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BRASIL, DA DEPENDÊNCIA À SUBSERVIÊNCIA SUMÁRIO 1 Raízes da dependência e da fratura social Introdução - Raízes do Brasil sociopolítico - Raízes do Brasil econômico - Conseqüências da herança 2 Brasil político dos anos 90 O “fenômeno Collor” e o “projeto FHC” - O primeiro governo FHC - As eleições de 1998 - O segundo governo FHC 3 Brasil econômico dos anos 90 O governo Collor/Itamar - Anatomia do Plano Real 4 Degenerescência e possibilidades de superação Tendências e perspectivas - O Brasil tem jeito

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BRASIL, DA DEPENDÊNCIA À SUBSERVIÊNCIA

SUMÁRIO

1 Raízes da dependência e da fratura social

Introdução - Raízes do Brasil sociopolítico - Raízes do Brasil econômico - Conseqüências da herança

2 Brasil político dos anos 90

O “fenômeno Collor” e o “projeto FHC” - O primeiro governo FHC - As eleições de 1998 - O segundo governo FHC

3 Brasil econômico dos anos 90

O governo Collor/Itamar - Anatomia do Plano Real

4 Degenerescência e possibilidades de superação

Tendências e perspectivas - O Brasil tem jeito

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“Surda, a terra recebe a chuva. De água. De esperança.

(Quem diz terra acredita na chuva!) Pois assim se dissipam os algozes do povo. Oh! As sementes preciosas se enterrando, as flores menores em acordes de liberda-

de! Sob a lona, a mulher aviva sua brasa com

um sopro. O dia sucede a noite em fúria,

mas trazemos no corpo as sementes da tempestade

e mãos ensangüentadas de esperança”. Jelson de Oliveira - Comissão Pastoral da

Terra - PR

1 Raízes da dependência e da fratura social

Introdução

É impossível entender o momento atual da vida política, econômi-ca, institucional e social do nosso país sem alongar o olhar por toda a história brasileira e mergulhar até as origens e raízes da formação da nossa sociedade e das nossas instituições, especial-mente as do Estado brasileiro.

A literatura a respeito da questão da dependência e da soberania das nações é extensíssima e portentosa, tal que a dedicação de todo um resto de vida (que, no nosso caso, não deve ser muito...) à leitura de tal acervo não seria suficiente para abrangê-lo.(∗)

(∗) Na bibliografia de Repensando a dependência, de Lidia Goldenstein, por exemplo, são citados mais de uma centena de títulos de 75 autores, desde Lênin até Fernando Henrique Cardoso, passando por Bresser Perei-ra, José Serra, Celso Furtado, José Luis Fiori, Mendonça de Barros (os dois), François Chesnais, Guido Mantega, Caio Prado Junior. Em Entre a nação e a barbárie, Plínio de Arruda Sampaio Junior cita mais de três

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Cientes dos riscos inerentes ao inevitável reducionismo, tentare-mos uma abordagem de forma sucinta por duas vertentes: a ótica da história político-social e a ótica da história econômica. Claro está que os fatos sociopolíticos e econômicos não estão dissocia-dos, ao contrário, são imbricados e interdependentes. Entretanto, para efeitos de maior clareza e compreensão é justificável o esfor-ço de se proceder a uma certa separação didática, com um apelo indispensável à tolerância dos puristas.

O Brasil - ainda sem assim se chamar e sem necessidade de ser chamado de algum modo - já existia antes que aqui aportassem Pedro Álvares Cabral e seus aventureiros portugueses. Havia um território habitado por nações indígenas independentes, autôno-mas e razoavelmente pacíficas. Mesmo atrasados em relação a outros povos indígenas latino-americanos, como os incas e os as-tecas, tinham muitas possibilidades de um auto-desenvolvimento em razão dos imensos recursos naturais disponíveis. O descobri-mento foi um acidente que veio interferir e mudar essa trajetória, impondo novas culturas e valores e colocando este verdadeiro con-tinente a serviço do nascente capitalismo europeu do século 16.

Alguns estudiosos costumam dividir a história do Brasil em seis períodos principais, a partir do descobrimento por Pedro Álvares Cabral, abstraído o fato de que por aqui já havia passado Vicente Pinzón: 1. Colonial; 2. Primeiro Reinado e Regência; 3. Segundo Reinado; 4. República Velha; 5. Era Vargas; 6. Atual. (∗)

Faremos a abordagem dos cinco primeiros períodos de forma mui-to sintética, de modo a ressaltar apenas as heranças e os marcos históricos mais significativos, sob os pontos de vista sociopolítico e econômico. O objetivo principal dessa recuperação é entender, sob um ângulo de visão crítica, diferenciado do ângulo oficialista, como se deu a construção da sociedade e da nação brasileiras - constru-ção que ainda não se completou - e como isso se rebate sobre a trajetória atual e sobre as perspectivas futuras do nosso país. O centenas de textos de mais de 150 autores entre eles Florestan Fernan-des, Caio Prado Junior e Celso Furtado, estes três em destaque especial porque embasam o desenvolvimento do tema do livro. Também Leo Lince, no texto Soberania e hegemonia do poder cita 32 autores nacionais como referência de “uma ‘pequena brasiliana’ para estudar a crise”. (∗) Um interessante resumo histórico é encontrado no texto de Plínio de Arruda Sampaio, “Os períodos da história do Brasil”, contido na Carti-lha “História, crise e dependência do Brasil”.

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sexto período, isto é, o período atual, que começa em 1990, é tratado com abordagens específicas mais amplas, também sob os enfoques sociopolítico e econômico.(∗∗)

Raízes do Brasil sociopolítico

O período Colonial (1500 - 1822) foi um dos mais importantes da nossa história, por ter sido o mais longo e também porque foi o período em que se forjaram as bases étnicas da população brasilei-ra. Muitos comportamentos sociais e políticos atuais, especialmen-te das elites mas que abrangem também as demais classes sociais e econômicas, reproduzem fortemente os costumes e atitudes herdados daqueles tempos. É evidente que um período que cor-responde a 2/3 de toda a nossa história, após a chegada de Ca-bral, onde prevaleceram ações políticas e econômicas de domina-ção, exploração e prepotência, só poderia cunhar profundas e permanentes marcas comportamentais na sociedade brasileira. Infelizmente, somos ainda cativos de muitas dessas marcas.

O poder era exercido pelos funcionários ou prepostos da Coroa portuguesa, pelos portugueses proprietários de imensas áreas de terras e pelos mestiços ricos descendentes do acasalamento dos portugueses com as índias nativas. Destaque-se que, devido ao fato de não terem vindo muitas mulheres portuguesas para a terra descoberta, os colonizadores usavam as índias para as suas neces-sidades sexuais e de reprodução.

As ordens da metrópole eram no sentido de que nada importante podia acontecer sem autorização da Coroa, mas a distância entre os continentes e a vastidão do território permitia o surgimento de situações isoladas de poder independente, praticamente autôno-mo.

Em fins do século 16 e início do século 17 o açúcar adquiriu grande importância no mercado mundial e o nordeste do Brasil reunia condições muito favoráveis para essa cultura. Isso, aliado ao fato de que Portugal deixava de ser a potência que havia sido no século 15, forçou uma certa divisão de poderes entre Portugal e a Colô-

(∗∗) A partir da década de 1950, a análise reflete uma forte influência de nossa própria visão histórica, já como “testemunha ocular” da História.

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nia, consubstanciada no que se denominou de “pacto colonial” tripartite: os proprietários de terra tratavam de produzir o açúcar, a metrópole tratava da sua comercialização nos mercados interna-cionais e os capitais estrangeiros, principalmente holandeses, cui-davam do financiamento.

Foi nessa época, em 1630, que os holandeses invadiram e se ins-talaram com um governo próprio em Pernambuco, de onde foram expulsos vinte e quatro anos depois, em 1654. Foi, porém, um tempo suficiente para assimilarem os processos da exploração canavieira, pela qual tinham sido atraídos. Recorde-se que a Ho-landa, junto com a Inglaterra, estava em expansão como potência capitalista do início do século 17.

As principais heranças desse longo período colonial foram as mar-cas mais profundas da nossa formação como país e como socieda-de, estigmas que vêm acompanhando toda a nossa história desde então e das quais nunca mais foi possível nos livararmos: fratura social e dependência externa.

Um dos grandes marcos para a dependência, como enfatizam al-guns analistas, é que a nossa colonização foi “de exploração” en-quanto que em outros países, os EUA por exemplo, houve a colo-nização “de povoamento”. Em outras palavras, os ingleses foram para a América do Norte em busca de novas terras para viver em definitivo e formar uma nova pátria enquanto que os portugueses vieram para o Brasil (assim como os espanhóis para as demais regiões latino-americanas) para estabelecer uma base de explora-ção das riquezas disponíveis, naturais ou produzidas, transladan-do-as inteiramente para a Europa.

Uma das fortíssimas raízes da sociedade fraturada que temos até hoje está na formação social baseada no latifúndio e na escravidão de índios nativos e de negros trazidos da África. A escravidão fun-dou a prepotência das elites simbolizada no coronelismo ainda hoje muito forte no nordeste. Também são traços historicamente arrai-gados a rebeldia (sempre punida com violência e massacres), a submissão (simbolizada na aceitação tácita do paternalismo) ou a acomodação representada pelo deplorável “jeitinho brasileiro”.

O período seguinte, chamado Primeiro Reinado e Regência (1822 - 1844), trouxe o nascimento do Estado, que foi estruturado sob o poder e o comando das oligarquias rurais. Foi mantida, então, a estrutura de colônia com as mesmas fraturas sociais e a mesma

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dependência externa, ou seja, é um período em que não houve qualquer mudança nas características estruturais da sociedade brasileira, construídas no período colonial.

A vinda da família real de Portugal para o Brasil, em 1808, poten-cializou o processo da falsa independência, que se desenvolveu apenas na esfera das classes dominantes, pela contradição entre as oligarquias de poder das províncias e os portugueses que rode-avam D. João VI, ou seja, entre as facções nacionais e as facções portuguesas. Foi muito importante nessa fase a ação de José Boni-fácio de Andrada e Silva, que tinha idéias abolicionistas e que veio a se tornar, em 1831, o tutor de D. Pedro II, que contava apenas 6 anos de idade quando da renúncia de seu pai, o imperador D. Pedro I. Para o processo de independência foi também decisiva a abertura dos portos, por pressão da Inglaterra e porque interessa-va também às elites dominantes locais. Na verdade, foi mais uma acomodação de interesses do que um processo de abertura política ou comercial.

No período do Segundo Reinado (1844 - 1889), até como conse-qüência da personalidade e do estilo de comando condescendente de Pedro II, fortaleceu-se o poder dos senhores donos de terras e se ampliou a influência dos latifundiários e das oligarquias regio-nais, especialmente de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, em função do café, a maior fonte de renda do país na época.

A escravidão foi mantida até 1888, quando a abolição da escrava-tura foi decretada à revelia do imperador, durante uma viagem sua à Europa, o que enfraqueceu o seu poder. Sem a reforma agrária, a vida dos escravos libertados continuou no mesmo diapasão, por-que não havia emprego e os ex-escravos continuavam vinculados às questões da terra. Os índios, por sua vez, foram sendo empur-rados cada vez mais para o interior do país.

A dependência econômica se intensificou, agora com relação à Inglaterra, que passou a dominar nosso comércio e nossa produ-ção com capitais, mercadorias e tecnologia.

A propriedade da terra continuou tão concentrada como antes e bem assim a estrutura social nitidamente dividida entre senhores e escravos, isto é, “casa grande e senzala”.

O longo reinado de D. Pedro II ruiu porque o poder do imperador foi se fragilizando e sendo transferido para as oligarquias, como já

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foi dito. A abolição da escravatura foi o golpe final porque descon-tentou os senhores rurais, como não podia deixar de ser.

A República Velha (1889 - 1930) foi o quarto período, dentro da classificação que estamos adotando, e vai da proclamação da Re-pública até a Revolução de 1930.

Nesse período, a expansão da produção de café produziu efeitos políticos e sociais (além dos efeitos econômicos, que veremos mais à frente) muito significativos, tais como:

atração da emigração européia;

expansão e diversificação da população;

crescimento das cidades e surgimento de um classe média ur-bana, ainda pequena mas bastante ativa no processo político.

Em decorrência da crise cafeeira, passaram a ocorrer transferên-cias de poder para oligarquias de outros estados, para os ricos industriais e para as classes médias emergentes. Começaram a surgir, na década de 1920, revoltas militares que expressavam as insatisfações e contradições vigentes. São exemplos os “18 do Forte de Copacabana” (1922), a revolta comandada por Miguel Costa (1924), a Coluna Prestes (iniciada em 1926) e a revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas.

No entanto, a rígida estratificação da sociedade em castas conti-nuou a mesma dos períodos anteriores. Houve a brutal repressão em Canudos (1894), que se repetiu no Contestado (1915) e em episódios de menor expressão mas não de menor violência.

Alguns avanços na organização popular eram reprimidos com pres-teza e violência. No início do século 20 começou a haver a criação de sindicatos dominados pelos anarquistas oriundos principalmente da Itália e se deu a formação do Partido Comunista, em 1922.

Quanto à dependência econômica, houve mudanças de rumos mas não de conteúdo. A expansão de serviços públicos tais como transporte ferroviário, energia e comunicações foram entregues a capitais estrangeiros. Ocorreram lutas pontuais de empresários brasileiros contra esse domínio, mas isso não têm sido relatado para o grande público, com a devida relevância.

A Era Vargas, o quinto período, vai de 1930 até a década de 1980, porque a influência varguista continuou sendo muito importante até bem depois da sua morte. A legislação que foi criada no seus

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três períodos de governo (provisório de 1930 a 1937, ditadura de 1937 a 1945 e presidencial com eleição direta, de 1951 a 1954), foi marcante - para o bem ou para o mal, conforme o ângulo de visão - em vários setores da vida nacional. Destaca-se nesse perí-odo, por exemplo, a institucionalização da organização sindical e profissional e o processo desenvolvimentista com visão interna. Os investimentos em infra-estrutura produtiva estatal em setores básicos e estratégicos tais como siderurgia, energia, petróleo, transporte entre outros, foram fatores decisivos para o salto de desenvolvimento ocorrido no país nos cinqüenta anos subseqüen-tes à Revolução de 1930.

Claro está que Vargas governava com o apoio e, ao mesmo tempo, sob o controle das elites e das oligarquias, com a predominância da burguesia industrial, dado que havia derrotado as oligarquias rurais, o outro pólo do poder econômico e político que sempre es-teve presente na história nacional.

As contradições, por isso, foram muito marcantes na política var-guista. Por exemplo:

a) conseguia ostentar uma imagem populista, pelo agrado que dedicava às grandes massas populares que começavam a se concentrar nas áreas urbanas devido ao êxodo rural, mas não enfrentava as oligarquias rurais que não permitiam que fosse feita a reforma agrária.

b) concedeu benefícios, considerados muito avançados para a época, para os trabalhadores urbanos mas não os estendeu ao trabalhadores rurais, impedido pelos interesses dos ruralistas, a quem desejava agradar.

c) estabeleceu a regulamentação das relações trabalhistas e sin-dicais, mas fortaleceu o “peleguismo”, isto é, o atrelamento do sindicato ao Estado e tentou liquidar o movimento sindical mais autêntico que se originara do movimento anarquista dos anos 20.

d) iniciou o “nacional-desenvolvimentismo”, com uma poderosa intervenção do setor produtivo estatal, mediante a criação ou fortalecimento de empresas estatais importantíssimas para a-tuarem em setores estratégicos essenciais (siderurgia, petró-leo, energia elétrica, transportes, etc), mas fez também algu-mas concessões importantes ao capital internacional.

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O governo militar do marechal Eurico Gaspar Dutra, instituído após o golpe que depôs Vargas em 1945, ficou inserido como um “san-duíche” entre os dois governos (ditatorial e por eleição) de Getulio Vargas. Para cumprir a tarefa de se contrapor à política varguista e a missão que lhe impunham as elites nacionais submissas ao po-der político e econômico internacional, o governo Dutra fez tantas besteiras econômicas e políticas, que a eleição para o retorno de Getulio Vargas à presidência da República foi um verdadeiro pas-seio eleitoral. E o velho caudilho gaúcho voltou ao poder em 1950 “nos braços do povo”, tal como apregoava um dos jargões de sua campanha eleitoral.

O “getulismo”, que então se estabeleceu, aparentemente consubs-tanciado e fortalecido em termos de apoio popular, não foi sufici-ente para evitar e superar as dificuldades políticas e ideológicas de sustentação de Vargas. As dificuldades continuaram a se aprofun-dar e culminaram no seu controverso suicídio em 1954, o qual pôs um termo na sua trajetória administrativa mas não na sua obra política e econômica, de fortíssima influência nos destinos do país. Uma demonstração disso é a recente afirmação de Fernando Hen-rique Cardoso de que trataria de encerrar, definitivamente, a “era Vargas”, num expresso reconhecimento de que aquela influência ainda se faz sentir e incomoda.

A eleição e o governo de Juscelino Kubitschek, desenvolvido de 1955 a 1960, recuperou a hegemonia política do eixo Minas - São Paulo, isto é, a aliança “café-com-leite”, que tinha sido confrontada e desfeita em 1930. Juscelino restabeleceu também a abertura da economia do país, retomando a “visão para fora”, que tinha sido invertida por Getulio Vargas. Um exemplo disso foi o passeio promocional que JK fez, logo após a eleição, pelo mundo todo para anunciar, de viva voz, o “novo Brasil” que passaria a existir a par-tir da sua posse.

Jânio Quadros teve uma expressiva eleição em 1960 e fez um go-verno tão fugaz (sete meses) quanto cheio de trapalhadas e con-tradições. Ao mesmo tempo em que se relacionava com seus mi-nistros através de bilhetinhos e proibia rinhas de galos e concursos de beleza, também fazia uma atabalhoada aproximação com paí-ses socialistas tais como China e Cuba, tendo condecorado Che Guevara.

Seu governo terminou numa aparentemente inexplicada renúncia,

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a qual, na nossa visão não foi tão inexplicada, assim. Parece ter sido resultante de mais um de seus momentos - este mais extre-mado que os outros - de insanidade e megalomania políticas, ten-do Jânio entendido que podia renunciar e voltar ao poder através de um hipotético e irreal movimento popular que lhe daria amplos poderes para dominar o Congresso, com o qual vinha se atritando seguidamente. Nessa hipótese de desvario, Jânio teria pretendido realizar um movimento político que poderíamos situar entre o tipo de golpe branco que Fujimori aplicou em 1982, no Peru, e um mo-vimento de massas mais legítimo, como o que foi realizado por Chaves, na Venezuela, recentemente.

O fato de Jânio ter renunciado quando seu vice-presidente, João Goulart, estava em viagem oficial ao exterior pode fazer parte da estratégia golpista do presidente, dentro da hipótese que estamos formulando. Acreditamos, porém, que nossas suposições, ainda que razoáveis, serão de difícil comprovação. São hipóteses que ficam apenas como desafios aos historiadores, já que não preten-demos transformá-las em teses que tenhamos a intenção de de-monstrar.

A posse de Goulart em 1961 se deu no bojo de uma extensa e profunda agitação política, na qual se destacou o Movimento da Legalidade, uma campanha liderada pelo então governador gaúcho Leonel Brizola, contra o golpe que se gestava nos corredores pala-cianos visando impedir a posse de Goulart. Tendo obtido o apoio de boa parte das forças militares, esse movimento conseguiu que o vice-Presidente fosse efetivamente empossado.

Permitidos e até estimulados pelo “neo-varguismo” populista de Jango Goulart, se ampliaram os movimentos sociais, especialmen-te no âmbito estudantil e sindical. Essa efervescência política pas-sou a preocupar as elites dominantes, nacionais e internacionais, de sorte que em 1964 deu-se o início da “noite veloz”, na expres-são do sociólogo Léo Lince. Os militares, cedendo às pressões in-ternas das oligarquias nacionais e em cumprimento de ordens ex-ternas, cujo porta-voz era Mr. Lincoln Gordon, embaixador ameri-cano, perpetraram o golpe militar de 31 de março de 1964 e abri-ram uma nova fase na história brasileira que durou vinte e um longos anos.

Diz Lince:i “O golpe de l964 não foi uma simples quartelada. E a ditadu-

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ra que ele suscitou não foi uma experiência que possa ser encerrada entre parêntesis. A dominação prolongada dos mi-litares sobre a política esteve associada a uma tradição auto-ritária que a precedeu e a processos que não acabam quando ela termina. Boa parte da construção autoritária, como uma espécie de camada geológica da formação sociopolítica brasi-leira, sobrevive encravada nas conjunturas subseqüentes [....] O projeto do Brasil Grande Potência, a modernização autoritária protagonizada pelos militares, mexeu profunda-mente na estrutura do país real. As mudanças ocorridas ‘dentro da noite veloz’ alteraram a escala da economia e o perfil da estrutura produtiva da nossa sociedade.”

É inegável a dimensão das transformações econômicas havidas nesse período, mas sua abordagem será feita mais adiante, quan-do tratarmos dos rebatimentos econômicos da história política e social brasileira.

Lince destaca também que o longo período da ditadura e seus na-turais processos autoritários e repressivos obviamente gerou mo-vimentos, muitas vezes sufocados com violência, de contraposição ao autoritarismo e de lutas pela reorganização da sociedade (par-tidos políticos, sindicatos, grêmios estudantis, etc) e pela recon-quista das liberdades democráticas.

Surgiu um grande leque de organizações não governamentais de resistência e de reconstrução democrática, todas indicadoras de uma cidadania que ansiava por mudanças na estrutura política e social do país. Havia o princípio unificador do combate à ditadura que coesionava um amplo espectro de tendências políticas e ideo-lógicas.

Vários pontos da agenda de mudanças foram sendo obtidos ainda na vigência da ditadura, sendo que seus próprios mentores e co-mandantes passaram a adotar a idéia de que, sendo inevitável a retomada da democracia, a abertura deveria ser “lenta, gradual e segura”.

As mobilizações e as gigantescas manifestações do movimento das "diretas já!" trouxe à tona as contradições submersas ou escondi-das embaixo do tapete do regime militar. Mas a emenda não foi aprovada. Assim, a abertura democrática não foi nem ampla nem geral nem irrestrita e nem, tampouco, já, como eram os anseios da imensa maioria da sociedade brasileira. Mais uma vez ocorria

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um dos tantos minuetos políticos de falsos avanços e recuos ver-dadeiros, quando mudanças são feitas para nada mudar, situações tão comuns na história do país.

De qualquer modo a não aprovação das eleições diretas desembo-cou na eleição indireta e inefetiva de Tancredo Neves e no confuso governo de seu vice, José Sarney.

Um acontecimento importante desse período foi o processo de elaboração de uma nova Constituição, aprovada em outubro de 1988. Entretanto, esse processo já começou deturpado porque, ao invés de uma verdadeira Assembléia Nacional Constituinte, tive-mos um Congresso ordinário com funções constituintes, eleito jun-to com a eleição de governadores.

A nova Constituição foi elaborada sob a expectativa de grandes avanços democráticos, sendo quase transformada numa panacéia, isto é, um remédio que resolveria todos os males sociais, políticos e institucionais do Brasil. Escrita com "ódio e nojo da ditadura", conforme enfatizava Ulisses Guimarães, de fato contemplou muitas dessas expectativas. Entretanto, várias delas ficaram no papel. E o Brasil, “que ia ser passado a limpo, ficou no rascunho”, na feliz expressão de Léo Lince.

E, para agravar o sentimento de frustração do povo brasileiro, mais uma angústia foi adicionada ao seu extenso rol: após a dita-dura militar, a primeira eleição direta para presidente da República levou Fernando Collor de Mello ao poder e se transformou em algo semelhante a uma montanha que pariu um rato. Essa expressão pode ser tomada tanto ‘lato sensu’ quanto ‘estrito sensu’, isto é tanto no sentido figurado quanto explícito.

Raízes do Brasil econômico

Alguns analistas como, por exemplo,Tânia Bacelarii, visualizam a história econômica brasileira em três períodos com ciclos bem dis-tintos.

O primeiro, foi um longo ciclo abrangendo desde o descobrimento até o início do século 20, em cuja primeira fase predominou:

1. A exploração de riquezas florestais naturais, a começar pelo tão falado pau brasil, símbolo do saque extrativo e predató-rio das florestas do país. A extração predatória é um fenô-

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meno que persiste até hoje como, por exemplo, ainda ocor-re na Amazônia e em outras regiões. Registre-se que o pau brasil foi declarado em 1978 a árvore-símbolo nacional mas é desconhecida por 90% da população e hoje existe apenas em restritas áreas nativas ou reflorestadas.

2. A exploração de culturas intensivas e extensivas como o ca-fé, o cacau e a cana de açúcar, sendo esta um fator deter-minante na formação do “pacto colonial”. O café, durante a República Velha (1889 - 1930) foi o responsável por um período de opulência e, depois, por grave crise econômica, sob as seguintes razões:

� a extraordinária rentabilidade da economia cafeeira;

� a formação de grandes fortunas, que promoveram um começo de industrialização;

� o surgimento de uma superprodução de café, no iní-cio do século 20;

3. A extração de riquezas minerais, principalmente ouro e di-amantes.

Eduardo Galeano, no seu livro As veias abertas da América La-tina, comenta o saque do ouro de Ouro Preto, no Brasil e descreve o saque da prata de Potosi, na Bolívia, e de Zacatecas e Guanajua-to, no México, como expressões da exploração, pelos portugueses e espanhois, das riquezas da América Latina.

A segunda fase deste primeiro período se deu a partir do início da industrialização, a começar pela agro-indústria, e que abrange o crescimento industrial tanto de base como de ponta.

O primeiro período se caracteriza também pela ocupação restrita à longa faixa litorânea e pelo estabelecimento de um vasto arquipé-lago de ilhas econômicas. São exemplos disso as “ilhas” do açúcar no nordeste, dos minerais em Minas Gerais, do café em São Paulo, da borracha no norte, administrativa e de serviços no Rio de Janei-ro, da pecuária no Rio Grande do Sul e assim por diante. Outra característica é que esses pólos eram articulados para o mercado externo e não entre si, mesmo porque os ciclos regionais normal-mente não coincidiam no tempo, característica que persistiu até recentemente. Por exemplo, somente no fim dos anos 50, na era juscelinista, houve uma tentativa de desenvolvimento do nordeste e do norte para tentar equilibrar essas regiões com o dinamismo

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industrial do sudeste. Essa tentativa de mudança da face econômi-ca do país, entretanto, não conseguiu integrá-lo de forma mais consistente.

E o Estado, nascente nesse primeiro período, começava a ser uma continuidade das propriedades das elites. Ganharam força as rei-vindicações de políticas protecionistas, como foi o caso da criação do Instituto do Açúcar e do Álcool. O protecionismo ainda hoje é uma cultura muito arraigada e forte, o que faz com que continu-em a existir dificuldades na separação entre o público e o privado. Exemplos disso são a desfaçatez no uso privado da máquina públi-ca especialmente com objetivos eleitorais, a avidez pelos incenti-vos fiscais, os favorecimentos nos financiamentos com recursos públicos, as facilitações nos programas de privatização, entre tan-tos outros. Tudo caracteriza o Estado brasileiro como um Estado frágil e prisioneiro dos grupos de interesses privados, conforme foi visto no Caderno 01, Síntese histórica e conceitual.

Com a Revolução de 1930 foi encerrado o ciclo do desenvolvimen-to econômico com visão externa, vigente em todo o Império e na República Velha, e se iniciou o segundo ciclo, este com visão inter-na, baseado na industrialização e na produção para o mercado nacional, tendo o Estado como o grande promotor desse desenvol-vimento.

Nessa fase, como já foi dito, começaram a ser criadas as grandes empresas estatais nos setores estratégicos da nossa economia. Esse modelo de empresa - hoje em fase de extinção -, foi desen-volvido sob os seguintes objetivos e condicionantes:

⇒ atuar em setores estratégicos que exigiam grandes investimen-tos.

⇒ esses investimentos, normalmente com retorno financeiro de longa maturação, eram desinteressantes para os capitais pri-vados nacionais e internacionais.

⇒ mesmo com capital e administração governamentais, essas empresas tinham concepção organizativa similar às empresas do tipo sociedade anônima e possuíam razoável autonomia o-peracional, o que lhes permitia agilidade de gestão, fora dos vínculos e amarras da administração direta do Estado.

Esse modelo passou a ter grande expansão até os anos 90 e, mesmo com os grandes e profundos espaços que abriu para a cor-

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rupção e para interesses políticos de várias naturezas, desempe-nhou um importante papel no desenvolvimento econômico brasilei-ro. Isso, até que o projeto neoliberal e “modernizante” implantado no país desmontasse o sistema estatal e fizesse a doação total desse imenso patrimônio material e intelectual da nação brasileira ao capital nacional e, mais prioritariamente, internacional.

O governo do marechal Dutra, no interregno entre o governo dita-torial e o governo “democrático” de Vargas, se caracterizou como um período de desvario importador, especialmente de quinquilha-rias e sobras de guerra, com o conseqüente desmonte das reser-vas cambiais que Vargas, avaramente, havia montado durante a Segunda Guerra.

Juscelino Kubitschek, no seu auto-promocional projeto desenvol-vimentista “Brasil 50 anos em 5”, cometeu uma verdadeira inter-nacionalização subalterna da economia brasileira, simbolizada na instalação em nosso país da indústria automobilística com sucatas tecnológicas das multinacionais americanas. Tudo isso foi feito de forma absolutamente livre de qualquer tipo de controle e de qual-quer condição de soberania.

O setor automobilístico foi o carro chefe de uma avalanche de ca-pitais estrangeiros que se derramou sobre o país e que provocou uma forte desnacionalização da nossa indústria. Mesmo assim, como continuidade do desenvolvimento advindo do governo Var-gas, houve uma extraordinária expansão econômica, com o se-gundo maior crescimento da história econômica brasileira (7,12%, em média), logo abaixo da década de 1970, a de maior crescimen-to da nossa história (8,8%, em média).iii

O processo mais intensivo de industrialização, iniciado efetivamen-te nos anos 30 e que marca a superação do longo período anterior, mantém e aprofunda a concentração espacial e as conseqüentes disputas inter-regionais. Uma modesta desconcentração e uma incipiente integração produtiva com certa complementaridade en-tre as regiões só começou a ocorrer na década de 1970, já em plena ditadura militar. Em decorrência de planejamentos integra-dos de desenvolvimento intensificou-se a montagem de um por-tentoso parque produtivo estatal nos setores de infra-estrutura e um parque industrial privado, alimentado com financiamentos pú-blicos.

Entra-se na fase que os marquetólogos governamentais batizaram

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de “Brasil, grande potência”, uma fase com altas taxas de cresci-mento da economia, pela expansão quantitativa e qualitativa do produto industrial. Desenvolvem-se serviços básicos, estatais, nas áreas das telecomunicações, energia elétrica, petróleo, transpor-tes, habitação.

Há uma acelerada urbanização que provocou, em curto espaço de tempo, um imenso deslocamento de pessoas do campo para as cidades e de regiões com menores oportunidades de trabalho para centros de desenvolvimento industrial em expansão, como São Paulo, por exemplo.

Para dar uma idéia da dramaticidade dessa inversão de distribui-ção populacional, basta dizer que na cidade de São Paulo existe uma população de cerca de 2 milhões de habitantes que significa uma verdadeira “cidade virtual e marginal”, vivendo em ocupa-ções sem qualquer registro ou controle e, o que é pior, sem qual-quer solução técnica e social adequada a uma mínima condição de vida digna. Também é dramático o fato de que, em apenas nove regiões metropolitanas brasileiras, “vivem” hoje mais de 40% da população do país.

Contraditoriamente, portanto, o gigantesco processo desenvolvi-mentista reproduziu e acentuou os nossos grandes problemas so-ciais e incrementou a complexidade do quadro sociopolítico brasi-leiro. Promovido pelo autoritarismo e pelo centralismo da tecno-cracia militar, a sociedade se tornou periférica no encaminhamento das decisões e desconsiderada na participação dos resultados des-sa verdadeira revolução desenvolvimentista. Em outras palavras, em nenhum momento os interesses da sociedade brasileira como um todo constituíram prioridade para esse projeto das elites, mas sim os interesses do capital nacional e internacional.

A mudança da capital federal para Brasília, no epicentro geográfico do país, teve muitas conotações que atendiam a interesses subal-ternos, mas foi uma decisão de inegável sentido estratégico posit-vo para tentar mudar o desenho do modelo exportador vigente até então. Foi, em certa medida, o centro irradiador de novos eixos de integração territorial e econômica, prioritariamente em direções diferentes do sentido horizontal para o mar, predominante até então nos caminhos da exportação.

O processo desenvolvimentista nacional, no entanto, continuou forte e firme até o início dos anos 70, quando adveio a crise do

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petróleo e a quebra do padrão monetário vigente no mundo, até então lastreado em ouro, por uma decisão autocrática e unilateral do presidente dos EUA, Richard Nixon.

Mesmo assim, durante essa década ainda tivemos a continuidade reflexa do processo de crescimento anterior, tanto que o período foi chamado de “o milagre brasileiro”, porque crescíamos a uma taxa anual de quase 10% enquanto o resto do mundo crescia em torno de 2%.

Na década seguinte, mercê das transformações políticas que já foram destacadas e das transformações econômicas ocorridas no mundo por conta da onda neoliberalizante, nossa trajetória eco-nômica começou a mudar significativamente.

Nos anos 80, a primeira década perdida, apesar das crises ainda crescíamos em média 2,8% enquanto o mundo cresceu em média menos de 2%. Já nos anos 90, a segunda década perdida, cresce-mos menos que 1% de média anual.

Conforme o estudo do professor Pochmann, já citado, caso não tivesse perdido essas duas décadas, o Brasil teria ocupado o se-gundo lugar entre os que mais se desenvolveram no século 20, logo abaixo de Taiwan. Sendo este um país que não serve como referência, se considerarmos os países mais importantes, o Brasil se tornaria o primeiro do ‘ranking’. Entretanto, o desempenho medíocre da economia nacional desde 1980 colocou o Brasil na quinta posição nesse ‘ranking’, também abaixo da Coréia do Sul, da Venezuela (em razão da exploração das reservas petrolíferas descobertas no período) e da Colômbia (em função da economia cafeeira).

Outro comparativo interessante do mesmo estudo, diz respeito ao Brasil em referência aos EUA.

1. Em 1890, ainda com uma economia essencialmente agríco-la, o PIB do Brasil correspondia a 5,1% do PIB norte-americano. Um século depois, em 1980, essa relação prati-camente triplicara, passando a 14,9%. Já em 1998, havia caído para 10,1%.

2. A renda ‘per capita’ nacional em 1890 correspondia a 22,7% da renda dos norte-americanos. Em 1980, essa rela-ção crescera para 28,7%. Em 1998, esse valor já tinha caí-do para 20,7%.

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Destaque-se que o crescimento da renda do brasileiro em relação à renda do norte-americano, habitante do país que é a maior po-tência econômica mundial, seria um dado excelente caso o perfil de distribuição de renda no Brasil não tivesse piorado tanto, como demonstram outros indicadores.

Dos anos 90, a segunda década perdida, trataremos mais adiante.

Conseqüências da herança

Pelo censo de 1920, tínhamos 70% da população vivendo no cam-po e 30% nas cidades. Sessenta anos depois os percentuais se inverteram. Entretanto, passamos a ser a 8ª economia industrial do mundo.

Temos uma economia tão dinâmica e, ao mesmo tempo, somos um país socialmente tão fraturado. Por que? Pela história política e econômica que resumimos aqui, algumas conclusões estão ple-namente indicadas. Tânia Bacelariv reduz a resposta a quatro ex-plicações:

A primeira é a concentração da riqueza e a dificuldade de acesso aos bens de produção. Temos uma longa história de concentração de renda e de dificuldade de acesso à produção por parte da população em geral. Era assim na fase da agricultura e continuou na fase da industrialização. O perfil produtivo sempre teve a marca da concentração e o nosso padrão de oligopolização é um dos mais fortes do mundo, desde os bens mais simples aos mais complexos.

A segunda é a orientação da produção. A produção é orientada para dois grandes mercados, prioritários: o mercado das elites e o mercado externo. A capacidade de produzir bens sofisticados con-vive com a incapacidade de produzir bens de massa. O consumo de bens de massa é muito pouco e existe um enorme espaço a preencher.

O papel do Estado brasileiro é a terceira explicação. O Estado brasileiro sempre foi patrocinador da orientação do desenvolvi-mento para as elites, sem atuar contrarrestando as tendências elitistas naturais das economias de mercado. Sempre esteve a serviço da acumulação privada. Inclusive quando estatizava, sem-pre tinha em vista a ampliação de facilidades para a acumulação do capital produtivo privado. Exemplos: a siderurgia (com tarifas

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abaixo do mercado internacional), a indústria petroquímica, as telecomunicações, a energia elétrica, a estradas, os portos etc.

O Brasil optou por ser um Estado desenvolvimentista conservador ao invés de um Estado desenvolvimentista transformador. Como exemplos de Estado desenvolvimentista transformador temos o Japão e a Coréia. O Japão priorizou a educação e considerou o acesso ao conhecimento como um bem estratégico, antes do pro-cesso de desenvolvimento. O Japão é exemplo de uma articulação virtuosa entre o Estado e a sociedade para a democratização da educação, antes de se lançar a expansão econômica. A Coréia fez a reforma agrária antes do desenvolvimento, para o qual conside-rou a terra como base.

Já o Brasil não priorizou a democratização da educação e não fez a reforma agrária. Pelo contrário, tem elitizado a educação e cada vez mais é grande produtor de alimentos, mas 1/4 da população passa fome e mais da metade está apenas acima dos níveis de miséria.

A quarta explicação (a mentalidade da elite brasileira) não é econômica mas, sim, cultural e ideológica, porque somos herdeiros de quatro séculos de escravidão e de apenas um século de “liber-tação”, entre aspas. “Trabalhador é para produzir e não para con-sumir” é mais uma das heranças culturais da escravatura.

2 Brasil político dos anos 90

O “fenômeno Collor” e o “o projeto FHC”

Ao final do governo Sarney as elites não tinham um projeto e nem candidato definidos. Eis que, de repente, se depararam com um fenômeno chamado Collor, disparando nas pesquisas como candi-dato à presidência da república. Essa candidatura tinha sido gesta-da dentro de um dos braços do poder das elites, o das comunica-ções, justamente pelo seu representante mais poderoso, a Rede Globo. Outros braços do poder paralelo no Brasil, como a FIESP, tentaram se opor mas já era tarde.

“Se não puder vencê-lo, ligue-se a ele” foi o princípio que as elites adotaram, então, como costumam fazer sempre que está em peri-go a sua sobrevivência. Além disso, Collor tornou-se a única alter-nativa concreta capaz de impedir que a esquerda, com Lula ou Brizola, chegasse à presidência do Brasil. Iniciou-se, assim, um

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penoso processo de “deglutição” e “ruminação” do alienígena, que durou a fase eleitoral e chegou até o início do seu governo. Fun-cionou como fator atenuante - e com certeza o mais decisivo - o fato de que o projeto de Collor estava dentro do compromisso de implantação do neoliberalisno no país.

Desde o início, porém, já se tornava notório que as elites haviam cometido um terrível equívoco. Várias tentativas de correção do erro foram feitas, todas infrutíferas, dada a personalidade autocrá-tica e ciclotímica de Collor, adicionada à insaciável ganância dos seus asseclas palacianos e do próprio presidente.

Frustrados os argumentos e até as ameaças, não restava outra solução a não ser “expelir” o intruso, antes que ele produzisse maiores estragos no processo de implantação do neoliberalismo no Brasil. Nesse sentido, funcionaram maravilhosa e decisivamente a mobilização popular e a emoção dos “caras-pintadas”, todos de-fendendo uma nobre causa, tal como a ética na política e na admi-nistração pública. É inegável a importância política do movimento “Fora Collor”, que tornou marcante aquele momento da nossa his-tória como exemplo de mobilização de massas. No entanto, é pre-ciso convir que o movimento foi miseravelmente utilizado para os objetivos oportunistas das elites, ou seja, se livrarem do alienígena Collor de Melo.

Para quem não percebeu ou tem dúvidas de que tenha sido um processo apenas transitório para reacomodação das placas tectôni-cas das estruturas de poder, basta lembrar alguns fatos imediata-mente posteriores ao ‘empeachment’:

1. O engavetamento do relatório do Senador Almir Lando a respei-to das privatizações, na Comissão Parlamentar Mista de Inquéri-to que apurou irregularidades, barbaridades e verdadeiras doa-ções do patrimônio público. Importante: Esse inquérito precisa ser retomado, adicionado de todas as demais privatizações já realizadas, assim que as condições políticas venham a ser favo-ráveis.

2. A absolvição de Collor e PC Farias.

3. O perdão ao Senador Humberto Lucena, no ‘afair’ da gráfica do Senado. Quem ainda se lembra disso?

Esses e outros fatos mais, ocorridos imediatamente após o ‘impe-achment’, tiveram o sentido claro de um deboche para com a soci-

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edade brasileira. Foram mensagens inequívocas para explicitar a todos que nada havia mudado e que apenas o alienígena havia sido expurgado porque caíra na desgraça das elites. E ponto final.

O governo do vice Itamar Franco significou apenas um pequeno recuo tático e um período de transição para rearranjo de estraté-gias, de rearticulação e, principalmente, de unificação das forças que no início da era Collor estiveram desconexas. Em suma, uma preparação mais competente para disputar as eleições de 94, ven-cer o “fenômeno Lula” e retomar a implantação do projeto neolibe-ral a partir de 1995, com um horizonte tão longo quanto possível.

Clareadas essas premissas, ficam mais visíveis as razões da candi-datura de Fernando Henrique Cardoso. É sintomático e nada alea-tório o fato de FHC ter sido requisitado diretamente de Washington por um telefonema do presidente Itamar, altas horas da noite, para assumir o Ministério da Fazenda, com nítidos 3 objetivos: 1 - ser o homem forte do governo para segurar alguns arroubos na-cionalistas do Itamar; 2 - reduzir a inflação para deixá-la próxima de zero até a eleição; 3 - qualificar-se para ser candidato, caso superasse o desafio.

Em caso de fracasso desse projeto, as elites teriam que buscar alternativas de menor importância ou começar tudo de novo. Mas as alternativas foram dispensadas porque o projeto FHC foi desen-volvido com muita competência, como sabemos. Tanto que ele acabou sendo presidente, como havia sido planejado.

O primeiro governo FHC

As grandes marcas do primeiro governo FHC foram: 1) a subser-viência aos mercados especulativos e 2) a garantia do segundo mandato pela compra de apoios e de votos do Congresso com mo-edas de todas as naturezas.

A passagem dos cem primeiros dias de governo FHC foi comemo-rada pelos puxa-sacos de sempre e alardeada pela mídia servil como se fora o aniversário do próprio “Príncipe”. Comemorava-se, na verdade, o fato de que o ‘script’ internacional estava sendo seguido ao pé da letra. Mas o período também foi suficiente para mostrar na prática as dificuldades claramente previsíveis desde a fase do “projeto FHC”. Essas dificuldades não apenas permaneci-am mas até se agravavam, como ficou notório por ocasião das votações da mais importante reforma com vistas ao projeto presi-

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dencial de FHC, a reforma constitucional para permitir a reeleição.

São muito claras as razões para que as alianças das elites nacio-nais, constituídas para eleger FHC, não se reproduzam no apoio ao governo. Estão centradas no princípio histórico do uso-fruto do poder e são movidas na base de trocas de favores.

As principais pontas de lança desses interesses são explicitadas principalmente pelos seus representantes no Congresso Nacional. Manifestam-se, porém, sem unidade dada a diversidade e o cipoal de interesses existentes. Os embates entre grupos das elites pela partilha do poder são permanentes porque fazem parte da essên-cia do fisiologismo. Os eventuais posicionamentos unitários são sempre pontuais, caso a caso, fruto de negociações cuja moeda de troca são as benesses e os favorecimentos no rateio do bolo públi-co, ou seja, as fatias do poder e dos recursos do Tesouro.

A segunda componente das dificuldades foi constituída pelo esforço desesperado de manutenção do Plano Real com vistas a reeleição em 1998. Essa sustentação era extremamente frágil, como argu-mentavam analistas isentos e como ficou demonstrado na crise do sistema financeiro mundial, agravada a partir de outubro/97. É que toda a política econômica estava baseada na manutenção da taxa de câmbio, a ancoragem do real no dólar, a redução de salá-rios, a redução de tarifas para a facilitação de importações, a des-regulamentação de qualquer mecanismo de controle do Estado ou de proteção dos interesses da sociedade, tudo integralmente den-tro do receituário neoliberal. Isso, entretanto, significava déficit comercial e endividamento público crescentes, cujo financiamento é feito pelo aumento da taxa de juros para atrair ou, pelo menos, segurar os capitais nacionais e internacionais no país.

O terceiro ponto frágil do governo FHC é a incompetência explícita de boa parte da equipe e as disputas de espaço para projetos polí-ticos pessoais em que se engalfinham expoentes do governo, co-adjuvantes e outros atores menos expressivos.

O quarto ponto é a gigantesca escalada da corrupção, em termos e níveis nunca vistos, que começou a se expandir por todos os seto-res e escalões do governo federal, a começar – ou terminar – pela própria presidência.

Outra dificuldade significativa a considerar é representada por al-guns movimentos populares e de outros setores da sociedade, em

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oposição ao projeto neoliberal do governo FHC. O mais importante dos movimentos populares e políticos é o movimento dos traba-lhadores sem-terra, o MST, sem qualquer dúvida.

Recorde-se que em abril/1997 aconteceu a Marcha do MST sobre Brasília, que agregou cem mil participantes e paralisou, literalmen-te, a Capital Federal. Foi um fato político que teve o significado de um divisor de águas, porque mostrou a existência de insatisfação em amplos setores da sociedade para com FHC, ao contrário do que supunham os seus apaniguados e bajuladores de todas as latitudes e longitudes.

Assim, era previsível que a diversidade, a falta de consistência dos arranjos eleitoreiros e a natureza dos conflitos de interesses inter-nos e externos, bem como entre os objetivos dos grupos de apoio a FHC, cedo ou tarde iriam se manifestar. Houve, apenas, uma trégua superficial com vistas à questão da reeleição.

As eleições de 1998

As eleições/98, mesmo que não tenham se constituído em um marco importante na história do nosso país, permitem interessan-tes exercícios de acompanhamento e análise dos seus desdobra-mentos.

Sob o ponto de vista institucional, a reeleição é um fato novo na política nacional, mas as razões, os objetivos e a forma como ela foi institucionalizada obedeceu aos padrões mais tradicionais, con-denáveis e sórdidos, usuais no ‘modus operandi’ das elites domi-nantes, nesse processo representadas pela própria figura do presi-dente da república.

Por um lado, o processo mostrou situações que tem sido repetiti-vas na nossa história política: ação opressora e coercitiva do poder político e econômico, campanhas milionárias por parte do oficia-lismo, mistificação, engodo, estelionato eleitoral etc. Por outro lado, apresentou novidades tais como o próprio fato de se tratar do primeiro processo de reeleição. E também o relativo e insipiente avanço das esquerdas, em especial a eleição de governadores es-taduais não totalmente submissos ao poder do governo federal.

Sob o ponto de vista político e econômico a reeleição de Fernando Henrique significou uma etapa essencial no processo de abertura - melhor dizendo, de escancaramento - da economia brasileira aos interesses do capitalismo internacional, selvagem e voraz. Esse

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processo, que começou com Collor, foi consolidado no primeiro governo FHC através da supressão de quase todas as salvaguardas da soberania nacional, da doação de quase todo o patrimônio pro-dutivo estatal e da cristalização da nossa absoluta dependência ao capitalismo internacional, puro ou travestido de falsas cores nacio-nais. Mas, para a garantia da continuidade desse processo entre-guista e espoliativo era essencial a permanência do comando do país com o mesmo grupo mentor e executor, a começar pelo pre-sidente da República.

Esse projeto, apesar de frontalmente contrário aos interesses da sociedade brasileira, continuou sendo mantido teimosa e crimino-samente, surdo às advertências feitas até por economistas e ana-listas políticos que eram, até recentes horas, deslumbrados defen-sores da economia de mercado.

Quanto ao perfil do novo Congresso, brotado da eleição de outu-bro/98, uma avaliação apenas quantitativa pode conduzir a equí-vocos graves. A simples constatação que a bancada dos partidos governistas se reduziu e que, em contrapartida, a bancada oposi-cionista se ampliou, é insuficiente. É necessário considerar, entre outras coisas, a influência que exercem os novos governadores sobre os congressistas de seus respectivos estados, independen-temente dos partidos a que pertençam.

É inegável, porém, que a cotação das “moedas de troca” se alterou bastante, trazendo grandes dificuldades para o governo federal administrar. Por exemplo, a importante moeda representada pelos cargos nas estatais entrou em processo acelerado de extinção com a privatização dessas empresas.

Alguns pontos decorrentes dos resultados das urnas merecem des-taque como, por exemplo:

1. As derrotas de velhas eminências peemedebistas, tais como Antonio Britto, Jader Barbalho e Iris Resende, e a reascen-ção do então neopeemedebista Itamar Franco, eleito go-vernador de Minas Gerais. Note-se que várias figuras defe-nestradas pelo voto tinham sido figuras-chave na aprova-ção da emenda da reeleição de FHC.

2. A queda de importantes feudos do velho caciquismo políti-co, inclusive Arraes em Pernambuco, a inesperada derrota de Cristóvam Buarque no DF e a surpreendente e arrasado-

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ra vitória de Zeca do PT no MS.

3. As vitórias, já no primeiro turno, de Ronaldo Lessa e de Jorge Viana nas terras arrasadas - política, financeira, social e moralmente falando - de Alagoas e do Acre.

4. A notável inversão da diretriz política e administrativa ocor-rida no Rio Grande do Sul.

5. Dos 106 milhões de eleitores cadastrados no TSE, FHC re-cebeu apenas cerca de 1/3, mais precisamente 34%. A o-posição teve 30% e os restantes 36% foram constituídos por 21,5% de abstenções (em 94 eram17%) e por 14,5% de votos brancos e nulos. O claro significado desses gritan-tes números é que FHC não conseguiu convencer 2/3 do e-leitorado brasileiro a votar nele.

6. No segundo turno das eleições para os governos estaduais predominaram os votos nas oposições porque, entre outras razões, os debates foram mais profundos, explícitos e pola-rizados entre somente dois contendores, numa clara dispu-ta de projetos políticos.

7. Qual a real dimensão da influência das pesquisas de opinião nos resultados das eleições? Qual a influência da mídia, to-talmente atrelada a todas as instâncias do poder político? Como pode ser minimizada a influência do poder econômico nas campanhas? O financiamento público poderá ser uma solução? O voto eletrônico dificulta a fraude ou, ao contrá-rio, pode generalizá-la e institucionalizá-la na medida em que é necessária a ação de apenas poucas pessoas no pro-cesso operacional e, além disso, inviabiliza o recurso à re-contagem? São questões a serem dirimidas.

O segundo governo FHC É melancólico constatar que o segundo mandato de FHC começou como se fora um fim de governo, um fim de festa. O próprio ato de posse parecia mais uma partida do que uma chegada, um pedi-do de desculpas ao povo por lhe ter vendido apenas mentiras na campanha eleitoral e ele, o povo, ter comprado algo que não per-cebia claramente que estava comprando. As ações de mando e desmando do segundo mandato do governo FHC, desde o primeiro momento, explicitaram a imensa empulha-ção que foi o discurso eleitoral de FHC e a mistificação e as menti-

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ras que 34% dos eleitores que votaram em FHC e o total dos 36% que se abstiveram ou votaram branco ou nulo em 1998, não qui-seram ou não tiveram oportunidade de ver. As ações do início do segundo mandato também definiram as duas características prin-cipais desse governo: a consolidação da subserviência ao comando dos interesses internacionais e o aprofundamento das crises soci-ais, políticas e econômicas.

Outra questão gravíssima que aflorou logo ao início dessa segunda gestão, foi a crise federativa que mostrou os estados reduzidos a condição de mendigos, especialmente os que passaram a ser go-vernados pelas oposições. Os governadores de oposição, tratados como se fossem chefes de Estados estrangeiros se rebelaram, com toda razão, contra o desmonte dos seus orçamentos pelo absurdo aumento dos juros de suas dívidas. Aí, então, foram seguidos também pelos governadores apaniguados do governo federal. É incrível constatar que o governo FHC é mais intransigente e in-flexível para com os estados da federação do que o FMI o é para com os países devedores. Os “gerentes do mercado financeiro”, travestidos de ministros, presidentes do Banco Central, do BNDES etc, cumprem a tarefa de casa imposta pelo FMI tratando com rigor os estados e municípios devedores da união e com magnâni-ma tolerância os credores do mercado financeiro nacional e inter-nacional.

Começam, porém a surgir reações esboçadas pela a maioria da sociedade, marginalizada pelo processo político e econômico ex-cludente do governo FHC. Ainda são esparsas mas indicadoras de perspectivas de confronto a médio prazo com esse projeto. Exem-plos disso são as greves que estão pipocando como as dos cami-nhoneiros, dos professores, da saúde, as manifestações dos ‘100 mil’ em Brasília em setembro/99, que reproduziu em parte o efeito da marcha do MST em 97 e a marcha do Projeto Popular para o Brasil, desde o Rio de Janeiro até Brasília, de julho a outubro/99.

É indispensável fazer-se uma breve abordagem a respeito da mar-cha Rio-Brasília e da subseqüente assembléia dos lutadores do povo, que consubstanciou o fato político que denominamos de a marcha que muito andou e o muito que resta andar, dada a impor-tância desse movimento para o embate com o poder político e econômico que domina nosso país. Temos a convicção de que, fatalmente, esse será um fato que a historiografia nacional regis-trará como de grande significação na trajetória da história política

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brasileira.

As pessoas que tem pressa e dinheiro fazem o trecho Rio-Brasília por via aérea em menos de 2 horas e as que não tem pressa e/ou dinheiro fazem o mesmo trecho de ônibus em cerca de 24 horas. Bem diferente, entretanto, dos viajantes cotidianos houve um gru-po de mais de 1.000 pessoas, oriundas de muitos recantos do país, que se reuniram no Rio de Janeiro e fizerem a pé o trecho Rio-Brasília, andando 1.580 km em 73 dias, no período de 26 de julho a 7 de outubro.

Nas vestimentas, uma intencional uniformidade, sem caracterizar uniforme. As camisetas eram em cores e dizeres previamente defi-nidos e nos pés usavam calçados simples porém, adequados às condições, ao gosto e ao costume de cada caminhante. Nas mãos, bandeiras do Brasil e das respectivas organizações, agitadas ao vento como símbolos do seu amor à pátria e às lutas do seu povo. Sobre a cabeça, bonés em cores e com dizeres também programa-dos. Na mente, uma nítida visão de futuro e uma determinação unitária e inabalável de lutar por ideais. No coração, um sonho e uma utopia, também unificados no grupo: colocar em marcha a construção de novos valores para um novo país e uma nova socie-dade brasileira, mais solidária, mais justa, mais humana, mais soberana, mais feliz.

Portadores desse sonho concreto, real e possível, atravessaram as zonas serranas do Rio de Janeiro e de Minas Gerais e os cerrados de Goiás. Ao passarem por dezenas de cidades e povoados foram recepcionados com grandes manifestações de alegria, júbilo, apoio e solidariedade. Trocaram experiências, conhecimentos e idéias com as sociedades locais em memoráveis reuniões realizadas em escolas, universidades, igrejas, associações de vários tipos e fina-lidades. Discutiram com mais de 200 mil pessoas as questões polí-ticas, econômicas e sociais que afligem nosso país e nosso povo.

A bagagem de conhecimento da realidade do país, parte recolhida e parte trocada nessa trajetória e nessa amostragem, possui i-mensa e profunda riqueza de conteúdo, brotada do âmago da alma do nosso povo, que ainda necessita ser melhor apreendida e assi-milada. Distribuídos em brigadas por estado e região e em grupos de execução de tarefas, obedeciam a uma organização e uma dis-ciplina extremamente rígidas, quase militares. Isso, além de ser uma coisa raramente vista em atividades políticas e sociais, foi um

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dos fatores essenciais para a manutenção da coesão do grupo, da solidariedade, do respeito para com os companheiros e compa-nheiras e para consigo mesmos.

Na capital federal, a Marcha recebeu a calorosa recepção e a ade-são de mais de cinco mil pessoas, vindas de todos os estados do Brasil e foi brindada nas ruas de Brasília com a emoção, o respei-to, a admiração o e estímulo da população. Na praça onde o índio pataxó Galdino de Jesus tinha sido queimado vivo foi realizado, com a presença de representantes de várias nações indígenas bra-sileiras, um ato ecumênico e manifestações de desagravo à morte de Galdino e a todo o processo de exclusão e extinção a que estão submetidos os nossos irmãos índios.

Na frente do Banco Central foram realizadas várias manifestações de protesto e representantes da Marcha e dos partidos de oposição fizeram a entrega ao presidente do Banco Central, Armínio Fraga, de uma bandeira dos EUA para ser remetida a Washington, como símbolo do nosso repúdio à dependência e subserviência da políti-ca anti-nacional de FHC e das elites brasileiras.

Nos três dias subseqüentes, a Assembléia Nacional de Lutadores do Povo deu continuidade à discussão do projeto popular, estraté-gico e alternativo para o Brasil, consubstanciado nos cinco com-promissos básicos, que já vêm sendo tratados na Consulta Popu-lar: Soberania Nacional, Desenvolvimento, Sustentabilidade, De-mocracia Popular e Solidariedade.

As elites já não conseguem ocultar o seu temor em relação à Con-sulta Popular, um processo político de claro e nítido confronto com as práticas políticas que mantém o ‘status quo’ dominante. Um movimento que põem em marcha e mantém mais de 1.000 pesso-as por 73 dias e 1.600 km, que reúne e mantém mais de 5.000 pessoas por três dias em estudos e debates, tudo sem qualquer subsídio público, evidentemente tem conteúdo e muito a dizer. E, além disso, não está brincando de fazer marola.

A profundidade, a abrangência, a clareza de diretrizes e a firmeza de propósitos desse movimento, somadas às notórias fragilidades, incoerências e inconsistências do projeto econômico e político neo-liberal vigente no país, são razões de sobejo para o temor das eli-tes.

No estudo de caso, contido no Caderno 05, trataremos das condi-

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ções de confronto com os sistemas hegemônicos e dominantes – e também degenerescentes - como o que está sendo protagonizado pelo neoliberalismo no Brasil.

3 Brasil econômico dos anos 90

O governo Collor/Itamar

O governo Collor, sob o ponto de vista econômico, se caracterizou por três situações principais:

1. O bloqueio da poupança nacional, que, de início, atingiu in-distintamente tanto os ricos como os pobres. Depois, ocor-reram as tradicionais proteções, discriminações e “jeitinhos” de sempre, proporcionais ao grau de poder econômico e/ou político e/ou de propina, na base do “quem pode mais cho-ra menos” ou “quem tem mais, leva; quem tem menos, deixa”.

2. A abertura da economia à globalização produtiva e financei-ra, cujo símbolo foi “fora as nossas carroças, que venham os mitissubishes”.

3. A escalada das privatizações.

O governo Collor não foi um fato político totalmente fora de con-texto e nem um mero acidente político. O presidente e a sua ‘gang’ é que estavam fora do ‘script’. As elites políticas e econômicas nacionais e internacionais aproveitaram muito bem a oportunidade para construírem as bases para o processo neoliberalizante que foi implantado no Brasil a partir de então.

Tendo em vista o portentoso - e desastroso! - programa de priva-tização implantado no país, faremos uma breve síntese histórica e política a respeito dos primórdios do processo de privatização dos ativos públicos nacionais, porque isso normalmente não é feito e cremos que a maioria das pessoas desconhece ou já esqueceu.

Origens das privatizações no Brasil. Por conta do projeto neo-liberal que levou Collor à presidência da República, no fim dos a-nos 80, a base produtiva estatal, que havia sido construída com tanto empenho e sacrifícios da sociedade brasileira desde o início da era Vargas, foi dada como concluída e, ato contínuo, passou a ser considerada desnecessária.

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Na verdade, o Estado brasileiro só tinha interferido no processo produtivo pela participação direta no mesmo, ao invés de ser or-denador da política econômica, porque sempre foi um Estado frágil e dependente. Às vezes mais, às vezes menos, mas sempre de-pendente. E, por não ter poder de regulação dos processos produ-tivos capitalistas, preferiu ele mesmo ser executor de alguns des-ses processos, especialmente em setores não atrativos para os capitais da época. E também para criar facilidades para acumula-ção capitalista.

Mesmo assim, ao longo da história econômica do país foi construí-do um núcleo poderoso de empresas produtivas estatais - monta-das sob as condições já destacadas - que sustentou o desenvolvi-mento econômico e que chegou a representar 1/3 do PIB nacional. Essas empresas constituíam um patrimônio nacional, construído com os recursos e os sacrifícios da sociedade, em especial dos trabalhadores.

De passagem, é bom lembrar que nenhum país entrou para o gru-po dos ricos sem ter um núcleo de empresas poderosas sob o con-trole nacional. É o caso da Alemanha, Japão, França, EUA, Itália e países “emergentes” como a Coréia, por exemplo.

Mas o desmonte do Estado produtivo brasileiro já estava em pré-estágio desde o final da década de 1970, coincidentemente desde a mesma época em que o neoliberalismo começava a se instalar na Inglaterra e nos EUA. Foi quando começaram a ser suprimidas, esvaziadas ou a deixar de ter prioridade, algumas atividades estra-tégicas de desenvolvimento e de planejamento econômico.

O processo das privatizações do setor produtivo estatal teve início efetivo somente no governo Sarney, se bem que ainda de maneira tímida para não assustar a sociedade, que estava recém se acos-tumando à nova reordenação institucional.

Em abril de 1990 -, apenas um mês depois da posse de Collor - o Congresso Nacional lhe deu de presente um cheque em branco ao aprovar a Lei 8031/90, que estabeleceu o “Programa Nacional de Desestatização”. Esse programa de desestatização só tinha esse nome no ‘caput’ da lei. Todo o conteúdo era constituído por regras de privatização pura, em outras palavras, uma deslavada mistifica-ção. Além disso, continha um cheque em branco, isto é, autoriza-va o Executivo a proceder a privatização das empresas que bem entendesse, sem qualquer controle ou fiscalização do Legislativo

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ou de quem quer que fosse.

Conceitualmente falando, privatização não é sinônimo de desesta-tização, sendo apenas uma das suas formas. Desestatizar significa passar os ativos do Estado para fora do mesmo, não necessaria-mente para o setor privado, podendo ser transferidos para os fun-dos sociais, públicos ou não, desde que administrados pela socie-dade.

No sentido politicamente correto, sob o ponto de vista dos interes-ses da sociedade como um todo e não dos grupos de poder, a de-sestatização deveria perseguir três objetivos principais: a) colocar o Estado prioritariamente a serviço do social; b) reduzir o déficit público; c) evitar a apropriação dos recursos públicos por grupos privados.

Além disso, a mudança da estatização para a privatização depende do horizonte de tempo para a criação de uma economia eficiente e competitiva e da capacidade política da sociedade para impor ao Estado uma reforma racionalizadora, enquanto mantém o Estado estatizado.

Entretanto, como esperar que esses princípios fossem obedecidos num país onde nunca existiu um real Estado de direito, nunca foi democrático ‘strictu sensu’ e sempre foi prisioneiro dos interesses de grupos dominantes?

Por isso mesmo, o governo não colocou qualquer condição, como as que foram impostas por outros países (Inglaterra, Alemanha Oriental antes da unificação, por exemplo): níveis mínimos exigi-dos de investimentos próprios; garantia de absorção de mão-de-obra; manutenção do controle estatal, mesmo com minoria acioná-ria; garantia de continuidade operacional; proibição de aumentos de preços; garantia da qualidade dos bens e serviços; não carteli-zação ou oligopolização; não aceitação de moedas "podres".

Os trabalhadores, especialmente aqueles representados pelos sin-dicatos filiados à CUT, quando perceberam a dimensão do dano que seria provocado pela Lei 8031, tentaram se mobilizar para mudar a situação. A reivindicação e a estratégia não eram ambi-ciosas, eram até modestas. Foi elaborado um ante-projeto de lei de iniciativa popular para mudar a privatização para desestatiza-ção e retirar o poder absoluto do Executivo, fazendo os processos de desestatização, especialmente os de empresas de setores es-

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tratégicos, passarem pelo crivo e aprovação do Congresso Nacio-nal.

A intenção era estender o debate do Congresso Nacional para a sociedade e provocar o confronto com o projeto neoliberal. Ressal-te-se que essa mesma estratégia foi tentada mais tarde, também sem resultados, por ocasião das reformas constitucionais promovi-das no primeiro governo FHC.

Na época, entretanto, a estratégia foi entendida como viável, den-tro de uma perspectiva equivocada quanto a correlação de forças vigentes. Tinha-se, entretanto, a consciência de que se tratava apenas de um ajuste, uma “meia-sola”, no projeto neoliberal do governo. Mas nem a etapa inicial do ante-projeto se concretizou porque sequer foi conseguido o milhão de assinaturas necessárias. Aliás, ficou muito longe disso, o que indicou com clareza a fragili-dade do movimento sindical e a sua falta de perspectiva política, ideológica e histórica.

Três fatores concorreram para isso:

1. A perda de rumo por parte da esquerda em função da que-da do muro de Berlim e da derrota eleitoral de 1989;

2. A ação predatória da política neoliberal, que já se fazia sen-tir muito forte no mundo do trabalho;

3. A falta de compreensão da sociedade em geral, seduzida e enganada pela campanha de ‘markting’ governamental, quanto ao verdadeiro sentido e os reais objetivos do pro-cesso de privatização das empresas estatais.

E, assim, a vaca começou a ir para o brejo, não foi detida, nele se embrenhou e não mais foi encontrada! Hoje sabemos como tudo isso se deu, onde a vaca se encontra e quem usufrui do leite, mas parece muito tarde para recuperar tanto o leite quanto a vaca. Só não será tarde se essa hegemonia que tomou conta do nosso país for derrotada com brevidade. Adiante, veremos que isso é possí-vel e que existem condições e formas de fazê-lo.

O governo Itamar Franco. O vice-presidente Itamar Franco substituiu Collor no bojo de todo aquele processo de ‘impeach-ment’, inédito na história brasileira, cheio de nuances de dramati-cidade e de mobilização popular. Foi, de fato, uma verdadeira deposição do primeiro presidente eleito pelo voto direto, após a

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ditadura de 1966 a 1985, tendo permanecido no poder apenas durante a metade de um mandato. A análise política desse mo-mento histórico já foi feita páginas atrás. Vejamos agora os seus desdobramentos econômicos.

Realmente, sob o ponto de vista econômico, poucas novidades aconteceram na política do “novo governo”, até porque o governo não era “novo”. O projeto neoliberal já estava se consolidando e seu substrato político e institucional em nada foi alterado. Com maior precisão, devemos dizer que nada substancial mudou em toda a política vigente, conforme também já foi destacado.

Itamar Franco ficou oscilando entre as suas convicções de base nacionalista e a obediência aos ditames do poder econômico e polí-tico internacional, cuja inserção no tecido diretivo nacional se ar-raigou cada vez mais profundamente, com a conivência e até o estímulo das elites “nacionais”.

Essas oscilações, digamos ideológicas, do presidente se materiali-zaram em vários momentos, com referência ao processo de priva-tização. Por exemplo, quando algumas etapas do programa foram postergadas e depois retomadas. Ou vice-versa.

Itamar pleiteia - com alguma propriedade, ao que parece - a pa-ternidade do Plano Real, que catapultou Fernando Henrique ao posto de seu substituto no terceiro andar do Palácio do Planalto, isto é, na presidência da República.

Ao negar a primazia do Plano Real ao seu ex-chefe e aparente mentor, FHC parece ter agregado a ingratidão ao seu rol de defei-tos pessoais! A não ser que – e isso pode ter realmente aconteci-do - a sua candidatura tenha sido gestada à revelia de Itamar. Esse projeto – já o dissemos antes – deve ter sido elaborado do outro lado do equador, acima do trópico de Câncer, entre os para-lelos 35 e 40 norte e os meridianos 75 e 80, nas proximidades do oceano Atlântico, em uma cidade que leva o nome de um ex-presidente norte-americano...

A anatomia do Plano Real (∗)

(∗) A análise econômica feita a seguir está fortemente apoiada no resumo da palestra de Cesar Benjamim, proferida no IV CONSENGE (Foz do Igua-çu-PR - setembro/97), cujo tema se encontra ampla e profundamente abordado no livro A opção brasileira. Para os objetivos perseguidos nesta breve síntese, porém, parece ser suficiente esse resumo bastante

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As história precursora e as razões da elaboração e da implantação do Plano Real estão profundamente ligadas aos desdobramentos e às conseqüências políticas da eleição, do governo e do ‘empeach-ment’ de Collor de Melo e, em decorrência, do governo de Itamar Franco. A análise política dessa fase já foi vista. É clara também a inteligência e a qualidade do Plano, admitidas até por analistas da esquerda.

Sob o ponto de vista técnico, porém, tal como outros planos im-plementados em grande número de países do 3º mundo e da Amé-rica Latina, o Plano Real é uma família de planos que partem da combinação de duas medidas fundamentais: sobrevalorização do câmbio e abertura comercial.

O câmbio estabelece a relação da moeda nacional com uma cesta de moedas estrangeiras. Como a moeda corrente no mundo é o dólar, podemos dizer que o câmbio do real é a relação real/dólar sendo que, no movimento de valorização do real frente ao dólar, existem duas conseqüências imediatas.

Como primeira conseqüência temos o encarecimento das exporta-ções no Brasil, o que faz com que a indústria nacional se torne menos competitiva no comércio exterior. A abertura comercial escancara o mercado interno brasileiro, dando entrada livre para mercadorias e capitais.

A segunda conseqüência é a estabilização ou redução da inflação. A inflação ocorre quando todo sistema de preços está deslizando e ninguém sabe quem e como começou. Assim como um navio que está solto no oceano fica à deriva, a inflação corresponde à ‘deriva’ do sistema de preços. Para fixar o navio, basta fixar um ponto do navio, através da âncora. A criação da âncora cambial é a fixação de um conjunto de preços que param de derivar.

Façamos um parêntesis para destacar que a inflação no Brasil é um fenômeno que tem características e efeitos muito próprios os quais, supomos, não devem existir em outros países em condições similares. Por exemplo, quais as razões para explicar que, em um ambiente de inflação baixa e estavel como a que resultou do Plano Real (em torno de 1% ao mes), os juros comerciais e financeiros

didático e sem muitos tecnicismos econômicos.

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no mercado interno girem entre 5% e 10%, ou mais que isso? Não existe qualquer razão econômica conjuntural que justifique tal situação. A razão verdadeira é constituída apenas pela submissão e subserviência do governo aos interesses do sistema financeiro nacional e internacional, garantindo espaço absoluto para a sua ganância e para a exploração da sociedade brasileira. Este é um tema cuja discussão deve ser aprofundada.

Outra grave conseqüência da relação real/dolar é o desequilíbrio da balança comercial, que é a medida da importação x exportação. O Brasil passou de um superávit de 1º mundo (só superado pelo Japão e pela Alemanha), para um déficit comercial, que se soma a outro déficit que é o da balança de serviços. Essas duas contas correntes somavam, em 1997, entre 30 e 32 bilhões de dólares por ano. Na conta de serviços está incluído, por exemplo, o trans-porte marítimo. O Brasil desmontou sua marinha mercante e agora tem cerca de 80% desse transporte em navios alugados, com um gasto anual de mais de US$ 5 bilhões. O serviço da dívida externa contribuía com um déficit de no mínimo 20 bilhões. Todos esses valores estão subestimados, porque os dados divulgados nunca são precisos e, muitas vezes, são mistificados ou maquiados.

Nas transações internacionais os pagamentos têm que ser feitos em dólar e o Brasil não emite dólares. Como não podemos ficar negativos nessas transações, é necessário captar dólares pelo me-nos num montante equivalente ao déficit formado pelo comércio e pelos serviços.

Esta captação se dá na terceira conta, que é a conta de capitais. A balança comercial consolida as transações de bens, a de serviços consolida as transações de serviços e a conta de capitais, diz res-peito às transações financeiras do Brasil com o exterior. Se existe um déficit de mais de 30 bilhões de dólares nas duas primeiras contas, somos forçados a fazer um superávit equivalente na tercei-ra, para que a soma das três contas possa ficar positiva ou equili-brada.

Para essa captação o Brasil tem que se apresentar diante do sis-tema financeiro internacional oferecendo a combinação de três parâmetros:

1. juros altos porque somos considerados um país de alto ris-co.

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2. câmbio estável, pois é condição primordial para que o capi-tal estrangeiro, que entra, não tenha prejuízos.

3. altas reservas internacionais, pois é garantia de que, no momento em que o capital financeiro líquido quiser sair, ele poderá trocar real por dólar na boca do caixa do Banco Central.

São três grandes constrangimentos à política econômica e são variáveis explosivas, como temos visto. Isto aumenta a propensão da economia brasileira de importar. Cada vez que a economia bra-sileira gera renda, uma parte vai para o exterior na compra de produtos importados. Cria-se uma contradição entre o crescimento e o equilíbrio externo. Quanto mais a economia cresce mais pro-porcionalmente funciona com produtos importados e mais negativa se torna a balança comercial. Como esse desnível é um componen-te do déficit da conta corrente é mais difícil equilibrar o balanço de pagamentos e maior a necessidade de importar capital. A variável crescimento e a variável equilíbrio externo se tornam incompatí-veis. Assim, ou a economia cresce e se coloca no rumo de uma posição insustentável no balanço de pagamentos, ou tende a uma economia sustentável sem crescer.

Mudar a estrutura do balanço de pagamentos ou deter o cresci-mento são também dois caminhos possíveis. A mudança na estru-tura de pagamentos recomendaria uma alteração no câmbio, mas esta alteração era impensável na política do primeiro governo FHC porque, para eles, o câmbio tinha que ser estável, mesmo ficticia-mente, para manter a imagem para os “investidores” (leia-se: especuladores) internacionais.

O ajuste teria que ser pelo crescimento, mas o Brasil vem conver-gindo para baixas taxas de crescimento, apesar da sociedade que-rer maior crescimento econômico. Esta opção pelo baixo cresci-mento tem uma conseqüência estratégica importante porque, na medida que nós somos um país periférico, nossa possibilidade de atingir o centro é que cresçamos mais. Esse modelo sinaliza que a sociedade brasileira aceitaria e convalidaria a sua posição periféri-ca no sistema internacional. Mas isso é falso porque a sociedade não aceita essa postura.

Os juros altos, em função da necessidade de captação de capital estrangeiro, incidem em um estoque de dívida pública, já existen-te. O diferencial de juros internos e externos faz com que bancos e

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empresas captem recursos do exterior, com a taxa de juros inter-nacionais vigentes e emprestem ao governo brasileiro, usufruindo de grandes lucros. Ao lado do crescimento da dívida interna surge então o crescimento de uma nova dívida externa brasileira.

O Brasil do Plano Real capta 10% do seu PIB em recursos externos e a taxa de investimentos da economia brasileira tem aumentado apenas 2%. Isso significa que 80% dos recursos captados ou se dirigem para financiar o consumo ou para o circuito especulativo que opera no diferencial dataxa de juros. Ou, ainda, para comprar ativos que já existiam no Brasil e não para agregar novos ativos.

Esta dívida é muito mais perigosa pois simultaneamente o Brasil aumenta seu coeficiente de endividamento sem aumentar sua taxa de alavancagem de produção no futuro. O Estado é o grande pa-gador de juros e vive uma crise fiscal extremamente grave, até do ponto de vista social, porque a sociedade em geral é quem paga essa conta.

Como o governo não tem condições de diminuir o déficit financei-ro, ele opera de forma a aumentar o superávit primário, prosse-guindo no corte de gastos e acelerando o processo de privatiza-ções. Esses dois mecanismos são claramente insuficientes. O cor-te de gastos é ineficaz no tempo, pois quanto mais se corta gas-tos, mais difícil fica cortar.

A privatização segue o princípio de uma vez por todas, ou seja, você vende e recebe o dinheiro mas no instante seguinte não tem nada mais para vender e nem o dinheiro. Para exemplificar, temos o caso da venda da Cia. Vale do Rio Doce. No momento da sua venda, a dívida interna brasileira era de 180 bilhões de Reais, so-bre a qual incidia uma taxa de juros de 18% ao ano o que dá 32 bilhões de Reais/ano ou 2,7 bilhões/mês para rolar os juros da dívida interna. A Vale rendeu 3,3 bilhões de Reais equivalentes a 35 a 38 dias de juros dessa dívida, sem abater um centavo do seu principal. Após pouco mais de um mês, a situação do Estado era a mesma, tendo perdido, de forma praticamente inútil e criminosa, o controle dessa estratégica empresa.

Enquanto a dívida se repõe dinamicamente e com muita velocida-de, os mecanismos de contenção ou são decrescentes no tempo ou se esgotam em si mesmos. Se a dívida se repõe com tal velocida-de e o crescimento da economia é baixo, eleva-se o coeficiente dívida/PIB. A capacidade de produção cresce lentamente e as dívi-

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das interna e externa crescem rapidamente. Isso coloca para o governo brasileiro o seu desafio mais grave de gerência a curto prazo que é conter o crescimento do coeficiente dívida/PIB. Os financiadores se retraem, o que significa esvaziar a conta de capi-tais, mostrar o grande buraco do balanço de pagamentos e forçar a desvalorização do Real.

Com isso, todo o modelo se desfaz, aumenta taxa de juros e a economia é jogada na recessão. Na medida em que isso ocorre, todas as decisões de investimento, tomadas na estrutura de pre-ços relativos existentes num período em que está barato importar, se tornam decisões irracionais. Os preços relativos se multiplicam com a desvalorização do Real. Com isso, as empresas que se a-daptaram à estrutura de preços relativos se tornam cadeias produ-tivas irracionais e a crise se torna crônica. Destaque-se que isso aconteceu no México e na Argentina e se repetiu no Brasil, após a desvalorização do Real, no início de 1999.

No esforço brutal para conter o crescimento do coeficiente dívi-da/PIB a estratégia do governo era queimar todas as grandes es-tatais até 1999. O cenário macroeconômico com que o governo operou era arrecadar 1,5% do PIB com as privatizações de estatais em 97, 3,5% em 1998, 0,5% em 1999 e 0 % a partir daí, quando se abriria um fase de extrema dificuldade na gerência desse mode-lo. Em 1999, porém, em função da desvalorização do Real e de algumas outras condições econômicas e políticas desfavoráveis, esse plano de privatizações foi prejudicado. Felizmente, aliás.

A única forma possível para que a economia brasileira possa en-contrar alguma capacidade de crescimento sem pressionar as con-tas externas, é que esse crescimento seja liderado pelas exporta-ções. A perspectiva que estava colocada até o final de 1998, para os analistas críticos da política do governo era: ou o Brasil conse-gue ganhar tempo suficiente na gerência do desequilíbrio macroe-conômico a ponto de emergir do outro lado como economia expor-tadora e, portanto, conseguir retomar alguma capacidade de cres-cimento sem desequilibrar a balança de pagamentos ou o governo não conseguirá este tempo, o que significará a crise cambial ou colapso do crescimento. Os fatos confirmaram totalmente a se-gunda hipótese.

Todos os países que se lançaram nesse modelo se estagnaram na crise cambial ou no colapso de crescimento. O único país que con-

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seguiu fazer esse trânsito foi o Chile. No entanto, o Banco Mundial quis entender porque ali deu certo e o resultado da pesquisa indi-cou que o Chile não aplicou o modelo! Esta constatação, obvia-mente, não foi divulgada para o grande público.

Se o caminho é no sentido de uma economia exportadora, a pri-meira conseqüência é que o seu núcleo dinâmico vai ter que pro-duzir, prioritariamente, aqueles bens que os países ricos querem comprar, e não aqueles que o povo necessita e pode comprar. Porém, os bens com alta tecnologia reduzem a capacidade de ab-sorver mão de obra e expulsa a população dos segmentos dinâmi-cos da economia.

A segunda conseqüência é a criação de uma massa de população excedente, que é urbana e que se aloca no setor de serviços in-formais e de baixa produtividade. O resultado é a degradação do mundo do trabalho.

A nossa situação, nessa fase, atinge um grave desequilíbrio ma-croeconômico que é tratado pelo governo no curto prazo no senti-do de ganhar tempo, enquanto busca alguma solução. Se ele não tivesse êxito nisso, a crise se aprofundaria e a sociedade brasileira passaria a níveis de exclusão muito maiores do que foi visto até então. E, como sabemos, foi exatamente isso que aconteceu.

A dimensão econômica da crise é consensual, ninguém contesta a existência de uma crise econômica séria. Nem o governo que, em geral, tem que desmentir a sua existência, nem mesmo ele, a desmente. E a sociedade começa a atribuir a causa dessa crise ao receituário neoliberal e o seu descontentamento é dirigido para a figura que simboliza a responsabilidade pela crise, ou seja, o pre-sidente da República. Entretanto a percepção ainda é um tanto difusa porque, para a sociedade em geral, a crise é como uma fratura exposta: tudo está visível, à mostra, mas parece desloca-do, fora de lugar. Léo Lince, de quem ouvimos pela primeira vez essa imagem tão interessante, nos brinda com outra pérola que também explicita as perplexidades vigentes hoje: “Eu vejo, com alguma confusão, que o quadro começa a clarear”, mudando o eixo de uma frase de efei-to que um companheiro seu costumava repetir nas análises políti-cas feitas logo após a queda do muro de Berlim: “Vejo com clareza que o quadro está confuso”. É, sem dúvida, uma bela e precisa síntese do quadro político e

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econômico que estamos vivendo no Brasil e um grande desafio para este período de transição secular e milenar.

4 Degenerescência e possibilidades de superação

Tendências e perspectivas

Tendências. A discussão que estivemos fazendo até este ponto deve ter servido para mostrar - senão para demonstrar – que, também no Brasil, estamos numa trajetória que denominamos de degenerescência dos sistemas sociais, políticos e econômicos. Caso não tenha sido suficiente, podemos adicionar alguns outros ele-mentos de discussão.

Por exemplo, em vários campos de comparação a nossa posição no ‘ranking’ global é extremamente precária. Um indicativo disso é a relação entre o Brasil e outros países do primeiro mundo, medida por diversos indicadores econômicos e sociais. Nosso país se en-contra em condições muito inferiores em relação a muitos países do mundo, não apenas os mais ricos, em indicadores tais como a participação dos salários no PIB nacional (a referência é a Suécia com 78,2%), o custo-hora da mão-de-obra na indústria (a refe-rência é a Alemanha com US$ 21,3) e a qualidade de vida, onde a referência é o Canadá com 96%.

Existem também indicadores onde o Brasil é o referencial com o maior índice. É o caso, por exemplo, dos índices de corrupção, conforme estudo feito por organismos internacionais, assim como o índice da rotatividade da mão-de-obra. A rotatividade do merca-do de trabalho brasileiro é uma das mais altas do mundo, medida pela percentagem de trabalhadores que permanece menos de dois anos no emprego. Enquanto no Brasil esse número chega a 49%, na Holanda é 28%, na França, 22%, na Alemanha 21%, na Bélgica 18% e na Itália 13%.

No que diz respeito à educação, os índices também são muito des-favoráveis ao Brasil, não apenas os referentes ao analfabetismo e ao ensino fundamental mas até no que diz respeito ao acesso à universidade. No Brasil apenas 12% dos estudantes chegam ao terceiro grau, enquanto na Argentina, com um PIB do tamanho do PIB do estado de São Paulo, o índice é 30% e no Chile, que tem um PIB equivalente ao da Bahia, também é 30%.

Estudos feitos por organismos mundiais indicam que devíamos ter

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11 anos na média de escolaridade, mas o Brasil tem 7 anos de média nacional, sendo que no nordeste é de 3,3 anos. As razões para tal - novamente é notório -, não são apenas de natureza eco-nômica.

O ‘ranking’ do Brasil em relação aos países desenvolvidos só pode-ria melhorar caso fosse considerado o futebol como principal pa-râmetro. Mesmo assim, ficaria abaixo da França, graças aos “za-gallos”, aos “ronaldinhos” e às multinacionais que dominam a fa-bricação de tênis, chuteiras e materiais esportivos em geral.

Vejamos outro quase imperceptível porém significativo exemplo do nítido processo de degradação e erosão do Estado brasileiro, que tem sido historicamente prisioneiro de interesses privados, com preponderância para os setores das oligarquias dominantes. Se examinarmos a lista dos detentores de cargos executivos de rele-vância nos setores econômico, financeiro e de infraestrutura do governo, (especialmente Fazenda, Tesouro, Banco Central e BNDES, mas também incluindo Agricultura, Transportes, Previdên-cia e outros), veremos que sempre estão vindo de ou indo para poderosas organizações privadas. Levantam-se três hipóteses, entre outras, para livre escolha do leitor: a) coincidência; b) com-petência/qualificação; c) compromissos e/ou favorecimentos, pas-sados ou futuros. Esta última opção parece ser absolutamente óbvia.

Como conseqüência de tudo isso, as reformulações institucionais não são feitas sob a égide plena dos princípios democráticos, mas condicionadas às conveniências do momento, conduzindo a uma absoluta subserviência da maioria do Legislativo e dos escalões superiores do Judiciário, no trato de assuntos do interesse do Po-der Executivo. E - o que é tão ou mais grave -, constata-se a com-pleta subserviência de todo o aparelho de Estado aos interesses econômicos e financeiros nacionais e principalmente internacio-nais.

Mas há princípios capitalistas que são contrariados. Somos um dos mais acabados exemplos de não submissão ao princípio que esta-belece que “quem paga a conta, dá as ordens”. No Brasil, ele é tomado às avessas porque quem paga a conta, isto é, a sociedade marginalizada do poder, não dá as ordens mas sim aqueles que manipulam os recursos, isto é, o governo e os grupos de interesse que o dominam e controlam. E as ordens são dadas contra os inte-

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resses de quem contribui com os recursos para pagar a conta.

O nosso país está cada vez mais enquadrado e passivamente sub-misso ao que se passa no mundo globalizado. Pior ainda, a diretriz política dos governantes tem sido considerar que isso está absolu-tamente certo e que não há qualquer razão para mudar.

Sempre retardado na percepção das tendências, o governo brasi-leiro conduz a sua política subserviente sem demonstrar se já per-cebeu - ou, então, se não percebeu mesmo - o fracasso do mode-lo. De qualquer forma, não quer - ou não sabe - indicar por qual caminho pretende andar. Na verdade, para as pessoas melhor informadas ou esclarecidas, é impossível admitir que os dirigentes não tenham percebido que o país está metido em uma enorme enrascada, sob o ponto de vista da economia internacional, em razão da dívida impagável que foi assumida. O que nos leva à conclusão de que estamos envolvidos não apenas em uma grave crise mas também em um imenso processo de enganação e empu-lhação.

Perspectivas. Hoje, o neoliberalismo sofre resistências em todo o mundo, tendo em vista os desastres sociais que vêm sendo produ-zidos até nos países mais desenvolvidos, de sorte que dá para afirmar que se tornou um grande fracasso.

Na América Latina, cujo processo nos interessa mais de perto por-que dele fazemos parte e também pelas influências recíprocas no-tórias, podem ser percebidos campos de forças opositoras bem visíveis.

Algumas eleições recentes parecem indicar movimentações de trajetórias políticas com tendências à esquerda. Porém, ao que tudo indica, algumas dessas tendências são apenas aparentes e outras são duvidosas. Estamos nos referindo às eleições na Argen-tina, Uruguai, Chile, México, Venezuela e, até sob certos aspectos, também no Peru. De qualquer maneira, essas eleições indicam claramente, no mínimo, um cansaço e um fastio popular quanto ao tal neoliberalismo.

No caso da Argentina, não estão postas as condições políticas e econômicas para reverter a dolarização institucionalizada, mesmo que o presidente De La Rua assim o quisesse. Mas parece que não quer. No Equador, houve a experiência desastrada de dolarização, perpetrada pelo ex-presidente Mahuad e está em marcha um gra-víssimo processo de crise econômica e institucional.

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No Brasil, a designação de Francisco Gros (Banco Morgan, principal credor privado do Brasil), para a presidência do BNDES, somando-se a Armínio Fraga (grupo George Sórus) no Banco Central e a Pedro Malan (funcionário do Banco Mundial) no Ministério da Fa-zenda, foi um indicativo muito forte na perspectiva da dolarização. A formação desse “trio de ferro” da economia e das finanças na-cionais, consolidou a colocação da nossa política econômica, lite-ralmente, na mão dos interesses internacionais e transferiu em definitivo para Washington o centro de decisão a respeito dos ru-mos da nossa política economia É de se supor, porém, que a de-cisão de dolarizar a economia brasileitra, pela dimensão econômica e política que envolve, não deve ocorrer em ano eleitoral, quando muitos políticos aliados do governo estão na disputa por votos, direta ou indiretamente. Aliás, no ano 2000 a hipótese permane-ceu estrategicamente arquivada.

Também em outros países como o México, o Chile, a Venezuela e até o Peru, os processos políticos e econômicos decorrentes de eleições têm grande interesse comparativo para nós.

Nos casos do México (onde venceu um conservador que se diz reformista) e do Chile (onde venceu um “socialista”, ex-colaborador de Allende, que parece estar em contradição e nega-ção quanto ao seu passado), é necessário aguardar um pouco mais os movimentos políticos e econômicos concretos dos novos gover-nos.

O caso do Peru é importante pelas contradições que apresenta. Por um lado, há um processo de repúdio popular que ainda não se viabilizou eleitoralmente em virtude de processos escusos e frau-dulentos (mais ou menos similares ao que acontecia no México antes das eleições de 2000). Por outro lado, se aprofundou o radi-calismo de direita da dinastia Fujimori, talvez um exemplo para o nossos radicais, isto é, os PFLs e anexos. Foi um processo de do-minação que se fragilizou tanto que se inviabilizou e morreu à míngua, na renúncia de Fujimori.

As eleições na Venezuela, que confirmaram de forma marcante um novo modelo político, o “modelo chavista”, podem se constituir realmente num marco importante quanto a perspectivas e condi-ções de confronto com o modelo neoliberal. Também, neste caso, é necessário aguardar um pouco o desenrolar efetivo do processo venezuelano, ou seja, a mudança da fase do discurso para a fase

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da ação. A ser verdadeiro o que aparenta, as perspectivas de mu-dança são concretas. De qualquer forma, as esquerdas latino-americanas devem ficar torcendo para que não ocorram frustra-ções e decepções, mais uma vez.

Na Colômbia há um processo revolucionário em marcha, que está há muito tempo na fase da insurreição e do confronto armado. As forças revolucionárias, do ELN (Exército de Libertação Nacional) e das FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – E-xército do Povo), possuem contingentes armados equivalentes aos do exército colombiano formal e chegaram a tomar metade do país e a se aproximar da capital, Bogotá. A gravidade da situação na Colômbia pode ser explicada pela presença de especialistas da CIA que assessoram o governo e pelas prisões e mortes de lideres po-pulares, revolucionários ou não. Em setembro/2000, deu-se o ex-plícito e ostensivo apoio militar e financeiro do governo americano, consubstanciado no “Plano Colômbia” e pretensamente destinado ao combate à produção e ao tráfico de drogas. Na verdade, o obje-tivo é o combate à guerrilha dos revolucionários colombianos.

A única situação de similaridade possível de ocorrer no Brasil em relação à Colômbia é que a direita reacionária, representada pelo PFL e por outros núcleos reacionários encastelados no Palácio do Planalto, resolva assumir um radicalismo mais explícito e mergulhe o país num terrorismo de Estado. Outra alternativa, nessa linha radical, é que um conluio PFL-FHC transformem o Brasil num mo-delo parecido com o do Peru, da era Fujimori.

Quanto à trajetória atual da política econômica do governo, con-forme a opinião de analistas como César Benjamin, a única solução visível para o Brasil seria o aumento das exportações. Mas isso não é possível, porque estamos entrando na 3a. década perdida e seria necessário um aumento real nas exportações da ordem de 10% a.a., ao longo de toda uma década. Essa solução exportadora, porém, é uma evidente impossibilidade pelas seguintes razões:

1. A economia não é exportadora e o crescimento não é puxado pela exportação.

2. As nossas exportações são prioritariamente feitas para a Amé-rica Latina, que está estagnada ou em recessão.

3. Os produtos manufaturados estão com valores em baixa no mundo todo, pela competitividade e os avanços tecnológicos.

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4. As indústrias mais importantes são multinacionais, que não têm prioridade exportadora para os produtos produzidos no Brasil.

5. A crescente participação de componentes importados nos sis-temas produtivos.

6. O baixo crescimento do comércio, que é de apenas 2,7%. 7. Os novos blocos de capital foram destinados ao setor automo-

bilístico. Note-se que o Brasil tem 12 montadoras enquanto outros países tem no máximo 4.

8. O petróleo ainda é um dos sustentáculos da nossa economia. Mas a Petrobrás está na pauta das empresas a serem vendi-das, principalmente o setor de refinarias. Pergunta-se: conti-nuará sendo refinado prioritariamente o nosso petróleo ou o dos futuros compradores?

9. Os investimentos não estão sendo feitos para aumentar as exportações mas para aumentar as importações. Além disso, são investimentos fortemente subsidiados.

10. A remessa anual de lucros era de US$ 1,9 bilhões. Já no pri-meiro governo FHC passou a US$ 7 bilhões.

11. As estatais tinham receitas em reais e gastavam lucros em reais. Após a entrega das estatais para as multinacionais, as receitas continuam em reais mas os lucros são transformados em dólares e remetidos para o exterior.

O Brasil tem jeito

O que foi visto nesta análise dá consistência e reforça a convicção de que estamos no vórtice de uma crise nacional, tão ampla e pro-funda a ponto de transformar questões gravíssimas como a cor-rupção, por exemplo, em meros detalhes ou simples pontas do ‘iceberg’. Por outro lado, temos também a convicção de que o Bra-sil tem jeito. E que, obviamente, não é o jeito que aí está.

A capacidade inventiva e realizadora do nosso povo tem uma longa história de sucessos. Por simplificação, vamos lembrar apenas o período pós-Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil passou de uma economia essencialmente rural (com 70% da população vi-vendo no campo e 30% nas cidades) à 8a economia industrial do

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planeta.(∗)

Para que o Brasil crescesse, de meados da década de 1940 até fins dos anos 80, a uma média de quase 10% ao ano não foi necessá-rio buscar muita gente lá fora. Ao contrário, preferimos formar os nossos próprios pesquisadores, cientistas e doutores. Com essa política, foram construídos vários setores nacionais de excelência, montados nessa fase e reconhecidos mundialmente. Infelizmente, esses autênticos patrimônios públicos, resultantes de um extraor-dinário esforço de competência nacional, hoje estão quase total-mente dilapidados, vilipendiados e doados para as multinacionais.

No setor de petróleo, por exemplo, a Petrobrás é pioneira e refe-rência mundial na pesquisa e produção em águas profundas, tendo batido recordes sobre recordes e recebido prêmios e mais prêmios internacionais. Além disso, teríamos atingido a auto-suficiência em produção de petróleo caso a política governamental não restringis-se os investimentos da empresa. Também transformamos, com tecnologia própria, o álcool em combustível automotivo, como al-ternativa para a crise do petróleo do início dos anos 70. E o setor petroquímico contribuiu extraordinariamente para um leque imen-so de produtos para a indústria e para o consumo da população, além de insumos para a agricultura.

Com tecnologia nacional, empurramos as nossas fronteiras agríco-las para além do cerrado do planalto central, tido até então como improdutivo e hoje transformado em um grande celeiro de grãos.

No setor de comunicação de massa, desenvolvemos um sistema de TV diferenciado e mais eficiente do que o sistema americano ou o alemão. Nas telecomunicações, foi construído pela Embratel e pela Telebrás e pelo seu conglomerado de empresas associadas esta-duais, um fantástico sistema hoje doado integralmente ao setor privado.

No setor de energia elétrica, foi montado:

a) um imenso sistema de produção de energia, mediante o apro-veitamento do maior potencial hidroelétrico do planeta, ainda não totalmente utilizado;

(∗) A análise dos problemas originados pela concentração urbana e todos os demais, decorrentes dessa inversão de distribuição populacional, está fora dos limites desta nossa proposta de trabalho.

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b) um sistema de transmissão a longas distâncias com uma ma-lha interligada que permite a transferência de imensos blocos de energia, de norte a sul do país;

c) sistemas estaduais de distribuição que levam energia a quase todas as cidades e povoados brasileiros (nas regiões sul e su-deste o índice é muito próximo de 100%), bem como a exten-sas áreas rurais.

Nos setores de siderurgia e de mineração, construímos um parque portentoso, onde despontou a Vale do Rio Doce, uma das maiores mineradoras do mundo e que era uma das três(*) empresas multi-nacionais brasileiras. Detentora de reservas minerais avaliadas em mais de um trilhão de dólares, foi “doada” em troca de míseros R$ 3,2 bilhões, como vimos páginas atrás.

É longa, quase inesgotável, a lista dos desafios que a inteligência e a competência nacionais enfrentaram e venceram. Infelizmente, a maioria desses desafios foram colocados pelas elites dominantes de nosso país tendo como objetivo principal o seu próprio interesse e não o interesse da sociedade como um todo. Caso esse enorme potencial de competência fosse colocado a serviço da construção dos verdadeiros valores nacionais e dos reais interesses da socie-dade brasileira, as realizações teriam sido de outra natureza e com outros resultados, positiva e incalculavelmente benéficos para a qualidade de vida do povo brasileiro.

É fácil explicitar também algumas vantagens relativas que o Brasil possui. Sucintamente, porque uma discussão mais ampla extrapola o âmbito desta análise, podemos destacar:

1. um território de dimensões continentais;

2. um povo extraordinário, em que pese a agressão diária da “i-deologia do esculacho”, tentando demonstrar o contrário;

3. uma miscigenação étnica realmente virtuosa, o que é também evidente, apesar da ideologia do esculacho;

4. integridade e identidade lingüísticas;

5. oito mil quilômetros de costa oceânica e incalculáveis quilôme-

(*) As outras duas, que ainda restam como estatais, são a Petrobrás e o Banco do

Brasil.

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tros de rios, muitos deles navegáveis;

6. um clima predominantemente temperado, sem variações sensí-veis, o que caracteriza condições muito adequadas à agricultu-ra;

7. uma das maiores reservas de água doce e potável do planeta, um dos bens mais valiosos e estratégicos do século 21.

8. a maior reserva (mais de 20% do total) de biodiversidade ve-getal e animal do planeta;

9. reservas de riquezas minerais, ainda significativas apesar dos assaltos e saques sofridos durante séculos, em especial nos úl-timos tempos.

Por um lado, temos todas essas vantagens relativas e, por outro, não temos algumas desvantagens que afetam quase todos os paí-ses ricos e também alguns países da periferia do capitalismo. E não tê-las significa, portanto, acrescentar mais vantagens ao elen-co acima. É o caso, por exemplo, da ausência de fenômenos telúri-cos (terremotos, vulcões, furacões), de guerras fratricidas, tanto étnicas como religiosas.

Sabemos também que a maior força do Brasil é o seu povo, um povo novo, com imensas capacidades e possibilidades de vir a ser um referencial de construção de um projeto de nação soberana e de uma sociedade fraterna, solidária, livre e feliz.

Isso tudo nos dá a certeza e a segurança de que temos muitas condições para construir um novo futuro.

O que, então, está faltando para termos todas as condições?

Uma das principais condições faltantes, como ficou ressaltado ao longo da análise que estamos fazendo, é a superação de duas das nossas maiores fragilidades: a desorganização do nosso povo e a dificuldade em controlar o nosso próprio destino com autonomia e soberania.

Neste Caderno foi explicitado de forma sintética o diagnóstico que nos propusemos fazer a respeito do Brasil. No estudo de caso que é desenvolvido no Caderno 05 são explicitadas várias condições favoráveis e desfavoráveis para um confronto entre projetos. De um lado, está o projeto das elites em vigor no Brasil; do outro, um projeto popular, transformador, abrangente e profundo, ainda por

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construir.

NOTAS

i Ver texto elaborado para o V Consenge, da Fisenge. ii Ver entrevista no “Jornal dos Economistas”, N. 108, abril/98. iii Cf. estudo do professor Marcio Pochmann, cuja síntese foi publicada no jornal Folha de São Paulo, de 26/12/99, pg. 2-5. iv Ver ARAÚJO, Tania Bacelar e BENJAMIN, César, Brasil, reinventar o

futuro.