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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA volume 25 janeiro/junho - 20 12 ISSN: 1517-7599

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Page 1: ~Book Per Musi 25 - musica.ufmg.brmusica.ufmg.br/permusi/port/numeros/25/num25_full.pdf · Paulo de Tarso Salles revela as reminiscências do Quarteto Op.76 Nº 2 de Franz Haydn,

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 25janeiro/junho - 2012

ISSN: 1517-7599

Page 2: ~Book Per Musi 25 - musica.ufmg.brmusica.ufmg.br/permusi/port/numeros/25/num25_full.pdf · Paulo de Tarso Salles revela as reminiscências do Quarteto Op.76 Nº 2 de Franz Haydn,

Editorial

Temos o prazer de compartilhar com vocês, leitores e autores, a inclusão de Per Musi na Scielo, uma das mais impor-tantes bases internacionais de publicações científicas. Esta conquista, que torna a revista o único periódico de música do Brasil ali indexado, e o segundo da América Latina, reflete cinco anos de constantes melhorias do processo editorial. No site www.scielo.com.br já estão disponíveis os volumes 22, 23, 24 e 25, enquanto que os números anteriores serão gradualmente inseridos na sua base de dados. Lembramos também que todos os volumes da coleção de Per Musi, iniciada no ano 2000, estão disponíveis gratuitamente para download ou impressão no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected].

Este volume 25 de Per Musi apresenta 12 artigos e duas resenhas. Ilza Nogueira abre a revista com uma retrospectiva musicológica sobre a vida e a obra de Lindembergue Cardoso (1939-1989), membro do Grupo de Compositores da Bahia, por meio de uma análise dos cerca de 200 documentos musicais que ela catalogou em 2009. O próprio Lindembergue contribui com Per Musi, em cuja capa foi utilizado fragmento do manuscrito de sua obra O Voo do Colibri, para cravo e orquestra de cordas, de 1984.

Paulo de Tarso Salles revela as reminiscências do Quarteto Op.76 Nº 2 de Franz Haydn, “pai” dos quartetos de cordas, no 1º Movimento do Quarteto de cordas Nº 7 de Villa-Lobos de 1942. Aprofundando e revisando os comentários pioneiros de Arnaldo Estrella, Vasco Mariz e Eero Tarasti, busca explicar os aspectos texturais, harmônicos, motívicos e formais que muitos ainda consideram “excêntricos” no estilo do maior compositor brasileiro.

A partir de fontes primárias e extensa revisão bibliográfica sobre a imprensa musical brasileira e europeia do século XIX, Lino de Almeida Cardoso discute a obscura história envolvendo a data de criação, letra, música e discrepâncias musicais do Hino da Independência, cuja autoria ainda é creditada a Dom Pedro I.

Luigi Antonio Irlandini analisa o conceito de écriture e as polarizações que equilibram Gagaku, um dos movimentos da obra Sept Haikai de Olivier Messiaen: o ocidental e o oriental, a nostalgia e a inovação, a religiosidade e a intelectuali-dade, o passado e o futuro.

Buscando consolidar conceitos técnicos da tradição oral vigente entre intérpretes e compositores, Fernando Chaib des-trincha as práticas de performance associadas ao vibrafone, abordando tipos de baqueta, timbres, ressonância, pedal, manipulação de arcos, abafamento, som contínuo, harmônicos e glissando, ao mesmo tempo em que provê exemplos significativos do repertório.

Baseadas nas diretrizes para construção de instrumentos psicológicos de Pasquali e na perspectiva ecológica, Thaís Bran-quinho Oliveira Fragelli e Isolda de Araújo Günther propõe um inventário para avaliar elementos sociais e físicos no comportamento saudável dos músicos, com vistas à prevenção de lesões ocupacionais.

As fisioterapeutas Marina Medici Loureiro Subtil e Lívia Maria Marques Bonomo, por meio da análise visual e foto-gráfica das posturas adotadas pelos músicos e da avaliação de cadeiras e estantes de partituras, buscam identificar os fatores de risco de DORTs (distúrbios ósteo-musculares relacionados ao trabalho) no tronco, pescoço, membros inferiores, braços, antebraços e punhos dos músicos instrumentistas.

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Tendo como referência o histórico instrumento “La Parmigiana”, construído pelo mestre da luteria italiana Giovanni Bat-tista Guadagnini em 1765, Zoltan Paulinyi discute o ostracismo e o renascimento da viola pomposa, que tem atraído a atenção de luthiers, instrumentistas e compositores da atualidade.

Estudando a motivação entre músicos de uma orquestra brasileira, Fausto Kothe, Clarissa Stefani Teixeira, Érico Felden Pereira e Eugenio Andrés Díaz Merino revelam as relações entre organização, realização, envolvimento, desempenho e poder em um dos tipos de ambientes profissionais mais complexos do meio musical.

Daniel Serale reflete sobre os papéis colaborativos do compositor e do intérprete, e dos processos composicional e de performance, em Recycling Collaging Sampling, obra em três movimentos para percussão e recursos acusmáticos de Edson Zampronha, na qual a interação de ambos os papeis resulta em um trabalho cuja pertencência e autoria são igual-mente compartilhados.

Laura Rónai revisita a análise semiológica de Eero Tarasti sobre Vallée d’Obermann, obra para piano do álbum Années de Pèlerinage, composta por Franz Liszt em 1836, mostrando as camadas de sedimentação em isotopias musicais como textura coral, contorno melódico, repetição de figuras, harmonias, cromatismo e dissonâncias.

Na Seção de Resenhas – Pega na Chaleira, Fátima Graciela Musri nos apresenta o livro Los caminos de la música: Europa y Argentina com trabalhos de seis dos mais renomados musicólogos e críticos musicais argentinos, publicação que resultou da integração entre três instituições: La Fondazione Spinola (Itália), Mozarteum de Jujuy (Argentina) e La Universidad Nacional de Jujuy (Argentina). Já Rodrigo Cantos Savelli Gomes nos apresenta o livro The New (Ethno)musicologies, organizado por Henry Stobart e que contém palestras de 12 autores do Fórum Britânico de 2001 sobre (etno)musicologia anglo-americana.

Fausto BorémFundador e Editor Científico de Per Musi

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PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 25, janeiro / junho, 2012 -Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2012 –

n.: il.; 29,7x21,5 cm.SemestralISSN: 1517-7599

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As ideias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está indexada nas bases Scielo, RILM Abstracts of Music, Literature The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

ABM

Fundador e Editor CientíficoFausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)

Corpo Editorial InternacionalAaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra)Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA)Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra)Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA)Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Porto, Portugal)Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Montreal, Canadá)João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal)Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA)Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA)Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra)Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica)Melanie Plesch (Univ. Católica, Univ. de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina)Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra)Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina)Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha)

Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)

Corpo Editorial no BrasilAcácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis)Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas)André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte)André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro)Ângelo Dias (UFG, Goiânia)Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte)Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília)Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas)Diana Santiago (UFBA, Salvador)Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)Fabiano Araújo (UFES, Vitória)Fernando Iazetta (USP, São Paulo)Flávio Apro (UNESP, São Paulo)Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas)José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa)Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba)Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte)Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro)Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande)Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte)Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte)Norton Dudeque (UFPR, Curitiba)Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador)Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte)Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas)Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba)Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro)Sônia Ray (UFG, Goiânia)Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro)

Vladimir Silva (UFPI, Teresina)

O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos

Revisão GeralFausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizonte)

Assistente EditorialSandra Pugliese

Universidade Federal de Minas GeraisReitor Clélio Campolina Diniz

Vice-Reitora Rocksane de Carvalho NortonPró-Reitor de Pós-Graduação Ricardo Santiago GomezPró-Reitora Adj. de Pós-Graduação Andréa Gazzinelli Correa de OliveiraPró-Reitor de Pesquisa Renato Lima dos Santos

Escola de Música da UFMGProf. Dr. Maurício Freire Garcia, Diretor

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMGCoord. Prof. Dr. Sérgio FreireSub-Coord. Prof. Dr. Fernando RochaSec. Geralda Martins MoreiraSec. Alan Antunes Gomes/

Planejamento e ProduçãoMelissa Soares - Cedecom/UFMGGraziella Silva (estagiária) – Cedecom/UFMG

Projeto GráficoCapa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMGDiagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG

Tiragem150 exemplares

Acesso gratuito na internetwww.musica.ufmg.br/permusi

Endereço para correspondênciaUFMG - Escola de Música - Revista Per MusiAv. Antônio Carlos 6627 - Campus PampulhaBelo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747Fax: (31) 3409-4720e-mail: [email protected]@ufmg.br

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Sumário

ARTIGOS CIENTÍFICOSLindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural .................................................................................. 7Lindembergue Cardoso: aspects of a pluralistic musical workIlza Nogueira

Haydn, segundo Villa-Lobos: uma análise do 1º movimento do Quarteto de cordas nº 7 de Villa-Lobos ....................................................................27Haydn, by Villa-Lobos: an analysis of 1st movement of Villa-Lobos’s String Quartet #7Paulo de Tarso Salles

Subsídios para a gênese da imprensa musical brasileira e para a história do Hino da Independência, de Dom Pedro I ................................................................39Subsidies for the Brazilian musical press genesis and the history of the Independence Hymn, by Dom Pedro ILino de Almeida Cardoso

Gagaku, de Olivier Messiaen ..............................................................................................................................49Messiaen’s GagakuLuigi Antonio Irlandini

Vibrafone: uma fonte de coloridos sonoros .................................................................................................57Vibraphone: a source of sounding colorsFernando Chaib

Abordagem ecológica para avaliação dos determinantes de comportamentos preventivos: proposta de inventário aplicado aos músicos ..................................73Ecological approach to evaluation of preventive behavior: proposal inventory applied to musiciansThaís Branquinho Oliveira Fragelli e Isolda de Araújo Günther

Avaliação fisioterapêutica nos músicos de uma orquestra filarmônica .............................................85A physiotherapic evaluation of a philharmonic orchestra musicians in BrazilMarina Medici Loureiro Subtil e Lívia Maria Marques Bonomo

Sobre o desuso e o ressurgimento da viola pomposa ............................................................................... 91About the viola pomposa revival Zoltan Paulinyi

A motivação para o desenvolvimento do trabalho de músicos de orquestra .................................100The motivation for developing the work of orchestra musiciansFausto Kothe, Clarissa Stefani Teixeira, Érico Felden Pereira, Eugenio Andrés Díaz Merino

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Reciclar e colar: os papéis do compositor e do intérprete na criação colaborativa .....................107Recycling and collaging: the roles of composer and performer inside a collaborative creation processDaniel Serale

Análise de uma análise: Tarasti e Liszt ........................................................................................................ 112Analysis of an analysis: Tarasti on Liszt Laura Rónai

SEçãO DE RESENHAS – “PEGA NA CHALEIRA”Los caminos de la música, Europa y Argentina: una iniciativa editorial a imitar ........................................................................................................................117Los caminos de la música. Europa y Argentina: an editorial initiative to be followed Fátima Graciela Musri

A (etno)musicologia anglo-americana sob doze perspectivas: uma resenha do livro The new (ethno)musicologies .....................................................................................123The Anglo-American (ethno)musicology under twelve perspectives: a review of the book The new (ethno)musicologiesRodrigo Cantos Savelli Gomes

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NOGUEIRA, I. Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.7-26.

Recebido em: 20/01/2011 - Aprovado em: 18/04/2011

Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural

Ilza Nogueira (UFPB, João Pessoa, PB) [email protected]

Resumo: Escrito imediatamente após a catalogação da obra completa do compositor baiano Lindembergue Cardoso (1939-1989), este artigo objetiva divulgar a dimensão e a constituição do seu acervo de documentos musicais, as-sim como abordar alguns aspectos característicos de sua obra, sob os pontos de vista funcional, ideológico e estético. O acervo catalogado consta de 189 documentos completos, além de 43 iniciados e aparentemente abandonados ou incompletos (aqueles em que notamos a falta de página(s), sem apresentarem vestígios de não terem sido concluídos). Considerando que a carreira do compositor se desenvolveu em 25 anos (1965-1989), deve-se admitir que o volume do seu legado é expressivo. São 110 obras indexadas por número de opus e outras peças sem indexação, dentre as quais se encontram arranjos, música incidental, umas poucas transcrições e orquestrações. Quanto aos aspectos característicos da obra, são determinantes: intimidade com a música folclórica e popular brasileira; religiosidade; criatividade tímbrica; estética eclética, resultante da interação entre tradição e inovação; atitude heterodoxa no uso de sistemas musicais tradicionais; valorização da expressão cênica na concepção musical; abertura à interação criativa do(s) intérprete(s); e direcionamento aos conjuntos de estudantes e amadores.

Palavras-chave: música brasileira; Lindembergue Cardoso; Escola de Música da UFBA; Grupo de Compositores da Bahia.

Lindembergue Cardoso: aspects of a pluralistic musical work

Abstract: In the present article, written just after completing Brazilian composer Lindembergue Cardoso’s catalogue of musical works, the author intends to present the composer’s archive of musical documents, as well as to discuss charac-teristic aspects of his musical work. The archive consists of 189 complete and 43 unfinished or incomplete documents. Considering that the composer’s career developed over 25 years (1965-1989), we must admit that the volume of his legacy is expressive. There are 110 works with opus numbers and other pieces without opus number, among which we find arrangements, incidental music, a few transcriptions and orchestrations. Regarding characteristic aspects of his work, the most significant ones are: intimacy with Brazilian folk and popular music; religiosity; timbral creativity; eclectic aesthetics, resulting from the interaction between tradition and innovative procedures; a heterodox attitude in the use of traditional musical systems; valorization of scenic expression in musical conception; openness towards the interpreter’s creativity; commitment to student and amateur ensembles.

Keywords: Brazilian Music; Lindembergue Cardoso; School of Music of the Federal University of Bahia; Composer’s Group of Bahia.

1 – IntroduçãoLindembergue Cardoso foi, sem dúvida uma das mais ex-pressivas personalidades culturais da Bahia, no período em que atuou como instrumentista, compositor, regente e professor na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Despontado para o sucesso nacional no I Fes-tival de Música da Guanabara,1 em maio de 1969, con-viveu com o reconhecimento do seu talento múltiplo em premiações, encomendas, titulações honoríficas, troféus,

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

homenagens musicais e literárias. Na cidade de Salvador, assim como em outros municípios da Bahia e de outros estados, seu nome se encontra multiplicado de formas tão diversas quanto o foi a sua atividade artística. “Lin-dembergue Cardoso” é denominação de escola de música, rua, edifício residencial, foyer, sociedade musical, turma de graduandos em Música, prêmio de composição e até mesmo de campeonato de futebol, seu esporte favorito.

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NOGUEIRA, I. Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.7-26.

No ano da sua morte, 1989, coincidente com o do seu cinquentenário, ele foi amplamente homenageado em concertos e festivais nas várias capitais do país onde atuou como professor e compositor, como Salvador, Belo Horizonte, Santos, Rio de Janeiro e São Paulo.

Em 2009, ano do seu septuagésimo aniversário de nasci-mento, Lindembergue Cardoso teve sua obra musical in-tegralmente catalogada através do projeto “Marcos His-tóricos da Composição Contemporânea na UFBA” (http://www.mhccufba.ufba.br), encontrando-se o catálogo re-sultante disponibilizado na internet em dois formatos: livro eletrônico e páginas web ilustradas com trechos selecionados das obras (cf. NOGUEIRA, 2009). Também nesse ano, sua obra foi objeto de uma tese de doutorado defendida na Universidade de Évora (cf. PÉREZ, 2009).

Neste artigo, pretendemos divulgar a dimensão e a cons-tituição do seu acervo de documentos musicais, e abordar alguns aspectos característicos de sua obra. Quando nos referimos a “documentos musicais”, estamos incluindo, além das partituras das obras, também esboços, exer-cícios composicionais da época de estudante, projetos composicionais não concluídos e documentos incomple-tos (aqueles em que notamos a falta de página(s), sem apresentarem vestígios de não terem sido concluídos).

A identificação da “constituição” de um acervo de do-cumentos musicais abrange os aspectos objetivamente identificáveis, tais como sua categorização por orques-tração,2 funcionalidade (explícita ou dedutível), época (identificada ou presumível), características/estado de preservação, o volume (integral e relativo às diferentes categorias), etc. A caracterização de uma “obra musical”,3 por sua vez, pressupõe considerações de ordem estética e ideológica, envolvendo, necessariamente, o conhecimen-to dos contextos culturais acessíveis ao compositor, bem como dos fatos que constituem a história de sua época e da sua vida: os acontecimentos sócio-políticos e as con-tingências educacionais e profissionais, principalmente. A organização das informações nos subtítulos “O Acervo” e “A Obra” segue, portanto, esses princípios orientacionais.

Tratando da constituição do acervo ou da caracterização da obra, foi nossa intenção desenvolver uma narrativa dia-lógica com o próprio compositor; para isso, cedemos espa-ço a vários recortes de seu texto autobiográfico “Causos de Músico” (cf. CARDOSO, 1994). Nesse livrinho despreten-sioso, concluído em 1988 e publicado após a sua morte, o compositor narra, na forma jocosa que lhe era caracterís-tica (e que muito se assemelha à expressão do cartunista inato que ele foi) a sua infância e adolescência no sertão, o impacto da mudança para a capital, sozinho aos 17 anos, a convivência com a boemia musical soteropolitana dos anos 1960, e alguns pontos memoráveis da sua trajetória no mundo da música erudita brasileira nos anos 1970. Re-velando sua época de forma bastante vívida, as citações do compositor, inseridas a título de ilustração, direcionam e situam nossas conjecturas e afirmações.

2 – O acervoO legado musical de Lindembergue Cardoso se encontra no “Memorial Lindembergue Cardoso”,4 inaugurado em 1991 e confiado aos cuidados de Lúcia Maria Pellegrino Cardoso, viúva do compositor. Lá se encontram as parti-turas (cópias dos manuscritos originais e publicações), as gravações (em vinil, fita cassete e CD) e uma organizada documentação sobre a vida profissional do compositor.

Se considerarmos que sua carreira de compositor se de-senvolveu em 25 anos – de 1965,5 ano em que ele escre-veu sua primeira peça de repertório (Reisado do Piau 6), a 1989, quando faleceu prematuramente –, devemos admitir que o acervo de Lindembergue Cardoso é expressivo, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Foram catalogados 232 itens, dentre os quais, 43 inacabados ou incompletos. Tivesse ele vivido mais 20 anos e chegado ao ano 2009 em plena atividade, teria, talvez, celebrado os 70 anos com mais uns 150 títulos. Sim, porque para um compositor que produz uma média de 7,5 trabalhos por ano, em 25 anos de ofício, compor se torna “vício”, um “cacoete mental” daqueles incontroláveis, irremediáveis.

Do acervo constam 110 obras indexadas por número de opus e outras peças sem indexação, dentre as quais se encontram 38 arranjos, umas poucas transcrições e or-questrações, além de música incidental (trilhas para es-petáculos de dança e teatro de bonecos, sonoplastia para espetáculo cênico de luzes e sons).7 Chama atenção um grande número de documentos musicais inacabados ou incompletos (cerca de 21% do acervo), principalmente alguns dos inacabados deixados em estágio muito inci-piente, ou riscados como se invalidados, borrados, por-tando desenhos que nada têm a ver com a música, de-notando, portanto, caráter provisório. Curioso é o fato de documentos apenas iniciados, e alguns deles não indo adiante de uma meia dúzia de compassos, trazerem um título, dedicatória, assinatura, data (ano), podendo-se compreender, através disso, a ideia comandando a peça, e a intenção de levar adiante essa ideia, ou encomenda. Poucos desses documentos se referem, seja pelo título ou pelo teor musical, a uma obra vingada (a exemplo, Memórias I op.48, à qual correspondem três documentos inacabados). Poderíamos nos perguntar por que esses do-cumentos sobreviveram o compositor: por descuido? Ne-gligência para com a organização dos seus documentos musicais? Falta de tempo ou tendência para organização pessoal? Ou, ao contrário, por excesso de zelo para com a documentação de seu processo composicional? Have-ria um tempo futuro, que lhe foi negado pelo destino, para alguma organização que envolvesse seleção, des-carte ou conclusão de parte desse material? Cremos que a tentativa de encontrar respostas para essas suposições é irrelevante ao pesquisador da obra, enquanto o sim-ples fato de esses documentos inacabados ou sobrevivi-dos de forma incompleta existirem, deve ser considerado importante, como fonte de revelações sobre o processo composicional. Por exemplo: dentre as obras indexadas por número de opus, Cardoso tem apenas um quarteto

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NOGUEIRA, I. Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.7-26.

de cordas para a formação tradicional: Sedimentos op.27, datado de 1973 e estreado no ano seguinte em Brasília, pelo Quarteto da UnB.8 Dois anos antes, Cardoso já havia feito um “ensaio composicional” com as cordas de arco em Influência op.21, para orquestra de cordas. Dos docu-mentos musicais iniciados e não concluídos, 21 se referem à formação de dois violinos, viola e violoncelo. Trazendo diferentes títulos ou sem título, datados de 1972, 1973 ou sem data (a maioria), alguns evidenciando correlações musicais entre si, esses documentos podem indicar algu-ma dificuldade em conceber uma obra para o Quarteto de Cordas da Universidade de Brasília, uma das estrelas de maior grandeza da performance musical contemporânea brasileira daquela época. De fato, pode-se constatar que seis desses documentos, em diferentes estágios de con-cepção, apresentam ideias correlatas a Sedimentos. Sua avaliação musicológica indica que nenhum deles deve ser posterior a 1973. Nos 16 anos seguintes à concepção de Sedimentos, o compositor, curiosamente, não voltou a in-vestir nessa formação instrumental, embora tivesse dado alguma atenção à orquestra de cordas, com e sem solista, na década de 80: Parodichiana Brasileira op.73 (1981), Caleidoscópio II op.87 (1983), O Voo do Colibri op.96 (cra-vo e cordas, 1984) e 9 Variações para Fagote e Orquestra de Cordas op.98 (1985). Dessa época, há também outros documentos incompletos para o mesmo meio instrumen-tal: três tentativas para oboé e cordas do ano de 1984, duas delas trazendo dedicatória ao oboista e compositor uruguaio León Biriotti, e dois projetos análogos às outras obras concluídas para instrumento solista e cordas: Pre-lúdio e Fuga para Cravo e Cordas (1984), e 12 Variações para Fagote e Orquestra de Cordas (sem data).

Se, em relação à sobrevivência dos documentos incom-pletos, argumentamos a hipótese justificativa de um provável “zelo para com a documentação de seu proces-so composicional”, temos também em favor desse argu-mento a sobrevivência de alguns cadernos da época de estudante, intitulados “Harmonia”, “Composições e Ar-ranjos”, “Rascunhos”, e que remontam ao ano de 1964. Nesses cadernos, pode-se encontrar pequenas peças do período em que Cardoso cursava “Iniciação à Composi-ção” com Ernst Widmer nos antigos “Seminários Livres de Música”: 9 o quarteto de saxofones Espinho de Man-dacaru (1964), o septeto de metais A Seca (1965), e a Fantasia para oboé solo (sem data).

O acervo de Lindembergue Cardoso se constitui e se jus-tifica em pleno acordo com as contingências e os aconte-cimentos da sua vida em relação à música. Pode-se dizer que sua produção composicional é integralmente contex-tualizada nas atividades musicais vividas e desenvolvidas, e reconhecer que sua prática composicional esteve sempre conduzida por experiências prévias nas práticas interpreta-tiva e pedagógica. Reconhece-se, portanto, uma espécie de “canalização” ou “transposição” dessas experiências para a composição; por isso, nossa narrativa procura estabelecer paralelos entre as informações sobre o acervo, decorrentes da recente catalogação, e sobre a vida musical de Lindem-

bergue Cardoso. Essas últimas provêm do nosso convívio próximo com o compositor nos anos de 1965 a 1971,10 de depoimentos de outros colegas seus na Escola de Música da UFBA, e, principalmente, das revelações do próprio com-positor sobre sua vida musical, encontradas em seu livro “Causos de Músico” (CARDOSO, 1994).

A produção musical de Lindembergue Cardoso contempla todas as combinações instrumentais: solo; diversas formações de câmera (tradicionais e originais); coro a cappella ou com instrumentos; banda; orquestra de cordas, de câmara e sinfônica (com ou sem instrumento solista); coro (com ou sem vozes solistas) e orquestra. Dentro dessa amplitude, algumas formações foram privilegiadas, tornando-se, assim, “características” de sua produção, seja em determinada época ou marcando presença constante. Vamos tratar de conhecê-las e tentar compreender as razões dessas preferências, ou dessas tendências, fundamentando-nos nos dados biográficos, com especial atenção ao entorno cultural.

Antes de se tornar compositor, Lindembergue Cardoso foi saxofonista, iniciado na banda de sua cidade natal, Livra-mento de Nossa Senhora.11 O período vivido nessa peque-na cidade sertaneja,12 encravada na Serra Geral da Bahia, aos pés da Chapada Diamantina, é contado em “Causos de Músico” com encantamento e fascínio, principalmente quando o compositor registra sua participação nas festas religiosas e cívicas da região, como músico da “Filarmôni-ca 2 de Julho”, desde os 11 anos de idade; primeiro como caixista, logo depois passando a trompista, e, finalmente, chegando a saxofonista. Conta que escreveu seu primeiro dobrado em 1953, aos quatorze anos de idade, valendo-se dos rudimentos de teoria ensinados pelo diretor do giná-sio e professor de canto orfeônico. A documentação des-sa experiência composicional não sobreviveu, assim como também não sobreviveram os arranjos orquestrados feitos para o “Jazz Itapoan”, grupo criado por ele em Livramento, durante as férias de verão de 1961-1962.13 Dentre as com-posições datadas, a sobrevivente mais antiga também é um dobrado: João Correia,14 escrito em 1960, ano em que ele se matriculou nos “Seminários Livres de Música” da UBa15 para estudar saxofone. No entanto, o ingresso na vida aca-dêmica não foi exatamente o estímulo dessa peça, como se pode deduzir desse depoimento do compositor:

“Meus primeiros dias de Seminários de Música, passei como um burro que olha para um palácio. Não entendia nada do que a maioria das pessoas falavam. Quando falavam em português, não dava para entender os termos técnicos empregados, e menos ainda quando falavam em alemão. [...]. Confesso que não me adaptei àquele mundo estranho e passei todo o ano de 1960 me dedicando à música popular...” (CARDOSO 1994, p.45).

A próxima composição sobrevivente supõe-se também para banda: Marcha N.º 1 – N. S. de Fátima (1962), da qual se encontram no acervo apenas as partes de “Clarinetas” e de “Baixo em Mib”.16 Seguem Espinho de Mandacaru (quarteto de saxofones, 1964) e A Seca (septeto de me-tais, 1965). Assim, constatamos que Cardoso começou a

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compor com as ferramentas rudimentares de sua prática instrumental como músico de banda, inicialmente, e pos-teriormente, como saxofonista em conjuntos e orquestras de música popular, atividade que desenvolveu profissio-nalmente até o ano de 1967.17

Apesar de uma longa trajetória em banda (17 anos),18 a do-cumentação musical existente não demonstra que Cardoso tenha escrito muito para esse meio. Quatro obras indexadas dentre 110 (Divertimento op.54, Oxaguian op.77, para coro, banda e percussão, Lembrandinha op.88 e A Festa do Bon-fim op.93), um arranjo dentre 38 (Natalinas, 1988), e dois dobrados (João Correia, 1960 e Saudade dos Colegas, 1969, escritos para a banda de Livramento durante as férias de verão) não constituem um volume significativo. Para outras formações em metais, também pouco se encontra no acer-vo: uma peça para tuba solo (2 Miniaturas op.91, escrita em 1983 por encomendada do INM/FUNARTE para o II Concur-so Nacional de Jovens Intérpretes da Música Brasileira); um quinteto para a formação tradicional (Xaxando op.94, escrita em 1983 para o “1.º Concurso Nordestino de Composições Camerísticas” e premiada com o 2.º lugar); e o septeto A Seca, da época de sua “iniciação à composição” (1965).

A próxima experiência musical de Lindembergue Cardo-so em grupo foi como coralista: Em 1961, ele iniciou a cantar no Coral dos “Seminários Livres de Música”. Em “Causos de Músico”, ele se refere ao impacto emocional do seu primeiro ensaio no coro:

Quando começou o ensaio, fiquei muito emocionado comentan-do para mim mesmo: ‘Como é que pode! Esta música já existe há tanto tempo, e eu não a conhecia. Que maravilha!’ [...] E por muitos anos, permanece[ram] em meus ouvidos trechos dessa magnífica obra. (p.48).

Em meados desse ano, foi aconselhado por Koellreutter a estudar canto, e já no início do ano letivo de 1962, es-tava matriculado na classe de canto da Prof.ª Sônia Born e integrando o Madrigal. A turnê do Madrigal aos Esta-dos Unidos em 1965 foi o incentivo para sua primeira experiência composicional para coro misto a cappella: Reisado do Piau. Quem depõe sobre essa ocasião é o compositor Fernando Cerqueira:

Eu e Lindembergue começamos a compor os arranjos para o Madrigal no verão de 1965, quando já recebíamos orientações de Widmer. Numa certa manhã de dezembro de 1964 ou janeiro de 1965, deitados ao sol do Porto da Barra, escolhemos os te-mas de nossas primeiras peças: Reisado do Piau (dele) e Quando o Vento Dava (minha). Foram nossas primeiras peças na Escola. (CERQUEIRA, 2009)

Pode-se reconhecer que o canto coral foi uma das “pai-xões” de Lindembergue Cardoso. Durante toda a sua vida profissional, ele formou e regeu coros.19 Essa atividade lhe inspirou vários arranjos e peças para coro a cappella, assim como para coro e instrumentos ou coro e orquestra.20 Nes-se repertório, destacam-se: Kyrie-Christe op.22, para coro misto e instrumentos (1.º Prêmio no concurso estadual promovido pelo Instituto Cultural Brasil-Alemanha de Sal-vador, Institutos Goethe do Brasil e EMAC/UFBA em 1971, incentivando novo repertório para a turnê latino-america-

na do Conjunto Pro Musica de Colônia); Os Atabaques de Pombagira op.35, para coro misto a cappella (detentora do 2.º Prêmio – do juri – e 3.º Prêmio – do público – no “1.º Concurso Nacional de Composições e Arranjos Corais sobre Temas Folclóricos Brasileiros”, promovido pelo Madrigal Renascentista de Belo Horizonte, em 1974); O Navio Pirata op.62, para coro infantil a 3 vozes (Menção Honrosa no Concurso “Música Brasileira para Coro Infantil” realizado pelo INM/FUNARTE na cidade da Guanabara, em 1979); e Forrobodó da Saparia op.84, para coro misto a cappella (3.º Prêmio no Concurso Nacional de Arranjos Corais de Música Folclórica Brasileira do INM/ FUNARTE, em 1982).

Outra formação privilegiada no acervo de obras do compo-sitor é o conjunto misto de câmera. Sua primeira obra no gênero foi Minisuite op.5, para sopros e percussão (1967); Foi estreada na I Apresentação de Jovens Compositores da Bahia (18.11.1967), evento no qual seu Trio op.4 (violino, violoncelo e piano) foi detentor da Medalha de Prata “Rei-tor Edgard Santos”. Se é verdade que o Conjunto Música Nova da UFBA, criado em 1973 com formação absoluta-mente aberta e eclética, estimulou consideravelmente o repertório brasileiro para conjuntos mistos durante os 10 anos de sua existência, devemos lembrar que Lindember-gue Cardoso, desde 1967, já privilegiava formações mistas originais. Após Minisuite, compôs Captações op.9 (1969, premiada na III Apresentação de Jovens Compositores da Bahia), Extreme op.11 (1970) e Órbitas op.20 (1971), antes de iniciar o repertório para o Conjunto Música Nova, no qual se destacam Requiem para o Sol op.44 (1976, “Prê-mio Damião Barbosa de Araújo” no II Concurso Nacional de Composição Conjunto Música Nova), Suitemdó op.60 (1979, “Prêmio do Público” no II Concurso Latino-Ameri-cano de Composição Conjunto Música Nova), e Relativida-de I op.69 (1981, “Prêmio Universidade Federal da Bahia” no III Concurso Nacional de Composição Conjunto Música Nova). Devemos lembrar também que, dentre os compo-sitores que fizeram o repertório do conjunto (brasileiros e estrangeiros), Lindembergue Cardoso foi o que apresentou maior volume de obras estreadas por ele.

Na categoria “orquestra sinfônica”, o compositor deixou 15 títulos, dentre os quais, apenas uma sinfonia (seu opus 100, de 1985), um balé (Simôa, de 1986, baseado na novela de Adonias Filho), uma abertura (Abertura Tobogã op.13, 1970), dois poemas sinfônicos sertanejos (A Festa da Canabrava op.2 e Via Sacra op.6) e outras peças. Sua estreia no gênero – A Festa da Canabrava – ocorreu em 1966. Dois anos depois, Via Sacra obteve o 1.º Prêmio e Prêmio do Público na II Apresentação de Jovens Compositores da Bahia. O reconhecimento nacional de sua competência no gênero sinfônico se reflete em encomendas recebidas de conceituadas orquestras do país: Pleorama op.19 (1971) foi escrita para a Orquestra Sinfônica Brasileira, no período do Maestro Isaac Karabtchevsky; Relatividade II op.76 (1981), para a Orquestra Sinfônica Estadual de São Paulo, no período do Maestro Eleazar de Carvalho; Rapsódia Baiana op.85 e Cantigas de Roda op.90 (1983), para a Orquestra Sinfônica da Bahia, então sob a direção

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do Maestro Erick Vasconcelos.

No que diz respeito ao complexo de vozes solistas, coro e orquestra, o compositor já estreou com uma obra premiada em evento nacional: Procissão das Carpideiras op.8 (1969), para meio-soprano, coro de câmera e orquestra, detentora do 3.º Prêmio e Prêmio do Público no I Festival de Música da Guanabara. Na sequência, chamam a atenção: o Oratório Cênico op.24 (1972), para 3 vozes solistas, coro, pequena banda e orquestra sinfônica, feito para as comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil, cujo elemento cênico é a dança; a “folc-ópera” infantil em um ato A Lenda do Bicho Turuna (1974), para seis vozes solistas, coro e pequena orquestra, com texto do compositor baseado numa lenda nordestina (ainda inédita); o oratório As Alegrias de Nossa Senhora op.82 (1982), para duas vozes solistas, coro e orquestra de câmera, sobre o texto homônimo de Santa Tereza d’Ávila, composto para a comemoração do IV centenário da morte da santa escritora, realizada pelo Museu de Arte Sacra de Salvador; a cantata Romaria a S. Gonçalo da Canabrava op.80 (1982), com texto de Zelito Miranda e Carlos Pita; Ode ao Dous de Julho (1986), para narrador, coro e orquestra, sobre o poema homônimo de Castro Alves; e, finalmente, a única ópera do compositor, Lídia de Oxum (1988), para 8 vozes solistas, coro e orquestra, com libreto do poeta baiano Ildásio Tavares, estreada em 1995, sob a batuta do Maestro Júlio Medaglia, no Teatro Castro Alves (Salvador).

Pode-se dizer que Lindembergue Cardoso sobressaiu em todos os meios para os quais escreveu; treze de suas obras foram premiadas em concursos de âmbitos distintos (es-tadual, nacional e internacional); três outras foram recep-toras de diferentes distinções (troféu, medalha, menção honrosa). Chamam atenção, especialmente, as distinções e premiações durante os cinco primeiros anos de sua carrei-ra: Trio I (1967: condecoração na I Apresentação de Jovens Compositores da Bahia), Via Sacra (1968: 1.º Prêmio e Prê-mio do Público na II Apresentação de Jovens Compositores da Bahia), Procissão das Carpideiras (1969: premiações já mencionadas), Captações (1969: Prêmio do Público na III Apresentação de Jovens Compositores da Bahia), Espec-tros (1970: 3.º Prêmio, categoria sinfônica, no II Festival de Música da Guanabara), Kyrie-Christe (1971: premiação já mencionada). Chamam também atenção seis prêmios do público, fato que demonstra a “popularidade” da sua mú-sica. As razões dessa peculiaridade da sua produção são objeto de considerações no próximo tópico.

3 - A obra: aspectos característicosEm nossa caracterização da obra de Lindembergue Cardoso sob o ponto de vista ideológico-estético, os seguintes aspectos se revelam como preponderantes e indiscutíveis: intimidade com a música folclórica e popular brasileira; religiosidade; criatividade tímbrica (sobressaindo o uso de materiais alternativos com função instrumental); ecletismo resultante da interação entre tradição (em

especial de raiz brasileira nordestina) e inovação; atitude heterodoxa no uso de sistemas musicais; valorização da expressão cênica na concepção musical; abertura à interação criativa do(s) intérprete(s); e direcionamento aos conjuntos de estudantes e amadores.

Obviamente, esses aspectos convivem entre si; não se en-contra uma obra em que não haja coexistência mínima (de dois aspectos), assim como pode-se notar todos eles numa mesma obra. Tratando de cada aspecto isolada-mente, exemplificamos cada um com obras em que, de alguma forma, ele sobressai.

3.1 – Intimidade com a música folclórica e popular brasileiraA grande intimidade com a música folclórica e popular brasileira é notada em todas as fases da produção de Lindembergue Cardoso: do início à maturidade profissional. Cremos que esse aspecto se deve, em grande parte, à sua infância e adolescência interioranas, à vivência sertaneja numa época em que o folclore local era ainda muito cultivado, como ele mesmo conta em “Causos de Músico”: “Era comum [sic] apresentações de marujadas, cavalhadas, reisados, bandas de pífanos ou de gaitas, sem contar com as famosas cantigas de roda que fazíamos nas noites de luar” (p.11). Pelo rádio, o que se ouvia era o repertório de Jararaca e Ratinho, Luiz Gonzaga e Bob Nelson; e com relação à “música ao vivo”, isso ocorria nas festividades cívicas ou religiosas da cidade, com a banda de música na praça da matriz tocando dobrados e marchas, para o fascínio da garotada. Devemos também lembrar que, durante cerca de 8 anos da sua vida de estudante em Salvador, foi da música popular que Lindembergue Cardoso se sustentou financeiramente.21

Aproximadamente 20% da sua produção são arranjos de música folclórica ou popular, fato que demonstra seu envolvimento com esse repertório. As estruturas de Minisuite op.5 (Choro – Valsa – Frevo) e Lembrandinha op.88 (Dobrado – Maxixe – Frevo), sua Serestachorofrevo op.14 e Cordel op.55 (1978) são obras que refletem, desde os títulos ou subtítulos, a intensa convivência do compositor com a cultura popular. Essa convivência gerou intimidade, ao ponto de suas alusões estilísticas ao popular apresentarem um grau de autenticidade tal, que poderíamos apostar tratar-se de uma citação literal. Sua Rapsódia Baiana op.85 (1982), por exemplo, é essencialmente construída com referências musicais à Bahia de origens diversas: do cancioneiro popular brasileiro clássico (Na Baixa do Sapateiro de Ari Barroso), da canção praieira baiana (Saudade de Itapoã e A Lenda do Abaeté de Dorival Caymmi), e do repertório religioso (Hino ao Senhor do Bonfim). Em meio a essas citações, sua referência estilística ao samba carnavalesco passa por citação literal, tendo inclusive um tratamento estético mais autêntico (em relação ao samba) do que o dos empréstimos musicais citados (Ex.1).

3.2 – Religiosidade

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Uma característica que também pode derivar-se da vivên-cia sertaneja é a religiosidade. Como sabemos, principal-mente nas pequenas cidades interioranas da época (anos 1940 e 1950), era a igreja católica que dirigia o processo educativo no primeiro grau, e em torno dela e da auto-ridade do padre se criavam e estabeleciam os hábitos e costumes. Ademais, nesse contexto, os eventos religiosos (missas festivas, procissões, enterros, casamentos, etc.) sempre envolveram música funcional da tradição local, de forma que religião e folclore geralmente andaram juntos.

Em “Causos de Músico”, referindo-se à participação da banda nas manifestações religiosas, o compositor dedica atenção especial à tradicional festa do dia 28 de janei-ro no distrito de Canabrava, em homenagem ao santo padroeiro, São Gonçalo do Amarante. No trecho abaixo, vê-se que a lembrança do que mais o impressionava na festa vai pinçar, justamente, a convivência dos repertórios religioso e folclórico:

Minha primeira experiência em Canabrava aconteceu em 1951, quando eu tinha doze anos e ainda tocava trompa na Banda. E a última em 1968. O que mais me impressionava na festa, era a convivência pacífica da Missa cantada em latim a duas vozes – acompanhada pela Banda – e as Folias de Rei[s], bandas de pífa-nos, sanfoneiros e repentistas com seus “cavalos galopados”, que atuavam do lado de fora da Igreja. (CARDOSO, 1994, p.17-19)

Essa experiência se reflete em A Festa da Canabrava (1966, para orquestra sinfônica), onde o compositor re-trata em sons o ambiente sacro-profano dessa festivi-dade, representando a igreja com o repicar dos sinos, a praça em folguedos, ambos sob as mesmas luzes colori-das dos fogos de artifício. O tema retorna em Romaria a S. Gonçalo da Canabrava (1982, para vozes solistas, coro misto e orquestra sinfônica), onde o enfoque é o fervor dos romeiros em busca de milagres ou pagando suas promessas. Procissão das Carpideiras (1969, para voz solista, coro feminino e orquestra sinfônica) também se refere à fé mística interiorana: a invocação pública das graças divinas pela chuva no sertão, por meio de lamen-

tação coletiva. Em Via Sacra (1968, para orquestra sin-fônica), o compositor pretende simbolizar os lados reli-gioso e profano da celebração da morte de Jesus Cristo nos pequenos municípios interioranos, onde, “para al-guns, comemorar esse acontecimento significa meditar e rezar. Para outros, porém, é motivo para beber e dan-çar.” (Cf. CARDOSO, s.d.). Esse aspecto da convivência interativa entre o religioso e o profano, especialmente característico na cultura soteropolitana, é tematizado em A Festa do Bonfim (1983), uma fantasia para banda sobre o grande evento religioso do calendário das festas populares de Salvador.22

Não somente a convivência do religioso com o profano, mas, principalmente, da religião católica com aquelas de origem africana, caracterizam a cultura litorânea da Bahia. Lindembergue Cardoso não deixou de reverenciar, com música, as entidades de umbanda e do candomblé, objetos da fé do povo afro-baiano. Os Atabaques de Pom-bagira (1974, coro misto a cappella), Oniçá Orê (1975, coro misto a cappella; e 1981, coro feminino e orques-tra) e a pequena cantata natalina Oxaguian (1981, co-ros, banda e percussão)23 representam a religiosidade da Bahia negra, que, além de conviver, comunica-se e con-funde-se, por meio do sincretismo, com a religiosidade da Bahia branca. O Exemplo 2 mostra um recorte da segunda versão de Oniçá Orê, onde o coro canta hino a Oxalá.24

A Missa João Paulo II na Bahia (1980, para vozes solistas, coro, órgão e percussão) chama atenção, especialmente, pela miscigenação de características musicais derivadas de tradições musicais sertanejas e afro-baianas. De um lado, a sonoridade modal das linhas melódicas e os paralelismos vocais em terças invocam a cultura interiorana nordestina; e de outro lado, a percussão, bastante expressiva, realizada exclusivamente por dois atabaques e agogô, reflete, tanto nos timbres quanto nos ritmos, a expressão musical afro-baiana essencialmente litorânea (Ex.3).25

No repertório católico litúrgico e devocional, sobressaem

Ex.1 - Rapsódia Baiana (c.83-98): recorte dos metais (in: CARDOSO,1991)

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Ex.2 - Oniçá Orê (c.123-131): versão para coro e orquestra (in: CARDOSO, 1991)

Ex.3 - Missa João Paulo II na Bahia – Senhor (c.45-53): recorte na textura (in: CARDOSO, 1991).

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também: Missa Nordestina (1966 / 1988, Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus-Benedictus e Agnus Dei); Missa Brevis (1974, Kyrie, Sanctus e Agnus Dei); Missa do Descobrimento (1981, Glória, Santo e Aleluia Tupã); Requiem em Memória de Milton Gomes (1974); pequenas peças para coro a cappella – Aleluia (1970, coro e bumbo), Santo (1972), Dona Nobis Pacem (1973), Agnus Dei (1974) e Ave Maria (1976); e o oratório As Alegrias de Nossa Senhora (1982). O envolvimento “praticante” de Lindembergue Cardoso com a igreja estimulou a Arquidiocese de Salvador a solicitar-lhe alguns pequenos trabalhos composicionais, como o arranjo para o “Hino do Congresso Eucarístico” de 1983 (coro e órgão),26 a música para o jogral “Os Sinais do Pastor”, feito para as bodas sacerdotais (50 anos) do Cardeal D. Avelar B. Vilela (1985, coro misto a duas vozes e música pré-gravada), e a musicalização da “Oração pelas vocações sacerdotais, consagradas e missionárias”27 (solicitação pessoal do Cardeal Dom Lucas Moreira Neves).

3.3 – Criatividade tímbricaConsiderando ainda os fatos biográficos da infância do compositor em Livramento, imaginemos a diversão noturna da garotada numa cidade sem luz elétrica,28 entre a ceia e a hora de dormir, quando a claridade do luar e o pisca-pisca do céu estrelado se apresentavam como um convite à convivência ao ar livre. Para o menino “Beg”, com seus oito anos de idade, a ideia de juntar os amigos e formar uma bandinha com instrumentos improvisados, para tocar e cantar o que se ouvia pelo rádio e pela banda da cidade, foi provedora: tanto de diversão quanto de experiências poéticas e criativas, dessas que levamos vida afora ou, ao contrário, somos levados por elas. Naquelas mãos infantis, talos de mamão se transformaram em flautas; talos de arroz, em apitos; tampas de latas viraram pandeiros e latas de tinta vazia, tambores. E todas as noites lá estavam eles, em frente à casa da família Cardoso, a ensaiar o repertório que tocariam aos

domingos nos pic-nics organizados pelas meninas. “Ainda sinto os arrepios nos braços ao relembrar aquelas noites”, revela o compositor em “Causos de Músico” (p.11).

Essa brincadeira parece ter seus ecos no repertório do compositor, e, principalmente, nas várias “montagens didáticas” ou “espetáculos multi-meios” (com música, teatro e dança)29 realizados com instrumentos improvisados de bugigangas, sucata e lixo reciclável nos “Laboratórios de Criatividade” que coordenou na década de 1970 em vários cursos de verão (Brasília, Santa Maria, Natal), ou no “Projeto ELOS” do INM/FUNARTE, no qual atuou com o “Grupo Bahia 13” em diversos locais de Salvador. Dessas “montagens didáticas”, existem suportes gráficos de Rico Instrumento Pobre (1980, para apitos, bugigangas, sucata e voz) e Lux de Lixo (1981, para sucata de lixo reciclável). Podemos lembrar também a sua “Missa do Descobrimento”, para coro infanto-juvenil, trombetas (confeccionadas com tubos de PVC) e chocalhos (feitos com latas de refrigerante), composta em 1981 para a celebração comemorativa do descobrimento do Brasil em Coroa Vermelha, município de Santa Cruz Cabrália.

Em grande parte da obra de Lindembergue Cardoso, a criatividade tímbrica é compartilhada com o(s) intérprete(s). Na concepção de “objetos sonoros” tímbrico-texturais,30 característicos de quase toda a sua produção, as alturas não estão especificadas; a região pode estar sugerida, seja pela “clave das regiões” (cf. Ex.17 abaixo),31 seja pela relativa distância vertical entre elementos, ou pela direcionalidade implícita na grafia. O ritmo (de nota a nota) também é indefinido num espaço de tempo determinado. Vários exemplos dessas sonoridades complexas e parcialmente aleatórias se encontram em O Voo do Colibri (1984), para cravo e orquestra de cordas (Ex.4).Em seu trabalho didático para a educação musical infantil –

Ex.4: O Voo do Colibri (c.30-39): “objeto sonoro” tímbrico-textural (in: CARDOSO, 1991).

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Ex.5: Rapsódia Baiana (c.24-28): recorte na textura (in: CARDOSO, 1991).

“Educação Musical – Método” (CARDOSO, 2006) –, nota-se a preocupação com o desenvolvimento da concepção criati-va de timbre, desde o início do processo educativo. Fazendo uso de sons “próximos” às crianças, o autor sugere ao pro-fessor que incentive o educando a “descobrir” onomatopeias e bugigangas, explorando a variedade de possibilidades so-noras, “a fim de desenvolver a percepção e a criatividade”.

Esses experimentos tímbricos com objetos do mun-do concreto são comumente encontrados em obras de Lindembergue Cardoso. Utensílios domésticos (balde, bacia, prato, panela, etc.), ferramentas e materiais de construção (enxada, serrote, tábua, barra de ferro, canos de PVC), sucata e recicláveis (papel, garrafas pet, latas, corrente de ferro) ou objetos do mundo infantil (bolas

de gude, balões de festa, etc.), tudo isso faz parte do mundo sonoro em sua obra. Eles tanto vêm ao encontro das pesquisas tímbricas que caracterizam a música da segunda metade do século XX, quanto das experiências infantis do compositor, quando a inventividade, o fazer de conta, eram meios de “transubstanciação” de uma realidade sócio-econômica precária.

3.4 – Interação entre tradição e inovaçãoNão somente da fonte sertaneja se alimentou o ideário musical de Lindembergue Cardoso. Quando ele come-çou a estudar composição com Widmer, foi apresen-tado ao repertório contemporâneo internacional, so-bretudo à vanguarda musical alemã e estadunidense. Na época, o recém-formado Grupo de Compositores

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da Bahia era um movimento em “ebulição”. Em tor-no dele, vários eventos de música nova (apresentações de jovens compositores, festivais, cursos e concursos) eram organizados, promovendo um grande e constante intercâmbio com outras regiões do país e com o exte-rior. Além de apresentarem os compositores da Bahia, esses eventos sempre incluíam primeiras audições no país de vários autores brasileiros e estrangeiros. A par-tir da segunda metade da década de 1960, e por toda a década de 1970, os cursos, concursos, apresentações e festivais de música nova nutriram a vida musical de Salvador. Consequentemente, grande foi a absorção de estéticas contemporâneas pelos jovens compositores baianos. Não desprezando as fontes tradicionais das suas origens interioranas, eles desenvolveram uma es-tética híbrida, com interações entre tradição e van-guarda, que os fez reconhecidos como “ecléticos”.Lindembergue Cardoso foi um dos expoentes dessa ten-

dência eclética. Em muitas outras obras, o compositor alterna ou superpõe segmentos baseados em tradição com outros que se caracterizam pelo aspecto inovador, geralmente de caráter textural. No Ex.5, extraído da Rap-sódia Baiana (1982), a textura contemporânea das cordas interage com uma citação literal da melodia de Dorival Caymmi Saudade de Itapoã, configurando, portanto, um contexto híbrido, ambíguo, entre o “objeto musical” telú-rico, identificável, e a ambientação estranha do “objeto sonoro” que lhe serve de acompanhamento.

3.5 – Atitude heterodoxa no uso de sistemas musicaisUm outro viés da vanguarda musical dos anos 60 incor-porado à música de Lindembergue Cardoso é a heterodo-xia no uso de sistemas musicais tradicionais (o dodecafo-nismo, por exemplo). Já em uma de suas primeiras obras, Trio op.4 (1967), a linguagem musical flui entre o serialis-

Ex.6a: Trio op.4 (início do 1.º mov.): serialismo estrito (in: CARDOSO, 2001, p.1).

Ex.6b: Trio op.4 (final do 1.º mov.): diatonia (in: CARDOSO, 2001, p.15).

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Ex.7: Peça para Madeiras, Cordas, Metais, etc. (3.º mov.): a expressão cênica complementa a execução instrumental.

mo e o atonalismo motívico. O primeiro movimento tem por base uma série dodecafônica, o terceiro outra, e o segundo apresenta uma estruturação motívica derivada de uma das séries. Nos movimentos externos, as séries são os fios condutores de uma elaboração composicional não ortodoxa, onde ocorrem, constantemente, elisões, fragmentações, derivações (a partir de reordenações de subséries) e inserções de outros materiais. O Ex.6a e o Ex.6b mostram, respectivamente, o início e o final do 1.º movimento; no primeiro momento, o compositor elabora o serialismo estrito, enquanto no final, liberta-se comple-tamente da elaboração serial, evocando a diatonia.

Em Relatividade IV (obra para piano de 1981), um enca-deamento harmônico tonal serve de tema a um processo composicional de variações. Em sua análise dessa peça, Jamary Oliveira chama atenção ao fato de que materiais afins ao encadeamento alternam com outros completa-mente estranhos, dentre os quais se destacam clusters.

Referindo-se ao processo por “variações e digressões”, ele conclui a análise afirmando:

Relatividade IV é uma obra que sem dúvida reflete o estilo de com-por de Lindembergue Cardoso. Ela é tonal, se entendermos tonalida-de no sentido amplo, mas no seu decorrer não há restrições quanto ao uso de materiais ou procedimentos. Do universo acumulado pela criação musical ele nada rejeita, utilizando aquilo que melhor lhe convenha para obter o resultado desejado. (OLIVEIRA, 1989, p.14)

A observação do analista encontra-se justificada pelo próprio compositor, quando, em nota de programa, depõe sobre o processo composicional de sua peça Reflexões II:

Composta em 1974 para orquestra de câmara, reflete momentos psicológicos variados, vividos pelo seu autor durante o processo de criação. Algumas vezes esses momentos foram criados por ele-mentos externos, alheios à vontade do compositor que os aprovei-ta como fonte geradora de ideias. Outros momentos foram criados pelo próprio compositor, ao abstrair-se de tudo que está em torno de si. (CARDOSO, s.d.)

3.6 – Valorização da expressão cênica na concepção

Ex.8: Colóquio (trecho): a expressão cênica complementa a execução instrumental.

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musicalDeve-se reconhecer também o valor que a expressão cê-nica tem na concepção musical de Lindembergue Cardoso. Não nos referimos às suas muitas realizações para espetá-culos de dança (lembrando, especialmente, suas colabo-rações com a coreógrafa Lia Robatto da Escola de Dança da UFBA) ou para o teatro (recordando, principalmente, as trilhas compostas para o grupo mineiro “Giramundo” de teatro de bonecos). Falamos aqui de várias de suas obras, onde a expressão cênica (gestos, atitudes ou ações) integra a concepção artística, complementando a execução ins-trumental. Dentre elas, podemos citar: Peça para Madeiras, Cordas, Metais, etc. (1969, para fagote, violino e requisitos diversos a nível instrumental), no gênero da música cênica “experimental” (Ex. 7); Canção Sintética (1976), para meio-soprano e quarteto de sopros; Natureza Morta (1976), para

Ex.9: Roteiro para coreografia (in: CARDOSO, 2006, p.22).

flauta, oboé, saxofone soprano e piano; PF (P+F) (1980) para piano solo, requerendo também a participação de dançarinos para “preparar” o piano durante a execução; e Colóquio (1983) para violoncelo solo (Ex. 8).

A preocupação com a expressão cênica na educação musical também é notada em seu “Método”. Na última seção (CARDOSO, 2006, p.15-25), o compositor propõe uma série de 10 coreografias, com as quais poderão ser utilizados “todos os elementos dados”: sons vocálicos (fonemas e onomatopeias), de bugigangas ou de brin-quedos sonoros, explorando diversos tipos de articula-ção, de evoluções de altura e de dinâmica. Sob o título “Som e Movimento: algumas questões para se introduzir movimentos no material sonoro utilizado”, essa série é modelada em brincadeiras infantis com movimento (isto

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é, com deslocamentos em permuta de posicionamento), concluindo com uma dança (quadrilha). Ao final, o autor sugere que o professor trabalhe coreografias feitas pelos alunos, confirmando a intenção explícita de “explorar a criatividade das crianças”. O Ex.9 mostra um dos roteiros coreográficos, onde estão marcadas somente as formas, as direções e as posições dos quatro participantes.

3.7 – Abertura à interação criativa dos intérpretesOutro aspecto muito comum na obra de Lindembergue Cardoso, em todas as fases da sua evolução, é a abertura à interação criativa dos intérpretes por meio de seções para improvisação. Muitas das suas peças requerem improvisação individual ou coletiva.32 São improvisações livres, como, por exemplo, as requeridas no 1.º movimento do Concerto Brevíssimo para Fagote (1972) (Ex.10), ou parcialmente dirigidas, como as que constituem o 11.º movimento de Fla p (1982) (Ex.11).

No “Método” para a Educação Musical, a Seção 5 é dedicada a “Roteiros para Improvisação” (CARDOSO, 2006, p.8-14). São propostas para improvisação coletiva dirigida, nas quais o compositor introduz (implicitamente) o conceito de forma. Há roteiros para cânones, onde chama atenção a seguinte nota: “Os elementos podem ser mudados” (isto é, as sonoridades fonêmicas indicadas pelo autor). Chama também atenção uma sequência de roteiros denominada “O Parque”, incluindo várias

propostas de peças aleatórias, cujas estruturas são modeladas nos brinquedos de um parque de diversões: sombrinha, roda gigante, montanha russa, tobogã, e escorregadeira (Ex12a e Ex.12b). A ideologia implícita se configura, portanto, na ludicidade como impulso motriz do experimento criativo.

3.8 – Direcionamento aos conjuntos de estudantes e amadoresFinalmente, podemos também acrescentar que a gran-de atividade didática do compositor, tanto na instituição de seu vínculo empregatício (a Universidade Federal da Bahia) quanto em vários cursos de verão e inverno dos quais participava (a exemplo, os Cursos Internacionais de Verão de Brasília e os Festivais de Inverno de Ouro Preto e Diamantina, onde sua presença era “tradicional”), pode ter influído num aspecto marcante de parte significati-va da sua produção musical: a acessibilidade, tanto do ponto de vista técnico-interpretativo quanto “linguístico”. Várias de suas obras foram compostas para apresenta-ções em cursos de férias, para grupos corais amadores e orquestras infanto-juvenis; nelas, nota-se o propósito de possibilitar uma prática musical coletiva estimulante e prazerosa, que resulte positivamente em curto prazo. Geralmente, são trabalhos em que o compositor estimu-la a co-participação criativa do intérprete, fomentando comportamentos e atitudes experimentais.

Usando muitas vezes o repertório tradicional popular

Ex.10: Concerto Brevíssimo para Fagote, 1 – Montagem: improvisação livre.

Ex.11: Fla π Sonhando: improvisação parcialmente dirigida (in: CARDOSO,1991).

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ou folclórico, o compositor facilita a “aproximação” do intérprete, ou do público, propiciando também um resultado musical, ou perceptivo, mais ágil. O cancioneiro de Dorival Caymmi, da Tropicália (Caetano, Gil), de Luiz Gonzaga, o repertório de cirandas, por exemplo, encontram-se em várias obras corais e orquestrais, funcionando como “apoios linguísticos” ao coralista amador, ao instrumentista iniciante em orquestra, e até mesmo ao público jovem. E ao lado desse “conforto ambiental”, os contextos da vanguarda (as sonoridades experimentais e as possibilidades estruturais abertas a múltiplas escolhas) também iam sendo introduzidos, estimulando a interação criativa sempre de uma forma lúdica e atrativa.

As oportunidades de atuar como docente em cursos de férias, frequentemente estimularam a produção de obras para a juventude. 6 Aspectos de Ouro Preto (1976, para 10 flautas) foi composta para a classe da Prof.ª Odette E. Dias no X Festival de Inverno de Ouro Preto; a dose repetiu-se no XII Festival (1978), com Outros Aspectos (de Ouro Preto), para 15 ou mais flautas. Durante o festival anterior (1977), Cardoso compôs Memórias I, para coro e instrumentos, executada pelo conjunto de alunos do evento. VC 30 + 1 (1980), para 4 grupos de 6 ou mais violoncelos, foi dedicada à classe do Prof. Guerra Vicente no V Curso Internacional de Verão de Brasília; e o Divertimento (1978), à banda de alunos da Escola de Música de Brasília, que a estreou sob a batuta do compositor. Saudade, para coro misto e instrumentos, é dedicada a um grupo de 67 alunos de Fortaleza; a partitura consta de 67 fragmentos independentes para serem distribuídos; para executar a peça “é preciso fazer

uma reunião”, explica o compositor.

Não somente a juventude, mas também os conjuntos infantis e infanto-juvenis, assim como o público infantil, estimularam a criatividade do compositor. Lembrandinha (1983) é uma “pequena suite para banda juvenil”; Caleidoscópio II (1983, para cordas) é dedicada à “Orquestrinha” da Escola de Música da UFBA; 4 Momentos da Infância (1984, para narrador, coro infantil e orquestra) e Suite Infantil (1986, para coro infantil e orquestra) foram concebidas para o Coral Infanto-Juvenil da UFBA. Sua “folc-ópera” infantil A Lenda do Bicho Turuna (1974, para vozes solistas, coro misto e pequena orquestra), foi idealizada para crianças, não por crianças (grifo nosso). No entanto, o compositor fez a “versão infantil” em 1982 (para vozes solistas, coro infantil, flautas doce, tambor e piano) dedicando-a “aos amigos do MUSIKA”;33 nessa segunda versão, a abertura da instrumentação, explícita em nota ao final da partitura – “Qualquer elemento que queiram acrescentar, não deixem de fazê-lo” – remonta à valorização do aspecto lúdico da interação criativa, improvisativa, na interpretação musical. Cantata para as Cores (1985, para vozes solistas infantis, coro infanto-juvenil e instrumentos) tem uma versão posterior (História do Arco da Velha (1986, vozes solistas infantis, coro infanto-juvenil e piano) dedicada ao coral infantil ECO, do Maestro Teruo Yoshida. Do repertório popular, Cardoso arranjou para coro infantil Praia de Amaralina e O Mar de Dorival Caymmi, e Song for Anna de Paul Mauriat. O Ex.13 e o Ex.14 mostram aspectos dessa produção para instrumentistas e cantores “mirins”, onde valores estéticos da música contemporânea são experienciados.4 – Conclusão

Ex.12a e Ex.12b: Dois roteiros para improvisação da sequência O Parque (in: CARDOSO, 2006, p.10).

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Ex.13: Caleidoscópio II: música contemporânea para orquestra infanto-juvenil.

Ex.14: História do Arco da Velha (p.1): música contemporânea para coro infantil.

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Nossa caracterização da obra musical de Lindembergue Cardoso particularizou diferentes aspectos em que ela se faz plural, multicor, caleidoscópica, se assim quisermos defini-la, metaforicamente falando. Certamente, não esgotamos as possibilidades, já que essa produção nos parece sempre aberta à sugestão de novas perspectivas de observação. Apesar dessa pluralidade intrínseca – que, aliás, é tão inerente a essa obra, quanto à de tantos outros artistas que vivem com intensidade o processo criativo, certamente nutrindo por ele um interesse bem maior do que por um resultado final –, é possível definir-se a obra de Lindembergue Cardoso de uma forma abrangente, integral.

Ao final do nosso trabalho de catalogação, pudemos observar que o aspecto multifacetado dessa produção pode ser resumido da seguinte forma. Se podemos (e devemos) qualificar Lindembergue Cardoso como um compositor prolífico em ideias composicionais, podemos (e devemos) também observar que seu mundo de ideias é orgânico, e como tal, é plural e uno, relativo e absoluto, complexo e simples, ao mesmo tempo.

A unidade de que falamos diz respeito a uma espécie de “cenário” comum, onde os mesmos acessórios são remanejados para cada nova peça. Se falamos em “cenário”, é porque podemos constatar que a obra de Lindembergue Cardoso, assim como a da maioria dos membros do Grupo de Compositores da Bahia, é

fundamentalmente narrativa, descritiva, paisagística. Esse cenário reflete o habitat do compositor. De um lado, seu sertão de caatinga, matizado de mandacarus e juazeiros; e a vida sertaneja, comandada pelos mitos e crenças, e revelada em seus diversos folguedos e respectivos repertórios. De outro lado, sua Bahia eclética, branca, negra e mulata, sacro-profana, mística e festiva, sem esquecer o mar que a torna essencialmente poética. Seja nas obras explicitamente evocativas da cultura sertaneja (A Festa da Canabrava, Atmosferas Caatingueiras, Procissão das Carpideiras, Variações sobre o Nordeste, Xaxando) ou da cultura afro-baiana (Festa do Bonfim, Lídia de Oxum, Oniçá Orê, Oxaguian), seja nos títulos que remetem à cultura musical eurocêntrica (Divertimento, Estudo, Suite, Toccata, Variações) ou nos que se referem a um mundo científico e abstrato (Chromaphonetikos, Órbitas, Relatividade, Sedimentos, Sincronia), os referenciais musicais sertanejos (motivos melódicos, cadências e encadeamentos harmônicos, ritmos típicos) ou afro-baianos (padrões rítmicos e timbres característicos) estão sempre em “contágio” com objetos sonoros captados dos movimentos de vanguarda musical europeu e norte-americano (clusters, camadas de texturas, blocos de sons em movimento), e que remetem à aleatoriedade controlada e à notação em “grafismos”. Assim, contextos tradicionais e abstrações alternam-se, sobrepõem-se, impõem-se ou submetem-se, influenciam ou são influenciados, transformam-se.Motivos, temas, contextos harmônicos, sonoridades

Ex.15: Espinho de Mandacaru (p.1): uma das primeiras obras.

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Ex.16: Minimalisticamixolidicosaxvox (c.35-41): a última obra (in: CARDOSO,1991).

Ex.17: Captações (p.10, c.49-56): objeto sonoro recorrente em várias obras (veja Ex.18, de 1984).

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CARDOSO, Lindembergue. Causos de músico. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1994, 80 p.______. Educação Musical - Método. In: “Marcos Históricos da Composição Contemporânea na UFBA”, Série “Marcos Te-

óricos da Composição Contemporânea na UFBA”, vol. 2, 25 p., 2006. Disponível em: <http://www.mhccufba.ufba.br/publicacoesProjetos.php?serie=2>. Acesso em Fev. de 2010.

______. [Notas de programa]. Folhas datilografadas independentes, s.d.______. Trio, (Ed. Maurício Falcão Santana). Série “Marcos Históricos da Composição Contemporânea na UFBA”, vol.

7, Salvador: PPGMUS-UFBA, 39 p., 2001. Disponível em: <http://www.mhccufba.ufba.br/publicacoesProjetos.php?serie=1>. Acesso em Fev. de 2010.

______. 31 Peças para orquestra, coro, coro e orquestra, banda, música de câmera, obras didáticas. (Execução e projeto gráfico Piero Bastianelli). Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1991.

CERQUEIRA Fernando. Depoimento escrito concedido à autora, 22.11.2009.GUIGUE, Didier. Estética da sonoridade: teoria e prática de um método analítico – uma introdução. Claves – Revista do

Programa de Pós-Graduação em Música da UFPB, João Pessoa, N.º 4, p.37-65, Nov. 2007.NOGUEIRA, Ilza. Lindembergue Cardoso: catálogo de obras. In: “Marcos Históricos da Composição Contemporânea na

UFBA”, Série Catálogos Web, vol. 2. Salvador: Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA, 95 p., 2009, Disponí-vel em: <http://www.mhccufba.ufba.br/publicacoesProjetos.php?serie=3 >. Acesso em Fev. de 2010.

______. Trio de Lindembergue Cardoso: comentários analíticos. In: CARDOSO, L. Trio. “Marcos Históricos da Composição Contemporânea na UFBA”, Série “Marcos Históricos da Composição Contemporânea na UFBA”, vol. 7, p.41-55, 2001. Disponível em: <http://www.mhccufba.ufba.br/publicacoesProjetos.php?serie=1>. Acesso em Fev. de 2010.

OLIVEIRA, Jamary. Relatividade IV: variações e digressões. Cadernos de Estudo – Análise Musical. São Paulo: Atravez, n. 2, abril, p.9-15, 1990.

______. Depoimento escrito concedido à autora, 19.11.2009.PÉREZ, Roberto Alejandro. Lindembergue Cardoso: técnicas e atitudes composicionais: o estudante e o compositor. 2009.

490 f. Tese (Doutorado em Música e Musicologia) – Departamento de Música, Universidade de Évora, 2009.Notas

Ex.18: O Voo do Colibri (c.19-20, parte de cordas): objeto sonoro recorrente em várias obras (veja Ex.17, de 1969).

evocativas contextualizam a obra de Lindembergue Cardoso, desde seus ensaios composicionais (Espinho de Mandacaru, 1964) (Ex.15, ver acima), até sua última obra (Minimalisticamixolidicosaxvox op.109, 1988) (Ex.16, ver acima),34 desenhando um caminho em espiral: com retornos sempre reciclados.

Da mesma forma, objetos sonoros identificáveis em suas concepções gráficas adquirem identidade, quando reaparecem em várias obras de períodos distintos, como podemos observar, por exemplo, em Captações op.9 (1969) (Ex.17, ver acima) e O Voo do Colibri op.96 (1984) (Ex.18).

Pode-se dizer, finalmente, que a obra de Lindembergue

Cardoso se apresenta ao observador como processamen-to de todas as suas experiências de vida e observações da vida que o cercava. Revela-se como um trabalho artístico essencialmente humanístico, portanto, no qual o menino inventor de instrumentos, o instrumentista de banda e de orquestras populares, o coralista, o regente de coros, o pro-fessor propiciador de experimentos e o católico praticante e fervoroso, todos eles se encontraram na criação de uma obra plural, que a todos eles representa, e mais ainda, re-presenta e canta a sua Bahia eclética, mística e poética, sertaneja e litorânea, que é do Senhor do Bonfim e de Oxa-lá, de Nossa Senhora da Conceição e de Iemanjá, e de todos os mestiços caboclos, filhos de Caramuru e Paraguaçu.Referências

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1 No “I Festival de Música da Guanabara”, Lindembergue Cardoso obteve o 3.º Prêmio e Prêmio do Público com Procissão das Carpideiras op.8, para orquestra sinfônica, coro feminino e contralto solo.

2 Com o termo “orquestração”, referimo-nos à constituição sonora, seja instrumental, vocal, eletroacústica, eletrônica ou mista.

3 Por “obra musical”, referimo-nos ao objeto ideológico-estético que transcende a partitura, acessível ao intelecto pelo conhecimento.

4 Situado na Rua Araújo Pinho n.º 58, Canela, Salvador – BA, CEP: 40.140-000.

5 Datam dos anos de 1960 a 1964 apenas três peças pequenas: um dobrado para banda (João Correia, 1960), uma marcha para banda (Marcha N.º 1, 1962, com documentação incompleta) e um quarteto de saxofones (Espinho de Mandacaru, 1964).

6 Reisado do Piau (arranjo de folclore para coro misto a cappella) integrou o repertório que o Madrigal da UFBA levou em sua turnê aos Estados Unidos (set. - out. de 1965) e gravou em LP, nessa oportunidade, para o selo “Request Records”.

7 Não há documentação escrita de alguns trabalhos de Lindembergue Cardoso que constam da relação de seus “arranjos e composições para espetá-culo”, dos quais se tem notícia na mídia impressa da época. São trilhas sonoras para cinema – Sem Saída, curta-metragem de Agnaldo Azevêdo e O Santo de Gesso, de Cícero B. Lemos, ambos de 1971 –, para dança – Morte, Paixão e Vida no Ano de Aquarius (1969) e Sina (1979), ambos dirigidos por Lia Robatto – e para teatro – Medeia (Eurípides, 1973), As Feras (V. de Moraes, 1974) e Massa Corrida (teatro de bonecos, 1980).

8 M. Mandel (1.º vl.), V. Hadelich (2.º vl.), J. G. Scheuermann (vla.) e A. Guerra Vicente (vlc.).

9 Segundo Jamary Oliveira, esse curso era “uma invenção nova de Widmer para quem ainda não tinha feito o exame final de teoria musical.” (OLI-VEIRA, 2009).

10 A autora e o compositor participaram juntos do Madrigal da UFBA entre 1965 e 1968, e do Grupo de Compositores da Bahia, entre 1967 e 1971.

11 O município de Livramento de Nossa Senhora está localizado a sudoeste de Salvador, a cerca de 720 quilômetros da capital baiana por via rodo-viária de pavimentação asfáltica. Limita-se ao norte com o município de Rio de Contas, ao sul com os municípios de Brumado e Caetité, a leste com o município de Dom Basílio, e a oeste com o município de Paramirim. Faz parte do Vale do Rio Brumado, que corta uma área de caatinga das mais castigadas do Nordeste.

12 Lindembergue Cardoso deixou Livramento pela capital baiana aos 17 anos, após a conclusão do curso ginasial, para seguir estudando; naquela época (1956), sua cidade ainda não oferecia o segundo grau.

13 “Quando viajei de volta a Salvador, deixei o ‘Jazz Itapoan’ todo organizado e com um bom repertório de peças orquestradas.” (CARDOSO, 1994, p.51)

14 João Correia e Silva foi Prefeito de Livramento entre 1951 e 1955, tendo realizado grandes obras, como a construção da usina hidrelétrica que forneceu energia ao município até a inauguração do sistema integrado das linhas Paulo Afonso e Funil.

15 UBa: Sigla correspondente a “Universidade da Bahia”, denominação original da atual UFBA. Somente em 1965, a Universidade passou a denomi-nar-se “Universidade Federal da Bahia” (Após a Lei n.º 4.759, de 20.8.1965, que dispõe sobre a denominação e qualificação das Universidades e Escolas Técnicas Federais).

16 “Baixo em Mib” é a forma tradicional de denominar-se, no Brasil, a tuba em Mi bemol das filarmônicas e bandas. Supomos que a marcha tenha sido concebida para ser tocada pela “Filarmônica 2 de Julho”, da cidade de Livramento de Nossa Senhora.

17 Aos onze anos de idade, após uma breve introdução como caixista, Lindembergue Cardoso começou a aprender trompa e a tocar o instrumento na “Filarmônica 2 de Julho” da Associação de Amigos de Livramento. Uns três anos depois, quando deixou a trompa pelo saxofone (soprano), passou também a participar do conjunto popular da cidade, animador das festas juninas e bailes da associação. Entrando no ginásio em 1953, foi requisitado pelo grupo instrumental da instituição, atuante nas festividades escolares. Mudando-se para Salvador em 1956 e ingressando no Colégio da Bahia, logo fundou um conjunto com os colegas e, tendo feito conhecimentos, passou a tocar, eventualmente, em orquestras de baile. Durante as férias de verão em Livramento, continuou participando, ainda por muitos anos, tanto do grupo popular da cidade, nos bailes carnavalescos da região, quanto da banda, especialmente na tradicional festividade religiosa do distrito de Canabrava, em louvor a São Gonçalo (v. também Nota 18). Quando ingressou nos “Seminários Livres de Música” (1960) e passou a ter responsabilidade sobre si, seu sustento vinha da atividade de saxofonista na orquestra do cabaré mais famoso da cidade (“Tabaris”) e em conjuntos populares, até o ano de 1967 (v. também Nota 21).

18 Em “Causos de Músico”, Lindembergue Cardoso depõe sobre sua primeira e última participações na banda de Livramento: “Outra manifestação religiosa na qual a banda tinha um papel preponderante, era uma festa celebrada no dia 28 de janeiro, em um distrito [...] chamado Canabrava [...]. Minha primeira experiência em Canabrava aconteceu em 1951, quando eu tinha 12 anos e ainda tocava trompa na Banda. E a última em 1968.” (CARDOSO, 1994, p.18-19)

19 Corais criados e regidos por Lindembergue Cardoso em Salvador: Coral de São Caetano (1968, bairro de Alagados); Os Pássaros (1970, Escola de Educação Artística da Prof.ª Margarida Mascarenhas); Coral do Colégio de Órfãos de São Joaquim (1970); Coral BESA (1976, Banco Econômico da Bahia); Coral da Polipropileno (1984, Pólo Petroquímico de Salvador); Coral da Luz (1985, Paróquia de Nossa Senhora da Luz, bairro da Pituba); Coral da TRANSUR (1987, Empresa de Transportes Urbanos de Salvador, 1987). Além desses coros formados por ele, Lindembergue Cardoso também regeu: o Coral Universitário da UFBA (1974 e 1979); o Coral da EMAC/UFBA (1979); o Madrigal da UFBA (1975-1976 e 1982-1988); o Coral do Instituto de Música da Universidade Católica de Salvador (1975-1981); o Coral da Juventude do Mosteiro de São Bento (1979-1980); e o Coral da TELEBAHIA (Companhia de Telecomunicações da Bahia, 1987).

20 Sua produção para o canto coral inclui 38 peças para coro a cappella, 31 para coro e instrumentos, e 20 para coro e orquestra (com ou sem vozes solistas), sem incluir uns poucos trabalhos inacabados. Alguns títulos de arranjos se encontram em diferentes versões (a cappella, com instrumentos e com orquestra).

21 Lindembergue Cardoso ingressou nos “Seminários Livres de Música” da UBa como estudante de saxofone em 1960. Foi quando assumiu, perante a família, a responsabilidade da decisão pela Música em detrimento da Faculdade de Direito. Como ele conta em “Causos de Músico” (p.47): “Foram tempos difíceis. A única fonte de rendas que eu tinha vinha dos bailes que eu tocava aos sábados com um conjunto que, graças a Deus, era muito solicitado.” Em 1964, passou a integrar a orquestra do cabaré mais famoso da cidade (“Tabaris”), de onde vinha seu principal sustento. Em 1967, ingressando como percussionista na Orquestra Sinfônica da Universidade, deixou as atividades em orquestras populares: “Minha participação nos eventos e no cotidiano dos Seminários de Música tinha aumentado tanto, que não sobrava tempo e nem vontade para continuar na música popular”. (CARDOSO, 1994, p.62)

22 A Festa do Bonfim se realiza em torno da procissão de Nosso Senhor do Bonfim e lavagem das escadarias da Igreja. Marcado pelo sincretismo religioso, o cortejo acontece na segunda quinta-feira após o dia de Reis (6 de janeiro). Devotos católicos e membros do candomblé prestam home-nagem ao santo, que, no sincretismo, corresponde a Oxalá. No lado profano da festa, ocorrem apresentações de filarmônicas, grupos de atabaques, capoeira e samba.

23 Na Umbanda, Oxaguian é o Oxalá menino, sincretizado com o Menino Jesus de Praga.

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NOGUEIRA, I. Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.7-26.

24 A versão orquestral de Oniçá Orê (op.75, 1981) foi escrita em homenagem ao artista plástico Carybé, o grande cronista visual da Bahia, pelo seu 70.º aniversário.

25 A estreia (ocorrida na missa oficiada pelo Papa João Paulo II no Centro Administrativo de Salvador em 7.7.1980) contou com um coro de 672 vozes sob a regência do compositor.

26 Texto “Caminhando com Jesus” de D. Avelar Brandão Vilela; Melodia de Lindberg Pires.

27 “Enviai, Senhor, operários para vossa messe, pois a messe é grande e poucos os operários”.

28 Segundo o que informa a Nota 14, a energia elétrica no município de Livramento data da administração de João Correia e Silva (1951 - 1955). Estamos nos referindo aqui ao período dos 7 aos 11 anos do compositor (1946 - 1950), quando, segundo relato seu em “Causos de Músico”, Livramento era uma cidade sem luz elétrica: “[...] naquela noite, meu pai [...] disse: ‘Nós vamos ali na Associação ouvir o rádio e voltamos logo’. Saímos, meu pai e eu – na época com sete anos – rumo à Associação. Subimos o beco do sobradão até alcançar a Praça da Matriz, onde ficava localizado o Club, e todo o percurso foi feito na escuridão, pois não havia luz elétrica em Livramento. Quando chegamos lá, observei [...] as pessoas que, sentadas em semi-círculo, ouviam atentamente os sons que saíam daquela caixa retangular.[...] Subitamente, o som que era claro e bom, silenciou como que por encanto! Imediatamente um dos ouvintes levantou-se e apertou as ‘aranhas’ da bateria e tudo se normalizou.” (CARDOSO, 1994, p.9)

29 A exemplo: O Sufoco, A Coisa, Pobre(ma), Rico Instrumento Pobre, Lux de Lixo, etc.

30 “Objeto sonoro”: estruturas gestálticas complexas, sintetizando um determinado número de componentes que interagem em complementaridade, e que se identificam pelas particularidades diferenciais que mantêm com o ambiente. Essa definição se deriva do conceito de “unidade sonora composta” apresentado por Didier Guigue (GUIGUE, 2007, p.41-42).

31 Uma criação do compositor, a “clave das regiões” - - já se encontra em suas obras do final da década de 1960, a exemplo, em Captações op.9, de 1969 (cf. Ex.17).

32 A exemplo: Peça para Madeiras, Cordas, Metais, etc. (1969, para fagote, violino e requisitos); Captações (1969, para conjunto misto); Espectros (1970, para coro e orquestra); Dois (1970, para soprano e fagote); Aleluia (1970, para coro misto e bumbo); Órbitas (1971, para conjunto misto); Concerto Brevissimo para Fagote (1972, para fagote e requisitos); Natureza Morta (1976, para flauta, oboé, saxofone soprano e piano); A Voz Co-lérica do Megafone (1977, para coro e instrumentos); Carinhinho a Diamantina (1981, para voz solista, coro e orquestra); Fla p (1982, para flauta e piano) e Minimalisticamixolidicosaxvox (1988, para coro e saxofone tenor).

33 Em fevereiro de 1982, Lindembergue Cardoso foi professor de Composição no Centro de Estudos “MVSIKA”, de Goiânia.

34 O op.110 (última obra indexada) é uma transcrição da Missa Nordestina op.3 para coro e orquestra de câmara.

Ilza Nogueira (PhD, State University of New York at Buffalo) é compositora e musicóloga. Desde 2003 integra a Academia Brasileira de Música, ocupando a Cadeira 27. Sua obra teórica concerne à música contemporânea brasileira, com ênfase no Grupo de Compositores da Bahia. É autora do livro Ernst Widmer: perfil estilístico (Salvador: UFBA, 1997) e do catálogo de obras de Ernst Widmer, publicado em 2007 pela Academia Brasileira de Música. Desde o ano 2000, coordena o projeto de pesquisa “Marcos Históricos da Composição Contemporânea na UFBA” (< http://www.mhccufba.ufba.br>), onde publica edições críticas de partituras com ensaios analíticos, edições de textos teóricos com ensaios críticos e catálogos de obras dos compositores pesquisados. Seu trabalho musicológico mais recente é o catálogo de obras de Fernando Cerqueira (2011), publicado na internet pelo projeto citado.

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Recebido em: 20/10/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

Haydn, segundo Villa-Lobos: uma análise do 1º movimento do Quarteto de cordas nº 7 de Villa-Lobos

Paulo de Tarso Salles (CMU-ECA/USP, São Paulo, SP) [email protected]

Resumo: este estudo analisa o 1º movimento do Quarteto de Cordas nº 7 de Villa-Lobos e investiga possíveis referências aos quartetos de cordas compostos por Franz Haydn, como Villa-Lobos sugeriu a Arnaldo Estrella.Palavras-chave: Villa-Lobos; Franz Haydn; neoclassicismo; quarteto de cordas; forma sonata.

Haydn, by Villa-Lobos: an analysis of 1st movement of Villa-Lobos’s String Quartet #7

Abstract: this article analyses the 1st movement of Villa-Lobos’ String Quartet nº 7 and search for possible references to Franz Haydn’s string quartets, as suggested by Villa-Lobos in conversations with Arnaldo Estrella.Keywords: Villa-Lobos; Franz Haydn; neoclassicism; string quartet; sonata form.

1- IntroduçãoComposto em 1942, o Quarteto de Cordas nº 7 de Hei-tor Villa-Lobos (1887-1959) é o mais extenso de seus 17 quartetos de cordas e considerado como uma de suas obras mais complexas. Dentre os comentaristas dessa obra em particular, destacam-se as opiniões de Arnaldo Estrella, Vasco Mariz e Eero Tarasti:

[O quarteto nº 7 é] o mais difícil dos quartetos de Villa-Lobos. Longos traços virtuosísticos, de execução transcendente, são con-fiados a cada um dos quatro componentes do conjunto. Não há armadura de clave. Por vezes, um tom aflora, chega mesmo a afirmar-se. No primeiro movimento é o tom de Dó Maior o que mais reponta, e, afinal, lhe serve de conclusão, numa ampla ca-dência plagal, que engloba no quarto grau, o acorde da dominante (ESTRELLA, 1970, p.59).

[...] sem armadura de clave, virtuosístico ao extremo para cada Executante, impreciso tonalmente, talvez o mais difícil da série para os intérpretes. Nele perpassa um turbilhão de ideias, bailando desenfreada e intensamente, entrelaçando-se à maneira do Ulis-ses, de Joyce, num esforço sobre-humano para extravasar a alma torturada do artista. Sentimentos contraditórios são expostos por um instrumento e imediatamente repetidos pelos outros, até che-garmos ao Allegro vivace, que encerra o 1º movimento de grandio-sidade inigualável (MARIZ, 1989, p.159).

Ele [o quarteto nº 7] poderia ser considerado quase como uma sinfonia arranjada para um quarteto. Ambivalente na tonalidade, consideravelmente mais complicado estruturalmente que qual-quer dos quartetos anteriores, igualmente o mais virtuosístico em seu tratamento instrumental, de brilho quase orquestral (TA-RASTI, 1995, p.309).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

O objetivo deste estudo é uma investigação mais minu-ciosa de aspectos formais e estruturais da obra, sua orga-nização harmônica e temática, além de discutir a releitu-ra do estilo de Franz Haydn e da forma-sonata do século XVIII, filtrados de acordo com o estilo de Villa-Lobos.

O Allegro oferece os costumeiros desafios à análise, típi-cos da obra villalobiana: formações de acordes não tonais mesclados a acordes tonais; progressões não catalogadas entre esses dois tipos de acordes; linhas melódicas suge-rindo tonalidades que não se caracterizam em relação à estrutura harmônica; grande variedade motívica. Em que pese o julgamento de Estrella acima citado, afirmando ser Dó Maior a tonalidade “que mais reponta”, não se observa na organização harmônica do 1º movimento a caracteri-zação de uma tonalidade ou modalidade segundo pro-cedimentos consagrados pela harmonia tradicional, tais como cadências, modulações e progressões. Essa dificul-dade inicial sugere a possibilidade de emprego da Teoria dos Conjuntos,1 a fim de revelar certas relações ocultas, ao mesmo tempo em que permite tratamento mais ade-quado às eventuais formações escalares e agrupamentos triádicos ocorrentes.

Outro aspecto contemplado por este estudo diz respeito à organização formal. Baseado em ESTRELLA (1970), Ta-rasti afirma que os quartetos de Villa-Lobos rejeitam a forma-sonata e estão mais para os “métodos de imitação

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e ricercare da Renascença”, sem qualquer traço percep-tível de Haydn, embora se possa encontrar certa “influ-ência de César Franck” (TARASTI, 1995, p.295). Mas uma análise mais detalhada do movimento inicial do Quarteto de cordas nº 7 revela não só o emprego da forma-sonata, como releitura,2 com várias referências a procedimentos encontrados em quartetos de Haydn.

Todavia, esta investigação se iniciará pelos elementos micro-estruturais, formadores das relações harmônicas e motívicas, para depois contemplar a organização da macroforma.

2 - Aspectos texturais e harmônicosUma vez definidos alguns meios possíveis de se abordar os procedimentos composicionais de Villa-Lobos, o pon-to de partida para uma análise consistente pela Teoria dos Conjuntos é a segmentação do material, de onde se tentará extrair relações estruturais significativas.3 A es-colha inicial baseou-se na organização fraseológica dos

compassos 1 a 9 (Ex.1), subdivididos em 1-3; 4-6; 7-9. Nessa sentença Villa-Lobos deslocou o gesto melódico do agudo em direção ao grave, passando por 1º violino; 2º violino e viola (Ex.2).

Vemos assim que esse gesto melódico consiste em três transposições de um tetracorde (4-11, segundo a classifi-cação de FORTE, 1973) através de um ciclo descendente de quintas (Ex.3).4 As duas primeiras são entremeadas por arpejos de tríades (Ré menor; Mib Maior) que ajustam o movimento descendente. A terceira transposição apre-senta uma quebra desse padrão, não há o arpejo nem a suposta entrada do violoncelo, a partir da nota Dó.5 To-davia, o padrão estabelece a sensação de direcionalidade nesses compassos iniciais.

O tratamento dado a cada uma dessas transposições também é variado, mais notadamente no aspecto da den-sidade textural. Nos compassos 1 a 3, o 1º violino recebe

Ex.1: Villa-Lobos, Quarteto nº 7, Allegro, compassos 1-9.

Ex.2: Villa-Lobos, Quarteto nº 7, Allegro, compassos 1-9: tema, distribuído entre os violinos e a viola.

Ex.3: tetracorde 4-11 e suas transposições presentes nos c.1-9.

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um acompanhamento maciço, em cordas duplas, de to-dos os demais instrumentos, perfazendo um total de seis linhas de acompanhamento em blocos de acordes. Nos compassos 4 a 6, o 2º violino recebe um acompanhamen-to inicialmente esparso: a nota final do 1º violino, com a qual se funde em uníssono e uma nota longa (Dó) da viola. Depois (c.5), o 1º violino e a viola se fundem na nota Si. Somente no c.6 temos a formação de um acorde com a participação do cello, totalizando uma densidade de qua-tro notas. Nos compassos 7 a 9, a nota Sol da viola recebe o acompanhamento de um Dó solitário do 2º violino; no c.8 temos um acorde de cinco notas e até a metade do c.9 um uníssono entre viola e cello. Todas essas intervenções são realizadas em bloco, sem interdependência rítmica, conferindo um caráter homofônico a toda a passagem (c.1-9). Grafando as variações de densidade textural no acompanhamento nesse trecho, segundo o método pro-posto por BERRY (1987, p.186-190), teremos a seguinte configuração: 6 |1 |4 |1 |5 |1.6

As relações harmônicas entre os acordes iniciais e a me-lodia são vistas no Ex.4. A recorrência do tricorde 3-11 (o qual representa as tríades maiores e menores) também evidencia o caráter diatônico desse trecho da obra. Note-se que esse tricorde aparece não somente na linha me-lódica, como um arpejo descendente, mas também como parte integrante dos blocos de acordes.7 A superposição desses eventos deixa claro que o uso desse material não apresenta características tonais, mas uma concepção próxima à noção de “pandiatonismo”.

O termo pandiatônico é usado para descrever uma passagem que utiliza apenas os sons de alguma escala diatônica, mas sem se ba-sear nas progressões harmônicas tradicionais e tratamento da dis-sonância. Alguns autores preferem considerar que essas passagens diatônicas sejam atonais do que defini-las como pandiatônicas, enquanto outros não (KOSTKA, 2006, p.108).

Essa questão terminológica de fato é pertinente, pois a percepção de que há um tipo de música diatônica que não se fundamenta em relações funcionais da harmonia tonal é compartilhada por vários autores.8 Comentando algumas passagens de obras de Stravinsky, Joseph Straus observa que:

A coleção diatônica é muito associada à música mais antiga, mas funciona de outra maneira, primordialmente como coleção fonte de referência de cuja superfície os motivos são extraídos. [...]

Precisamos de uma terminologia para a música diatônica pós-tonal, uma que permita-nos falar sobre seus usos sem confundir a questão com todo tipo de proposições inapropriadas (STRAUS, 1990, p.95-6).

Outro aspecto latente no Ex.4 é a contração do intervalo nas vozes superiores dos acordes: Dó#-Fá# (4ª J); Dó#-Fá (4ª dim.) e Fá-Lá (3ª M). Obviamente, a enarmoniza-ção entre o segundo e terceiro intervalos antecipa essa redução. No entanto, nota-se uma apreciável redução dos batimentos entre as notas presentes nos acordes e o material triádico da melodia. É uma forma adicional de redução da densidade, neste caso de ordem harmônica.

Somados esses fatores, podemos considerar uma razoável estabilidade em relação ao material harmônico empregado nos compassos 1 a 9. Cabe até mesmo a definição tradicional de “tema” para essa seção do 1º movimento, levando ainda em consideração certos desdobramentos posteriores da obra. Nesse sentido, o material após o tema “a” sofre significativa alteração a partir do nono compasso. Entre os compassos 9 a 18 a linha do violoncelo se destaca sob a textura, enquanto os demais instrumentos formam tétrades obtidas por meio do timbre de glissando característico das cordas. Nos compassos 13 a 16 (Ex.5) o cello repete o tetracorde temático da viola (c. 7-9).

Ex.4: análise do material harmônico, c.1-3.

Ex.5: solo do violoncelo, c.13-16.

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As tétrades realizadas pelos violinos e viola, por sua vez, apresentam um padrão harmônico baseado em progressões ascendentes de terça, como nos compassos 9-10 (Ex.6).

Com isso, nos compassos 9 a 13 temos outra coleção diatônica (7-35), cujas alterações poderiam suscitar uma classificação como “Mib Maior” ou “Dó menor”, não fosse o caráter não hierarquizado da movimentação dos acor-des. Procedimentos semelhantes são empregados até o c.21, quando a nota Ré# passa a ser polarizada, por meio de sucessivas aparições em diversas regiões da textura (Ex.7). Ao mesmo tempo, a viola retoma a figuração mo-tívica das primeiras frases temáticas.

A razão de considerar Ré# como nota “principal” do trecho acima, em relação às demais alturas, ocorre em função do material temático que sucede a essa passagem (Ex.8).

Como mostra o destaque do exemplo acima, a nota Ré# continua sendo polarizada até soar solitária nos compas-sos 30-31, na linha do 2º violino.9 Conclui-se daí que o estabelecimento de eventuais “centros”, sem uso de re-lações tonais, ocorre por meio da disposição rítmica de determinadas notas, ou mesmo em sua taxa de repetição.

Porque uma peça não é tonal, entretanto, isso não implica que ela não possa ter centros de alturas ou classes de alturas. Toda música tonal é cêntrica, baseada em classes de altura específicas ou trí-ades, mas nem toda música cêntrica é tonal. [...] No sentido mais geral, notas que são repetidas frequentemente, estendidas em sua duração, colocadas em registro extremo, tocadas com força e des-tacadas rítmica ou metricamente tendem a ter prioridade sobre notas que não tenham esses atributos (Straus, 1990, p.89-91).

Esse recurso prepara a entrada de um novo tema, inician-do por essa mesma nota (c.32), como se fosse resultado de uma espécie peculiar de processo “modulatório”. Pode-se observar que a partir desse momento o material se tor-na mais cromático. Com efeito, tomando isoladamente cada linha instrumental nos compassos 32-34, observa-se a seguinte configuração das classes de alturas (Ex.9).

Nos compassos 35 a 39 (Ex.10) ocorre uma transposição T5 (5 semitons acima, ou à 4ª J superior), preservando as mesmas relações entre os conjuntos.

Embora se possa considerar tal trecho como uma su-perposição de tonalidades,11 também é viável observar a interação entre as coleções de cada linha instrumental. Todos esses agrupamentos de notas são subconjuntos da escala octatônica (8-28),12 uma combinação que Villa-Lobos explorou em um número significativo de obras.13

Ex.6: acordes nos violinos e viola, c.9-10. Desconsiderou-se a linha do cello.

Ex.7: polarização da nota Ré# (c.23-27). Tal polarização se estende até o c.31.

Ex.8: a entrada de um novo tema, “octatônico”, a partir da nota ré#.

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A notável mudança de textura, associada à transforma-ção do material harmônico, passando de diatônico a oc-tatônico ajuda a estabelecer esse trecho como um segun-do tema importante na estrutura do primeiro movimento. Com isso já se antecipa uma possível interpretação for-mal desse 1º movimento como uma versão livremente ampliada (harmonicamente) da forma-sonata.

Dentro dessa perspectiva, a seção entre os compassos 9 e 31 ganha o caráter de uma transição entre os temas A e B. Nessa transição já observamos elementos de instabili-dade como o uso do glissando e o uso descentralizado da coleção diatônica, bem como o encaminhamento da por-

ção final (c.23-31) para um “centro” em Ré#. No c.16 vê-se ainda, de relance, a superposição de dois procedimen-tos tipicamente villalobianos: a alternância entre “notas brancas” e “notas pretas” e a linha em “zigue-zague” do 1º violino (Ex.11).14

A figuração em zigue-zague no 1º violino assume então um caráter simultâneo de prolongamento, com mudança de oitava da nota Ré#, e de sua consequente polariza-ção como “centro” dessa passagem. Simultaneamente, a alternância entre as coleções diatônicas e cromáticas nessas linhas resulta em uma superposição de escalas pentatônicas (Ex.12).

Notas Forma Normal Forma Primária Número de Forte

Violino I Ré#, Dó#, Si#, Mi, Fá# [0,1,3,4,6] (01346) 5-10

Violino II Sib, Mi, Dó#, Fá# [10,1,4,6] (0258) 4-27

Viola Dó, Mi, Sol, Sib, Réb, Fá# [4,6,7,10,0,1] (013679) 6-30

Violoncelo Dó, Sol, Mi [0,4,7] (037) 3-11

Ex.9: formações de conjuntos de classes de alturas entre os c.32-34.10

Notas Forma Normal Forma Primária Número de Forte

Violino I Sol#, Fá#, Mi#, Lá, Si [5,6,8,9,11] (01346) 5-10

Violino II Mib, Lá, Fá#, Si [3,6,9,11] (0258) 4-27

Viola Fá, Lá, Dó, Mib, Solb, Si [3,5,6,9,11,0] (013679) 6-30

Violoncelo Fá, Dó, Lá [5,9,0] (037) 3-11

Ex.10: formações de conjuntos de classes de alturas entre os c.35-39.

Ex.11: alternância entre notas “brancas” (diatônicas) e “pretas” (cromáticas), associada ao “zigue-zague” da linha do 1º violino (c.16).

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Ora, a coleção formada pelas notas “pretas”: Fá#, Sol#, Lá#, Dó#, Ré#, [6,8,10,1,3] também é reconhe-cida como uma coleção pentatônica, 5-35. Assim se observa uma superposição de várias transposições da coleção pentatônica nesse compasso. Por sua vez, o agrupamento em destaque no Ex.11, com as notas Mi, Sib, Fá# e Réb correspondendo às classes de altura [10,1,4,6] é uma antecipação do conjunto 4-27 que formará a linha do 2º violino nos compassos 32 a 34 (ver Ex.8 e Ex.11).

Com isso, podemos afirmar que a elaboração harmôni-ca desse movimento foi elaborada com certo esmero, visando certa coerência e preparação entre as seções temáticas e de transição. Pode-se especular então que o projeto composicional desse movimento tenha sido uma atualização consciente da forma-sonata de acor-do com uma concepção alargada de organização pós-tonal. Em linhas gerais, é o que se entende por uma obra neoclássica.

3 - Aspectos formais: Villa-Lobos revisita a forma-sonataArnaldo Estrella conta que Villa-Lobos dizia ter se inspirado em Haydn, para a composição de seus quartetos de cordas. Mas, baseado em uma noção um tanto ingênua dos elemen-tos formadores do estilo clássico e de aparentes incompati-bilidades estéticas, Estrella refutou completamente qualquer relação entre as poéticas de Villa-Lobos e Haydn:

Villa-Lobos afirmava, em conversas íntimas, ter adquirido muito do seu métier de compositor estudando os quartetos de Haydn. [...] O suposto aprendizado com Haydn e a admiração pelo compositor austríaco não poderiam influir num compositor brasileiro, a ponto deste compositor, fortemente vinculado à sua raça e à sua terra, e irmanado às correntes artísticas do século XX, imitar um puro clássico do século XVIII.

[...] Contudo, não parece ter sido a lição de Haydn, os seus proces-sos de compor e a técnica de construção, que realmente marcaram e orientaram o compositor brasileiro. Este voltou-se, de preferên-cia, para o estilo imitativo da polifonia renascentista , para os pro-cessos do “Ricercare”.

Notas “brancas” Forma Normal Forma Primária Número de Forte

Violino I Ré, Mi, Sol, Lá, Si [7,9,11,2,4] (02479) 5-35

Violino II Dó, Ré, Fá, Sol, Lá [5,7,9,0,2] (02479) 5-35

Viola Dó, Ré, Fá, Sol, Lá [5,7,9,0,2] (02479) 5-35

Ex.12: coleções pentatônicas no c.16.

EXPOSIÇÃO

Tema A c.1-9 Lá-Ré-Sol 15

DIATÔNICOPonte

c.9-10 Dó; glissando

c.11-18 Dó e Ré#

c.19-22 Ré#

c.23-31 Ré#; glissando

Tema Bc.32-35 Ré# e Dó

OCTATÔNICOc.36-39 Lá# e Fá

Codeta C.40-44 Sib DIATÔNICO

DESENVOLVIMENTO c.45-ss. Mib

Ex.13: quadro de elementos harmônicos e temáticos na “exposição” e início do “desenvolvimento”, à maneira de forma-sonata.

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[...] Villa-Lobos interessou-se pela forma da “Fuga”, configurando-a como convinha à expressão do seu pensamento. O mesmo não acontece com a forma-sonata. Nos seus quartetos Villa-Lobos não a utiliza, não procura utilizá-la. Ignora-a completamente. O molde não lhe convinha, não o seduz. De um modo geral, Villa-Lobos constrói por justaposição. Utiliza os processos eternos da variação para obter continuidade. Serve-se de contrastes oportunos para estabelecer variedade (Estrella, 1910, p.7; 10; 11).

Estrella se equivocou ao desconsiderar a grande importância da escrita contrapontística nos quartetos de Haydn. Várias passagens e exposições temáticas, seções de desenvolvimento, scherzos e variações haydnianas empregam texturas imitativas, fugatos e demais convenções polifônicas. O simples fato de Villa-Lobos realizar procedimentos semelhantes em vários de seus quartetos é, na verdade, referência direta ao estilo de Haydn. Estudos mais recentes realçam a importância da escrita contrapontística para o estilo clássico do século XVIII:

[...] Em todos esses quartetos [Op.50 de Haydn], a escrita solo independente acarreta uma exibição enfática e complexa de contraponto, mesmo nos movimentos lentos, que consequente-mente lhes adiciona fôlego ao lirismo e tranquila gravidade, rara em Haydn até o momento [...]. O retorno parcial à rica e mais ‘erudita’ técnica do Alto Barroco [...] foi uma estratégia comum tanto a Mozart como a Haydn em várias fases de suas carreiras (ROSEN, 1997, p.139).

A abordagem formal, semelhantemente a muitos compositores do século XX como Stravinsky, Schoenberg,

Prokofiev e Bartók, não ocorre na articulação entre forma e tonalidade da sonata clássica, mas sim na distribuição textural, motívica e mesmo em relação à macroforma e suas expansões advindas desde o século XIX. Já com a breve descrição dos temas oferecida no tópico anterior, podem-se esquematizar algumas das relações harmônicas que estabelecem uma exposição temática em moldes semelhantes aos da sonata-forma (Ex.13).

Observam-se algumas estratégias que intensificam a percepção de áreas estáveis, para os temas A e B, os quais empregam material contrastante (coleções diatônicas no tema A, coleções octatônicas no tema B), enquanto o material da ponte tem entre suas caracterizações de instabilidade o emprego de figurações de glissando, além de maior número de mudanças na textura. Destaca-se ainda o caráter processual de Lá a Mib, por meio de um ciclo de quintas descendentes (Lá, Ré, Sol, Dó, Fá, Sib, Mib) o Ré# é polarizado melodicamente já nos compassos 11-18 e vai sendo reiterado até o início do desenvolvimento, enarmonizado como Mib.

No Quarteto de Cordas Op.76 nº 2, em Ré menor, Haydn utilizou um tema em quintas descendentes, superposto ao tetracorde superior da escala de Ré menor harmôni-ca (em destaque no Ex.14). Enquanto o tema em quintas remete às entradas do tema A, no Quarteto nº 7, o tetra-corde de Ré menor se assemelha enormemente com esse mesmo tema (Ex.15).

Ex.14: início do Quarteto de Cordas Op.76 nº 2, de Haydn.

Ex.15: comparação entre o tema do Quarteto Op.76 nº 2 de Haydn e o Quarteto nº 7 de Villa-Lobos.

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Esse tema, facilmente convertível em um baixo, é explo-rado por Haydn em diversas combinações, como no de-senvolvimento da obra (Ex.16). Tal jogo de superposições é também semelhante ao realizado por Villa-Lobos em algu-mas passagens do Quarteto nº 7, como se observa no início da seção de Desenvolvimento (Ex.13 acima). A distribuição dos elementos texturais em ambas as obras é realmente notável, se compararmos os dois trechos (Ex.16 e Ex.17).16

4 - A seção de Desenvolvimento: uma escuta “va-gante” pela harmonia dos quartetos de HaydnNo restante do Desenvolvimento, Villa-Lobos parece se afastar do modelo haydniano. Nos compassos 55 a 58 os violinos tocam, oitavados sobre a nota Sol, uma célula

derivada do tema A. Isso leva a uma espécie de transição (c.59-66) onde uma série de trêmulos e trinados é feita sobre a linha do cello, que caminha de Sol a Dó. Surge então uma melodia bastante expressiva, a cargo do 1º violino, que leva o Dó inicial até um Si, no c.77. Todavia, a polarização em Si já se manifesta no c.70 (Ex.18). Todo o material dessa passagem é essencialmente diatônico, com exceção de um Sib no cello (c.67).

Após o Si agudo do c.70, o violino solista faz uma breve cadenza que incorpora o Fá#. Com essas alterações, o material harmônico resultante nos compassos 67 a 73 pode ser bipartido em dois octacordes diatônicos 8-23: [9,10,11,0,2,4,5,7] e [4,5,6,7,9,11,0,2]. A nota Si do c.70 seria assim o divisor de águas entre essas duas

Ex.16: desenvolvimento do tema em quintas, no Quarteto Op.76 nº 2 de Haydn, c.67-75.

Ex.17: sucessão de quintas descendentes no Quarteto nº 7 de Villa-Lobos, c.45-48.

Ex.18: solo do 1º violino, c.67-70.

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coleções, o que associado ao destaque natural por ser o ponto culminante da frase, lhe atribui também um sentido harmônico.

O Desenvolvimento assume assim um caráter errante, talvez até mesmo errático, introduzindo um novo tema lírico que se inicia claramente modal, em Mi “dórico”, mas que se estende com modificações harmônicas entre os compassos 77 a 111. Entre os compassos 111 e 116 se estabelece uma curiosa caracterização de “Lá Maior”, em que a linha do cello leva à “Subdominante”, ponto em que o 1º violino reassume a ação principal e desencadeia, nos compassos 117 a 120, um zigue-zague que faz retornar abruptamente a uma variante do tema canônico que ini-ciou o Desenvolvimento, com centro em Mib.

Esse tema insufla novo interesse à seção, levando a uma passagem virtuosística do 1º violino, em quintinas de se-micolcheias (c.130-137), a partir de material diatônico,

com a nota Dó sendo enfatizada pelo cello em seu final. A harmonia tinge-se então com quatro bemóis (c.138-145), permanecendo diatônica, e volta a sugerir “Lá Maior” entre os compassos 146-150, encerrando a seção de Desenvolvimento e levando à Recapitulação. A fim de apresentar com clareza os eventos descritos acima, faz-se uma tabela com esses dados (Ex.19).

Como se vê, o plano composicional parece um tanto dis-perso nessa seção. A sugestão do ciclo de 5ªs (Si-Mi-Lá, c.67-116) evoca o processo que foi eficaz na Exposição, mas que se dilui com movimentos erráticos (Ex.20). A in-trodução dos temas líricos por vezes interrompe o fluxo dinâmico do movimento. Fica certa sensação de preen-chimento forçado do tempo, como que inflando artifi-cialmente a dimensão do desenvolvimento temático. Se há alguma intenção de estabelecer uma ligação em tor-no do intervalo de trítono, Mib-Lá, tal conexão acaba se perdendo e não parece significativa. As sonoridades

Compasso Material/Figuração Centro

45-49 Cânone/fugato Mib

50-54 Transição ?

55-58 Tema A em oitavas Sol

59-66 Tema A, trêmulos e trinos Dó

67-77 1º Tema lírico, óctades diatônicas Si

77-111 2º Tema lírico, modal Mi

111-116 Transição, diatônico Lá “Maior”

117-119 Transição ?

120-126 Variação do cânone/fugato Mib

127-137 Adensamento rítmico, quintinas Dó

138-145 Transição, diatônico Láb?

146-150 Ponte, diatônico “Lá Maior”

Ex.19: etapas do Desenvolvimento no 1º movimento do Quarteto nº 7.

Ex.20: esquema modulatório do Desenvolvimento no Quarteto nº 7.

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octatônicas do tema B não foram exploradas, o que talvez pudesse contribuir para uma amarração mais eficiente do material. A ideia tímbrica dos c.59-66 não foi explorada em seu potencial de transição.

Note-se que essa interpretação negativa se dá em grande parte pela escuta da peça em função da ideia de forma, preconcebida em relação ao modelo haydniano. No en-tanto, ocorre uma forma alternativa de escuta, que pode-mos chamar de “escuta vagante”, que lida com a maneira propositalmente errática desse Desenvolvimento, até que a Recapitulação retome a direcionalidade.

O próprio “modelo haydniano” oferece uma notável exce-ção, significativa para a compreensão dos eventos caóti-cos apresentados na seção de Desenvolvimento do Quar-teto nº 7 de Villa-Lobos. No Quarteto Op.76 nº 6, em Mib Maior, Haydn escreveu um segundo movimento bastante incomum, na tonalidade de Si Maior, também com uma harmonia “errante” (Ex.21).

Talvez a primeira estranheza que ocorra seja a de que até o momento falávamos do Op.76 nº 2 de Haydn, como provável modelo para o quarteto de Villa-Lobos. Como então justificar a inclusão de outra obra de re-ferência? O ponto de partida foi sugerido por uma co-nhecida declaração de Villa-Lobos, sobre o quarteto de cordas de Debussy, que segundo ele valeria “por todos os quartetos de Beethoven”.17

Ora, é possível supor que Villa-Lobos tenha feito uma re-leitura de diversos quartetos haydnianos em uma única obra, no caso, o Quarteto nº 7. Não haveria motivos acei-

táveis para supor que, após uma Exposição temática bem amarrada em relação ao modelo haydniano o composi-tor simplesmente abandonasse o projeto durante a se-ção de Desenvolvimento. Mas é bem possível que a ideia de ir além da superfície formal da sonata clássica fosse atrativa o suficiente para que Villa-Lobos empreendesse múltiplas leituras de quartetos haydnianos, sacrificando a coerência formal da obra para estabelecer outro nível de diálogo com a música do passado.

A Fantasia, segundo movimento do Op.76 nº 6 de Haydn oferece um modelo de harmonia modulante que se asse-melha ao da seção de Desenvolvimento do Quarteto nº 7 de Villa-Lobos. Mas as referências não se esgotam aí. O tema com centro em Mib, que inicia o Desenvolvimento (Ex.22), não encontra grandes paralelos no Quarteto em Mib de Haydn, mas com o 4º movimento do Op.76 nº 3 em Dó Maior, do qual boa parte está em Dó menor, passando por Mib Maior (Ex.23).

Como se observa, as semelhanças se processam, na ver-dade, por uma série de negações: o registro agudo do violino é substituído pelo grave do cello; o legato pelo staccato; a figuração de bordadura pelo “zigue-zague”.

5 - Considerações FinaisEste trabalho pretendeu mostrar que certos aspectos considerados geralmente “excêntricos” na obra de Villa-Lobos encontram algumas justificativas se forem adota-dos certos procedimentos metodológicos que levem em consideração a forma peculiar do compositor em expor suas ideias e em relação à disposição composicional do material musical. Nesse sentido, o emprego da Teoria dos

Ex.21: Esquema modulatório do 2º movimento (Fantasia, Adagio) do Quarteto Op.76, nº 6, em Mib Maior de Joseph Haydn (segundo BAKER, 2003, p.65).

Ex.22: tema do fugato, com centro em Mib, no Quarteto nº 7 de Villa-Lobos.

Ex.23: Figuração no 4º movimento do Quarteto Op.76 nº 3 de Haydn.

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Conjuntos revelou formas objetivas de conectividade en-tre elementos temáticos e possibilitou o delineamento de uma abordagem pouco convencional da forma-sonata. O mesmo se pode dizer do uso da ferramenta de análise textural (BERRY, 1987), deixando entrever como a densi-dade da textura é um elemento crucial na definição das cadências na música villalobiana.

Em seguida, quando se detectou que provavelmente o Quarteto Op.76 nº 2 em Ré menor de Haydn serviu como modelo de referência, pode-se observar como Villa-Lo-bos “reescreveu” essa peça, num processo que revela ao mesmo tempo sua criatividade composicional e arguto senso de análise. Nessa seção temática temos um Villa-Lobos neoclássico, à maneira de Ravel, Stravinsky e Bar-tók em determinadas obras.

Todavia, a seção de Desenvolvimento do Quarteto nº 7 mostrou-se inconsistente em relação à releitura, ou “re-escritura” apresentada na Exposição. Tais inconsistên-cias, evidentes em uma escuta linear da obra, podem até

mesmo reforçar o juízo de que Villa-Lobos tenha sido um compositor “descuidado” e sem domínio técnico. Mas isso ganha outra dimensão, quando se considera uma possível ampliação do conceito de “desenvolvimen-to”, onde o compositor brasileiro possa ter citado e in-corporado temas e procedimentos utilizados nos Op.76 nº 3 e nº 6. Ao fugir da esquematização tradicional do desenvolvimento temático, o Quarteto nº 7 parece pro-por então uma espécie de metassonata, atravessando os limites da forma e da escuta linear para recriar e embaralhar os procedimentos do Classicismo. Pode-se falar em um tipo de colagem de fragmentos temáticos, tonalidades, motivos e gestos observados nos quartetos de Haydn por Villa-Lobos.

Talvez uma análise mais detalhada possa revelar re-ferências a outras obras de Haydn, o que demandaria um espaço superior ao aqui disponível. Quanto aos ele-mentos da Recapitulação (c.151-213) e Coda, creio que possam ser deduzidos pelo leitor a partir das sugestões realizadas neste estudo.

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Notas1 Adotou-se como referência para a Teoria dos Conjuntos autores como FORTE (1973) e STRAUS (1990). Tal estratégia analítica tem proporcionado

bons resultados não apenas para a música dodecafônica, mas também para certas obras e compositores da 1ª metade do século XX (Stravinsky, Bartók, Milhaud, entre outros) que, assim como Villa-Lobos, empregaram a coleção diatônica (e outras possibilidades como as escalas pentatônica, de tons inteiros e octatônica) sem as hierarquias tonais e modais comuns à música anterior.

2 O Quarteto nº 15 (1955) de Villa-Lobos também tem um 1º movimento em forma-sonata, desmentindo essa ideia de que o compositor rejeite esse tipo de organização formal.

3 FORTE (1973, p.83) observa que “por segmentação se compreende o procedimento de determinação de quais unidades musicais de uma compo-sição serão considerados objetos de análise”.

4 Por sua vez, o conjunto resultante das três transposições de 4-11 é o octacorde diatônico 8-23 [7,8,9,10,0,2,3,5]. STRAUS (1990, p.96-97) observa que esse conjunto é formado pela fusão de duas coleções diatônicas 7-35 com seis sons comuns (invariâncias) entre si. A presença desse octacorde indica o caráter diatônico, mas não tonal, desse trecho.

5 O cello apresenta esse material dos compassos 11 a 15, retomando as linhas do 2º violino e da viola.

6 Os números indicam, nesse caso, a quantidade de notas presentes em cada acorde. Uma sequência de acordes com mesma quantidade de notas conta como uma única entrada. Como os mesmos são apresentados em bloco, não há diferenciação qualitativa em relação à independência rítmica das linhas que constituem esses acordes.

7 O uso não funcional do tricorde 3-11 (tríades Maior e menor) é uma marca da música villalobiana, como se observa em SILVA (2008) e SALLES (2005b, 2008 e 2009b).

8 Na dissertação de José Ivo da Silva, a “tendência pandiatônica” é considerada em conjunto com outras possibilidades de análise, indicando o grau de complexidade de avaliação da escrita villalobiana dos anos 1940-50 (SILVA, 2008, p.136-145).

9 Simultaneamente, a linha do violoncelo parece sugerir a continuidade do ciclo de quartas desencadeado pelo tema inicial (Lá-Ré-Sol), passando por Dó (c.32-34); Fá (c.35-38); Sib (c.40-45) e Mib (c.46).

10 A “Forma Normal” é a ordenação do conjunto de notas selecionado de acordo com uma ordem crescente de intervalos, da esquerda para a direita; a “Forma Primária” seria a transposição desses intervalos para a menor ordenação possível, a partir de 0 (Dó); o “Número de Forte” é uma catalo-gação, em forma de tabela, de todos os conjuntos possíveis no sistema temperado feita por Allen FORTE (1973) sendo amplamente reconhecida e empregada para análise musical pela Teoria dos Conjuntos.

11 “[...] o primeiro violino apresenta um tema baseado na escala de Dó# menor tendo ao fundo o acorde da tônica em Dó Maior no cello” (TARASTI, 1995, p.309). No segundo trecho a superposição seria Fá# menor sobre Fá Maior.

12 A somatória dos quatro agrupamentos de notas, nos dois trechos analisados nas Tabelas 1 e 2, resulta em duas transposições do conjunto 7-31: [3,5,6,8,9,11,0] e [10,0,1,3,4,6,7], outro subconjunto da octatônica 8-28.

13 Pode-se mencionar en passant obras como o Polichinelo (da Prole do Bebê nº 1) e o solo de flauta inicial do Choros nº 10, como sonoridades octa-tônicas marcantes na obra villalobiana.

14 Jamary OLIVEIRA (1984) e SOUZA LIMA (1969) já documentaram esse recurso, costumeiro na obra para piano de Villa-Lobos. Tal procedimento está relacionado com a exploração de simetrias inerentes à divisão temperada da oitava em notas diatônicas e cromáticas. Quanto à figuração em zigue-zague, empreendi um estudo sobre os processos composicionais de Villa-Lobos (SALLES, 2005a), onde ofereço uma tipologia em relação à funcionalidade dessas figurações em diversos contextos texturais. Assim, o zigue-zague villalobiano assume três funcionalidades estruturais: a) elemento textural, geralmente em ostinato; b) prolongamento de determinada altura, às vezes associado com mudança de registro (oitava) ou timbre; c) polarização sobre nota situada no início ou final da figuração.

15 Neste caso, as notas Lá, Ré e Sol correspondem ás notas iniciais de cada entrada do tema, nessa Exposição.

16 Villa-Lobos fez diversas releituras semelhantes em outras de suas obras, como o Prelúdio de Tristão e Isolda (Wagner) em Uirapuru, o solo de fagote de Le Sacre du Printemps (Stravinsky) no solo de sax do Noneto, a Abertura de Guilherme Tell (Rossini) na Suíte Sugestiva, o Carnaval dos animais (Saint-Säens) em O canto do cisne negro, sem falar nas Bachianas. Longe de ser uma prática de plágio, como já se insinuou a seu respeito, trata-se de um procedimento relativamente comum, agregando composição e análise. Há casos como o Op.19/6 de Schoenberg, relendo a Sinfonia nº 9 de Mahler (SALLES, 2007), Agon de Stravinsky, reaproveitando a série das Variações Op.30 de Webern, Golliwogg’s Cakewalk de Debussy parodiando Tristão e Isolda de Wagner.

17 Declaração de Villa-Lobos proferida em palestra na cidade do Recife (PE), cuja gravação está disponível no acervo do Museu Villa-Lobos, Rio de Janeiro.

Paulo de Tarso Salles é compositor, professor, violonista e pesquisador nascido em São Paulo. Leciona Contraponto, Harmonia e Análise Musical no Departamento de Música da ECA/USP.Coordenador do PAM – Laboratório de Percepção e Análise Musical (ECA/USP), junto com a Profa. Dra. Adriana Lopes Moreira. Autor dos livros: Aberturas e impasses: a música no pós-modernismo (ed. Unesp, 2005) e Villa-Lobos: processos composicionais (Ed. Unicamp, 2009). Desenvolve pesquisas sobre: processos composicionais de Villa-Lobos; Análise Musical de obras dos séculos XX-XXI e Música e Pós-Modernismo. Seu projeto de pesquisa “Processos composicionais de Villa-Lobos: uma análise dos seus Quartetos de Cordas” tem apoio FAPESP. Foi Presidente da Comissão Científica do Simpósio Internacional Villa-Lobos realizado em São Paulo (de 16 a 21 de novembro de 2009), no MASP, por ocasião das homenagens ao cinquentenário de morte de Villa-Lobos.

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CARDOSO, L. A. Subsídios para. . . Hino da Independência, de Dom Pedro I. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.39-48.

Recebido em: 13/09/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

Subsídios para a gênese da imprensa musical brasileira e para a história do Hino da Independência, de Dom Pedro I

Lino de Almeida Cardoso (UNESP, São Paulo, SP)[email protected]

Resumo: Este artigo tem por objetivos rever, mediante análise bibliográfica e de fontes primárias, a história de um de nossos símbolos musicais pátrios, o Hino da Independência, de Dom Pedro I, bem como trazer novos subsídios para o estudo da gênese da imprensa musical brasileira. Tem, igualmente, por escopo divulgar peculiaridades de uma antiga e pouco conhecida partitura desse hino, já não mais presentes em modernas edições de tal composição.Palavras-chave: Dom Pedro I; música do século XIX; imprensa musical; hinos.

Subsidies for the Brazilian musical press genesis and the history of the Independence Hymn, by Dom Pedro I

Abstract: This article aims at reviewing, through bibliographical and primary sources analysis, the history of one of Brazil´s national anthems, the Independence Hymn, by Dom Pedro I, as well as bringing new subsidies for the study of the Brazilian musical press origins. It also intends to reveal some peculiarities of an early and lesser known piano and voice score of the Hymn, not present in today’s editions of this composition.Keywords: Dom Pedro I; nineteenth-century music; musical press; hymns.

1 – IntroduçãoHá pouco mais de quarenta anos, em sua próspera pesquisa Francisco Manuel da Silva e seu tempo, Ayres de ANDRADE (1967, v.1, p.143-158) reuniu, possivelmente, a maior quantidade de informações até hoje coligidas a respeito de uma história, que, no entanto, ainda obscura, apenas circunda o surgimento do Hino da Independência, de Dom Pedro I, e sua posterior fixação no repertório de composições musicais pátrias do Brasil. Entre seus mais significativos achados, o referido autor recuperou a seguinte notícia, publicada a 13 de dezembro de 1824, no Diário mercantil, do Rio de Janeiro:

Saíram à luz o Hino imperial e constitucional, e o Hino brasílico-imperial, sendo aquele composto por S. M. o Imperador: ambos com cantoria e música para pianoforte: recentemente gravados nesta corte. Vendem-se no armazém de instrumentos e música de Ferguson e Crockatt, cada um por 320 réis (apud ANDRADE, 1967, v.1, p.155).

Tal pequena e preciosa nota não apenas nos aduz o que, até o momento, se admite ser a mais remota informação a respeito da existência de imprensa musical no Brasil1. Ela nos faz conhecer, também, qual teria sido o primitivo título do Hino da Independência, composto pelo nosso primeiro Imperador. Ora, tal fato, até então apenas conjecturado por Andrade com base na notícia supramencionada,

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

vem a ser aqui decisivamente comprovado com o somar documental de uma partitura impressa, a qual, se não era propriamente desconhecida, até hoje, ao que tudo indica, jamais foi esquadrinhada2.

Antes, porém, de tratarmos dela, cumpre ressaltar que, das raras solfas oitocentistas conhecidas do Hino da Independência, todas, exceto esta, já apresentam, em seus frontispícios, o título que o próprio uso tornaria comum. Caso, mesmo, do manuscrito, dito “do próprio punho” de Dom Pedro I, tombado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), desde 1861, quando o maestro Francisco Manuel da Silva o doou a esta instituição3; ou do mais antigo impresso carioca dessa obra, do qual conhecemos exemplar, o Hino da Independência do Brasil: reduzido da partitura original para piano por Francisco Manuel da Silva, publicado pela Imperial Imprensa de Música de Filippone & Tornaghi, em 1862, por ocasião da inauguração, no Rio de Janeiro, da estátua equestre de Dom Pedro I4.

É, pois, dos apêndices de uma publicação londrina de 1830 — a não estranha Notices of Brazil in 1828 and 1829, do reverendo irlandês Robert Walsh — que vem à tona uma razoavelmente bem cuidada5 edição de

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tal Hino imperial e constitucional. Composto por S. M. I. o Senhor Dom Pedro 1º. Nela, já, em um primeiro golpe de vista, podemos identificar, apesar de algumas interessantes singularidades, o nosso velho e conhecido Hino da Independência6. Eis, em apenas duas páginas, a peça impressa, tal como também era — segundo o Diário mercantil — a sua edição original, de 1824: “com cantoria e música para pianoforte” (Ex.1).

2 – A gênese da Imprensa musical brasileiraDiscorrendo, inicialmente, sobre a questão da gênese da imprensa musical brasileira, ressaltemos que tal partitura livresca, embora publicada em edição estrangeira, é dos mais antigos produtos de indústria gráfica hoje remanescentes, relativos a obra musical oriunda do Brasil7. Na Biblioteca Nacional (RJ), onde se acha um dos maiores acervos de partituras impressas no Rio de Janeiro, a mais antiga remonta apenas ao ano de 18338, sendo mesmo raras as notícias9 que denunciem a impressão, na capital do Império, de obras anteriores ao estabelecimento, em janeiro de 1835 — como adiante constata o Jornal do comércio —, da “Imprensa de música” de Pierre Laforge10:

MARCHA FÚNEBRE, composta em Lisboa na ocasião do funeral de S. M. I. o Duque de Bragança, e reimpressa nesta corte com muita nitidez, acha-se à venda na casa de Seignot-Plancher e Comp. Esta peça faz-se recomendável ao público tanto por seu nobre e saudoso objeto, como por ser o primeiro ensaio de um novo ramo de indústria no Brasil, qual a música aberta em chapas de cobre com tanta perfeição e nitidez, que em nada se diferencia da que

nos vem da Europa. Mr. P. Laforge, a quem devemos a impressão desta excelente peça, incumbe-se de abrir com prontidão e corretamente toda a música que se lhe confiar. Dirigir-se à rua do Ouvidor, n. 154 (JORNAL DO COMÉRCIO, 10/01/1835).

Note-se aí o destaque que o diário dá ao “primeiro ensaio de um novo ramo de indústria no Brasil”: a impressão de música. Das partituras dadas à estampa por Laforge, a partir do segundo lustro da década de 1830, restaram diversos exemplares. A Biblioteca Nacional, por exemplo, possui mais de meia centena de avulsos, dentre os quais, v. g., a modinha Quando as glórias que gozei, de Cândido Inácio da Silva11, a qual, em 1837, integrava uma diminuta lista de criações brasileiras constantes do imenso Catálogo da Biblioteca Musical de J. C. Muller e H. E. Heinen, publicado nesse mesmo ano, no Rio de Janeiro, pela Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C.ia12. Na Biblioteca José de Alencar, da Faculdade de Letras da UFRJ, existe um raríssimo álbum, com o qual pretendemos trabalhar proximamente, a Coleção de 30 modinhas brasileiras, com acompanhamento de piano de vários autores13. Já, na Biblioteca do Museu Imperial de Petrópolis, localizamos um único exemplar de música instrumental, a valsa Rosita, para piano, de autoria anônima, publicada por Laforge, segundo o Jornal do comércio, em 184014. Enfim, quando estiver plenamente organizada, a Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ talvez ainda nos dê muitas outras preciosas informações sobre o assunto15.

Ex.1 – Fac-símile da edição do Hino imperial e constitucional, de Dom Pedro I, encontrada em WALSH (1830, v.2, p.533-534).

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3 – A história do Hino da Independência, de Dom Pedro IAntes de entrarmos em aspectos puramente musicais que esta edição inglesa do Hino da Independência, de Dom Pedro I, nos apresentará, lancemos nosso olhar a certas questões históricas ainda nebulosas que circundam tal composição. Ayres de ANDRADE (1967), como dissemos, publicou um dos mais prolíficos estudos sobre o assunto, reunindo importante documentação. Tal pesquisador, no entanto, confessou não ter podido apresentar conclusões cabais sobre a análise do seu corpus — sobretudo quanto à época da criação do hino —, dadas as contradições que certas fontes faziam sentir sobre outras:

... o autor deste trabalho confessa que não encontrou a tão almejada solução para esse verdadeiro quebra-cabeças, por mais que a procurasse nos velhos arquivos por onde andou catando dados sobre o passado musical do Rio de Janeiro (ANDRADE, 1967, v.1, p.147).

Curiosamente, se nossa pesquisa atual, trazendo quantidade significativa de novos dados a respeito dessa obra, corrobora a hipótese de que o hino surgiu mesmo em 1824 — e não em 1822, logo após o “Grito do Ipiranga”, como muito já se repetiu16 —, confunde ainda mais outro momento histórico de tal composição: o seu suposto “esquecimento”. Vamos aos fatos e a uma nova análise sobre o assunto.

Primeiro, discorramos, lesto, sobre a origem dos versos do Hino da Independência. De acordo com um manuscrito autógrafo, guardado desde 1862 pelo IHGB, em seu fundo principal, a data de feitura das onze quadras que compõem esse engenhoso poema — intitulado Hino constitucional brasiliense — é 16 de agosto de 182217. Como os próprios versos indicam, o publicista Evaristo Ferreira da Veiga os criou inspirado na sequência de acontecimentos, protagonizados pelo Príncipe Regente — tais como o “Fico” e a expulsão das tropas portuguesas —, que culminaram com a convocação da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Reino do Brasil, a 3 de junho de 1822.

Já, quanto à origem da composição de Dom Pedro I sobre tais versos, a história ainda é e talvez o será, para sempre, incerta. ANDRADE (v.1, p.143-144) nos relembra, inicialmente, um depoimento de Francisco de Castro Canto e Melo — irmão da Marquesa de Santos —, publicado no Diário mercantil do Rio de Janeiro, em 1865. Tal testemunha ocular do “Grito” nos faz crer, a princípio, que o assim por ele denominado “Hino da Independência”, de Dom Pedro I, teria sido executado na noite do dia 7 de setembro de 1822, na Casa da Ópera de São Paulo. No entanto, adendos à própria Memória de Canto e Melo — não mencionados por Andrade e publicados, anos mais tarde, na Revista do IHGB (1878, v.41, parte 2, p.343-347) — desdizem tal informação, dando-nos conta de que o hino de Dom Pedro, cantado no teatro paulistano, na noite do “Grito”, foi, na verdade, o Hino constitucional, composto em 182118. Os versos de Evaristo da Veiga teriam também sido ouvidos naquela ocasião, apenas recitados, ou, ainda,

quem sabe, arranjados sobre esta já conhecida música do Príncipe Regente. De fato, tal poesia teria sido cantada nas ruas de São Paulo, pouco mais de vinte dias após o Sete de Setembro. Conforme correspondência jornalística, divulgada a 15 de outubro de 1822, pelo Correio do Rio de Janeiro, sobre fato ocorrido no dia 1º do mesmo mês:

... uma luzida companhia, composta em parte dos mais qualificados habitantes desta cidade [de São Paulo], saiu pelas ruas ao som de acordes instrumentos, cantando o Hino constitucional brasiliense, vindo desta mesma corte, cujo estribilho assim começa — Brava gente brasileira... (apud ANDRADE, 1967, v.1, p.148-149)

Nada se sabe, no entanto, sobre a proveniência da música cantada, transformando em melodia esta já popular letra, oriunda – como informa o Correio – da “corte”. Seria, porventura, esta melodia, a composição de Dom Pedro I, mais tarde conhecida como Hino da Independência? Possível, mas improvável. Sabe-se, apenas, que, a 12 de outubro de 1822, no Rio de Janeiro, durante o espetáculo de gala ocorrido no Teatro de São João, por ocasião da solene Aclamação de Dom Pedro como primeiro Imperador do Brasil, um “novo hino”, composto sobre os versos de Evaristo da Veiga, teria sido ouvido. Porém, não era este de autoria do recém-proclamado monarca:

... cantaram de três camarotes contíguos, da ordem nobre, vários cidadãos conspícuos um novo hino nacional, que transcrevemos abaixo e cuja música foi composta pelo bem conhecido e insigne compositor Marcos Portugal (apud ANDRADE, 1967, v.1, p.152).

A transcrição da letra, realizada pelo Correio do Rio de Janeiro, não deixa dúvidas quanto ao uso do “Brava gente brasileira” de Evaristo; ou seja, um hino, não de Dom Pedro, mas de Marcos Portugal, teria sido composto sobre algumas das consagradas quadras do poeta carioca e executado naquele 12 de outubro de 1822, talvez em primeira audição, por ter sido ele cantado no teatro repleto, apenas por um pequeno grupo da elite palaciana, ocupantes de “três” camarotes da “ordem nobre”.

Tal existência de um hino de Marcos Portugal sobre a letra de Evaristo da Veiga parece, pois, por si só, enterrar, de uma vez por todas, a ideia de que o Hino da Independência, de Dom Pedro, teria surgido antes, ainda que de forma improvisada. Afinal, por que concorreria o “bem conhecido e insigne” compositor lisboeta com seu aluno, patrão, protetor e agora Imperador? É, pois, de se imaginar, com certa lógica, que o hino de Marcos tenha surgido a mando do próprio Dom Pedro para as solenidades da Aclamação.

Corrobora a opinião de que esse hino seria o primeiro, feito especialmente sobre os versos de Evaristo, a existência de uma “nova edição” da dita obra — não da época, mas já da década de 1880 —, denominada: Hino da Independência do Brasil. Único cantado nas primeiras festas públicas que tiveram lugar depois do Grito do Ipiranga, a 7 de setembro de 182219. Não bastasse o adjetivo que inicia o subtítulo, tal exemplar ainda nos fornece a seguinte “notícia histórica” anônima:

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A música atribuída a Pedro I só apareceu posteriormente à de Marcos Portugal e às primeiras festas da nossa Independência (...) foi também (...) cantada oficialmente, mas, posteriormente, como ficou dito. A música de Marcos Portugal tem, portanto, precedência histórica (...) Este é que é o Hino verdadeiro da Independência do Brasil...

Cantado “posteriormente” ao hino de Marcos, quando surgiria, então, o Hino da Independência, de Dom Pedro I? Seria, pois, necessário algum tempo, talvez mais de um ano, para que o Imperador tivesse tido a oportunidade de, ele sim, lançar um desafio ao seu velho mestre de música, dando à luz o próprio hino sobre os mesmos populares versos de Evaristo da Veiga.

Comprovadamente, este fato ocorreria apenas a 13 de dezembro de 1824, quando o Diário mercantil publica a já referida notícia do surgimento do Hino imperial e constitucional, “composto por S. M. o Imperador”, título este sacramentado como primeira denominação do Hino da Independência, de Dom Pedro I, não apenas pela partitura inglesa, aqui já mencionada, como, também, por uma nota de jornal, publicada, em 1832, na Alemanha (Leipzig)20.

Avancemos, pois, agora, alguns anos no tempo, mais precisamente uma década da provável criação do hino – 1834 –, quando, por ocasião da morte de Dom Pedro I, em Portugal, reavivou-se, no Rio de Janeiro, a memória do “ex-Imperador do Brasil”, compositor do “Hino nacional”:

Em 12 do corrente, na Igreja de N. S. do Parto, a Irmandade de S. Cecília dos Professores de Música cumpriu o anual dever da comemoração do óbito de seus falecidos irmãos com solene ofício de defuntos e sacrifício e missa cantada, e esplêndida orquestra. Ainda que pareça casualidade inconsiderável, contudo, excitou viva reminiscência do protetor dessa instituição pia, o ex-Imperador do Brasil, D. Pedro I, por ser em dia imediato ao do nojo e encerramento de seu augusto filho, o Senhor Dom Pedro II, pela notícia do falecimento de um pai, que deixou à Capela Imperial memorial de sua perícia na angélica arte e ciência da harmonia pela composição do cântico Te Deum e da música do Hino nacional (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 15/12/1834).

Informação nova é esta de que o “Já podeis”, do ex-Imperador, ainda tivesse foros de “Hino nacional”, em pleno período regencial. Mais curiosos são, ainda, os diversos e pouco conhecidos depoimentos que, em tempos posteriores — alguns dos quais já rompendo a segunda metade do Século XIX —, dão a mesmíssima condição ao Hino imperial e constitucional, de Dom Pedro I.

O primeiro testemunho em questão é de Daniel Kidder (1815-1891), referente a uma excursão por ele realizada nos arredores do Rio de Janeiro entre 1837 e 1838, portanto talvez já durante o governo regencial de Araújo Lima. Conta-nos este reverendo norte-americano, reproduzindo a primeira quadra e o estribilho da célebre poesia de Evaristo da Veiga, ter, nesta ocasião, “entre outras canções patrióticas”, ouvido “o Hino nacional, geralmente atribuído a Dom Pedro I” (KIDDER, 1845, v.1, p.191)21. Tal informação, se procedente, conflita-se diametralmente com outras, já da década de 1860 e colecionadas por Ayres de Andrade, as quais nos dão conta de que o hino de Dom Pedro I sobre

os versos de Evaristo teria sido “esquecido” logo após a Abdicação (1831) e voltado à tona somente pela época da inauguração da estátua equestre do nosso primeiro Imperador, em 1862. A esse respeito, escreveu ANDRADE (v.1, p.156): “Aí está a realidade, clara, insofismável. Trinta e dois anos depois, o hino de D. Pedro havia sido esquecido; o de Marcos Portugal, no entanto, continuava a ser o Hino da Independência”22.

Tentando desatar esse nó górdio, poderíamos aventar a hipótese de que o hino mencionado por Kidder não fosse o de Dom Pedro, mas o de Marcos Portugal. Tal conjectura muito se sustentaria se, no entanto, Kidder não tivesse chamado tal “já podeis” de “Hino nacional” e se vários outros depoimentos não insistissem, ao longo de toda a primeira metade do século XIX, na mesma direção, isto é, mencionando Dom Pedro como autor de um hino “nacional”, que não pode ser outro, senão o Hino imperial e constitucional.

Colijamos, pois, inicialmente, três textos franceses. Primeiro, o depoimento de Alfred Demersay, que esteve, em 1845, no Rio de Janeiro, pela época do batizado do Príncipe Imperial, Dom Afonso, e ouviu a orquestra de escravos músicos de Dom Pedro II executar o “Hino nacional”, composição de seu antigo “mestre”, Dom Pedro I.

Estes músicos são escravos. Dom Pedro I, compositor distinto, desenvolveu sem esforço sua inteligência musical. Raramente, dizem, sua batuta de maestro desviava de suas atribuições para lhes fazer sentir melhor o intervalo que separa o sustenido do bemol (...) Eles tocam o Hino nacional, obra de seu mestre, de modo a fazer honra à sua reputação de eminente artista (DEMERSAY, 1860, t.1, p.xxxii)23.

Citemos agora M. Charles Reybaud (1801-1864), que relata, já em 1856, a mesma autoria da “muito popular música” do “hino nacional” (REYBAUD, 1856, p.78)24. Enfim, relembremos um trecho do polêmico livro de Charles Expilly, Le Brésil tel qu’il est, referente à estada, na década de 1850, desse aventureiro no Império. Em dado momento de sua romanesca descrição, tal autor cria, para uma de suas personagens, a seguinte fala: “... Eu vou tocar para você o hino nacional composto por Sua Majestade Dom Pedro primeiro” (EXPILLY, 1863, p.136)25 .

Em todos os casos, o “hino nacional” referido, sempre de autoria de nosso primeiro Imperador, não pode ser, como já afirmamos, outra obra senão o Hino imperial e constitucional, visto que, o também popular Hino constitucional, de 1821, já era consagrado, a esse tempo, como hino português. A esse respeito, inclusive, publicando artigo na célebre revista Niterói, Manuel de Araújo Porto Alegre relembra o fato de o “fundador do Império do Brasil” ter composto hinos, “que inda hoje se cantam” (PORTO ALEGRE, 1836, t.1, n.1, p.172). Ou seja, utilizando o plural, este autor lembrou-se, certamente, do constitucional e do imperial e constitucional, ambos, então, ainda cantados em meados da década de 1830, não tendo, pois, este último, sido “proibido”, como sugeriu ANDRADE (v.1, p.158), após a Abdicação.

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Não bastassem tais testemunhos, lembremos ainda mais três outros depoimentos estrangeiros referentes a essa questão. Inicialmente, o de Ida Pfeiffer (1797-1858), que, de passagem pelo Rio, em 1846, assistiu às comemorações do aniversário de Dom Pedro II, no Largo do Paço, hoje Praça XV. Segundo essa viajante austríaca, naquela ocasião, “bandas tocaram uma série de amáveis melodias, repetindo frequentemente o Hino nacional, que, dizem, o último Imperador, Pedro I compôs” (PFEIFFER, 1850, v.1, p.44)26. Exatos quatro anos depois — durante as comemorações do 25º natalício de Dom Pedro II —, o norte-americano Charles Stewart (1795-1870) testemunhou também ter ouvido, pelas ruas do Rio de Janeiro, como “melodia nacional”, o “já podeis...”, de Dom Pedro I (STEWART, 1856, p.152)27. Enfim, que hino seria o “Brava gente brasileiros (sic), uma bela peça de música marcial”28 que nos registra ter ouvido, em 1852, o Vice-Cônsul britânico na Bahia, James WETHERELL (1860, p.59), chamando-o, igualmente, de “Hino nacional”? Só pode ser, mais uma vez, o de Dom Pedro I.

Finalizando, recuperemos agora dois outros testemunhos, desta vez de brasileiros. O primeiro, pouco conclusivo, relata apenas que, durante as festividades de comemoração da Sagração e Coroação de Dom Pedro II, ocorridas no dia 18 de julho de 1841, “as tropas estavam em continência tocando o Hino da Independência, cujas recordações tornavam o ato mais solene” (ABREU E LIMA, 1843, t.1, p.176). Bem, este, não sendo qualificado de “Hino nacional”, mas de “Hino da Independência”, poderia até, quem sabe, ser a música de Marcos Portugal. A resposta, no entanto, pendente mais uma vez para a composição de Dom Pedro I, parece conter-se no texto seguinte, escrito, em 1862, por Luís Francisco da Veiga, quando este doou ao acervo do IHGB, uma série de manuscritos de seu tio, Evaristo:

Tenho a honra de oferecer ao Instituto (...) seis autógrafos do finado Sr. Evaristo Ferreira da Veiga, os quais são seis hinos que o mesmo cidadão compôs por ocasião da Independência, figurando entre eles o conhecido hino “Brava gente brasileira” que com a música do Sr. D. Pedro I é recebido geralmente como o Hino nacional da Independência (sendo como tal cantado nas festividades publicas, que comemoram a nossa emancipação)29.

Enfim, eis – apesar da enorme confusão que dois hinos de autoria de uma mesma pessoa e dois hinos com a mesma letra possam gerar – uma série de informações históricas que apontam não apenas para a conclusão de que o hino de Dom Pedro I tenha efetivamente atravessado o Século XIX coexistindo com outras

melodias nacionais, como de que o “já podeis” de Marcos Portugal é que teria sido esquecido – como, de fato, o foi, definitivamente, no século XX –, até por ter, aos ouvidos do cidadão comum, uma melodia menos fácil de ser cantada do que a do hino de Dom Pedro I, sempre popular, até os dias de hoje, sobretudo após ter ela sofrido, ao longo do tempo, algumas modificações que a tornaram ainda mais simples.

4 – O Hino imperial e constitucional, de Dom Pedro I: algumas peculiaridadesAvancemos, pois, finalmente, para uma análise comparativa entre o documento musical encontrado na primeira edição do trabalho do reverendo irlandês Robert Walsh e aquilo que atualmente se preconiza, nas edições modernas de tal composição pátria. Ali, como dissemos, basta um rápido correr de olhos para que identifiquemos, claramente, a tão conhecida música do Hino da Independência, de Dom Pedro I. Um certo número de peculiaridades, no entanto, nos faz notar que tal impressão inglesa seja, de todas as partituras hoje conhecidas dessa obra, a sua mais original versão, cópia fiel, talvez, da edição príncipe, comercializada por Ferguson e Crockatt, em 1824.

Apenas quanto aos seus aspectos não musicais, recordemos, inicialmente, o fato de ser esta a única partitura hoje conhecida a trazer o título exatamente igual ao mencionado pela nota do Diário mercantil, do Rio de Janeiro, de 13 de dezembro de 1824, relativa à primeira publicação da obra. Note-se, também, em relação ao texto empregado na música, que as repetições dos versos finais – como “Já raiou a liberdade, já raiou a liberdade, no horizonte do Brasil” – aparecem de forma bastante diversa daquilo que há muito já se pratica. Neste trecho da primeira estrofe, por exemplo, repete-se apenas o verso “no horizonte do Brasil”, da seguinte forma: “No horizonte do Brasil, no horizonte, no horizonte do Brasil”30.

Por sua vez, são várias as peculiaridades musicais desta partitura que, ao longo do tempo, possivelmente para facilitar a execução popular do hino, acabaram substituídas por passagens menos complexas. Vejamos, logo de início, na introdução instrumental (c.5-7), figuração de notável riqueza rítmica, com uso de semicolcheias, colcheias pontuadas, fusas e colcheias em em staccatissimo (Ex.2), substituídas pelo já tradicional uso de, apenas, colcheias e semicolcheias (Ex.3).

Ex.2 – Escrita original no início (c.5-7) do Hino imperial e constitucional (WALSH, 1830).

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Mais à frente, antes de notarmos outra novidade musical, perceba-se, logo no primeiro verso do canto, outra alteração no texto cantado, que corresponde, na verdade, àquilo que originalmente Evaristo da Veiga concebeu, de acordo com seus já citados manuscritos. O verso inicial é “Já podeis filhos da pátria” e não “Já podeis da pátria filhos”, como há muito se pratica, tentando-se corrigir, até, porventura, uma silabada que, inevitavelmente, ocorre na palavra “filhos”, ao recair, o terceiro tempo semiforte do compasso quaternário, na sílaba átona “lhos”. Mais do que isso, a melodia deste trecho, após a quádrupla repetição da tônica (Mi bemol) em semínimas (c.10), evolui, antes de retornar à mesma tônica, para o quinto grau (Si bemol),

mediante um grupeto em semifusas (c.11; Ex.4), em vez desta notável alteração simplificadora, hoje apregoada (VITALE, 2002) e que desde meados do século XIX já era praticada; isto é, um simples conjunto de quatro colcheias, sendo a mais aguda delas, a mediante (Sol), alcançada por graus conjuntos32 (Ex.5).

E por aí seguem as diferenças. No terceiro verso da primeira quadra, por exemplo, a melodia parece encontrar melhor solução silábica (Ex.6), evitando-se um espúrio melisma, que apareceu, posteriormente, já em meados dos Oitocentos, na palavra “raiou” (rai-o-ou) e que até hoje se conserva (Ex.7).

Ex.3 – Simplificações no início (c.5-7) do Hino da Independência (VITALE, 2002).

Ex.4 – Ornamento original no c.11 do Hino imperial e constitucional (WALSH, 1830).

Ex.5 – Simplificação no c.11 do Hino da Independência (VITALE, 2002).

Ex.6 – Solução silábica original (c.13-15) do Hino imperial e constitucional (WALSH, 1830).

Ex.7 – Alteração melismática (c.13-15) do Hino da Independência (VITALE, 2002).

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Enfim, são muitas as diferenças encontradas nesta partitura para que tracemos aqui um estudo completo. Tomemos, apenas, como exemplo final desta perfunctória e meramente divulgadora análise, a dissimilitude que existe entre a melodia da primeira repetição dos versos finais do estribilho: “Ou ficar a pátria livre, / ou morrer pelo Brasil”, cantada hoje33, diga-se de passagem, mais facilmente,

Ex.8 – Simplificações rítmicas e intervalares do Hino da Independência (CORREA, 1982).

Ex.9 – Escrita original, no mesmo trecho, do Hino imperial e constitucional (WALSH, 1830).

com o largo uso de graus conjuntos, perfazendo, no final, de Mi5 bemol a Mi4 bemol — considerando-se Dó4 o Dó central do piano, uma perfeita escala maior descendente (Ex.8) e aquilo que se acha impresso na partitura de 1830, de fato, uma melodia muito mais complexa, com direito a tresquiálteras, apojaturas, pausas e um salto de sétima menor (Ex.9):

Referências manuscritasINSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO, RIO DE JANEIRO. Hino à Independência do Brasil posto em música para

canto e grande orquestra por S. M. I. o Senhor D. Pedro 1º (Coleção IHGB: DL987.008).

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MÚSICA no Rio de Janeiro imperial. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1962. PEDRO I, Dom. Constitutionelle Hymne für eine Singstimme mit Begleitung des Piano-Forte von Ihm selbst gedichtet und

componirt; und ins Deutsche übersetzt von W. Gerhard. München, s.d.__________. Constitutions Hymne, gedichtet und componirt von Don Pedro I, Kaiser von Brasilien. Hamburg, s.d.__________. Hino da Independência do Brasil composto por S. M. I. o Sr. D. Pedro I. Transcrição oferecida à Gazeta Musical.

Rio de Janeiro: Sampaio Araújo & C.ia, s.d.__________. Hino da Independência do Brasil: reduzido da partitura original para piano por Francisco Manuel da Silva. Rio

de Janeiro: Filippone & Tornaghi, 1862.PFEIFFER, Ida. Eine Frauenfahrt um die Welt. Reise von Wien nach Brasilien, Chili, Otahuiti, China, Ost-Indien, Persien und

Kleinasten. Wien: Carl Gerold, 1850.PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo. Ideias sobre música. Niterói, revista brasiliense. Ciências, letras e artes. Paris: Dauvin

et Fontaine, t.1, n.1, 1836.PORTUGAL, Marcos. Hino da Independência do Brasil. Único cantado nas primeiras festas públicas que tiveram lugar depois

do Grito do Ipiranga, a 7 de setembro de 1822. Rio de Janeiro: Bushmann & Guimarães, s.d.REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.25, 1862. REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.40, parte 2, 1877.REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t.25, 1862.REYBAUD, Charles, Le Brésil. Paris: Guillaumin et Cie, 1856.SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Karl Friedrich Philip von. Reise in Brasilien auf Befehl Sr. Majestät Maximilian Joseph

I., Königs von Bayern in den Jahren 1817 bis 1820 gemacht und beschrieben von Joh. Bapt. von Spix; und Carl Friedr. Phil. von Martius. München: M. Lindauer, 1823.

STEVENSON, Robert. Renaissance and Baroque Musical Sources in the Americas. Washington: General Secretariat, Organization of American States, 1970.

STEWART, Charles Samuel. Brazil and La Plata: the personal record of a cruise. New York: G. P. Putnam, 1856.UMA saudade para sempre: de Sua Alteza Imperial a Sereníssima Senhora Princesa D. Paula Mariana: composta para

pianoforte por um criado da casa imperial. Rio de Janeiro, Lit. da Arq. Militar, s.d.VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil, isto é do seu descobrimento, colonização, legislação,

desenvolvimento, e da declaração da independência e do império, escrita em presença de muitos documentos inéditos recolhidos nos arquivos do Brasil, de Portugal, da Espanha e da Holanda, e dedicada a Sua Majestade Imperial o Senhor D. Pedro II. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1857.

WALSH, Robert. Notices of Brazil in 1828 and 1829. London: F. Westley and A. H. Davis, 1830.WETHERELL, James. Brazil. Stray notes from Bahia: being extracts from letters, &c., during a residence of fifteen years.

Liverpool: Weeb and Hunt, 1860.ZWÖLF brasilianische volkslieder. Hamburg: B. Wolff, 1820.

Notas1 A mais completa referência a este assunto ainda é o artigo “Impressão musical no Brasil”, de Mercedes dos Reis Pequeno, escrito para a Enciclopédia

da música brasileira: erudita, folclórica e popular, editada por Marcos Antônio MARCONDES (1977, v.2, p.352-363).

2 Este Hino imperial e constitucional, publicado por Walsh, já se acha ao menos citado em publicações anteriores como a mais antiga edição do Hino da Independência, de Dom Pedro I. Caso, por exemplo, do catálogo MÚSICA no Rio de Janeiro imperial (1962, p.85) ou da obra de Robert STEVENSON, Renaissance and Baroque Musical Sources in the Americas (1970, p.291).

3 Esta partitura manuscrita, intitulada Hino à Independência do Brasil posto em música para canto e grande orquestra por S. M. I. o Senhor D. Pedro 1º, ainda se acha guardada nos arquivos do IHGB (Coleção IHGB) sob a notação de tombo: DL987.008. Quanto ao fato de ser “do próprio punho” de Dom Pedro I, embora este seja o testemunho do maestro Francisco Manuel da Silva, dado à REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1861, v.24, p.758), não conhecemos estudo que tenha comparado outros prováveis manuscritos musicais da pena do Imperador com este documento em questão, de modo a avaliar sua autenticidade como autógrafo. Ao analisarmos o documento, um detalhe, pelo menos, nos chamou a atenção: os dizeres da página de rosto não têm características caligráficas semelhantes aos da partitura.

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4 BIBLIOTECA NACIONAL, Rio de Janeiro. Divisão de Música e Arquivo Sonoro, Império, F-III-41. Trata-se, como o próprio título já indica, de uma transcrição para piano, realizada por Francisco Manuel da Silva, baseada na “partitura original”, doada ao IHGB pelo mesmo maestro (vide nota anterior). Apesar de não datada, sua publicação ocorreu, muito provavelmente, em 1862, visto que sua bela capa litografada traz impressa uma imagem comemorativa da “inauguração da estátua equestre do Imperador Dom Pedro I”, fato ocorrido a 25 de março daquele ano.

5 Apesar de bem impressa, há aí algumas notáveis omissões: no compasso 11, falta um bemol no segundo Mi do canto, indicando o retorno à armadura após um Mi bequadro; no compasso 20, faltam, não apenas indicações de tresquiálteras (isso também ocorre nos compassos 32 e 40), como bequadros nos Lás executados pela mão direita do piano; enfim, no compasso 30, falta uma pausa de colcheia depois do Si bemol do canto.

6 Note-se que Walsh, curiosamente, reproduz tal preciosa edição do Hino imperial e constitucional, sob o pretexto de ilustrar fatos ocorridos no Real Teatro de São João após o “Fico” (09/01/1822), quando teria, então, sido “pela primeira vez tocado e cantado” o “celebrado Hino nacional”: “This declaration [do “Fico”] was received with huzzas (...) A brilliant opera, as usual, succeeded, and the prince and princess appeared full dressed in their box (...) and it was on this evening, I believe, that the celebrated national hymn was for the first time played and sung” (WALSH, 1830, v.1, p.207). Porém, na verdade, o hino executado, não apenas nesta, mas em outras ocasiões anteriores deve ter sido o já deveras popular Hino constitucional, com letra e música de Dom Pedro, composto ainda em 1821, mais precisamente a 31 de março deste ano.

7 Juntem-se a ela: as anônimas “modas brasileiras” (n.11 e n.15), impressas em Lisboa por Marchal & Milcent, em 1793; os Zwölf Brasilianische Volkslieder, publicados por B. Wolff e J. H. Clasing, em Hamburgo, 1820; os Brasilianische Volkslieder recolhidos por Spix e Martius e editados em Munique como suplemento à obra Reise in Brasilien, em 1823; a Coleção de modinhas de bom-gosto, de João Francisco Leal, impressa em Viena no ano de 1830; e, enfim, algumas edições do já referido Hino constitucional de Dom Pedro I — posteriormente Hino da Carta Constitucional e Hino nacional português —, composto no Rio de Janeiro, em 1821. Desta última obra, encontramos uma edição livresca inglesa (KINSEY, 1828), intitulada “Portuguese Hymn”. Tampouco nos passou despercebida a existência de duas outras impressões, alemãs (Hamburgo e Munique), quiçá publicadas ainda durante o primeiro reinado: a primeira com o título Constitutions Hymne, gedichtet und componirt von Don Pedro I, Kaiser von Brasilien (localizada na Österreichische Nationalbibliothek, de Viena); e a segunda, tombada na Bayerische StaatsBibliothek, de Munique, denominada Hino constitucional do Sereníssimo P.ce R.al o S.r D. Pedro de Alcântara (edição bilíngue, também intitulada Don Pedro’s, Kaisers von Brasilien & c., Constitutionelle Hymne für eine Singstimme mit Begleitung des Piano-Forte von Ihm selbst gedichtet und componirt; und ins Deutsche übersetzt von W. Gerhard).

8 Trata-se da peça Uma saudade para sempre: de Sua Alteza Imperial a Sereníssima Senhora Princesa D. Paula Mariana: composta para pianoforte por um criado da casa imperial (BN, MAS, Império, DG-I-29), que se cogita ter sido gravada em 1833, pela ocorrência, em janeiro deste ano, do falecimento da dita Princesa Dona Paula, irmã de Dom Pedro II.

9 Tanto quando as partituras, as poucas notícias que restam sobre a impressão de música na capital do Império durante esta década “inicial” (1824-1834) nos dão conta de que, até o surgimento da oficina de Pierre Laforge, as experiências com gravação de música foram, de fato, esporádicas. A título de exemplificação, citemos quatro notas que o Jornal do comércio publicou em um espaço de três anos. A 12 de setembro de 1831, saía à luz “O Girassol, modinha brasileira à imitação de cavatina com acompanhamento de pianoforte ou de viola francesa”. Já, a 9 de abril de 1832, o mesmo diário nos informa do surgimento da partitura de um hino de Francisco Manuel da Silva, muito provavelmente aquele que, mais tarde, ficaria conhecido como o Hino nacional brasileiro: “Saiu à luz litografado o hino para canto e piano por F. M. da Silva, que foi cantado no dia 7 de abril no começo do divertimento dado pela Sociedade Defensora...” Quase um ano se passou para que voltasse a aparecer, no Jornal do comércio, notícia sobre a publicação de solfas. Desta vez, ao preço de mil réis, saíam à luz duas “valsas novas” e o arranjo de um “Lundu Brasileiro”, obras de autoria do professor de música e de piano, Maurício Doellinger (JORNAL DO COMÉRCIO, 06/03/1833). Alguns meses depois, surgiam, impressas, “muito bem litografadas”, ao preço de 640 réis, “3 grandes valsas de Beethoven para pianoforte, as únicas da composição deste célebre compositor”, além de um “hino dedicado ao Sr. D. Pedro II na sua menoridade, composição de João Francisco Leal” (Idem, 27/06/1833). Não se tem notícia de que algum exemplar dessas partituras tenha sido encontrado até hoje.

10 Pierre Laforge, oboísta natural de Perpignan, França, chegou ao Rio de Janeiro em 1817, onde logo passou a integrar a Câmara e Capela de Dom João VI. Na futura Capela Imperial, ele permaneceria até 1831, quando, dispensado juntamente com quase todos os músicos instrumentistas, passou a desenvolver novas atividades na cidade, entre as quais, sua “Imprensa de Música”, fundada entre 1834 e 1835 (Cf. BULLETIN de la Société agricole, scientifique & littéraire des Pyrénées-orientales. Perpignan: Imprimerie de J.Comet, v.10, p.519, 1856).

11 Biblioteca Nacional, Divisão de Música, Império L-I-33 [16].

12 Tal Catálogo, que também integra o acervo da Divisão de Música da Biblioteca Nacional, listava, ao todo, 1584 itens, entre os quais, um sem-número de arranjos de Cramer, Czerny, Herz, Huenten, Wanhall, Adam e Diabelli; óperas de Bellini, Meyerbeer, Donizetti, Rossini, Mercadante, Auber, Mozart e Paër; mais de cinquenta danças de Johann Strauss (pai); e apenas algumas poucas obras de autores brasileiros ou portugueses aqui radicados: modinhas de João Mazziotti, Cândido Inácio da Silva, Francisco Manuel da Silva e Gabriel Fernandes da Trindade; hinos de Francisco Manuel da Silva e Simão Portugal; e valsas de Cândido Inácio da Silva.

13 Biblioteca José de Alencar, CLA/FL-UFRJ, OR 398.80981 C697.

14 JORNAL DO COMÉRCIO, 15/04/1840. Verificamos que um contemporâneo autor francês teria composto uma valsa de nome Rosita. Pode, pois, ser este o autor desconhecido: Louis Antoine Jullien (1812-1860).

15 Uma consulta recente ao Sistema de Documentação “Minerva” da UFRJ, não retornou nenhuma resposta à busca por partituras editadas na Casa de Pierre Laforge, pertencentes ao acervo da Biblioteca Alberto Nepomuceno.

16 Na historiografia geral do Brasil, a ideia de que o Hino da Independência surgiu logo após o “Grito” é, como mesmo escreveu LANGE (1985, v.5, p.380), uma “tradição”. VARNHAGEN (1857, t.2, p.441), ainda que não explicitamente, foi dos primeiros a alimentá-la, ligando a composição do hino ao ano da Independência: “A 12 de outubro de 1822, dia aniversário do natalício de D. Pedro, foi ele proclamado Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil. O Hino nacional foi composto e oferecido à nação pelo mesmo Príncipe”.

17 REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1862, v.25, p.682). Tal manuscrito foi transcrito e publicado pela mesma Revista (1877, v.40, parte 2, p.55-57), a partir de um conjunto documental, doado, em 1862, ao Instituto; e pelos Anais da Biblioteca Nacional (1911, v.33, p.251), a partir de outra documentação manuscrita, adquirida pela Biblioteca, em 1878.

18 O Hino constitucional, composto por Dom Pedro a 31 de março de 1821 — para celebrar a Constituição que viria a ser elaborada pelas Cortes de Lisboa —, tinha, como primeiros versos, atribuídos ao próprio Príncipe Real: “Ó Pátria, ó Rei, ó Povo / ama a tua Religião / observa e guarda sempre / Divinal Constituição // Viva, viva, viva o Rei / Viva a Santa Religião! / Viva os lusos valorosos / Divinal Constituição!”; e passou, posteriormente, já no reinado de Dona Maria II, a ser conhecido como Hino constitucional português ou simplesmente Hino português, com os versos “Quanto ó Pedro generoso / te deve a lusa nação / por teu valor possuímos / liberal Constituição // Viva, viva, viva Pedro / viva a Santa Religião / viva Maria Segunda / liberal Constituição!”.

19 Publicado a partir de 1881, quando surge a firma Bushmann & Guimarães, esta edição do Hino da Independência do Brasil, de Marcos Portugal, se acha tombada no IHGB (Coleção IHGB, Arq.Arm.01Prat.08). Há, no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional, outras edições do mesmo hino, todas elas com o mesmo título de Hino da Independência.

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CARDOSO, L. A. Subsídios para. . . Hino da Independência, de Dom Pedro I. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.39-48.

20 Eis o texto completo, em que tal “Hino imperial e constitucional” é tido como “de um estilo um pouco rossiniano”, capaz de expressar uma “paixão fanática” e, provavelmente, “muito eficaz para excitar os sentimentos patrióticos”: “Es ist bekannt, daß Don Pedro wirklich nicht allein ein sehr gebildeter Mann ist, sondern in manchen Künsten, z. B. in der Musik, sich auszeichnet. So sangen die Brasilier vor einigen Jahren die von ihm componirte constitutionnelle und imperielle Hymne: ‘Ja podeis filhos da patria etc.’ Die Composition sprach eine fanatische Leidenschaftlichkeit aus, und war sie nicht ganz originell und schmeckte etwas rossinisch, so konnte man sich wohl denken, daß sie zur Erregung patriotischer Gefühle sehr wirksam sein mußte” (BLÄTTER FÜR LITERARISCHE UNTERHALTUNG, 24/04/1832).

21 “Among the other patriotic songs which were that evening made to echo over the stillness of these woods and waters, was the national hymn, generally attributed to Don Pedro I, but said to have been actually composed by Evaristo Ferreira da Veiga, a distinguished patriot at the time of the revolution. Já podeis, filhos da patria, / Ver contente a mai gentil / Já raiou a liberdade, / No horizonte do Brazil...”

22 Note-se que este autor se sustenta em testemunhos como os de José Vieira Fazenda e Henrique César Muzzio.

23 Tradução nossa de: “Ces musiciens sont esclaves. Dom Pedro Ier, compositeur distingué, développa sans efforts leur intelligence musicale. Rarement, dit-on, son bâton de chef d’orchestre déviait de ses attributions pour leur faire mieux sentir l’intervalle qui sépare le dièse du bémol (...) Ils jouent l’hymne national, œuvre de leur maître, de façon à faire honneur à sa réputation d’éminent artiste”.

24 “Don Pedro Ier cultivait les arts: le Brésil lui doit la musique très populaire de son hymne national”.

25 Tradução nossa de: “... je vous joue l’hymne national composé par Sa Majesté Dom Pedro primeiro”.

26 “Gegen 3 Uhr Nachmittag ftellte sich eine Menge Militär auf dem Schlossplatze auf, die Garden vertheilten sich auf den Gallerien und in der Kirche, und das Musikchor spielte schöne Melodien, darunter häusig die Volkshymne, die angeblich der letztverstorbene Kaiser, Peter I., komponirt hat”.

27 “The vivas of the multitudes were tolerably loyal, and the spirited strains of the national air, caught, as the cortege approached, from band to band, stationed at various points on the route, quite spirit-stirring. The music of this air is a composition of Don Pedro I, who was a master in the science. It is one of the most animated, spirit-moving national airs I know — equal almost in this respect to the Marseillaise. The words of the anthem to which it is set are said to be also from the pen of his late Majesty; and, in the native language, are scarce less incisive than the tune, to emotions of patriotism and valor — Já podeis, filhos da patria...”

28 “The national anthem, ‘Brava gente Brasileiros,’ (sic) a fine piece of martial music, is generally performed by two or three limited hands, whilst the procession is in progress”.

29 REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1862, t.25, p.682).

30 Esta forma, diga-se de passagem, também aparece no manuscrito, já referido, tombado no IHGB.

31 Tal figuração – já presente em partituras de meados do século XIX, como é o caso do Hino da Independência do Brasil composto por S. M. I. o Sr. D. Pedro I. Transcrição oferecida à Gazeta Musical (~1860-1862, aqui consultado em terceira edição, de Sampaio Araújo & C.ia provavelmente da década de 1910, a partir de uma segunda edição de Arthur Napoleão, ~1870) – aparece ainda hoje em edições modernas, como a denominada Hinos Pátrios: piano e canto (São Paulo: Irmãos Vitale, 2002, p.11). Aproveite-se também esta nota para esclarecermos que, para todos os exemplos musicais seguintes, utilizamos o tom padrão de Mi bemol maior e clave de Sol na segunda linha. A partitura referida da Irmãos Vitale está meio tom abaixo, em Ré maior, e a partitura de 1830 utiliza a clave de Fá na quarta linha para o canto, de modo que foi necessário transpor vários dos exemplos, para uma melhor comparação.

32 Idem.

33 Para esse trecho, utilizamos, como base comparativa, a versão do Hino da Independência contida no álbum Hinos e canções do Brasil, de Avelino A. CORREA (1982, p.24-25), por crermos que a versão mais recente (VITALE, 2002) não corresponde ao uso comum de tal trecho. Note-se ainda que, assim como esta última partitura, a versão de Correa também está em Ré maior, de modo que tivemos de transpô-la para Mi bemol maior, a título de melhor compará-la ao texto de 1830, também transposto oitava acima e da clave de Fá na quarta linha para a clave de Sol na segunda linha.

Lino de Almeida Cardoso é Doutor em Ciências (História Social) pela Universidade de São Paulo, com pesquisa voltada à história da música e da sociedade no Brasil. Foi discípulo do compositor Osvaldo Lacerda, com quem estudou, durante cinco anos ininterruptos, matérias teóricas da música. Atua profissionalmente na área do jornalismo e da crítica musicais, tendo trabalhado no Canal 21 e Rádio Bandeirantes, Rádio Cultura FM (Fundação Padre Anchieta), Jornal da tarde (Grupo Estado) e Revista Diapason. Recentemente, desenvolveu pesquisa acadêmica, em estágio pós-doutoral, no Departamento de Música do Instituto de Artes da UNESP, sob a supervisão do Prof. Dr. Paulo Castagna e chancela da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). É autor do livro O Som social: música, poder e sociedade no Brasil (Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX).

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IRLANDINI, L. A. Gagaku, de Olivier Messiaen. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.49-56.

Recebido em: 12/09/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

Gagaku, de Olivier Messiaen

Luigi Antonio Irlandini (UDESC, Florianópolis, SC)[email protected]; www.luigiantonioirlandini.org

Resumo: A tensão entre nostalgia e inovação se manifesta de maneira única em Gagaku, o quarto movimento de Sept Haikai, de Olivier Messiaen. A religiosidade de Messiaen representa uma forma de nostalgia para a vanguarda intelectual francesa. Messiaen considera o senso de ritual e de estase como expressões musicais do sagrado. Através da comparação da estrutura do Gagaku de Messiaen (analisado à luz de seus próprios escritos sobre os seus métodos composicionais) e da estrutura da música tradicional japonesa gagaku, este artigo mostra de que modo o senso de ritual e de estase constitui o elemento estético comum existente independentemente em ambas as formas musicais. A existência de um elemento comum entre a “fonte” não-ocidental e a composição ocidental inspirada por esta fonte provê a condição necessária para a transformação de nostalgia em inovação. O conceito de écriture tem um papel importante na dialética de passado/futuro desta transformação, causando estrutura e estilo a se diferenciarem baseados no princípio da não-imitação, e afirmando-se como o elemento formativo que faz de Gagaku uma peça distintamente francesa.Palavras-chave: Olivier Messiaen; vanguarda musical; influência não-ocidental; música japonesa tradicional; religião; estética musical.

Messiaen’s Gagaku

Abstract: The tension between nostalgia and innovation is uniquely manifested in Olivier Messiaen’s Gagaku, the fourth movement of his 1962 composition Sept Haikai. Messiaen’s religiosity represented a form of nostalgia to the intellectual French Avant-Garde. Messiaen considers the sense of ritual and stasis as musical expressions of sacredness. By comparing the structure of Messiaen’s Gagaku (analyzed in the light of his writings about his compositional methods) and that of ancient Japanese gagaku court music, this paper will show how this sense of ritual and stasis constitutes the aesthetic common ground existing independently in both forms. The existence of common elements between a non-western “source” and the western composition inspired by that source provides the necessary condition for the transformation of nostalgia into innovation. The concept of écriture plays an important role in the past/future dialectic of this transformation, causing structure and style to differ based on the principle of non-imitation and asserting itself as the shaping element that makes Gagaku a piece of distinctly French music.Keywords: Olivier Messiaen; music avant-garde; non-western influence; traditional Japanese music; religion; musical aesthetics.

1 - Messiaen e o Haiku japonêsGagaku é o movimento central de Sept Haikai, composto para orquestra por Olivier Messiaen (1908-1992) em 1962 após uma viagem de lua de mel e, ao mesmo tempo, tournée concertística, ao Japão. Messiaen falou em entrevistas sobre esta viagem e esta composição de um modo natural e despretensioso, que ligava a obra firmemente à sua vivência pessoal e turística. Ele viu no Japão um paraíso, “um país onde tudo é nobre” (SAMUEL, 1986). Sua fascinação pelo lugar, a cultura e o povo inspiraram-no a compor uma peça em sete movimentos curtos no espírito de ilustrações ou cartões postais. A evidência disto são os títulos de cada movimento, que são nomes de lugares que Messiaen visitou. Enquanto o primeiro e o último movimentos são intitulados, respectivamente Introduction e Coda, os outros tem os seguintes títulos: no.2: Le parc de Nara et les lanternes

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

de pierre, no. 3: Yamanaka-Cadenza, no. 4: Gagaku, no. 5: Miyajima et le Torii dans la mer, no. 6: Les oiseaux de Karuizawa. Respectivamente, eles se referem ao parque de Nara com suas lanternas de pedra, ao lago Yamanaka, à execução ao vivo da música de corte gagaku, à ilha de Miyajima com seus pórticos no mar, e Karuizawa, um resort de montanha aos pés do vulcão Asama. O subtítulo “esquisses Japonaises” enfatiza a despretensiosa natureza de esboço da obra.

Devido ao termo haikai no título, o ouvinte se prepara para buscar elementos do haiku japonês tais como brevidade, surpresa, simplicidade, estrutura silábica, e uma ligação com a natureza. Em vez disto, o ouvinte se depara com algo bastante diferente. A duração dos haikai de Messiaen varia de um minuto e meio a cinco minutos e meio. Embora a sensação de tempo em

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música seja mais psicológica do que cronométrica, tais durações, prolongadas para um haiku e curtas para um compositor como Messiaen, nem sempre transmitem o sentido de brevidade do haiku. A linguagem musical, fria e inexpressiva, sem lugar para o elemento surpresa, consiste em blocos estáticos de textura intricada e densa que levam o ouvinte a vivenciar complexidade em vez de simplicidade. A estrutura tradicional do haiku, com seu modelo de três linhas cada uma com 5, 7, e 5 sílabas, tampouco tem consequência nas peças de Messiaen, embora este fato encontre um precedente na escola de poetas japoneses Soun, que praticava uma forma livre de haikai curtos (STRYK, 1981). Apesar das sempre presentes transcrições de cantos de pássaros, a ligação com a natureza permanece inaccessível, exceto àqueles ouvintes capazes de reconhecê-las como cantos de pássaros, ou àqueles que tem um conhecimento prévio do amor de Messiaen pela natureza. De fato, os seus processos composicionais, ou melhor, a escrita musical de Messiaen (écriture) 1 e sua estética musical são incompatíveis com as características do haiku acima mencionadas.

2 - Messiaen e a nostalgiaEsta falta de conexão com a estética do haiku parece indicar que Messiaen nunca deixou realmente o seu próprio mundo - o da música europeia - e nunca deixou de estar centrado em si mesmo. Ou será que existe escondida uma intenção mais profunda? A maior parte dos escritos musicológicos sobre Sept Haikai raramente vão além de relatar a viagem de lua de mel como sendo a única inspiração e razão de Messiaen para compor esta música. A história parece nos dizer que os Sept Haikai nasceram claramente de um impulso nostálgico em que a cultura e estética de um Japão exótico e longínquo representam a condição sublimada e romantizada à qual Messiaen forte e saudosamente deseja retornar ou se conectar. E esta conexão é apenas momentânea, como uma breve visita turística, quase acidental, pois Sept Haikai é a primeira e única referência ao Japão em toda a grande obra do compositor. Exceto, talvez, na ópera St. François d’Assise, no modo pelo qual o anjo se move: o movimento, baseado no lento caminhar do ator do teatro Nô, busca intencionalmente despertar no expectador a sensação de estranheza, de algo que não pertence a este mundo2.

Entretanto, um novo modo de compreender o inteiro grupo de sete haikai nos é dado pelo movimento central, intitulado Gagaku. Este é o haiku onde Messiaen transcende o impulso nostálgico e redime a sua inteira obra “japonesa”. Messiaen consegue isto através da religião.

Em 1950, a carreira de Messiaen já tinha se estabelecido, solidamente firmada na tradição musical francesa e fortemente imbuída da teologia católica. Desde uma de suas primeiras obras orquestrais, Les Offrandes Oubliées, de 1930, Messiaen tencionava “levar a ideia da liturgia católica para fora dos edifícios de pedra para os quais este gênero de música tinha sido destinado” (PERIER, 1979). Ele colocou a sua música a serviço das verdades

eternas da fé católica. Esta missão permeia sua inteira obra até sua última composição, exceto durante o intervalo de treze anos que poderia ser chamado de “os anos de vanguarda”, que vão de 1949 a 1962, como se verá mais adiante.

Aos olhos tecnocráticos da vanguarda europeia do pós-guerra - que na França das décadas de 1950 e 1960 se tornara a corrente prevalente de pensamento - Messiaen teria sido o compositor nostálgico par excellence, já que a visão de arte da vanguarda, com seu caráter cientista e anti-metafísico, não favorecia muito um assunto como a religião. O que poderia ser mais nostálgico do que a religião, que significa religar-se a Deus? O que poderia estar em maior contradição com o espírito positivista do ultra-modernismo? Como poderia não ser nostálgica a tentativa de religar-se a algo que estava morto desde a proclamação de Nietzsche a respeito de Deus? Para a vanguarda, nostalgia é uma forma de fraqueza, um impulso reacionário, que não impele o artista adiante em direção ao progresso e ao futuro, mas sim para trás, em direção a algo que a vanguarda considerava inalcançável e ilusório. O lugar de Messiaen na vanguarda mostra um exemplo único na dialética entre nostalgia e inovação. Como poderia um compositor de música teológica tornar-se aceito pela vanguarda ateia?

3 - Messiaen e a vanguardaA abertura de Messiaen para com as tradições musicais não-europeias valeu-lhe a fama de excêntrico entre os acadêmicos do Conservatoire de Paris. Esta mesma abertura também fez com que ele se interessasse ativamente pelas ideias das novas gerações de compositores. Messiaen ensinou quase todos os mais importantes compositores de vanguarda nascidos na década de 1920 e tornou-se o mais prestigioso professor de composição da Europa desde 1942 até um pouco depois de 1980. Os “anos de vanguarda” de Messiaen registram uma intensa troca com os compositores mais jovens e um interesse mais acentuado em novos métodos e técnicas de composição. Com a primeira execução de Réveil des Oiseaux no Festival de Donaueshingen de 1953, Messiaen tornou-se oficialmente um membro “senior” do movimento de vanguarda, como observou GRIFFITHS (1995).

O período que vai de 1949 até 1962 poderia ser chamado de “os anos de vanguarda” do compositor, pois não existe no Messiaen deste período, uma dedicação exclusiva aos temas religiosos.3 De fato, nota-se uma preponderância de temas não religiosos nas composições a partir de Cantéyodjayâ e Quatre Études de Ritme (1949), e uma ênfase na música baseada em cantos de pássaros a partir de Le Merle Noire, de 1952. Certamente, durante os “anos de vanguarda” ele não abriu mão completamente da religião, pois a natureza e a ornitologia ainda pertencem, para Messiaen, ao âmbito da teologia. O significado místico dos pássaros como equivalentes na terra aos anjos do céu completam esta conexão. Couleurs de la Cité Céleste, de 1963, marca o retorno às composições

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de conteúdo católico. Esta é uma forte indicação de que, com a finalidade de permitir que ocorresse um ulterior progresso na sua escrita, os interesses religiosos de Messiaen tiveram que, temporariamente, abrir caminho para uma abordagem quase exclusivamente tecnológica, interessada em métodos composicionais novos e mais complexos baseados na sua pesquisa de ritmo e cor, e no canto de pássaros.

Graças a esta manobra tecnológica Messiaen estabeleceu-se no movimento de vanguarda renovando sua criatividade e seu papel profissional como compositor. Seu próximo passo foi retornar à teologia católica, agora revigorado pela inovação composicional que o diálogo com a nova geração lhe inspirou e proporcionou. Na qualidade de bem-amado professor de seus alunos e colegas vanguardistas, Messiaen gozou do raro privilégio de não sofrer ataques da parte deles por causa das tendências nostálgicas e dos conteúdos extra-musicais de sua obra.

Além dos pássaros, Gagaku é o elo perdido entre positivismo e teologia. Sept Haikai, de 1962, dos quais Gagaku é o quarto movimento, é a última composição dos “anos de vanguarda”, e se coloca entre Chronochromie, de 1960 e Couleurs de la Cité Céleste, de 1963, que marca o retorno à teologia católica. Sept Haikai adota alguns dos materiais de Chronochromie e continua a exploração altamente complexa e sistemática de sua técnica envolvendo cores e durações (JOHNSON, 1975). Entretanto, os dois anos de pausa na atividade de composição que separam Chronochromie e Sept Haikai refletem um novo passo no caminho artístico de Messiaen e uma mudança importante na sua vida pessoal. A atmosfera deste novo momento composicional é o de um novo começo de vida, uma atitude mais relaxada concernente à composição, a intenção de re-usar novas descobertas em vez de buscar outras ainda mais novas, uma abertura a permitir-se gozar do “paraíso exótico” do Japão, e um retorno explícito à religião. Ainda que não se trate de uma peça religiosa, Sept Haikai mostra que a mente do compositor tinha se aberto a aceitar este outro paraíso com tal intensidade que ele decidiu homenageá-lo.

A obra contém, em Gagaku, uma revisitação da teologia num novo cenário, o do Xintoísmo, no lugar do Catolicismo, embora Messiaen tenha tratado de deixar bem claro, numa entrevista com Claude Samuel (SAMUEL, 1986), que ele “reproduziu a atmosfera estática, hierática e sagrada do gagaku enquanto, ao mesmo tempo, tentou dar a ela uma dimensão cristã”. Tal observação demonstra quão importante era, para ele, não colocar em dúvida seu próprio catolicismo: ela renuncia qualquer possibilidade de identificação que Messiaen poderia ter pessoalmente com o xintoísmo, ao revelar uma atitude quase missionária, pois, “dar uma dimensão cristã” à atmosfera sagrada (xintoísta) do gagaku parece pretender “corrigi-la” de algum modo, e substituí-la pela única “fé verdadeira”, a católica. Infelizmente não é mais possível perguntar ao compositor o que exatamente ele quis dizer com isto, ou como ele teria conferido esta dimensão cristã.

Uma tentativa de resposta a este como, porém, poderá ser abordada mais à frente, após a introdução da ideia de “transcrição estilizada”. Por ora, é preciso considerar outras observações mais felizes de Messiaen, que provam a existência de alguma afinidade musical e estética que permitiu a aproximação destas duas religiões na obra de um compositor que não tinha a menor necessidade de associar-se a uma religião diferente da dele próprio.

4 - Messiaen e o gagaku japonêsMessiaen estava consciente da afinidade estética que liga a sua música com o gagaku japonês. Numa entrevista com Claude SAMUEL (1986) ele diz:

“A música japonesa é estática, e eu sou um compositor estático porque acredito no invisível e no além; eu acredito na eternidade. Agora, os orientais estão em termos muito mais próximos com o além do que nós estamos, e é por isso que a música deles é estática. A música escrita por mim, um crente, é igualmente estática. Isto sem dúvida explica a minha atração pelo Japão.”

E, na mesma entrevista, falando sobre como os japoneses percebem a sua música, ele diz (SAMUEL, 1986):

“Eu acredito que os japoneses compreenderam o papel da cor na minha música, mas também - embora eles não sejam cristãos - o sentido de ritual, pois eles desenvolveram este sentido em si próprios através da prática do culto aos ancestrais… os japoneses vivem uma realidade febrilmente agitada, até mesmo descuidadamente perigosa, mas, ao mesmo tempo, eles cultivam a esfera do sagrado, do invisível, do estático.

Nestas palavras pessoais, informais e quase naïve, Messiaen dá a sua resposta pessoal à questão da dialética entre nostalgia e inovação. Como foi mencionado anteriormente, seu objetivo original era o de trazer a música litúrgica católica para dentro da sala de concerto. Graças à sua sólida compreensão da tradição do cantochão, acrescentada ao seu trabalho de organista na liturgia católica na igreja de La Sainte Trinité em Paris, Messiaen era profundamente imbuído do sentido de estase e ritual contidos na música sacra cristã. A esta experiência acrescentou-se a influência de Claude Debussy e Igor Stravinsky, e a linguagem musical de Messiaen tornou-se fortemente não-dialética e estática. Nem toda a sua música é estática, mas, enquanto esta qualidade foi amadurecendo e encontrou novo impulso e expressão através dos seus “anos de vanguarda”, ela se transformou numa característica do seu estilo até mesmo nas obras que não fazem referência teológica e que foram compostas por meio de considerações puramente estruturais.

De que modo a música transmite o senso de ritual e estase? Existe uma enorme discrepância entre os estilos do gagaku japonês e Gagaku de Messiaen. Mas, uma vez que se a ultrapassa é possível mesmo ouvir as semelhanças musicais entre os dois, tanto que já se viu nelas um ato de imitação (GRIFFITHS, 1995), e de “falsificação simpatizante” (WATKINS, 1995)4. Entretanto, considerando os procedimentos composicionais de Messiaen como um todo, é o conceito de transcrição estilizada, e não o de imitação, que realmente se aplica a

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este caso. A transcrição estilizada é uma marca registrada na escrita musical de Messiaen, como a exemplificam as suas transcrições orquestrais de cantos de pássaros ou de cantos gregorianos, a adoção de metros gregos e de células rítmicas (deçi-tâlas) do tratado musical de Śārngadeva, as transcrições destes ritmos e suas justaposições e sobreposições criando novas estruturas rítmicas, e a estilização dos sons do gamelan da Indonésia.

Em Gagaku, não há transcrição nota por nota, mas uma transcrição do papel de certos instrumentos no conjunto instrumental ou, em outras palavras, a transcrição da função de certas partes musicais na textura; e, finalmente, a “transcrição” da atmosfera da música ritual japonesa. Estas partes musicais são, portanto, “re-escritas”, transcritas/assimiladas no/pelo estilo de Messiaen, resultando em melodias e harmonias completamente diferentes. Messiaen (MESSIAEN, 1966) escreve na partitura de Sept Haikai:

“Gagaku é a musica nobre do Japão do século VII, ainda praticada hoje pela corte imperial. Aqui aparecem os dois timbres principais desta música: o Sho (órgão de boca), substituído por um conjunto de oito violinos, e o Hichiriki (oboé primitivo), substituído pelo trompete.”

Que o hitiriki seja um “oboé primitivo” é uma concepção comum, mas equivocada e eurocêntrica, baseada na ideia de que um processo evolucionário global encontra o seu ponto culminante na cultura ocidental. Ao mesmo tempo em que Messiaen compartilhou desta percepção ultrapassada, ele não deixou de perceber a alta sofisticação da música instrumental gagaku, especialmente a da categoria tōgaku, que se originou na dinastia Tang da China. O fato de que o órgão de boca syô é empregado apenas no conjunto tōgaku e não nos conjuntos das outras duas categorias de gagaku contemporâneo (TERAUCHI, 1998) indica que o interesse de Messiaen se voltou para a música tōgaku, embora ele não mencione este termo mais específico. As outras categorias são, a propósito, komagaku, de origem coreana, e o conjunto misto vocal e instrumental, mikagura, de origem autóctone japonesa.

Retomando a questão que ficou em aberto um pouco acima, sobre de que maneira Messiaen teria dado uma dimensão cristã à atmosfera sagrada do gagaku, é possível especular que, talvez isto tenha sido feito através da transcrição estilizada, que teria emprestado ao modelo japonês uma vestimenta ocidental, a da técnica composicional e de orquestração do próprio Messiaen, que tinham estado já há tanto tempo associadas, em sua música, ao cristianismo. Messiaen teria, então, emprestado “o seu som” (católico) ao som do gagaku. Mas isto só foi possível porque o sentido de ritual e estase já estava presente em ambos.

5 - Circularidade no gagaku japonêsO modelo de conjunto instrumental tōgaku para execução musical na corte e nas cerimônias dos templos combina sopros (três syô ou “órgãos de boca“, três oboés hitiriki, três flautas ryûteki), cordas percutidas (dois biwa e dois koto), e instrumentos de percussão (um de cada dos

seguintes: tambores kakko e taiko e o gongo syôko). O termo gagaku significa “musica elegante” (MALM, 1959).Eis, em seguida, uma breve descrição - baseada no mais famoso exemplo do repertório kangen5, a composição Etenraku (MARETT, 1990) - de como o gagaku japonês transmite estase e ritual.

A linha melódica é distribuída heterofonicamente em todos os instrumentos de sopro, com os syô provendo, com seus dezessete tubos de bambu, clusters ou blocos sonoros de cinco ou seis notas como acompanhamento. Esta harmonia tem uma função unicamente colorística, e seu conteúdo intervalar é do tipo pentatônico.

A linha melódica básica é apresentada pelo hitiriki com inflexões microtonais e glissandi, enquanto o ryûteki provê uma sofisticada ornamentação. As unidades estruturais que a constituem repetem-se ao longo de toda a peça, e, embora possam ser reconhecíveis como motivos que não se transformam, parecem flutuar em torno das mesmas notas, dando a sensação de uma invariância que, ao mesmo tempo, não permite a identificação do que é invariante. Não se forma um processo sonoro narrativo, que seria caracterizado por uma estrutura inicial, uma estrutura final, e as transformações contínuas que levam da primeira à última (STOIANOVA, 1976)6. As durações na melodia são moderadamente longas e parecem ser organicamente governadas pela respiração. O ouvinte percebe um ritmo melódico e uma pulsação elementares e fluidos mas solenes e, ao mesmo tempo, não tem tanto a sensação de ritmo no sentido tradicional do termo, mas sim uma sensação de durações.

Os arpejos periódicos dados pelos instrumentos de cordas percutidas produzem um acento agógico lento, da mesma maneira que os padrões rítmicos básicos do tambor kakko e os lentos golpes individuais no gongo syôko e no tambor grave taiko. Embora os tremoli do kakko comecem lentamente e se acelerem gradualmente, não há neles nenhum senso de transformação, gradual ou não. Os tremoli neste padrão lento/rápido se repetem sem produzir nenhum senso de direção ou mudança na agógica em geral.

Embora repetitiva, a música, considerando a textura em todos os seus componentes, nunca se repete de modo idêntico. A falta de mudança produz um efeito de tempo suspenso: a música é estática. Não há teleologia, nenhuma direção proposital num processo sonoro de transformação. Também não há desenvolvimento. O dinamismo que existe entre os componentes da textura - a linha principal e suas derivações heterofônicas, a harmonia/timbre dos syô, os acentos e tremoli da percussão - uma vez estabelecido, não se altera, e se prolonga durante toda a duração da música, sem que os componentes se alterem fundamentalmente ou troquem de função. Não existe clímax dramático.

Eu denomino este conjunto de características circularidade, pois a música produz a sensação de permanecer em torno

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de um estado de coisas ou clima sem começo nem fim, exceto por ter-se iniciado arbitrariamente, e terminado por simplesmente deixar de proceder adiante, cessando de continuar num ponto onde o ciclo - que de outro modo continuaria - parece permitir um senso de conclusão. Circularidade produz um falso movimento e, portanto, um movimento estático.

6 - Circularidade no Gagaku de MessiaenO único objetivo desta breve análise de Gagaku de Messiaen é o de demonstrar a circularidade dos processos composicionais, e de que modo ela realiza o sentido de estase e ritual. Portanto, não pretende ser uma análise exaustiva.

A peça tem quatro camadas de textura sobrepostas. Na primeira, a melodia principal é tocada pelo trompete, dobrado em uníssono por dois oboés e um corno inglês, correspondendo ao papel do hittiriki japonês. A segunda camada não tem um elemento correspondente no “modelo” japonês, embora Robert Sherlaw Johnson a tenha comparado com o papel do ryûteki (JOHNSON, 1975). A meu ver, a heterofonia do modelo japonês se perde na transcrição, quando Messiaen opta por uma polifonia entre as duas camadas. Esta segunda camada consiste em intervalos dissonantes de ritmo homofônico tocados pela flauta piccolo e por um clarinete em Mi bemol, em contraponto com a melodia principal da primeira camada. Na terceira camada, oito violinos recebem a tarefa de tocar harmonias “quase desagradáveis” (MESSIAEN, 1966), sul ponticello, sem vibrato, e forte. Isto corresponde à parte do órgão de boca syô, mas aqui os blocos sonoros pentatônicos se transformam em clusters cromáticos de oito sons diferentes. A quarta camada consiste numa polifonia a quatro vozes, cada uma designada a um percussionista. Três deles têm, cada um respectivamente, um conjunto diferente de metais cromáticos: sinos de vacas, crótalos,

e carrilhão orquestral. O quarto percussionista toca sete instrumentos de metal: dois pratos turcos, dois gongos, um prato chinês, e dois tam-tams.

Do mesmo modo que os outros movimentos de Sept Haikai, Gagaku é um tempo circular, contido em si próprio, não-dramático, não-narrativo, não-teleológico e estático, comparável àquilo que Karlheinz Stockhausen cunhou de “moment form” (forma-momento) aplicado à sua própria música. Kramer considera Chronochromie, e Couleurs de la Cité Céleste, as duas composições adjacentes a Sept Haikai na cronologia das obras de Messiaen, como composições em forma-momento “praticamente puras” (KRAMER, 1988). Em seu todo, mas também em cada movimento isoladamente, Sept Haikai pode ser qualificado do mesmo modo, embora recaia na forma mais antiga de composição ou suíte em vários movimentos.

A écriture de Messiaen constrói o tempo suspenso e estático de Gagaku através da sobreposição e coordenação de três camadas melódico-harmônicas de música num único bloco formado por três seções: A, com 4 compassos, B com 9 compassos, e C com outros 9 compassos, no seguinte arranjo simétrico: ABCAB. Embora isto não crie uma unidade tão fechada em si mesma quanto um dos ritmos não-retrogradáveis típicos que Messiaen teria criado, tal como ABCBA, ainda assim, o arranjo gera um forte senso de fechamento. As repetições de A e B ocorrem de modo praticamente idêntico, diferenciando-se apenas por detalhes de ornamentação. As seções não se distinguem claramente ao ouvido. A distinção que existe entre as seções na melodia principal é como que “embaçada” pelo uso de motivos muito similares uns aos outros irregularmente justapostos, de modo muito semelhante à linha principal de Etenraku (Exemplo 1). A melodia flutua em volta dos mesmos tons, Fa# e Sol# no registro mais baixo, e Re e Mi (ou Do#) no registro mais alto.

Ex.1 - Linha melódica principal de Gagaku.Com permissão de Alphonse Leduc et Cie., Paris, França.

Ex.2 - Ordem dos acordes/cores de Gagaku.

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O modo como os acordes da camada dos violinos se seguem uns aos outros também está a serviço da não-linearidade e da não-progressão (exemplo 2). Existem treze diferentes acordes/clusters/cores pré-fabricados, que representei nesse exemplo pelas letras minúsculas de “a” a “m”. Como eles também se articulam em três seções paralelamente à camada melódica na disposição ABCAB mencionada acima, o resultado é uma consecução de acordes/cores, harmonias/timbres errantes, que não tem senso de direção.

Note-se que a repetição de A é idêntica, enquanto que a de B é quase idêntica, contendo apenas a inserção do acorde “g” entre “f” e “a” e sua finalização com o acorde “c”. Quanto a C, unidade central, constitui-se de duas ocorrências da sequência “e-h-i-j-k” seguidas de uma diferente, “e-l-m-f”.

Estes acordes “pairam” acima da melodia “como o céu está acima da terra”, no dizer dos japoneses, conforme observa Messiaen (SAMUEL, 1986).

A camada da percussão é bastante complexa em si mesma. O compositor atribui a cada um dos três conjuntos de instrumentos cromáticos de metal um diferente ciclo de permutação de durações que vão, cada uma, de uma fusa a trinta fusas. Estes ciclos são as permutações nos. 19, 20 e 21 da tábua de trinta e seis ciclos de permutações de durações que Messiaen criou para Chronochromie. A parte do quarto percussionista difere das outras três tanto estruturalmente como em dinâmica, pois não se utiliza das permutações de durações em fusas adicionadas e tem uma intensidade piano, enquanto as partes dos outros três estão em pianissimo. A quarta parte consiste em tocar os sete instrumentos em sete notas sempre na mesma ordem (dois pratos turcos, seguidos por dois gongos, prato chinês, dois tam-tams) cinco vezes, porém, com ligeiras irregularidades ao longo da parte, e sempre com um modo ligeiramente diferente de retardar o ritmo a cada vez.

Devido à sobreposição das camadas melódicas, de harmonias/timbres e de percussão, a textura das três primeiras linhas de percussão não chega a se separar da quarta linha do mesmo modo como se destacaria se o ouvinte pudesse escutar apenas a percussão, isolada das melodias. A percepção desta polifonia a quatro partes de sonâncias metálicas é de tipo global. O ouvido as integra num campo estatístico de klangs e reverberações, como uma massa sonora de sinos ao longe. Trata-se, portanto, de um fenômeno tímbrico, semelhante ao fenômeno dos oito violinos. A combinação dos instrumentos melódicos e de percussão é uma música continuamente errante dentro da sua própria esfera de movimento ou falso-movimento.

Enquanto a música de Messiaen tinha pouca ligação com a estética do haiku, ela estava bastante próxima dos princípios centrais do gagaku. Isto consiste no senso de estase e ritual transmitido por ambas as formas musicais,

a japonesa e a do compositor francês. Quanto aos outros movimentos de Sept Haikai, eles também são todos estáticos, mas somente Gagaku é “hierático, estático, às vezes religioso e nostálgico, com um andamento lento e implacável”, conforme MESSIAEN (1966) descreve o caráter geral da peça na partitura.

Cabe perguntar: por que os outros movimentos não transmitem o mesmo senso de ritual que Gagaku transmite, apesar deles também serem compostos na mesma linguagem musical estática, repetitiva e não-dramática? Talvez seja apenas por causa da força da sugestão no título, trazendo a imagem de ritual à mente do ouvinte. Talvez seja por causa do andamento lento e do sentimento de procissão produzido por ritmos lentos e simples, e pelo fato de que, em Gagaku, o ouvinte sente uma pulsação que, nos outros movimentos não é tão perceptível. Talvez seja uma consequência da transcrição estilizada, que, de modo indeterminado, consegue transpor o devir solene do ritual do modelo japonês.

Seja por que for, a forma-momento, a circularidade, e a não-teleologia produzem em música a vivência de menos movimento, tornando-a mais próxima de algo que se coloca fora do tempo, algo absoluto a priori do tempo do mundo dos fenômenos, o “além”, conforme Messiaen colocou. Mas a música é fenômeno e tempo, e só pode “fingir” que não é..., ou melhor, só pode produzir um símbolo daquilo que está fora do tempo. Quando a música expressa fixidez e falta de movimento, ela está mais próxima da ideia de eternidade, e carrega nossa imaginação para fora do mundo do devir e dos fenômenos relativos. A tendência espiritual - enquanto oposta à tendência materialista, mecanicista e intelectual -, a vivência do Sagrado, é expressa em música pela estase produzida por uma linguagem musical circular e não narrativa.

7 - ConclusãoVimos como a existência, no nível da estética, de um elemento comum entre o gagaku japonês e o Gagaku de Messiaen garantiu a condição necessária para a transformação de um impulso inicialmente nostálgico em um impulso inovador. Este elemento comum é o senso de estase e de ritual, presente no gagaku e já presente, independente e anteriormente, na música de Messiaen. Sem este elemento, Messiaen nunca teria superado o impulso nostálgico.

Vimos também que os elementos superficiais, estilísticos – mais especificamente, os materiais musicais e os papéis funcionais das partes instrumentais, mas também a linguagem de alturas, as durações, a textura – do gagaku passaram por um processo de transcrição que imediatamente os transformou em elementos estilísticos de Messiaen, aquilo que chamei de transcrição estilizada. O efeito de “semelhança” com o gagaku japonês ficou onipresente, mas difícil de se apontar com precisão.

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Portanto, além daquele elemento estético comum, surge a escrita de Messiaen desempenhando um papel decisivo e ativo nesta transformação de nostalgia em inovação. Ativo porque nela reside o poder do conhecimento e dos meios materiais para a concretização: o uso de técnicas – já enumeradas acima – de manipulação destes signos da escrita, uso consciente dos resultados que elas produzem. A escrita age aqui como um filtro, transformando os materiais japoneses do passado nos materiais “do futuro” ou, melhor dizendo, da vanguarda, impedindo que eles tivessem sido simplesmente imitados ou copiados.

Esta relação não-imitativa da composição Gagaku com o “modelo” japonês cancela todo desejo de “tornar-se japonês” - que, de fato, Messiaen parece nunca ter tido - ou de retornar ao passado. Tais desejos teriam somente fixado o nostálgico e incorreriam numa perda de autenticidade artística e de comportamento. É esta não-imitação que faz de Gagaku uma peça tipicamente francesa ou, num sentido mais amplo, europeia. Dizendo isto, não pretendo aqui individuar o que há de francês na composição ou no estilo de Messiaen, mesmo porque, neste período, a composição europeia era um fenômeno internacional mais do que

nacional, onde compositores franceses, alemães, belgas, italianos, trocavam ideias, técnicas, filosofias. Além disso, a aproximação ao elemento japonês vem a complicar ainda mais a possibilidade de identificar o que ali poderia ser francês. De maior interesse é reconhecer como a nostalgia se transformou no novo. Trata-se de reconhecer que foi o artifício da escrita, o modus operandi do compositor europeu - enquanto criação de sons musicais através da escrita de signos que representam sons - que constituiu, no caso do Gagaku de Messiaen, o elemento formativo responsável por esta transformação. Isto transformou o seu impulso inicialmente nostálgico numa contribuição inovadora para a música ocidental.

A mesma atitude se repete no que diz respeito à religião. Messiaen, um compositor profundamente católico, viu no gagaku japonês uma expressão do sagrado. Por um momento, ele se permitiu visitar o universo da religião xintoísta, mas não houve nenhuma conversão ou influência japonesa. Messiaen permaneceu em sua própria fé e foi capaz de perceber e reconhecer um elemento comum, a profunda similaridade, e talvez identidade, do sagrado da sua religião com o sagrado do Japão tradicional.

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Notas1 O termo écriture, muito usado na França, e igualmente na Itália (scrittura), refere-se à escrita musical do compositor. Embora também em uso na

língua portuguesa, o termo escrita não é usado em música, no Brasil, tão frequentemente quanto em literatura e, nos meios musicais brasileiros, não parece ter o mesmo peso que tem nas línguas francesa ou italiana. Mantenho o uso do termo em francês neste artigo não por preciosismo, nem por simplesmente querer honrar o fato de Messiaen ser um compositor francês, mas porque o termo écriture conota enfaticamente a escolha tecnológica e racionalista da cultura europeia, que submete o ouvido ao olho, e reúne em si vários aspectos da criação musical ocidental, que vão desde a notação e as técnicas de manipulação dos signos que formam o texto musical à estética e filosofia que lhe dão suporte, passando também pelo estilo. De fato, a escrita musical do compositor não se resume à caligrafia, nem à notação musical, nem tampouco aos processos composicionais ou à sua linguagem musical. Trata-se do conjunto de atitudes, princípios e procedimentos criativos e formativos de que se serve o compositor no processo poiético, abrangendo a notação, as técnicas, os procedimentos de estruturação, a estética, a linguagem, as associações interdisciplinares e inter-artísticas. A escrita tampouco se resume no estilo. Este é um resultado da escrita; através do estudo do estilo podem-se acessar alguns elementos da escrita de um compositor. Para uma história e filosofia da escrita na música europeia ver DUFOURT, 1991.

2 Este ponto referente à movimentação do anjo me foi trazido por Christopher Dingle, especialista em Messiaen, em conversa pessoal durante o simpósio no qual apresentei este artigo.

3 As únicas composições teológicas do período de 1949 a 1962 são Messe de la Pentecoste (1949), Verset pour la fête de la Dedicáce (1960), e Livre d’orgue, (1951-1952), todas para órgão solo. Esta última reúne peças de uso litúrgico, mas que estão escritas numa linguagem mais “abstrata” do que a das outras duas.

4 “...e ele simpatizando com a música japonesa, falsificou um ensemble de corte Gagaku em fila com um catalogue des oiseaux miniatura no seu Sept Haikai de 1962” (WATKINS, 1995) (minha tradução).

5 Kangen é o repertório tōgakuquando executado sem dança.

6 Stoianova chama as estrutura inicial e final de “entidades” (STOIANOVA, 1976).

Luigi Antonio Irlandini é professor adjunto no Departamento de Música da UDESC, onde leciona harmonia, contraponto, análise e composição. Estudou composição com Hans-Joachim Koellreutter no Brasil, Franco Donatoni na Itália, e Brian Ferneyhough nos Estados Unidos. Obteve mestrado e doutorado em composição, respectivamente, no California Institute of the Arts, e na University of California (UCSB). Irlandini foi lecturer em composição e música do século XX na UCSB e cursou pós-doutorado em composição e música eletrônica junto ao CREATE, Center for Electronic Art and Technology na mesma universidade. Suas composições têm sido executadas no Brasil, Estados Unidos, Itália, Holanda, Japão e Argentina. Irlandini escreveu o artigo Gagaku, de Olivier Messiaen, originalmente em inglês, e apresentou-o no simpósio Nostalgia & Innovation in Twentieth-Century French Music, da Royal Music Association, no Lancaster Institute for the Contemporary Arts da Lancaster University, Inglaterra, em 9 de Maio de 2009.

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Recebido em: 12/07/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

Vibrafone: uma fonte de coloridos sonoros

Fernando Chaib (Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal) [email protected]

Resumo: O artigo aborda questões práticas relativas à performance musical no vibrafone. Conceitos técnicos para a execução do repertório destinado a esse instrumento, geralmente transmitidos via tradição oral, são aqui ilustrados e formalizados afim de estabelecer um critério mínimo na bibliografia especializada em performance musical. Para isso são utilizados exemplos musicais extraídos de obras consagradas no cenário musical contemporâneo. Este trabalho poderá servir como ferramenta para o desenvolvimento pedagógico e artístico de percussionistas e compositores. Palavras-Chave: vibrafone; performance musical; exploração tímbrica.

Vibraphone: a source of sounding colors

Abstract: This article poses practical questions about musical performance on the vibraphone. Technical concepts for the vibraphone’s repertoire, traditionally transmitted orally, are illustrated and formalized into a minimal criterion that can be integrated into the specialized musical performance bibliography. To this end, musical excerpts from standard works in the contemporary music scene are utilized. This work aims to contribute to the existing body of knowledge by providing a pedagogical and artistic developmental tool for composers and musicians. Keywords: vibraphone; musical performance; timbrical exploration.

1. IntroduçãoAs constantes buscas por compositores e intérpretes da música do século XX por uma originalidade estética que rompesse com dogmatismos e regras composicionais preestabelecidas acarretaram produções musicais onde os convencionalismos eram pouco a pouco descartados. Isso incluiu o modo tradicional de como o som, característico de um repertório específico, era extraído de um instrumento. Alguns compositores resolveram explorar o timbre dos instrumentos de formas inusitadas, fora dos padrões tradicionalistas de extração do som existentes até então. Essas pesquisas sobre o timbre na música ocidental do século XX pontificaram estudos sobre certos instrumentos que resultaram no desenvolvimento de diferentes meios de exploração do som.

Os instrumentos de percussão, estando em voga nas produções de compositores como Ives, Cowell, Cage e Milhaud foram determinantes para o encontro dessa “não convencionalidade” tão quista pelos contemporâneos da primeira metade do século XX. Dentre esses instrumentos o vibrafone destacou-se por se apresentar extremamente versátil no que diz respeito à capacidade de se conseguir uma gama considerável de sonoridades particulares ao mesmo, tornando-se um verdadeiro laboratório tímbrico para compositores e intérpretes no decorrer do século precedente:

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

Dentre os instrumentos de percussão há várias razões para que o vibrafone tenha se destacado. Uma das razões está na capacidade de produzir uma grande diversidade sons, inventivos e próprios ao instrumento. […] Um dos seus traços marcantes é possuir um controle de duração e articulação do som impressionantes. A possibilidade do uso do pedal juntamente com a possibilidade de ir abafando as notas permite todo tipo de legatos, meio legatos e staccatos. O pedal permite uma grande sustentação do som além de sua fácil interrupção. Além disto, o instrumento possui uma ampla variação de dinâmica. […] Ou seja, esse instrumento se destaca em meio ao conjunto dos instrumentos de percussão, já que são muito poucos os instrumentos dessa família que possibilitam o controle simultâneo de todos esses aspectos do fazer musical. ZAMPRONHA (2007).

O presente artigo tem por objetivo a apresentação de algumas técnicas capazes de extrair diferentes sonoridades no vibrafone: a sua exploração tímbrica. Explanaremos algumas problemáticas de execução através de exemplos musicais encontrados no repertório padrão do instrumento e procuraremos ilustrar de uma forma clara e concisa as soluções técnicas sugeridas para a sua performance. Um segundo objetivo desse trabalho será o de formalizar, na literatura especializada em performance musical, conceitos de execução no vibrafone geralmente transmitidos via tradição oral nos conservatórios musicais, escolas técnicas e de ensino superior. Uma vez formalizadas, essas informações poderão auxiliar pedagogicamente o desenvolvimento performativo do instrumentista em fase de aprendizagem.

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2. Conceito de timbreÉ importante salientar que, tratando-se de um artigo que discutirá a performance musical no vibrafone, os assuntos aqui discutidos terão como cerne o fenômeno acústico resultante dos efeitos sonoros extraídos do instrumento, não envolvendo quaisquer outras questões. Ao se discutir pontos relativos à exploração tímbrica faz-se necessário o esclarecimento do conceito de timbre, uma vez que definições equivocadas podem comprometer a compreensão dos assuntos aqui apontados. Pierre Schaeffer o define procurando não deixar margem para dúvidas que o possam desvincular do seu real conceito enquanto fenômeno sonoro:

O timbre de um objeto não é outra coisa se não sua forma e sua matéria sonora, sua completa descrição, dentro dos limites dos sons que pode produzir um certo instrumento, tendo em conta todas as variações de execução que ele permite1. SCHAEFFER (1966, p.232).

Podemos concluir por essa afirmação que o timbre possuirá, intrinsecamente, uma variedade sonora. Poderá se apresentar através de sonoridades distintas mas com características semelhantes entre si, permitindo identificar a sua origem partindo de um mesmo instrumento. A exploração tímbrica em um determinado instrumento não alterará o seu timbre, apenas nos permitirá identificar as variantes sonoras que ele pode oferecer mediante os meios de execução possíveis.

Partindo do princípio que essa designação não era (e não é) algo particular à música, foi possível, entre outros exemplos e explicações encontrados, fazer uma relação entre o som e as cores. Podemos citar Varèse, Stockhausen, Antunes e López López, dentre tantos outros compositores que, ao procurarem exemplificar um determinado som característico, chamar-lhe-ão de cor do som ou colorido sonoro. É interessante percebermos que os artistas plásticos também falam em timbre, cromatismo e tonalidade quando se referem a um quadro com um tipo característico de coloração. A união de várias cores produzirá uma outra resultante dessa mescla. Da mesma forma, a união de vários harmônicos e/ou inarmônicos relacionados a um som em específico nos permitirá identificar as diferenças vibratórias, de frequência ou intensidade que caracterizarão a formação do timbre do som e suas variantes.

2.1. Aplicação do conceito de timbre no vibrafoneQuando tocamos o vibrafone com baquetas, arcos de instrumentos de cordas ou dedos, extraímos do instrumento certos tipos de sonoridades que possuem algumas características semelhantes e outras distintas. As características sonoras distintas ocorrerão pelo modo de ataque e material do artefato com o qual o instrumento é manipulado, acarretando incidências diversas de harmônicos, o que valorizará para mais ou para menos a nota fundamental. As características sonoras semelhantes existirão por se tratar do mesmo instrumento. Ou seja, mesmo utilizando baquetas, arcos ou dedos, conseguimos identificar que o instrumento executado é um vibrafone, pois o seu timbre permanece o mesmo. O que muda é a

sonoridade do timbre, o seu colorido sonoro. Observando o repertório destinado a este instrumento, percebemos que existe uma grande quantidade de obras que exigem a manipulação de diferentes tipos de ferramentas para sua execução, somada aos mecanismos e características originais como o pedal, o motor e principalmente a possibilidade de uma ampla variação de dinâmica, como afirma FRIEDMAN (1987, p.2) “[...] O contraste das dinâmicas é o que faz o vibrafone respirar”.

Nos concentraremos em exemplificar algumas variações sonoras relativas ao timbre do vibrafone que se distanciam do som original2 (no entanto, bastante recorrentes em obras de grande relevância para o repertório do vibrafone). Discorreremos também sobre alguns pontos técnicos essenciais que nos ajudarão a compreender melhor de que modo as ressonâncias são extraídas e como elas podem variar, dependendo do controle dos mecanismos existentes no instrumento em sua origem ou artefatos confeccionados para sua execução (baquetas e outros objetos). Portanto, chamamos a atenção para uma questão particular ao intérprete que será substancialmente relevante para que as questões aqui discutidas tenham de fato um resultado positivo na prática: a percepção auditiva das ressonâncias extraídas do instrumento. É comum aos intérpretes dos instrumentos de lâminas uma preocupação extrema com a harmonia (ou melodia) de uma obra executada, esquecendo-se da qualidade tímbrica que melhor se enquadrará num determinado contexto musical. O intérprete, em geral, sente-se satisfeito se o ataque de um acorde com as quatro baquetas ressoar as notas desejadas, mas descuida-se ao realizar esse gesto explorando diferentes regiões das lâminas obtendo um som desigual, heterogêneo, dissemelhante do que se espera sonoramente de uma determinada passagem. Por outro lado, o fato de a maioria desses intérpretes serem percussionistas contribui para um conceito equivocado de extração do som dos instrumentos de lâminas. Não é raro observarmos instrumentistas que se utilizam de um mesmo gesto de articulação para tocar um vibrafone e, por exemplo, um tom – tom. É preciso separar os conceitos técnicos que melhor se aplicarão para cada instrumento pois, inversamente, um gesto para realizar um ataque sobre as lâminas do vibrafone também não será o mais adequado para a execução de um toque articulado em um tom – tom. Existem obras que requerem diferentes resultados sonoros do instrumento, mas elas são bastante específicas a esse respeito. Caso contrário, o intérprete deverá ter o cuidado de explorar homogeneamente o som do instrumento, adquirindo um equilíbrio sonoro, adequado ao que a música se propõe. Mesmo em casos onde a exploração tímbrica se dá com outros artefatos, o intérprete deverá primar pela coerência dos sons extraídos relativos à passagem musical que se deseja demonstrar.

O Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes (1999) de Sejourné exemplifica bem algumas questões de variações sonoras, pois se utiliza de várias passagens onde o som do instrumento se descaracteriza do seu

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contexto original. A abordagem sobre os artifícios utilizados pelo compositor poderá também clarear a forma de interpretar e executar outras obras que exigem semelhante desenvoltura técnica. Utilizaremos também outras composições para exemplificar diferentes questões, a exemplo de 6 Unaccompanied Solos for Vibe (1966) de Burton, Links (1975) de Smith, Mirror From Another – A Collection of Solo Pieces for Vibraphone (1973) de Friedman, Rain Tree (1981) de Takemitsu, Cálculo Secreto (1994) de López López e Modelagem X-a (1997) de Zampronha.

3. Meios de exploração tímbrica – BaquetasUm dos fatores determinantes para a exploração de diferentes sons no instrumento é o objeto manipulado pelo instrumentista. O vibrafone não foi concebido originalmente para ser executado com as mãos (ainda que hajam exceções para esse artifício em algumas obras, nas quais os compositores são bem explícitos com relação a esse uso). Na maioria dos casos, a sua execução se dá de forma indireta pelo intérprete. Isso significa que entre o instrumento e o instrumentista existe um objeto que interage, que cria um “elo” entre os dois.

O principal artefato utilizado pelo intérprete é denominado, em língua portuguesa, baqueta (com o qual o vibrafone foi concebido originalmente para ser executado). Para os instrumentos de percussão compostos por lâminas denomina-se baqueta de teclados3 ou baqueta de lâminas4 (conhecida na literatura internacional especializada pela denominação mallet5). Uma observação acerca das baquetas de lâminas será importante para entendermos algumas questões que se seguirão no decorrer desse trabalho, pois trata-se de um dos pontos principais de preocupação de compositores e intérpretes na composição e execução de obras destinadas ao vibrafone: “Certamente o tipo de baqueta pode modificar não só a sonoridade, mas a forma do ataque do som, o que permite modificar substancialmente o carácter de um segmento musical”, ZAMPRONHA (2007). Essas baquetas são formadas por um “cabo” cilíndrico de madeira ou ratan6 com medida variável entre 01 cm e 03 cm de diâmetro e comprimento entre os 15cm e 20cm. Em uma das extremidades está afixada uma ponta (geralmente uma esfera, por vezes ligeiramente elíptica) à qual damos o nome de “cabeça” da baqueta, que chega a medir 1,6” de diâmetro. Essa ponta pode ser feita de materiais diversos (silicone, acrílico, plástico, borracha, madeira ou metal) mas para o vibrafone é confeccionada, em geral, com borracha e posteriormente revestida (cosida) com algum tipo de linha (lã, linho, seda, corda). Alguns modelos de baquetas extremamente duros podem substituir as borrachas por outro tipo de material (acrílico, silicone, plástico, madeira). No entanto, a escolha do tipo de borracha (dureza) e tipo de linha (dureza) são extremamente importantes para o som que se quer extrair do instrumento:

a) Maiores níveis de dureza – maior incidência de harmônicos e som mais “brilhante” em toda a extensão do vibrafone. Maiores níveis de dinâmica e articulação mais clara. Exemplo: Cabeça confeccionada com material duro (acrílico, plástico, madeira, metal) sem revestimento ou revestida com material de grande dureza (linho ou lã dura);

b) Menores níveis de dureza – maior incidência da nota fundamental na região grave (som mais “encorpado”). Pouca resposta sonora na região aguda do vibrafone. Menores níveis de dinâmica e pouca articulação. Exemplo: Cabeça com material mole (borracha ou plástico de pouca dureza) revestida com material de pouca dureza (lã, feltro).

A maleabilidade do revestimento da cabeça da baqueta também será importante. Se a linha for bastante apertada contra a esfera, resultará em um som mais característico do material com o qual a cabeça foi feita. Por outro lado, estando a linha envolvendo a cabeça com uma certa folga, o contato entre os dois materiais não será tão imediato resultando primeiramente num som característico da linha. O vibrafonista poderá, entretanto, combinar diferentes níveis de dureza entre a cabeça da baqueta e o material que a reveste, constituindo diferentes tipos de baquetas, proporcionando uma vasta exploração sonora. Devemos observar que devido ao seu tipo de costura a maioria das baquetas possuem, na extremidade de suas cabeças, uma concentração maior do material que a reveste, perdendo certo contato com esfera, proporcionando um timbre mais característico do material utilizado para envolvê-la.

Existem ainda as chamadas baqueta de duplo ataque7. Essas baquetas possuem uma característica peculiar em sua fabricação. Geralmente a sua esfera é confeccionada com um material duro (acrílico, silicone, plástico, madeira ou borracha dura) contendo uma parte de material de menor dureza (borracha mole ou espuma) circundando o seu eixo, além de possuir uma linha de pouca dureza (geralmente lã) revestindo a esfera com bastante maleabilidade. Assim, para a extração de dinâmicas em pianíssimo será ouvido o som característico do material menos duro ao passo que para dinâmicas fortes ouviremos o som do material com maior nível de dureza. Devemos deixar claro que a característica sonora extraída por uma baqueta de duplo ataque variará de acordo com a dinâmica. Com esse tipo de baqueta o som resultante extraído em dinâmica pianíssimo será completamente diferente de som extraído em dinâmica forte. Não podemos afirmar que todas essas baquetas são fabricadas com os mesmos materiais. Diremos então que, diferentemente das baquetas que possuem em sua cabeça um material para a fabricação da esfera e um para o seu revestimento, uma baqueta de duplo ataque terá, em sua maioria, três materiais que compõem a sua cabeça (o primeiro que origina a esfera, o segundo que a circunda e o terceiro que a reveste), permitindo uma variação sonora maior relacionada ao timbre do instrumento, sempre condicionada à dinâmica executada.

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Encontramos também no repertório para o vibrafone um tipo de baqueta que possui uma particularidade em sua fabricação: a sua esfera é constituída por dois tipos de material que possuem durezas diferentes (duro e macio). Não há qualquer material que circunda a esfera (como é o caso da baqueta de duplo ataque). A parte dura compreende a região do centro da esfera para baixo (em direção ao cabo) enquanto a parte macia compreende a região do centro da esfera para cima (ponta da baqueta). O principal motivo que causará a diferença do som extraído será, de fato, por conta do material com o qual é fabricada a cabeça da baqueta. Na obra Cálculo Secreto, López López, exige esse tipo de baqueta que não está padronizada no mercado, sendo recentemente implementada em uma rota limitada de comercialização (apenas por encomenda). Por esse motivo ela não tem uma designação oficial ou reconhecida pela literatura internacional que possa identificá-la. Para que possamos reconhecê-la e diferenciá-la dos outros tipos de baquetas, a denominaremos como baqueta de dureza oposta, já que a sua cabeça possui dois tipos de dureza distintos podendo ser executados em quaisquer níveis de dinâmica, sem prejudicar o seu resultado sonoro característico.

Nos livros e métodos existentes sobre os instrumentos de percussão de lâminas, a indicação da manipulação das baquetas está padronizada de forma numérica, sendo 1 e 2 as baquetas indicadas para a mão esquerda e 3 e 4 para a mão direita (da esquerda para a direita do corpo humano), como afirma BURTON (1996, p.3): “Em caso de possíveis dúvidas, eu anotei a manulação8 utilizada usualmente (E para esquerda e D para direita)9. Em algumas ocasiões, anotei a manulação para a função de quatro baquetas como: 1-2 (mão E) e 3-4 (mão D)”. O repertório para o vibrafone estabeleceu como material primordial para a sua execução as baquetas de ponta de borracha revestidas com linha ou lã. Isso, no entanto, não limitou a busca por novas sonoridades extraídas do instrumento com outros tipos de artefatos, como poderemos observar no decorrer do artigo.

3.1. RessonânciaO vibrafone é o instrumento mais ressonante dentro da família dos instrumentos de percussão de lâminas. Isso explica-se pelo fato de as lâminas serem de metal, possuindo uma capacidade de vibração mais duradoura do que a madeira (no caso da marimba e do xilofone). Será também mais ressonante que o metalofone10, visto que esse não possui tubos ressonadores que ajudem na propagação do som e por ter suas lâminas fabricadas com um tipo de metal que possui menores níveis de vibração do que o alumínio em liga especial11 utilizado para a fabricação das lâminas do vibrafone. Além do mecanismo do pedal, que permite ao intérprete controlar temporalmente a vibração das lâminas, existe um outro fator determinante para que a ressonância do vibrafone possua maior ou menor incidência sonora. Trata-se da possibilidade da manutenção dos tubos ressonadores

fechados ou abertos pelas placas circulares que se encontram acopladas em cada um deles.

Contrariando a ideia geral que se tem sobre a relação entre os tubos e a ressonância do instrumento, chamamos a atenção para a seguinte questão: estando os tubos abertos, a ressonância do vibrafone será a mais intensa possível e terá uma duração de reverberação das lâminas razoavelmente curta, o que significa que a nota deixa de ser ouvida num curto espaço de tempo. Se mantivermos os tubos totalmente fechados, o som perderá intensidade em sua ressonância mas será, pelo menos, três ou quatro vezes mais longa a duração da reverberação das lâminas, mantendo as notas executadas audíveis por mais tempo. Existe a possibilidade de encontrar-se um “meio-termo” entre a ressonância e a reverberação das lâminas, deixando os tubos parcialmente abertos para valorizar-se os dois aspectos. Alguns vibrafonistas costumam dispor as placas, que se encontram acopladas nos tubos, num ângulo x em relação ao eixo cilíndrico procurando obter um melhor resultado sonoro para alguma execução em específico. O movimento das placas através do motor também alterará a duração e a ressonância do som. A velocidade do motor poderá ser controlada pelo intérprete, mediante os mecanismos possíveis de manipulação durante a execução de uma obra. O motor possui uma grande variedade de velocidade, permitindo os mais diversos níveis de tremoli que as placas circulares são capazes de produzir nos tubos, alterando também a durabilidade de reverberação das lâminas. Em certos casos o instrumentista deverá desenvolver mecanismos alternativos de controle da velocidade motriz. Almeida, ao executar o estudo Etude XIV12 concebeu a ideia de um “pedal” para regular a velocidade do motor, já que suas mãos encontravam-se ocupadas durante todo o trecho em que ele optou por variar os níveis de tremolo do instrumento:

O motor do vibrafone que utilizei possuía um dispositivo para ligá-lo e desligá-lo e outro para controlar a sua aceleração e velocidade. […] Pensei num dispositivo que tornasse possível controlar a velocidade do motor com o pé esquerdo, e que fosse relativamente fácil de usar. O pedal possibilitou que eu mantivesse o motor girando à mesma velocidade da colcheia, em relação as notas do estudo. A medida que a música acelerava o andamento, o pedal era acionado e o motor aumentava a velocidade dos giros das placas circulares mantendo a relação de pulsação. […] O pedal se mostrou útil para ligar o motor de forma mais cômoda em trechos que o intérprete é solicitado a ativar rapidamente o motor durante a troca de baquetas ou mesmo durante a execução de encadeamentos de acordes. ALMEIDA (2007).

Podemos observar nas tabelas a seguir, a relação temporal13 entre as notas Lá2 e Lá3 tocadas com os discos dos tubos ressonadores em diferentes posições (motor desligado, Ex.1) e em três níveis de velocidade (motor ligado, Ex.2):

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No Ex.2 as diferenças do tempo de duração de reverberação são menores em relação ao Ex.1. As notas Lá 2 e Lá 3 apresentam praticamente a mesma relação de durabilidade de reverberação com o motor em velocidade lenta e média. Curiosamente, estando o motor em alta velocidade, apresentam uma relação de tempo oposta. A nota Lá 3 parece seguir uma coerência de menor duração quanto mais rápida for a velocidade do motor. Já a nota Lá 2 não corresponde a essa observação.

Para avaliarmos as medidas que se encontram nas duas tabelas deve ser levado em conta todo o espaço e material utilizado para realizar esse estudo. A acústica da sala em que se encontra o instrumento (nesse caso com pouca reverberação), as baquetas utilizadas, a intensidade com qual foi feito o ataque e o próprio instrumento tornam essas medidas muito particulares à essa observação. A relação entre as medidas poderá ser mantida apenas se as mesmas características de espaço, material utilizado e forma de ataque forem conservadas para todas as observações efetuadas. Salientemos que nessa observação, ao ressoar a nota Lá 2 com o tubo aberto, ouviremos a nota fundamental somente durante os sete primeiros segundos ficando logo após em evidência o harmônico n.4 (nota relativa à fundamental duas oitavas acima). Isso aplica-se a toda a região grave do instrumento.

As lâminas ressoam por mais tempo com os tubos fechados porque a área de escape do som se torna limitada. Dessa maneira as ondas sonoras permanecem entre a lâmina percutida e a placa circular, num constante vaivém. Já com os tubos abertos, o som possui uma área de escape maior, o que resulta em uma vibração da lâmina sem interferências. A intensidade sonora será maior com o tubo aberto porque ele também passará a vibrar, aumentando a quantidade de harmônicos do som.

Utilizamos a região central das lâminas para realizar os ataques, ajudando na percepção das ressonâncias que o vibrafone é capaz de produzir a partir de uma nota fundamental. As lâminas possuem a característica de modificarem ligeiramente o som conforme as regiões percutidas. As áreas que compreendem o centro das mesmas (exatamente onde os tubos estão dispostos) e suas extremidades (pontas) terão a fundamental em total evidência, ao passo que à medida que formos aproximando os ataques dos pontos nodais, os harmônicos característicos da nota em questão começarão a ganhar evidência no som extraído, dividindo as atenções com a nota fundamental. Salientemos que para extrairmos uma sonoridade das extremidades das lâminas semelhante ao centro, é necessário realizarmos um ataque em seu limite, procurando um distanciamento de sua região nodal.

3.2. Pedal: Para explorarmos o timbre do vibrafone com a intenção de obter diferentes resultados sonoros além de construir fraseados, motivos melódicos, rítmicos e encadeamentos harmônicos, faz-se necessário um controle bastante preciso do pedal. Buscando ajudar o intérprete nessa questão, os compositores procuraram estabelecer símbolos para indicarem o uso desse recurso em suas obras. Alguns símbolos e nomenclaturas são explicitados, nas partituras escritas para o vibrafone, apontando como devem ser aplicados os recursos no instrumento exigidos pelo compositor. É importante conhecermos primeiramente as denominações atribuídas às possibilidades de pedais existentes nas obras para vibrafone, se quisermos interpretar da maneira mais correta as peças estudadas:

a) Pedal aberto – Indica um apoio sobre o pedal com o intuito de desencostar totalmente a barra de abafamento das lâminas;

Tubo Aberto Tubo Fechado Tubo Semiaberto

Lá 2 11s48dc 40s 25s62dc

Lá 3 16s28dc 44s13dc 31s79dc

Ex.1 - Relação temporal entre notas e tubos ressonadores com o motor do vibrafone desligado, onde: s (segundos) e dc (décimo de segundos) significam o tempo de decaimento da nota a partir do seu ataque até a total

ausência de som.

Velocidade lenta Velocidade média Velocidade rápida

Lá 2 16s48dc 15s62dc 18s

Lá 3 25s 24s 22s56dc

Ex.2 - Relação temporal entre notas e tubos ressonadores com o motor do vibrafone ligado, onde: s (segundos) e dc (décimo de segundos) significam o tempo de decaimento da nota a partir do seu ataque até a total ausência de som.

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b) Pedal fechado – Indica que não há qualquer apoio sobre o pedal, permanecendo a barra de abafamento totalmente encostada às lâminas;

c) Meio pedal – Indica uma leve pressão sobre o pedal, criando um meio-termo de atrito entre a barra de abafamento e as lâminas;

d) Pedal gradual – Indica que a barra de abafamento deverá encostar ou desencostar das lâminas gradualmente, abafando-as ou deixando-as ressoar pouco a pouco. O pedal gradual poderá ser executado em andamentos rápidos ou lentos.

Na literatura internacional destinada ao vibrafone temos diferentes tipos de escrita simbólica destinados a exemplificar o mesmo processo, como podemos conferir nos exemplos a seguir (cujos tipos são indicados por algarismos romanos), que demonstram os símbolos utilizados para sinalizar a utilização do pedal aberto:

Concerto Pour Vibraphone et Orchestre à Cordes, de Sejourné:

I:

II:

Links 2, de Smith:

III:

Mirror From Another – A Collection of Solo Pieces for Vibraphone, de Friedman:

IV:

6 Unaccompanied Solos for Vibe, de Burton:

V:

Rain Tree, de Takemitsu:

VI:

Em todos esses exemplos a linha contínua ou pontilhada na posição horizontal significa a manutenção do pedal aberto. A linha vertical (ou o asterisco) no final da linha horizontal significa o fechar do pedal (se está no início da linha, significa que o pedal eslava fechado antes de ser aberto). Note-se que, mesmo não seguindo um padrão de escrita simbólica, os compositores limitam os caracteres utilizados e ordenam-nos de maneiras diferentes, chegando a um símbolo característico (mas não exclusivo) para indicarem o uso do pedal. Sejourné (ver indicação I acima) chega a utilizar dois tipos de escrita simbólica na mesma obra para indicar o mesmo processo. Por sua vez, Takemitsu (ver indicação VI acima) pede apenas uma breve interrupção do pedal aberto

seguido de uma nova abertura, visto que sua peça tem como uma de suas principais características a eminente presença de grandes ressonâncias extraídas do vibrafone. Outros tipos de escrita simbólica para o pedal indicam outras faculdades exequíveis desse mecanismo, como a indicação de meio-pedal e pedal gradual:

Ajax Men of Science (6 Unaccompanied Solos for Vibe), de Burton:

VII:

Rain Tree, de Takemitsu:

VIII:

Links 2, de Smith:

XIX:

Smith não especifica realmente se sua indicação (ver indicação XIX logo acima) é de fato um meio pedal. Podemos interpretar dessa maneira (como podemos também atribuir um pedal gradual a essa simbologia) pois existe um símbolo diferente para o pedal aberto utilizado na mesma obra pelo compositor (Ex:3).

Diferentemente, Takemitsu especifica inclusive com a expressão gradually, a indicação do pedal gradual (ver indicação VIII acima). Observando que essa indicação vem posteriormente à indicação do pedal aberto podemos concluir que se trata de um pedal gradual em direção ao pedal fechado. Conforme os exemplos de escrita do pedal aberto, as indicações sobre outros tipos de pedal também não são uma prática padronizada. Vejamos a sinalização de staccato, meio-pedal e ¼ de pedal exigido por López López em determinado trecho de sua obra Cálculo Secreto14 (Ex: 4).

Sugerimos que o uso do pedal (de maneira geral) seja feito da forma mais suave e delicada possível. O pé sobre o pedal deverá agir de uma forma bastante sutil. O peso aplicado deverá ser o suficiente para que se consiga o efeito esperado de abafamento. Não se deve aplicar uma força-peso além do necessário, com o risco de danificar o mecanismo do instrumento ou criar certos ruídos indesejáveis à performance. Não há necessidade de o pedal encostar-se ao chão, quando esse for acionado. Os dois pés devem ser utilizados alternadamente, conforme a região do instrumento executada, contribuindo para um posicionamento corporal adequado diante do instrumento. Para não extrapolarmos a quantidade de força aplicada aconselhamos que a região do pé sobre o pedal compreenda apenas um quinto de sua totalidade (a partir da ponta dos pés) e que o seu calcanhar mantenha-se sempre encostado ao chão. A ideia é fazer com que o mecanismo do pedal passe desapercebido no decorrer de uma performance.

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3.3. AbafamentosAo perceberem a limitação técnica do pedal relacionado aos abafamentos das lâminas (pois quando acionado, sua interferência dá-se em toda a extensão do instrumento) os vibrafonistas procuraram desenvolver diversas técnicas de abafamento que pudessem auxiliar os fraseados, encadeamentos harmônicos, duração de ressonância das notas, ampliando as possibilidades interpretativas que o instrumento pode oferecer para o instrumentista expressar-se musicalmente. As várias técnicas de abafamento que foram desenvolvidas até o momento permitem a exploração de ressonâncias e a ausência de som, em simultâneo, em lâminas distintas. O artefato principal utilizado para a realização desses abafamentos é a própria baqueta utilizada para tocar o instrumento. Em alguns casos, o uso da mão ou dos dedos também será uma possibilidade relevante. É como se as próprias mãos do intérprete (auxiliado pelas baquetas) se tornassem uma espécie de segundo pedal, abafando apenas as notas desejadas. Em geral, identificamos o sinal de abafamento em uma obra (sem a utilização do pedal) por um “x” sinalizado logo após a nota que se deseja abafar: “Um ‘x’ marcado imediatamente após a nota significa que essa deve ser abafada sem a utilização do mecanismo de pedal, mas pressionando a lâmina com o auxílio do dedo ou de uma baqueta” BURTON (1966, p.1).

Sejourné e Friedman também utilizam o mesmo tipo de sinal para indicar esse tipo de abafamento. Acrescentam, no entanto, um tipo de abafamento que ambos denominam como dead stroke. Essa indicação será pelo sinal “+”, que se localiza por cima da nota que deve ser abafada. Na literatura em língua portuguesa especializada não existem nomenclaturas ou termos técnicos para os tipos de técnicas de abafamento aplicados no vibrafone. Indicaremos por tanto os termos em inglês (por se tratarem de expressões existentes

na literatura internacional) com a sua tradução (ou adaptação) para o português15:

1 – Toque preso (dead stroke): Ataque sem rebote da baqueta sobre a lâmina. Ao realizarmos um ataque contra a lâmina a baqueta permanecerá sobre a mesma, inviabilizando a sua vibração, como afirma Friedman: “ […] Notas mortas. Permanecer a baqueta sobre a lâmina, cessando a sua ressonância” FRIEDMAN (1987, p.6). Será um som extremamente seco e curto.

2 – Abafamento em deslize (slide dampening): Poderá ser realizado com as duas mãos ou com uma apenas. A baqueta deslizará de uma lâmina para outra (geralmente em grau conjunto ou em movimento cromático), abafando-a. Poderá ser realizado atacando as notas com uma mão e deslizando a baqueta sobre as lâminas com a outra, efetuando o abafamento. Pode-se aproveitar o movimento de articulação em uma nota e deslizar a baqueta em direção à lâmina que ressoava anteriormente (nesse caso o abafamento poderá ser realizado em simultâneo com as duas mãos).

3 – Mãos combinadas (opposite hand combinations): Consiste na realização da articulação nas lâminas com uma das mãos e o abafamento das mesmas lâminas com a outra mão, logo após o ataque. Diferentemente do abafamento em deslize executado com a mesma mão (onde a nota é abafada subsequentemente ao ataque realizado em outra nota), as notas devem ser abafadas em simultâneo às lâminas subsequentes atacadas. Um exemplo simples seria tocarmos a escala de Dó Maior ascendente com a mão direita e abafarmos as lâminas com a mão esquerda, realizando o movimento inverso de ataque e abafamento das mãos na escala descendente (Ex:5 acima)

Ex:3: Links 2 (1975; 3º sistema da pg.2) de Smith: indicação de pedal aberto.

Ex:4: Cálculo Secreto (1994; Início da Seção E ) de López López: Indicação de meio-pedal e ¼ de pedal.

Ex.5: Exercício da escala de Dó Maior ascedente/descendente com marcações de abafamento nota a nota, com exceção do Dó 3 na escala descendente. Na escala ascendente: mão direita toca, mão esquerda abafa.

Na escala descendente: mão esquerda toca, mão direita abafa.

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4 – Combinação com a mesma baqueta (same mallet combinations): Será o abafamento das lâminas efetuado pela mesma mão que realiza o ataque. Para percebermos esse tipo de abafamento visualizaremos a mão esquerda abafando as notas que executa na região grave do instrumento e mão direita realizando o mesmo gesto (alternadamente com a mão esquerda) na região aguda.

5 – Abafamento com as mãos (hand dampening): O vibrafonista fará uso da própria mão para abafar as lâminas. Podem ser usados os dedos, o punho, o cutelo16. Não há uma forma exata de se aplicar essa técnica. Cada intérprete utilizará da forma que melhor lhe convier a posição da mão para a realização desse tipo de abafamento.

6 – Abafamento de intervalos (double stops): Aqui o vibrafonista deve ter obrigatoriamente duas baquetas em cada mão. Um intervalo deve ser abafado pela mesma mão que realizou o seu ataque, ao mesmo tempo em que a outra mão executará um ataque em outro intervalo. Frisemos que o intervalo deve ser atacado ao mesmo tempo (um uníssono), alternadamente entre a mão direita e a mão esquerda.

7 – Baqueta com baqueta (mallet to mallet) Esse tipo de abafamento é, tecnicamente, bastante peculiar e difícil, pois consiste em atacar uma lâmina e abafar outra utilizando as duas baquetas de uma mesma mão. Ou seja, se pensarmos por exemplo na mão direita, atacaremos uma nota com a baqueta 3 (ou 4) abafando, em simultâneo, outra nota com a baqueta 4 (ou 3).

8 – Abafamento com o corpo (body dampening) Realiza-se, geralmente, com a parte abdominal do corpo (podendo expandir-se para outras regiões). Para exemplificarmos esse tipo de técnica de abafamento consideraremos a seguinte situação: podemos nos deparar com passagens onde a mão esquerda esteja sobre a região grave do instrumento e a mão direita sobre a última oitava. Considerando que ambas as mãos estarão realizando figuras numa determinada velocidade que as tornam incapazes de se deslocarem para as regiões opostas no intuito de realizarem abafamentos, o corpo poderá executar esse papel encostando-se nas lâminas interrompendo a sua vibração.

É importante destacar que um dos grandes desafios na realização desses abafamentos é o de tornar inaudível o toque do artefato (baqueta, mão, corpo) que realiza esse efeito. Será necessário calcular a força exata do toque para que consigamos abafar completamente uma lâmina sem tornar perceptível o ataque sobre ela. Os abafamentos têm como objetivo cessar as ressonâncias de notas estranhas à harmonia ou a um trecho executado que procure valorizar certas consonâncias ou dissonâncias. Isso acarretará um outro desafio não menos importante que se trata, justamente, do sincronismo que deverá existir entre o abafamento e o ataque das notas tornando simultâneo o desaparecimento de uma e o aparecimento de outra (ou outras, no caso de intervalos ou acordes).

Esses são alguns exemplos de técnicas de abafamentos mais utilizados e indicados na literatura especializada. Contudo, o intérprete poderá escolher a forma que melhor lhe convier para realizá-los (inclusive desenvolvendo a sua maneira particular, se for o caso), tornando a passagem executada mais coerente com o que ser quer demonstrar musicalmente. Não existe a necessidade de executarmos essas técnicas independentes umas das outras. Todas elas são perfeitamente adaptáveis e poderão ser combinadas entre si, permitindo o máximo de comodidade ao instrumentista para a execução musical.

3.4. Manipulação de Arcos Um grande número de obras escritas para vibrafone exige do intérprete a manipulação de arcos de instrumentos de corda sobre o instrumento. A espessura da crina dos arcos utilizados é de fundamental importância para a obtenção de um som com maior qualidade, permitindo maior vibração das lâminas, proporcionando uma grande exploração de harmônicos, influenciando o som e a dinâmica. Para facilitar a sua manipulação sobre o vibrafone sugerimos os chamados “Arcos Júnior”17, que conservam a espessura da crina mas são de menor peso e comprimento, facilitando o seu manejo em passagens tecnicamente difíceis. Os arcos de crina preta possuem maior aderência e podem ajudar na relação de atrito com as lâminas. Existem também baquetas de lâminas confeccionadas artesanalmente para esse tipo de repertório, possuindo um sistema de crina já esticada acoplado ao cabo, permitindo a utilização em simultâneo do artefato.

Quanto maior for a pressão sobre a parte perpendicular da lâmina, maiores serão os níveis de vibração da mesma. A partir do momento em que o arco fecha o ângulo em direção à superfície do vibrafone, o som poderá ser prolongado, mas dificilmente haverá uma alteração sonora de grandes proporções, pois o contato da crina contra a lâmina diminui. Vejamos os níveis de pressão do arco que devem ser exercidos sobre a lâmina para a obtenção do som desejado:

a) Som contínuo sem alteração – Após o surgimento do som, a pressão do arco contra a lâmina deve ser aliviada procurando o equilíbrio entre os dois, permitindo um som contínuo sem alteração de dinâmica. O ângulo do arco fechado sobre a superfície do instrumento poderá ajudar a equilibrar o som;

b) Dinâmica Crescente – A pressão do arco contra a lâmina deverá aumentar conforme os níveis de dinâmicas crescentes indicados. Preferencialmente o ângulo do arco deverá permanecer em 90º em relação à superfície do instrumento;

c) Dinâmica Decrescente – A pressão do arco contra a lâmina deverá diminuir conforme os níveis de dinâmicas decrescentes indicados. A mudança de ângulo do arco contra a lâmina poderá ajudar nessa questão.

Para extrairmos um som extremamente ressonante a crina deve estar em contato com a parte da lâmina que é perpendicular ao chão, perfazendo um ângulo de 90º com

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a superfície do vibrafone extraindo-se maiores níveis de vibração da lâmina. Dessa forma será mais fácil controlar as dinâmicas e o som desejado (Ex.6). Para obtermos sonoridades do vibrafone utilizando o arco devemos exercer uma leve pressão da crina contra a lâmina, deslizando-o num sentido vectorial de cima para baixo ou de baixo para cima criando um atrito inicial para que a lâmina comece a vibrar. O fato de iniciarmos o toque contra a lâmina com a parte mais espessa da crina (de baixo para cima) ajuda-nos a ter um maior controle sobre a obtenção inicial do som. O arco deverá realizar um movimento contínuo podendo, eventualmente, deslocar ligeira e gradualmente o ângulo em direção à superfície do instrumento (Ex.7).

O vibrafonista deve se valer da mesma resina utilizada por violoncelistas e contrabaixistas, ajudando na obtenção de atrito suficiente entre o arco e a lâmina para a extração do som. No início do primeiro movimento do Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes de Sejourné, observamos que o executante começará a obra manipulando arcos de instrumento de cordas sobre o vibrafone (Ex.8).

O segundo e terceiro compasso do Ex.8 apresentam ligaduras e suspensões, sugerindo fraseados longos e reverberantes, sem abafamentos. Interpretamos esse trecho executando todo o valor rítmico da nota com o arco, aumentando gradualmente a sua pressão contra a lâmina, desencostando-o da mesma logo a seguir, deixando o som reverberar realizando um decrescendo natural sem a interrupção do intérprete. Para o último intervalo desse sistema (Dó 4 – Mi 4) deveremos atacar essas notas com bastante pressão sobre a parte perpendicular das lâminas, dessa forma conseguiremos executar a dinâmica indicada. É um trecho de caráter bastante espacial, onde as reverberações das notas se misturam umas às outras. No segundo sistema desse excerto a escrita é mais específica, sendo necessária uma maior clarificação da frase. Sugerimos a ausência total do pedal como recurso abafador e recorremos ao uso do próprio arco para abafar as notas que executa, parando o seu movimento ao realizar uma leve pressão contra as lâminas de maneira lenta e sutil até a execução da próxima nota, sem comprometer a fluência

Ex.6: Ângulo de 90º e movimento perpendicular à superfície do instrumento.

Ex.7: Ângulo do arco deslocado relativo à superfície do instrumento.

Ex.8: Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes (1999; 1º mov. c. 1-16) de Sejourné: indicação de utilização de arcos.

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da frase. Para uma fluência maior de fraseado e de gesto corporal sugerimos que o sentido seja de baixo para cima, ajudando no movimento do corpo para a execução, por exemplo, das notas – acidente. Apenas em casos extremos (onde o sentido sugerido compromete a execução ou se a nota executada for demasiado longa) o movimento deve alterar-se (de cima para baixo ou alternando os sentidos sucessivamente).

3.5. Som contínuoMuitos instrumentos de percussão têm uma característica original semelhante: a ausência de um som contínuo de longa duração causado pelo ataque da baqueta. Com o vibrafone não é diferente. Percebemos há pouco que quando extraímos o som por fricção conseguimos torná-lo mais duradouro. Contudo, não é raro encontrarmos passagens em obras para vibrafone onde o compositor sinaliza a intenção de criar um som contínuo com a utilização de baquetas. Geralmente a visualização gráfica se dá por tr (trinado) ou por um trêmulo de semibreve, mínima, semínima, etc. O intérprete em muitos casos, ao iniciar uma música com baquetas duras, sente dificuldade em obter esse efeito sonoro do instrumento pela impossibilidade física da troca de baquetas, procurando não prejudicar a fluência da obra em questão. É preciso ter em conta se a obra lhe dá essa oportunidade de troca, ou optar por baquetas que mais se adaptem às suas características gerais. O Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes de Sejourné permite a troca de baquetas em todos os trechos que possuem essa característica de um som contínuo. Nesse caso o compositor pede para a mão esquerda realizar um pedal18 que será sustentado enquanto a mão direita executa a melodia (Ex.9).

Cabe ao intérprete tornar essa intenção exequível. Para isso faz-se necessária a experimentação de diferentes tipos de baquetas até obtermos o som desejável. Tão relevante quanto à escolha das baquetas será a intenção do toque

(ataque ou articulação). Sabemos que as possibilidades de variações sonoras extraídas das lâminas estão diretamente ligadas à relação de dureza das baquetas. Se concluirmos que um som uniforme, longo e contínuo tem em sua nota fundamental a personagem principal do timbre, optaremos por uma baqueta extremamente macia (com cabeça e revestimento de pouca dureza) para a mão esquerda (baquetas 1 e 2) e uma baqueta de dureza maior para mão direita (baquetas 3 e 4) com a intenção de sobrepor a melodia ao acompanhamento. A intenção de toque sobre a lâmina com a mão esquerda deverá ser lenta e contínua. A ideia é não ouvirmos os ataques das baquetas. Partindo do princípio que cada novo toque abafa o anterior, perceberemos que quanto menos toques aplicarmos sobre o instrumento, menor será o risco de ouvirmos os ataques das baquetas. Se a intenção é não ouvirmos esses ataques deveremos ter a preocupação de executar o trecho utilizando o máximo possível a extremidade das cabeças das baquetas, valorizando a ausência de articulação e o timbre extraído pelo material que a reveste. Vejamos a ilustração do posicionamento angular da baqueta sobre a superfície do instrumento, para uma melhor compreensão:

a) Ângulo aberto – maior contato da ponta da baqueta com a lâmina, proporcionando um timbre mais característico da linha que reveste a “cabeça” da baqueta; menores níveis de dinâmica; maior evidência da fundamental nas notas graves; pouca resposta sonora na região aguda do instrumento; ataque com pouca articulação (Ex.10).

b) Ângulo fechado – maior contato da região central da baqueta com a lâmina, proporcionando um timbre mais característico do material com o qual é feita a “cabeça” da baqueta; maiores níveis de dinâmica; fundamental com maior incidência de harmônicos agudos nas notas graves; boa resposta sonora na região aguda do instrumento; ataque com bastante articulação (Ex.11).

Ex.9: Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes (1999; 2º mov. c. 66–71) de Sejourné: som contínuo na voz de baixo (mão esquerda).

Ex.10: Ângulo aberto. Ex.11: Ângulo fechado.

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Esse artifício não está condicionado apenas às vozes da mão esquerda ou mão direita. Observamos no Ex.12, a indicação de um som contínuo nas vozes intermediárias. As baquetas de menor dureza deverão ser as de número 2 e 3, enquanto as que possuem maior dureza compreenderão os números 1 e 4. Esse trecho tem a particularidade de ser executado com o motor funcionando em ritmo lento. Cabe ao intérprete aproveitar esse recurso do instrumento para que a reverberação das notas alcançadas através dos tubos ressonantes ajude na extração do som contínuo.

3.6. HarmônicosRealização de harmônicos com baquetas – podemos extrair harmônicos das lâminas do vibrafone com o simples uso de baquetas de grande dureza (madeira, acrílico, silicone, metal), podendo estar sem o revestimento da cabeça (linha, lã, corda) ou utilizando a extremidade da baqueta (ponta do cabo de ratan ou madeira). O som extraído será uma fundamental rica em harmônicos e inarmônicos. A obra Modelagem X-a de Zampronha é um bom exemplo desse

tipo de sonoridade. Aqui se especifica que o material do cabo da baqueta deve ser o ratan, e não a madeira (Ex.13).

Devemos iniciar e finalizar esse trecho com a cabeça da baqueta revestida com lã, conforme indicado. Os sons ricos em harmônicos serão explorados no trecho onde está sinalizado o uso do ratan (centro do pentagrama), onde intérprete deverá tocar com o cabo da baqueta. Pela rapidez do gesto e pelas notas que o compõem, sugerimos o uso das pontas do cabo da baqueta (lado inverso à cabeça). Pela impossibilidade de troca de baquetas durante toda a obra, o intérprete vê-se na obrigação de manusear duas baquetas na posição inversa, uma em cada mão, (com o intuito de tocar a parte do ratan na lâmina), do início ao fim da música: “São utilizados dois pares de baquetas: Baqueta de lã dura e ratan. Não há tempo para trocas de baquetas. Deve-se utilizar duas baquetas em cada mão, uma baqueta de lã dura e outra de ratan”19. As posições das baquetas nas mãos podem ser: 1/invertida, 2/normal, 3/invertida e 4 /normal (Ex.14) ou 1/normal, 2/invertida, 3/normal e 4/invertida (Ex.15).

Ex.12: Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes (1999; 2º mov. c.186) de Sejourné: Vozes intermediárias realizando um som contínuo (baquetas 2 e 3).

Ex.13: Modelagem X-a (1997; 1º sistema da pg.2) de Zampronha: indicação do uso de ratan.

Ex.14: Baquetas 1 e 3 na posição normal e baquetas 2 e 4 na posição invertida.

Ex.15: Baquetas 1 e 3 na posição invertida e baquetas 2 e 4 na posição normal.

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É relevante observar que, sendo a articulação influenciada diretamente pelo peso das baquetas (inclusive de suas pontas), os toques realizados com o cabo de ratan terão seus níveis de dinâmica em menor escala do que os realizados com a cabeça da baqueta, certificando que a indicação de fff (Ex.13), escrita no momento da execução com a cabeça revestida, soará mais forte em relação ao ffff, indicado para o ratan. A região de ataque das baquetas sobre as lâminas é determinante para a qualidade dos harmônicos. Quanto mais próximo o ataque do nó�, mais audível será o harmônico 4 (duas oitavas acima da nota fundamental). É interessante perceber que, nesse caso, a fundamental e o harmônico n.4 praticamente dividem as atenções, sendo as duas notas perfeitamente audíveis.

Para que o harmônico n.4 se sobressaia à nota fundamental, sugerimos um ligeiro apoio de uma baqueta ou de um dos dedos da mão no centro da lâmina enquanto executa-se o ataque com outra baqueta (preferencialmente com a cabeça revestida) na região do nó (Exs.16,17 e 18).

Ao ser percutida, o dedo (ou a baqueta) deve ser retirado da lâmina quase que instantaneamente com o intuito de

não abafar o som extraído (se a intenção for uma nota de curta duração pode-se manter o apoio no centro). Com esse gesto conseguiremos ouvir nitidamente o harmônico n.4 sem a interferência direta de outras notas.

Outra forma de obter-se harmônicos com baquetas será utilizando o seu cabo21 como um elemento de apoio sobre a lâmina. Podemos percutir a lâmina com qualquer tipo de baqueta, tendo o seu cabo levemente apoiado (ou apoiando-o logo após o ataque) em uma das extremidades da lâmina, obtendo um timbre rico em harmônicos e inarmônicos gerando, dentre todos os exemplos aqui citados, o som que mais se aproximará do que chamamos de ruído (Ex.19).

2) Extração de harmônicos com arcos – o harmônico será o n.4 da série harmônica. Sugerimos a utilização dos mesmos arcos mencionados há pouco. A técnica será uma mistura da execução de uma nota fundamental com a técnica de extração de harmônicos com baquetas. Os arcos devem estar na posição que se encontram para a obtenção de uma nota fundamental. Devemos apoiar levemente um dedo no centro da lâmina, manipulando o arco com bastante pressão contra a mesma (Ex.20).

Ex.16: Panorama da superfície de um vibrafone de 3 oitavas. É possível perceber na escala pentatônica a

corda que trespassa as lâminas em seus pontos nodais.

Ex.17: Ataque sobre a região do nó com o dedo apoiado no centro da lâmina.

Ex.18: Ataque sobre a região do nó com a baqueta apoiada no centro da lâmina.

Ex.19: Apoio do cabo e ataque sobre a lâmina.

Ex.20: Deslize do arco e dedo no centro da lâmina.

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Dessa vez, devido à grande pressão exercida para o surgimento do harmônico, sugerimos o sentido vetorial dos arcos de cima para baixo com o intuito de não fazer “saltar” a lâmina do local onde ela se encontra suspensa22. O sentido deve ser contrário apenas se o primeiro comprometer a execução e fluência da obra. O dedo pode manter-se sobre a lâmina, mas o harmônico terá maior projeção sonora se o retirarmos enquanto o arco é deslizado. O segundo movimento do Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes de Sejourné possui uma passagem onde essa questão é bem exemplificada (Ex.21).

3) Extração de harmônicos com outros instrumentos – A utilização de pratos de dedo23, por exemplo, gera uma mistura de harmônicos das lâminas com os do próprio instrumento utilizado como artefato para percutir o vibrafone. Será uma mescla de harmônicos e inarmônicos com a presença da nota fundamental da lâmina percutida. É possível ainda realizar esse tipo de ação no vibrafone com instrumentos não convencionais. Podemos utilizar correntes de ferro, pincéis, espátulas, dentre muitos outros artefatos, que fazem parte da uma lista interminável, capazes de produzir diferentes tipos de colorido sonoro nesse instrumento. Até mesmo as mãos podem ser utilizadas como um instrumento de ataque sobre as lâminas. As unhas dos dedos podem extrair perfeitamente das lâminas fundamentais ricas em harmônicos, mas com menores níveis de dinâmica.

3.7. GlissandoO efeito de glissando nos instrumentos de percussão de lâminas é realizado através do deslize das baquetas sobre a sua superfície, num movimento horizontal para direita ou para a esquerda (ou para ambos os lados). No entanto o vibrafone possui uma particularidade interessante:

as suas lâminas permitem a realização, em si próprias, de glissandi micro tonais até meio-tom, podendo ser descendentes, ascendentes ou um som contínuo descendente/ascendente. Vejamos os tipos de glissandi possíveis de se extrair do vibrafone, tendo em vista as alternativas de deslize da baqueta sobre a lâmina:

a) Glissando descendente – ataque no centro da lâmina. Deslize da baqueta dura apoiada sobre o nó da lâmina em direção ao centro da mesma;

b) Glissando ascendente – ataque em uma das extremidades da lâmina. Deslize da baqueta dura apoiada no centro da lâmina em direção a um dos nós da mesma. É importante salientar que o glissando ascendente terá menor incidência sonora do que os outros tipos. Isso acontece porque o apoio da baqueta no centro da lâmina interfere em sua vibração, abafando consideravelmente o som extraído;

c) Glissando descendente/ascendente – ataque no centro da lâmina. Deslize da baqueta dura apoiada sobre um dos nós da lâmina em direção ao outro nó, passando a baqueta por toda a extensão da lâmina que se encontra entre os dois nós.

1) Realização de glissando com baquetas – deveremos utilizar uma baqueta extremamente dura sem revestimento (silicone, acrílico, borracha dura) e uma baqueta de menor dureza (preferencialmente com revestimento). Percutiremos no centro da lâmina com a baqueta revestida, tendo a baqueta dura apoiada no nó da mesma. No momento do ataque com a baqueta revestida deslizaremos a baqueta dura sobre a lâmina em um movimento contínuo até o centro, exercendo certa pressão que não poderá ser em demasia correndo o risco do som da lâmina ser abafado (Ex.22).

Ex.21: Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes (1999; 2º mov. c. 171-173) de Sejourné: Indicação de harmônicos.

Ex.22: Ataque no centro da lâmina (baqueta revestida) e deslize da baqueta dura a partir da região do nó em direção ao centro da lâmina.

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Para o glissando ascendente o posicionamento das baquetas é invertido. A baqueta dura estará apoiada no centro da lâmina e a baqueta revestida percutirá no limite de uma das extremidades da lâmina. É importante salientar que o ataque deve se concentrar no limite extremo da lâmina, distante do nó, caso contrário a fundamental não será perfeitamente audível para a realização desse efeito (Ex.23).

Dessa vez a baqueta dura deslizará, também em movimento contínuo, em direção ao nó da lâmina. O fato dos dois atos serem percutidos em diferentes regiões da lâmina influencia diretamente na dinâmica da nota extraída. Obviamente o glissando descendente por ser extraído a partir de um ataque no centro da lâmina será mais audível do que o ascendente originado de um ataque feito a partir de uma de suas extremidades. Para extrair o efeito descendente/ascendente basta deslizar a baqueta dura num movimento contínuo, com sua devida pressão sobre a lâmina de um ponto nodal ao outro. Existe a indicação, em determinado trecho do Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes de Sejourné, do efeito de glissando de uma nota à outra, sem a indicação nítida de sentido. Graficamente poderíamos concluir que todos os glissandi apontados nesse trecho possuem um

sentido descendente, já que o símbolo utilizado perfaz um desenho vetorial de cima para baixo (Ex.24).

2) Realização de glissando com arcos – nesse caso a manipulação da baqueta dura será exatamente a mesma e sua relação deslize também. Utilizaremos o arco no lugar da baqueta revestida. O arco deverá deslizar sobre a lâmina exatamente como faz para a execução de uma dada nota. Deverá apenas exercer maior pressão contra a lâmina, já que essa possui uma baqueta apoiada sobre si dificultando a sua projeção sonora. O movimento do arco e da baqueta dura (o deslize de ambos) deve ser sincronizado. Enquanto a baqueta desliza em direção ao centro (ou ao nó), o arco deve deslizar para cima ou para baixo (Ex.25).

O efeito extraído com o arco assemelha-se ao executado com baquetas revestida por apresentar as mesmas características descendente, ascendente ou descendente/ascendente. Irá, no entanto, se diferenciar pelos níveis de dinâmica, pela sua duração (controlando o som através do deslize do arco) e sonoridade diferente. O glissando com arco, indicado no Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes, deve soar descendente/ascendente conforme o desenho gráfico que corta as notas Mi e Sol (Ex.26).

Ex.23 Deslize da baqueta dura do centro da lâmina em direção ao nó e ataque na extremidade da lâmina (baqueta revestida).

Ex.24: Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes (1999; 2º mov. c.161-165) de Sejourné: Indicação de glissando.

Ex.25: Deslize da baqueta dura, apoiada no ponto nodal, em direção ao centro da lâmina (ou ao nó que se situa na outra extremidade da lâmina) e deslize do arco sobre a lâmina num sentido perpendicular ao instrumento.

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4 - Considerações finaisProcuramos, através desse artigo, exemplificar meios de exploração tímbrica no vibrafone com o intuito de criar ferramentas que auxiliem no processo de interpretação e composição de obras destinadas ao vibrafone. Os compositores, durante todo o século XX, em conjunto com os intérpretes, souberam explorar muito bem essas características técnicas e sonoras que o instrumento nos permite usufruir, enriquecendo o repertório destinado ao vibrafone com composições bastante singulares.

Percebemos diante de todos esses exemplos uma real versatilidade desse instrumento no que diz respeito à capacidade de recursos que ele nos oferece para a exploração de um vasto universo tímbrico. Outrossim, admitimos a existência de outras formas de exploração tímbrica aqui não mencionadas, o que certamente estimulará a produção de novos artigos e trabalhos que possam contribuir e enriquecer o leque de possibilidades de performance musical referentes ao vibrafone.

Ex.26: Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes (1999; 2º mov. c. 166-170), de Sejourné: Indicação de glissando com arco.

ReferênciasALMEIDA, F. Entrevista concedida em 12/04/2007. Aveiro, Portugal.BURTON, G. Introduction to Jazz Vibes. Nova Iorque: Creative Music, 1966.CHAIB, F. Exploração Tímbrica no Vibrafone: Análise Interpretativa da obra Cálculo Secreto, de José Manuel López López.

Universidade de Aveiro, Aveiro, 2007.DEANE, C. Mourning Dove Sonnet. Manuscrito do autor, 1983.FRIEDMAN, D. Vibraphone Technique: Dampening and Pedalling. Berklee Press Publications, 1973.______. Mirror From Another – A Collection of Solo Pieces for Vibraphone. Belwin Mills, Fl. 1987.FRUNGILLO, M. D. Dicionário de Percussão. São Paulo: Editora Unesp, 2002.LÓPEZ LÒPEZ, J. M. Cálculo Secreto. Partitura manuscrita. Madrid, 1994.SCHAEFFER, P. Traité dês Objects Musicaux. Paris: Nouvelle Edition, 1966.SEJOURNÉE, E. Concerto Pour Vibraphone et Orchestre à Cordes. Paris: Alphonse Leduc, 1999. SMITH, S. S. Links, Links no.2, Links no.3. Nova Iorque: Smith Publications, 1975.TAKEMITSU, T. Rain Tree. Tienen, Bélgica: Percussion Music Europe, 1981.UDOW, M, WATTS, C. The Contemporary Percussionist: 20 Multiple Percussion Recital Solos. Meredith Music Publications. Ft. Lauderdale, 1986.ZAMPRONHA, E. Entrevista concedida em 20/03/2007. Aveiro, Portugal.______. Modelagem X-a. Partitura manuscrita, São Paulo, 1997.

Literatura RecomendadaCHAIB, F. Let Vibrate: Um breve panorama sobre o vibrafone na música do século XX. OPUS, Goiânia, v.14 n.1 p.50-64,

2008.DELP, R. Vibraphone Technique: four-mallet chord voicing. Berklee Press Publications, 1975.HOLLY, R. Feature: Vibraphone – Introduction. Percussive Notes, v. 25, n. 2, p. 7-16, 1987.HOWLAND, H. The Vibraphone: A Summary of Historical Observation with a Catalogue of Selected Solos and Small

Ensemble Literature. Percussive Notes Research Edition, v. 14, n. 3, p. 77-93, 1977.LESNIK, I. Milhaud’s Concerto for Marimba, Vibraphone and Orchestra. Percussive Notes. v. 35, n. 3, p. 58-60, 1997.MOLENHOF, B.; SAINDON, E.; WIENER, R. Vibraphone Feature Intro. Percussive Notes. v. 22, n. 1, p. 46-62, 1983.SAMUELS, D. A Musical Approach to Four-Mallet Technique for the Vibraphone vol. 1 & 2. New York: Manhattan Music Publications. (s/d ).WELSH, J. P. Stuart Smith’s “Links” Series. Percussive Notes Research Edition. v. 21, n. 3, p.75-89. 1983.

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CHAIB, F. Vibrafone: uma fonte de coloridos sonoros. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.57-72.

Notas1 Todas as traduções são de responsabilidade do autor desse artigo.

2 Chamaremos de “som original” o som extraído do ataque das baquetas (com cabeça de borracha revestida com lã ou linha) sobre as lâminas, visto que originalmente o vibrafone foi concebido para ser executado dessa maneira.

3 Terminologia em língua portuguesa utilizada no Brasil.

4 Terminologia em língua portuguesa utilizada em Portugal.

5 “Termo em inglês para baqueta de instrumento de teclado (lâminas).” FRUNGILLO (2002, p.200).

6 “Termo brasileiro – Tipo de bambu maleável e resistente utilizado para servir de cabo de baquetas”. FRUNGILLO (2002, p. 271).

7 Na literatura internacional especializada encontramos a denominação em inglês: Double Sound ou Double Tone.

8 “Termo brasileiro, s.f., pl. = ‘manulações’ – Forma de indicar a “mão” a ser usada na execução.” FRUNGILLO (2002, p.201).

9 No texto original a indicação se dá por L (“Left”) para esquerda e R (“Right”). Em língua portuguesa será: L = E e R = D.

10 “Metalofone […] o termo fixou-se para indicar o instrumento feito com barras retangulares de metal dispostas na forma de um teclado diatônico, similar ao Glockenspiel e ao vibrafone. Difere desses ou por ser feito de outro tipo de metal ou por ser utilizado o teclado sem abafador e sem motor”. FRUNGILLO (2002, p.221).

11 Segundo a fábrica brasileira Jog Music.

12 UDOW, WATTS (1986).

13 Medida em segundos do ataque da nota até o momento em que ela torna-se inaudível.

14 Cálculo Secreto (1994). Parte manuscrita pelo compositor. Segundo a dissertação de mestrado “Exploração Tímbrica no Vibrafone: Análise Interpretativa da obra Cálculo Secreto, de José Manuel López López”, de Fernando Chaib, esse trecho faz parte da Seção E da obra.

15 Aproximaremos a tradução em língua portuguesa para uma percepção linguística relacionada à técnica aplicada no instrumento. Por exemplo, “stroke” significa “golpe”, mas aqui traduziremos para “toque”. Será uma tradução com a intenção de criar expressões técnicas.

16 Parte lateral da mão, abaixo do dedo mindinho.

17 Arcos para crianças, existente no mercado.

18 Trêmulo de semibreves com a mão esquerda.

19 Modelagem X-a: Instruções (1997).

20 Terminologia em língua portuguesa para a região dos pontos nodais das lâminas, por onde trespassa a corda que a sustenta sobre a superfície do instrumento.

21 Aqui, o ratan trará melhores resultados sonoros do que a madeira.

22 Em alguns modelos de vibrafone as cordas que trespassam as lâminas não estão totalmente presas ao instrumento, mas apenas apoiadas por ganchos em forma de “u” dispostos nas barras de sustentação.

23 [Ingl.] Finger Cymbals (FRUNGILLO: 2002, p.125).

Fernando Chaib gradou-se em Bacharelado em Percussão pela UNESP, realizando Mestrado em Música/Performance na Universidade de Aveiro. Vencedor de prêmios como solista e músico de câmara no Brasil, na Itália e em Portugal, é membro fundador do Grupo Durum Percussão Brasil e Simantra Grupo de Percussão. Possui Cd´s gravados com orquestras e grupos de música de câmara. Realiza concertos (a solo e diante de orquestras) e master classes nos continentes americano, asiático e europeu. Atualmente, cursa o Doutorado em Música na Universidade de Aveiro sob orientação do Prof. Dr Evgueni Zoudilkine e Prof. Dr.Miquel Bernat, sendo bolsista da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) de Portugal e pesquisador do INET-MD.

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Recebido em: 18/09/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

Abordagem ecológica para avaliação dos determinantes de comportamentos preventivos: proposta de inventário aplicado aos músicos

Thaís Branquinho Oliveira Fragelli (UnB, Brasília, DF)[email protected]

Isolda de Araújo Günther (UnB, Brasília, DF)[email protected]

Resumo: O presente trabalho teve por objetivo construir um inventário para avaliar os determinantes do comportamento saudável presente nos ambientes social e físico, relacionado à prevenção de lesões ocupacionais em músicos. O processo de construção do inventário baseou-se nas diretrizes para construção de instrumentos psicológicos preconizadas por PASQUALI (1999) e na conceituação formulada pela perspectiva ecológica. A partir desse referencial propõe-se um modelo para analisar o comportamento preventivo fundamentado em três componentes: a) as crenças de profissionais da música sobre o comportamento preventivo; b) uma avaliação das condições de trabalho disponibilizadas nos espaços para a prática musical; c) e a influência social no meio musical.Palavras-Chave: lesões ocupacionais; saúde do músico; comportamento saudável.

Ecological approach to evaluate of preventive behavior: proposal of an inventory applied to musicians

Abstract: This study aimed at developing an inventory to assess social and physical environments determinants that influence the healthy behavior related to prevention of occupational injuries in musicians. The process of constructing the inventory is based on the guidelines for construction of psychological instruments by PASQUALI (1999) and the concept formulated by the ecological perspective. From this theoretical standpoint it is proposed a model to examine the preventive behavior based on three components: a) the beliefs of musicians on preventive behavior, b) an assessment of working conditions available in space for music practice, c) and social influence in the musical environment.Keywords: occupational injuries; musicians’ health; health behavior.

1.IntroduçãoO interesse de pesquisadores pelos comportamentos saudáveis busca entender os determinantes desses, bem como o processo de escolha de tais comportamentos. Tal conhecimento auxilia no desenvolvimento e na implementação de intervenções em saúde pública para indivíduos e comunidades (NOAR; ZIMMERMAN, 2005).

Comportamentos saudáveis são definidos como qualquer atividade empreendida para proporcionar prevenção e/ou detecção de doença ou a melhoria da saúde e do bem-estar (CONNER; NORMAN, 1996). Nesta perspectiva, considera-se que as lesões podem ser prevenidas por meio

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

de mudanças no comportamento e baseadas em pesquisas que esclareçam a maneira como se processam as escolhas desses comportamentos, fator de suma importância na manutenção, melhoria e recuperação da saúde (GIELEN; SLEET, 2003). As consequências desse procedimento podem implicar na redução de custos médicos e de mortes prematuras (GLANZ; LEWIS; RIMER, 1997).

Vários são os modelos propostos para entender como se processam as escolhas dos comportamentos saudáveis preventivos e de seus determinantes, no entanto, a perspectiva ecológica se apresenta como

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uma abordagem abrangente que tenta explicar como o ambiente influencia o comportamento e como a pessoa influencia o ambiente (SALLIS; OWEN,1997). Para compreender o paradigma ecológico faz-se necessário um envolvimento multidisciplinar que possibilite analisar a natureza da interrelação das pessoas com seu ambiente físico e sociocultural. Esta abordagem tem contribuído para a elaboração de estratégias de promoção de saúde e de intervenção com a finalidade de contribuir para o bem estar do indivíduo (STOKOLS, 1992). De acordo com STOKOLS (1992), o ambiente, pode ser compreendido por meio de quatro perspectivas:

i. A salubridade de uma situação e o bem estar dos indivíduos são influenciados pelos ambientes físico e social acrescido de atributos pessoais. Assim sendo, a dinâmica pessoa vs. ambiente é entendida por meio da interrelação entre fatores ambientais e pessoais;

ii. Ambientes podem ser descritos a partir de vários significados como: físico e/ou social; o objetivo (real) e/ou o subjetivo (percebido); pelos atributos (temperatura, espaço) e, finalmente, por construtos teóricos (behavior setting ou clima social);

iii. . O estudo pode ocorrer nos níveis do indivíduo, dos pequenos grupos, das organizações ou de amostras da população;

iv. As pessoas influenciam seus ambientes e estes, por sua vez, exercem alguma influência sobre o comportamento de saúde das pessoas.

2. Comportamentos saudáveis relacionados à prevenção de lesões ocupacionais musculoesqueléticasSegundo WHITING e ZERNICKE (2001) considera-se lesão musculoesquelética qualquer dano causado por trauma físico sofrido pelos tecidos do corpo. Esses autores também afirmam que as lesões são acompanhadas de custos físicos, emocionais e econômicos, como por exemplo, a perda de tempo e da função normal.

Neste contexto, com uma visão no futuro, programas de prevenção têm sido implementados em empresas com objetivo de reduzir os encargos referentes aos custos médicos, de obter maior satisfação de seus funcionários e de melhorar a produtividade. Dentre as estratégias básicas adotadas no controle e na prevenção de lesões incluem-se as mudanças no comportamento para a adoção de hábitos saudáveis dentro das organizações (WHITING; ZERNICKE, 2001), como por exemplo, os comportamentos de uso de equipamentos de proteção individual, a adoção de técnicas de alongamentos e de postura corporal adequada.

A postura corporal, definida como uma posição do corpo para uma determinada atividade ou a maneira como se sustenta o corpo (LEHMKUL; SMITH apud KISNER;

COLBY, 1992), é um fator importante na preservação das estruturas musculoesqueléticas, sendo apontada por pesquisadores como um requisito para o sucesso em programas preventivos (BRACCIALLI; VILARTA, 2000). Assim, considera-se importante as orientações, não apenas quanto ao uso do mobiliário no trabalho estático, aquele em que há contração contínua para manter determinada posição, mas também quanto a ter uma boa postura corporal no trabalho dinâmico, aquele em que há a alternância entre contração e relaxamento muscular (IIDA, 2003).

A adoção de postura corporal inadequada ou antifisiológica contribui para um envelhecimento precoce das estruturas (NASCIMENTO; MORAES, 2000) e relaciona-se à etiologia das lesões ocupacionais musculoesqueléticas. O tempo máximo de permanência em certas posturas denominadas inadequadas, até que se iniciem sintomas pode variar entre um a cinco minutos (IIDA, 2003).

Outro comportamento que as pesquisas relacionam como fator que contribui para a saúde musculoesquelética refere-se à adoção de exercício ou ginástica laboral, envolvendo, basicamente, exercícios de alongamento (MARTINS; MICHELS, 2001).

Os indivíduos que apresentam um melhor condicionamento físico e uma maior flexibilidade possuem menor probabilidade de sofrerem lesões e maior capacidade de recuperação após terem sofrido alguma lesão. Assim, o alongamento regular pode contribuir para a prevenção de lesões, para redução da rigidez articular, para redução da retração de músculos e de tendões e, consequentemente, da dor muscular relacionada ao exercício da atividade (WHITING; ZERNICKE, 2001), ao mesmo tempo que possibilita a manutenção da flexibilidade e diminui o risco de doenças ocupacionais (NASCIMENTO; MORAES, 2000).

3. Perspectiva ecológica: referencial teóricoA perspectiva ecológica propõe que os comportamentos são influenciados por variáveis intrapessoais ou individuais, socioculturais e do ambiente físico e que estas variáveis interagem entre si (SALLIS; OWEN, 1997).

3.1. Fatores intrapessoaisSegundo o modelo de crenças em saúde, a avaliação do comportamento é composta por duas crenças, sendo uma relacionada aos benefícios ou eficácia do comportamento de saúde recomendado, e outra relacionada aos custos ou barreiras para executar o comportamento (SHEERAN; ABRAHAM, 1999; CONNER, 2002) traduzindo, portanto, uma relação custo/benefício. Segundo DELA COLETA (2004) a percepção dos benefícios decorrentes do comportamento é condição necessária, porém não suficiente, para a adesão voluntária. Assim, para este modelo desenvolvido nesse artigo foram consideradas as crenças nos comportamentos preventivos com o objetivo de observar a avaliação do comportamento, traduzindo uma relação custo/benefício conforme relacionado anteriormente. No que

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tange a esse aspecto, parece ser plausível que as pessoas tendam a adotar comportamentos que acreditem trazer benefícios para si que, por sua vez, devem ser percebidos como capazes de superar as barreiras para a adoção de um comportamento adequado.

3.2. Fatores socioculturaisA Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que os comportamentos são socialmente determinados e que a escolha dos mesmos é realizada a partir das alternativas disponíveis aos indivíduos e das facilidades inerentes à escolha. Dessa maneira, os comportamentos não são estáticos, estando na dependência do processo de socialização, i. e, da influência dos pais, familiares, amigos, dos professores, constituindo assim, um processo dinâmico, sempre baseado na re-interpretação (OLIVEIRA, 2005) e re-significação da situação. Segundo STOKOLS (1992), é importante observar o contexto social onde o indivíduo vive e/ou trabalha. A compreensão do impacto social relacionado ao comportamento saudável contribui para o planejamento de uma intervenção efetiva com condições de prevenir ou reduzir os riscos de adoecimento (HEANEY, ISRAEL, 1997).

3.3. Ambiente físicoSTOKOLS (1992) adverte que a salubridade de uma situação e o bem-estar dos participantes são influenciados não só pelo ambiente social, mas também pelo ambiente físico. Nessa perspectiva, o ambiente físico pode conter fatores que favorecem ou dificultam a adoção e/ou mudança de comportamentos.

As condições de trabalho precárias como, por exemplo, equipamentos e/ou postos ergonomicamente inadequados podem estar associados a níveis mais elevados de perigo ou de risco físico. Acrescentam-se ainda os níveis inadequados de temperatura, de ruído e ou jornadas de trabalho estafantes e contínuas, que influenciariam diretamente a saúde e o bem-estar dos trabalhadores (STOKOLS, 1992; GRZYWACZ , FUQUA, 2000).

4. Método 4.1.Etapas de validação do inventárioO processo de construção do presente inventário envolveu três etapas. A primeira etapa consistiu na formulação e escolha dos itens. Em seguida, os itens foram submetidos à análise semântica a um grupo de quatro músicos, com a finalidade de verificar sua pertinência, a compreensão e a adequação da linguagem a ser utilizada no estudo da população alvo. Prosseguindo, o inventário foi exposto à análise de quatro juízes para verificar o conteúdo, a formatação e para definir a melhor disposição dos itens. Como resultado desta primeira análise, alguns itens foram incluídos, outros alterados substancialmente, modificados ou excluídos.

Na segunda etapa, foi realizado um estudo piloto com 17 músicos com o objetivo de refinar o inventário e submetê-lo a uma segunda avaliação semântica, para

eliminar possíveis dúvidas que pudessem surgir no ato da aplicação.

Na terceira etapa, o inventário foi aplicado a uma amostra de 136 músicos com a finalidade de testar seu potencial empírico.

O instrumento que resultou desse processo é composto por uma escala de crenças de profissionais de música sobre o comportamento preventivo; uma avaliação das condições de trabalho dos espaços para a prática musical; uma escala da influência social no grupo musical. A escala que diz respeito às crenças de profissionais de música sobre o comportamento preventivo foi composta por 20 itens, com amplitude de cinco pontos, a saber: 1- “Discordo totalmente”; 2- “Discordo”; 3- “Nem concordo nem discordo”; 4- “Concordo” e, 5- “Concordo totalmente”. Buscou-se refletir nessa escala as dimensões teóricas, os benefícios e as barreiras, para realização dos passos envolvidos no alongamento, na adoção de uma postura corporal adequada, dimensões descritas no modelo proposto pela perspectiva ecológica.

A escala de condições de trabalho dos espaços para a prática musical foi composta por 12 itens igualmente com amplitude de cinco pontos. Entretanto foi utilizada uma escala de frequência comparando os diferentes espaços de ensaio do instrumentista, considerando não apenas os encontros regulares com o grupo, que abrangeu as seguintes categorias: 1- “Nunca”; 2- ”Raramente”; 3- “Ocasionalmente”; 4- “Frequentemente” e 5- “Sempre”.

A escala de influência social no grupo musical foi composta por 21 itens com amplitude de cinco pontos: 1- “Discordo totalmente”; 2- “Discordo”; 3- “Nem concordo nem discordo”; 4- “Concordo” e, 5- “Concordo totalmente”. Elaborou-se o instrumento de maneira que as dimensões propostas no modelo estivessem refletidas em seus itens.

4.2.ParticipantesA amostra foi do tipo não-probabilística, composta por 136 músicos profissionais. Foram visitados nove grupos de instituições do Distrito Federal e do estado de Goiás, perfazendo um total de 254 questionários distribuídos. Destes, 136 questionários retornaram sendo 112 de respondentes do sexo masculino e 22 do sexo feminino. A média de idade foi de 37,92 anos (dp=10,20). Dentre os respondentes dezenove são saxofonistas, sendo os instrumentistas os mais representativos da amostra. O tempo de prática diária variou entre uma e oito horas.

O número de anos de prática do instrumento variou entre um e 44 anos e o tempo de atuação no grupo, entre um e 28 anos.

O resumo dos dados demográficos é apresentado no Ex. 1.

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Variável f % Média DP

SexoMasculinoFeminino

11222

82,416,2

Estado CivilSolteiroCasadoDivorciado

467612

33,855,98,8

Idade (anos) Amplitude de 18 a 66 37,92 10,20

Escolaridade

FundamentalMédioSuperior incompletoSuperior completoPós-graduação incompletaPós-graduacão completa

1453438411

0,733,125

27,92,98,1

Instrumento

Baixo ElétricoBombardinoClarinetaClaroneContrabaixoFagoteFlautaOboéPercussãoSaxofone TecladoTromboneTrompaTrompeteTubaViolaViolãoViolinoVioloncelo

1217153721119112483941410

0,71,512,50,73,72,25,11,58,1140,78,82,95,92,26,62,910,37,4

Tempo de Prática horas/dia: 1 a 8 3,67 1,32

Anos: 1 a 44 16,45 9,63

Tempo de atuação no grupo (1 a 28 anos) 9,02 7,88

Ex.1 - Tabela com dados demográficos

5. Resultados5.1.Primeira escala: crenças de profissionais da música sobre comportamento preventivo O primeiro passo foi verificar, por meio da análise dos componentes principais, se a matriz era fatorizável. Para tanto, alguns critérios foram considerados, como o Kayser-Meyer-Olkin (KMO) que postula que a matriz é tanto mais fatorizável quanto mais próximo de 1 (um), indicando, desta forma, que as variáveis têm muito em comum. O resultado do KMO foi 0,762, considerado

mediano na classificação de Kaiser (PASQUALI, 2005). Outra avaliação realizada foi a do teste de esfericidade de Bartlett, na qual o qui-quadrado demonstrou um valor significativo. O resumo dos resultados pode ser visualizado no Ex.2.

Para decidir o número de fatores a ser extraído da matriz efetuou-se a análise dos componentes principais, cujo resultado evidenciou dois dados relevantes: (1) o

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determinante 0,008 que, por ser um valor próximo a zero, indica um número pequeno de fatores; (2) a análise dos eigen values maior ou igual a 1. PEREZ-NEBRA (2005), no entanto, recomenda o critério de corte acima de dois, para maior confiabilidade do fator, mesmo que neste caso ocorra menor variância explicada.

Após esta análise exploratória e de posse dos dados de fatorabilidade, uma vez sabida sua viabilidade de rotação e

fatoração, foi realizada a análise de principal axis factoring (PAF) com rotação oblíqua, por permitir que os fatores apareçam correlacionados respeitando os fenômenos, uma vez que não há suporte teórico para esperar que os fenômenos sejam independentes entre si (PASQUALI, 2005).

Realizou-se também, a análise da consistência interna, por meio do coeficiente alpha de Cronbach. O resumo das análises será apresentado no Ex.3.

Índices Valor sig

KMO Teste de esfericidade de Bartlett’s Determinante

0,762591,6530,008

0,000

Ex. 2 - Tabela com análise de componentes principais de fatorabilidade para a escala crença de profissionais da música sobre comportamento preventivo

VariáveisCargas fatoriais

Fator1 Fator2

A condição física melhora com alongamentos

Alongamentos melhoram o desempenho

Há redução de estresse quando se faz alongamento

O desempenho no ensaio melhora quando se adota boa postura corporal

Ter boa postura corporal ao tocar facilita os movimentos

Ter uma boa postura corporal ao tocar preserva a saúde

Fazer alongamentos evita o aparecimento de dor

Alongamentos deixam os músculos flexíveis

Alongamentos são somente para quem tem tempo

Somente quando se sente dor é necessário alongar

Manter uma boa postura corporal ao tocar é cansativo

Uma boa postura corporal ao tocar evita o aparecimento de dor

Fazer alongamentos provoca cansaço

O peso do instrumento dificulta a manutenção de boa postura

Nem sempre é possível manter boa postura corporal ao tocar

Sinto dor quando tento melhorar a postura corporal ao tocar

O uniforme dificulta os movimentos ao tocar

É difícil conciliar a técnica do instrumento com boa postura

0,68

0,64

0,60

0,57

0,56

0,59

0,51

0,50

-0,44

-0,42

-0,40

0,40

-0,33

0,64

0,63

0,51

0,43

0,42

Número de itens

Autovalores

% variância

Alpha

13

4,519

22,593

0,82

5

2,129

10,647

0,65

% variância acumulada 33,240

Ex.3 - Tabela com resumo da análise fatorial do instrumento sobre crenças de profissionais de música sobre o comportamento preventivo

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5.2. Segunda escala: condições de trabalho dos espaços para a prática musicalEfetuou-se a análise exploratória por meio da análise dos componentes principais e, de posse dos dados de fatorabilidade foi realizado o procedimento de principal axis factoring (PAF) uma vez que esta análise produz estimativas precisas das cargas fatoriais, embora sem rotação, já que esta escala se apresentou como sendo unifatorial (Ex.4 e Ex.5).

Índices Valor sig

KMO

Teste de esfericidade de Bartlett’s

Determinante

0,748

327,390

0,075

0,000

Ex. 4 - Tabela com resultados da análise de componentes principais de fatorabilidade para a escala condições de trabalho dos espaços para prática musical.

Variáveis

Cargas fatoriais

Fator

Temos espaço físico para realizar alongamentos no meu local de ensaio A má iluminação do ambiente induz a uma postura corporal inadequada para conseguir enxergarDividir a estante com outro colega afeta meu conforto físicoPartitura de má qualidade induz a uma postura corporal inadequada para conseguir enxergar A acústica do ambiente faz com que eu tenha que me esforçar para conseguir me ouvir A temperatura do ambiente de ensaio deixa minhas articulações mais rígidasDividir a estante com outro colega dificulta a manutenção de uma boa postura corporalA proximidade entre os naipes faz com que eu tenha que me esforçar para conseguir me ouvir

- 0,320,350,600,440,630,710,750,60

Número de itensAutovalores% variânciaAlpha

83,30527,5400,76

Ex. 5 -. Tabela com resumo da análise fatorial da escala de condições de trabalho dos espaços para prática musical

Índices Valor sig

KMO

Teste de esfericidade de Bartlett’s

Determinante

0,784

899,112

0,001

0,000

Ex. 6 - Tabela com resultados da análise de componentes principais de fatorabilidade para a escala influência social no grupo musical

5.3. Terceira escala: influência social no grupo musicalForam efetuadas as mesmas análises anteriores e, de posse dos dados de fatorabilidade, foi realizada a rotação conforme apresentado no Ex.6 e Ex.7.

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FRAGELLI, T. B.; GÜNTHER, I. A. Abordagem ecológica... inventário aplicado aos músicos. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.73-84.

6. DiscussãoAs análises efetuadas revelam que os três componentes das escalas e o conteúdo de seus itens refletem as dimensões teóricas que fundamentaram a construção do inventário. Assim, considerando a escala de crenças de profissionais de música sobre comportamento preventivo, os itens pertencentes ao fator 1 relacionam a teoria de crenças dos benefícios que o comportamento preventivo pode oferecer, considerando que as cargas fatoriais mais altas têm maior influência sobre a interpretação dos fatores (HAIR, ANDERSON, TATHAM, BLACK, 2005). Os resultados dos quatro itens com carga de sinal oposto podem ser interpretados como uma correlação negativa com os demais itens, indicando, portanto, a mesma direção do fator (PASQUALI, 2005). Por sua vez, os itens do fator 2, correspondem às barreiras enfrentadas na realização dos comportamentos preventivos. Foram eliminados dois itens: “Fazer alongamentos exige grande esforço” e “A dor pode ser causada por alongamentos”, uma vez que apresentaram cargas inferiores a 0,30.

A análise da escala de condições de trabalho dos espaços para a prática musical indicou um fator único no que se refere às condições de trabalho. Quatro itens

foram eliminados por apresentarem carga inferior a 0,30. São eles: “A altura da cadeira favorece uma boa postura corporal”; “A altura das estantes pode ser regulada de acordo com a minha necessidade”; “O espaço entre as cadeiras é suficiente para que eu me sinta confortável” e “O apoio do encosto favorece uma boa postura corporal”.

Quanto à escala de influência social no grupo musical os itens que compõem o fator 1 mostraram relação com os comportamentos compartilhados pelo grupo. Por outro lado, os resultados dos itens do fator 2 corresponderam às normas subjetivas quanto ao comportamento preventivo. Foram excluídos cinco itens por apresentarem carga inferior a 0,30. São eles: “É importante para o grupo ter orientações sobre boa postura corporal”; “Há poucas oportunidades para trocar ideias com colegas sobre prevenção de dor”; “Há falta de apoio no grupo para implementação de projetos de prevenção de dor”; “Alongamentos para desempenhar a atividade de tocar atrapalham o grupo” e “Realizar pausas para alongamentos no ensaio provoca reações negativas dos colegas”.

VariáveisCargas fatoriais

Fator1 Fator2

Sou incentivado pelo grupo a realizar alongamentos

As informações sobre prevenção de dor que recebo no grupo são satisfatórias

Temos treinamentos no grupo sobre prevenção de dor no trabalho

Sou incentivado pelo grupo a manter uma boa postura corporal

Todos fazem pausas no ensaio para realizar alongamentos

Temos acesso no grupo à informação sobre como podemos nos prevenir de dor ao tocar

O grupo se preocupa em trocar informações sobre alongamentos

O grupo se preocupa em aquecer os músculos antes do ensaio

O grupo tem a preocupação em trocar informações sobre boas posturas

O grupo se preocupa em ter uma boa postura corporal durante a atividade

Os colegas acreditam que boas posturas nos ensaios podem prevenir dor

Para o grupo a saúde do corpo é importante para o desempenho

Os colegas acreditam que alongamentos nos ensaios podem prevenir dor

Para o grupo, a profissão de músico exige medidas preventivas de lesões

Existe preocupação dos colegas em realizar atividades para prevenir a dor ao tocar o instrumento

Para o grupo, manter a saúde do corpo é tão importante quanto ter um bom instrumento musical.

0,77

0,66

0,65

0,64

0,59

0,57

0,56

0,53

0,45

0,31

0,81

0,75

0,55

0,51

0,44

0,41

Número de itensAutovalores% variânciaAlpha

105,09524,2640,85

62,45411,6860,77

% variância acumulada 35,951

Ex.7 - Tabela com resumo da análise fatorial da escala de influência social no grupo musical

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FRAGELLI, T. B.; GÜNTHER, I. A. Abordagem ecológica... inventário aplicado aos músicos. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.73-84.

Nesta análise foram obtidos alpha de Cronbach em níveis considerados adequados o que é indicativo de validade interna. De acordo com o referencial teórico, também foram obtidas dimensões que refletiram aspectos tanto do ambiente físico quanto do ambiente social.

Uma limitação observada no esforço de validação do presente inventário, diz respeito à sua generalização, uma vez que, em face da pouca representatividade dos participantes alerta-se que os resultados ficam restritos à amostra estudada, indicando a necessidade de testes em amostras representativas.

Uma segunda limitação refere-se à terminologia utilizada que necessita de adaptações para se adequar ao grupo a ser pesquisado. Recomenda-se, por conseguinte, que os possíveis refinamentos semânticos realizados em estudos futuros levem em conta a necessidade da utilização desse inventário em profissionais músicos de diferentes modalidades instrumentais e atuando em diferentes contextos.

Em síntese, esse artigo apresentou um instrumento que se propõe a estudar os fatores determinantes de comportamentos preventivos, específicos para a população de músicos.

7. ReferênciasBRACCIALLI, LMP; VILARTA, R. Aspectos a Serem Considerados na Elaboração de Programas de Prevenção e Orientação

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Thaís Branquinho Oliveira Fragelli é Fisioterapeuta pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e especialista em Fisioterapia Neurofuncional pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações pela UnB. Lecionou no Centro de Ensino Profissional/ Escola de Música de Brasília ministrando a disciplina Proteção ao Trabalho/ Prevenção a LER/DORT. Realizou palestras e cursos relacionados à prevenção de lesões em músicos. Atualmente é doutoranda em Ciências da Saúde na UnB.

Isolda de Araújo Günther possui graduação em Psicologia pela Universidade Católica de Pernambuco, especialização em Psicologia Clínica pela Universidade Federal de Pernambuco, mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba, doutorado em Psicologia do Desenvolvimento pela Michigan State University, pós-doutorado pela City University of New York e pela Carl von Ossietzky Universität Oldenburg. Atualmente é pesquisadora associada sênior no Instituto de Psicologia da UnB.

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FRAGELLI, T. B.; GÜNTHER, I. A. Abordagem ecológica... inventário aplicado aos músicos. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.73-84.

Inventário para avaliação dos determinantes de comportamentos preventivos para músicos (IADCP-MUS)

Qual a importância, para você, de realizar alongamentos ao tocar seu instrumento?Assinale a alternativa mais compatível com a sua opinião.

1 Discordo totalmente 2.Discordo 3.Nem concordo, nem discordo 4.Concordo 5.Concordo totalmente

1 2 3 4 5

Fazer alongamentos provoca cansaço

Alongamentos melhoram o desempenho

Alongamentos são somente para quem tem tempo

Fazer alongamentos evita o aparecimento de dor

Fazer alongamentos exige grande esforço

Alongamentos deixam os músculos flexíveis

Há redução de estresse quando se faz alongamento

A dor pode ser causada por alongamentos

A condição física melhora com alongamentos

Somente quando se sente dor é necessário alongar

A Postura corporal é a maneira como se posiciona o corpo para executar o instrumento. Nas afirmações a seguir assinale a alternativa mais compatível com a sua opinião:

1 Discordo totalmente 2.Discordo 3.Nem concordo, nem discordo 4.Concordo 5.Concordo totalmente

1 2 3 4 5

Ter boa postura corporal ao tocar facilita os movimentos

Manter uma boa postura corporal ao tocar é cansativo

Uma boa postura corporal ao tocar evita o aparecimento de dor

Nem sempre é possível manter boa postura corporal ao tocar

O desempenho no ensaio melhora quando se adota boa postura corporal

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Sinto dor quando tento melhorar a postura corporal ao tocar

Ter uma boa postura corporal ao tocar preserva a saúde

É difícil conciliar a técnica do instrumento com boa postura

O peso do instrumento dificulta a manutenção de boa postura

O uniforme dificulta os movimentos ao tocar

Os Espaços de ensaio são todos os locais em que você costuma praticar seu instrumento. Com relação aos seus Espaços de Ensaio, indique com que frequência ocorre as seguintes situações:

1 Discordo totalmente 2.Discordo 3.Nem concordo, nem discordo 4.Concordo 5.Concordo totalmente

1 2 3 4 5

Temos espaço físico para realizar alongamentos no meu local de ensaio

A má iluminação do ambiente induz a uma postura corporal inadequada para conseguir enxergar

A altura da cadeira favorece uma boa postura corporal

Dividir a estante com outro colega afeta meu conforto físico

O apoio do encosto favorece uma boa postura corporal

Partitura de má qualidade induz a uma postura corporal inadequada para conseguir enxergarA acústica do ambiente faz com que eu tenha que me esforçar para conseguir me ouvir A temperatura do ambiente de ensaio deixa minhas articulações mais rígi-dasDividir a estante com outro colega dificulta a manutenção de uma boa postura corporalA proximidade entre os naipes faz com que eu tenha que me esforçar para conseguir me ouvir

A altura das estantes pode ser regulada de acordo com a minha necessidade

O espaço entre as cadeiras é suficiente para que eu me sinta confortável

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FRAGELLI, T. B.; GÜNTHER, I. A. Abordagem ecológica... inventário aplicado aos músicos. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.73-84.

Assinale a alternativa mais coerente com a sua opinião que se relaciona a este grupo.

1 Discordo totalmente 2.Discordo 3.Nem concordo, nem discordo 4.Concordo 5.Concordo totalmente

1 2 3 4 5

É importante para o grupo ter orientações sobre boa postura corporal

Temos acesso no grupo à informação sobre como podemos nos prevenir de dor ao tocar

As informações sobre prevenção de dor que recebo no grupo são satisfatórias

Temos treinamentos no grupo sobre prevenção de dor no trabalho

Há poucas oportunidades para trocar ideias com colegas sobre prevenção de dor

Há falta de apoio no grupo para implementação de projetos de prevenção de dor

O grupo se preocupa em trocar informações sobre alongamentos

Alongamentos para desempenhar a atividade de tocar atrapalham o grupo

Realizar pausas para alongamentos no ensaio provoca reações negativas nos colegas

O grupo se preocupa em ter uma boa postura corporal durante a atividade

O grupo tem a preocupação em trocar informações sobre boas posturas

Sou incentivado pelo grupo a realizar alongamentos

Sou incentivado pelo grupo a manter uma boa postura corporal

Para o grupo, manter a saúde do corpo é tão importante quanto ter um bom instrumento musical.

Os colegas acreditam que boas posturas nos ensaios podem prevenir dor

Para o grupo a saúde do corpo é importante para o desempenho

Existe preocupação dos colegas em realizar atividades para prevenir a dor ao tocar o instrumento

Os colegas acreditam que alongamentos nos ensaios podem prevenir dor

O grupo se preocupa em aquecer os músculos antes do ensaio.

Todos fazem pausas no ensaio para realizar alongamentos

Para o grupo, a profissão de músico exige medidas preventivas de lesões

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SUBTIL, M. M. L.; BONOMO, L. M. M. Avaliação fisioterapêutica nos músicos... Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.85-90.

Recebido em: 28/10/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

Avaliação fisioterapêutica nos músicos de uma orquestra filarmônica

Marina Medici Loureiro Subtil (UFES, Vitória, ES)[email protected]

Lívia Maria Marques Bonomo (UFES, Vitória, ES)[email protected]

Resumo: Pesquisa exploratória com 40 músicos sobre do risco de surgimento de distúrbios ósteo-musculares relacionados ao trabalho, o mobiliário utilizado pelos musicistas e as posturas adotadas durante os ensaios da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (OFES). A avaliação postural visual utilizou o REBA (Rapid Entire Body Assessment) e as cadeiras e estantes de partitura foram avaliadas seguindo critérios ergonômicos. Os resultados indicam o desajuste postural dos músicos durante os ensaios, assim como a irregularidade do mobiliário utilizado, apontando para a necessidade de ações fisioterápicas imediatas tanto para reabilitação quanto para prevenção de lesões.

Palavras-chave: doenças ocupacionais; abordagem fisioterapêutica; músicos profissionais; reabilitação e prevenção.

A physiotherapic evaluation of philharmonic orchestra musicians in Brazil

Abstract: Exploratory research with 40 musicians on the risk of osteomuscular disorders related to work, the furniture used by musicians and the postures adopted during rehearsals of the Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (OFES) in Brazil. The postural assessment used the visual REBA (Rapid Entire Body Assessment) and the chairs and music stands have been evaluated following ergonomic criteria. The results indicate a postural inadequacy of the musicians during rehearsals, as well as irregularity of the furniture used, pointing to the need of immediate physiotherapic action for both rehabilitation and for injury prevention.

Keywords: occupational related diseases; physical therapy approach; professional musicians; rehabilitation and prevention.

1 - IntroduçãoAo se ouvir o concerto de uma orquestra, experienciamos uma série de sensações que nos remetem à alegria de ouvir uma boa música. No entanto, nem sempre consideramos que aquele que toca um instrumento musical possa ser questionado ou mesmo se questionar quanto à sua saúde e qualidade de vida.

No contexto da música, verifica-se através da história, que a orquestra filarmônica, desde seu nascimento no século XVIII, passou por inúmeras transformações em sua estrutura organizacional em função do desenvolvimento dos instrumentos, da evolução dos gêneros e das formas musicais e o mundo da música orquestral tem apresentado um novo quadro nas últimas três décadas em que, cada vez mais, instrumentistas têm relatado episódios de dor relacionados ao exercício de tocar (COSTA, 2003; PETRUS, 2005).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

A cultura da dedicação sem limites implica o estabelecimento da relação direta entre dor/sacrifícios e resultados satisfatórios, intensificando a tendência de tocar mesmo na ocorrência de dor e levando alguns profissionais a desconsiderarem sintomas e a não procurarem ajuda especializada em tempo hábil para impedir a cronicidade do quadro (PAULL e HARRINSON, 1997; COSTA, 2003). O alto grau de performance exigido e a técnica rebuscada dos instrumentos solicitam muito do intérprete, que na tentativa de atingir a perfeição e o total domínio técnico, muitas vezes ultrapassa seu limite físico. Isso acarreta distúrbios ósteo-musculares relacionados aos movimentos repetitivos em posturas inadequadas e ao constante uso muscular, forçado e intermitente, principalmente quando se observa a condição, a organização e a falta de orientações a respeito da prevenção do desconforto corporal e de possíveis lesões músculo-esqueléticas (MOURA; FONTES; FUKUJIMA, 2000).

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SUBTIL, M. M. L.; BONOMO, L. M. M. Avaliação fisioterapêutica nos músicos... Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.85-90.

A afirmação de que os músicos constituem um dos principais grupos de risco de adoecimento ocupacional, assinala a falta de conscientização da classe neste tocante e a pouca procura por informação para preservar e gerenciar as condições necessárias ao exercício profissional. Embora tenham ocorrido sensíveis avanços em pesquisa médica e em novos tratamentos, o setor preventivo caminha de forma bem mais lenta. A maior abertura dos músicos para este tópico tem se dado somente após a ocorrência de sintomas que prejudicam a atividade, como a dor recorrente e limitante (NORRIS, 1997).

A Ergonomia, ciência que estuda a relação homem-trabalho considerando o bem-estar, a segurança e a eficácia de quem trabalha, coloca à disposição do músico tanto a bagagem dos “Human Factors”, por meio de estudos realizados em laboratório, centrados na adaptação dos equipamentos ao homem e da melhoria das condições de trabalho, quanto a perspectiva da Ergonomia da Atividade, a qual pressupõe a análise das características e contradições presentes na situação de trabalho, complexa e variável por essência. Pois, ao investigar o contexto de produção e bens de serviços na área musical, a Ergonomia da Atividade também sinaliza estratégias e mediações decorrentes da interação entre o músico e sua tarefa, englobando as dimensões física, cognitiva e afetiva, presentes na atividade humana. A ergonomia aplicada às práticas musicais evidencia resultados de pesquisas que consideram fortemente o músico em ação, suas características e seus limites, suas representações sobre seu trabalho e o seu contexto, trazendo como diferencial a articulação das dimensões do trabalho para uma melhor compreensão dos riscos ocupacionais e recomendações para minimizá-los (COSTA, 2005).

Desfaz-se, desta forma, um equívoco presente no senso comum, o de que a ergonomia trata exclusivamente de projeto de mobiliário e da avaliação do posto de trabalho. Seguramente, a boa configuração destes elementos é essencial para evitar sobrecargas posturais e fadiga, em qualquer situação de trabalho. Dada a natureza da tarefa do músico, as condições ambientais existentes, tais como iluminação, ventilação, temperatura e ruído, também podem favorecer ou dificultar o desempenho de suas atividades, levando-os a intensificar demandas cognitivas (em especial em processos envolvendo qualidade de percepção e atenção), e ocasionar maiores desgastes músculo-esqueléticos. Soma-se a este item a regulação constante da variabilidade presente na situação de trabalho, o que pode se justapor a padrões físicos que resultem em tensão excessiva na execução do instrumento ou mesmo na ocorrência de dor (COSTA, 2003).

Observando-se então, a significativa demanda que se apresenta, torna-se necessário aprofundar os conhecimentos sobre as relações entre o fazer do músico e o surgimento dos distúrbios ósteo-musculares relacionados ao trabalho (DORTs), para que medidas preventivas e curativas possam ser instituídas, além de

despertar importante desenvolvimento nesta área de atuação da fisioterapia.

Este trabalho tem, portanto, como objetivo avaliar o risco de surgimento de distúrbios ósteo-musculares relacionados ao trabalho (DORTs), o mobiliário adotado pelos musicistas e as posturas adotadas durante os ensaios dos músicos da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (OFES).

2 - MétodoForam avaliados 40 músicos da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (OFES) em seus locais de ensaio: Teatro Carlos Gomes e Teatro Carmélia, ambos em Vitória/ES. Do total de integrantes avaliados, 13 músicos são do sexo feminino e 27, do sexo masculino. O critério de inclusão consistiu na assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, distribuído aos músicos no primeiro contato com a OFES. Foram excluídos aqueles que não desejaram participar da pesquisa. O presente estudo teve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória, seguindo as diretrizes do Ministério da Saúde, protocolo de número 16/2009.

Para a coleta de dados foi aplicado o instrumento de avaliação visual REBA (Rapid Entire Body Assessment), validado por HIGNETT E MCATAMNEY (2000), e utilizado nesta pesquisa para observar as posturas adotadas durante o período de ensaio em relação aos membros superiores, membros inferiores, tronco e cabeça.

O protocolo REBA foi utilizado para avaliar o risco de surgimento de DORTs, considerando as posturas de diferentes segmentos corporais separados em 2 grupos. No grupo A, o total é dado pela somatória dos pontos obtidos durante a avaliação do tronco, pescoço e membros inferiores; e o grupo B é composto pelos pontos obtidos na avaliação dos braços, antebraços e punhos, divididos pela lateralidade (direita e esquerda). A pontuação final do REBA analisa o nível de risco de desenvolvimento de DORT e determina a necessidade de ações de intervenção, possuindo as seguintes categorias de ações: nível de ação (0 a 4); escore REBA (1 a 15); nível de risco (nenhum, baixo, médio, elevado e muito elevado) e ações (não é necessário; pode ser necessário; necessário; é necessário logo; é urgente), conforme mostra o Ex.1.

Foi observada a estação de trabalho, na qual se avaliou a cadeira e a estante de partituras dos músicos. Para avaliação da cadeira seguiram-se as recomendações de IIDA (2000) e COUTO (2002), que caracterizam uma cadeira ergonômica por estofamento de preferência com tecido que permita a transpiração; ter altura regulável; com borda anterior arredondada; a profundidade não deve permitir compressão da região posterior do joelho; o assento deve estar na posição horizontal e é desejável que o assento se incline 10 a 15 graus para frente; o ângulo entre o assento e o apoio dorsal deve ser

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regulável; caso não o seja, assento e encosto devem ser posicionados num ângulo de 100 graus; o apoio para o dorso deve ter uma forma que acompanhe as curvaturas da coluna, sem retificá-las, mas também sem acentuá-las, além de regulagem de altura.

As posturas dos músicos foram registradas em fotografias (MÁQUINA SONY T-7) e posteriormente analisadas.

Os dados foram mostrados de forma descritiva e ilustrados por meio de tabelas.

3 – Resultados3.1 - Protocolo REBAO escore final do REBA, como visto no Ex. 01, pode variar de 1 a 15 em sua escala de risco. Neste estudo, o escore final variou de 4 a 15 para os 40 músicos avaliados. O nível de risco de desenvolvimento de lesões músculo-esqueléticas entre os músicos indicou que a maioria (62,5%) apresentou risco médio para o desenvolvimento de lesões, seguido por 32,5% com risco elevado e 5% com risco muito elevado. O resultado revela a necessidade de

CATEGORIAS DE AÇÕES - REBA

Nível de ação Escore REBA Nível de risco Ação (intervenção)

0 1 nenhum não é necessária

1 2 a 3 baixo pode ser necessário

2 4 a 7 médio é necessário

3 8 a 10 elevado é necessário logo

4 11 a 15 muito elevado é urgente

Ex.1 – Categorias de ação do protocolo REBA

INTRUMENTOS IRREGULARIDADES POSTURAIS

Clarinete Cabeça projetada para frente, ombros girados para dentro, joelhos dobrados com ângulos maiores que 90º e pernas cruzadas.

Contrabaixo Cabeça projetada para frente, corpo dobrado sobre o instrumento, corpo inclinado para o lado, flexão exagerada do cotovelo, ombros girados para fora e elevados.

Fagote Cabeça projetada para frente, quadril girado para fora, joelhos dobrados acima de 90°, postura sentada sobre os ossos do sacro e não sobre o ísquios (o que é considerado correto).

Flauta Transversa Projeção da cabeça para frente com inclinação acentuada para baixo, flexão e inclinação lateral de tronco, ombros girados para dentro, extensão de punho e pernas cruzadas.

Violino Rotação, projeção anterior e inclinação de cabeça, abdução de ombro, rotação interna de um dos membros superiores e externa do contra-lateral, rotação de tronco, quadril abduzido, joelhos dobrados a mais de 90° e pés girados para dentro.

Violoncelo Joelhos dobrados a mais de 90º, abdução e rotação externa de quadril, elevação de ombros, cotovelos dobrados a mais de 90º, rotação interna de ombro, punhos inclinados para dentro e para fora, cabeça projetada a frente, peso não distribuído uniformemente para os membros inferiores.

Percussão rotação interna de ombros, postura sentada sobre os ossos do sacro e não sobre o ísquios (o que é considerado correto) e pernas cruzadas

Ex.2 - Irregularidades posturais adotadas de acordo com cada instrumento

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abordagem da fisioterapia no grupo estudado, com ações de necessárias a urgentes, tanto para reabilitação, quanto para prevenção de novas disfunções. 3.2 - Avaliação da cadeira e da estante de partiturasNa avaliação ergonômica da cadeira, pôde-se observar inadequação deste mobiliário, tendo como pontos irregulares: o apoio dorsal e a altura do assento não reguláveis, ausência de material anti-transpirante, ângulo entre o assento e o apoio dorsal não regulável e de 90º de inclinação. Apesar de não existir nenhum instrumento na literatura validado para avaliar a estante utilizada em orquestras, os conhecimentos de ergonomia e biomecânica permitiram a análise deste mobiliário. Todas as estantes de partituras utilizadas pelos musicistas da OFES e pelo maestro tinham a mesma altura, independente das características antropométricas de cada integrante da OFES. Uma mesma estante era utilizada para dois musicistas, exigindo dos mesmos, rotações de cabeça, pescoço e ombros a fim de lerem e acompanharem a partitura durante os ensaios.

3.3 - Análise fotográfica das posturas adotadas pelos músicosAs fotografias das principais posturas adotadas pelos musicistas durantes seus ensaios revelaram uma série de irregularidades posturais que foram organizadas e separadas de acordo com os instrumentos tocados conforme ilustra o Ex.2 .

4 - Discussão O estudo realizado com os integrantes da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (OFES) teve como principais achados o risco elevado para o surgimento de DORT`s, a inadequação do mobiliário e a adoção de posturas irregulares durante os ensaios.

O desenvolvimento das DORTs em músicos pode ocorrer por vários motivos tais como: predisposição genética, condições físicas inadequadas, aumento do tempo de estudo e ensaios, erros de técnicas, erros em hábitos e práticas, reabilitação inadequada das lesões prévias, postura e mecanismos corporais inadequados e ausência de programa preventivo ao surgimento das lesões, tais como a atuação da fisioterapia (PETRUS, 2005).Para DUL e WEERDEMEESTER (2004), uma postura prolongada é capaz de gerar contração contínua da musculatura envolvida em determinada atividade, provocando fadiga muscular localizada, resultando em desconforto e queda do desempenho no trabalho. TAUBE (2002) considera que quando se exige uma postura estática, os indivíduos que as executam passam a adotar posturas que lhes pareçam confortáveis, mas que nem sempre são adequadas ou biomecanicamente ideais para a determinada atividade, contribuindo ao surgimento de dores musculares, que podem passar despercebidas no início, tornando-se possível motivo de afastamento do trabalho ou resultar em incapacidades funcionais.

As principais posturas irregulares adotadas pelos músicos da orquestra e fotografadas durante os ensaios foram: joelhos dobrados a mais de 90º, quadril girado para dentro ou para fora excessivamente, ombros elevados, cotovelos dobrados a mais de 90º, ombros girados para dentro, punhos com desvio para dentro ou para fora, cabeça projetada para frente, peso não distribuído uniformemente entre os membros inferiores, tronco inclinado anterior e lateralmente, pés girados para dentro e postura sentada sobre os ossos do sacro.

Essas irregularidades posturais puderam ser percebidas tanto com a aplicação do protocolo REBA, quanto na análise das fotos tiradas durantes os ensaios, indicando que os músicos da OFES além de permanecerem muito tempo em posturas estáticas, mantêm uma organização corporal inadequada, contribuindo sobremaneira ao surgimento de DORTs. O risco para o surgimento de DORTs avaliado pelo REBA variou de médio a muito elevado, indicando a necessidade de intervenção tanto para a reabilitação quanto para a prevenção de lesões.

A adoção de certas posturas durante a prática musical faz-se necessário quando se toca determinado instrumento, sendo que, alguns desses arranjos posturais levam à fadiga muscular e, posteriormente, ao surgimento de lesões agudas ou crônicas. No entanto, mesmo frente à necessidade de manutenção do corpo de forma nem sempre adequada, é possível minimizar as irregularidades posturais através de uma proposta de intervenção fisioterapêutica, mostrando aos musicistas as maneiras menos agressivas de posicionar-se durante o ato de tocar seu instrumento musical. Orientações simples junto aos músicos no momento da prática musical garantem maior qualidade de vida profissional além de prevenir dores, desconfortos e prejuízos a sua saúde.

IIDA (2000) considera que nos dias atuais, as pessoas passam horas sentadas em suas atividades, por isso o assento deve ser adequado para cada tipo de função. Ele deve permitir variações de postura, evitando os processos de fadiga, dores lombares e câimbras. De acordo com a lista de itens da estação de trabalho da OFES, todas as cadeiras estavam inadequadas, sendo de material sintético, apoio dorsal não regulável, a altura do assento não regulável, ângulo entre o assento e o apoio dorsal não regulável e de 90º. A posição sentada é constantemente mantida no decorrer dos ensaios e dos concertos.

O trabalho de COSTA (2003) com violinistas mostra que o posto de trabalho é constituído de cadeira preta estofada de altura fixa, havendo três modelos com ângulos distintos entre assento e encosto, e de estantes para partituras em madeira e estrutura metálica com altura regulável, posicionada de frente para cada par de instrumentistas. Essas medidas proporcionam melhor adequação postural durante as atividades profissionais.

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Na postura sentada, a maioria dos músicos mantém os joelhos com ângulo maior que 90º de flexão. Segundo MAEHLER (2003), para evitar ou melhorar os problemas posturais de indivíduos que trabalhem sentados, o eixo do fêmur deve estar paralelo ao chão, formando um ângulo de 90º graus com a parte posterior da perna, podendo chegar a 115º. Ao se trabalhar com um ângulo de flexão dos joelhos menor que 90º, comprimi-se a região posterior do joelho, podendo levar a transtornos circulatórios. Quando se trabalha com angulação maior que 115º graus ou menor que 90º graus a coluna lombar encontra-se em posição de sobrecarga constante.

Os ângulos assumidos na posição sentada podem acarretar dores lombares e o esforço para permanecer ereto provoca contrações contínuas dos músculos envolvidos na manutenção da postura, ocasionando redução do fluxo sanguíneo, o acúmulo de metabólitos e o aparecimento de dores (NORRIS, 1997).

Verificou-se também que os músicos da OFES ajustavam a estante (que contém a partitura musical), aumentando ou reduzindo a distância entre a cadeira e posicionando-a mais para a esquerda, à direita ou ao centro, ação que se repetiu com frequência durante os ensaios observados. Esses ajustes buscavam a manutenção do plano de visão em relação aos gestos do maestro, a fim de atender à necessidade de efetuar a leitura das partes musicais. PAULL e HARRINSON (1997), afirmam que o posicionamento e a altura das estantes interferem no conforto do músico que necessita conjugar a visão do maestro à leitura das partituras, ao tamanho do seu instrumento e à posição para tocá-lo.

Nos ensaios, verificou-se que os músicos modificavam frequentemente o posicionamento do corpo, enquanto tocavam ou mesmo nos momentos de pausa (para correções da partitura), ou pelas intervenções do maestro, demonstrando sinais de desconforto por permanecer na posição sentada. Como os postos de trabalho durante os ensaios ficam num mesmo plano e o espaço físico não permite outro arranjo do mobiliário, os músicos sentados nas primeiras estantes têm uma visão mais fácil do maestro, enquanto que da terceira estante para trás esse plano visual fica prejudicado em função da posição dos outros músicos. Além disso, como a estante é objeto comum de trabalho entre os pares, torna-se necessária uma interação entre os músicos para a execução do trabalho, o que implica lidar com modos operatórios distintos e adaptar-se ao “fazer” do outro, o que pode gerar sinais e sintomas dolorosos.

Para LONGEN (2003), a intervenção ergonômica deve considerar o trabalho e quem o executa, oferecendo aos trabalhadores instruções de como se deve sentar, regular as cadeiras, fazer pausas ou ginástica laboral.

ASSUNÇÃO (2000) confere a importância da abordagem ergonômica às propostas de medidas preventivas, protegendo os trabalhadores contra os riscos presentes durante as atividades laborais.

Considerando a variabilidade antropométrica dos músicos da OFES, de alturas e pesos corpóreos diferentes, a ausência de mecanismos reguláveis nos equipamentos induz à elaboração de estratégias pessoais que possibilitem compensar a inadequação do posto de trabalho. Essas medidas compensatórias criam um círculo vicioso de dor e desconforto corporal. A dor associada à postura adotada pelo músico para compensar a inadequação da cadeira reflete-se em dificuldades quando associada ao tempo em que o sujeito permanecerá sentado. Assim, os integrantes da OFES buscam adotar o melhor posicionamento do corpo, visando promover equilíbrio e distribuição do peso corporal para obter maior controle motor e precisão dos movimentos na execução instrumental. Nessa busca por ajuste corporal que nem sempre é correta, para atender as necessidades do tocar bem, os processos de adoecimento surgem gradativamente, contribuindo cada vez mais para o aumento nos índices de lesões em músicos profissionais.

5 - Considerações finaisPortanto, percebemos em nosso estudo, que a padronização das cadeiras e a ausência de mecanismos de regulagem, contribuem para acentuar as dificuldades identificadas no posto de trabalho, pois esta parte do mobiliário não contempla a diversidade dos instrumentistas ou as características de seu trabalho de forma satisfatória.

Sendo assim, pode-se demonstrar que as posturas irregulares constantes adotadas durante o ato de tocar, a falta de pausas regulares, a inadequação do mobiliário e a falta de intervenção da fisioterapia na orquestra influenciam direta ou indiretamente no risco de desenvolvimento de DORTs. Medidas de intervenção ergonômicas precisam ser pensadas e executadas no ambiente de ensaios e apresentações da OFES. As adequações do espaço de trabalho às necessidades físicas dos musicistas constituem fatores de urgência a fim de garantir a saúde ocupacional desses profissionais.

A fisioterapia apresenta-se neste contexto com conhecimento técnico científico e capacidade de atuação junto a músicos profissionais, tanto em seus ambientes de ensaios, quanto durante suas apresentações, a fim de implementar programas que envolvem avaliação e diagnóstico, intervenções terapêuticas e prevenção continuada.

Agradecimentos:Ao Maestro Titular na Orquestra Filarmônica do Espírito Santo, Helder Trefzger e aos músicos participantes da pesquisa.

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ergonômicas com enfoque preventivo de LER/DORT. Dissertação de Mestrado em engenharia de produção. Programa de pós-graduação de engenharia de produção, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002.

Marina Medici Loureiro Subtil é fisioterapeuta graduada pelo Centro Universitário Vila Velha, com formação em Pilates, atuação nas áreas de saúde do músico e do trabalhador, com foco reabilitador e preventivo; mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo; Professora da disciplina Saúde do Músico; então bolsista de mestrado pela Fundação de Apoio à Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (FAPES); autora do livro Fisioterapia para Músicos.

Lívia Maria Marques Bonomo é fisioterapeuta graduada pela Faculdade Salesiana de Vitória; mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo;então bolsista de mestrado pelo Fundo de Apoio à Ciência e Tecnologia do Município de Vitória (FACITEC).

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Recebido em: 19/11/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

Sobre o desuso e o ressurgimento da viola pomposa

Zoltan Paulinyi (UNIMEM, Évora, Portugal; OSTNCS, Brasília)[email protected]; www.Paulinyi.com

Resumo: A viola pomposa, instrumento pentacorde de origem barroca semelhante à viola de orquestra com uma corda Mi aguda acrescentada, recebeu denominações divergentes desde o final do século XVIII causando confusão com os termos “violino pomposo“, “violino tenor“, “violoncello da spalla“ e “violoncello piccolo“. Entrou em desuso provavelmente pela dispendiosa manutenção das cordas e maior esforço de manuseio, motivos que não mais justificam sua ausência das salas de concerto. Descreve-se detalhadamente uma viola pomposa de construção brasileira feita pelo luthier Carlos Martins del Picchia em Belo Horizonte em 2006 seguindo as informações sobre “La Parmigiana“ de Guadagnini feita em 1765. Apresenta uma lista de repertório para o instrumento, na qual a produção brasileira desponta na publicação de partituras e gravações de áudio e vídeo.Palavras-chave: viola pomposa; violino; violoncello piccolo; pentacorde; spalla.

About the viola pomposa revival

Abstract. The viola pomposa is a 5-stringed instrument of baroque origin similar to the traditional orchestral viola, with an additional high E string. It has received divergent names since the late eighteenth century, being confounded with “violino pomposo“, “violino tenor“, “violoncello da spalla“ and even “violoncello piccolo“. It never got popularity probably because of its expensive string maintenance and bigger efforts to be played, reasons which don’t justify anymore its absence from the concert halls. This article describes a Brazilian viola pomposa made by Carlos Martins Del Picchia in Belo Horizonte in 2006 after Guadagnini’s “La Parmigiana“ (1765) and lists an international repertory for the instrument, where the Brazilian production stands out for printed scores and audio/video recordings.Keywords: viola pomposa; violin; violoncello piccolo; 5-stringed; spalla.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

1 – Introdução1

A criatividade humana foi continuamente responsável pela invenção de instrumentos novos na busca de melhores meios de expressão sonora. Contudo, Kastner (apud WOODWARD, 2003, p.285) observou, em seu tratado de instrumentação de 1837, que “cada ano ainda observa a multitude destes instrumentos natimortos que desaparecem depois de algumas semanas após sua aparição2. Entre os vários instrumentos exóticos inventados no período barroco, destaca-se a viola pomposa por sua característica pentacorde. O ressurgimento da viola pomposa no Brasil e a exploração de suas expandidas possibilidades técnicas tem gerado muito questionamento a respeito do instrumento. Por que a viola pomposa caiu em desuso? Por que reapareceu agora? Até que ponto pode-se aceitá-lo na tradição da literatura? É possível integrá-lo ao corpo orquestral e camerístico?

O objetivo deste artigo é mostrar a história da viola pomposa, propondo-a como um ótimo instrumento de uso contemporâneo tanto para o repertório antigo quanto para o novo. Irei mostrar as origens do desvio de sua nomenclatura, informar sobre o instrumento em atividade no Brasil e listar o repertório desenvolvido especificamente para a viola pomposa.

O instrumento estudado aqui enquadra-se na definição dada na tabela do Ex.1: pentacorde da família dos violinos já em existência em 1728, de tamanho e timbre parecido com a viola convencional, geralmente com as cordas afinadas em Dó2-Sol2-Ré3-Lá3-Mi4, considerando Dó3 como o Dó central do piano. A seguir, mostro a necessidade de cuidado ao comparar os trabalhos citados neste artigo em virtude do risco de aplicação divergente do termo “viola pomposa“ a outros instrumentos.

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cita outro instrumento pentacorde do mesmo tamanho da viola, chamado de “violino pomposo“. Segund Galpin (1931, p.355), este termo foi utilizado por Petris em Anleitung zur praktischen Musik (1782) e por Rühlmann em seu Geschichte der Bogeninstrumente (1882) para a viola pomposa. Provavelmente, Galpin desconhecia o termo “viola di spala“ (sic) usado por Kastner:

Viola da spalla4: não se encontra em parte alguma a [informação da] maneira com que se afinava este instrumento; conta-se, apenas, que foi muito requisitado para acompanhar por causa de seu tom penetrante. Era suspenso por uma fita ao ombro direito, que deu ao instrumento seu nome. Deve-se presumir que a viola da spalla aproximou-se um pouco ao nosso violoncello atual porque encontra-se ainda os músicos da vila que suspendem o violoncello ao ombro direito com uma correia enquanto que nossos artistas o colocam entre os joelhos. (Kastner apud WOODWARD, 2003, p.72-73)

Percebe-se que o instrumento manuseado por Galpin (1931, p.356) era de outro tipo, com corda vibrante de 45 cm, impossível de afiná-lo à clave de Sol. Galpin queria determinar sua afinação com base no repertório do século XVIII escrito para a viola pomposa. Para isso, analisou duas composições de Telemann e Lidarti (citadas na seção 4.1 deste artigo) para viola pomposa, mostrando inclusive trechos das partituras. Apenas com base nessa análise de repertório, concluiu que a afinação deveria ser Ré2-Sol2-Ré3-Sol3-Dó4. Em tal análise, Galpin (1931, p.359) percebeu que a Sonata de Lidarti “soaria grotesca uma oitava abaixo“, mas não se atentou ao fato de estar manuseando instrumento inadequado ao repertório estudado, possivelmente um violoncello da spalla ou até mesmo um violoncello piccolo construído por Hoffmann de Leipzig em 1731 (GALPIN, 1931, p.356).

Apenas a análise do repertório mostra-se insuficiente para uma compreensão geral do instrumento, inclusive para uma ousada definição de afinação. As reflexões de Galpin tampouco consideraram a prática musical tradicional. Agnes Kory (1994, p.125-126), por exemplo, mostra que a origem da família dos violinos foi marcada pela variedade de afinações e de número de cordas. A accordatura, ou muitas vezes grafado como scordatura, significa a afinação do encordoamento utilizado para a execução de uma obra específica. A accordatura era prática frequente até o período barroco, transformando o pentagrama numa espécie de tablatura, como nas sonatas dos Mistérios do Rosário de Heinrich Ignaz Franz von Biber (Liberec, batizado em 12/8/1664; Salzburgo, 3/5/1704), ou indicando as notas reais soantes, como na Pastoral de Giuseppe Tartini (Pirano, 8/4/1692; Pádua, 23/2/1770) opus 1. Encontramos exemplos também na literatura moderna, como no terceiro movimento de Kontraste de Béla Bartók (Sînnincolau Mare, 25/3/1881; Nova York, 26/9/1945).

Não obstante o divergente uso da nomenclatura, Galpin recuperou referências valiosas e importantes exemplos da literatura para prosseguirmos nos estudos. Contribuições recentes são marginalmente fornecidas pelo construtor (luthier) e intérprete Dmitry Badiarov (2007, p.121) 5, que

2 – HistóricoA viola pomposa tem sido citada continuamente desde o período barroco por diversos pesquisadores. Um deles é Georges Kastner (Strasbourg 9/3/1810; Paris 19/12/1867), pedagogo que escreveu seu “Traité général d’instrumentation” (Tratado Geral de Instrumentação) com o objetivo de “oferecer aos jovens compositores uma obra completa, mas concisa“ sobre o assunto (KASTNER apud WOODWARD, 2003, p.285-286). Uma importante característica do seu tratado é a abordagem de vários instrumentos em desuso na orquestra do século XIX, o que o difere do tratado de Berlioz, publicado pouco tempo depois.

Kastner definiu claramente o termo “viola pomposa“:

Viola pomposa3: este instrumento foi inventado pelo célebre Johann Sebastian Bach. Era maior e mais alto do que a viola comum, mas se segurava na mesma posição [da viola]. Além das quatro cordas da viola, tinha ainda uma quinta corda em Mi, também chamada de quinta. Com o aperfeiçoamento do violoncello pouco a pouco e os artistas se desenvolvendo a cada dia, esqueceu-se mais facilmente a viola pomposa, que era pesada e por isso mesmo incômoda de manejar. (Kastner apud WOODWARD, 2003, p.66)

Já no século passado, encontramos as pesquisas de um notável estudioso inglês: Francis William Galpin (Dorchester, 25/12/1858; Richmond, Surrey, 30/12/1945), colecionador de instrumentos musicais que contribuiu com uns 60 artigos para o dicionário Grove. O Galpin Society foi formado no ano seguinte ao seu falecimento para prosseguir com seus trabalhos de pesquisa e divulgação.

Galpin fez um levantamento da literatura dos séculos XVIII e XIX para encontrar referências à viola pomposa e ao violoncello piccolo. GALPIN (1931, p.354) relata que o primeiro documento mencionando a viola pomposa é o Musical Almanack de Forkel (1782), que descreve o instrumento com dimensões um pouco maiores do que as da viola e com afinação semelhante ao violoncello com uma quinta corda aguda acrescida; tal instrumento firma-se no peito do intérprete por meio de uma fita passando pelo pescoço. Galpin, no entando, aceita a sugestão de equivalência (ou identidade) com o termo “violoncello piccolo“, iniciando um processo de divergência da nomenclatura.

Galpin (1931, p.355) menciona uma declaração de Hiller em seu Lebensbeschreibungen beriihmter Musikgelehrten und Tonkiinstler de 1784, que atribui a invenção da viola pomposa a J.S. Bach, que teria encomendado vários exemplares daquele instrumento a Hoffman; e que o Historischbiographisches Lexicon de Gerber publicado em 1790/2 repetiu a informação de Forkel adicionando o fato de que o instrumento teria sido inventado por volta de 1724. Galpin ressalta, entretanto, que tais informações são muito tardias e que nenhum documento à época de J.S. Bach relaciona viola pomposa a Bach.

Galpin baseou-se no Musikalisches Lexikon de Koch publicado em 1802 para sugerir que o instrumento entrou em desuso devido às suas dimensões exageradas, mas

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reconhece a divergência e pouca precisão dos seguintes termos: viola pomposa, viola da spalla e violoncelo.

Badiarov também analisa um instrumento diferente ao do escopo deste artigo, correpondendo antes à descrição de Forkel publicado em 1782 (apud GALPIN, 1931, p.355): pentacorde, de tamanho intermediário entre viola e violoncello piccolo, amarrado ao peito ou ombro por meio de uma fita. Stowell (2001, p.177) também define viola da spalla como realmente um pequeno violoncello com número de cordas entre 4 e 6, sustentado no peito do instrumentista por uma corda por cima do ombro. Badiarov (2007, p.127) observa que essas informações contraditórias na literatura sugerem a tentativa de delineamento de distinções na nomenclatura que nunca foram solidamente estabelecidas. Ele reconhece que, desde a segunda metade do século XVII até a primeira metade do século XVIII, as obras de violoncello poderiam ser executadas em outros instrumentos à escolha das possibilidades do intérprete (BADIAROV, 2007, p.127-128). Por outro lado, sua proposta de nomenclatura (idem, p.132-133) não auxilia na definição do termo “viola pomposa“, além de introduzir o termo Fagottegeige que se confunde com “viola di fagotto“ anteriormente definida por Kastner (apud WOODWARD, 2003, p.74). Aparentemente, sua terminologia ainda

não se consolidou. Para o instrumento registrado no CD de Sigiswald Kuijken (2009), Badiarov usou o nome “viola da spalla” em 2007 talvez influenciado por Stowell (2001, p.177); já em 2009, consta no seu sítio da internet o termo “violoncello (piccolo) da spalla”, o mesmo nome usado no CD de Kuijken (2009). O trabalho de Badiarov é notável pelos estudos interdisciplinares em iconografia, tradição musical, análise de partituras, construção de instrumentos e de fabricação de cordas. Diferentemente dos outros autores, nota-se uma grande força de persuação de Badiarov semelhante ao deste artigo: a presença real do instrumento, sua utilização bem sucedida nas salas de concerto e o registro sonoro em CD como prova documental.

A viola pomposa tem reaparecido ao longo da história, mesmo sob outras denominações. Robin Stowell (2001, p.177-178) explica o desenvolvimento deste instrumento pentacorde desde a época barroca. Para Stowell, a adaptação da corda Mi na viola seria equivalente ao acréscimo da corda Dó no violino, tendo o objetivo de amenizar a dificuldade em encontrar bons violistas. Neste sentido, foram desenvolvidos a “viola alta“ e o “violalin“, uma viola de cinco cordas projetada por Friedrich Hillmer em Leipzig no final do século XVIII. Stowell atribui erroneamente o termo “viola di fagotto“ a uma

Viola d’amore: Viola com cordas simpáticas. Também desta família é a violetta marina, chamada de “English Violet” por Leopold Mozart. (STOWELL, 2001, p.179)

Viola di fagotto: Da família da viola da gamba, afinada na registração do violoncello, com 7 cordas de tripa e 16 a 20 cordas simpáticas de metal. É um nome alternativo para viola bordone (ou barítono).(Kastner apud WOODWARD, 2003, p.74)

Viola pomposa: pentacorde, de tamanho parecido com a viola convencional, acrescida de corda aguda geralmente afinada em Mi (BROWN, 2003; Kastner apud WOODWARD, 2003, p.66-67). Surgiu antes de 1728 (GALPIN 1931, p.359).

Violino pomposo: outro nome (indevidamente) dado à viola pomposa. (Koch apud GALPIN, 1931, p.355)

Violino tenor: tetracorde apoiado sobre os joelhos, de tamanho intermediário entre violino e violoncello, de afinação uma oitava abaixo do violino. (KORY, 1994)

Violoncello da spalla: pentacorde, um pouco maior e mais grossa do que a viola pomposa, de afinação igual ao violoncello piccolo. Amarrado ao peito por uma fita. (BADIAROV, 2009)

Viola da spalla:(BADIAROV, 2007)

Termo equivalente ao “violoncello (piccolo) da spalla”.(STOWELL, 2001, p.177), (BADIAROV, 2009)

Violoncello piccolo: um pouco menor do que o violoncello convencional, pentacorde de afinação semelhante ao violoncello, acrescida de corda aguda. (BADIAROV, 2009)

Quinton: Instrumento de 5 cordas híbrido entre violino e viola, cujo corpo lembra o de violino. Entretanto, seu braço possui trastes. Alcançou certa popularidade no século XVIII. (STOWELL, 2001, p.177)

Ex.1 - Tabela de revisão e consolidação de nomenclatura relativa à viola pomposa e instrumentos relacionados

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viola afinada na registração do violoncelo, pois Kastner (apud WOODWARD, 2003, p.74) define “viola di fagotto” como da família da viola da gamba acrescida de cordas simpáticas. Para Stowell, a preocupação do século XIX era resolver o problema sonoro da viola6. Tal desenvolvimento científico culminou na construção da “viola alta” de Hermann Ritter pelo luthier Karl Hörlein, cujo instrumento alargava as dimensões do violino para um corpo de 48 cm e altura de 4.3 cm, incorporando a quinta corda Mi, em 1898. Segundo Stowell (2001, p.178), Hanslick escrevera favoravelmente sobre o instrumento, em uso na Orquestra de Meiningen em 1884 e no Ritter Quartet. O instrumento fora adotado por Wagner na Orquestra de Bayreuth por um curto período (ca. 1876). Stowell (2001, p.178) cita a admiração de Liszt, Rubinstein, Hans von Bülow e Felix Weingartner pelo instrumento, que não ganhou popularidade devido à enorme exigência de esforço físico pelo intérprete. Violas ainda maiores tocadas nos joelhos tiveram certa aceitação por alguns intérpretes e regentes famosos, como a “viola tenor” na New York Philharmonic Orchestra regida por Leopold Stokowski.

O Ex.1 organiza as definições coletadas sobre a viola pomposa e outros instrumentos envolvidos nessa questão de nomenclatura. A atual definição da viola pomposa é ratificada pelo artigo de Howard Mayer Brown (2003), apesar de ele não citar instrumentos existentes ou sobreviventes.

3 – Características da viola pomposa em atividade no Brasil3.1 – Glosa biográfica sobre o luthier Carlos Martins del PicchiaMinha viola pomposa foi encomendada ao luthier Carlos Martins del Picchia em 2006 na cidade de Belo Horizonte, MG. Em entrevista realizada no dia 2 de janeiro de 2010, Carlos Martins del Picchia (São Paulo, 1967) me informou que foi introduzido à lutheria pelo seu pai, maestro, violinista e professor Moacyr Del Picchia, que possui um atelier em sua casa (Campinas, SP). Somente a partir de 1987, Carlos Del Picchia começou a se interessar seriamente pelo assunto. Com recomendação do violinista Leopold la Fosse (Springfield, MA, EUA 1928; Iowa City, EUA, 2003), realizou teste para estágio na “Bein & Fushi Inc.“ em Chicago (EUA) onde trabalhou com John Norwood Lee em 1989-90 sob supervisão de Ward Hansen (atualmente o responsável pela área de arcos da empresa)7. Naquela loja, seu trabalho foi focado na área de arcos, mas presenciou a restauração dos instrumentos mais importantes.

Carlos Del Picchia voltou ao Brasil em 1990 para trabalhar em Campinas, SP, realizando serviços para John Norwood até 1992. Naquele ano, Leopold la Fosse contou-lhe sobre a volta do luthier, archetier e pesquisador Andrew Dipper para Minneapolis (EUA) na loja Claire Givens Violins8. Dipper é autor dos mais importantes tratados de lutheria do século XX. Logo em 1993, Carlos Del Picchia mudou-se para Minneapolis, sendo assistente de Andrew Dipper na construção de instrumentos e arcos, e em projetos gerais de

restauração, trabalhando sob supervisão de John Vierow na restauração de arcos para a loja. Em 1995, voltou ao Brasil para se estabelecer definitivamente em Belo Horizonte, MG, onde montou atelier próprio no centro da cidade.

Carlos Del Picchia não soube me informar a bibliografia na qual se apoiou para utilizar apropriadamente o termo “viola pomposa“. Afirmou tratar-se de informação recebida por tradição oral de seus professores, tanto de seu pai quanto dos norteamericanos.

3.2 – Características técnicas da viola pomposa reconstruída no BrasilCarlos Del Picchia construiu o instrumento baseado nas fotos coloridas (em escala 1:1), mapas e informações fornecidas por Rosengard (2000, p.232-235) sobre a viola “La Parmigiana” de Giovanni Battista Guadagnini fabricada em Parma no ano de 1765. Segundo registros do leiloeiro Cozio Publishing9, o instrumento ficou em possessão de J. & A. Beare em Londres, que emitiu o certificado de autenticidade em 15 de maio de 1959 quando se desfez da viola. A viola foi leiloada em Londres no Christie’s em 21 de junho de 1983, para cujo evento foram registradas e publicadas as fotos, mapas e informações técnicas detalhadas na construção do instrumento brasileiro. Nas fotos de Rosengard, verificamos que a viola havia sido adulterada para a montagem moderna de 4 cordas, na qual foi fechado o último furo do cravelheiro, o mais próximo à voluta.

O leiloeiro Cozio Publishing, cognominado Cozio.com, fornece as dimensões listadas nos Ex.2 e no Ex.3 à construção do instrumento.

“Fundo: madeira lisa em 2 pedaçosTampo: de granulação regularVoluta: madeira similar ao fundoVerniz: vermelho-marromOmbro superior: 19,65 cm.Ombro inferior: 24,5 cm.Distância entre os Cs: 14,04 cm.Laterais (ilhargas): figuras (padrão) médioComprimento do corpo: 38,1 cm.”

Ex.2 - Dimensões e características da viola pomposa “La Parmigiana“10.

Fundo: 2 pedaçosTampo: peça únicaVerniz: de cor alaranjada, próxima ao caramelo.Ombro superior: 19,8 cm.Ombro inferior: 24,7 cm.Distância entre entre os Cs: 14,5 cm.Ilharga: 3,3 cm.Comprimento do corpo: 38,7 cm.Comprimento total: 63 cm.Corda vibrante (da pestana ao cavalete): 36 cm.

Ex.3 - Características da viola pomposa brasileira.

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Observo que a régua mede as dimensões diretamente no instrumento e não na projeção da foto. Isso introduz a curvatura do tampo e do fundo na medida, mas faz parte da tradição da lutheria. Fotos do tampo e fundo do instrumento são apresentadas no Ex.4; fotos de sua voluta são apresentadas no Ex.5.

Na construção de Del Picchia, o tampo foi feito em peça única; excepcional devido às dimensões pouco usuais. Há um selo interno no fundo onde se lê: “Carlos Del Picchia / fecit Belo Horizonte / Anno 2007 / para meu amigo Zoltan / CAU“. A viola pomposa foi-me entregue no Natal de 2006, mas o selo foi colado apenas no ano seguinte. Del Picchia respeitou meu desejo em montar o instrumento nas características modernas, não barrocas. Isso significa o uso de

cavalete, alma e barra harmônica em dimensões modernas, a construção do braço em dimensões ligeiramente maiores, além dos acessórios apropriados para as cordas sintéticas. Entretanto, Del Picchia tomou uma decisão interessante para o enriquecimento timbrístico do instrumento: ele cavou o espelho de ébano para preencher o miolo com abeto, madeira mais leve e mais vibrante (a mesma do tampo). Isso caracteriza o braço deste instrumento como barroco na construção, não na sua forma.

O timbre da viola pomposa difere marcadamente do violino, inclusive na corda Mi: é similar ao da viola italiana de orquestra. Este instrumento, em particular, possui todas as características da construção italiana de som aberto e cantante, muito diferente do estilo francês.

Ex.4 - Fotos do tampo e fundo da viola pomposa construída por Carlos Del Picchia.

Ex.5 - Fotos da voluta da viola pomposa construída por C. Del Picchia.

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O comprimento de corda vibrante é de 36,0 cm. Venho utilizando corda Mi de violino (de aço revestido) e as sintéticas de viola para as demais cordas. A preferência pelas cordas sintéticas se deve à riqueza do timbre e ao conforto dos dedos. As cordas sintéticas são de nylon ou de algum outro composto plástico, geralmente revestidos de alumínio ou prata; não têm a pretensão de imitar o timbre nem a elasticidade das cordas de tripa, o que certamente limita as possibilidades de accordatura. A altura do cavalete imprime grande angulação das cordas, diminuindo para 1/3 a vida útil das cordas, segundo minhas observações, principalmente a da corda Mi (fabricada para o comprimento menor do violino!). O som projeta-se melhor na região dos agudos, o que é um fator a se considerar sobre o pouco uso do grave no repertório barroco pentacorde (inclusive na Suíte número 6 de J. S. Bach, por exemplo).

Percebo duas dificuldades concretas que podem ter motivado o desuso do instrumento. A construção exige habilidade do luthier para a precisa colocação do braço sem muita margem de erro, além de necessitar um cavalete muito alto e de concavidade acentuada. Mesmo assim, a largura da viola pomposa (neste modelo, maior do que a da viola d’amore!) requer cuidado do intérprete em não esbarrar com o arco no C do instrumento, ou em outras cordas. Além disso, até o século XIX, pode ter sido muito dispendioso manter o instrumento com as antigas cordas de tripa, principalmente devido ao maior comprimento da corda aguda (Mi) e sua menor vida útil. Com as atuais cordas sintéticas desenvolvidas gradualmente a partir do século XX11, a afinação em quintas justas passou a ser assunto prosaico e não oferece preocupações.

4 – Repertório para viola pomposa4.1 – Repertório internacional para viola pomposaGalpin (1931) analisa o repertório barroco do instrumento, citando dois duetos para flauta traversa e viola pomposa ou violino de G. P. Telemann publicados em Hamburgo em 1728, na coleção Der getreue Music-Meister, cujo raro exemplar se encontra na Biblioteca do Conservatório de Música de Bruxelas, e uma sonata solo com baixo contínuo escrito por Christian Joseph [Cristiano Giuseppe] Lidarti (Vienna, 23/2/1730; [Pisa?], depois de 1793) encontrada na Bibliothek der Gesellschaft der Musikfreunde em Vienna. As partituras são ambas escritas em clave de sol para a viola pomposa. Brown (2003) amplia a listagem de Galpin citando um concerto duplo de Johann Gottlieb Graun (Wahrenbrück, 1702–3; Berlin, 27/10/1771), professor de Wilhelm Friedemann Bach em 1726-27, e duas sonatas de câmara do gambista Johann Gottlieb Janitsch12 (Schweidnitz [agora Swidnica], 19/6/1708; Berlin, c. 1763).

Stowell (2001, p.177) cita o Concerto em Dó Maior (1788) de Michel Woldemar (batisado em Orléans, 21/9/1750; Clermont-Ferrand, 19/12/1815) estreado por Chrétien Urhan.

No repertório contemporâneo europeu, encontramos talvez o primeiro registro sonoro em CD do som da viola pomposa solo por Jenny Spanoghe13 (2007). Em sua gravação, as composições para viola pomposa são Widmung for solo 5-string viola (2003) de Jan Van Landeghem, Ô Loli’s dream pour violon/alto à 5 cordes de Claude Ledoux (2006), e Capriccio for Jenny (2005) de Gian Paolo Luppi.

Entre os compositores norte-americanos, aparece Rudolf Haken14 (1966), professor de viola na Universidade de Illinois. Encontram-se em sua homepage suas composições para viola pomposa: Surennatalia Suite in 5 movements for 2 five-string violas (1998); Quintet (2008) for clarinet, 2 violins, viola, and cello (versão do concerto de clarinete, onde também o 1°. violino foi arranjado para a viola de 5 cordas); Concerto for Five-String Viola and Orchestra (2005, também com versão disponível para violoncelo), Galapagos-Tone Poem for Viola Pomposa and Orchestra (2005), Suite pour Jean (2008) para solo de flauta / viola / violoncelo ou viola de 5 cordas. Haken menciona a gravação de seus concertos em 2007.

4.2 – Repertório brasileiro para viola pomposa O chamado de composição do Duo SPES 15 para viola pomposa e fagote teve resposta de Paulo Rios Filho, dedicando ao duo a peça O Burundi não é aqui (2006). Também foi escrito para o Duo SPES o Ofertório (2007) e o Requiem das águas (2008, concluídos os primeiros movimentos) de Paulinyi.

As primeiras composições nacionais solo para viola pomposa são de Paulinyi: Toada (2006) e Oblação (2007). A Toada (de aproximadamente 8 minutos) foi dedicada à artista plástica Marlene Godoy, estreada na Embaixada da Tunísia em 19/3/2007, gravada para o CD Imagens (2008) e selecionada para estreia carioca na XVIII Bienal de Música Contemporânea da Funarte com apresentação na Sala Cecília Meireles em 31/10/2009 pelo autor. O trecho final da Toada foi filmado pela TV Senado (CONVERSA DE MÚSICO, 2008) e exibido várias vezes a partir de dezembro de 2008 até 2009. Já a Oblação é curta, de duração aproximada de 2 minutos, mas é escrita em duas vozes exigindo um ostinato de pizzicato em mão esquerda. Foi dedicada a Jenny Spanoghe, estreada pelo autor na Casa Thomas Jeffersohn Asa Sul, Brasília, em 16/5/2008. Na mesma ocasião, foi estreada a peça solo As impuras imagens do dia se desvanecem (1999) de Harry Crowl. Apesar de ter sido escrita para viola, sua tessitura vislumbra o uso da viola pomposa, tornando-a extremamente difícil para a viola tetracorde; por isso, a peça merece uma reclassificação instrumental para figurar no repertório da viola pomposa.

Em 2009, Harry Crowl concluiu seu concerto Antíteses para viola pomposa dedicado ao autor deste artigo, cuja estreia aconteceu com a Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná no Teatro da Reitoria da UFPR em Curitiba no dia 19 de junho de 2009

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sob regência de Márcio Steuernagel; reapresentado no Teatro de Antonina no dia seguinte. A obra, em 4 movimentos, apresenta o instrumento solo no segundo movimento numa espécie de cadência preparatória para o final. O terceiro movimento é um diálogo da viola exclusivamente com os sopros. O primeiro e quarto movimentos apresentam o instrumento dialogando com a orquestra inteira. O concerto foi reapresentado em Belo Horizonte no dia 20/10/2010 no Museu Inimá de Paula com a Orquestra Sinfônica do Palácio das Artes sob regência do maestro Charles Roussin.

O repertório camerístico para viola pomposa está na expectativa de rápida expansão devido ao concurso de composição para o início de 2010 promovido pelo Quarteto Lignea16, fundado em 2007 na seguinte formação: Karla Aléssio Oliveto (violino), Iracema Yrlanda Simon (fagote), Félix Alonso Morales (clarinete), Zoltan Paulinyi (viola pomposa / violino). Obras escritas para o grupo em 2010: Flora Atlântica III de Harry Crowl, que formam um ciclo 6 de miniaturas inspiradas por ilustrações de plantas da mata atlântica predominantes do sul do Brasil, e as primeiras cenas de Genesis de Zoltan Paulinyi.

5 – ConclusãoApesar de Brown (2003) refutar a atribuição da invenção da viola pomposa a J.S.Bach, não se encontram documentos claros para encerrar essa questão. O fato é que o instrumento já possuía uma obra escrita por Telemann em 1728. Realmente, Bach costumava dar sugestões a Hoffmann para construir seus instrumentos (BADIAROV, 2007, p.131); quem sabe haveria uma viola pomposa entre eles?

A interessante história do instrumento é marcada pela saga de sua nomenclatura. Os erros e especulações propagados na literatura desde o século XVIII podem ser justificados pela falta de contato com os poucos instrumentos existentes. O repertório contemporâneo e a produção de gravações e vídeos têm contribuído para a consolidação do uso correto do termo e a divulgação do instrumento. Observa-se, também, a herança da tradição oral mais segura do que algumas referências escritas.

O timbre da viola pomposa não permite confundi-lo com o violino, mesmo na corda aguda. A moderna tecnologia de fabricação das cordas sintéticas facilita grandemente o ressurgimento da viola pomposa. Suas possibilidades técnicas expandidas permitem eficiente uso tanto no repertório camerístico quanto em apresentações solo.

O repertório contemporâneo amplia-se rapidamente a partir desta década, onde o Brasil ocupa lugar de destaque na produção literária mundial, além de ser o único representante latino-americano com literatura para o instrumento. Assuntos de interesse para esta linha de pesquisa podem abordar a interação da viola pomposa com o repertório tradicional camerístico e orquestral, além da exploração de recursos exclusivos do instrumento.

5.1 – Novas linhas de pesquisaSe a Europa já conhecia e utilizava a viola pomposa na prática da música antiga, o pioneirismo brasileiro no ressurgimento moderno da viola pomposa abre importantes campos de pesquisa em lutheria, tecnologia de fabricação de cordas, técnicas de execução, composição, até mesmo análise de partituras.

Este artigo aponta indícios para uma nova perspectiva de análise de partituras, mesmo para as músicas históricas. Relacionando as questões de encordoamento, os problemas de durabilidade da corda aguda e falta de projeção da corda grave adicionam fatores a serem considerados no repertório pentacorde, como por exemplo a Suíte número 6 de J. S. Bach, cujos movimentos centrais evitam completamente o uso da corda grave, deixando sua utilização mais explorada apenas no primeiro e último movimentos.

Além disso, um grande questionamento atual que merece atenção é a viabilidade da substituição da viola tradicional pela viola pomposa. Se o instrumento é realmente timbristicamente equivalente à viola de orquestra, por que nunca foi efetivamente incorporado à tradição? Outra interessante linha de pesquisa é a aceitação do instrumento entre os profissionais e entre os ouvintes.

Na lutheria, os poucos exemplares sobreviventes sugerem que o instrumento não foi completamente explorado para se chegar a um conjunto ótimo de medidas. Ângulo e grossura do braço, altura do cavalete, altura das ilhargas, encordoamente apropriado e até mesmo o timbre representativo não estão estabelecidos e fornecem amplas linhas de pesquisa. A própria fabricação de cordas merece uma pesquisa particular para se conseguir adequação da resistência ao comprimento e que permita boa projeção sonora em todas as 5 cordas com um timbre agradável.

Na composição, a própria produção literária conduz a várias linhas de pesquisa na exploração de novos recursos técnicos de execução e de novas sonoridades acústicas, além de novas formações camerísticas.

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ReferênciasBADIAROV, Dmitry. Violoncello (piccolo) da spalla. Disponível em http://violadabraccio.com/index.php?option=com_cont

ent&task=view&id=19&Itemid=29. Acesso em: 16/11/2009.______ . The Violoncello, Viola da Spalla and Viola Pomposa in Theory and Practice. Galpin Society: The Galpin Society

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oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/29453. Acesso em: 14/11/2009.Conversa de músico: Zoltan Paulinyi e Iracema Simon. TV Senado, Brasília, filmado no Palácio do Itamaraty em novembro

de 2008; exibido a partir de 12/2008.CROWL, Harry; PAULINYI, Zoltan. CD Imagens: obras de Harry Crowl e Zoltan Paulinyi. Produção independente. 2008. CD

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GALPIN, Francis William. Viola Pomposa and Violoncello Piccolo. Oxford University Press: Music & Letters, Vol. 12, No. 4 (Oct., 1931), p.354-364. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/726481. Acesso em: 16/11/2009.

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KUIJKEN, Sigiswald. Bach: cello suites. Accent, 2009. 2 CDs.ROSENGARD, Duano. Giovanni Battista Guadagnini. Carteggiomedia, Haddonfield, NJ, USA, number 1857/2000, ISBN

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Landeghem. Bélgica, fevereiro de 2007. 1 CD, duração total de 74:53.STOWELL, Robin. The Early Violin and Viola: A Practical Guide. Cambridge Handbooks to the Historical Performance of

Music, Cambridge University Press, 30 de julho, 2001.WOODWARD, Patricia Jovanna. Jean-Georges Kastner’s Traité Général D’instrumentation: a Translation and Commentary.

Thesis for the Degree of Master Of Music, University of North Texas, May 2003. Disponível em http://digital.library.unt.edu/data/etd/2003_1/open/meta-dc-4165.tkl. Acesso em: 26/11/2009.

Notas1 Agradeço as sugestões estilísticas e redacionais de Maria Alice Volpe, minha orientadora no mestrado da Universidade de Brasília (UnB) e a leitura

entusiasmada de Regis Duprat, o que muito me honra. Agradeço a Carlos Del Picchia pela sugestão inicial de 2006 e pelo empenho em reviver a viola pomposa. Agradeço à minha amada esposa Iracema Simon pelo contínuo apoio nas minhas atividades, bem como o firme apoio de minha família: são constituintes próximos do beneplácito divino. Também foi importante o concurso da OSTNCS ao oferecer a oportunidade de exibir a funcionalidade do instrumento na liderança do naipe de violas durante o ano de 2009. O convite do amigo Egon de Mattos para compor e tocar o instrumento em sua orquestra da Escola de Música de Brasília em 2008 foi a causa primeira para o sucesso do desenvolvimento de importantes projetos posteriores.

2 “chaque année voit encore paraître une multitude de ces instrumens mort-nés qui disparaissent quelques semaines après leur apparition”. Todas as traduções para o português são do autor deste artigo.

3 LA VIOLA POMPOSA - Cet instrument fut invente par le célèbre Seb. BACH. Il était plus grand et plus haut que la viole ordinaire et pourtant on le tenait dans la même position; outre les quatre cordes de la viole, il en avait encore une cinquième accordée en Mi, et qu’on appelait aussi la quinte. Le violoncelle s’étant peu à peu perfectionné et les artistes y gagnant de jour en jour, on oublie la viola pomposa d’autant plus facilement qu’elle était lourde et par cela même incommode à manier.

4 VIOLA DI SPALA (viole d’épaule) On ne trouve nulle part la manière dont on accordait cet instrument; on raconte seulement qu’il était très recherché et qu’on s’en servait fort souvent pour accompagner, à cause de son ton perçant. On le suspendait avec un ruban à l’épaule droite, ce qui lui a fait donner son nom. Il est à présumer que la viola di spala était à peu près notre violoncelle actuel, car on trouve encore des musiciens de village qui suspendent le violoncelle à l’épaule droite avec une courroie, tandis que nos artistes le tiennent entre les genoux.

5 “there has been little agreement regarding the precise meanings of the following terms: viola pomposa, viola da spalla and violoncello piccolo”.

6 Qual seria este problema sonoro? Se for a uma diferença timbrística entre violino e viola, isso corresponde a uma questão ideológica de escolha estética, não um acidente acústico.

7 http://www.beinfushi.com/s-wardHansen.php acessado em 2/1/2010.

8 http://www.givensviolins.com/about/dipper/dipperstaff.html acessado em 2/1/2010.

9 http://www.cozio.com/Instrument.aspx?id=3052 acessado em 16/11/2009.

10 “Back: Two-piece of plain wood / Scroll: of wood similar to back / Varnish: Red-brown / Upper Bout: 19.65 cm. / Lower Bout: 24.5 cm. / Ribs: of medium faint figure / Table: of even grain / Body Length: 38.1 cm. / Center Bout: 14.04 cm.” Fonte: http://www.cozio.com/Instrument.aspx?id=3052 acessado em 16/11/2009.

11 No início do século XX, as cordas metálicas foram ganhando grande aceitação principalmente pelos solistas ingleses que sofriam com a instabilidade de afinação devido à alta umidade. No final do século XX, as cordas sintéticas, de nylon (ou similar) com revestimento de alumínio ou prata, ganharam popularidade por causa da confiabilidade, durabilidade e do timbre mais refinado. Além disso, as cordas sintéticas são mais confortáveis do que as metálicas devido ao seu calibre maior.

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12 Os arquivos do Berlin Singakademie descobertos na Ucrânia podem ter muitos de seus autógrafos.

13 Professora belga de violino e música de câmara no Conservatório Fontys em Tilburg na Holanda. http://www.janvanlandeghem.be/jennySpanoghe.html acessado em 17/11/2009.

14 Disponível em http://www.rudolfhaken.com/ acessado em 17/11/2009.

15 http://spes.MusicaErudita.com acessado em 2/1/2010.

16 http://lignea.MusicaErudita.com acessado em 2/1/2010.

Zoltan Pauliny é Bacharel em Física pela UFMG (1999), mestre em Música no Programa de Pós-Graduação “Música em Contexto” do Departamento de Música da Universidade de Brasília (2010). Violinista da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro (OSTNCS) em Brasília desde o ano 2000, solista dos violinos em 2007 e parte de 2010, solista das violas em 2009. Diretor do Programa SPES de intercâmbio de música de câmara contemporânea desde 2008. Criador dos Concursos de Composição 2006 e 2010 do Quarteto Amizade e Lignea respectivamente, com os quais vem produzindo discos bilíngues para divulgação internacional da música brasileira. Estudou violino com Ricardo Giannetti e composição com Oiliam Lanna, entre outros. Vencedor do Concurso Nacional Jovens Instrumentistas (Universidade Federal de Goiás, 2002); Troféu Pró-Musica dos Críticos de Arte como Instrumentista “Revelação” de Minas Gerais em 1998. Como compositor, teve obras selecionadas para apresentação nas Bienais de Música da Funarte de 2005 e 2009.

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KOTHE, F.; TEIXEIRA, C. S.; PEREIRA, E. F.; MERINO. E. A. D. A motivação. . .músicos de orquestra. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.100-106.

Recebido em: 14/09/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

A motivação para o desenvolvimento do trabalho de músicos de orquestra

Fausto Kothe (UFPR, Curitiba, PR) [email protected]

Clarissa Stefani Teixeira (UFSC, Florianópolis, SC)[email protected]

Érico Felden Pereira (UFPR, Curitiba, PR) [email protected]

Eugenio Andrés Díaz Merino (UFSC, Florianópolis, SC) [email protected]

Resumo: A motivação pode interferir na profissão musical, principalmente, pela necessidade constante da prática instrumental. No entanto, a literatura especializada não apresenta com clareza os principais fatores motivacionais para esta atividade profissional. Assim, buscou-se identificar os fatores relacionados à motivação para o desenvolvimento do trabalho de 22 instrumentistas de uma orquestra semi-profissional da região Sul do Brasil. A motivação foi avaliada por meio do questionário de FERREIRA et al. (2006) que apresenta 28 questões que buscam avaliar a motivação para o desenvolvimento das atividades profissionais relacionadas com a organização do trabalho, com realização e poder, com o desempenho e motivação associada ao envolvimento. Para a análise dos dados foi realizada a estatística descritiva por meio de média e desvio padrão e análise fatorial. Os resultados demonstraram que os fatores com a maior pontuação estão associados à motivação para a realização profissional e ao poder dentro da orquestra e com a motivação para o desenvolvimento das atividades profissionais relacionadas com a organização do trabalho. Essas informações se refletem nos resultados da análise fatorial que também indicou ambos os domínios como maior poder de explicação para se ter motivação para o desenvolvimento da prática junto ao instrumento. De forma geral, pode-se dizer que os instrumentistas encontram-se motivados para a realização do trabalho.

Palavras-chave: ergonomia, músicos, orquestra, motivação, trabalho.

The motivation for developing the work of orchestra musicians

Abstract: Motivation can interfere with the music profession, especially by the constant need for instrumental practice. However, the literature does not show clearly the main motivating factors for this professional activity. Thus, we sought to identify the factors related to motivation for developing the work of 22 musicians from an unprofessional orchestra in southern Brazil. The motivation was assessed by questionnaire FERREIRA et al. (2006) with 28 questions that seek to assess the motivation for the development of professional activities related to the organization of work, achievement and power, with the performance and motivation associated with involvement. For the data analysis was performed descriptive statistics through average and standard deviation and factor analysis. The results showed that the factors with the highest score are associated with motivation for professional achievement and power within the orchestra and the motivation for the development of professional activities related to the organization of work. These information reflect themselves in the results of factor analysis and also indicated that both domains as bigger explanatory power to the motivation for the development of practice with the instrument. In general, one can say that the musicians are motivated to carry out the work. Keywords: ergonomics, musicians, orchestra, motivation, work.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

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1 – IntroduçãoOs processos que envolvem as atividades diárias das organizações que buscam a eficácia requerem um comportamento participativo e motivado por parte dos trabalhadores. A motivação é um estado psicológico no qual o indivíduo tem disposição para realizar uma ação, seja no trabalho, seja em qualquer esfera de sua vida (FUCCI-AMATO, 2008). É considerada uma das dimensões mais referenciadas nos vários contextos de intervenção dos psicólogos (REGO, 2002) e, para as intervenções em ergonomia, estratégias que viabilizem alterar a percepção dos trabalhadores podem ser pensadas e aplicadas para a melhora das condições de trabalho.

Segundo FERREIRA et al. (2006) as empresas procuram encontrar argumentos que rentabilizem a produtividade e o desenvolvimento organizacional de forma a identificar nos seus recursos humanos aqueles que desenvolvem maiores índices de motivação e, consequentemente, deem respostas mais eficazes face aos indicadores de performance organizacional.

Especificamente na prática profissional, a motivação é um importante fator não apenas quando se relaciona à produtividade, mas, também, quando se associam as questões de saúde (MARTINEZ e PARAGUAY, 2003). Além disso, as práticas em ergonomia centram suas análises no ser humano, o que possibilita um equilíbrio entre a produção e o bem-estar. Segundo FERREIRA et al. (2006), o estudo da motivação no trabalho considera as condições de trabalho responsáveis pelos objetivos, pela qualidade e pela intensidade do comportamento no trabalho.

Em músicos, as investigações que relacionem a motivação mostram-se como uma lacuna de conhecimento, tendo em vista a escassez de estudos relacionados ao tema. FRAGELLI e GÜNTHER (2009) indicam que tal lacuna pode estar relacionada à falsa ideia de que a música se associa apenas ao lazer estando, portanto, raramente relacionada a uma atividade laboral. Essas considerações se refletem nos prejuízos à profissão no que tange as questões de melhora das condições de trabalho e de como proceder para o desenvolvimento da atividade.

Além disso, o estudo da motivação de músicos instrumentistas é importante visto que pode interferir na profissão musical pela necessidade constante da prática junto ao instrumento, que se caracteriza como individual e coletiva. Logo, este estudo buscou identificar os fatores relacionados à motivação para o desenvolvimento do trabalho de instrumentistas de orquestra.

2 – Métodos O estudo foi realizado com uma orquestra semi-profissional da Região Sul do Brasil que foi selecionada por meio de sorteio. A orquestra selecionada possuía em seu quadro de trabalhadores 29 instrumentistas. Para efeito de análise foram investigados os 22 instrumentistas que aceitaram participar do estudo (sendo 15 cordas e sete das madeiras e metais) e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido para inclusão no estudo, conforme Resolução n.º 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, respeitando os princípios éticos contidos na declaração de Helsinque, além do atendimento à legislação vigente.

A motivação foi avaliada por meio de um questionário construído e validado por FERREIRA et al. (2006). O questionário é constituído de 28 itens que avaliam quatro dimensões referentes à motivação no trabalho. Os itens 1, 5, 9, 13, 17, 21 e 25 medem a motivação tendo em vista a organização do trabalho, os itens 2, 6, 10, 14, 18, 22 e 26 estão associados à motivação para o desempenho. As questões 3, 7, 11, 15, 19, 23 e 27 avaliam dimensões referentes aos motivos de realização e poder associados ao trabalho. Por último, os itens 4, 8, 12, 16, 20, 24 e 28, reportam-se a aspectos de motivação ligados ao envolvimento com o trabalho. Todas estas afirmações encontram-se associadas a uma escala de resposta do tipo likert com cinco tipos de respostas alternativas, cujos posicionamentos de resposta oscilam entre os pólos, 1 - discordo totalmente, 2 - discordo, 3 - não discordo nem concordo, 4 - concordo e 5 - concordo totalmente. A partir da média de cada dimensão são encontrados os escores que indicam a motivação dos indivíduos. Quanto mais próximo de cinco, maior é a motivação relacionada às atividades de trabalho.

Componentes do questionário média desvio padrão

Motivação para o desenvolvimento das atividades profissionais relacionadas com a organização do trabalho

3,63 0,53

Motivação com o desempenho 3,62 0,31

Motivação com a realização e o poder 3,71 0,64

Motivação associada ao envolvimento 3,47 0,40

Ex.1 – Componentes do questionário de motivação.

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Para a análise dos dados foi utilizada a análise fatorial para componentes principais, com o objetivo de formar agrupamentos relacionados com as 28 questões do questionário da motivação considerando fatores com autovalores maiores que 1. Com o objetivo de minimizar a relação entre os fatores, foi utilizada a rotação ortogonal “varimax normalized” no cálculo dos fatores. Nestes fatores, foram consideradas significativas aquelas questões que apresentaram o módulo de p>0,5. O Gráfico “Scree Plot” foi utilizado para visualizar os fatores mais representativos e apresenta a tendência de explicação dos fatores.

3 – ResultadosOs resultados relacionados aos componentes do questionário de motivação, conforme respostas dos músicos, estão ilustrados no Ex.1.

O Ex.2 (Scree Plot) apresenta a tendência de explicação dos fatores, na qual é possível verificar que a análise de componentes principais extraiu nove fatores com autovalores maiores que 1. Esses fatores foram responsáveis por 25,35% da variância total explicada. Foram consideradas significativas aquelas questões que apresentaram o módulo de p>0,7. As questões agrupadas e seus respectivos domínios estão apresentados no Ex.3.

4 – DiscussãoEste estudo buscou identificar os fatores relacionados à motivação para o desenvolvimento do trabalho de instrumentistas de orquestra.

A importância de investigar a motivação relacionada às atividades profissionais é centrada na identificação da persistência e do direcionamento da atenção e do

Ex.2 – Tendência de explicação dos fatores da motivação (Scree plot).

desenvolvimento das atividades realizadas (ARAÚJO e PICKLER, 2008). CUSTODERO (2006) e ADDESSI e PACHET (2007) afirmam que existe uma relação clara entre a persistência no estudo com o instrumento e a satisfação da experiência vivenciada, o que justifica a necessidade de práticas constantes com o instrumento musical.

De forma geral, pode-se dizer que os instrumentistas avaliados no presente estudo encontram-se motivados para o desenvolvimento das atividades laborais, visto que os escores aproximam-se de cinco. Além disso, os resultados demonstraram que os fatores com a maior pontuação estão associados à realização e ao poder dentro da orquestra e com a motivação para o desenvolvimento das atividades profissionais relacionadas com a organização do trabalho (Ex.1). Essas informações se refletem nos resultados da análise fatorial (Ex.2) que também indicou ambos os domínios como maior poder de explicação para se ter motivação para o desenvolvimento da prática junto ao instrumento. Além disso, o estudo de FERREIRA et al. (2006) também encontrou resultados semelhantes. Os autores verificaram 22.22% de explicação para a motivação face à organização e 8.17% para a realização e poder.

COSTA (2005) relaciona a organização do trabalho e as diretrizes que trazem à tona questões como realização e poder, de competição, de reconhecimento entre pares, de controle de pressões sofridas. Neste sentido, segundo CUNHA e MARQUES (1990) a motivação no trabalho encontra-se associada à produtividade organizacional, o que corrobora com os resultados encontrados no presente estudo. Dentro desse fator, as questões de maior pontuação com o resultado final estão associadas ao ambiente de cooperação entre colegas de trabalho.

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Para COSTA e ABRAHÃO (2004) a dimensão coletiva presente na atividade musical exige um ajuste fino dos mecanismos perceptivos, das previsões dos movimentos necessários à produção do som e da intensidade com que este será realizado, das combinações e divisões de tarefas na execução com os outros instrumentistas, de forma a manter a música acontecendo.

Além disso, MENDES e ABRAHÃO (1996) encontraram que as restrições e o incentivo ao individualismo dos pares dificultam a construção de um coletivo de trabalho e pode conduzir a um sentimento de

impotência frente à estrutura organizacional. Na música, estas questões são fundamentais visto que há necessidade não só de trabalho individual, mas também de uma interação coletiva para a composição da obra musical. Muitas vezes, as práticas dentro das orquestras são condicionadas pelo rigor/rigidez (JOURDAIN, 1997; GATES, 2001; COSTA, 2005), o que faz com que o trabalho não seja equilibrado, descaracterizando o real papel que cada um tem dentro do todo. Consequentemente, conflitos individuais ou do próprio coletivo podem ser gerados refletindo em sobrecarga cognitiva e física com reflexos negativos no resultado final.

Fatores Questões Domínios de Motivação P Explicação

(%)

1Ter perspectivas de carreira é importante para a minha motivação no trabalho

realização e o poder

0,7974

4.33

1Gostaria de desempenhar funções com maior responsabilidade

realização e poder

0,7637

1Sinto necessidade de crescer cada vez mais na minha função

realização e poder

0,9233

1Se existissem prêmios atribuídos aos melhores, percebia-os como um fator de motivação profissional

realização e poder

0,8853

1Sinto-me motivado(a) quando o trabalho é elogiado pelo meu superior

realização e poder

0,7271

2O “feedback” que recebo no trabalho contribui enquanto fator motivacional

organização do trabalho

0,7297

4.072Considero que trabalho num ambiente de cooperação entre colegas

organização do trabalho

0,9015

2A organização permite o desenvolvimento dos objetivos profissionais

organização do trabalho

0,7608

3 Identifico-me com a função que desempenhoenvolvimento

com o trabalho0,6950 3.23

4Sinto-me realizado com as funções que desempenho na organização

organização do trabalho

0,9087 3.06

5Todos os indivíduos da organização participam nos processos de tomada de decisão

organização do trabalho

0,7011 1.89

6 Existe competitividade no meu grupo de trabalho. desempenho 0,8884 2.98

7Trabalharia com maior empenho se existissem formas de remuneração alternativa.

envolvimento com o trabalho

0,8764 1.91

8 Considero que as avaliações periódicas me motivam desempenho 0,73382.04

8 Considero o meu trabalho monótono.envolvimento

com o trabalho0,7540

9 Sinto-me satisfeito com a minha remuneraçãoorganização do

trabalho0,8720 1.84

Ex.3 – Distribuição das questões da avaliação da motivação de acordo com os fatores de agrupamento.

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Assim, segundo MENDES e ABRAHÃO (1996), na medida em que as relações com os pares e hierarquia são fragilizadas pela organização do trabalho, há maior dificuldade em estabelecer o coletivo de trabalho, podendo levar ao sofrimento. Por outro lado, a valorização e o reconhecimento de competências pelos colegas e hierarquia podem ser fontes de vivências de prazer que se aliam aos investimentos sublimatórios propiciados pela atividade, o que, consequentemente, reflete na motivação para o desenvolvimento das atividades. Outra questão que se mostrou importante na análise foi relacionada ao desenvolvimento dos objetivos profissionais que, quando alcançado, se reflete em maior motivação para a continuidade das atividades. MCCLELLAND (1987) indica também que o feedback relacionado ao desempenho durante as atividades é valorizado no que se refere à motivação dos trabalhadores, o que reflete nos resultados encontrados no presente estudo.

MCCORNICK e MCPHERSON (2003) e MCCORNICK e MCPHERSON (2006) indicam que as práticas atuam como uma parte vital no desenvolvimento da capacidade de realização instrumental e esta, por sua vez, deve considerar as variáveis motivacionais. Com relação à pontuação da motivação relacionada à realização e ao poder, parece que os elogios dos superiores durante a prática instrumental e o recebimento de prêmios pelas atividades desenvolvidas seriam importantes fatores. Para ARAÚJO e PICKLER (2008) o papel do professor que auxilia o desenvolvimento das atividades musicais é fundamental no que tange a motivação da aprendizagem. Neste sentido, LOCKE e LATHAM (1990) referem que avaliações positivas melhoram a eficácia do trabalho e reforçam a motivação.

A profissão musical determina ainda a necessidade do desempenho de funções com maior responsabilidade. O que ocorre é que a responsabilidade dos músicos é apenas relacionada à execução de seu próprio instrumento musical, sendo as demais atividades da orquestra de responsabilidade do maestro/regente ou outros membros integrantes da orquestra. Estas considerações indicam a necessidade de crescimento relatada pelos músicos. Vale lembrar que dentro do naipe de instrumento existe essa possibilidade o que, consequentemente, faz com que novos estudos sejam realizados junto ao instrumento para se conseguir o posto de spala da orquestra, ou chefe de naipe do instrumento.

Para TAMAYO e PASCHOAL (2003) a motivação laboral é uma das áreas em pesquisa e gestão de recursos humanos que tem sido sempre orientada por uma abordagem positiva e humanizadora do ambiente de trabalho, procurando encontrar caminhos para ajudar o trabalhador a satisfazer as suas necessidades no trabalho e a se realizar profissionalmente nele. Assim, relativamente à necessidade de realização, esta pode definir-se como um impulso de realização em direção a um conjunto de padrões, em que se insere o desejo de

querer ser excelente e de ser bem sucedido em situações de competição (FERREIRA et al., 2006). Estas considerações vão ao encontro da presença de perspectivas da carreira apresentada pelos instrumentistas avaliados.

Essas questões se refletem nos componentes que mostraram menores motivações. Estes, segundo o Ex.1, estão associados com a designação de envolvimento com as atividades do trabalho (3,47 ± 0,40 pontos) e podem, mais uma vez estar associados à limitação das atividades relacionadas com seu próprio instrumento de trabalho. Enquanto existe a possibilidade de sobrecarga física quando se desenvolve atividades repetitivas e de precisão como os desenvolvidos com os instrumentos de orquestra, segundo SKINNER (1989) a variedade de funções, identidade e significado das tarefas refletem a forma como o trabalho se encontra estruturado e dependem dos conhecimentos associados ao trabalho e afetam a motivação.

Além disso, a realização de tarefas que impossibilitem variedade pode tornar o trabalho monótono e, consequentemente, diminuir a motivação para o desenvolvimento do mesmo. Para TAMAYO e PASCHOAL (2003) o problema da motivação no trabalho situa-se, inevitavelmente, no contexto da interação dos interesses da organização com os interesses do empregado. As duas partes envolvem-se numa parceria, na qual cada uma delas apresenta e explicita suas exigências e demandas.. Para FERREIRA et al. (2006) as características estão relacionadas com a importância atribuída às tarefas e estas contribuem para uma maior satisfação no trabalho através da motivação intrínseca. Por outro lado, quando o trabalho permite alguma autonomia, os empregados relacionam a performance com os seus esforços e decisões, na medida em que o trabalhador sente o crescimento da sua responsabilidade pelo trabalho.

Outra preocupação associada aos baixos valores de motivação para o domínio do envolvimento com as atividades realizadas é a indicação de ALLEN e MEYER (1997) que afirmam que o envolvimento com as atividades é uma medida determinante na produtividade e que parece estar associada enquanto elemento que contribui fortemente para a motivação no trabalho.

A remuneração recebida na orquestra avaliada também parece não motivar o desenvolvimento das atividades junto à orquestra. Neste sentido, TAMAYO e PASCHOAL (2003) relacionam que a valorização dos empregados está associada à satisfação dos trabalhadores. Para CARVALHO e SILVA (2006) em uma era de competitividade a remuneração fixa tornou-se insuficiente para motivar e incentivar as pessoas a obter um comportamento proativo, empreendedor e eficaz na busca de metas e resultados excelentes. Para os autores, diferentemente dos resultados encontrados, a remuneração não apresenta associação com a motivação, pois funciona apenas como fator higiênico.

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As maiores problemáticas em se ter trabalhadores desmotivados podem estar associadas às indicações de EREZ (1997), que define a interferência na disposição para dedicar esforço, conhecimentos e habilidades pessoais no seu trabalho. Assim, a valorização dos trabalhadores é de fundamental importância se a organização pretender manter um lugar de destaque no mercado altamente competitivo de hoje.

5 – ConclusãoOs resultados demonstraram que os fatores com a maior pontuação estão associados à motivação com a realização e com o poder dentro da orquestra (3,71 ± 0,64 pontos) e com a motivação para o desenvolvimento das atividades profissionais relacionadas com a organização do trabalho (3,63 ± 0,53 pontos). Essas informações se refletem nos resultados da análise fatorial que também indicou ambos os domínios como maior poder de explicação para se ter motivação para o desenvolvimento da prática junto ao instrumento. De forma geral, pode-se dizer

que os instrumentistas encontram-se motivados para a realização do trabalho.

Porém, ter perspectivas na carreira mostrou-se importante para a motivação. Deste modo, estratégias como promoções e planos de carreira, facilitações para a realização de cursos superiores e outros cursos poderiam ser estratégias dentro da orquestra, o que demonstraria melhorias não apenas para a qualificação dos trabalhadores como também para a motivação.

Conforme indicam FERREIRA et al (2006), as influências no trabalho são multifatoriais, o que leva a uma necessidade de novos estudos no tocante da ergonomia. Assim, recomenda-se que medidas de promoção da saúde e trabalho dos músicos, intervenções ergonômicas bem como políticas públicas no contexto do trabalho considerem os fatores que mais motivam os músicos para sua atuação profissional, buscando resultados mais eficientes.

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Fausto Kothe: Possui graduação em Música (bacharelado em viola) pela Universidade Federal de Santa Maria (2004). Apresentou-se com as principais orquestras do estado do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Atuou na docência e preparação de alunos para a graduação durante os anos de 2006-2009. Atualmente é mestrando em Música da Universidade Federal do Paraná na linha de pesquisa Educação Musical, Cognição e Filosofia.

Clarissa Stefani Teixeira: Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria (2004). Realizou especialização em Atividade Física, Desempenho Motor e Saúde na linha de pesquisa Biomecânica da Atividade Física pela Universidade Federal de Santa Maria (2005). É Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de Santa Maria (2006-2008). Atualmente tem seus estudos voltados para a saúde e qualidade de vida dos trabalhadores atuando principalmente na área de ergonomia, antropometria e biomecânica. É doutoranda em Engenharia de Produção da Universidade Federal de Santa Catarina na linha de pesquisa de Ergonomia e é bolsista CNPq.

Érico Felden Pereira: Possui graduação em Educação Física (2004) e especialização em Atividade Física, Desempenho Motor e Saúde (2006) pela Universidade Federal de Santa Maria. É mestre em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008) e doutor em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná. Tem experiência nas áreas de Saúde e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: barreiras e facilitadores para a promoção da qualidade de vida das pessoas e comunidades, saúde escolar, desigualdades em saúde, comportamento motor, sono, sonolência diurna excessiva, educação física escolar e imagem corporal. Atualmente é professor efetivo da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Eugenio Andrés Díaz Merino: Possui graduação em Desenho Industrial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993), mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (1996) e doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000). Atualmente é professor adjunto IV da Universidade Federal de Santa Catarina e coordena o Núcleo de Gestão de Design. Atualmente atua nos seguintes temas: ergonomia, gestão de design e usabilidade. Participa dos programas de Pós-Graduação em Design e Engenharia de Produção da UFSC. Faz parte do grupo de avaliadores do INEP/MEC e do Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina na avaliação de cursos.

Agradecimentos: Os autores agradecem ao CNPq pela bolsa de doutorado concedida a Clarissa Stefani Teixeira, que possibilitou o desenvolvimento do presente estudo.

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SERALE, D. Reciclar e colar: os papéis do compositor e do intérprete.... Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.107-111.

Recebido em: 29/10/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

Reciclar e colar: os papéis do compositor e do intérprete na criação colaborativa

Daniel Serale (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)[email protected]

Resumo: Este artigo analisa a interconexão entre compositor e intérprete no processo de criação colaborativa. Neste processo, exemplificado através da obra Recycling Collaging Sampling de Edson Zampronha, a interação de ambos papeis resulta em um trabalho cuja pertencência e autoria são igualmente compartilhados.Palavras-chave: criação colaborativa, interpretação, composição, Edson Zampronha, percussão.

Recycling and collaging:the roles of composer and performer inside a collaborative creation process

Abstract: This article analyzes the interconnection between composer and performer inside a collaborative creation process. In this process, exemplified through the Edson Zampronha’s work Recycling Collaging Sampling, the interaction between both roles results in a work which sense of belonging and authorship are equally shared.Keywords: collaborative creation, performance, composition, Edson Zampronha, percussion.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

1 - IntroduçãoEm 1955, quando a música eletrônica começava a dar os seus primeiros frutos maduros, Pierre Boulez, em seu artigo No limite do país fértil, chamava a atenção sobre os novos recursos tecnológicos que possibilitariam ao compositor criar seu próprio som, permitindo-lhe ter “uma ação direta sobre a qualidade de sua realização” (BOULEZ, 1996, p.88). Neste contexto, ainda de acordo com Boulez, “o compositor torna-se ao mesmo tempo executante enquanto que a execução, a realização em estúdio, adquire uma importância capital”.

Quinze anos mais tarde, em 1970, foi publicado o primeiro número da já desaparecida revista francesa Musique en Jeu. Nela, um artigo titulado Rèagir, assinado pelo compositor e trombonista Vinko Globokar, começa com estas palavras: “A interdependência entre compositor e intérprete tornou-se hoje um dos problemas fundamentais de nossa música” (GLOBOKAR, 1970)1. De forma lúcida e direta o autor reflete sobre essa interdependência e oferece sugestões técnicas, do ponto de vista compositivo, visando aprofundar a participação

do intérprete na criação musical. O resultado desse processo será um trabalho colaborativo pertencendo na mesma medida ao compositor e ao intérprete.

O intérprete começa a ser um pouco compositor e o compositor torna-se intérprete, os papéis de ambos se misturam fazendo com que a música se renove a cada performance. É nesse terreno onde iremos ingressar. Tendo como roteiro da nossa viagem o maravilhoso artigo de Globokar, iremos descobrir e exemplificar esta interdependência a partir da peça Recycling Collaging Sampling, do compositor Edson Zampronha2, na qual se manifestam alguns dos processos de criação colaborativa.

2 - Reciclar papéisRecycling Collaging Sampling é uma composição em três movimentos com duração total de 22’40”. Recycling, o primeiro movimento, composto para um a seis percussionistas, tem uma duração de 7’. Collaging, o segundo, foi composto para um a seis percussionistas e suporte sonoro, e tem uma duração de 11’20”. Sampling, o terceiro, é uma obra eletroacústica do gênero acusmática

“This work is not just our work any more, it becomes the work of all those who participate”.

(Vinko Globokar)

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3. Frequência Vs. Tempo – aplica-se às seções VII, VIII e IX: a imagem é lida de modo similar a uma partitura tradicional na qual um eixo representa a frequência e o outro representa o tempo.

“O intérprete se interessa especialmente por processos mais diretamente musicais, que o colocam em contato direto com o material sonoro” (GLOBOKAR, 1970).

Cada seção tem uma duração fixa preestabelecida e a transição de uma a outra é realizada sem interrupção, por isso a execução necessita de um relógio. A minutagem de início, o grupo de instrumento a ser utilizado, o tipo de ação a realizar e a duração de cada seção são apresentados em quatro colunas (Ex.2):

Seção IV

1:20 S / D4 Arranhar - variar baquetas 40”

Ex.2: A seção IV começa aos 1’20”, instrumentos de metal suspensos e peles são arranhados com diferentes

tipos de baquetas, e tem 40” de duração.

Em todas as seções a dinâmica resulta do modo como a imagem está sendo lida, do grupo de instrumentos usados e/ou das instruções referentes a cada seção. Criam-se desta forma “condições para que processos vivos e instáveis encontrem terreno fértil” nas mãos do intérprete (COSTA, 2002, p.6).

“Quanto mais queremos controlar o resultado, é consequentemente mais necessário sujeitar o intérprete a condições precisas, (...) ou dar indicações suplementares no caso das reações conduzirem a resultados ambíguos” (GLOBOKAR, 1970).

Na página de Instruções para Recycling cada seção recebe uma breve explicação. No caso do exemplo mencionado acima (Ex.2) lê-se: “Explore a produção de diferentes timbres arranhando os instrumentos de uma maneira variada e não repetitiva, e variando as baquetas” (ZAMPRONHA, 2006).

3 - Gesto, escrita e improvisaçãoFaremos agora uma parada em nossa viagem. Voltar-nos-emos sobre o termo gesto, aplicado às três primeiras seções de Recycling, procurando desvendar seu sentido e funcionalidade na obra.

O termo gesto, como a maioria dos termos usados na análise musical, é emprestado de seu sentido mais genérico e corporal e pode sugerir algo no sentido de um movimento que tem um percurso (começo, meio e fim) e que representa uma intervenção no ambiente, revestida de significado (COSTA, 2002, p.8).

O próprio autor, Edson Zampronha, explica como pode ser entendido o gesto na música contemporânea:

Um gesto pode ser associado ao movimento que o intérprete faz para produzir um som. Pode ser associado também à materialidade sonora, a qual se torna uma marca audível do gesto, ou inclusive o gesto mesmo. Em ambos os casos, o gesto está no limite entre materialidade sonora e significação musical (ZAMPRONHA, 2005).

(apenas sons pré-gravados sobre suporte), com duração de 4’20”. Cada um dos movimentos também pode ser interpretado como uma obra independente. Sobre a obra, o autor nos fala:

A obra demorou bastante para ser realizada. Recycling foi composta em 2000, e já nesta época elaborei o plano completo da composição (das três partes). Em 2004 tive a oportunidade de compor Sampling em Madrid. E em 2004 também fiz os sons eletroacústicos de

Collaging, também em Madrid (nos dois casos no LIEM-DCMC3). A percussão que toca com Collaging eu terminei em 2006 (...), porque o meu processo composicional depois de 2004 já estava bastante diferente do meu plano original de 2000, e tive que conseguir unir os dois processos nesta obra (ZAMPRONHA, 2008b).

Comecemos então por Rèagir:

“Outro meio para que o intérprete participe na criação de uma obra (…) consiste em convidá-lo a escolher entre um número limitado de diferentes possibilidades” (GLOBOKAR, 1970).

Em Recycling Collaging Sampling, tanto o número de intérpretes como o instrumental é de livre escolha dentro de certos limites. Cada intérprete deve contar com quatro grupos de instrumentos: Peles (exceto caixa), Metais suspensos, Metais não ressoantes e Madeiras; com aproximadamente cinco instrumentos em cada um, procurando realizar uma montagem variada em altura, timbre e espectro.

“Se pretendemos que o intérprete reaja, é preciso que lhe ‘enviemos’ um estímulo de origem visual ou acústica” (GLOBOKAR, 1970, grifo do autor).

Recycling é uma improvisação muito controlada que utiliza todos os instrumentos de percussão disponíveis, onde esta única e mesma imagem (Ex.1) é fornecida a todos os intérpretes como estímulo para a sua execução:

Ex.1: Imagem de Recycling.

Queremos o intérprete totalmente engajado, que não utilize apenas sua habilidade técnica na obra, mas também (...) seu ‘conteúdo psíquico’. Ao mesmo tempo queremos preservar a possibilidade de ‘conduzir’ – canalizar – as diferentes formas da sua participação (GLOBOKAR, 1970, grifo do autor).

A partitura é uma sequência de nove seções, agrupadas de três em três, que leem esta imagem de diferentes maneiras:

1. Gestos – aplica-se às seções I, II e III: a imagem é lida como a representação de gestos físicos realizados pelos intérpretes para executar os instrumentos.

2. Timbre – aplica-se às seções IV, V e VI: a imagem é lida associando-a a timbres que podem ser extraídos dos instrumentos.

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É o gesto (...) quem faz possível transformar (seria mais correto dizer re-significar, ou ainda, trans-criar), entre as possibilidades oferecidas pela materialidade sonora, o que é não-musical em musical. O processo de perceber esta transformação durante o processo de escuta é a essência do roteiro para as re-significações que implica. (...) De fato, os gestos devem estar muito perto da materialidade sonora, quase identificados com ela, para concretizar esta transformação, para serem atores deste roteiro (ZAMPRONHA, 2005).

Essa ideia reforça o aspecto prático, ativo e corporal da música. A escritura musical passa a entrecruzar aspectos temporais com aspectos espaciais, torna-se processual, assim como a própria realização da música na performance.

Pensar a composição como ação requer que se conceba de modo efetivo como uma determinada obra pode ser realizada, e a sua própria realização passa a ser parte da composição. Ou seja, dilui-se a linha que separa a composição da performance (IAZZETTA, 2007, p.139).

A escrita musical é um tema de principal importância na obra de Zampronha. Em relação a isso, o autor do livro Notação, Representação e Composição diz:

Quando se representa um determinado som, um conjunto de sons ou o modo como se produzem sons, você representa certos aspectos do fazer musical. E os aspectos que você consegue representar são aqueles possíveis de serem controlados. Se você não consegue representar de alguma forma certos aspectos do fazer musical, seja sob um suporte magnético, seja sob um suporte gráfico, seja na própria imaginação (representação mental) ou seu próprio corpo em interação com um instrumento, você não tem controle sobre eles. Para realizar uma composição, você tem que ter controle sobre aspectos representáveis do fazer musical, que são muito importantes porque através desse controle você pode trabalhar a sensibilidade de maneira específica (ZAMPRONHA, 2008a).

Embora Recycling seja uma obra muito controlada em certos aspectos, nem por isso deixa de ter espaços a serem preenchidos pela criatividade do(s) intérprete(s). De novo concordando com GLOBOKAR:

Buscamos meios técnicos que estimulem ao intérprete uma participação extremamente engajada e que ao mesmo tempo eliminem (...) o uso de clichês pessoais. (...) Esta técnica deve possibilitar um vai-e-vem dinâmico entre situações de máxima responsabilidade do lado do intérprete e outras nas quais o intérprete apenas reproduza uma música totalmente fixa/composta (1970).

O fato de o intérprete reagir a um modelo que, após alguns ensaios, se tornará conhecido ou previsível, leva em si o perigo da perda de espontaneidade e a inclusão de clichês pessoais. Para neutralizar esse efeito é preciso partir de uma escuta intensa, reduzida5, que se centre nas qualidades propriamente sonoras das ações instrumentais e expandir as possibilidades do instrumento. Estimulado, o intérprete encontra, racional, ou mais frequentemente, instintivamente, novas soluções, as quais ampliam as suas limitações pessoais. Além disso, em Recycling, é o “gesto instrumental, automático, intuitivo e ‘impensado’, que gera figuras e texturas no decorrer da performance” (COSTA, 2007, p.163, grifo do autor). Ante a possibilidade de ampliar até seis o número de intérpretes, o acaso aumenta e a improvisação se enriquece.

Nas improvisações coletivas surgem, também, elementos imprevisíveis que vão condicionar todo o presente da improvisação. São os “erros”, as sensações que aparecem sem ser chamadas (sem intencionalidade), os sustos e as surpresas com as respostas imprevistas dos outros músicos. Estes são elementos que têm potência de primeira vez. Eles fazem surgir as linhas de fuga que dinamizam o presente (COSTA, 2002, p.11, grifo do autor).

Inevitavelmente emergirá, na performance, o rosto biográfico de cada músico. Ou seja, os aprendizados e repertórios, a personalidade, o passado de cada um. Parafraseando COSTA (2007), a preocupação passa a ser como se livrar dessas “camadas de tinta”, dos vícios e manias que o intérprete carrega. Por isso, trata-se de pensar na potência e no devir a partir de forças armazenadas; pensar no passado como potência dinâmica. Só podemos criar a partir de nossas identidades, nossos rostos e subjetividades.

O preto sobre o branco da partitura não constitui mais que um aspecto, em torno do qual pode ser encontrado o espaço onde o intérprete é induzido a uma adesão total, consciente, à obra.

Com um tal nível de consciência não há mais lugar para os esquemas formais mais simples da percepção, já que são chamados como que todos os nossos sentidos para apreender e consumar o objeto estético, produzindo-se, pois, uma completa unidade de nosso ser, de nossa consciência: uma adesão criativa (BERIO, 1996, p.122).

A obra se cria e recria a cada performance, sendo todas elas igualmente autênticas, consequência da ausência de um modelo unívoco. A execução é, simultaneamente, interpretação e criação.

4 - Colar papéisFalaremos agora de como podem ser manifestados os processos de criação colaborativa na música eletroacústica. Para começar, escutemos o que o próprio compositor tem para dizer sobre o processo de criação da parte acusmática de Collaging e Sampling:

Os sons eletroacústicos tanto de Collaging como de Sampling foram compostos a partir de sons de percussão, mas também de sons concretos. No entanto, o tratamento é diferente para os sons gravados de percussão e os sons concretos. No caso dos sons de percussão, eles são transformados até certo ponto. De alguma maneira ainda se escuta que são sons de percussão, mas também se nota que são bastante diferentes. Se a percussão é o instrumento ao vivo, os sons eletroacústicos são uma camada de sons diferentes que possuem similaridade com a percussão quanto ao timbre, mas que expandem o universo da percussão através do uso de timbres diferentes (ZAMPRONHA, 2008b).

Como lembrava Boulez, citado no início deste trabalho, na música eletrônica é necessário que o compositor construa cada som que tem intenção de empregar, tornando-se também assim executante, na medida em que há ação direta sobre a qualidade de sua realização na performance. Essa dualidade, compositor-intérprete, é ainda mais complexa quando a matéria prima na construção do som é a gravação de sons executados por outros intérpretes. A imbricação entre ambos aumenta, em um espiral que parece sem fim, quando esses intérpretes

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estavam tocando outra obra do compositor, como ocorre no caso de Collaging. Para esclarecer, nada melhor que as palavras do compositor (que é o executante, que é compositor...) Edson ZAMPRONHA:

Os sons eletroacústicos de percussão foram resultados de algumas gravações que fiz na UNESP (Instituto de Artes) em diversas ocasiões, e outras gravações mais antigas que eu tinha de quando havia regido lá mesmo músicas minhas. Não há um percussionista em particular que tenha gravado estes sons porque não gravei os instrumentos um a um. Os sons gravados são de diversos instrumentos de uma só vez, misturas complexas de timbres (2008b).

Além destes sons utilizei também sons que gerei através de equações da teoria do caos gerando sons com características percussivas (...) e sons urbanos (de britadeira e de montanha russa, por exemplo). Isso ocorreu assim em função das condições de composição dos sons eletroacústicos desta obra. Fui escutando gravações minhas e extraindo materiais que eram convenientes para a obra (2008b).

De maneira espontânea, e por isso contundente, o compositor é retratado no papel de executante, realizando seu trabalho no estúdio. Em suas próprias palavras:

No caso dos sons concretos, vou fazer uma analogia. Imagine que os sons concretos são as baquetas de percussão e os programas de computador sejam os instrumentos. Diferentes sons concretos podem ser o input dos mesmos programas, assim como diferentes baquetas podem fazer soar os mesmos instrumentos. A função dos sons concretos não é criar uma similaridade tímbrica com os instrumentos de percussão, mas morfológica. Nesse caso, um som de britadeira se converte em trêmolo, um carrinho descendo uma montanha russa se converte em sforzatos, e assim por diante (ZAMPRONHA, 2008b).

Difícil, e até desnecessário, tentar estabelecer exatamente em que ponto termina a ação do compositor e começa a do intérprete, uma vez que essas atividades estão completamente integradas. O próprio processo digital empregado na obra permite confundir os elementos de composição e performance. “Ao mesmo tempo em que as tecnologias digitais introduzem elementos ‘virtuais’ nas performances, elas podem também amplificar as relações entre os diversos participantes envolvidos” (IAZZETTA, 2007, p.137).

Em 1955, Boulez afirmava que as maiores divergências entre o corpo sonoro natural e o eletrônico se manifestavam através do timbre. A confrontação entre esses dois universos, visando construções multidimensionais, é o desafio que ele lançou ao concluir No Limite do País Fértil. Cinquenta anos depois, Collaging faz eco:

O modo como trato os sons eletroacústicos é profundamente instrumental. O que une a diversidade dos sons eletroacústicos é que todos estão filtrados por uma única harmonia (através de filtros ressonantes). Assim, qualquer som que seja, sempre se encaixará nesta harmonia, o que gera uma grande coerência dos timbres para a escuta. Esta harmonia é onipresente, por isso ela não é percebida exatamente como tal. No entanto ela é fundamental para esta fusão, e para fundir os instrumentos com os sons eletroacústicos. Já os sons da percussão ao vivo estão pensados em termos de regiões, para que possam preencher os diferentes campos desta harmonia com timbres ricos em harmônicos. Neste caso, no que se refere à harmonia, a percussão enriquece as notas desta harmonia, e gera um resultado harmônico ainda mais complexo (ZAMPRONHA, 2008b).

Tradicionalmente, o ouvinte pode estabelecer uma conexão direta entre o que é ouvido e os gestos feitos pelo intérprete em seu instrumento. Em peças como Collaging, os sons eletroacústicos e os produzidos ao vivo pelo(s) percussionista(s) são emitidos simultaneamente, criando zonas de ambiguidade (IAZZETTA, 2007), onde o público é exposto a diferentes tipos de material. Existe a ação dos músicos e existe o material que é pré-produzido em estúdio e difundido durante o espetáculo. A “interconexão entre elementos visuais e sonoros (...) [é usada] para criar essas zonas de indefinição, em que o público não pode diferenciar entre o que está sendo produzido (...) [no palco] e o material que foi previamente gerado” (IAZZETTA, 2007, p.132).

Finalmente, apesar do último movimento, Sampling, ser uma obra acusmática, sua difusão em tempo real após Collaging traz um elemento a mais. Nela, em silêncio, sem tocar os instrumentos, os percussionistas devem apelar à sua criatividade para encontrar diferentes e interessantes soluções que justifiquem sua presença no palco. Zampronha indica que em todos os casos deve haver uma mudança na iluminação (modificar as cores ou diminuir parcial ou totalmente), e deixa à escolha dos intérpretes a possibilidade de sair ou permanecer no palco. Assim, uma obra acusmática, à primeira vista tão fechada ou definitiva como qualquer uma de seu tipo, abre-se a novas interpretações ao somar o elemento visual, reconhecer a importância e o peso da presença física do intérprete no palco, e deixá-lo lidar livremente com esses elementos. Ao mesmo tempo, o espectador não é mais só um ouvinte, sendo estimulado a participar visualmente do processo criativo da obra.

O encontro orgânico entre sons naturais e sons sintéticos é logrado. O contraste entre música gravada e música executada ao vivo é superado integrando-as, como vislumbrara Berio em 1959. O gesto, a presença física do intérprete, completando a obra.

Uma única dimensão musical cuja complexidade e multiplicidade referencial poderão incluir de modo contínuo não somente todos os fenômenos sonoros de nosso mundo audível, mas a ação, a presença mesma do intérprete que toca ou canta, (...) totalmente incorporadas a essa ampliação de práxis musical. O ouvinte será posto cada vez menos na condição de dever fechar os olhos a fim de se entregar aos sonhos musicais: ele será convidado pela própria situação a participar conscientemente da ação (BERIO, 1996).

Para que tudo isso seja possível, é necessário que cada experiência seja conduzida por todos os músicos participantes do processo de criação. As palavras de ZAMPRONHA (1998) são eloquentes, “a obra deixa de existir como um objeto dado e se torna um objeto possível, um contínuo de possibilidades que incorpora o observador na sua própria constituição, seja ele o intérprete, o ouvinte ou o próprio compositor”. Compositor e intérpretes trocando, compartilhando e reciclando papéis por meio de um contato vivo e permanente com a matéria sonora, tão vivo e permanente como a obra que é engendrada, obra que é sempre possibilidade.

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ReferênciasBERIO, Luciano. Poesia e música. Uma experiência In: MENEZES, Flo. Música Eletroacústica – História e Estéticas. São

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Paulo: Edusp, 1996, p.87-96.COSTA, Rogério. Livre improvisação e pensamente musical em ação: novas perspectivas. (Ou, na livre improvisação no se

deve nada) In: FERRAZ, Silvio (Org). Notas Atos Gestos. São Paulo: 7Letras, 2007, p.143-177.______. O ambiente da improvisação e o tempo. Per Musi. Belo Horizonte, v.5/6, 2002, p.5-13. EARS: ELETROACOUSTIC RESOURCE SITE. Disponível em: <http://www.ears.dmu.ac.uk/spip.php?page=rubriqueLang&lang=fr&id_rubrique=219#top>. Acesso em: 29 mai.2009. GLOBOKAR, Vinko. Reacting. In: International Improvised Music Archive Home Page. Disponível em: < http://www20.

brinkster.com/improarchive/vg_reacting.htm>. Acesso em: 10 set.2008.IAZZETTA, Fernando. Composição e performance interativa In: FERRAZ, Silvio (Org). Notas Atos Gestos. São Paulo: 7Letras,

2007, p.117-141.ZAMPRONHA, Edson. Notação, representação e composição: um novo paradigma da escritura musical. 1998. Tese

(Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, Disponível em: <http://www.ppgcom.ufrgs.br/v1/nucleoinfo/zampronha-pucsp98.htm>

______. Gesture in Contemporary Music. On The Edge Between Sound Materiality And Signification. In: Revista Transcultural de Música/Transcultural Music Review v.9, 2005. Disponível em: <http://www.sibetrans.com/trans/trans9/zanpronha.htm>

______. Recycling Collaging Sampling. Para percussão e sons eletroacústicos. Propriedade do autor, 2006. 1 partitura (26 p.).

______. Depoimento; Edson Zampronha. In: Música Contemporânea Brasileira 1: Flo Menezes e Edson Zampronha. Coleção Cadernos de Pesquisa-Centro Cultural São Paulo, 2008a. Disponível em: <http://www.centrocultural.sp.gov.br/cadernos/lightbox/lightbox/pdfs/M%FAsica%20Contempor%E2nea%201a.pdf#page=59>

______. Publicação eletrônica [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por [email protected] em: 23 nov.2008b.

Notas1 Tradução do autor, a partir da versão em inglês de Carl Bergstroem-Nielsen do original em francês publicado em Musique en jeu 1, 1970.

2 Edson Zampronha é Doutor em Comunicação e Semiótica - Artes - pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor do livro Notação, Representação e Composição - um novo paradigma da escritura musical. É Professor Convidado no Departamento de História e Ciências da Música da Universidade de Valladolid, Espanha e foi Professor de Composição Musical na Universidade Estadual Paulista, Brasil, por 16 anos.

3 Laboratorio de Informática y Electrónica Musical, del Centro para la Difusión de la Música Contemporánea.

4 Em Recycling a partitura faz referência a cada grupo de instrumentos da seguinte maneira: D, peles; S, metais suspensos; NRW, metais não ressonantes e madeiras; correspondentes ao inglês Drums, Suspended e No Resonant/Woods.

5 Na teoria schaefferiana a escuta reduzida é a atitude de escuta que consiste em ouvir o som em si, como objeto sonoro, fazendo abstração da sua proveniência real ou suposta, e do sentido que possa ter (EARS, 2009).

Daniel Serale é Bacharel e Licenciado em Artes Musicais, especializado em Percussão pelo Instituto Universitário Nacional da Arte da Argentina; e Mestre em Música pelo Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO, com a pesquisa Performance no Teatro Instrumental: o repertório brasileiro para um percussionista. Em 2008 lançou seu CD Vibrafonauta, com peças inéditas para vibrafone solista, e em 2011, o Fundo Nacional das Artes (Argentina) publicou seu livro Música contemporánea argentina para percusión solo, acompanhado de um CD com obras de destacados compositores argentinos.

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RÓNAI, L. Análise de uma análise: Tarasti e Liszt. Per Musi, Belo Horizonte, n.25, 2012, p.112-116.

Recebido em: 29/10/2010 - Aprovado em: 18/04/2011

Análise de uma análise: Tarasti e Liszt

Laura Rónai (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)[email protected]

Resumo: Em seu livro basilar, A Theory of Musical Semiotics, Eero Tarasti empreende a análise semiótica da obra para piano Vallée d’Obermann, do compositor Franz Liszt. Num processo de arguta arqueologia musical, o autor desvenda as várias camadas que colorem a escrita do compositor húngaro. O presente artigo pretende fazer observações à margem deste texto, procurando detalhar e comentar a análise de um dos mais importantes teóricos da semiologia. Palavras chave: Liszt; Tarasti; Semiologia musical; Vallée d’Obermann.

Analysis of an analysis: Tarasti on Liszt

Abstract: In his fundamental book, A Theory of Musical Semiotics, Eero Tarasti endeavors to analyze Liszt’s piano work Vallée d’Obermann from the point of view of semiotics. In a process of clever musical archaeology, the author reveals the many layers that color the score of the Hungarian composer. The present article intends to make a few observations at the margin of this text, trying to detail and comment the analysis by one of the most important Semiotics theorists in the world. Keywords: Liszt ;Tarasti; musical semiotics; Vallée d’Obermann.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

O presente artigo tem como objetivo comentar a análise de uma peça musical do século XIX sob a luz de uma obra literária contemporânea. Talvez mais importante do que nos atermos aos detalhes das obras em questão seja usarmos esses detalhes como indicadores – símbolos – de um tipo de análise que o musicólogo finlandês Eero Tarasti classifica como semiótica, mas que para nós, músicos, já é uma antiga conhecida. Voltamos à ideia de Gino STEFANI, de um fenômeno acontecendo em camadas de sedimentação (1987, p.7-22). O que Tarasti faz é revolver a terra e olhar, com um cuidado particular, para algumas das camadas que participam da elaboração da obra musical.

O período romântico valorizava o traço literário, que aplicava a todas as outras artes. Aliás, desde o barroco, música, retórica, literatura pertenciam a um mesmo caldo cultural, no qual todos os homens ditos cultos

estavam mergulhados. Saber escrever, apreciar literatura e música eram atividades conectadas e esperadas de alguém que tivesse uma pretensão intelectual mínima. Não é à-toa que livros escritos por compositores – Da arte de tocar flauta, de Quantz, ou as Memórias, de Berlioz, tenham, além do óbvio interesse histórico-musicológico, um valor literário real. Esta abrangência cultural se torna ainda mais valorizada no século XIX. Ao discorrer sobre a natureza do Romantismo, Donald Jay GROUT (1964, p.110) observa:

Além do mais, uma grande parte dos principais compositores românticos eram extraordinariamente articulados e interessados na expressão literária, e muitos dos principais novelistas e poetas românticos escreveram sobre música com grande amor e percepção. O novelista E. T. A. Hoffmann era um bem-sucedido compositor de óperas; Weber, Schumann e Berlioz escreveram excelentes ensaios sobre música; Wagner era poeta, ensaísta e filósofo, além de compositor.1

A grandeza da verdadeira arte [...] consiste em captar, fixar, revelar-nos a realidade longe da qual vivemos, da qual nos afastamos cada vez mais

à medida que aumentam a espessura e a impermeabilidade das noções convencionais que se lhe substituem, essa realidade que corremos o risco de

morrer sem conhecer, e é apenas nossa vida, a vida enfim descoberta e tornada clara, a única vida, por conseguinte, realmente vivida, essa vida, que, em certo sentido, está sempre presente em todos os homens e não apenas nos artistas.

Mas não a vêem, porque não a tentam desvendar. PROUST (2002, p.289)

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forte de jornada interior, busca do “eu”, questionamento da Verdade, indagação metafísica. O sistema tonal, com uma espécie de centro de gravidade (o lar, o torrão natal) em torno do qual se desenvolve uma “viagem” para lugares mais ou menos exóticos, mais ou menos distantes, serve de veículo perfeito para este simbolismo.

Segundo TARASTI (1994, p.181), “quando Liszt e d’Agoult deixaram Paris, eles interpretaram um dos epistemas centrais da cultura Romântica; a ideia de vagar a esmo.”5

O outro epistema central em torno do qual revolve a peça em questão, acrescento eu, é o da exaltação da Natureza como meio de se chegar a uma Verdade interior.

O século XIX foi o século da paixão pela natureza. Enquanto que, para o homem do século XVIII, a natureza era ameaçadora, desconhecida, vista geralmente como fonte de temor ou no máximo como paisagem bucólica para o desenrolar de amores pastoris, a partir de Rousseau a Natureza passa a ser glorificada, engrandecida e idealizada. Cada vez mais distante da Natureza na prática, o homem romântico passa a considerá-la como refúgio e revelação, inspiração e poder. Esta visão mais mística da Natureza está presente em toda a arte do século XIX – seja na pintura, na literatura ou na música.

É interessante observarmos, também, que a paixão pela Natureza se revela não apenas como uma paixão pela natureza exterior, mas, sobretudo, pela natureza interior. O homem romântico tem como tema a reflexão sobre a sua própria natureza de homem que está disposto às “paixões”, vide Schopenhauer e Nietzsche. TARASTI (1994, p.183) cita Marta Grabócz, ao dizer que:

Esta obra já inclui todas as isotopias centrais Lisztianas; a isotopia de uma pergunta Faustiana, ou “Por quê?”, uma procura por algo; a isotopia da expressão pastoral; o sentimento panteísta de natureza e exaltação; expressão religiosa; dor; tormenta e luta macabra; e heroísmo. Grabócz ressalta que todas estas isotopias estão presentes de algum modo em Vallée d’Obermann, assim como técnicas de variação de caráter. Ainda por cima, a maior parte destas isotopias se encontra na novela de Sénancour, assim como nas memórias de Marie d’Agoult, que refletem fielmente o conteúdo do livro.6

Tarasti oferece fragmentos de Sénancour e de d’Agoult que servem como interpretantes e símbolos das isotopias na música. Algumas dessas isotopias são quase que padronizadas: texturas corais como símbolos para a religiosidade; uso de formatos melódicos que ilustram os acidentes geográficos (recurso já muito utilizado por compositores barrocos)7, repetição de figuras e harmonias como isotopia para tédio, uso de cromatismo como signo para busca, dissonâncias para inquietude, e assim por diante. Lizst, compositor complexo que é, incorpora recursos de expressão das paixões interiores e frequentemente superimpõe duas ou mais isotopias. Descobrir os símbolos e ícones que predominam torna-se assim uma espécie fascinante de exercício de detetive; identificação de suspeitos, procura de indícios, desenvolvimento de raciocínio dedutivo, dissecção de motivos e álibis.

No caso de Vallée d’Obermann, Tarasti se debruça sobre uma das peças de Liszt que este escreveu durante uma viagem que empreendeu com sua amante, a condessa Marie d’Agoult, em 1836. Esta peça pertence ao álbum Années de Pèlerinage, e contém epígrafes da novela de Étienne de Sénancour, Obermann, que ambos, Franz e Marie, estavam lendo durante a jornada. Durante este período, Marie d’Agoult escreveu memórias detalhadas, e repletas de reflexões fortemente baseadas no estilo literário de Sénancour. Em Obermann, a trama gira em torno da figura central do romantismo, o Herói Solitário. Nas memórias da condessa, este herói é o próprio amante, Franz Liszt. Segundo TARASTI (1994, p.181):

O comportamento de Liszt e Marie d’Agoult pode ser caracterizado de semiótico ou pelo menos de fortemente simbólico. Como verdadeiros românticos, eles tendiam a se identificar com os protagonistas das novelas que liam, e a moldar suas próprias vidas e atos por imitação aos modelos literários.2

A questão do imbricamento da vida com a arte tem neste período uma importância decisiva: A arte é a arte da imitação da vida? Ou da vida que imita a arte? Os limites entre arte e vida, poesia e literatura, entre pessoa e personagem, se tornam cada vez menos delineados. O próprio Liszt vivia este esfumaçamento – sua “persona” pública tinha contornos bem mais definidos do que o homem propriamente dito, e ele mesmo circulava em um meio em que pessoa e personagem frequentemente se confundiam ou se super-impunham (lembremos aqui de George Sand, para nos atermos apenas ao caso da amiga próxima do compositor). Mais uma vez, vale à pena citarmos GROUT (1964, p.108-109.):

[...] a impaciência romântica em relação a limites leva a uma quebra de distinções. A personalidade do artista tende a se fundir com a obra de arte; a clareza clássica é substituída por certa obscuridade intencional, enunciados claros por sugestões, alusões ou símbolos. As próprias artes tendiam a se fundir; a poesia, por exemplo, pretende adquirir as qualidades da música, e a música as qualidades da poesia.3

No presente caso, há uma série de interpretantes. Liszt se vale do texto sobre uma determinada paisagem para chegar mais perto – em termos de interpretação – da própria paisagem em que se encontra.

Não devemos nos esquecer, além do mais, de que Liszt era húngaro. E os húngaros têm com a literatura toda uma relação especialíssima. Sendo um povo de língua singular, não irmanada a qualquer outra existente, os húngaros consideram a língua o fator máximo de identidade nacional4. É a literatura a arte mais prezada, os poetas e os declamadores de poesia os verdadeiros ídolos populares – até os dias de hoje. É a língua o repositório da sobrevivência real do povo. Não é de se espantar, portanto, que as leituras causassem em Liszt impressão indelével, e que este tomasse imagens literárias emprestadas como fonte de inspiração musical.

Uma das imagens mais características do romantismo é a da VIAGEM – a viagem física tendo uma carga simbólica

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Tarasti dedica o resto do artigo a descrever as isotopias básicas de Vallée d’Obermann. Tendo a narrativa um herói solitário, nada mais natural que a peça seja monotemática. O teórico finlandês afirma que isto também é uma estratégia composicional básica. Quanto mais os eventos se baseiam em uma iconicidade estável mais o ouvinte percebe a estratégia básica da peça. TARASTI (1994, p.184) divide a peça em cinco seções, “todas caracterizadas por uma única expressão estética e uma estratégia textual que manifesta esta expressão”.8

A primeira isotopia (p.185) é a do tédio – apesar da natureza fragmentária e hesitante, o estado de espírito principal é melancólico. A isotopia II (p.186) é a do perambular, e cria contraste com a estagnação da primeira, tendo fluidez e continuidade, o ator/tema se fundindo ao cenário. O movimento melódico é descendente (menos tenso) e ritmicamente menos conflitado. A isotopia III (1994, p.186-7) é da luta, da tempestade. Explosões e conflitos temáticos são introduzidos na primeira isotopia, sendo que o tema/personagem aqui se destaca dramaticamente do fundo. A isotopia IV (1994, p.187) é a pastoral.

Caracteristicamente Lisztiana, quase uma visão à distância dos acontecimentos. A última isotopia é a ‘apoteose panteísta’, ou exaltação, que mimetiza o modelo estético de Sénancour.

Bem dissecados são ainda os métodos composicionais do autor – um mapeamento de seu universo sonoro, em que técnicas pianísticas, extensão melódica, sinais de dinâmica, uso de tonalidade e de pausas e indicações de interpretação são considerados sob a luz do contexto/texto em que se inserem. A actoralidade do tema fica bem clara, e se compreende que às vezes um mesmo signo pode criar reações diversas propositalmente (1994, p.190).

TARASTI (1994, p.184) comenta ainda uma análise do livro de Sénancour em que a autora, Irene Schärer, estuda as estruturas geográficas das paisagens percorridas por Obermann. Como diz o autor, mesmo neste nível se podem apontar semelhanças recorrentes entre o texto literário e seu espelho musical: “O tema de Obermann pode ser considerado uma imagem icônica do próprio vale, e o uso de vários registros da peça ilustra os picos e planícies destas paisagens”.9 Aqui chegamos ao campo da música de programa, termo que no século XIX denotava um tipo de música instrumental fortemente associado a idéias poéticas, descritivas ou narrativas.

A ideia em si não era nova – a música barroca está repleta de exemplos em que a música reflete um texto (as Quatro Estações de Vivaldi, apenas para darmos um dos exemplos mais conhecidos). Mas os meios românticos diferem dos do barroco; ao invés de imitações da natureza, cantos de pássaro, e recursos do gênero, é o “cenário” musical que é evocativo, ou aquilo que Grout chama de “sugestões da imaginação”. Como observa André GAUTHIER(1972, p.28):

Sem ser, como poderíamos ficar tentados a pensar, “música de programa”, este caderno de Années de Pèlerinage vê, no melhor sentido desta expressão, nascer a introdução da literatura na música e responde, sob todos os aspectos, ao espírito em que Liszt havia (anteriormente) abordado a Itália e suas maravilhas.10

Novamente o que me parece mais importante na análise de Tarasti é que este enfatiza, nesta evocação da natureza, um jogo infinito de espelhos: a música de Liszt reflete a obra de Sénancour, que por sua vez reflete uma viagem dentro de uma paisagem. Esta obra é mais uma vez refletida nos diários de Marie d’Agoult. E esta viagem, por seu turno, simboliza uma viagem pelos meandros da própria alma humana. Esses vários níveis de representação se confundem, interagem, e retornam ao ponto de partida, numa imagem que podemos, por nossa vez, pedir emprestada à música: a de um cânone perpétuo. Homem plenamente inserido no Romantismo, Liszt busca ampliar com sua música o sentido mais intrínseco da vida. Passa a ser um “tradutor” deste sentido para o ouvinte, e chega mesmo a formular um programa articulado (em seis artigos datados de 1835, portanto um ano antes de sua peregrinação à Suíça e da composição de Vallée d’Obermann) para uma nova relação entre música e sociedade, resultado de uma grande “síntese religiosa e filosófica”. Nesta relação, o artista assume a posição mais alta, quase sacerdotal, a de responsável pela elevação moral da sociedade.

Ao analisar a obra de Liszt sob seus vários aspectos semiológicos, Tarasti aponta para este tipo de conclusão, que relaciona o Homem a seu meio e a sua época. Uma das resultantes importantes deste tipo de análise é perceber, às vezes de forma tênue, às vezes com clareza suficiente, qual era o papel da Arte para os diferentes autores enfocados. No caso de Liszt, a função da arte parece ser a de dar ou buscar sentido para a vida. Como não podia deixar de ser, para um romântico, um ato grandioso, de heroísmo – a música não é um ente abstrato em si, que surge do nada para nada. Aqui me ocorre comparar esta concepção com a visão mais moderna, de Cecília MEIRELES (1972, p.227), por exemplo:

Eu canto por que o instante existee a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. ...Sei que canto. E a canção é tudo.Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo:– mais nada.

Ou a intimista, de Fernando PESSOA (1976, p.203):

Ser poeta não é uma ambição minhaé a minha maneira de ficar sozinho

Não deixa de ser curioso encontrarmos, no próprio TARASTI (1994, p.276), a seguinte citação de Wolfgang Rihm: “Quando a música pode se originar de si mesma

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e significar alguma coisa, então ela me diz algo sobre pátria, amor e morte. Isso é antigo e simples”.11 TARASTI comenta (1994, pp.276-277):

A afirmação de Rihm pode levar alguns estetas, teóricos de música assim como compositores, ao desespero, especialmente numa época em que os pós-modernistas deram sua permissão para que sejam usados elementos musicais simples e antigos e até mesmo escrever tonalmente, mas apenas a serviço da ironia ou da paródia – não se pode mais fazer poemas com rima, pintar quadros representacionais, ou construir casas góticas!12

Em um autor que se empenha em análises extremamente complexas e por vezes bastante subjetivas e distanciadas da prática musical pura e simples, é refrescante nos

depararmos não apenas com um senso de humor atuante, mas também com uma dose de lúcida sensatez. A sutil piscadela de olho trocada entre Tarasti e seu leitor prova que, mais do que uma ferramenta árida para incitar discussões intelectualóides, a análise semiológica realmente rica ajuda a apontar distinções finas de concepção entre os vários artistas, ao situá-los num panorama que é maior do que apenas aquele determinado pelos aspectos técnicos ou composicionais de sua arte. No caso de Liszt, cotejar sua música com o texto literário na qual se inspirou facilita, em diversos níveis, a compreensão do que o artista pretendia com sua obra, e de que maneira esta se inseria em seu tempo e na paisagem social circundante.

Referências ASCHER, Nelson. Contos húngaros. Introdução. Tradução e seleção de Paulo Schiller. Ed. Hedra: 2010.BERLIOZ, Hector. Mémoires (1865), Paris, Éditions Flammarion, 2000MEIRELES, Cecília. Poesia Completa (Viagem, 1939), Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2001.GAUTHIER, André. Liszt, Classiques Hachette de Musique, Paris, Hachette, 1972.GROUT, Donald. “The Nature of Romanticism” in GERBOTH, Walter et al. An introduction to music - Selected Readings,

Nova Iorque, W.W. Norton, NY, 1964.PESSOA, Fernando. Obra Poética (Poemas completos de Alberto Caeiro), Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1976. PROUST, Marcel. “Le Temps retrouvé” in A la recherche du Temps perdu, Paris, Éditions GF Flammarion, 2002. QUANTZ On Playing the Flute, traduzido para o inglês por Edward Reilly, Londres, Faber and Faber, 1966.SENANCOUR, Étienne Pivert de. Obermann (1804), traduzido para o inglês por Arthur Edward Waite, Montana, Kessinger

Publishing, 2003.STEFANI, Gino. A theory of musical competence. Semiotica. v. 66, n. 1/3, p.7-22 Amsterdam, Mouton de Gruyter, 1987.TARASTI, Eero. A Theory of Musical Semiotics, Indiana, Indiana University Press, 1994.

Notas1 Furthermore, a large number of the leading composers were extraordinary articulate and interested in literary expression, and many leading

Romantic novelists and poets wrote about music with deep love and insight. The novelist E. T. A. Hoffmann was a successful composer of operas; Weber, Schumann, and Berlioz wrote distinguished essays on music; Wagner was a poet, essayist and philosopher as well as a composer.

2 […] the behavior of Liszt and Marie d’Agoult can be characterized as semiotic or at least strongly symbolic. As true Romantics, they were inclined to identify themselves with the protagonists of novels they read and to fashion their own lives and acts by imitating their literary models.

3 The Romantic impatience of limits leads to a breaking down of distinctions. The personality of the artist tends to become merged with the work of art; classical clarity is replaced by a certain intentional obscurity, definite statement by suggestion, allusion or symbol. The arts themselves tend to merge; poetry, for example, aims to acquire the qualities of music, and music the characteristics of poetry.

4 - Segundo ASCHER (2010, p.10), “Graças a sua peculiaridade idiomática, os húngaros se vêem como um povo isolado num mar de falantes de línguas germânicas, eslavas e latinas, situação esta que os levou a tomar, nos dois últimos séculos, a sobrevivência lingüística como um sinônimo da sobrevivência nacional, e a dar grande importância à própria literatura e à sua qualidade.”

5 When Liszt and d’Agoult left Paris to begin their aimless travels, they enacted one of the central epistemes of Romantic culture: the idea of wandering.

6 […] this piece already includes all the central Lisztian isotopies, the isotopy of a Faustian question, or “why,” a quest for something; the isotopy of pastoral expression; the pantheist feeling of nature an exaltation; religious expression; sorrow; storm and macabre fight; and heroism. [...] Grabócz points out that all these isotopies are to some degree present in Vallée d’Obermann, along with techniques of character variation. Moreover, most of isotopies can also be found in the novel by Sénancour and in d’Agoult’s memoirs, which faithfully reflect the book’s contents.

7 Na ária Ev’ry valley, do Messias de Handel, por exemplo, a pintura de palavras é constante e clara – “the crooked” é representado por appoggiaturas superiores, “the rough places plain” pronunciado na mesma nota si, repetidam e assim por diante.

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8 All characterized by a unique aesthetic expression and a textual strategy manifesting that expression.

9 The theme of Obermann can be considered an iconic image of the valley itself, and the use of various registers throughout the piece illustrates the peaks and valleys of those landscapes.

10 Sans être, comme on serait tenté de penser, de la “musique à programme”, ce deuxième cahier des Années de Pélerinage voit, dans le meilleur sens de l’ expression, l’introduction de la littérature dans la musique et répond, en tout point,à l’esprit dans lequel Liszt avait abordé l’Italie et ses merveilles.

11 When music can come out of itself and convey something, then it tells me something about country, love and death. This is old and simple.

12 Rihm’s statement might drive some aestheticians, music scholars as well as composers, to despair, especially at a time when postmodernists have given permission to use old, simple musical elements and even to write tonally, but only in aid of irony or parody – one can no longer seriously write tonally, make poems with rhymes, paint representational paintings, or build Gothic houses!

Laura Rónai é flautista, tendo se formado em Licenciatura em Música pela UNIRIO e em Flauta pela State University of New York. Obteve título de mestrado em música na City University of New York (Hunter College) e de doutorado em Práticas Interpretativas na UNIRIO. Ministrou cursos no Real Conservatório Superior de Madrid e, nos EUA, nas universidades de Rutgers e Princeton. Visitou a Inglaterra, a convite do British Council, e tocou recitais nos EUA e na Europa. Toca em duo com a pianista Ruth Serrão e com a cravista Sula Kossatz, com quem integra os grupos de câmara Sine Nomine e Re-Toques. Dirige a Orquestra Barroca da UNIRIO e é crítica musical para a revista norte-americana Fanfare. Atualmente é responsável pela cadeira de flauta transversal e professora do Programa de Pós Graduação em Música da mesma instituição.

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Recebido em: 03/02/2011 - Aprovado em: 18/04/2011PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

Los caminos de la música, Europa y Argentina: una iniciativa editorial a imitarFátima Graciela Musri (Universidad Nacional de San Juan, San Juan, Argentina)[email protected]

Resumen: Reseña del libro Los caminos de la música. Europa y Argentina de Pablo BARDIN, Melanie PLESCH, Pola SUÁREZ URTUBEY, Federico MONJEAU, Pablo KOHAN, Pablo GIANERA. Jujuy : EdiUnju (Editorial de la Universidad Nacional de Jujuy), 2008, 227 pp.Palabras-clave: Música argentina; música académica; vanguardias; tango; literatura.

Los caminos de la música, Europa y Argentina: an editorial initiative to be followed

Abstract: Review of the book The paths of the music. Europe and Argentina of Pablo BARDIN, Melanie PLESCH, Pola SUÁREZ URTUBEY, Federico MONJEAU, Pablo KOHAN, Pablo GIANERA. Jujuy : EdiUnju (University Press of Jujuy), 2008, 227 pp.Keywords: Argentine music; art music; avant-garde; tango; literature.

RESENHAS – “PEGA NA CHALEIRA”

Este libro es resultado de una conjunción de actos generosos en favor de la divulgación del conocimiento musical. La Fondazione Spinola (Génova) donó los artículos que contiene al Mozarteum filial Jujuy, en ocasión de cumplir este último su 25° aniversario. La Universidad Nacional de Jujuy se hizo cargo de la edición y publicación del volumen, terminado a fines de 2008. Cabe valorar muy positivamente esta iniciativa y felicitar por ello a las tres instituciones involucradas.

Federico Spinola en el “Prólogo”, destaca el empeño de estas instituciones por valorizar la llamada música clásica occidental, a la que este libro realiza algunos valiosos aportes relativos a la Argentina. En la “Introducción”,

suscrita por la Comisión Directiva del Mozarteum Jujuy, se explica que los autores fueron convocados para escribir acerca de un eje temático común: “el encuentro de Europa y América a partir de la música” y que la compilación, muy inclusiva, abre oportunidades a nuevas investigaciones.

Pablo Bardin fue el encargado de la presentación y de proponer los temas a sus colegas, en consenso con los coordinadores del Mozarteum filial Jujuy. Bardin escribió el solicitado artículo de presentación, donde reseñó acontecimientos histórico-musicales que justifican y valorizan los aportes europeos a la música de Argentina desde épocas prehispánicas hasta la actualidad.

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encuadrándose nuevamente en las debatidas teorías que califican a Latinoamérica como un reflejo de la civilización europea.

De Melanie Plesch, “La lógica sonora de la generación del 80: una aproximación a la retórica del nacionalismo musical argentino” (pp. 55-108, el artículo de mayor extensión), se sitúa en una perspectiva post-estructuralista diametralmente opuesta, donde la premisa es la revisión crítica de conceptos naturalizados en la historiografía musical tradicional.

En la introducción plantea claramente la meta y alcances de su investigación: en el campo del nacionalismo musical argentino, postula la idea de una “retórica musical de la argentinidad” para estudiar el repertorio de los compositores ochentistas. Es un concepto sólidamente construido y suficientemente problematizado por la autora como para superar sobradamente, en la interpretación de dicha música, “las estériles discusiones acerca de su eficacia estética o de su legitimidad como símbolo identitario” (p.57). Sus argumentaciones deductivo-inductivas llegan a resultados admirables.

El cuerpo del trabajo se estructura en tres partes que desarrollan y discuten minuciosamente cada uno de los presupuestos de la idea principal: la artificialidad de la retórica musical como discurso persuasivo y su pertinencia como herramienta analítica para este caso, la construcción histórico-política de los conceptos de “nacionalismo en general y de nacionalismo musical en particular” (p.57) y el consiguiente de identidad nacional.

En la primera parte, “De las naciones a los nacionalismos” argumenta sobre la idea de nación como una construcción discursiva de la modernidad, desarrollando las implicancias del programa socio-político que privilegió la “civilización” europea sobre la “barbarie” mestiza y criolla, la constitución de una identidad nacional hegemónica y homogeneizante, la fuerte incidencia socio-económica de la inmigración masiva y su amenaza para las clases dominantes, en tanto encarna el “nuevo epítome de la barbarie” (p.65). La “nostalgia” de un pasado menos conflictivo, que trae consigo la “alienación” y la “anonimia” urbanas en el contexto de la modernización, modifica la imagen ciudadana del gaucho –antes denigrada– y coadyuva a su idealización en la literatura criollista y la música nacionalista. Plesch reflexiona sobre la “apropiación”, el “uso” y paradójicamente, el “distanciamiento” (lejanía, estilización del modelo musical rural) de la cultura popular, que realizaron las élites para construir símbolos de una pretendida identidad nacional. La autora nombra específicamente las canciones, danzas criollas y la guitarra como instrumento emblemático en la construcción de una retórica discursiva y musical del nacionalismo argentino.

En la segunda parte, “Nacionalismos musicales”, para verificar la operación de consenso que convierte el

Su extenso artículo de treinta y nueve páginas titulado “La influencia de la música europea sobre los argentinos” (p. 17-53) contiene una profusión de datos relativamente organizados por etapas, aunque escasamente contextualizados socio-culturalmente, donde el autor hizo acopio de información de la bibliografía citada y de la obtenida en su importante carrera dedicada a la difusión mediática de la música clásica. Debemos señalar no obstante, algunas aseveraciones erróneas, ya corregidas en recientes investigaciones, entre ellas acerca de la llegada de compañías de ópera al interior (p. 41) o de la existencia de orquestas sinfónicas provinciales en la primera mitad del siglo XX.

Las partes de su artículo se subtitulan: “La época colonial” y “El siglo XIX”. Faltan subtítulos para las dos etapas finales, el siglo XX y la actualidad, que son referidos allí en relación con la formación del repertorio –sobre todo en música de concierto y ópera-, y con la cita de eventos principales y figuras de compositores relevantes en la circulación metropolitana de la música. No se exponen los supuestos epistemológicos sobre los que se basa la redacción, pero se evidencia la idea de que la afición creciente y la formación del gusto por la música académica occidental serían la meta cultural de los países latinoamericanos. Es llamativo que en el tratamiento de los aportes de una cultura a otra no se hayan tematizado los conceptos de recepción, mediaciones, identidades u otros provenientes del pensamiento post-colonial. En el escrito, en tanto, Argentina aparece como un país que fue “buen alumno” de Europa.

Bardin comienza con apreciaciones sobre la formación demográfica de los países latinoamericanos, la que tuvo un carácter aluvional proveniente de la conquista y la inmigración no sólo europea sino también asiática. Su explicación se posiciona en la antigua teoría del crisol de razas, que sostiene la natural integración étnica de los diferentes estratos sociales a través de las generaciones, enfoque ya discutido y moderado desde otras perspectivas críticas. En su punto de vista están ausentes los conflictos y los desplazamientos culturales ocurridos desde la conquista y, por el contrario, Bardin asevera que: “el mestizaje [entre aborígenes y colonos] se realiza con naturalidad” (p.17) y que el imperio incaico fue la “matriz en la cual se volcará toda la influencia española” (p.19). El autor usa categorías y adjetivaciones en oposiciones binarias sin gradaciones, como primitivismo/madurez de etnias nativas, el impulso civilizador de los conquistadores, el humanismo de los jesuitas frente a las hostilidades de las etnias aborígenes. El relato contiene conjeturas que no alcanzan el nivel de hipótesis, sin embargo construyen una narrativa que pretende verosimilitud.

El artículo cierra afirmando la certidumbre de que la labor compositiva e interpretativa de músicos argentinos emigrados en la segunda mitad del siglo XX al Hemisferio Norte no hacen sino “devolver en pequeña parte lo que Europa y Estados Unidos nos han dado” (p.52),

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nacionalismo musical en convención y artificio de carácter histórico, en contra de la idea esencialista de su naturalización, Plesch toma de Dahlhaus la idea de nacionalismo musical como resultado de la suma de intención del compositor más la recepción de la audiencia, así como el desvelamiento del carácter culturalmente situado –en la centralidad europea– de la pretendida universalidad de la música escrita occidental. La autora desarrolla lúcidamente la articulación del nacionalismo musical con el proyecto político de construcción de identidad nacional. Compara el Gato op.5 para guitarra de Juan Alais con El rancho abandonado de la suite En la Sierra op.32 de Alberto Williams, para revisar los calificativos de ‘precursor’ y ‘la piedra fundamental’ del nacionalismo musical argentino que respectivamente les atribuye la historiografía tradicional. Lo hace empleando las categorías de uso, intención, recepción y distanciamiento para analizar el grado de cercanía o alejamiento del modelo musical rural.

En la tercera parte, “La retórica musical del nacionalismo”, Plesch aborda de lleno la teoría tópica y profundiza acerca del tratamiento de los topoi de la huella, la guitarra, la pentatonía y del triste / estilo, con variedad de ejemplos musicales tomados de Alberto Williams y Julián Aguirre.

Finalmente, bajo el subtítulo “Conclusiones” subraya la dimensión ideológica del nacionalismo musical argentino que articula poética y política, manifestándose como una construcción lógica que puede analizarse con las herramientas discursivas de la retórica. Advierte, además, que identificar y listar los topoi del nacionalismo musical no agota el análisis, sino que el verdadero desafío consiste en descubrir los “mundos de sentidos” a que estos refieren, como los valores, normas de comportamiento, creencias y jerarquías sociales, raciales que hacen a la cultura estudiada.

Luego de la lista de obras citadas en el texto, termina el artículo con un exhaustivo “Ensayo bibliográfico” que da cuenta de las fuentes bibliográficas y documentales que cimentaron el acabado pensamiento teórico-práctico de Melanie Plesch, el que, sin duda, resulta fecundo para nuevos desarrollos en la investigación musicológica.

Pola Suárez Urtubey, destacada musicóloga repetidamente premiada por su trayectoria y por sus investigaciones sólidamente documentadas, propone aquí “Medio siglo de creación musical argentina (1900-1950) (Proyectos y realidades)” (p.111-133), donde retoma su ya bastante conocida periodización por generaciones de compositores: “Primeros Profesionales” (A. Williams, J. Aguirre, A. Berutti); “La Generación del Ochenta”; “La generación del Centenario” y “La generación del 45”. No queda claro cuál fue el criterio para definirlas, en tanto que la llamada Generación del ’80 incluye a compositores nacidos entonces (entre 1875 y 1890), mientras que para las dos siguientes incluye a compositores cuya producción –y no su nacimiento– se enmarca en los años de la denominación. La exposición de ideas es muy clara

y la redacción amena, cualidades que dejan fluir una lectura sostenida.

Es inevitable recordar la investigación de Plesch, en tanto hay subtemas superpuestos (la Generación del 80), pero el cotejo da divergencias teóricas y estéticas interesantes de señalar. El escrito de Suárez Urtubey se enmarca en el paradigma musicológico evolucionista que concibe la “creación musical argentina” como fruto de la asimilación progresiva de la “música culta europea”. Luego de sus “crisis de crecimiento” (p.117) habría tendido a un “mayor grado de sincretismo” (p.121); el logro se escucharía en las obras tempranas de Ginastera por la incorporación del “acorde simbólico” y la fórmula rítmica del malambo (pp.121 y 132). Subyace entonces la selección propia de la historia de los “grandes compositores”. La autora insiste en conceptos, esencialismos y naturalizaciones ya sometidos a crítica por Plesch, pocas páginas atrás para el lector, entre ellos “la búsqueda de un lenguaje que identifique al país”, el nacionalismo de los ochentistas como “el entronque de lo folklórico argentino […] con la música culta europea” (p.114) y “la esencia de lo vernáculo” que permanecería “como suave perfume” en el “lenguaje ideal” de Aguirre (p.116). Curiosamente coincide con Plesch en la elección de una cita de Williams (pp.72 y 116), pero aquí no figuran las fuentes de esta ni de las siguientes. Otra divergencia se da en cómo concibe el “indigenismo” o “incorporación de las tradiciones sonoras prehispánicas dentro de la producción culta” (p.118), dando por supuesto el conocimiento de la música precolombina por parte de los compositores argentinos. Desarrolla la recepción de las ideas de Ricardo Rojas en los músicos nacionalistas. Dedica la última sección a la heterogénea Generación del 45, donde diferencia subgrupos según sus afinidades estéticas.

A Federico Monjeau se le encomendó la reflexión sobre “lo europeo” en la música académica de la segunda mitad del siglo XX. Desde una perspectiva estética no exenta de las marcas de su notable profundización en la filosofía de T. W. Adorno, en “Anotaciones sobre la presencia europea en la música argentina contemporánea” (pp.135-149) Monjeau desarrolla la forma de procesar críticamente la tradición musical europea por parte de compositores argentinos cuidadosamente seleccionados. Ubica al compositor Francisco Kröpfl como un impulsor de las tendencias de avanzada a partir de la década de 1950, en Argentina y desde acá a Latinoamérica, a partir de su formación con Juan Carlos Paz y el contacto personal con vanguardistas europeos.

Después de la acción modernizadora del Grupo Renovación, la experiencia de Kröpfl con la música de Boulez y Stockhausen habría sido modélica para la actualización musical propuesta por el Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales, que, a su vez, habría permitido la entrada en Buenos Aires de técnicas y pensamientos como los de Luigi Nono, Iannis Xenakis, Bruno Maderna entre otros. Monjeau destaca la

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labor institucional de Kröpfl a favor de la formación de jóvenes compositores, como la fundación del Laboratorio de Fonología Musical (1958) y la dirección del Laboratorio de música electroacústica del CLAEM (1967), donde se abrió un espectro musical de “cosmopolitismo franco” (p.139). Mientras, Alberto Ginastera, fundador del CLAEM (incluido en el Instituto Di Tella de Buenos Aires), centro de formación y de amplísima irradiación vanguardista hacia el continente, se mantenía en una tradición algo diferente: “un intento de síntesis entre técnicas europeas avanzadas y materiales locales” (p.139).

Monjeau encuentra la especificidad de la música argentina de vanguardia de esa época en dos maneras, por lo que no fue (no nacionalista, no americanista, no experimental en el grado que lo desarrollaron otros departamentos del Instituto Di Tella) y por lo sí fue (“sustraída de la perspectiva nacionalista, autocentrada en su status académico y sin contacto con los géneros populares”, p.140). El autor puntualiza que estas vanguardias participaron de la crisis de los 60 respecto del concepto adorniano de “material musical en evolución constante” (ib.) y luego, de la incitación a la “disponibilidad total” de los materiales históricos, “porque ella permitía reinterpretar la dialéctica de lo propio y de lo ajeno con entera libertad” (p.141). A partir de esta atractiva idea empleada por Monjeau para designar el uso y sistematización de citas musicales de la tradición europea, como una ‘enciclopedia aplanada’ a la que se puede entrar con total libertad, el autor analiza las operaciones de apropiación realizadas creativamente por Gerardo Gandini y Antonio Tauriello.

Otra línea vanguardista que Monjeau encuentra es la que abrió Mariano Etkin. Lector de la filosofía de Rodolfo Kush, Etkin reflexiona sobre la dialéctica del “ser” y del “estar” y establece una estética “no lineal, no narrativa y no sonatística” (p.143), que diverge de la “línea sonata-desarrollo”’. En su obra retoma la atención sobre la materia como hecho acústico antes que musical. Por último Monjeau destaca la forma musical de algunas de sus obras, plasmada a partir de su experiencia del recorrido del paisaje geográfico.

Osvaldo Golijov fue discípulo de Gandini y, si bien no compone en Argentina desde sus 23 años, Monjeau lo incluye en su selección de artistas prominentes, en este caso como representante de una cultura periférica, del multiculturalismo y compositor relevante de la música contemporánea para los estadounidenses. Exitoso en el mercado del arte, echa mano al eclecticismo musical, según Monjeau, sin filtrado y de manera directa.

Finalmente el autor dedica una sección a la vigencia de la ópera como ‘otra marca de época’ (148), género que comenzó como un apéndice de la ópera italiana en el país. La ópera en Argentina se mantuvo en la retaguardia de la actividad innovadora hasta el evento Bomarzo (1967-1972), que significó una ‘actualización musical, dramática e ideológica’. Así, la ópera despertó el interés de jóvenes compositores y de las instituciones (Centro

de Experimentación del Teatro Colón) y propone una presencia más dominante. Curiosa es la manera en que el autor olvida a Marta Lambertini, figura clave dentro del género y que sin duda alentó con su producción y sus enseñanzas el interés hacía él en destacados jóvenes compositores actuales.

En “Europa y el tango argentino. Intercambios culturales en el origen del tango” (pp.153-175), Pablo Kohan introduce con un relato ficcional una discusión no acabada sobre los orígenes del tango argentino. Usa este recurso literario para presentar la polifonía divergente de voces que nunca coincidieron sobre la génesis americana, europea o africana del género que califica como la “creación cultural argentina más original de la historia, la más reconocida en todo el mundo y la que ha contribuido con mayor significación al establecimiento de una identidad cultural y musical argentina” (p.157). Sin embargo, a pesar de su popularidad y de la pesada carga de representatividad que le atribuye, la única certidumbre respecto de su origen es una época aproximada, c. 1880, en ambas orillas del Río de la Plata.

Bajo el subtítulo “Tambores, fiestas y una danza” Kohan desglosa tres acepciones verosímiles de la etimología del término tango, para enlazar la tercera con el intercambio cultural que se estableció entre España y las colonias americanas (con ciertas imprecisiones históricas), proceso que generó el tango andaluz.

De allí sigue con un estudio centrado en las teorías sobre el origen, particularmente la de Carlos Vega y Alejo Carpentier. El énfasis en la teoría de Vega se debe a responder a la idea rectora de la publicación, es decir, las influencias europeas en la música argentina, y a que Vega sostuvo el origen español del tango argentino. Kohan discute con esta teoría a partir del conocimiento minucioso de los manuscritos y borradores mecanografiados del musicólogo, pues declara poseer una copia de los mismos confiada por la dirección del Instituto de Investigación Musicológica “Carlos Vega” de la Facultad de Artes y Ciencias Musicales de la Universidad Católica Argentina, donde, como se sabe, obra su archivo personal. Debemos recordar que los escritos inéditos de Vega referidos al origen del tango fueron publicados en 2007 por el Instituto que los resguarda, bajo el cuidado editorial de Coriún Aharonián.

Kohan coincide con Alejo Carpentier en descartar la génesis europea, y se concentra después en defender fervorosa e insistentemente el origen americano del tango. Finalmente dedica una sección a la migración y diáspora del género hacia Europa e Israel.

Del periodista y crítico Pablo Gianera se compila ‘Crónica de un desencuentro afortunado. La música clásica europea en la literatura argentina’ (pp.177-198). Meduloso artículo que pasa revista a los diferentes modos en que poetas, cuentistas y novelistas se relacionaron con la música. Pone de relieve la importancia de la música para muchos

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escritores, como un horizonte que debe perseguirse. Sin embargo, según T. S. Eliot, la poesía disminuye su condición estética cuando parodia a la música, aunque curiosamente recomienda el estudio de las formas y el ritmo musicales para el estudio de la poesía.

Gianera entiende que “la literatura argentina mantuvo una ambigua distancia respecto de la música clásica” (p.180), comparándola con las novelas de Tomas Mann o de Alejo Carpentier, que asumieron una arquitectura solicitada a las formas musicales. Argumenta que los escritores argentinos fueron “inmunes al discurso musical” (p.195), quizá por la “falta de frecuentación” con un instrumento, suposición que entra en contradicción con la presentación que el mismo autor hace de Juan Bautista Alberdi como pianista (p.181).

Fuera de estas apreciaciones, Gianera se ocupa de las relaciones entre literatura y música en textos de Echeverría, Leopoldo Lugones, Victoria Ocampo, Daniel Moyano, Manuel Mujica Láinez y Jorge Luis Borges, entre otros. El libro sigue con la presentación de los autores mediante un breve curriculum vitae, un apéndice con referencias a la trayectoria y miembros del Mozarteum Jujuy, para finalizar con una lista de agradecimientos.

Me parece oportuno señalar que es curiosa la reincidencia en el tema del encuentro cultural entre Europa y Argentina, años después de su frecuentación y enconados debates historiográficos en ocasión del V° Centenario del primer arribo de Colón a América. Pese a ellos, a la vista está el interés renovado que suscita el tema en muchos intelectuales y artistas, por lo que el presente volumen constituye un aporte relevante a la historia de la música en Argentina y una nueva ocasión para el debate musicológico. El libro

da cuenta de innumerables cuestionamientos, unos satisfactoriamente resueltos en algunos capítulos, otros no respondidos, y algunos, aún, descuidados. Con un nivel científico y/o reflexivo dispar en el abordaje de los temas, el volumen oscila entre un libro de divulgación y un libro científico. Evidencia la carencia de pautas iniciales dadas a los autores, fundamentalmente con respecto de las citas, textuales y bibliográficas, y de la profundidad y extensión de los capítulos. Se leen datos reproducidos de enfoques poco vigilados epistemológicamente junto a otros novedosos, altamente reflexivos y producidos a partir de la aplicación de teorías pertinentes.

Se han deslizado algunos errores por descuido en la edición, como las alteraciones en el ejemplo musical n° 4 (p.88), ciertas desprolijidades tipográficas (Linares en p. 82, topos en subtítulo, p.86, no en están en itálica; pero ‘obras de salón’, p.115, usa itálica innecesariamente), el apellido Berutti escrito de manera diferente (‘Berutti’, en el artículo de Plesch, pero ‘Beruti’ en el de Suárez Urtubey, aludiendo en ambos casos a Arturo Berutti), largas citas textuales en el cuerpo del artículo y no destacadas ‘en caja’ (p.116), entre otros detalles.

Lamentablemente, esta obra, como la mayoría de las ediciones de universidades nacionales argentinas, tiene una circulación sumamente restringida impresa en papel, debido a la deficiente distribución a través de las redes comerciales de libros. Sin embargo, puede leerse completa en http://issuu.com/valeabraham/docs/www.mozarteumjujuy.org.ar

Esto último facilita la divulgación inmediata del conocimiento producido por los intelectuales que, en este caso, resulta de interés para la musicología en el cono sur.

Fátima Graciela Musri es Profesora de Música especializada en Teorías Musicales, Magister en Arte Latinoamericano (U.N. de Cuyo) y en Historia (U.N. de San Juan). Ha cursado el Doctorado en Artes Mención Música (U.N. de Córdoba). Es Prof. Titular Efectiva de Historia de la Música y Coordinadora del Gabinete de Estudios Musicales en la U.N. de San Juan donde dirige proyectos, investigadores y becarios. Ha integrado jurados de concursos docentes, comités de lectura y de evaluación de pares a nivel nacional. Publicó artículos en revistas especializadas y los libros: Músicos inmigrantes. La familia Colecchia en la actividad musical de San Juan (1880-1910) y Reconstrucción de los espacios socio-musicales en San Juan (1944-1970), por la Editorial de la Facultad de Filosofía, Humanidades y Artes de la U.N. de San Juan. Ha co-editado el n° 7 de la Revista Argentina de Musicología de la AAM. Produjo el CD Músicos abruzenses en San Juan, videos documentales y programas radiales. Es integrante como investigadora formada del proyecto Nacionalismos y vanguardias musicales en Argentina, dirigido por Silvina Luz Mansilla (UBA).

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Recebido em: 29/08/2010 - Aprovado em: 18/04/2011PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.25, 125 p., jan. - jun., 2012

A (etno)musicologia anglo-americana sob doze perspectivas: uma resenha do livro The new (ethno)musicologies

Rodrigo Cantos Savelli Gomes (UDESC, Florianópolis, SC)[email protected]

Palavras-chave: Etnomusicologia Anglo-americana; Nova Etnomusicologia; Henry Stobart

The Anglo-American (ethno)musicology under twelve perspectives: a review of the book The new (ethno)musicologies

Keywords: Anglo-American Ethnomusicology; New Ethnomusicology; Henry Stobart

O livro The new (ethno)musicologies, organizado por Henry Stobart, atualmente professor do departamento de música da Universiy of London, consiste numa coletânea de doze comunicações apresentadas numa conferência promovida pelo Fórum Britânico de Etnomusicologia (BFE) em novembro de 2001, onde foram convidadas figuras centrais da etnomusicologia e da musicologia anglo-americana. O encontro foi proposto com o objetivo de examinar a relação entre a etnomusicologia e a “nova” musicologia, em especial, como a etnomusicologia se influenciou pelas transformações radicais às quais a musicologia se submeteu nos últimos vinte anos, e se a disciplina também vem se encaminhando rumo à caracterização de uma “nova” etnomusicologia. Parte das discussões situou-se em dilemas como: a identidade da etnomusicologia (o que é; o que faz; qual sua contribuição); a definição de seu campo de estudo; o relacionamento com as demais áreas, especialmente com as “irmãs” musicologia e antropologia. Temas como estes não são novidades na etnomusicologia, ao contrário, destacam-se por sua constância desde os primeiros esboços desta disciplina e suas diversas tentativas de sistematização (ADLER, 1981[1885] 1; KUNST, 1950; SEEGER, 19772;). Poucas áreas empreenderam tanto tempo e esforço em se autodefinirem como tem feito a etnomusicologia e, ao parecer, este tem sido um dos dilemas principais dos estudiosos da área. Nos últimos anos, o debate tem se tornado cada vez mais intenso3, porém menos caloroso, por vezes, cansativo e repetitivo, o que

nos induz a acreditar que este dilema está próximo a sua resolução, ao menos por liquidação. A obra de Stobart não está à margem desta discussão. Ela nos revela como este debate continua circundando o campo da etnomusicologia contemporânea ao apontar antigas questões políticas, ideológicas e éticas da disciplina ainda mal resolvidas. Entretanto, avança sensivelmente ao indicar os novos direcionamentos que estes conflitos vêm tomando na academia, suas consequências nos estudos sobre música e as perspectivas futuras para o campo da etnomusicologia.

Dividido em duas partes, na primeira o livro foca principalmente sobre como a etnomusicologia se caracteriza como disciplina, seu caráter multidisciplinar, seu campo, seus métodos. Parte da discussão gira em torno da necessidade de diluir a fronteira entre musicologia e etnomusicologia, bem como de intensificar o diálogo com as demais áreas afins. Para isso, nos primeiros dois capítulos o livro traz a visão de musicólogos (Jim Samson e Nicholas Cook), antropólogos (Michelle Bigenho) e estudiosos da Música Popular (Fabian Holt). De modo geral, cada autor vai argumentar em favor de um diálogo maior com sua área.

Neste sentido, Jim Samson argumenta que os etnomusicó-logos precisam dar mais valor à estética, não temer que os textos culturais falem por si próprios, independentemente do contexto, enquanto que os musicólogos precisam estar

STOBART, Henry (orgs). The New (Ethno)musicologies. Lanham: Scarecrow Press, 2008, 226p. R$ 70,00.

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rompimento desta alteridade em relação à musicologia é algo que a autora não parece querer desvencilhar.

Seguindo o caminho da política, Tina K. Ramnarine argumenta em favor de uma etnomusicologia engajada nas necessidades sociais, nos problemas práticos da sociedade, usando como exemplo seus trabalhos com a pedagogia da performance. Para ela, a difusão da Wold Music na prática das performances musicais contemporâneas tem facilitado a aproximação entre diferentes culturas, contribuindo para um melhor entendimento e valorização do “outro”. A autora aponta que essa política de globalização tem sido frequente nas políticas públicas de diversas instituições de ensino e que os etnomusicólogos têm contribuído para essa globalização no campo da performance e da educação musical. Neste sentido, a “nova” etnomusicologia tem se direcionado em favor do desmantelamento da artificial fronteira institucionalizada que separa o estudo da arte Ocidental do estudo das várias outras tradições, apesar da própria formação musical do etnomusicólogo ainda estar calcada nos cânones europeus. Por outro lado, para Philip Bohlman, a política de engajamento, embora de fundamental importância, não é suficiente no sentido de propor uma real “nova” etnomusicologia. Para ele, o que a etnomusicologia tem feito é deslocar o sentido da alteridade ao incorporar o estudo da sua própria cultura – ou seja, o estudo de “si mesmo” como o “outro” –, além de abrir espaço para outros campos e vozes, o que não significa um redirecionamento epistemológico em favor de uma “nova” etnomusicologia. Ele vê uma disciplina receosa em relação às mudanças, presa aos métodos e concepções do passado. Em sentido contrário, Caroline Bithell, aponta que uma “nova” etnomusicologia não se constrói sem referências passadas. Por isso, conduz seus argumentos em favor de uma releitura do passado da musicologia, como esse passado dever ser visto, analisado e considerado hoje. Para ela, nossos ancestrais carregavam valores que hoje são obsoletos, mas que tiveram sua razão naquele período e continuam influenciando, de algum modo, o pensamento atual. Portanto, a autora propõe que uma revisão seja feita, considerando o contexto onde essas teorias sugiram, como surgiram e porquê.

A segunda parte do livro tem como objetivo propor futuras direções para o campo da etnomusicologia, embora uma boa parcela das questões anteriormente levantadas permeie as fundamentações dos autores. Os dois primeiros capítulos, de John Baily e Martin Clayton, respectivamente, indicam possíveis direcionamentos para a área, valendo-se, para isso, dos relatos de suas bem sucedidas experiências com abordagens, segundo eles, ainda pouco exploradas pela etnomusicologia. Neste sentido, John Baily destaca que, desde meados do século XX, a etnomusicologia vem se guiando pela antropologia, o que conduziu a disciplina a um afastamento do objeto “música” ao focar excessivamente em aspectos contextuais. Por isso, o autor argumenta que está na hora de um realinhamento com a musicologia. Para ele,

mais atentos à arte performática e sua história, bem como olhar para essas práticas como contendo algum “ethos”. Michelle Bigenho queixa-se que, nas últimas três décadas, a etnomusicologia não tem acompanhado os avanços da antropologia, fechando-se também aos demais campos das ciências humanas, numa crescente perda da multi-disciplinaridade. Para a autora, o foco excessivo apenas na música pode criar um monólogo, limitando o alcance da disciplina, em outras palavras, ficando restrita aos mú-sicos. Por essa razão, em seu artigo ela deixa claro que, apesar de antropóloga estudiosa das manifestações mu-sicais, não se considera uma etnomusicóloga. Para ela, a etnomusicologia tem se aproximado mais da musicologia do que da antropologia. Este texto é o mais atípico da conferência, pois é justamente em favor desta aproxima-ção que a maioria dos autores se posicionam. Fabian Holt, em tom de desabafo, também se queixa de uma falta de aproximação com sua área, argumentando que os Estudos de Música Popular pouco dialogam com a etnomusico-logia, especialmente com a abordagem etnográfica. Para ele, assim como fez a musicologia criando seus cânones (as obras e compositores dignos de serem estudados), os estudos de música popular e a etnomusicologia estão se-guindo o mesmo caminho ao separar determinadas práti-cas pelo rótulo de World Music.

Nicholas Cook foi um dos mais fiéis ao tema proposto pela conferência, ou seja, a relação entre a etnomusicologia e a “nova” musicologia. Em sua visão otimista, declara que não há mais motivo para a distinção entre musicologia e etnomusicologia, pois, embora elas tenham se desenvolvido por caminhos separados, nos últimos anos houve uma importante convergência de interesses entre ambas as disciplinas. Para ele, a “nova” musicologia, através do seu interesse explícito pelo significado musical, interpretação, recepção, e seus valores inerentes, teria dado um passo fundamental em direção a uma aproximação com a etnomusicologia. Do mesmo modo, o crescente interesse por parte dos etnomusicólogos pelo objeto musical (o som, a música), como um agente de significado - mais do que apenas um reflexo da cultura, mas como cultura -, tem contribuído para uma maior identificação com a prática musicológica.

Não é tanto que a musicologia tenha se deslocado à posição que a etnomusicologia sempre ocupou, mas que ambas as disciplinas se moveram para uma posição comum (embora seja justo dizer que a etnomusicologia se moveu primeiro) (COOK, 2008, p.57).

Sua visão encontra pouca ressonância no texto de Laudan Nooshin, a qual parece demonstrar certa angústia em relação a possibilidade desta fusão. Ela declara que a convergência entre as áreas não é apenas uma questão de nomenclatura, nem de métodos e objetos, mas sim uma questão de ideologia e disputa de poder, ou seja, quem vai ter o controle do campo central dos estudos musicais e definir suas áreas principais de investimento. Para ela, a etnomusicologia sempre foi marcada por sua diferença (tanto em objeto, métodos, correntes, e visões) e esse diferencial é uma das suas marcas de resistência. O

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a ênfase na performance musical trará o foco de volta para a música de uma maneira alinhada com o perfil intelectual da “nova” musicologia. Na mesma direção, Clayton convida os etnomusicólogos a um engajamento maior com a música enquanto experiência sonora. Ele ressalta que os avanços tecnológicos contribuíram para as análises sonoras e performáticas, sendo possível hoje explorá-las de modo antes inimaginável. Seguindo com o tema da tecnologia, Abigail Wood aponta a internet como importante meio para o estudo das tradições musicais urbanas, pois através dela criam-se elos de afinidades, valores, trocas culturais, por vezes, de forma mais intensa e dinâmica do que em espaços físicos. Para a ela, a internet não se constitui num território artificial, mas sim num campo de interação onde se constroem realidades. Por isso, mais do que um meio alternativo para a coleta de dados, a internet vem se constituindo como um próprio campo de pesquisa. No entanto, devido às características diferenciais deste campo, a autora ressalta que é preciso uma cuidadosa reavaliação das questões éticas para o empreendimento deste tipo de pesquisa. Jonathan P. J. Stock encaminha sete direcionamentos para futuros trabalhos, a partir da convergência das abordagens musicológicas e etnomusicológicas. Para ele a etnomusicologia tem sido relutante em explorar o potencial de algumas ferramentas de escrita e interpretação habituais da musicologia como análise, história, estudos biográficos e critica musical. Na mesma direção, a comparação, o estudo das tradições urbanas, o engajamento social (etnomusicologia aplicada) são abordagens etnomusicológicas que têm muito a contribuir para o crescimento dos estudos musicais. Portanto, o autor sugere uma fusão entre todas essas

correntes, argumentando em favor de uma maior relação entre as investigações musicais.

Neste volume organizado por Henry Stobart, grande parte da discussão circunda a necessidade do encontro entre as abordagens musicológicas e etnomusicológicas. Sem dúvida, a insistência neste debate tem contribuído gradativamente para dissolução da fronteira entre ambas disciplinas. Com a atual tendência da interdisciplinariedade em diversas áreas do conhecimento, esta questão surge não como uma estratégia de camaradagem ou artimanha política, mas da real inadequação dos velhos modelos às novas realidades, das quais a teoria clássica não dá mais conta (RUIZ, 1989). Mas, apesar desta questão tomar a cena por diversos momentos nos textos de quase todos os autores do livro, o tom geral das discussões parece se encaminhar no sentido de estabelecer um campo comum para os estudos musicais que possibilite abordagens a partir de diversas perspectivas, de modo que cada uma delas possa contribuir para esclarecer um aspecto específico da trama musical. Os debates deste livro contribuem no sentido de indicar que visões totalizantes, ou totalizadoras, não conseguem mais se firmar no contexto atual. Mesmo os teóricos mais conservadores tendem a evitar esse tipo de abordagem (NATTIEZ, 2005). A complementação, o diálogo, a multidisciplinaridade, despontam como estratégias fundamentais para o desfecho deste dilema emergencial. O livro demonstra que, no vasto campo dos estudos musicais, a etnomusicologia tem se destacado como uma das disciplinas mais inquietas ao discutir as abordagens mais adequadas para o objeto “música”, ainda que esse caminho signifique a dissolução de seu status enquanto disciplina autônoma.

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Notas1 Guido Adler apresenta a etnomusicologia como parte da musicologia e como aliada da antropologia. (ADLER, 1981).

2 Para Charles Seeger, a musicologia dever ser vista como “um discurso sobre música, tanto sistemático (sincrônico) quanto histórico (diacrônico), tratando de texto e contexto, no intuito de analisar os eventos sonoros ligando o ser humano ao universo físico, no propósito de contribuir para a compreensão do homem como ser cultural” (SEEGER apud ULHOA, 1995, p.43).

3 Para citar alguns: RICE, 2001; MERIAM, 2001; CLAYTON, 2003; TOMLINSON, 2003; NETTL, 2005; WILLIAM, 2007.

Rodrigo Cantos Savelli Gomes é mestrando em Música (Musicologia-Etnomusicologia) na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) e bolsista do Programa Pós-Graduação CNPq/UDESC. Graduado pelo Curso de Licenciatura em Música na mesma instituição, onde foi por três anos bolsista de iniciação científica. Suas últimas pesquisas enfocaram as relações de gênero na música brasileira, em especial no samba, rock, hip-hop e na música negra. Em 2008 recebeu o 3º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero e foi condecorado com menção honrosa no ano consecutivo.