo passo da sua estratgia de dois passos primeiro chegarao poder do estado, para ento mudar o mundo adotada por estes movi-

    mentos no nal do sculo XIX. De ato, eles disseram a estes movimentos:

    vocs mais ou menos alcanaram o poder do estado (para a maioria nos anos

    1950 e 1960), mas denitivamente vocs no mudaram o mundo.

    Entretanto, na medida em que o processo revolucionrio mundial

    avanou, mais e mais participantes dessas rebelies comearam a sentir que

    os modos de organizar o saber e as categorias que estavam sendo usadas

    eram, elas prprias, os grandes obstculos ao tipo de transormao que eles

    esperavam alcanar. Eles voltaram ento sua ateno aos modos pelo qual o

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    OBRASILEOCAPITALISMOHISTRICO

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    quadro epistemolgico dominante sistematicamente negligenciava os po-

    vos esquecidos. E comearam a demandar que as instituies do saber reo-

    cassem sua ateno nas realidades histricas e sociolgicas.Este novo impulso visto tanto por seus deensores quanto pelos ad-

    versrios como um impulso poltico provocou outra mudana nas realida-

    des do sistema-mundo e possibilitou que os dissidentes do saber obtivessem

    apoio suciente para que pudessem dizer que tinham se transormado em

    movimentos do saber.

    A anlise dos sistemas-mundo como um movimento do saber nasceu

    neste momento e dentro deste contexto. O que a anlise dos sistemas-mundotentou azer oi tomar elementos de cada uma das quatro tentativas revisio-

    nistas e, juntando-os, construir uma erramenta que osse capaz de desaar

    as premissas epistemolgicas at ento dominantes e que tinham moldado as

    assim chamadas disciplinas - como argumentos intelectuais, como aparatos

    organizacionais e como enmenos culturais.

    Como qualquer outro movimento do saber, a anlise dos sistemas-

    mundo no constituda por um exrcito disciplinado, mas por um con-junto de pessoas que, embora compartilhem certas premissas, perseguem

    dierentes nases dentro deste marco. Eu comearei delineando o que sig-

    nica para mim a combinao de argumentos que eu denomino anlise dos

    sistemas-mundo. Depois disso discutirei outras variaes dentro do campo

    geral da anlise dos sistemas-mundo.

    Para mim, o elemento chave na anlise dos sistemas-mundo a nase

    na unidade de anlise um sistema-mundo ao invs do estado/sociedade/ormao social. A palavra mundo de modo nenhum sinnimo de glo-

    bal ou planetrio, mas simplesmente se reere a uma unidade relativamente

    grande (em termos de rea e populao) no interior da qual existe uma di-

    viso axial do trabalho. Estamos alando de um mundo, no do mundo,

    como diria Fernand Braudel.

    O segundo elemento chave para mim que sistemas-mundo (como

    todos os sistemas) no so eternos. Eles tm vida. Eles passam a existir; eles

    perazem seus itinerrios histricos de acordo com o conjunto de regras

    que denem e governam o sistema; e eles nalmente se aastam tanto do

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    AANLISEDOSSISTEMAS-MUNDOCOMOMOVIMENTODO SABER

    equilbrio que o sistema entra em uma crise estrutural terminal. Portanto, a

    questo crucial aqui o argumento de que todos os sistemas so histricos

    e sistmicos.A nase da teoria da modernizao na historizao das dierenas

    entre centro e perieria undamental. Do mesmo modo o a noo de

    Prebisch e dos dependentistasde que a brecha entre centro e perieria est

    se ampliando ao invs de diminuir uma parte necessria da explicao do

    desvio do equilbrio no decorrer do tempo.

    Um terceiro elemento crucial a recusa separao ontolgica das ima-

    ginadas arenas, to caras ao velho conjunto de premissas dominantes a [are-na] poltica, a econmica e a sociocultural. Para os tericos da modernizao,

    como para aqueles que aderiram ao conjunto de premissas dominantes antes

    de 1945, a autonomia intelectual das trs arenas era a principal caracterstica

    denidora do que eles chamavam modernidade. Para a anlise dos sistemas-

    mundo, as assim denominadas trs arenas esto intrinsecamente conectadas.

    Elas denem umas as outras. Nenhuma das trs primoridal e todas devem

    ser analisadas na sua denio mtua. Consequentemente, a anlise dos siste-mas-mundo inerentemente unidisciplinar (em oposio a ser multi-, inter-,

    ou transdisciplinar) em relao s cincias sociais histricas.

    Por m, a anlise dos sistemas-mundo recusa a institucionalizao

    ocorrida durante o sculo XIX do conceito de duas culturas e deende a su-

    perao desta alsa (e historicamente muito recente) diviso epistemolgi-

    ca. A diviso idiogrco-nomottico entre losoa e cincia data somente

    da segunda metade do sculo dezoito. Com a inveno, no sculo XIX, dascincias sociais como uma categoria intermediria, esta diviso oi incor-

    porada nas cincias sociais como a diviso entre a histria idiogrca e as

    trs cincias sociais nomotticas. A anlise dos sistemas-mundo arma que

    esta diviso epistemolgica entre a histria e as cincias sociais nomotticas

    oi sempre alsa e agora obsoleta.

    Na medida em que a anlise dos sistemas-mundo ganhou ora como

    um movimento do saber, existiram verses mais ou menos inseridas dentro

    deste grande campo, as quais colocaram nases dierentes e/ou adicionais

    na agenda epistemolgica e de pesquisa.

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    Uma dessas verses oi a impulsionada por Chris Chase-Dunn e To-

    mas Hall, entre outros. Esta verso argumentou contra limitar os esoros

    prticos de pesquisa ao moderno sistema-mundo como uma economia-mundo capitalista e que na maior parte de sua existncia se localizava

    em um espao menor que o globo terrestre. Fazer isso, sugeria-se, tendia a

    deixar importantes questes ora da discusso. Uma era o que estava acon-

    tecendo, durante os tempos modernos, em regies denidas como estando

    ora da diviso axial do trabalho da economia-mundo capitalista, bem como

    os complexos processos pelos quais zonas externas eram incorporadas di-

    viso axial do trabalho.Alm disso, este grupo no estava preocupado apenas com que a pr-

    tica de devotar esoros de pesquisa primariamente, e at exclusivamente,

    economia-mundo capitalista, levasse ao que pode ser chamado excluses

    espaciais da anlise. O grupo se preocupava tambm com o que pode ser

    chamado de excluses temporais de longo prazo da anlise. Este grupo de-

    sejava olhar para duas questes de mais longo prazo. Uma era o desenvol-

    vimento histrico de muito longo prazo da interao social humana. Eles

    diligentemente conrontaram a h muito estabelecida questo da evoluo

    histrica- o que evoluiu e se a evoluo oi teleolgica.

    Adicionalmente, entretanto, este grupo sentiu que havia conhecimen-

    tos valiosos a serem descobertos pela comparao sistemtica de dierentes

    tipos de sistemas histricos, para o que os casos teriam que ser necessaria-

    mente obtidos das anlises de sistemas histricos de todos os tipos e de todas

    as reas geogrcas no decorrer de vrios milhares de anos. Isto pode ser

    chamado de anlise comparativa de sistemas histricos.Uma segunda verso da anlise comparativa de sistemas histricos,

    embora limitando-se ao perodo histrico moderno (cerca de 1500 ao pre-

    sente), oi aquela desenvolvida por Giovanni Arrighi e akeshi Hamashita,

    entre outros. Basicamente, eles se propuseram a comparar a evoluo do sis-

    tema comercial centrado na China com aquele que se desenvolveu como

    sistema comercial centrado na Europa ocidental no perodo ps-1500. Eles

    olharam para os modos como as estruturas dos dois sistemas dieriam comArrighi argumentando que as dierenas persistem at hoje bem como

    para os crescentes vnculos entre os dois sistemas no transcorrer dos sculos.

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    AANLISEDOSSISTEMAS-MUNDOCOMOMOVIMENTODO SABER

    A crescente relevncia econmica e geopoltica da China no sistema-

    mundo desde a dcada de 1980 atraiu crescentemente a ateno dos estudio-

    sos do mundo para o papel histrico da China, e provocou, em particular,reclamaes sobre o negligenciamento, pelos estudiosos pan-europeus, do

    papel da China. Desde ento, um volume relativamente grande de literatura

    vem sendo produzido sobre a China e o mundo, tanto em linguas asiticas

    como europeias. Esta literatura muito diversicada e somente parte dela

    pode ser considerada como estando dentro do grande campo da anlise dos

    sistemas-mundo.

    Andr Gunder Frank nos seus escritos ps-1990 insistiu no conceito deque desde sempre somente existiu um sistema mundo (e por isso ele retirou

    o hen), e traou sua existncia at no mnimo 5000 anos atrs. Para Frank,

    a China oi sempre o centro deste sistema (exceto um tanto brevemente no

    sculo XIX e em parte do XX). Embora Frank tenha usado muitas erramentas

    metodolgicas derivadas da anlise dos sistemas-mundo, ele atacou as outras

    verses (de ato, todas as outras) como sendo eurocntricas e rejeitou o pr-

    prio conceito de capitalismo como varivel a ser includa na anlise.Outros neste grupo de acadmicos centrados na China, como Kenneth

    Pomeranz, insistiram na reanlise dos dados que comparavam a China e a

    Europa Ocidental entre os sculos dezesseis e dezoito, e procuraram mostrar

    que o que Pomeranz chamou de a grande divergncia ocorreu somente no

    sculo dezenove. Pomeranz, entretanto, no procura situar a si mesmo na

    amlia dos analistas dos sistemas-mundo, ainda que de alguma maneira sua

    anlise concreta esteja de acordo com a verso Arrighi-Hamashita. De ato,a verso de Pomeranz reora a viso tradicional e dominante das cincias

    sociais, segundo a qual a mudana chave nos tempos modernos oi a revo-

    luo industrial que se considerava ter ocorrido (ao menos primariamente)

    na Inglaterra no limiar do sculo dezenove.

    Enquanto este debate se desenvolvia entre os analistas dos sistemas-

    mundo no perodo 1970-2010, duas coisas aconteceram, alterando o car-

    ter da anlise dos sistemas-mundo como movimento do saber. A primeira

    oi o surgimento e mesmo o triuno, da globalizao neoliberal no sistema-

    mundo. A segunda oi a mudana de atitude das principais organizaes

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    disciplinares e dos livros-textos para com a anlise dos sistemas-mundo.

    Consideremos cada uma separadamente.

    A estagnao da economia-mundo que comeou nos anos 1970 (umaase B do Kondratieff) se combinou com o debilitamento, como resultado da

    revoluo mundial de 1968, da dominao do liberalismo centrista. A com-

    binao permitiu s oras conservadoras promoverem uma tentativa mundial

    de reverter todas as mudanas polticas, econmicas e culturais ocorridas no

    perodo 1945-1970. Esta campanha poltica recebeu o depreciativo rtulo de

    neoliberalismo, e oi encarnada originalmente no sucesso poltico do Partido

    Conservador transormado da Sra. Tatcher, no Reino Unido, e do PartidoRepublicano transormado de Ronald Reagan, nos Estados Unidos.

    Os neoliberais mudaram o marco analtico que aplicavam ao sistema-

    mundo de desenvolvimentismo (que prevaleceu no perodo 1945-1970)

    para algo que eles denominaram globalizao. Eles usaram este novo marco

    para impor, primariamente atravs do esouro estadunidense e do Fundo

    Monetrio Internacional (FMI), um programa prtico que passou a ser cha-

    mado Consenso de Washington. Este demandava que todos os pases nodesenvolvidos institussem um programa que dava prioridade ao cres-

    cimento orientado para exportaes, ao mesmo tempo que abrissem suas

    ronteiras ao investimento externo direto, privatizando empresas estatais,

    reduzindo seus programas de bem-estar, e diminuindo suas burocracias.

    Geopoliticamente, este esoro poltico oi um enorme sucesso no mundo

    todo, no perdo transcorrido aproximadamente entre a metade do anos 1970

    e cerca de 1995.Dentro das cincias sociais histricas, a resposta a esta nova realidade

    poltica mundial, oi azer da globalizao a palavra da moda na pesquisa

    e na publicao. Um dos resultados oi, um tanto paradoxalmente, tornar

    a anlise dos sistemas-mundo mais respeitvel academicamente. Anterior-

    mente, a anlise dos sistemas-mundo ou era objeto de ortes acusaes por

    seus supostos erros, ou era tratada com uma desdenhosa recusa a reconhecer

    seu carter acadmico. De repente, a anlise dos sistemas-mundo passou a

    ser vista, e mesmo aclamada, com uma precursora da teoria da globalizao,

    ainda que em uma verso muito comprometida politicamente. A anlise dos

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    AANLISEDOSSISTEMAS-MUNDOCOMOMOVIMENTODO SABER

    sistemas-mundo (usualmente reerida como teoria dos sistemas-mundo)

    passou a ser includa em escritos e livros-textos como uma viso terica al-

    ternativa em meio a uma lista de vises tericas alternativas globalizao.Na verdade, entretanto, a anlise dos sistemas-mundo no era uma

    precursora da teoria da globalizao, mas algo bem dierente. A anlise dos

    sistemas-mundo nunca pretendeu azer parte de uma lista de teorias alter-

    nativas. Ela pensava a si mesma como ormulando uma rejeio a todo o

    arcabouo das cincias sociais dominantes. A anlise dos sistemas-mundo

    conclamava a uma reormatao drstica do marco intelectual das cincias

    sociais, convocando para uma reorganizao unidisciplinar. A anlise dossistemas-mundo combinou esta viso das cincias sociais histricas com a

    demanda pela superao da diviso epistemolgica entre as duas culturas e

    a recriao de um marco epistemolgico nico para todo o saber.

    O triuno do Consenso de Washington passou a ser desaado politi-

    camente na segunda metade dos anos 1990, na medida em que as promessas

    neoliberais de melhoramento econmico universal se revelaram uma mira-

    gem. Esta crescente desiluso oi reorada pelas sucessivas crises nanceirasocorridas desde ento e que levaram nalmente a um srio questionamento

    da viabilidade do prometido retorno ao crescimento econmico universal.

    O grau em que a economia-mundo capitalista pode retomar seus tra-

    dicionais e repetidos retornos a uma expanso normal matria de algum

    debate mesmo dentro do campo da anlise dos sistemas-mundo. Se algum

    acredita, como eu, que o moderno sistema-mundo est em um crise estru-

    tural, e, portanto, em uma biurcao, e no meio de uma transio para umnovo sistema global, ento uma pergunta o que acontece, neste processo,

    com a anlise dos sistemas-mundo enquanto movimento do saber.

    A ora da anlise dos sistemas-mundo como movimento do saber

    que ela tem resistido tentao de denir a si mesma muito estreita e dog-

    maticamente, ainda que no se permitindo ser denida to rouxamente

    a ponto de que qualquer um que parea lidar com questes para alm de

    naes/sociedades/ormaes sociais singulares ser considerado parte da

    amlia. Este tem sido um projeto organizacional dicil, mas que at hoje

    tem uncionado. De ato, a anlise dos sistemas-mundo como movimento

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    A perspectiva dos sistemas-mundo:

    fundamentos e tendncias

    EDUARDOBARROSMARIUTTI4

    In general, in a deep conict, the eyes of thedowntrodden are more acute about the reality of the

    present. For it is in their interest to perceive correctly inorder to expose the hypocrisies of the rulers.

    (Immanuel Wallerstein)

    A mudana socials pode ser compreendida no plano da totalidade.

    Embora ambgua, esta hiptese constitui a base undamental da perspectiva

    do sistema-mundo. Se acreditarmos na autoimagem de Wallerstein, tal pers-

    pectiva no oi constituda a priori, mas como o resultado de uma indagao

    prvia, isto , um conjunto de estudos orientados para tentar compreender

    4 Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Proessor doInstituto de Economia da UNICAMP.

    C A P T U L O 2

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    OBRASILEOCAPITALISMOHISTRICO

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    os undamentos sociaisdos conitos polticos nos EUA nas dcadas de 1950

    e 60, com o objetivo de - enquanto homem racional,conessa - discriminar

    as suas diversas modalidadespara conseguir intererir no curso dos aconte-cimentos, almejando constituir uma sociedade melhor. Esta preocupao,

    simultaneamente ingnua e pretensiosa, levou o ento jovem socilogo a es-

    tudar os processos de descolonizao na rica, acreditando que ao observar

    o enmeno em seus estgios iniciais em um nvel mais elementar, portan-

    to ele teria mais acilidade para entender a sua orma mais complexa. Mas

    a experincia no oi bem-sucedida: trouxe mais problemas do que solues.

    Suspeitando das bases de sua prpria ormao intelectual, Wallerstein se viuorado a revisitar as grandes questes debatidas durante a ase de orma-

    o das Cincias Sociais, entre os sculos XVIII e XIX. Como se sabe, alm

    das proundas transormaes sociais, este perodo oi marcado pela disputa

    acirrada entre as ormas mais tradicionais do conhecimento eologia (em

    ranco declnio), Filosoa e Histria e as novas modalidades de reexo,

    as cincias. Wallerstein suspeitou que esta discusso terica no poderia ser

    realizada de orma independente, isto , destacada da compreenso do proces-so histrico que resultou na ormao do mundo moderno. O primeiro passo

    concreto nesta direo oi dado em 1974, com a publicao de Te Modern

    World-System I, livro que, indubitavelmente, deu origem perspectiva do

    sistema-mundo.

    Logo, como ponto de partida, utilizarei como parmetro bsico o con-

    junto da obra deste autor para conduzir a argumentao. Seria impossvel

    em um captulo cobrir todas as dimenses e, sobretudo, as diversas correntesque azem parte ou que alegam azer parte - da perspectiva do sistema-

    mundo. A despeito de um certo ecletismo que a caracteriza, nem toda teoria

    sistmica ou pensamento sistmico - compatvel com esta perspectiva.5

    5A prpria nase de Wallerstein na ideia de que se trata de uma perspectiva e no de uma te-oria do sistema-mundo abre margem para o ecletismo: ela se dene essencialmente pela crti-ca reexiva dos pressupostos das cincias sociais modernas, que sistematicamente deslocam

    a ateno da verdadeira unidade de anlise o sistema-mundo e no as estruturas e subsiste-mas que ele contm e prometem uma objetividade que no podem realizar. cedo demaispara teorizar: Eu tenho considerado o trabalho dos ltimos vinte anos e de mais alguns que

    viro com o trabalho de limpar a vegetao rasteira, para que possamos construir um aparato

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    APERSPECTIVADOSSISTEMAS-MUNDO

    Alm disto, a despeito das contnuas e distintas reverncias de Wallerstein

    e Arrighi a Fernand Braudel, a reexo do notvel historiador rancs como

    ele prprio salientou (BRAUDEL, 1997 p. 58) no corresponde pereitamen-te problemtica da perspectiva do sistema-mundo. O objetivo deste captulo

    duplo. Inicialmente discriminarei os undamentos que delimitaram o quadro

    geral onde a reexo sobre a dinmica da sociedade se desenrolou, respeitan-

    do duas temporalidades. A primeira, de mais longa durao, diz respeito he-

    rana da intensa discusso epistemolgica travada, sobretudo, no sculo XIX,

    e que, em meio s lutas sociais, precedeu e condicionou a institucionalizao

    das Cincias Sociais e do sistema universitrio contemporneo. A segun-da, mais conjuntural, incorpora as questes mais circunscritas ao perodo

    compreendido entre, grosso modo, 1945 e 1968, momento em que as deter-

    minaes sociais que possibilitaram a consolidao da perspectiva do sistema-

    -mundo caram mais explcitas e, por conta dos desdobramentos de 1968,

    possibilitaram a sua diuso. O segundo objetivo dierente. rata de apontar

    as perspectivasque se abrem a esta corrente de pensamento, rente a algumas

    tendncias recentes, das quais podemos destacar dois desdobramentos: i) aexpanso do escopo analtico, isto , a investigao de outros sistemas-mundo

    (ou as relaes entre sistemas-mundo distintos, porm contemporneos); e ii)

    o debate terico em torno da prpria ideia de sistema, particularmente, a apro-

    ximao cautelosa com a teoria do caos.

    As determinaes mais profundas: a era moderna esuas contradies

    H uma orte correlao entre a ormao do sistema-mundo capitalista

    e o estabelecimento da cincia moderna. No intuito de nos aproximarmos

    mais adequado para as cincias sociais (WALLERSEIN, 1998, p. 103). Embora essa postura

    possa eetivamente dar margem pluralidade bastante evidente dentre os seus entusiastas h critrios mnimos que garantem a especicidade da perspectiva: a uso entre o tempoe o espao na demarcao dos limites do sistema-mundo (qualquer que seja ele) e a tipologiabsica em que as anlises se sustentam: a distino entre economia-mundo e imprio-mundo.

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    mais rapidamente do nosso problema, necessrio restringir um pouco mais

    esta armao: h uma conexo entre a consolidao de uma economia-

    mundo baseada no modo de produo capitalista6 no Ocidente em ex-panso (1640-1815) e a constituio das cincias sociais [1850-1914(45)],

    isto , a ormao de um domnio especco do conhecimento, dividi-

    do em disciplinas supostamente autnomas (antropologia, cincia polti-

    ca, economia, geograa, histria e sociologia) e, tambm, a criao de um

    aparato institucional capaz de preservar e omentar a especializao do

    conhecimento nestes moldes. Como isto ocorreu em conjunto com a con-

    verso da economia-mundo europeia em um empreendimento praticamen-te global (1815-1917), a diviso do conhecimento estabelecida no ncleo

    do sistema se imps sobre praticamente todo o planeta. Esta correlao

    ca ainda mais ntida se levarmos em conta a grande questo que subjaz a

    todas as disciplinas das cincias sociais: explicar a ascenso do Ocidente,

    isto , explicar o processo geral do qual as prprias cincias sociais so uma

    expresso (WALLERSEIN, 1992a, p. 561-3; 1992b). A reconstituio des-

    te processo, mesmo que sumria, exige uma breve descrio do sistema de

    ideias tpico do sistema precedente.

    No plano das estruturas do pensamento, tal como elas se expressavam

    com mais nitidez nas camadas dominantes, o eudalismo tinha como base

    uma concepo essencialmente transcendentesobre a realidade, onde prati-

    camente todos os aspectos da vida se expressavam de acordo com a temtica

    religiosa. Por conta disto, as contestaes sociais eram percebidas e se ex-

    pressavam como heresias. A linguagem da poltica era, portanto, essencial-

    mente religiosa. E este trao sobreviveu, com algumas transormaes im-portantes, no Antigo Regime. A ascenso dos Estados Absolutos exacerbou,

    contudo, uma contradio importante: a tenso entre o poder temporal e o

    poder espiritual. No primeiro caso, a tendncia oi a criao de uma ideologia

    6Ao conceber o sistema-mundo como a unidade de anlise Wallerstein orado a utilizar umaconcepo bastante restrita e pouco rigorosa - de Modo de Produo: este termo usado,por vezes, como sinnimo de organizao da produo, ora como sistema econmico e, de

    orma mais recorrente (e ainda menos precisa), como um sistema que submete praticamentetudo a uma lei do valor: a acumulao incessante de capitais. Wallerstein categricoem um aspecto: em um sistema-mundo consolidado, apenas um Modo de Produo podedominar, embora ele possa subordinar diversos outros.

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    essencialmente undada na razo de Estado (a base das prerrogativas do

    Prncipe), que abriu caminho para uma concepo polticadas lutas sociais.

    As oras associadas ao poder espiritual, por sua vez, tiveram de racionalizarseu discurso e suas bases burocrticas, reorando e tentando uniormizar

    a liturgia,7em conjunto com a armao da autoridade do Papa, respal-

    dada pelo colegiado dos bispos mais notveis que viviam ao seu redor. As

    tentativas de resolver o problema, tido a partir de ento como undamental

    pela cristandade i.e. criar uma unidade entre o Imprio e o Papado , ra-

    cassaram duplamente. O reoro do poder Papal encontrou resistncias de

    base doutrinria que, ao se mesclarem com questes mundanas, assumiramuma orma poltica que, ao nal, redundou na diviso da Igreja (Reorma e

    Contrarreorma). As tentativas de criao de uma unidade poltica, por sua

    vez, oram bloqueadas por coalizaes deensivas, que tomavam a orma de

    um dinmico sistema de alianas (equilbrio de poder).8

    As implicaes destas transormaes no plano do pensamento oram

    elegantemente sintetizadas por Mannheim:

    O Estado Absoluto, tendo como uma de suas prerrogativas a consecu-o de sua prpria interpretao do mundo, deu um passo que, com

    7 Esta orientao aetava diretamente o cotidiano das heterogneas comunidades camponesas,criando um terreno propcio maniestao de revoltas, vistas pelos olhos eclesisticos comoheresias que, como tal, deveriam ser erradicadas violentamente. Estas agitaes tambm ae-tavam o poder secular em consolidao. Onde a Coroa era orte, a tendncia oi no sentidode reprimir, em conjunto com a Igreja, os inis (ato que, no uturo, converteu o ribunal do

    Santo Ocio em um brao do Estado). Porm, onde o Rei era raco (ou praticamente inexisten-te, como nos sistemas de Dietas da Europa Centro-Oriental), as heresias oram um elementopoltico importante a avor dos nobres locais. Logo, o entrecruzamento entre as tenses sociaise a disputa teolgica, centrada no papel dos representantes da Igreja (se eram sobrenaturais ouno) uma das marcas mais caractersticas do Antigo Regime.8 Nem sempre se destaca a relao complementar entre os dois movimentos: a questo reli-giosa como um ingrediente da questo poltica (e vice versa). Mas Arrighi (1996, p. 42) vaidireto ao ponto: Paralelamente a essa escalada dos custos de proteo [os constantes conitosmilitares do Sculo XVI e XVII], houve uma escalada na luta ideolgica. A progressiva desar-ticulao do sistema de governo medieval levara a uma mistura de propostas religiosas ino-

    vadoras e restauradoras, vindas de cima, seguindo o princpio do cuius rgio eius religio, queprovocou o ressentimento popular e rebelies contra ambas. medida que os governantestransormavam a religio num instrumento de suas lutas pelo poder, os sditos seguiram seuexemplo e transormaram a religio num instrumento de insurreio contra os governantes.

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    a democratizao da sociedade, posteriormente tendeu cada vez maispara a abertura de um precedente. Mostrou que a poltica era capaz

    de usar sua concepo de mundo como uma arma e que a polticano era apenas uma luta pelo poder, mas veio realmente a se tornarpela primeira vez signicativa quando, enm, inundiu em seus obje-tivos uma espcie de losoa poltica com uma concepo poltica domundo.[...] Primeiro, o liberalismo, depois, seguindo hesitantementeo seu exemplo, o conservadorismo, e, nalmente, o socialismo, to-dos zeram de seus objetivos polticos um credo losco, uma visode mundo com mtodos de pensamento bem undados e conclusesprescritas. Assim, ruptura da viso de mundo religiosa veio somar-seo racionamento das vises polticas. (MANNHEIM, 1986, p. 63).

    Em suma: o Antigo Regime, de orma contraditria, acelerou o pro-cesso de secularizao da vida social, aetando as estruturas do pensamento:a inspirao transcendental, que reduzia o papel do empirismo e impunhauma aura mstica sociedade, tendeu a ser substituda por uma concepocentrada na imanncia, que abriu o caminho para a reexo sobre a din-

    mica endgena da sociedade (HOBSBAWM, 2000, cap. 13; NOVAIS, 2005,p. 162-4; SANOS, 1992, p. 17-9).

    Com isto, as lutas polticas ganharam um novo terreno: o campo dareexo imanente sobre a natureza dos problemas sociais. E, evidentemen-te, o diagnstico sobre as suas causas era o guia para propor as linhas deao. No sculo XVIII, aps a Revoluo Francesa, um novo aspecto passoua ser decisivo: a generalizao da ideia de progresso e sua implicao maisimediata, isto , de que a mudana social possvel e, para alguns, inevitvel(WALLERSEIN, 1991, p. 7-22). Isto exigiu uma mudana no rumo da dis-cusso. A questo decisiva: uma vez removidos os obstculos reacionrios ouobscurantistas, o progresso seria automtico? Ou, pelo contrrio, destruir osltimos elementos do Antigo Regime era apenas o passo inicial? Mas, de qual-quer modo, a mudana social passou a ser aceita como algo comum, encora-

    jando uma linha de pensamento otimista, que tinha como pressuposto bsicoa tese de que o colapso do Antigo Regime libertou a sociedade dos seus gri-

    lhes e que, dali em diante, a tendncia seria o progresso da humanidade emtodos os planos. O pensamento conservador, por sua vez, tentava contra-arrestar

    este excesso de otimismo, salientando que as sociedades se ormam por

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    sedimentao e que, portanto, mudanas muito rpidas podem comprometer

    a ordem social, prejudicando a todos (WALLERSEIN, 2011 p. 2-5). A ques-

    to comeou a mudar depois do perodo cujo smbolo mximo oi Robespierre.Frente ao conjunto de oras que se precipitaram aps a ase jacobina da

    Revoluo Francesa, o pensamento conservador se viu orado a denir uma

    identidade mnima, bem como um programa poltico calcado undamental-

    mente na tradio, no carter orgnico (i.e. hierrquico) da sociedade e, sobre-

    tudo, no alcance reduzido do voluntarismo.9Este movimento, por sua vez, deu

    mais coeso ao bloco heterogneo de oras sociais e sistemas de ideias que, pos-

    teriormente, oram denidos como liberais. A oposio entre o liberalismo e oconservadorismo, por sua vez, grosso modo, abriu caminho para reivindicaes

    mais radicais, rotuladas posteriormente de socialistas ou libertrias.

    Estas ramicaes, contudo, s caram mais ntidas a partir de 1848,

    quando a insurreio dos trabalhadores urbanos, momentaneamente, con-

    quistou o poder na Frana, em conjunto com diversos levantes em outros

    pases europeus (a primavera dos povos). Embora derrotados por uma

    combinao de represso sanguinria imediata, seguida de pequenas conces-ses a conta-gotas, o sucesso momentneo destes movimentos produziu doiseeitos principais. Entre as camadas dominantes, avoreceu uma tendncia aproximao entre o pensamento conservador e o liberal, pautado pelas re-ormas em nome da estabilidade social (o despotismo ilustrado e seu con-gnere, um liberalismo mais pragmtico e cada vez mais distante das noes

    9 O conservadorismo , como todo sistema de ideias complexo, bastante heterogneo. Para

    nossos propsitos, basta reter alguns elementos que so comuns a todas as suas variantes: i)a desconana com relao Razo e, principalmente, na possibilidade de utiliz-la comocritrio na adoo de polticas destinadas a aprimorar a sociedade; ii) uma viso da Histriacentrada na lenta cristalizao dos costumes (na longa durao), que undamenta a rejeioaos movimentos bruscos da poltica; iii) uma tendncia ao pragmatismo, que deriva dadesconana da razo e do que novo (ou que se prope como novo), na medida exata emque o novo incerto, e no passou pela prova do empo; iv) a crtica espontaneidade,tpica do pensamento anarquista e demais correntes libertrias. contra esta atitude que osconservadores diluem o papel do indivduo (mas no necessariamente eliminam, tal como na

    vigorosa linha conservadora baseada em ocqueville) e valorizam as ordens, corporaes, a

    amlia e demais grupos sociais tradicionais. Esses atributos, na realidade, reetem um traoundamental: embora tenha sorido modicaes importantes, o conservadorismo modernopermanece, essencialmente, uma doutrina negativa, que se exacerba na medida em que a mo-dernidade desloca os costumes mais tradicionais e se aerra ideia de progresso.

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    mais radicais de democracia). No outro polo tambm ocorreram mudan-as signicativas. Ao passar a conceber a revoluo como um movimento

    de superao da ordem vigente, baseada na insurreio social guiada poruma teoria sobre a dinmica da sociedade,o socialismo saiu da sombra dopensamento liberal. A tendncia, desde ento, oi que, mesmo com a even-tual oposio ttica e at mesmo estratgica do pensamento anarquista,10omarxismo passou a dominar o pensamento socialista e, principalmente, omovimento operrio internacional.11

    Em suma, em um ambiente instvel, propenso radicalizao, e coma preponderncia do marxismo no pensamento socialista, os liberais oram

    10Dentro do campo revolucionrio, o exemplo mais cristalino desta oposio simultaneamenteterica, institucional (A Aliana Internacional da Democracia Socialista) e ttica Bakunin.Contra o alegado cienticismo deendido por Marx e Engels a dierenciao entre socialismoutpico e cientco, exposta no Maniesto do Partido Comunista - que ele tentava ridicularizar,taxando de douto socialismo, o pior de todos os governos despticos! (BAKUNIN, 2001,p. 62) e seu sujeito o proletariado, taticamente liderado pelos Partidos Operrios - ele contra-punha a solidariedade espontnea (paixo instintiva era o termo de sua predileo), tpica das

    camadas mais humildes do proletariado, que eventualmente poderia ganhar expresso na con-solidao de comunidades regionais horizontalmente administradas, articuladas eventualmentepor um regime ederativo. Por m, sua crtica a qualquer orma de hierarquia baseada na ideiade que o poder poltico (que para ele quase sinnimo de partidrio e estatal) necessariamentedespersonica e corrompe era contrria ttica proposta por Marx, Engels e seus aliados naconduo da Associao Internacional dos rabalhadores. Para Bakunin, eles representavam osetor mais aburguesado do proletariado. Seu heri, portanto era outro: Por or do proletariadoquero dizer, principalmente, essa grande massa, esses milhes de no-civilizados, deserdados,miserveis e analabetos que o Sr. Engels e o Sr. Marx pretendem submeter ao regime paternalde um governo muito orte, sem dvida, para a sua prpria salvao, como todos os governosno oram estabelecidos, evidente, no prprio interesse das massas. Por or do proletariado,

    rero-me precisamente a essa carne de governo eterno, essa grande canalha popular, que, sendomais ou menos virgem de toda civilizao burguesa, traz em seu seio, em suas paixes, em seusinstintos, em suas aspiraes, em todas as necessidades e misrias de sua posio coletiva, todosos germes do socialismo do uturo, e que s ela hoje bastante poderosa para inaugurar e azertriunar a Revoluo Social. (BAKUNIN, 2001, p. 60-1). Mas Bakunin oi vtima do seu despre-zo pela poltica convencional e, talvez, do excesso de igualitarismo econmico (termo que elegostava de destacar, j que, em todos os outros domnios, ele era um deensor da espontaneida-de e da diversidade). Uma postura excessivamente antissistmica para a poca?11Curiosamente, isto decorreu da derrota da primavera dos povos que, de um lado, enraqueceuas tradies socialistas mais arraigadas (ligadas aos artesos em luta contra o sistema de mqui-

    nas, pequenos camponeses, e sistemas de pensamento mais ormalmente elaborados, inspiradosem personalidades como Charles Fourier, Saint-Simon e Proudhon) e, de outro, aprimorou osenso ttico de Marx e Engels, empenhados desde ento a analisar com mais acuidade o papelda luta de classes na Histria, para entender melhor os motivos da derrota (CLAUDIN, 1976).

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    orados a deslocar para o primeiro plano a deesa da propriedade e da or-dem, opondo-se, portanto, revoluo e, por conta disto, reoraram sua

    anidade com o conservadorismo. O prprio pensamento conservador nosaiu inclume. Pressionados por todos os ancos, especialmente pelas reivin-dicaes populares, os conservadores oram orados a admitir as reormase, at mesmo, quando no poder (as diversas restauraes), implement-las,com o alegado objetivo de reduzir o ritmo das mudanas para garantir aestabilidade. No plano ormal, a questo que dividia o campo poltico diziarespeito onte da soberania: mesmo com a resistncia do pensamento con-servador, a zona de consenso era de que a soberania brota do povo. Mas os

    impasses persistiam: como se dene o povo? E como o poder que dele emanadeve ser institucionalizado? Em outros termos, retendo a generalizada per-cepo de que o progresso era a tendncia, essa mesma pergunta podia serormulada de outro modo: qual o sujeito histrico que deveria controlar osrumos da sociedade (ou, pelo menos, o ritmo das mudanas)?

    Uma ideologia12 no pode prescindir de um protagonista. Para os

    liberais, a despeito das imensas controvrsias internas, o protagonista o

    indivduo autnomo (e, portanto, o povo ou a sociedade , essencialmente,

    12Ideologia no pode ser conundida com viso de mundo (Weltanschauung). Modernidade a combinao de uma determinada realidade social com uma determinada Weltanschauung,ou viso de mundo, que substituiu e at sepultou uma outra combinao, que ns denominamosAncien Rgime.[...] Neste sentido, uma ideologia no , em si mesma, uma Weltanschauung,mas uma das respostas possveis a esta nova Weltanschaaung que chamamos de moder-nidade. (WALLERSEIN, 2002, p. 83-4). O ponto que ideologias s azem sentidono interior de vises que sejam imanentes e admitam a endogeneidade da mudana so-

    cial: elas representam metaestratgias polticas destinadas a tentar controlar as mudanas(WALLERSEIN, 2011, p. 1; 2002, p. 86-90). Para tentar destacar isto, Wallerstein criou aextica categoria Geocultura (uma analogia com Geopoltica), entendida como um conjun-to de ideias, valores e normas que so amplamente aceitas no conjunto do sistema-mundo e,deste modo, constrange as aes sociais em seu interior (2007a cap. 4). Quem tem amiliari-dade com a obra de Mannheim ir perceber sua inuncia. E ela no reside apenas na claraanidade entre a Geocultura e o sentido total de ideologia: a ideia de que os momentostransitrios so caracterizados por rupturas undamentais na unidade do pensamento tpicode uma dada poca convertendo deste modo as ideologias em armas polticas bastantetrivial na sociologia do conhecimento. Curiosamente, ao discutir ideologia, Wallerstein nocita Mannheim: as nicas reerncias a ele so eitas em outro mbito, mediante a comparao

    entre as concepes de utopia em Mannheim, Engels e Tomas More (c. WALLERSEIN,1991, p. 170-84). Esta uma temtica que precisa ser desenvolvida, e isto envolver um di-logo mais intenso com a velha sociologia do conhecimento e o que os adeptos das RelaesInternacionais costumam denominar de teoria crtica. A este respeito, ver Cox (1996, cap. 6).

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    concebido como um agregado de indivduos). Os conservadores, por sua

    vez, elegem os grupos tradicionaiscomo os portadores legtimos da sobera-

    nia (os indivduos so meros portadores de padres de conduta social pro-undamente arraigados, quase inconscientes). Os socialistas tendem a inver-

    ter a orma de se pensar: o agente histrico por excelncia ou deveria ser

    o conjuntoda sociedade, pois a prpria ideia de indivduo a expresso de

    um certo desenvolvimento da sociedade.

    Estas trs ideologias, embora distintas, respondiam a presses ins-

    trumentais que, no m das contas, geraram um ponto aglutinador. O meio

    para realizar as promessas do liberalismo e do socialismo ou para evitara desordem generalizada, de uma perspectiva conservadora a tomada

    do Estado. E esta manobra pode ser tambm legitimada deensivamen-

    te: para impedir que os adversrios consolidem denitivamente o seu po-

    der ou, nos casos de grande instabilidade social, julga-se necessrio tomar

    as rdeas do Estado antes que alguma coalizo rival se consolide e o aa.

    Contudo, independentemente da ttica (oensiva ou deensiva), todo mo-

    vimento, para ter alguma chance de sucesso, precisa criar estruturas buro-crticas capazes de arrecadar recursos, consolidar lideranas, coordenar e

    educar grupos numerosos para a ao poltica. Na viso de Wallerstein, his-

    toricamente, todosos movimentos antissistmicos que tomaram o poder s

    conseguiram introduzir, com graus de sucesso e de proundidade variveis,

    reormas que simplesmente retardaram a maniestao das contradies

    do capitalismo. No limite, portanto, a crtica de Wallerstein congruen-

    te com a empreendida pelos anarquistas mais radicais, em sua incessantedenncia contra a cooptao que inerente s prticas do poder.13Com o

    13Como j sugeri, esta era a tnica de Bakunin contra a suposta ttica marxista de conquistado Estado pela ao vanguardista dos partidos operrios. H claros pontos de convergnciacom o aspecto crtico implcito na veemente retomada da ideia de antipoder, empreendidapor John Holloway (2003). alvez por ora do seu ocio, Wallerstein busca se distanciar dasposies exclusivamente militantes: em tese, h um espao positivo na agenda intelectual,mas ela deve ser capaz de assimilar democraticamente o discurso de todos os grupos de in-

    teresse (de um modo que, curiosamente, lembra a tica Discursiva habermasiana). Mas esteespao , a seu ver, curiosamente, restrito. Durante a ase de uncionamento regular, o sistemano admite contraposies essenciais anal, capitular rente instrumentalizao derivadado liberalismo centrista no oi o resultado de todas as lutas intelectuais desde 1789 a 89? Na

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    primado das tticas isto , da razo instrumental os meios se converte-

    ram em ns, e isto bloqueou a reao contra o capitalismo. Pelo menos at

    1968. Retornarei a esse ponto. Mas um reparo necessrio: as dierenasen-tre as trs ideologias so muito mais importantes do que os elementos que

    elas podem possuir em comum.14Esta tentativa de inventar uma unidade

    essencial na Geocultura do sistema-mundo a reduo das trs ideologias

    em uma, expressa na vitria do liberalismo centrista arbitrria e, de to

    simplista, atenta contra a credibilidade da perspectiva do sistema-mundo.

    Os desdobramentos acima descritos, contudo, no operam apenas no

    mbito das ideologias. A suposta consolidao da Geocultura do sistema-mundo moderno envolveu a transposio da luta poltica para duas ou-

    tras arenas: os movimentos sociais antissistmicos e as cincias sociais. A

    distino entre estas arenas um procedimento eminentemente analtico,

    ase de crise a situao dierente. Por conta da imprevisibilidade intrnseca destas situaes,o que nos resta uma orientao moral: a luta na direo de um sistema igualitrio e democr-

    tico, na medida exata que um sistema democrtico s pode ser igualitrio (WALLERSEIN,2002, p. 35). E, neste aspecto, ressurge o constante dilogo de Wallerstein com a tradio dopensamento anarquista: em Utopstics, a orma organizacional das unidades imaginadas porele como o padro de um sistema moralmente superior possui o mesmo estilo de instituiocelebrado pelos anarquistas (e alguns marxistas autonomistas): os modelos de autogesto,locais e descentralizadas, orientados para atender as demandas da comunidade. E, com umapitada de Proudhon e Braudel, as inter-relaes entre as mltiplas empresas produtivas nolucrativas poderiam ser mediadas pelo mercado, no o antimercado do capitalismo, mas omercado de concorrncia pereita (o mercado verdadeiro) (WALLERSEIN, 1998a, p. 74-5).Essas ormas de organizao de orientao mais artesanal e espontnea sempre exerceram

    ascnio sobre intelectuais humanistas especialmente oriundos das leiras da classe mdia,que ascenderam socialmente na grande expanso do sistema universitrio ocorrida a partirda dcada de 1950 - e de bem nascidos diletantes.14O volume 4 de Te Modern World System, um livro importante, repleto de insightsrut-eros e undado em cima das questes que realmente so essenciais, inelizmente, reproduze intensica o queAfer Liberalismtinha de pior: uma espcie de anlise combinatria dasdiversas ormas possveis de discurso ideolgico, levando em conta alguns parmetros: su-

    jeito histrico, relao com a noo de progresso e os eventuais pontos de oposio e deaproximao. Para Wallerstein em linha, como veremos, com um dos elementos da pers-pectiva idiogrca - todas as ideologias so negativas, j que elas se ormam por oposio.

    No entanto, por conta da oposio errenha, para manter a polaridade, elas podem gerarcombinaes: e oram estas combinaes, sempre mediadas pela tentativa de controlar oEstado, que resultaram na preponderncia do liberalismo centrista, e, desse modo, nacriao de uma unidade, a Geocultura.

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    pois, a despeito de certa autonomia, elas so proundamente articuladase interagem de orma dinmica. A prpria impreciso do termo movi-

    mentos antissistmicos expressa isto. No vocabulrio da perspectiva dosistema-mundo este termo designa reaes radicais contra o sistema ou,pelo menos, a alguns de seus elementos centrais, em suas mais variadasormas. E a lista imensa e heterognea: contracultura, eminismo, mo-

    vimento verde, insurreies (como Chiapas, por exemplo), extremismoreligioso etc. No entrarei aqui em detalhes sobre esta dimenso da dis-cusso. O ato de os movimentos antissistmicos se expressarem tambm

    no plano da cincia signicativo: revela as peculiaridades do sistema-mundo moderno (como dito, na Idade Mdia estes movimentos assumiamuma linguagem teolgica). Mas, em um paradoxo aparente, Wallersteinrepete exausto que um movimento antissitmico um movimento para atransormao do sistema, mas, ao mesmo tempo, um produto do sistema(WALLERSEIN, 2001, p. 58-64; 2007a, p. 64-5). endo em vista o conjuntode sua obra (as reexes sobre este tema so recorrentes, porm esparsas),o argumento bsico o seguinte: na ase de ormao do sistema durante

    a consolidao de sua geocultura - tais movimentos realmente apresentamuma possibilidade signicativa de transormao. O resultado desta luta decisivo para denir as estruturas do sistema, em todas as dimenses da re-alidade social. No entanto, durante o seu uncionamento regular, tais movi-mentos a despeito de sua retrica - no conseguem ultrapassar os marcosdo sistema. Isso muda, naturalmente, na ase da crise terminal (que, em suaopinio, vivemos desde 1968): a janela para transormaes undamentais

    est, portanto, aberta (WALLERSEIN, 1998a, especialmente p. 1-33).15

    Emsuma: os movimentos antissistmicos se mesclaram com a batalha ideolgica

    15Este mais um ponto rgil. Em alguns momentos, Wallerstein d a entender que era pos-svel, entre 1879-1848, um resultado dierente da polmica vitria do liberalismo centrista.No entanto, quando ele discute as tendncias seculares e, principalmente em seus textos pos-teriores dcada de 1990, a tendncia de sua argumentao muda: a derrota das reaes tidacomo inevitvel, pois o sistema estava em sua ase de uncionamento regular. Mas, misteriosa-mente, depois do colapso do socialismo real, Wallerstein parece ter tido acesso aos desgnios

    (at ento) secretos da divina Providncia: agora dierente, pois, ao se aproximar das assn-totas algo j em curso desde 1968, mas que deve ocorrer denitivamente por volta de 2025 -o sistema entrar denitivamente na ase de biurcao. Agora e somente agora o uturoest aberto.

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    que, no sistema-mundo moderno, irradiou-se para o plano das Cincias So-

    ciais em constituio. aqui que concentraremos as nossas atenes.

    Mas alguns pequenos reparos e adies devem que ser eitas aomodo como Wallerstein e seus discpulos tendem a reconstituir esse evento

    (WALLERSEIN, 2011, p. 219-73; 1991, parte 1). A discusso empreendida

    nos sculos XVIII e XIX no indita: o que muda o terreno onde ela pre-

    tende ser empreendida. Longe de inventar sistemas de pensamento essencial-

    mente novos, esta poca testemunhou a secularizao das grandes questes

    discutidas h sculos pelos grandes telogos. Desde o seu incio, a escolstica

    oi marcada por duas grandes polmicas. De um lado, a tenso entre a Razoe a F (se so domnios separados ou conjugados e, sobretudo, na polmica

    reerente ao papel dos sentidos isto , da dimenso emprica - na busca

    da verdade) e, de outro, a espinhosa questo dos Universais, transposta da

    tradio grega (Plato e Aristteles) para o pensamento cristo, mediante o

    contraste entre o realismo medieval e seu antpoda, o nominalismo (LEIE

    Jr., 2001). Como era de se esperar, dada a tendncia transcendental e a cen-

    tralidade na dimenso religiosa, estes problemas abstratos se reeriam aquestes pragmticas, tais como o papel especco da Igreja e da liturgia na

    conduo da sociedade e, de especial signicado, o espao do livre-arbtrio16

    (GRANGER, 1962, p. 7-43). Frente a uma viso de mundo imanente, per-

    meada pela noo de progresso, estes problemas undamentais passa-

    ram a se expressar de orma distinta. Concomitantemente s proundas

    transormaes institucionais que sepultaram a estrutura organizacional

    e as prprias aspiraes da Universidade Medieval (baseada no diletantis-mo e na busca da Verdade, do Bom e do Belo), uma grande tendncia se

    materializou: o desmembramento entre as cincias e as Humanidades,

    que rapidamente estimulou a capciosa anttese nomottico-idiogrca.

    A base do conhecimento cientco a alegada universalidade dos enme-

    nos que visa compreender. Logo, por denio, no possvel uma cincia

    do singular. Por ter se cristalizado incialmente nas cincias posteriormente

    16O pensamento liberal herdeiro direto deste tipo de tenso, na medida em que tem comobase uma questo bastante similar: como combinar a dimenso da liberdade individual comuma sociedade progressivamente baseada na interdependncia?

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    batizadas de naturais, a viso nomottica no produziu tanta celeuma. A

    questo mudou quando, a partir do sculo XVIII, tentou-se aplicar de orma

    mais sistemtica este princpio ao estudo da sociedade. A reao imediatados humanistas baseou-se na tese de que, ao contrrio dos objetos sicos

    (e dos animais irracionais, que respondem a instintos bsicos), o homem,

    mesmo sujeito a constrangimentos minimamente niveladores, toma deci-

    ses individuais espontneas (de novo, o livre-arbtrio), possui imaginao

    e, pode-se aduzir, tais decises so sempre tomadas em um contexto espec-

    co que, portanto, inuencia os resultados.

    A reao dos humanistas engendrou o que se convencionou denomi-nar viso ideogrca. oda realidade social em uma dada poca17 especca

    e organicamente integrada. Levando isto ao limite, chega-se a duas implica-

    es interligadas: i) uma poca- ou qualquer segmento da realidade - no pode

    ser reduzida a nenhum componente essencial (o procedimento padro da

    orientao nomottica); ii) por conta disto, no existe nenhum critrio obje-

    tivo, no sentido de transcender as situaes concretas, que pode ser utilizado

    como parmetro para comparar perodos dierentes. Esse aspecto, natural-mente, se radicalizado,abre o caminho para uma variante muito peculiar do

    relativismo: h, evidentemente, em todas as pocas, uma tenso entre pon-

    tos de vista distintos, ancorados em torno de alguns pontos de gravitao.18

    Essencialmente, todas as ideologias em disputa, alm de necessariamente

    17 Ponto onde j comea a polmica: quais so os limites de uma poca ou de uma socieda-

    de? A escola histrica alem, por exemplo, de orte inclinao ideogrca, claramente queriademarcar as dierenas entre a sociedade germnica (cujos limites eram, tambm, bastanteindenidos) e a anglo-sax, embora, evidentemente, ambas ossem contemporneas.18A identicao e anlise destes pontos aglutinadores, onde as polarizaes cam mais ex-pressivas e, portanto, ganham sentido um vasto campo de pesquisas, ainda insucientemen-te explorado. Fernando Novais d um exemplo de tema aglutinante: A evoluo das idiaspolticas na poca Moderna, alis, d lugar a problemas peculiares: nenhum setor da produ-o cultural revela mais claramente a sua natureza ideolgica que o pensamento poltico, a

    va de soi; dicil, sim, demarcar o elemento comum na oposio contnua que os tericosmantm entre si. alvez se pudesse acompanhar as vicissitudes da teoria do contrato, desde os

    jesutas espanhis e os polemistas protestantes ranceses no sculo XVI, passando pelos cls-sicos da revoluo inglesa (Locke, especialmente), at Rousseau. A ideia do contrato socialseria o terreno comum de entrecruzamento e oposies entre os vrios tericos (NOVAIS,2005, p. 164).

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    parciais e enviesadas, so, no cerne, negativas: se denem pelo choque e pelo

    antagonismo; exatamente este contraste que possibilita a mudana e, no

    limite, permite, dentro do horizonte da idiograa, a percepo da mudanasocial.19Mas a idiograa representava claramente uma reao deensiva: os

    ideais de uma cincia positiva e generalizvel estavam progressivamente ex-

    travasando o seu leito de origem a mecnica celeste, em moldes newtonia-

    nos e se aproximand