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branca 3 Minion Pro 12 (fonte) -25 (entre letras) 13,2 (entre linhas) hifenização proibir quebra na hifenização ficha técnica bio do autor excerto no final manifesto bang? e revisão de Prof. Nuno Colaço (Psicólogo Clínico)

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branca 3Minion Pro12 (fonte)-25 (entre letras)13,2 (entre linhas)

hifenização

proibir quebra na hifenização

ficha técnica

bio do autor

excerto no final

manifesto bang?

e revisão de Prof. Nuno Colaço (Psicólogo Clínico)

Nem o Sol nem a Morte podem ser olhados de frente. François de La Rochefoucauld, máxima 26

Dedicado aos meus mentores, que ripple através de mim para os meus leitores: John Whitehorn, Jerome Frank, David

Hamburg e Rollo May

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Prefácio e agradecimentos

Este livro não é, nem nunca poderá ser, um conjunto de pensamentos sobre a morte, porque durante milénios todos os escritores sérios já

abordaram a mortalidade humana.Em vez disso é um livro profundamente pessoal, resultado dos

meus confrontos com a morte. Partilho o medo da morte com cada ser humano e acredito que ela é a sombra da qual nunca nos poderemos separar. Estas páginas contam o que aprendi sobre como é possível ultra‑passar o terror da morte, a partir das minhas próprias experiências, do trabalho com os meus pacientes e com os pensamentos daqueles escrito‑res que complementam o meu trabalho.

Estou grato a muitos que me ajudaram neste percurso. O meu agente, Sandy Dijkstra, e o meu editor, Alan Rinzler, foram instrumen‑tais no enfoque que dei a este livro e na forma como o construí. Uma série de amigos e colegas já leram partes do manuscrito e ofereceram sugestões: David Spiegel, Herbert Kotz, Jean Rose, Ruthellen Josselson, Randy Weingarten, Neil Brast, Rick Van Rheenen, Alice Van Harten, Ro‑ger Walsh, Robert Berger e Maureen Lila. Philipp Martial foi quem me apresentou à máxima de La Rochefoucauld («Nem o Sol nem a Morte podem olhar‑se fixamente»), que inspirou o título deste livro. Fica aqui, também, a minha gratidão a Van Harvey, Walter Sokel, Dagfin Follesdal,

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caros amigo e tutores de História do Pensamento, a Phoebe Hoss e a Mi‑chele Jones, responsáveis por um excelente trabalho de edição. Os meus agradecimentos estendem‑se aos meus quatro filhos, Eve, Reid, Victor e Ben, consultores preciosos, e à minha mulher, Marilyn, que, como sem‑pre, me obrigou a ser mais exigente comigo mesmo e a escrever melhor.

Mas, antes de mais, estou em dívida para com aqueles que foram os verdadeiros professores nesta matéria: os meus pacientes, que teimam em permanecer anónimos (mas eles sabem quem são!). Honraram‑me com os seus medos mais íntimos, deram‑me permissão para usar as suas histórias, sugeriram‑me formas de manter as suas identidades secretas, leram partes do manuscrito, ou mesmo todo, deram conselhos e senti‑ram um imenso prazer na certeza de que iriam exercer o efeito de rip‑pling1, passando a sua experiência e sabedoria aos meus leitores.

1 O conceito de rippling é uma criação de Yalom e um dos mais fundamentais deste livro, mas não existe um sinónimo português que o explique inteiramente, por isso o tradutor optou por manter a palavra original. Rippling significa «propagar» ou «provocar ondulação», como quando uma pedra é atirada à água e provoca círculos concêntricos, até se perder de vista. Yalom acredita que é essa a nossa «eternidade», a marca que provocamos nos outros e que eles vão, por sua vez, passando àqueles com quem interagem, levando a que continuemos «vivos», enquanto eles também o estiverem. (N. do T.)

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caPítulo 1

• A FeridA MortAl •

«A tristeza entra no meu coração. Tenho medo da morte.»Gilgamesh

O autoconhecimento é um presente supremo, um tesouro tão precio‑so como a própria vida. É ele que nos torna humanos. Mas o preço

a pagar é alto: a ferida da mortalidade. A nossa existência será sempre assombrada pelo conhecimento de que iremos crescer, florescer e, inevi‑tavelmente, murchar e morrer.

A mortalidade persegue‑nos desde o princípio dos tempos. Há quatro mil anos, Gilgamesh, o herói da Babilónia, reflectia sobre a morte do seu amigo Enkidu com as palavras da epígrafe que abre este capítu‑lo:

«Escondeste‑te na escuridão e não consegues escutar‑me. Quando morrer não ficarei como Enkidu? A tristeza invade o meu coração.Tenho medo da morte.»

Gilgamesh fala por todos nós. Como ele temia a morte, também nós a tememos — cada um de nós, homem, mulher e criança. Para al‑guns, o medo da morte manifesta‑se apenas indirectamente, como uma intranquilidade generalizada ou disfarçada de um sintoma psicológico qualquer; outros sentem uma ansiedade, explícita e constante acerca da morte, bem consciente e que não os deixa nunca; e depois há ainda aqueles para quem o medo da morte se torna num terror que lhes nega a felicidade e a realização pessoal.

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Desde sempre, filósofos empenhados e dedicados procuraram revestir a ferida da mortalidade, para nos ajudarem a criar existências de harmonia e de paz. Enquanto psicoterapeuta de muitas pessoas que lutam com a ansiedade de morte, descobri que a sabedoria antiga, par‑ticularmente a dos filósofos gregos, é extremamente relevante nos dias de hoje.

De facto, no meu trabalho como terapeuta, considero como meus antepassados intelectuais não tanto os grandes psiquiatras e psicólogos do final do século XIX e início do século XX, Pinel, Freud, Jung, Pavlov, Rorschach e Skinner, mas antes os filósofos clássicos gregos, muito par‑ticularmente Epicuro. Quanto mais aprendo sobre este extraordinário pensador ateniense, mais fortemente o reconheço como o psicoterapeu‑ta «proto‑existencial», fazendo uso das suas ideias ao longo de todo este livro.

Nasceu em 341 A. E. C.2, pouco tempo depois da morte de Platão, e morreu em 2�0 A. E. C. Muitas pessoas familiarizaram‑se com o seu nome através da palavra epicurista, que significa uma pessoa devotada aos prazeres, sobretudo aos gastronómicos. Mas, na realidade, Epicuro não era defensor de prazeres sensuais ou refinados, estando mais preo‑cupado em alcançar a tranquilidade (ataraxia).

Epicuro exercia «filosofia médica» e insistia que da mesma manei‑ra que um médico trata o corpo, o filósofo deve cuidar da alma. Em sua opinião, a filosofia tinha um único objectivo: aliviar a miséria humana. E quanto à raiz dessa tragédia? Epicuro acreditava que se devia ao nosso omnipresente medo da morte. A visão assustadora da inevitabilidade da morte, dizia, interfere com a satisfação que retiramos da vida, não dei‑xando prazer algum intocado. Para aliviar o medo da morte desenvolveu vários poderosos exercícios mentais, que me têm ajudado a encarar a ansiedade de morte e que me oferecem ferramentas para ajudar os meus pacientes. Na discussão que se segue refiro‑me frequentemente a estas ideias preciosas.

A minha experiência pessoal e o meu trabalho clínico têm‑me en‑sinado que a ansiedade de morte vai e vem ao longo do ciclo da vida. As crianças desde muito cedo não conseguem ignorar os sinais de mortali‑dade que encontram à sua volta — folhas caducas, insectos e animais de estimação mortos, avós desaparecidos, pais em luto, hectares e hectares

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de cemitérios com campas a perder de vista. As crianças podem obser‑var, questionar‑se e, seguindo o exemplo dos seus pais, simplesmente optar por permanecerem em silêncio. Se expressam a sua ansiedade abertamente, os pais ficam visivelmente incomodados e, evidentemente, acorrem a sossegá‑los. Por vezes os adultos tentam encontrar palavras reconfortantes, transferem todo o assunto para o futuro distante, acal‑mam a ansiedade das crianças com histórias que negam morte, como a ressurreição, a vida eterna, o Paraíso ou a possibilidade do reencontro.

O medo da morte geralmente torna‑se subterrâneo entre os seis anos e a puberdade, a idade que Freud designou como o período da se‑xualidade latente. Depois, durante a adolescência, a ansiedade de morte ressurge em força: os adolescentes sentem‑se, muitas vezes, extrema‑mente preocupados com a morte; alguns consideram mesmo o suicí‑dio. Mas muitos adolescentes de hoje respondem à ansiedade de morte tornando‑se mestres no assunto, nas suas vidas paralelas ou em jogos violentos de consola. Outros desafiam a morte com o humor negro e canções provocadoras, ou vendo filmes de terror com os amigos. No início da minha adolescência ia duas vezes por semana a um pequeno cinema situado na esquina da loja do meu pai e, em uníssono com os meus amigos, gritava durante os filmes de terror e abria a boca, incré‑dulo e confuso, perante os filmes que mostravam o horror e as barbari‑dades da II Guerra Mundial. Lembro‑me de estremecer silenciosamen‑te com o pensamento da sorte que tivera em ter nascido em 1�31, e não cinco anos antes, como o meu primo Harry, que morreu no massacre das praias da Normandia.

Alguns adolescentes desafiam a morte colocando‑se em grande perigo. Um dos meus pacientes masculinos — que sofria de múltiplas fo‑bias e de um sentimento recorrente de que algo catastrófico estava prestes a acontecer — contou‑me como tinha começado a praticar queda‑livre com apenas dezasseis anos, fazendo variadíssimos saltos. Hoje, olhando para trás, acredito que foi a forma que encontrara para lidar com o medo persistente da sua própria mortalidade.

À medida que os anos vão passando, os medos da morte por parte dos adolescentes vão sendo varridos para baixo do tapete, porque a vida de um jovem adulto obriga‑o a duas grandes tarefas, que exigem toda a sua concentração: iniciar uma carreira e começar a construir família.

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Três décadas mais tarde, quando as crianças partem de casa e os pon‑tos finais de uma vida profissional pairam no ar, a crise da meia‑idade rebenta com violência e, mais uma vez, a ansiedade de morte entra em erupção, desta vez com ainda mais força e estrondo. Atingindo o cume da vida, depara‑se‑nos o caminho que nos espera e percebemos que o carreiro já não é a subir, mas antes sempre a descer. A partir desse mo‑mento as preocupações com a morte nunca mais voltam a andar muito longe do nosso pensamento.

Não é fácil viver cada momento absolutamente consciente da ine‑vitabilidade da nossa morte. É como tentar olhar para o Sol e manter os olhos fixos: qualquer de nós só consegue fazê‑lo durante alguns segun‑dos. Ora, porque não podemos existir congelados pelo medo, criamos estratégias para suavizar o terror da morte. Projectamo‑nos no futuro, através dos nossos filhos; do sonho de riqueza, fama, sucesso; desenvol‑vemos compulsivamente rituais de protecção; ou abraçamos uma crença inexpugnável num salvador supremo.

Algumas pessoas — supremamente confiantes na sua imunidade — vivem heroicamente, frequentemente sem respeito pelos outros ou até pela sua própria segurança. Há ainda aqueles que tentam transcender a dolorosa separação da morte procurando esquecê‑la na fusão com uma pessoa amada, uma causa, a comunidade, um Ser Divino. A ansieda‑de de morte é a mãe de todas as religiões que, de um modo ou de ou‑tro, tentam temperar a angústia da nossa finitude. Deus, enquanto uma formulação transcultural, não só apazigua a dor da mortalidade com a promessa de uma vida eterna, como suaviza o isolamento, agraciando o crente com uma presença eterna e sugerindo um plano claro sobre como dar sentido à vida.

Mas, apesar das mais respeitáveis defesas de que se munem mes‑mo os crentes, nunca conseguimos dominar por completo a nossa an‑siedade de morte — ela está sempre lá, disfarçada num canto escuro do nosso cérebro.

Talvez, como dizia Platão, não sejamos capazes de mentir à parte mais profunda de nós mesmos.

Tivesse eu sido um cidadão da antiga Atenas, em cerca de 300 A. E. C. (num tempo apodado de Época de Oiro da Filosofia), acometido de um ataque de pânico ou de um terrível pesadelo, e para quem me teria

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virado na tentativa de limpar a mente das teias do medo? É provável que me tivesse dirigido à ágora, a praça principal da antiga Atenas, onde se situavam as mais importantes escolas de filosofia. Teria passado pela aca‑demia fundada por Platão, dirigida agora pelo seu sobrinho, Speucippus; e também pelo lyceum, a escola de Aristóteles, que por sua vez tinha sido aluno de Platão, mas que fora demasiado rebelde nas suas teorias para ser apontado como seu sucessor. Passaria, depois, à porta da escola dos estóicos e da Escola Cínica, ignorando qualquer filósofo itinerante que andasse à procura de alunos. Finalmente chegaria ao jardim de Epicuro, e acredito que aí teria encontrado a ajuda que esperava.

E hoje, para onde é que as pessoas com ansiedade de morte, de intensidade inimaginável, se viram? Algumas procuram o apoio das suas família e amigos; outras tentam encontrá‑lo na sua igreja ou numa tera‑pia; outros, ainda, têm a possibilidade de consultarem um livro como este. Já trabalhei com um grande número de pessoas aterrorizadas pela morte. Acredito que as observações, as reflexões e as intervenções que desenvolvi ao longo de todos estes anos, como terapeuta, podem ofere‑cer um auxílio significativo e uma melhor introspecção àqueles que não conseguem, sozinhos, acalmar a sua ansiedade de morte.

Neste primeiro capítulo quero enfatizar que o medo da morte cria problemas que à primeira vista podem não dar a impressão de estarem directamente relacionados com a mortalidade. A morte tem um braço longo e o impacto dos seus tentáculos é muitas vezes invisível a olho nu. Embora o medo da morte possa imobilizar por completo algumas pes‑soas, muitas vezes está encoberto, sendo expresso através de sintomas que aparentemente não lhe estão ligados.

Freud acreditava que muita da psicopatologia resultava da repres‑são sexual do indivíduo. A sua visão parece‑me demasiado redutora. Durante o meu trabalho clínico tenho vindo a perceber que as pessoas podem não só reprimir a sua sexualidade como até a simples noção de self, do facto de serem criaturas de carne e osso e, sobretudo, reprimir a consciência da sua natureza finita.

No Capítulo 2 examino como se pode reconhecer a ansiedade da morte camuflada. Muitas pessoas sofrem de ansiedade, depressão e até de outros sintomas que, na realidade, são alimentados pelo medo da morte. Neste capítulo, tal como nos que se seguem, ilustrarei o meu

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conhecimento com histórias clínicas e técnicas que utilizo na minha prá‑tica, assim como com cenas de filmes e textos literários.

No Capítulo 3 vou mostrar‑vos que confrontar a morte não é si‑nónimo de entrar em desespero, nem tão‑pouco de retirar à vida o seu sentido. Muito pelo contrário, pode ser uma experiência que nos desper‑ta para uma existência mais rica e feliz. O núcleo central deste capítulo prende‑se com a defesa de que embora a morte física nos destrua, a ideia da morte salva‑nos.

O Capítulo 4 descreve e discute algumas das sugestões mais po‑derosas de filósofos, terapeutas, escritores e artistas sobre como superar o medo da morte. Mas, como o Capítulo � deixa entender, as ideias só por si geralmente não estão à altura de combaterem o terror que a mor‑te provoca. É a sinergia criada por essas ideias e as relações humanas a única que possui o poder de nos ajudar a olhar a morte nos olhos. Nesse sentido, sugiro muitas estratégias práticas para aplicar esta sinergia no nosso dia‑a‑dia.

Este livro apresenta um ponto de vista, baseado nas minhas ob‑servações das pessoas que me procuram em busca de auxílio. Mas, por‑que o observador acaba sempre por influenciar o que observa, utilizo o Capítulo � para um «exame do observador», oferecendo ao leitor uma súmula das minhas experiências pessoais nesta relação com a morte e das minhas atitudes em relação à mortalidade. Também eu luto com ela e, tendo trabalhado ao longo de toda a minha carreira com doentes que sofriam de ansiedade de morte, trata‑se de uma confissão a que não pos‑so fugir. Além de mais, sendo um homem de quem a morte se aproxima progressivamente, desejo ser honesto e transparente ao relatar a minha experiência com a ansiedade de morte.

O Capítulo � contém instruções para terapeutas. Sobretudo para os que sintam que estão a evitar trabalhar directamente com a ansieda‑de de morte, talvez por não serem capazes de enfrentar a sua própria ansiedade. Preocupa‑me, particularmente, que as escolas profissionais prestem pouco ou nenhum treino numa abordagem existencial a este tema: jovens terapeutas já me confessaram que evitam aprofundar de‑masiado as questões da morte com os seus clientes, porque sentem que não saberiam como lidar com as respostas recebidas. Para se ser capaz de ajudar as pessoas afligidas por esta ansiedade, os terapeutas precisam de

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novos conceitos e de um novo tipo de relação com o paciente. Apesar de esse capítulo ser pensado principalmente para profissionais, tento fugir aos termos demasiado técnicos e espero sinceramente que a escrita seja suficientemente clara para atrair os leitores mais curiosos.

Poderão perguntar‑me: mas porquê enfrentar um assunto tão assusta‑dor? Porquê olhar fixamente para o Sol? Porque não seguir os conselhos do venerável reitor da Associação de Psiquiatria Americana, Adolph Meyer, que há um século acautelava os psiquiatras dizendo‑lhes: «Não cocem onde não há comichão»? Porquê medir forças com o mais escuro, terrível e imutável aspecto da vida? De facto, nos últimos anos, o advento das terapias breves, terapias de controlo de sintomas e tentativas de alte‑rar os padrões do pensamento, só vieram exacerbar este ponto de vista tão limitado.

A morte realmente faz comichão e é uma comichão bem persis‑tente; está sempre connosco, a arranhar alguma porta interior, a zum‑bir suavemente, quase sem se ouvir, mesmo por baixo da membrana da consciência. Escondida e mascarada, gotejando uma variedade de sinto‑mas, é a fonte de muitas das nossas preocupações, stress e conflitos.

Sinto convictamente — sendo um homem que morrerá, ele pró‑prio, um dia, num futuro não muito distante e como um psiquiatra que gastou as últimas décadas a lidar com a ansiedade de morte — que con‑frontar a morte permite‑nos não abrir uma assustadora caixa de Pando‑ra, mas recentrar a vida num plano mais rico, que nos permita viver com mais compaixão.

Por isso é com optimismo que ofereço este livro. Acredito que vos ajudará a olhar a morte de frente e que, ao fazê‑lo, sentirão que não só dissipam o medo como acrescentam qualidade e força à vossa existência.

2 Yalom não utiliza a. C e o d. C para designar o tempo antes e depois de Cristo, e que era, até há pouco tempo, a única forma de denominar o tempo no calendário gregoriano. Opta antes por uma fórmula politicamente correcta e que lhe fará mais sentido, até pelas suas raízes judaicas: Antes da Época Comum (Before Comon Era) ou Depois da Época Comum (After Comon Era). A Época Comum, ou Era Comum, é esta em que vivemos e a diferença é apenas de nome, já que a medição do tempo é feita pelo mesmo calendário e corresponde exactamente à mesma data. (N. do T.)

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caPítulo 2

• reconhecer A AnsiedAde •de Morte

Morte é tudoE não é nada.

As minhocas rastejam para dentro, as minhocas rastejam para fora.

Cada pessoa tem medo da morte à sua maneira. Para alguns, a an‑siedade de morte é a música de fundo da sua existência e todos os

acontecimentos evocam imediatamente a certeza de que aquele momen‑to nunca mais se repetirá. Até um filme antigo parece uma questão «de vida ou de morte» para quem não consegue impedir‑se de imaginar que todos aqueles actores, por esta hora, já não passam de pó.

Para outros a ansiedade é intrometida, incontrolável, tendendo a surgir do nada às três da manhã quando acordam em terror, sentindo o ar faltar ao encarar o espectro da morte. Estes ficam presos na certeza de que, também eles, não tardarão a morrer — tal como toda a gente que os rodeia.

Outros, ainda, são assombrados por uma fantasia específica de morte iminente: uma arma apontada à cabeça, um pelotão de fuzilamen‑to nazi, uma locomotiva trovejando na sua direcção, uma queda de um prédio ou de uma ponte.

Cenários de morte tomam formas imensamente reais. Um ima‑gina‑se trancado num caixão, as narinas cheias de terra, contudo cons‑ciente de estar preso na escuridão para todo o sempre. Outro tem medo de nunca mais ver, ouvir ou tocar a pessoa amada. E não podemos deixar

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de falar dos que sentem a dor de estarem soterrados, enquanto todos os seus amigos continuam lá em cima. A vida prosseguirá como até aí, mas eles ficarão sem a possibilidade de alguma vez virem a saber o que acon‑teceu à família, aos amigos, ao seu mundo.

Cada um de nós experimenta de certa maneira o sabor da morte quando, todas as noites, escorrega para o adormecimento, ou quando perde a consciência em consequência de uma anestesia. A morte e o sono, Thanatos e Hypnos no vocabulário grego, eram gémeos. O escri‑tor existencialista checo Milan Kundera sugere que também provamos a morte através do acto de esquecer: «O que mete mais medo na morte não é perder o futuro mas antes o passado. De facto, o acto de esquecer é uma forma de morte sempre presente na vida.»

Em muita gente, a ansiedade de morte é expressa e facilmente re‑conhecida, por muito desesperante que seja. Noutras é subtil, dissimu‑lada, e esconde‑se atrás dos sintomas mais díspares, sendo identificável somente se nos decidirmos a explorar o que se passa, sendo por vezes necessário escavar bem fundo.

• a ansiedade de morte manifesta•

Muitos de nós misturamos a ansiedade de morte com os medos do mal, do abandono ou da aniquilação. Há quem fique petrificado pela ideia da eternidade, de ficar morto para todo o sempre; quem seja incapaz de conceber um estado de «não existência» e se debata com a pergunta de para onde irão quando morrerem; e, também, os que se focalizam no sentimento de horror que lhes provoca a ideia de um dia a sua vida e o seu mundo pessoal se evaporarem para sempre. Deixámos para o final aqueles que se debatem com a inevitabilidade da morte, como descreve neste e‑mail uma mulher de trinta e dois anos, que sofria frequentes cri‑ses de ansiedade de morte:

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Suponho que os sentimentos mais fortes surgiram da noção de que seria Eu a morrer, não uma outra entidade do tipo, Eu‑Velhinha ou um Eu‑Doen‑te‑Terminal‑Pronta‑Para‑Morrer. Julgo que sempre pensei sobre a morte de raspão, como sendo algo que poderia acontecer, e não que vai acontecer. Durante as semanas que se seguiam a um ataque de pânico forte, pensava sobre a morte mais intensamente do que alguma vez o tinha feito, e já per‑cebi perfeitamente que só há uma certeza: vou morrer. Sentia que tinha to‑mado consciência de uma verdade terrível e que nunca mais poderia voltar atrás.

Algumas pessoas levam os seus medos ainda mais longe, até uma conclusão insuportável: que o seu mundo, ou qualquer memória dele, não permanecerá, em lugar algum. As suas ruas, a sua família, os en‑contros de pais e filhos, a casa da praia, o liceu, o lugar preferido para acampar — tudo desaparecerá com a sua morte. Nada é estável, nada permanece. Que possível significado poderá conter uma vida em que tudo se perde e nada fica? O e‑mail continuava:

Aos poucos fiquei consciente do significado da palavra insignificância — de como tudo o que fazemos parece condenado ao esquecimento e de como essa realidade se estenderá ao próprio planeta. Imaginei a morte dos meus pais, ir‑mãs, namorado e amigos. Farto‑me de pensar sobre como, um dia, será o meu crânio e osso (não um crânio e ossos imaginários) estarem fora do meu corpo e não confortavelmente encobertos e escondidos sob a minha pele. E esse pen‑samento deixa‑me muito desorientada. A ideia de ser uma entidade separada do meu corpo não cola, por isso nem sequer posso consolar‑me com o conceito de uma alma eterna.

Há vários temas principais no e‑mail desta jovem: para ela, a mor‑te tornou‑se um assunto pessoal; já não é algo que poderá acontecer ou que acontece só aos outros; a inevitabilidade da morte torna toda a vida sem significado. Ela considera a ideia de uma alma imortal separada do corpo como altamente improvável e não encontra qualquer conforto na ideia de uma vida após a morte. Também quer saber se o «nada» antes do nascimento é o mesmo que sucede à morte (um ponto importante que reaparecerá na nossa discussão acerca de Epicuro).

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Uma paciente, com episódios de pânico de morte, entregou‑me este poema, na nossa primeira sessão de terapia:

A morte atravessa‑me.A sua presença atormenta‑me,Agarra‑me, conduz‑me.Grito em angústia.Eu continuo.

Todos os dias a aniquilação ameaça‑me.Tento deixar marcasQue talvez importem;Envolvendo‑me no presente.Não consigo fazer mais do que isso.

Mas a morte paira pouco abaixoDaquela fachada protectoraA cujo conforto me agarro,Como a criança ao seu cobertor.O cobertor é permeávelNa quietude da noite,Quando o terror regressa.

Não haverá mais «Eu»Para respirar na Natureza,Para endireitar os males,Para sentir uma doce tristeza.Perda insuportável, apesarDe ter nascido sem essa consciência.

A morte é tudoE não é nada.

Esta mulher sentia‑se particularmente atormentada pelo pensa‑mento expresso nas suas últimas duas linhas: A morte é tudo / E não é nada. Explicava‑me que a perspectiva de se transformar num «nada»

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consumia‑a e tornava‑se «em tudo». Mas o poema continha duas ideias importantes e reconfortantes: acreditava que, deixando marcas de si mesma, a sua vida ganharia sentido e que o máximo que podia fazer era abraçar o momento presente.

• o medo de morrer não é um substituto •de outra coisa

Os psicoterapeutas frequentemente assumem, erradamente, que a ansie‑dade de morte manifesta não é uma ansiedade sobre a morte mas, em lugar disso, uma capa para mascarar algum outro problema. Era o que acontecia com Jennifer, uma agente imobiliária de vinte e nove anos, cujos intensos ataques de pânico nocturnos não tinham sido bem interpreta‑dos por terapeutas anteriores. Desde há muitos anos que Jennifer acorda‑va frequentemente durante a noite, ensopada em suor, os olhos esbuga‑lhados, tremendo perante a ideia da sua aniquilação. Via‑se a si mesma a desaparecer, mergulhando na escuridão para sempre, completamente esquecida pelo mundo dos vivos. Dizia a si mesma que nada realmente importa se no final de contas está tudo condenado à extinção total.

Tais pensamentos atormentavam‑na desde a sua infância mais precoce. Recordava com vivacidade o seu primeiro episódio de pânico aos cinco anos. Correndo para o quarto dos pais, tremendo com medo de morrer, foi sossegada pela mãe, que lhe disse duas coisas que nunca mais esqueceu:

«Tens uma vida muito longa à tua frente, pelo que não faz sentido estares a pensar nisso agora.»

«Quando fores muito velhinha e te aproximares da morte, então estarás em paz ou doente e, de uma maneira ou de ou‑tra, a morte até será bem‑vinda.»

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Jennifer tinha confiado nas palavras de conforto da mãe desde esse dia, e também desenvolvera outras estratégias para atenuar as crises. Relembrava a si própria que lhe restava a opção de pensar ou não pen‑sar na morte. Tentava combater os pensamentos negativos com outros que encontrava ao vasculhar no seu banco de memórias felizes — rindo com amigos de infância, maravilhando‑se com lagos espelhados e com a forma das nuvens, enquanto fazia escalada com o marido nas Rockies, beijando as caras sorridentes dos seus filhos.

Apesar de todo esse esforço, o medo da morte continuava a as‑sombrá‑la e a retirar muito do seu prazer em viver. Já consultara vários terapeutas com muito poucos benefícios. Alguns medicamentos tinham diminuído a intensidade, mas não a frequência, dos ataques. Os terapeu‑tas nunca se focavam no seu medo da morte, porque acreditavam que a morte era um substituto de alguma outra ansiedade. Resolvi não repetir os erros dos terapeutas anteriores. Acredito que se tenham confundido com um sonho poderoso e recorrente que antes a visitara, quando Jen‑nifer tinha cinco anos:

A minha família inteira está na cozinha. Há uma taça de minhocas na mesa e o meu pai obriga‑me a pegar numa mão‑cheia delas, esmagá‑las, e depois beber o leite que delas escorre.

Para cada terapeuta que tinha consultado, a imagem de minhocas esmigalhadas para darem leite sugeria, compreensivelmente, o pénis e o sémen; e cada um deles colocou a possibilidade de abusos sexuais por parte do pai. Também me fiz essa pergunta, mas descartei‑a depois de Jennifer me ter explicado como esta linha de pesquisa tinha levado sem‑pre a terapia na direcção errada. Apesar de o seu pai lhe ter metido muito medo, e de a ter magoado com as suas agressões verbais, nem ela nem as suas irmãs tinham memória de algum abuso sexual.

Nenhum dos anteriores terapeutas havia explorado a gravidade e o significado do seu medo omnipresente da morte. Este erro comum tem uma tradição venerável, as suas raízes estendendo‑se mesmo até à primeira publicação em psicoterapia: os Estudos sobre Histeria, de Freud e Breuer, datado de 1���. Uma leitura cuidada desse texto revela que o medo da morte era constante nas vidas dos pacientes de Freud. A sua

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falha na exploração do medo da morte seria incompreensível se não fos‑sem os seus escritos posteriores, que explicam que a sua teoria das ori‑gem das neuroses baseava‑se na suposição de conflito entre várias forças inconscientes, primitivas e instintivas. A morte não podia desempenhar papel algum na génese das neuroses, escreveu Freud, porque não tem re‑presentação no inconsciente. Justificava a conclusão com dois argumen‑tos: primeiro não temos uma experiência pessoal da morte, e, segundo, não nos é possível contemplar a nossa «não existência».

Apesar de Freud ter escrito com sabedoria sobre a morte num curto, e pouco sistematizado, ensaio («A Nossa Atitude Perante a Mor‑te»), redigido após a I Guerra Mundial, a sua desconsagração da morte nas palavras de Jay Lifton, na teoria psicanalítica, fez com que gera‑ções de terapeutas se afastassem dela em direcção ao que acreditavam ser a sua tradução no inconsciente, particularmente como sinónimo de abandono e castração. Realmente, podíamos argumentar que a ênfase psicanalítica no passado é uma forma de fugir ao futuro e ao confronto com a morte.

Desde o princípio do meu trabalho com Jennifer que embarquei numa exploração explícita dos seus medos da morte. Não houve qual‑quer resistência: estava cheia de vontade de trabalhar e escolhera consul‑tar‑me porque tinha lido o meu texto Psicoterapia Existencial (Existential Psycotherapy) e queria confrontar os factos existenciais da vida. As nossas sessões de terapia concentravam‑se nas suas ideias da morte, memórias e fantasias. Pedi‑lhe que tomasse nota dos seus sonhos e dos seus pensa‑mentos durante um episódio de pânico de morte.

Não tive de esperar muito. Poucas semanas depois teve uma crise grave, após ter visto um filme sobre o período nazi. Estava profunda‑mente abalada pela imprevisibilidade da vida retratada no filme. Reféns inocentes eram arbitrariamente escolhidos e mortos. O perigo estava em todo o lado, ninguém se sentia seguro. Chocou‑a a identificação que fez com a sua casa de infância: perigo resultante dos episódios imprevisíveis de violência do pai, o sentimento de não ter um sítio onde se esconder e a busca incessante de um refúgio, que só encontrava na invisibilidade — ou seja, tentando que não a vissem, dizendo e perguntando o mínimo possível.

Decidiu, como lhe sugeri, revisitar a casa onde passara a sua in‑

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fância e meditou nas campas dos seus pais. Pedir a um paciente para meditar junto de uma campa pode parecer radical, mas em 1��� Freud afirma ter dado essa exacta instrução a um dos seus doentes. Quando Jennifer estava em pé, a olhar de cima a campa do pai, teve acerca dele um pensamento estranho: «Deve ter tanto frio no túmulo...», disse para si mesma.

Discutimos esse pensamento na sessão seguinte. Era como se a sua visão infantil da morte, com todas as componentes irracionais (por exemplo, que os mortos ainda conseguem sentir frio), ainda estivesse presente na sua imaginação, lado a lado com a racionalidade adulta.

Enquanto conduzia para casa, depois dessa sessão, veio‑lhe subita‑mente à cabeça uma música muito na moda quando era criança, e come‑çou a cantá‑la, surpreendida por se lembrar perfeitamente da letra.

Já alguma vez pensaste, quando um carro funerário passa por ti,Que poderás ser o próximo a morrer?Embrulham‑te num grande lençol branco,E enterram‑te lá em baixo a cerca de dois metros de profundidadeMetem‑te dentro de uma grande caixa preta,Tapam‑na com pedras e terra,E tudo corre bem durante uma semana,Mas depois o caixão começa a escorrer!As minhocas rastejam para dentro e rastejam para fora,As minhocas jogam às cartas no teu focinho.Comem‑te os olhos, comem‑te o narizComem a geleia por entre os teus dedos dos pés.Uma enorme minhoca com olhos esbugalhadosRasteja para dentro do teu estômago e sai‑te pelos olhos,O teu estômago fica de um verde viscosoE o pus escorre como se fosse chantili,Que espalhas numa fatia de pão,E é isso que comes quando estás morto.

Enquanto cantava, as memórias começaram a gotejar lentamente, recordações das suas irmãs (Jennifer era a mais nova) a gozarem com ela, sem dó nem piedade, cantando esta canção repetidamente, sem pa‑

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recerem minimamente perturbadas com o seu sofrimento, óbvio e pal‑pável.

Relembrar a canção foi uma epifania para Jennifer, levando‑a a compreender que o sonho recorrente que tinha com o leite das minho‑cas não era sobre sexo mas antes sobre a morte, minhocas de campas, o perigo e a falta de segurança que tinha experimentado em criança. Esse insight — de que mantinha, em animação suspensa, uma visão infantil da morte — abriu novos caminhos para a sua terapia.

• ansiedade de morte encoberta •

Pode ser necessário um verdadeiro detective para desmascarar a ansie‑dade de morte, mas muitas vezes qualquer pessoa, seja em terapia ou não, consegue descobri‑la olhando com cuidado para dentro de si. Pen‑samentos de morte podem infiltrar‑se e permear os seus sonhos, por muito bem escondidos que estejam do seu consciente. Cada pesadelo é um sonho em que a ansiedade de morte escapou do seu curral e ameaça o sonhador.

Os pesadelos despertam quem dorme e retratam a vida do sonha‑dor como se estivesse em risco iminente: correndo com todas as forças para fugir de um assassino, caindo de um lugar altíssimo, escondendo‑se de uma ameaça mortal, mesmo a morrer ou já morto.

A morte surge muitas vezes nos sonhos de forma simbólica. Por exemplo, um homem de meia‑idade com problemas gástricos e preocu‑pações hipocondríacas sobre a possibilidade de ter um cancro no estô‑mago sonhou que estava sentado num avião com a sua família em via‑gem para um resort exótico nas Caraíbas. Depois, na imagem seguinte, viu‑se deitado no chão, dobrado com dores de estômago. Acordou ater‑rorizado e compreendeu instantaneamente o significado do sonho: tinha morrido com um cancro no estômago e a vida continuara sem ele.

Finalmente, há certas situações da vida que quase sempre evo‑

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cam a ansiedade de morte. Por exemplo: uma doença séria, a morte de uma pessoa próxima ou uma imensa ameaça irreversível à nossa segurança mais básica como ser violado, um divórcio, ser despedido ou assaltado. Uma reflexão séria sobre um evento como estes geral‑mente resultará na capacidade de trazer à luz do dia os medos da morte escondidos.

• ansiedade «Por nada» é ansiedade Pela morte •

Há anos, o psicólogo Rollo May deixou cair, na forma de um comen‑tário brilhante, que a ansiedade sobre nada procura desesperadamente tornar‑se numa ansiedade sobre algo. Por outras palavras, a ansiedade sobre nada rapidamente se amarra a um objecto tangível. A história de Susan ilustra a utilidade deste conceito quando um indivíduo reage com uma ansiedade altíssima e desproporcionada a um acontecimento.

A Susan, uma excelente e eficiente contabilista de meia‑idade, consultou‑me em tempos porque tinha conflitos constantes com o pa‑trão. Encontrámo‑nos durante alguns meses, e efectivamente ela deixou o emprego e formou uma empresa extremamente competitiva, que rapi‑damente evoluiu para um projecto de sucesso.

Vários anos mais tarde, quando de repente me telefonou a pedir uma consulta com urgência, quase não consegui reconhecer‑lhe a voz. Habitualmente cheia de vitalidade e autoconfiança, Susan parecia‑me terrivelmente preocupada. Recebi‑a nessa mesma tarde e fiquei alarma‑do com a sua aparência: geralmente calma e vestida com estilo, estava desarranjada e agitada, a cara afogueada, os olhos encarnados de tanto chorar e com uma grande ligadura no pescoço.

Hesitando a cada palavra, contou‑me a sua história: o seu filho George, um jovem responsável e com um bom emprego, estava na prisão por posse de droga. A polícia tinha‑o mandado parar por uma peque‑na infracção, mas encontrara cocaína no seu carro. O teste de uso de

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estupefacientes revelou‑se positivo e, como já estava num programa de recuperação por duas infracções semelhantes, foi condenado a um mês de prisão e a mais doze meses num programa de reabilitação.

Susan não parava de chorar havia quatro dias. Não conseguia dor‑mir ou comer e nem sequer tinha sido capaz de ir trabalhar (pela primei‑ra vez em vinte anos!). Durante a noite era atormentada por visões hor‑rendas do seu filho: bebendo de uma garrafa embrulhada num saco de papel, imundo e com os dentes podres, morrendo na sarjeta. «O George vai morrer na cadeia», disse‑me, e continuou a descrever‑me os esforços que tinha feito para puxar todo e qualquer cordelinho de que se lembra‑va, a fim de tentar tirar o filho da cadeia, e de como isso a tinha deixado desesperada e exausta. Sentia‑se oprimida quando via fotografias dele em bebé, angélico, com cabelos loiros aos caracóis e os olhos cheios de vida, que prometiam um futuro sorridente.

Susan considerava‑se uma pessoa de enormes recursos. Era uma «self‑made woman» que tinha atingido o sucesso, apesar de ser filha de pais dissolutos e pouco afectuosos. Naquela situação, contudo, sentia‑se totalmente sem saída.

«Porque me fez ele isto?», perguntava ela. «É rebeldia, está delibe‑radamente a tentar sabotar os planos que tinha para ele. Que mais pode ser? Não lhe dei tudo — a melhor educação, lições de ténis, piano, cava‑lo? É assim que me paga? A vergonha de tudo isto — imagine se os meus amigos descobrem!» Susan ardia de inveja quando pensava no sucesso dos filhos dos seus amigos.

A primeira coisa que fiz foi relembrá‑la de coisas que parecia já ter esquecido: a visão do filho na sarjeta era irracional. Era ver catástrofes onde não existiam. Assinalei o facto de que, apesar de tudo, o filho estava a fazer bons progressos: participava num programa muito bom de reabi‑litação, em terapia privada com um óptimo conselheiro. A recuperação de uma dependência raramente é um processo simples: recaídas, fre‑quentemente várias recaídas, são inevitáveis e, claro, ela sabia isso. Susan tinha recentemente voltado de uma semana inteira de terapia familiar no centro de recuperação do filho. Além disso, o seu marido não partilhava a intensidade dessas preocupações.

Sabia perfeitamente que a pergunta «porque me fez o George isto?» era irracional e foi a primeira a acenar que sim com a cabeça quando lhe

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disse que era urgente obrigar‑se a abandonar esse cenário dramático. A recaída de George nada tinha a ver com ela.

Evidentemente que qualquer mãe estaria seriamente perturbada e triste com o retorno da droga à vida do filho e pelo facto de estar pre‑so, mas a reacção de Susan parecia mesmo assim excessiva. Comecei a suspeitar de que muita da sua ansiedade tinha sido transferida de uma outra fonte.

Estava particularmente surpreendido com o seu profundo senti‑mento de impotência. Susan sempre se tinha visto como uma mulher com enormes recursos e agora essa visão tinha sido estilhaçada — nada havia que pudesse fazer pelo filho (excepto criar espaço entre a sua vida e a dele).

Mas porque era George o centro da sua vida? Sim, claro que era seu filho, mas o problema não se ficava por aí. George ocupava demasiado espaço dentro dela. Era como se toda a sua vida dependesse do sucesso dele. Argumentei que para muitos pais as crianças representam com fre‑quência um projecto de imortalidade. A ideia interessou‑a. Reconheceu que alimentara a esperança de se conseguir prolongar no futuro através de George, mas agora tinha a certeza de que era importante abandonar essa ideia.

«Ele não é suficientemente resistente para essa missão», disse ela.«Há alguma criança que o seja?», perguntei.«Além disso, o George nunca se candidatou a essa responsabili‑

dade e é por isso que o comportamento dele, e a recaída, nada têm a ver consigo!»

Quando, para o final da sessão, quis saber o que era a ligadura no pescoço, disse‑me que tinha acabado de fazer uma cirurgia plástica para esticar a pele. Enquanto continuava a fazer‑lhe perguntas sobre a opera‑ção, começou a ficar impaciente e esforçou‑se para reconduzir a conver‑sa para George — a razão que a tinha levado a marcar uma consulta.

Mas eu persisti.«Conte‑me mais sobre a decisão de se submeter a uma plástica.»«Bem, detesto o que o envelhecimento tem feito ao meu corpo

— ao meu peito, à minha cara e especialmente ao meu pescoço, que es‑tava com a pele toda descaída. A cirurgia foi o meu presente de anos para mim própria.»

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«Quantos anos fez?»«Um aniversário com um A grande. O número seis‑zero. A sema‑

na passada.»Susan contou‑me como era ter sessenta anos e tomar consciência

de que o tempo estava a acabar (eu falei sobre ter setenta!). E depois resumi:

«A ansiedade que sente é consequência do facto de parte de si sa‑ber perfeitamente que as recaídas ocorrem em quase todos os tratamen‑tos para a toxicodependência. Mas acho que alguma da sua ansiedade vem de outro lado e foi deslocada para o George.»

Incentivado pelos acenos constantes de Susan, continuei: «Acredi‑to que a sua ansiedade é sobre si e não sobre o George. Está relacionada com o facto de ter acabado de fazer sessenta anos, com a tomada de cons‑ciência do seu processo de envelhecimento e sobre a morte. Parece‑me que, a um nível mais profundo, deve estar a colocar algumas questões pertinentes: o que fará com o tempo que lhe resta de vida? O que dará sentido à sua vida, especialmente agora que percebeu que o George não se vai encarregar disso?»

O comportamento de Susan foi mudando gradualmente, da impa‑ciência até ao interesse intenso. «Não tenho pensado muito sobre o enve‑lhecimento e o facto de o tempo estar a acabar. E nunca tinha surgido na nossa sessões anteriores. Mas estou a perceber o que está a dizer.»

No final da hora ela olhou para mim e disse‑me: «Ainda nem co‑mecei a perceber como as suas ideias podem ajudar‑me, mas digo‑lhe isto: captou a minha atenção nestes últimos quinze minutos. Este foi o período mais longo de tempo, nos últimos quatro dias, em que o George não dominou por completo o meu pensamento.»

Marcámos outra sessão para a semana seguinte, bem cedo pela manhã. Ela sabia, pelo trabalho que já tínhamos feito juntos, que as minhas manhãs estavam reservadas para escrever e comentou que eu estava a quebrar a minha rotina. Respondi‑lhe que já andava tudo às avessas, porque ia viajar a maior parte da semana seguinte, para estar no casamento do meu filho.

Querendo contribuir com qualquer coisa que pudesse ser‑lhe útil, à saída acrescentei: «É o segundo casamento do meu filho, Susan, e re‑cordo‑me de ter passado um período bastante negro aquando do seu

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divórcio — é horrível sentirmo‑nos impotentes como pais. Por isso sei, por experiência própria, o quão mal se tem sentido. O desejo de ajudar os nossos filhos está integrado nos nossos circuitos internos mais bási‑cos.»

Nas duas semanas seguintes demos muito menos importância ao George e muito mais à sua própria vida. A ansiedade sobre o filho di‑minuiu drasticamente. O terapeuta dele sugerira (e eu concordei) que seria melhor para os dois se suspendessem o contacto durante algumas semanas. Ela queria saber mais sobre o medo da morte e como a maio‑ria das pessoas lidava com ele, e eu partilhei com Susan muitos dos meus pensamentos sobre a ansiedade de morte descritos nestas pági‑nas. Na quarta semana deu‑me conta de ter voltado a sentir‑se mais ela e marcámos uma consulta de seguimento para umas quantas semanas mais tarde.

Nessa sessão final, quando lhe perguntei o que a tinha ajudado mais no nosso trabalho em conjunto, Susan fez questão de distinguir entre as ideias que eu lhe tinha sugerido e a importância da relação de significado que tinha comigo.

«A coisa mais valiosa», disse ela, «foi o que me contou sobre o seu filho. Fiquei muito tocada por me ter tentado ajudar dessa maneira. As outras coisas em que nos tínhamos centrado — a maneira como deslo‑quei os meus medos sobre a minha própria vida e morte para o George — captaram definitivamente a minha atenção. Acredito que acertou na mouche… Mas algumas ideias — por exemplo, aquelas que adaptou de Epicuro — eram muito… hã… intelectuais e não consigo dizer‑lhe o quanto realmente me ajudaram. Contudo, não há dúvida de que algo aconteceu nos nossos encontros que foi muito eficaz.»

A dicotomia que fez entre as ideias e conexões é o ponto fulcral (ver Capítulo �). Por muito que as ideias ajudem, o que lhes optimiza a força e vitalidade é a conectividade íntima que se cria com a outra pessoa.

Mais tarde nessa sessão, Susan fez uma declaração surpreendente sobre as mudanças significativas que ia fazer na sua vida.

«Um dos meus maiores problemas é que estou demasiado enclau‑surada no meu trabalho. Sou contabilista oficial há demasiados anos, na verdade a maior parte da minha vida adulta, e estive a pensar como isso não encaixa lá muito bem comigo. Sou uma extrovertida numa pro‑

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fissão introvertida. Adoro falar com pessoas, estabelecer ligações. E ser contabilista é demasiado monástico. Preciso de mudar de emprego e nas últimas semanas o meu marido e eu temos conversado muito a sério sobre o nosso futuro. Ainda tenho tempo para outra carreira. Detestaria ficar velhinha e olhar para trás aperceber‑me de que nem sequer cheguei a tentar fazer outra coisa.»

Acabou por me contar que ela e o marido tinham no passado e falado a brincar sobre o sonho conjunto de comprarem um pequeno hotel perto de Nappa Valley. Agora, subitamente, começaram a falar a sério e tinham passado o último fim‑de‑semana a procurar uma casa com terreno para adquirirem.

Mais ou menos seis meses mais tarde recebi um recado de Susan escrito na parte de trás de uma fotografia de uma pousada encantadora em Nappa Valley, convidando‑me para que os fosse visitar. «A primeira noite é por conta da casa!», dizia.

A história de Susan ilustra vários pontos. Primeiro, a sua ansie‑dade desproporcionada. Claro que estava perturbada por o filho estar preso. Que pais não estariam? Mas Susan reagia catastroficamente. Ain‑da por cima, o filho já tinha problemas de dependência há vários anos e já sofrera outras recaídas. Eu fiz uma suposição fundamentada quando observei a ligadura no pescoço, a prova da sua cirurgia plástica. Contu‑do, o risco de errar era pequeno visto que não há quem com a sua idade não se preocupe com o envelhecimento. A sua cirurgia e o «marco» dos seus sessenta anos tinham acordado muitas das ansiedades de morte que estavam mascaradas e deslocadas para o filho. Na nossa terapia ajudei‑a a tornar consciente a verdadeira origem da ansiedade e procurei ajudar a confrontá‑la.

Susan sofreu um abanão à medida que foi percebendo o que real‑mente se passava dentro de si: que o seu corpo estava a ficar velho, que o seu filho representava o seu projecto de imortalidade e que tinha um poder muito limitado, tanto para o ajudar como para impedir o enve‑lhecimento. No final de contas, a súbita consciência de que se limitava a acumular uma montanha de arrependimentos e amarguras levou‑a a fazer mudanças radicais.

Este é o primeiro de vários exemplos que vou apresentar para de‑monstrar que podemos fazer mais do que apenas reduzir a ansiedade de

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morte. A consciência da morte pode servir como uma experiência que desperta, ser um catalisador importante para provocar alterações essen‑ciais na nossa maneira de viver.

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caPítulo 3

• A experiênciA •do despertAr

Uma das personagens mais conhecidas da literatura é Ebenezer Scrooge, o ambicioso, solitário e mal encarado velho de Um Con‑

to de Natal, de Charles Dickens. Apesar do seu passado negro, algo acontece a Ebenezer Scrooge no final da história — uma extraordi‑nária transformação: a sua gélida fisionomia derrete‑se e Scrooge torna‑se caloroso, generoso e ávido por ajudar os seus sócios e traba‑lhadores.

O que aconteceu? O que terá inflamado a transformação de Scroo‑ge? Não foi a sua consciência, nem o contágio da alegria natalícia. O velhinho foi sujeito a uma forma de terapia existencial de choque ou, como farei referência neste livro, a uma experiência do despertar. O Fan‑tasma do Futuro (o Espírito do Natal que Ainda Está para Vir...) visita Scrooge e assusta‑o, mostrando‑lhe uma visão do seu futuro. Scrooge observa o seu corpo abandonado, vê estranhos a leiloar os seus pertences (até o pijama e os lençóis da cama) e escuta membros da comunidade a discutirem a sua morte com toda a leviandade. Como se não chegas‑se, o Fantasma do Futuro escolta ainda Scrooge ao cemitério, onde este contempla a sua lápide, passa os dedos pelas letras do seu nome e nesse momento experiencia uma transformação. Na cena seguinte, o velhinho é já uma pessoa nova e compassiva.

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Outros exemplos de experiências do despertar — um confronto com a morte que enriquece a vida — abundam na grande literatura e no cinema. Pierre, o protagonista do épico de Tolstoi, Guerra e Paz, enfren‑ta uma morte por fuzilamento, acabando por ser poupado no último momento, mas apenas depois de ter visto vários dos seus homens serem assassinados à sua frente. Sendo uma alma perdida antes deste aconte‑cimento, Pierre muda completamente e passa a viver com propósito e entusiasmo durante o resto do livro (na vida real, também Dostoievski foi perdoado no último momento, e a sua vida, em consequência, sofreu transformações similares).

Muito antes de Tolstoi, pensadores bem mais antigos, aliás desde o começo da palavra escrita, têm‑nos relembrado a interdependência entre a vida e a morte. Os estóicos (por exemplo Crisipo, Zeno, Cícero e Marco Aurélio) ensinaram‑nos que aprender a viver bem é aprender a morrer bem e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Cícero disse que «filosofar é preparar‑nos para a morte». Santo Agostinho escreveu: «É somente em face da morte que o ser do homem nasce.» Muitos monges dos tempos medievais guardavam uma caveira humana nas suas celas, para facilitar a concentração do pensa‑mento na mortalidade e nas lições que dela advêm para a conduta no seu dia‑a‑dia. Montaigne, por seu lado, sugere que um escritório deve estar sempre localizado num sítio de onde se tenha vista para um cemi‑tério, de modo a desafiar o intelecto. Desta maneira e de muitas outras, grandes professores ao longo dos séculos foram recordando que, ape‑sar de fisicamente a morte nos destruir, a ideia da morte salva‑nos.

Vamos examinar esta ideia mais de perto. Salva‑nos? Do quê? E como pode a ideia da morte salvar‑nos?

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se preocuparem muito menos com a rejeição. Um dos meus pacientes comentou, com ironia, que «o cancro cura a psiconeurose», enquanto outro confessou‑me: «Que pena ter tido de esperar até o meu corpo estar despedaçado pelo cancro para aprender a viver...!»

• desPertar no fim da Vida: •iVan ilych, de tolstoi

Em A Morte de Ivan Ilych, de Tolstoi, o protagonista — um homem de meia‑idade, um arrogante burocrata, completamente egocêntrico — descobre que sofre de uma doença fatal no estômago e está a morrer, com dores insuportáveis. À medida que a morte se aproxima, Ivan Ilych entende que durante toda a sua vida tem‑se defendido da ideia de morte, usando como escudo as suas preocupações com o prestígio, a aparência e o dinheiro. Fica então furioso com toda a gente à sua volta, que insiste em perpetuar a negação e a falsidade, oferecendo‑lhe esperanças vãs de cura.

Depois, após um diálogo espantoso com o lado mais profundo de si mesmo, desperta num momento de grande clarividência para o facto de que está a morrer mal porque viveu mal. Toda a sua vida tem sido um erro. Ao esconder‑se da morte escondeu‑se também da vida. Compara a sua existência à experiência que frequentemente tinha quando viajava de comboio e tinha a impressão de que estava a andar para a frente, quando na realidade recuava. Resumindo, toma consciência de ser.

Mesmo à velocidade a que a morte se aproxima, Ivan Ilych percebe que ainda há tempo. Percebe que não é só ele que vai morrer, mas que, como ele, também todos os outros seres vivos terão o mesmo final. Des‑cobre a compaixão — um sentimento que nunca experimentara antes. Sente carinho pelos outros: para com o seu jovem filho que lhe beija a mão; para com o criado que cuida dele com toda a naturalidade e aten‑ção; e até, pela primeira vez, para com sua jovem mulher. Sente pena de‑

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les, pelo sofrimento que lhes tem infligido, e por fim morre, mas, em lu‑gar de sufocado pela agonia, com a alegria de uma intensa compaixão.

A história de Tolstoi não é apenas uma obra‑prima literária, como também uma poderosa lição, de leitura obrigatória, para aqueles que procuram aprender as melhores formas de oferecer conforto a quem está às portas da morte.

Se esta consciência de ser leva a mudanças pessoais tão importan‑tes, então como será que se muda do modo do dia‑a‑dia, ou modo comum, para um modo de estar mais estimulante da transformação? Não basta de‑sejar que assim seja, nem sequer sofrer em silêncio, cerrando os dentes com mais força. Habitualmente é necessária uma experiência dramática ou irreversível para despertar uma pessoa e levá‑la a saltar para fora do modo comum, aterrando no modo ontológico. É a isto que chamo a ex‑periência do despertar.

Mas onde estão as experiências do despertar, no nosso dia‑a‑dia, para aqueles que não enfrentam um cancro terminal, um esquadrão de fuzilamento ou uma visita do Fantasma do Futuro? Pelo que me diz a experiência, os maiores catalisadores são os eventos mais dramáticos:

Sofrimento da perda de alguém amadoDoenças que ameaçam a vida.O fim de uma relação íntima.Algum marco importante, como um aniversário (os cinquenta, sessenta, setenta e por diante).Catástrofes traumáticos, como um incêndio, uma violação, um as‑salto.Os filhos a sair de casa (o ninho vazio).Perder o emprego ou uma mudança de carreira.A reforma.Mudar para uma casa de repouso.Sonhos poderosos, que trazem mensagens da parte mais profunda do nosso Eu, também podem servir como experiências do des‑pertar.

Cada uma das próximas histórias, colhidas a partir da minha prá‑tica clínica, ilustram diferentes formas de «despertar». Todas as técnicas

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que utilizo com os meus pacientes são acessíveis a qualquer um: pode modificar cada uma delas e usá‑las não só para se conhecer melhor a si mesmo como para prestar ajuda às pessoas de quem gosta.

• dor como exPeriência do desPertar •

Dor e perda podem despertar‑nos, tornando‑nos mais conscientes da nossa existência — como aconteceu com Alice, uma viúva recente que se viu obrigada a lidar com a dor do luto e com o trauma de uma mudança para um lar; com Júlia, cujo sofrimento, devido à morte de uma amiga, trouxe à superfície a sua própria ansiedade de morte; ou com James, que enterrou a dor da morte do seu irmão durante anos.

transitoriedade para sempre: Alice

Fui o terapeuta de Alice durante muito tempo. Quanto tempo? Agar‑rem‑se às cadeiras os leitores mais jovens, que só ouviram falar do mo‑delo de terapia breve. Trabalhei com ela durante trinta anos!

Não foram trinta anos consecutivos (embora queira deixar expres‑so que algumas pessoas precisam mesmo desse apoio constante). A Alice — que, em parceria com o seu marido, Albert, era proprietária de uma loja de instrumentos musicais — telefonou‑me pela primeira vez aos cinquenta anos, devido a um conflito crescente com o filho, a que se so‑mavam confrontos com alguns amigos e clientes. A partir daí encontrá‑mo‑nos em terapia individual durante dois anos e depois em terapia de grupo durante outros três. Apesar de ter melhorado consideravelmente, voltou a estar comigo várias vezes nos vinte e cinco anos seguintes para lidar com situações de crise pontuais. A minha última sessão com ela aconteceu quando a visitei em casa, já acamada, pouco tempo antes da sua morte, tinha ela oitenta e quatro anos. Alice ensinou‑me muito, es‑

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pecialmente sobre as fases de maior stresse por que todos passamos na segunda metade da vida.

Este último episódio ocorreu durante a última fase da terapia, que se iniciou quando Alice tinha setenta e cinco anos e que se prolongou pelos quatro anos seguintes. Telefonou a pedir‑me ajuda quando o ma‑rido foi diagnosticado com a doença de Alzheimer. Precisava de apoio — há poucas coisas mais terríveis do que testemunhar a gradual e cruel deterioração da mente de um parceiro de toda a vida.

Alice sofreu enquanto o seu marido passava por todas as eta‑pas: primeiro a perda radical de memória a curto prazo, com chaves e malas perdidas; depois e o esquecimento de onde tinha deixado o carro, obrigando‑a a procurar o veículo pela cidade inteira; depois a fase em que deixou de saber quem era e onde vivia, chegando a ser preciso a polícia escoltá‑lo a casa; de seguida a deterioração da sua higiene pessoal, com uma passagem drástica à alienação do mundo e da mulher, acompanhada por uma ausência total de empatia. O horror final chegou quando o seu marido de mais de cinquenta anos deixou de a reconhecer.

Após a morte de Albert virámos as nossas atenções para o luto e particularmente para a tensão que Alice sentia entre a dor e o alívio — a dor por ter perdido Albert, que conhecia e amava desde que eram ado‑lescentes, e alivio por se ter libertado do trabalho, duríssimo e a tempo inteiro, que implicava tomar conta do estranho em que Albert se tinha tornado.

Dias depois do funeral, quando os seus amigos e familiares já ti‑nham voltado às suas vidas preenchidas e Alice teve de enfrentar uma casa vazia, um novo medo surgiu: começou a ficar aterrorizada com a ideia de que alguém poderia assaltar a casa durante a noite e fazer‑lhe mal. Exteriormente nada tinha mudado — o seu bairro de classe mé‑dia era tão estável e seguro como sempre fora. Tinha vizinhos que eram muito mais do que simples conhecidos, um deles até era polícia. Talvez Alice se tenha sentido desprotegida pela ausência do marido. Apesar de racionalmente saber perfeitamente que ele estava há anos fisicamente incapaz de a defender, a verdade é que a sua simples presença continuava a dar‑lhe um sentimento de protecção. Mas, certo dia, foi um sonho que veio permitir‑lhe compreender a origem do seu terror.

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Estou sentada à beira de uma piscina com as pernas dentro de água e começo a sentir‑me esquisita, porque há folhas grandes que vêm na minha di‑recção por baixo da água. Consigo senti‑las a roçar nas minhas pernas — ugh‑hh… só pensar nelas me arrepia. São pretas, grandes e ovais. Tento mover os meus pés para criar ondas que as empurrem para trás, mas estão presos por sacos de areia. Ou talvez sejam sacos de cal.

«Foi aí que entrei em pânico. Acordei aos gritos. Durante horas procurei não adormecer para não voltar ao sonho», contou‑me ela. Uma das associações iluminou o seu significado. «Sacos de cal? O que será que significarão?», perguntei.

«Enterro», respondeu‑me. «Não era cal que lançavam para dentro das valas comuns no Iraque? E também em Londres, durante a peste negra?»

Tornava‑se claro que o estranho que receava que lhe entrasse em casa era a morte. A sua morte. A ausência do marido tinha‑a deixado exposta à sua própria morte.

«Se ele pode morrer», disse‑me ela, «então eu também posso. Também eu vou partir.»

Vários meses após a morte do marido, Alice decidiu mudar‑se daquela que era a sua casa há mais de quarenta anos, para um lar que oferecia ajuda médica e a assistência de que necessitava para manter sob vigilância a sua hipertensão grave e a perda progressiva da visão, provo‑cada por uma degeneração macular.

Tomada a decisão, ficou progressivamente preocupada com o des‑tino que ia dar aos seus bens. Não existia mais nada na sua mente. Mu‑dar‑se de uma casa grande e cheia de mobília, para não falar na colecção de instrumentos antigos, para um pequeno apartamento obrigava‑a a desfazer‑se de grande parte das suas coisas. O seu único filho, um via‑jante que trabalhava na Dinamarca e vivia num apartamento minúsculo, não tinha espaço para as coisas da mãe. De todas as escolhas penosas que teve de fazer, a mais difícil foi decidir que destino dar aos instrumentos musicais que ela e Albert haviam coleccionado juntos. Frequentemente, na quietude e solidão do seu dia‑a‑dia, conseguia ouvir uns acordes‑fan‑tasmas do seu avô a tocar Paolo Testore num violoncelo de 1��1, ou do marido a dedilhar a harpa inglesa, datada de 1���, que adorava. Havia

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ainda a concertina e o gira‑discos que os seus pais lhes tinham oferecido como presente de casamento.

Cada item em sua casa era um poço de memórias, cuja proprieda‑de lhe estava agora entregue. Confidenciou‑me que a angustiava a certe‑za de que todas aquelas coisas iam ser dispersas por estranhos que nunca conheceriam a sua verdadeira história, para não falar no facto de ser im‑possível que gostassem delas tanto como ela. Estava também consciente de que eventualmente a sua própria morte iria finalmente apagar todas as memórias fabulosas associadas à harpa, ao violoncelo, às flautas, aos assobios e a tudo o resto. O seu passado desvanecer‑se‑ia.

O dia da mudança de Alice aproximava‑se de forma cada vez mais ameaçadora. Peça a peça, a mobília e os bens que não podia guardar desapareceram — vendidos ou oferecidos a amigos ou a estranhos. En‑quanto a casa ficava cada vez mais vazia, o pânico provocado pela mu‑dança aumentava.

Particularmente chocante foi o seu último dia em casa. Como os novos donos propunham levar a cabo remodelações profundas, tinham insistido em que o espaço ficasse totalmente vazio. Enquanto Alice olha‑va para as estantes a serem arrancadas da parede, sentiu um choque: a tinta escondida pelo armário era de um azul berrante. Azul!! De repente Alice lembrou‑se claramente daquele exacto tom de azul: quarenta anos antes, quando se tinha mudado para aquela casa, as paredes eram azuis. Pela primeira vez em todo esse tempo voltou a recordar‑se da fisionomia da mulher que lhe tinha vendido a moradia, a cara angustiada da viúva triste que, como ela, também sofria por deixar o sítio onde habitara du‑rante anos. Agora era Alice a viúva, também triste, a sentir exactamente o mesmo desespero, e pela mesma razão.

A vida é como uma procissão que vai passando, indiferente a quem olha de fora, disse a si mesma. Claro que soubera sempre que tudo era efémero. Não tinha ela participado numa semana de meditação, onde a palavra na língua pali para transiência era anicca, cantada interminavel‑mente? Mas nisto, como em todas as coisas, há uma enorme diferença entre teoria e experiência própria.

Agora Alice dava‑se conta de que a sua vida também era transitó‑ria e a passagem por aquela casa igual à de tantas outras pessoas, antes e depois dela. A casa também era transiente e um dia desapareceria para

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dar lugar a outra casa ou, quem sabe, a um prédio de vários andares. O processo de abdicar das suas posses e de se mudar funcionou como uma experiência do despertar para Alice, que se camuflara com aquela ilusão quente e confortável de uma vida ricamente mobilada e atapetada. Aprendera, à sua custa, que essa realidade almofadada tinha‑a protegido da rudeza da existência.

Na sessão seguinte li‑lhe alto uma passagem relevante de Anna Kare‑nina, de Tolstoi, em que o marido de Anna, Alexey Alexandrovitch, toma consciência de que a sua mulher, Anna, vai mesmo deixá‑lo: «Alexey ex‑perimenta agora um sentimento parecido com o de um homem que, en‑quanto atravessa calmamente uma ponte, de repente percebe que está par‑tida e que por baixo dos seus pés só existe um abismo. Esse abismo é a vida real e a ponte a vida artificial em que Alexey Alexandrovitch se fechara.»

Alice também olhou o nada, lá em baixo, de cima de um andaime instável. A citação do Tolstoi ajudou‑a, em parte porque afinal aquilo que sentia já tinha nome e daí retirava algum conforto e também por‑que suscitava implicações na nossa relação — afinal, a minha dedicação levara‑me a perder tempo à procura da citação que poderia aliviar a sua dor, e ainda por cima continha, e ela sabia‑o, um dos meus excertos fa‑voritos de Tolstoi.

A história de Alice introduz várias ideias que voltarão a surgir noutras partes do livro. A morte do marido provocou o aparecimento da sua própria ansiedade de morte. Primeiro foi exteriorizada sob a forma do medo de um assaltante; depois tornou‑se num pesadelo; e finalmen‑te, mais abertamente, no trabalho do luto com a consciência de que «se ele pode morrer, eu também posso». Todas estas experiências, a que se somou o facto de perder muitas das suas preciosas memórias e magnífi‑cos bens, levaram‑na a mergulhar no modo ontológico, que acabou por a conduzir a mudanças pessoais significativas.

Os pais de Alice há muito tinham morrido e o desaparecimento do seu parceiro obrigou‑a a este confronto com a sua própria fragilida‑de. Agora já não havia alguém entre ela e a campa. Mas esta experiência não é, de modo algum, fora do comum. Como enfatizarei várias vezes nestas páginas, um sintoma habitual do luto, mas que frequentemente passa despercebido, é o do confronto do sobrevivente com a sua própria morte.

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Um final inesperado. Quando chegou ao momento de partir de‑finitivamente, preparei‑me: estava preocupado com a possibilidade de Alice poder ser profunda e irreversivelmente conquistada pelo desespe‑ro. Contudo, dois dias após a mudança entrou no meu consultório com um ar muito mais leve, quase alegre, sentou‑se e deixou‑me estupefacto com a sua primeira frase.

«Estou feliz!», disse ela.Conhecia‑a há anos e Alice nunca tinha começado uma sessão

dessa maneira. Quais seriam as razões daquela euforia? (ensino sem‑pre aos meus alunos que compreender os factores que fazem com que o cliente se sinta melhor é tão importante como entender aqueles que os fazem sentir‑se pior.)

A sua felicidade residia no passado distante. Alice crescera num orfanato e sempre partilhara um quarto com outras crianças; depois ca‑sara novíssima, mudara‑se para casa do marido e durante toda a sua vida tinha desejado um quarto só para si. Quando adolescente fora profunda‑mente tocada por Um Quarto só Nosso, de Virgínia Woolf. O que agora a deixava feliz, confessou‑me, é que finalmente, aos oitenta anos, recebia um quarto só para si.

Mais do que isso, também sentia que lhe tinha sido dada uma ines‑perada oportunidade de repetir uma etapa da sua vida — de solteira, de viver sozinha, só ela — e, desta vez, acertar em tudo: podia permitir‑se, finalmente, a ser livre e autónoma. Só alguém que a conhecesse intima‑mente, e conhecesse bem o seu passado e as suas frustrações infantis, pode compreender este final, em que o inconsciente histórico‑pessoal vence as preocupações existenciais.

Outro factor importante para a sua recuperação foi exacta‑mente esse sentimento de libertação. Deixar para trás toda a mo‑bília, embora representasse uma grande perda, era igualmente um imenso alívio. As suas muitas posses eram preciosas, mas a verdade é que arrastavam consigo o peso de tantas e tantas memórias, pelo que deixá‑las era como sair de um casulo; livre dos fantasmas e dos destroços do passado, tinha agora um quarto novo, uma nova pele, uma oportunidade de outro começo. Aos oitenta anos possuía uma nova vida pela frente.

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Ansiedade de morte disfarçada: Júlia

Júlia é uma terapeuta inglesa de quarenta e nove anos, que agora vive em Massachusetts, que me solicitou uma consulta enquanto esteve duas semanas na Califórnia. Procurava ajuda para resolver um problema que, até ali, tinha resistido a prévias terapias.

Após a morte de uma amiga muito próxima, que já acontecera dois anos antes, Júlia continuava incapaz de superar a sua perda, tendo desenvolvido uma série de sintomas que interferiam seriamente na sua felicidade. Tornara‑se gravemente hipocondríaca: qualquer dor no corpo deixava‑a nervosa e precipitava‑se imediatamente a ligar para o médi‑co. Mais do que isso, sentia‑se demasiado receosa para continuar muitas das actividades que até aí fazia alegremente — patinagem no gelo, esqui, mergulho — ou, na realidade, qualquer coisa que lhe parecesse acarretar o mais ligeiro risco. Até se sentia desconfortável a conduzir e recorria a um Valium antes de se meter num avião. Parecia óbvio que a morte da sua amiga tinha desespoletado a sua ansiedade de morte.

Investigando o historial das suas ideias acerca da morte, e aprofun‑dando com ela, de um modo muito directo, as suas convicções sobre a vida, percebi que, como para muito de nós, Júlia encontrara a morte pela primeira vez, ainda enquanto criança, quando descobriu pássaros e insec‑tos mortos, mas sobretudo com o enterro dos avós. Não tinha memória da primeira vez que tomara consciência da inevitabilidade da sua própria morte, mas lembrava‑se de que durante a adolescência se tinha permiti‑do, por uma ou duas vezes, pensar sobre ela: «Era como ter um alçapão que podia abrir‑se de repente por baixo dos meus pés, deixando‑me cair para sempre na escuridão. Acho que decidi nunca mais lá voltar.»

«Júlia», disse‑lhe, «deixe‑me colocar‑lhe uma pergunta muito sim‑ples: porque a morte é tão aterrorizadora? O que especificamente a as‑suta na morte?»

Júlia respondeu de chofre: «Por tudo o que não terei feito!»«Como assim?»«Para que entenda vou precisar de contar‑lhe um pouco mais sobre

a minha história como artista. A minha primeira identidade era a de ar‑tista. Toda a gente, todos os meus professores, dizia‑me que possuía um

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enorme talento. Mas apesar de me ter tornado bastante conhecida du‑rante a juventude, quando decidi seguir psicologia pus a arte de lado.»

Corrigiu‑se imediatamente: «Não, não é bem assim. Não parei completamente. Frequentemente começo a desenhar ou a pintar, mas nunca acabo. Começo e depois arrumo numa gaveta, que aliás, tal como o meu armário, está cheia de trabalhos por terminar.»

«Mas porquê? Se ama a pintura e começa os projectos, o que a impede de os acabar?»

«Dinheiro. Sou uma pessoa muito ocupada e tenho um trabalho muito preenchido com a prática terapêutica.»

«Quanto ganha? De quanto precisa para viver bem?»«Pois, a maior parte das pessoas consideraria que é bastante, mais

do que suficiente. Vejo doentes pelo menos quarenta horas por semana, às vezes mais. Mas tenho de pagar as propinas exorbitantes das escolas privadas dos meus dois filhos.»

«E o seu marido? Disse‑me que também era terapeuta. Trabalha tanto e ganha tanto como a Júlia?»

«Vê a mesma quantidade de doentes, às vezes mais, e ganha mais — muitas das suas horas são empregues em testes neuropsicológicos, que são caros.»

«Dá‑me ideia de que, entre os dois, têm mais dinheiro do que pre‑cisam. Contudo, diz‑me que é o dinheiro que a impede de prosseguir a sua arte?»

«Bem, é o dinheiro, mas de uma maneira estranha. O meu mari‑do e eu fomos sempre muito competitivos, constantemente a comparar quem conseguia fazer mais dinheiro. Não é abertamente, nem é bem uma corrida, mas sei que temos essa guerra sempre presente.»

«Bem, deixe‑me colocar‑lhe uma outra pergunta. Vamos supor que uma cliente entra no seu consultório e lhe diz que era a feliz deten‑tora de um enorme talento e que precisava de se exprimir criativamente, mas que não podia fazê‑lo porque estava a competir com o marido, para ver quem ganha mais dinheiro — dinheiro de que nenhum precisa. O que lhe diria?»

Ainda consigo ouvir a resposta de Júlia, com o seu sotaque britâ‑nico, que lhe saiu de imediato: «Dizia‑lhe que estava a viver uma vida completamente absurda!»

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A resposta estava dada. Na terapia, Júlia procurava ajuda para en‑contrar uma forma de ter uma vida menos absurda. Explorámos a razão de ser da competitividade na sua relação matrimonial e o significado de todos os quadros meio acabados, fechados nas suas gavetas e armários. Considerámos, por exemplo, se ao procurar um destino alternativo es‑tava a tentar combater a ideia de um caminho directo do nascimento até à morte. Ou se, pelo contrário, retirava benefícios secundários do facto de não terminar os trabalhos artísticos, porque assim não era obrigada a testar os limites do seu talento. Talvez estivesse a querer alimentar a ilusão de que podia ter feito grandes coisas se o tivesse desejado, que poderia ser uma artista de renome, se assim o quisesse. Talvez nenhuma das suas peças chegasse ao nível que exigia de si própria, e assim evitava ter de concluir isso mesmo...

Júlia ficou especialmente pensativa com esta última sugestão. Inte‑riormente estava insatisfeita consigo própria e regia‑se por uma máxima que tinha lido no quadro da escola, quando tinha apenas oito anos, mas que memorizara como regra de vida:

Bom, melhor, excelenteNunca, nunca desistasAté o bom se tornar melhorE o melhor, excelente.

A história de Júlia é outro exemplo da forma como a ansiedade de morte se manifesta disfarçadamente. Júlia chegou à terapia com uma vasta lista de sintomas que eram apenas um disfarce para a ansiedade de morte. Além disso, como no caso de Alice, os sintomas surgiram depois da morte de alguém chegado, um evento que serviu como uma experiên‑cia do despertar. A terapia progrediu rapidamente: em apenas algumas sessões, a sua tristeza e o seu comportamento medroso foram resolvidos e começou a lutar abertamente contra os impulsos que a levavam a uma existência indesejada.

«O que realmente lhe causa medo na morte?» é uma pergunta que faço frequentemente aos meus clientes, provocando respostas varia‑das que geralmente aceleram o trabalho da terapia. A resposta da Júlia, « Todas as coisas que não terei feito», aponta para um tema de grande

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importância para muitos que ponderam ou enfrentam a morte: a correla‑ção positiva entre o medo de morrer e a sensação de uma vida não vivida.

Por outras palavras, quanto menos vivida é uma vida, maior a an‑siedade de morte. Quanto mais alguém sente que falha os seus sonhos, mais medo terá da morte. Nietzsche expressava esta ideia em dois pe‑quenos epigramas: «Realize a sua vida» e «Morra na Altura Certa» — tal como Zorba, o Grego quando dizia «À morte, não deixem mais do que um castelo queimado» e Sartre, na sua autobiografia: «Ia silenciosamente para o meu fim… certo de que a última batida do meu coração estaria inscrita na última página do meu trabalho, e que a morte só estaria a levar com ela um homem morto.»

A sombra da morte de um irmão: James

James, que aos quarenta e seis anos trabalhava num escritório de advoca‑cia como auxiliar, chegou à terapia por inúmeras razões: detestava o seu trabalho, sentia‑se irrequieto, sem estabilidade, bebia excessivamente e não tinha qualquer ligação íntima, à parte uma turbulenta relação com a mulher. Na nossa primeira sessão não consegui discernir, entre uma pletora de problemas — interpessoais, ocupacionais, maritais e de de‑pendência alcoólica —, qualquer preocupação com questões existenciais como a mortalidade.

Contudo, pouco depois, questões mais profundas começaram a surgir. Primeiro notei que, sempre que tentava explorar o seu isolamento em relação aos outros, acabávamos no mesmo ponto: a morte do seu ir‑mão Eduardo. Ele tinha morrido num acidente de automóvel, aos dezoi‑to anos, e nessa altura James acabara de completar dezasseis. Dois anos mais tarde James deixou o México, onde a família vivia, para frequentar uma universidade nos Estados Unidos e desde então visitava a sua terra de origem apenas uma vez por ano: apanhava um avião para Oaxaca, em Novembro, em memória do seu irmão, para ali celebrar o Dia dos Defuntos, o Dia de los Muertos.

Um outro pormenor chamou a minha atenção, porque se repetia em todas as sessões: o tema da nossa origem e do nosso fim. James era fanático pela escatologia, que se preocupa com o fim do mundo, e o seu

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livro favorito, que praticamente memorizara, era o Livro da Revelação. A origem do mundo também o fascinava, particularmente os textos da antiga Suméria, que do seu ponto de vista diziam que a Humanidade tinha origem nos extraterrestres.

Eu sentia as maiores dificuldades em lidar com estes assuntos. An‑tes de mais, não conseguia ter acesso ao sofrimento que James sentia pelo seu irmão — a sua resposta emocional à morte de Eduardo estava envolta em amnésia. O enterro? James só se lembrava de uma coisa: era a única pessoa que não chorava. Reagiu à morte como se estivesse a ler a notícia no jornal e tudo se passasse com uma outra família que não a dele. Mesmo na missa dos defuntos tinha a impressão de que o seu corpo estava presente, mas não a sua mente nem o seu espírito.

Ansiedade de morte? Não era assunto para James, que dizia que não achava a morte ameaçadora. De facto, considerava‑a um evento po‑sitivo e encarava‑o com prazer, sabendo que o levaria a reunir‑se com a sua família.

Explorei as suas crenças paranormais de vários ângulos, tentando sempre não revelar o meu extremo cepticismo ou acordar as suas defesas. A minha estratégia era evitar o conteúdo (por exemplo, os argumentos a favor ou contra os relatos de extraterrestres, ou de OVNI) e concentrar‑me em apenas duas coisas: o significado psicológico daquele seu interesse e a sua epistemologia — ou seja, a descoberta de como ele sabia o que sabia (que fontes usava e o que constituía, para ele, «provas suficientes»).

Pensava alto porque é que James, apesar de uma educação exce‑lente, numa universidade reputada, optava por ignorar os métodos de investigação académicos nesta matéria. Que compensação recebia ao abraçar o esoterismo e essas crenças sobrenaturais? Ideias que, a meu ver, só lhe faziam mal, porque aumentavam o seu isolamento, já que ain‑da por cima não tinha a coragem de partilhá‑las com os seus amigos, com receio de que pudessem rotulá‑lo de bizarro.

Todos os meus esforços tiveram pouco ou nenhum efeito e a te‑rapia rapidamente estagnou. James estava irrequieto durante as nossas sessões e impaciente com a terapia, iniciando habitualmente cada uma com comentários irónicos do género: «Quanto tempo mais é que esta terapia vai durar, doutor?» ou «Será que este vai ser um daqueles casos que mantêm a caixa registadora a tilintar?»

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Mas, finalmente, numa das sessões contou‑me um sonho pode‑roso que mudou tudo. Apesar de já o ter sonhado vários dias antes da sessão, mantinha‑se presente na sua cabeça com uma lucidez sobrena‑tural:

Estou num funeral. Alguém está deitado na mesa. O padre fala sobre técnicas de embalsamamento. As pessoas passam em fila pelo corpo, eu estou aí e sei que o corpo foi muito retocado. Avanço. O meu olhar vai primeiro para os pés, depois para as pernas, e os meus olhos seguem o corpo inteiro. A mão direita está ligada. De repente reparo na cara e compreendo que é o meu irmão, o Eduardo. Engasgo‑me e começo a chorar. Os meus sentimentos estão dividi‑dos: primeiro tristeza e depois consolo, porque a cara dele está perfeita e tem um bronzeado fantástico. «O Eduardo está com boa cara», penso. E, quando chego ao nível dos seus ouvidos, debruço‑me e murmuro: «Estás com bom aspecto, Eduardo.» Depois volto para o meu lugar ao lado da minha irmã, viro‑me para ela e digo‑lhe: «Ele está bonito!» No fim do sonho sento‑me so‑zinho no quarto do Eduardo e começo a ler o seu livro sobre avistamentos de OVNI em Roswell.

Apesar de James não fazer qualquer associação espontânea pedi‑lhe para fazer associações livres com as imagens. «Olhe para a imagem que persiste na sua mente e tente pensar alto. Descreva os pensamentos que flutuam na sua cabeça. Tente não omitir ou censurar nada, até coisas que podem parecer tontas ou irrelevantes», insisti com entusiasmo.

«Vejo um tórax com tubos a entrar e a sair. Vejo um corpo deitado numa poça de um líquido amarelo — provavelmente líquido de embal‑samar. Não vejo mais nada.»

«Quando o Eduardo morreu de facto, chegou a ver o seu corpo no funeral?», perguntei.

«Não me lembro, mas acho que foi de caixão fechado porque o Eduardo estava muito mutilado pelo acidente.»

«James, percebo na sua cara tanta tristeza, tantas expressões dife‑rentes quando pensa sobre este sonho...»

«É uma experiência estranha. Por um lado sinto que não quero ir mais longe e a minha concentração parece fugir. Mas, por outro, sou atraído pelo sonho. Tem muito poder sobre mim.»

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Senti que o sonho era tão importante que pressionei‑o ainda mais.

«O que pensa sobre o facto de ter dito “O Eduardo está bonito”? Repetiu isto três vezes.»

«Bem, ele realmente estava bonito. Bronzeado, saudável.»«Mas, James, ele estava morto. O que quererá dizer se uma pessoa

que está morta tem um ar saudável?»«Não sei. O que acha?»«Eu acho», respondi‑lhe, «que o facto de ele estar bonito e com um

ar saudável era um reflexo do quanto queria que ele ainda estivesse vivo.»«Os meus neurónios dizem‑me que tem razão. Mas as palavras são

só palavras. Posso pensá‑lo, mas nada sinto.»«Perder um irmão assim, aos dezasseis anos, mutilado num aciden‑

te, acho que foi o suficiente para o marcar para a vida. Talvez seja tempo de começar a sentir simpatia por aquele rapazinho de dezasseis anos.»

James abanou a cabeça devagarinho.«Parece‑me angustiado, James. Está a pensar em quê?»«Estou a lembrar‑me do telefonema, quando ligaram para contar à

minha mãe o que tinha acontecido ao Eduardo. Escutei por um momen‑to, sabendo que algo não estava nada bem, mas continuei a andar até ao quarto e fechei a porta. Acho que não queria ouvir nada daquilo.»

«Não escutar e não ouvir é o que tem feito com a sua dor. A sua negação, beber, essa irrequietude — já nada disso funciona como anal‑gésico. A dor esta lá; quando lhe dá com a porta na cara ela vai bater na seguinte e volta a tentar entrar — desta vez entrou num sonho.»

Enquanto James abanava a cabeça, acrescentei: «E o fim do sonho, aquele livro sobre OVNI e Roswell?»

James expirou ruidosamente e fixou os olhos no tecto. «Eu sabia. Eu sabia que ia‑me fazer essa pergunta!»

«É o seu sonho, James! Você é que o criou, foi você que pôs Roswell e os Ovni dentro dele. Que ligação têm com a morte? O que lhe vem à cabeça?»

«É difícil admitir‑lhe isto, mas descobri mesmo esse livro na prateleira do meu irmão e li‑o depois do funeral. Não consigo explicar bem, mas é algo assim: se pudesse descobrir exactamente de onde viemos — e talvez seja dos extraterrestres e dos OVNI —, então viveria uma vida melhor. Saberia por‑que fomos postos nesta Terra.»

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Tinha a impressão de que estava a tentar manter o seu irmão vivo, ao habitar o seu sistema de crenças, mas duvidei que esse pensamento lhe fosse útil, por isso calei‑me.

Este sonho e a nossa conversa à volta dele assinalaram uma mu‑dança na terapia. James começou a encarar a vida e a terapia muito mais seriamente e a nossa aliança terapêutica ganhou em força. Não ouvi mais queixas sobre a máquina registadora, nem mais perguntas sobre quanto tempo ia demorar a terapia ou se já estava curado. James sabia agora que a morte tinha marcado profundamente a sua juventude, que o seu sofrimento pelo irmão tinha influenciado muitas das suas decisões im‑portantes, e até que a sua dor intensa o desencorajara de se examinar a si mesmo e à sua própria mortalidade.

Apesar de nunca ter perdido o seu interesse pelo paranormal, transformou‑se imenso: de um dia para o outro deixou completamente de beber (sem qualquer programa de reabilitação), melhorou extraordi‑nariamente a sua relação com a mulher, despediu‑se do emprego e fundou uma empresa de treino de cães‑guias para cegos — uma profissão que lhe oferecia sentido para a vida, dando‑lhe a certeza de ser útil aos outros.

• uma oPção de fundo •como exPeriência do desPertar

Decisões muito importantes têm frequentemente raízes profundas. Cada escolha envolve uma renúncia e cada renúncia torna‑nos mais cientes das limitações e da temporalidade.

preso e imóvel: pat

Pat, uma corretora de valores, divorciada há quatro anos, procurou te‑rapia porque tinha dificuldade em estabelecer uma nova relação. Já a

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tinha visto cinco anos antes, durante apenas uns meses, quando deci‑dira terminar o seu casamento. Agora contactava‑me de novo porque conhecera, finalmente, um homem muito atraente, Sam, que pela pri‑meira vez a interessava, mas que desencadeava nela uma tempestade de ansiedade.

Pat disse‑me que se sentia apanhada num paradoxo: amava Sam, mas a ideia de continuar a namorar com ele era insuportável. A gota fi‑nal que a levou a telefonar‑me foi um convite para uma festa onde iriam estar muitos dos seus amigos e amigas mais chegados e ainda gente do emprego. Deveria ela ou não levar Sam como acompanhante oficial? O dilema agigantava‑se de tal forma que, a certa altura, estava obcecada pelo assunto e não conseguia pensar em mais nada.

Mas porquê tanto tumulto? Na nossa primeira sessão, após ter tentado, sem sucesso, ajudá‑la a analisar comigo o significado do seu desconforto, procurei uma abordagem indirecta e sugeri uma fantasia guiada.

«Pat, experimente isto, acho que a vai ajudar. Quero que feche os olhos e imagine o Sam a chegar à festa. Entra na sala de mão dada com ele. Muitos dos seus amigos olham para si, acenam e começam a andar na sua direcção.» Parei por segundos e retomei o meu monólogo: «Con‑segue ver tudo isto dentro da sua cabeça?»

Ela acenou que sim.«Agora continue a olhar para a cena e deixe os seus sentimentos

emergir. Mergulhe dentro de si e conte‑me tudo o que sente. Tente sol‑tar‑se. Diga tudo o que lhe vem à cabeça.»

«Ui, a festa. Não gosto.» A sua expressão contorceu‑se. «Largo a mão do Sam. Não quero ser vista com ele.»

«Continue. Por que não?»«Não sei porquê! Ele é mais velho do que eu, mas só dois anos. E

é incrivelmente bonito. Trabalha como relações públicas e sabe perfeita‑mente como agir socialmente. Mas eu ou, melhor, nós seríamos imedia‑tamente rotulados como casal. Um casal mais velho. Estaria presa. Li‑mitada. Era como se dissesse que não a todos os outros homens. “Com‑prometida” e “apanhada” — e abriu os olhos de repente — é espantoso, nunca tinha pensado que uma coisa implicava a outra. Como quando andamos na universidade e usamos o pin da faculdade de um rapaz. No

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fundo estamos a dizer ao mundo que estamos presos, que estamos alfi‑netados ao crachat, mas também àquela pessoa.»

«Que maneira tão inteligente de ilustrar o seu dilema, Pat. Mais sentimentos?»

Pat fechou de novo os olhos e voltou a entrar na sua fantasia: «Toda a confusão ligada ao meu casamento começa a aparecer. Sinto‑me cul‑pada por ter estragado o meu casamento. Sei, até porque então falámos sobre isso, que não o destruí — trabalhámos muito nessa culpa — mas parece‑me que o raio dessa ideia está de novo a rastejar para dentro de mim. O meu casamento falhado foi o meu primeiro grande fracasso na vida — até aí estava sempre tudo a “subir”... Mas, pronto, sei perfeita‑mente que o casamento acabou. Acabou já há anos. Mas o que começo a perceber é que é só no momento de escolher realmente outro homem que o meu divórcio se torna real. Significa que não posso mesmo voltar atrás — nunca. Pertence ao passado. É irreversível... um tempo que se esfumou. Sim, sabia tudo isto mas não era um saber como o que agora sinto, não era saber como sei agora.»

A história de Pat revela bem a relação entre a liberdade e a morta‑lidade. Decisões difíceis têm, muitas vezes, raízes compridas que chegam ao «canteiro» das nossas preocupações existenciais e à responsabilidade pessoal que temos em tudo o que nos acontece. Vamos examinar por que razão a decisão de Pat lhe provocava tanta agonia.

Logo à partida porque implicava renúncia. Cada sim envolve um não. Uma vez que fosse «colada» a Sam, outras possibilidades — um homem mais jovem, talvez melhor — estão excluídas. Como ela dizia, não só ia estar presa ao Sam como ao chão, agarrada. Estaria a recusar outras oportunidades. O estreitamento de possibilidades tem um lado negro: quanto mais opções se fecham, mais a vida parece pequena, curta e sem vitalidade.

Heidegger uma vez definiu a morte como sendo «a impossibilida‑de de mais possibilidades». Por isso a ansiedade de Pat — ostensivamen‑te acerca de uma coisa superficial, sobre a decisão de levar, ou não, um homem a uma festa — ia beber o seu poder ao poço sem fundo da sua ansiedade de morte. Serviu como uma experiência do despertar: o facto de nos termos concentrado no sentido profundo da sua decisão tornou incrivelmente mais eficiente o nosso trabalho.

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A análise da responsabilidade e da culpa pelo seu casamento levou‑a a incorporar a consciência de que era impossível voltar à juventude. Pat referiu que a sua vida parecia, até àquele momento, estar sempre a subir, mas entendia agora que o divórcio era real‑mente irreversível. Ao fim de um tempo conseguiu deixar para trás o que estava para trás, aceitou aquilo que eventualmente tivera de perder para chegar até ali e foi capaz de assumir um compromisso com Sam.

A ilusão de Pat de que estamos sempre a crescer, a progredir e a mover‑nos numa direcção ascendente é muito comum. Tem sido extremamente reforçada pelo conceito ocidental de progresso, funda‑mentado no Iluminismo e intensificado pelo imperativo americano que ordena que estejamos sempre a «subir na vida». Claro que o pro‑gresso é uma mera construção — há outras maneiras de conceptua‑lizar a História. Na antiga Grécia, os Gregos não subscreviam a ideia de progresso; pelo contrário, olhavam para o passado em direcção à Idade de Ouro, que parecia brilhar ainda com mais luz à medida que os séculos passavam. A súbita tomada de consciência de que o pro‑gresso é apenas um mito pode fazer‑nos dar um salto no lugar, como aconteceu com a Pat, mas de facto obriga a dar a volta às nossas ideias e crenças.

• os marcos da Vida •como exPeriência do desPertar

Outras instâncias do despertar — simultaneamente mais habituais e mais subtis — estão associadas a marcos da vida como reuniões de anti‑gos alunos de escola ou da universidade, aniversários, planos para uma nova casa, escrever um testamento e aniversários com mais dígitos, tal como os cinquenta e os sessenta.

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reuniões de antigos alunos

Os reencontros com antigos colegas, particularmente depois de vinte e cinco anos, são experiências potencialmente ricas. Nada torna o ciclo de vida mais palpável do que ver os nossos amigos já crescidos e até enve‑lhecidos. Confrontar a lista daqueles que já morreram é então uma ex‑periência ainda mais poderosa, que nos faz assentar os pés bem na terra e que pode servir como uma daquelas chamadas do serviço de despertar. Nalguns encontros até fornecem fotografias das nossas caras enquanto jovens, para se pendurar ao peito, e os participantes circulam em redor de uma sala a comparar as fotos e as caras, tentando encontrar o jovem, de olhos inocentes, na máscara de rugas que têm agora à sua frente. E quem consegue resistir a pensar: «Tão velhos, estão todos tão velhos! O que estou eu a fazer neste grupo? Como será que lhes pareço a eles?»

Para mim, estes encontros funcionam como se finalmente estives‑se a saber o final de histórias que comecei a ler há trinta, quarenta e até cinquenta anos. Quem andou connosco na escola partilha uma história comum, um sentido de intimidade profunda. Conheceram‑nos quando éramos jovem, miúdos mesmo, antes de termos desenvolvido a nossa personalidade adulta. Talvez seja esta a razão pela qual os encontros ori‑ginam um número surpreendente de novos casamentos. Velhos colegas sentem‑se seguros um com o outro, velhos amores são alimentados, to‑dos são membros de uma peça que se iniciou há muito, muito tempo, num pano de fundo de esperança ilimitada. Encorajo os meus pacientes a irem a estas confraternizações e a manterem um diário do que sentem nesses momentos.

Fazer um testamento

Redigir um testamento obriga, evidentemente, a pensar na morte, a fazer uma avaliação do que se foi, à medida que se discute ou pondera como distribuir o dinheiro e os bens que se adquiriu ao longo de uma vida. Este processo de resumir a nossa existência levanta uma série de questões. Quem amo? Quem não amo? Quem vai sentir a minha falta? Com quem deveria ser generoso? Neste exercício de rebobinar o filme de uma vida é

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necessário passar à prática. Num sistema como o norte‑americano, pelo menos, é preciso tratar dos detalhes do enterro, confrontar e resolver problemas e negócios que não podem ficar pendentes.

Um dos meus clientes, que sofria de uma doença fatal, quando soube que ia morrer começou a pôr os seus assuntos em ordem e deu por si dias inteiros a ler os seus e‑mails e a apagar todas as mensagens que podiam perturbar a sua família. Enquanto apagava os e‑mails de amores passados sentiu‑se de súbito terrivelmente angustiado. A destruição final de todas as fotografias e lembranças, de experiências passionais, inevita‑velmente evoca uma ansiedade existencial.

dias de aniversário e outras celebrações

Festas de aniversário e datas importantes podem funcionar como expe‑riências do despertar. Apesar de geralmente celebrarmos dias de aniver‑sário com presentes, bolos, cartões e festas, o que representa realmente esta celebração? Talvez seja uma tentativa de dissipar a tristeza que nos provoca a inexorável corrida do tempo. Os terapeutas fazem bem em anotarem os dias de aniversário dos seus pacientes — especialmente aqueles que se revestem de maior peso, que já contam várias décadas — e em não terem medo de perguntar que sentimentos evocam.

Fazer Cinquenta: WillQualquer terapeuta que já tenha alguma maturidade será sensível às questões da mortalidade e e ficará impressionado pela sua ubiquidade. Quando comecei a escrever este capítulo, nesse exacto dia, um paciente deixou‑me cair no colo um exemplo fantástico daquilo que pretendia dizer, sem que eu tivesse sequer puxado o assunto.

Era a minha quarta consulta com Will, um advogado de quarenta e nove anos, inteligentíssimo, que procurava um apoio terapêutico por‑que subitamente tinha perdido a sua paixão pelo trabalho e sentia‑se incrivelmente abatido por não ter dado o melhor uso aos seus considerá‑veis talentos intelectuais (tinha‑se licenciado com louvor, numa das mais prestigiadas universidades do país).

Will começou a sessão por comentar que alguns dos seus colegas

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criticavam‑no abertamente por considerarem que aceitava demasiados casos pro bono e por ter poucos clientes que pagassem mesmo a sério. Depois de quinze minutos a descrever a sua situação laboral começou a discorrer sobre a profissional, e a sensação que vinha de trás, de não conseguir sentir‑se enquadrado em alguma das empresas para que tinha trabalhado. Parecia‑me informação relevante para o compreender, por isso ouvi com atenção, tomei mentalmente nota de tudo, mas nesta parte da sessão mantive‑me em silêncio — para lá de um pequeno comentário sobre como achava fantástica a compaixão que revelava ao descrever os seus casos pro bono.

Depois de um breve silêncio, Will comentou: «Por sinal, hoje faço cinquenta anos.»

«E...? Como é que isso o faz sentir?»«Bem, a minha mulher está a dar imensa importância ao caso.

Está a organizar um jantar logo a noite com alguns amigos. Mas a ideia não foi minha. Não queria. Não gosto que andem à minha volta a dar‑me muita importância.»

«Então porquê? Qual é a parte de ser mimado de que não gosta?»«Qualquer tipo de elogio incomoda‑me. De certa forma dou cabo

dos elogios que me fazem, porque tenho uma voz cá dentro que me diz “Dizem isso, porque não me conhecem realmente” ou “Se eles soubes‑sem!”»

«Se eles realmente o conhecessem», perguntei, «conseguiriam ver… o quê?».

«Até eu não sei. E não é só a receber elogios que me sinto pouco à vontade. A oferecê‑los passa‑se a mesma coisa. Não compreendo nada disto e não sei como explicar‑lhe melhor, excepto dizendo‑lhe que sinto que, debaixo da superfície, há um patamar obscuro dentro de mim, ao qual não consigo aceder.»

«Will, sente que há momentos em que há coisas que irrompem desse patamar escondido, como lhe chama?»

«Sim, há uma coisa. A morte. Quando leio algum livro sobre a morte, especialmente a morte de uma criança, engasgo‑me!»

«Já alguma coisa surgiu desse nível mais obscuro de si durante as nossas sessões?»

«Acho que não. Porquê? Está a pensar nalguma coisa?»

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«Estou a pensar numa vez, na nossa primeira ou segunda sessão, quando subitamente uma emoção forte pareceu tomar conta de si e lá‑grimas vieram‑lhe aos olhos. Comentou nessa ocasião que era uma coisa rara verter uma lágrima que fosse. Não consigo lembrar‑me muito bem do contexto. Lembra‑se?»

«Estou em branco. De facto, não me lembro mesmo nada desse incidente.»

«Julgo que tinha alguma coisa a ver com o seu pai. Bem, dei‑xe‑me confirmar.» Levantei‑me e caminhei para o meu computador, fiz uma busca com a palavra «lágrimas» no seu ficheiro e depois de um minuto sentei‑me outra vez no meu lugar. Era, de facto, sobre o seu pai. Estava a dizer, com tristeza, que se arrependia de nunca ter realmente falado pessoalmente com ele, quando subitamente vieram as lágrimas.

«Ah, sim, lembro‑me e… oh, meu Deus, acabei de me recordar de que ainda ontem sonhei com ele. Não tinha qualquer memória do sonho até este preciso instante. Se, no início da sessão, me tivesse perguntado se a noite passada tinha sonhado, ter‑lhe‑ia dito que não. Bem, no meu sonho conversava com o meu pai e com o meu tio. O meu pai morreu há mais de doze anos e o meu tio uns quantos anos mais cedo. Enquanto estávamos a ter uma conversa agradável sobre qualquer coisa, não sei o quê mas era agradável, conseguia ouvir‑me a dizer: “Eles estão mortos, eles estão mortos, mas não te preocupes, isto faz tudo sentido, isto é nor‑mal num sonho.”

«Parece‑me que a voz de fundo estava a tentar manter o sonho ligeiro, para que pudesse continuar a dormir. Sonha com o seu pai fre‑quentemente?»

«Nunca, que me lembre.»«Estamos quase sem tempo, Will, mas permita‑me voltar àquele

assunto de que falámos, sobre dar e receber elogios. Acontece‑lhe aqui, nesta sala, entre nós? Quando descreveu os trabalhos pro bono elogiei‑o pela sua compaixão. Não me respondeu. Tenho curiosidade em saber como se sentiu quando realcei uma coisa positiva em si. E acredita que vai ter dificuldade em, alguma vez, ser capaz de me dizer alguma coisa agradável?» (raramente deixo passar uma hora sem fazer um inquérito sobre o aqui e agora, deste género.)

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«Não tenho a certeza. Vou ter de pensar sobre isso», disse Will, enquanto se preparava para levantar‑se.

Acrescentei: «Só mais uma última coisa, Will. Diga‑me que outros sentimentos lhe causaram a nossa sessão e o meu trabalho de hoje.»

«Foi uma boa sessão», respondeu. «Fiquei impressionado por se ter lembrado das lágrimas nos meu olhos. Mas tenho de admitir que co‑mecei a sentir‑me mesmo muito incomodado, agora para o fim, quando me perguntou como reagiria aos seus elogios, e vice‑versa.»

«Bem, estou convencido de que esse desconforto será fundamen‑tal para guiar‑nos na direcção de um trabalho mais promissor.»

Note‑se que, nesta hora de terapia com Will, o tópico da morte apareceu inesperada e espontaneamente, quando lhe perguntei sobre o seu «patamar obscuro». É raro, muito raro, levantar‑me para ir consultar apontamentos no computador a meio de uma sessão, mas ele estava tão cerebral que eu queria muito perseguir a única demonstração de senti‑mentos que tivera durante as nossas sessões.

Consideremos todas as questões existenciais para as quais poderia ter‑me voltado. Primeiro havia o facto de fazer cinquenta anos. Estes ani‑versários habitualmente têm muitas ramificações internas. Em seguida, quando o questionei sobre o seu patamar escondido, respondeu‑me — e para minha surpresa —, sem qualquer pressão da minha parte — que se engasgava quando lia sobre a morte, especialmente a morte de uma criança. E depois a lembrança súbita, novamente totalmente inesperada, do sonho em que conversava com o pai e com o tio já mortos.

Quando, nas sessões seguintes, trabalhámos juntos sobre o seu so‑nho, Will começou a identificar o seu medo escondido e a tristeza que a morte lhe provocava — a morte do pai, a morte de crianças pequenas, e, por trás disso, a sua própria morte. Concluímos que ele isolava‑se dos seus sentimentos porque temia que eles o paralisassem. Vez atrás de vez, começou a chorar durante as sessões e procurei ajudá‑lo a falar aber‑tamente sobre o seu lado escuro e dos medos que até então se tinham mantido impronunciáveis.