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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA volume 21 janeiro/junho - 2010 ISSN: 1517-7599

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Page 1: volume 21 - musica.ufmg.brmusica.ufmg.br/permusi/permusi/port/numeros/21/num21_full.pdf · 7 RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee Per Musi, Belo Horizonte,

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 21janeiro/junho - 2010

ISSN: 1517-7599

Page 2: volume 21 - musica.ufmg.brmusica.ufmg.br/permusi/permusi/port/numeros/21/num21_full.pdf · 7 RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee Per Musi, Belo Horizonte,
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Editorial

Temos o prazer de apresentar o volume 21 de Per Musi - Revista Acadêmica de Música , cuja maioria dos trabalhos exi-be facetas interdisciplinares, pouco estudadas, da música com outras artes ou da música com outras áreas. Com este nú-mero começamos a transição, até 2010, para atender às novas normas ortográficas da língua portuguesa. Assim, o leitor deve estar “tranquilo” (e não “tranqüilo”) para ler as “ideias” (e não “idéias”), por exemplo, do último artigo deste volume.

Rosana Costa Ramalho de Castro se debruça sobre o artista plástico e músico Paul Klee, abordando os princípios de sua Teoria da Forma, tendo como eixo a interlocução entre elementos das artes plásticas e da música: linha e melodia, mó-dulos e ritmos, sub-divisões da tela e os compassos, a paleta de cores e as modulações, tridimensionalidade e polifonia, texturas e tonalidades.

Clayton Vetromilla revisita a participação de Guerra-Peixe como compositor da trilha sonora do filme O diabo mora no sangue (1967) do cineasta-ator Cecil Albery Thiré e estabelece relações estruturais entre esta música e o Prelúdio nº 2 para violão, também de Guerra-Peixe e composto três anos depois.

Daniel Bento, com base em Dahlhaus, analisa as sete últimas obras para piano de Franz Liszt e revela a importância da sexta ascendente como intervalo unificador no seu processo composicional, mostrando também o emparelhamento harmônico de alguns destes estudos.

Nahim Marun aborda a última fase composicional de Gabriel Fauré, a partir do seu Quinteto para piano e cordas Op.115, obra-prima da música de câmara, em que o compositor condensa as influências dos períodos anteriores e constrói um estilo muito particular quanto ao tratamento da tonalidade e da modalidade, do contraponto e da harmonia, da melodia e do acompanhamento.

Fundamentados na fonoaudiologia e na física acústica, Cristina de Souza Gusmão, Maria Emília Oliveira Maia e Paulo Henrique Campos discorrem sobre as funções e os mecanismos da produção vocal, a localização dos formantes e dos ajustes anatômicos e musculares do cantor.

Germano Gastal Mayer e Any Raquel Carvalho analisam Vastidão, um dos Seis Pequenos Quadros (1981) para piano de Bruno Kiefer, detectando relações entre intervalos estruturais e a escala octatônica, estabelecendo também relações intertextuais desta obra de maturidade do compositor gaúcho com outras de suas obras.

No seu terceiro artigo sobre obras de grande desafio técnico-musical para pianistas, Luciane Cardassi expõe suas estratégias de aprendizagem e performance em Night Fantasies de Elliott Carter. Anteriormente, ela abordou Klavierstück IX de Karlheinz Stockhausen e Sequenza IV de Luciano Berio em artigos que foram publicados anteriormente em Per Musi , nos vols. 12 e 14.

André Vieira Sonoda nos apresenta um panorama da tecnologia de áudio aplicada à etnomusicologia a partir do final do século XIX até a era digital, tanto no exterior quanto no Brasil, cobrindo marcos importantes tanto das pesquisas de campo quanto laboratoriais.

A partir de conceitos neurológicos e musicais da sinestesia e de uma análise de Joie du sang des étoilesI (o quinto dos dez movimentos da sinfonia Turangalîla de Olivier Messiaen), Guilherme Francisco Furtado Bragança propõe parâmetros para sistematizar as categorias sinestésicas.

Escavando a história da criação do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Ailton Pereira Morila traça um vivo retrato de uma sociedade musical brasileira em movimento, refletindo os embates, humor e evolução em torno de um perfil profissional eclético – com trânsito entre o erudito, o sacro e o popular, o qual se tornaria cada vez mais especialista.

Buscando explicar o sentido afetivo da memória na interpretação musical, Sérgio de Figueiredo Rocha recorre a refe-renciais da fenomenologia e das neurociências para relatar sua experiência de preparação e performance no grupo de trombones Trombominas.

A partir de cinco condições elaboradas pelo poeta português Fernando Pessoa para a compreensão dos símbolos e seus rituais pelo intérprete, de idéias do educador musical inglês Keith Swanwick e do maestro italiano radicado no Brasil Sérgio Magnani, Maria Inêz Lucas Machado discute a prática e o ensino de música.

Lembramos que todos os conteúdos e capas de Per Musi, desde janeiro de 2000 até julho de 2010 estão disponíveis para download ou impressão gratuitamente no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected].

Fausto BorémFundador e Editor Científico de Per Musi

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Fundador e Editor CientíficoFausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)

Corpo Editorial Internacional Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra)Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA)Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra)Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA)Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Portugal)Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Canadá)João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Portugal)Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA)Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA)Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra)Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica)Melanie Plesch (Univ. Católica, Univ. de Buenos Aires, Argentina)Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra)Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina)Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha)Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)

Corpo Editorial no Brasil André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte)Cecília Cavalieri (UFMG, Belo Horizonte) Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre)Diana Santiago (UFBA, Salvador)Fernando Iazetta (USP, São Paulo)José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa)Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro)Márcia Taborda (UFSJR, São João del Rey)Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte) Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte)Norton Dudeque (UFPR, Curitiba)Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas)Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba)Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro)Sônia Ray (UFG, Goiânia)Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro)

Conselho CientíficoAcácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis)Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas)André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro)Ângelo Dias (UFG, Goiânia)Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte)Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília)Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas)Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)Fabiano Araújo (UFES, Vitória)Flávio Apro (UNESP, São Paulo)Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas)Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba)Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte)Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre)Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande)Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador)Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte)Vladimir Silva (UFPI, Teresina)

O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos

PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está indexada nas bases RILM Abstracts of Music, Literature The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

ABM

Revisão Geral Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizonte)

Universidade Federal de Minas GeraisReitor Prof. Dr Ronaldo Tadêu PenaVice-Reitora Profa. Dra. Heloisa Maria Murgel StarlingPró-Reitoria de Pós-GraduaçãoProfa. Dra Elizabeth Ribeiro da SilvaPró-Reitoria de PesquisaProf. Dr Carlos Alberto Pereira Tavares

Escola de Música da UFMGProf. Dr. Lucas José Bretas dos Santos, Diretor

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMGProf. Dr. Sérgio Freire, Coordenador

Planejamento e Produção Isabela Scarioli - Cedecom/UFMGAfonso Brazolino (estagiário)- Cedecom/UFMG

Projeto GráficoCapa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMGDiagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG

Tiragem250 exemplares

Acesso gratuito na internetwww.musica.ufmg.br/permusi

Endereço para correspondênciaUFMG - Escola de Música - Revista Per Musi Av. Antônio Carlos 6627 - Campus PampulhaBelo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747Fax: (31) 3409-4720e-mail: [email protected] [email protected]

PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 21, janeiro/junho, 2010 -Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2010 –

n.: il.; 29,7x21,5 cm.SemestralISSN: 1517-7599

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

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Sumário

ARTIGoS CIEnTíFICoSo pensamento criativo de Paul Klee: arte e música na constituição da Teoria da Forma .........................................................................7The creative thinking of Paul Klee: art and music in the formation of the Theory of FormRosana Costa Ramalho de Castro

Guerra-Peixe: da trilha sonora do filme O diabo mora no sangue ao Prelúdio nº 2 para violão .................................................................................................................19Guerra-Peixe: from the soundtrack of the film O diabo mora no sangue to the Prelude No 2 for classical guitarClayton Vetromilla

Coesão discursiva nos Estudos de execução transcendental de Liszt: as últimas sete peças ...25Discourse cohesion in Liszt’s Transcendental studies: the last seven pieces. Daniel Bento

o modernismo no estilo musical tardio de Gabriel Fauré: aspectos estilísticos e formais do Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op.115 ........................34The modernism in the late Gabriel Fauré’s musical language: stylistic and formal features of the First Movement of the Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op.115nahim Marun

o Formante do cantor e os ajustes laríngeos utilizados para realizá-lo: uma revisão descritiva......................................................................................................................43The singer’s formant and the laryngeal adjustments used to build it: a descriptive reviewCristina de Souza Gusmão, Maria Emília oliveira Maia e Paulo Henrique Campos

Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer: um estudo sobre sua estrutura intervalar, gestos musicais e possíveis relações com outras composições do autor ...................................................................51Vastidão [Vastness] of Seis Pequenos Quadros [Six Small Pictures] (1981) by Bruno Kiefer: a study of its intervallic structure, musical gestures and possible relationships with other works by the composerGermano Gastal Mayer e Any Raquel Carvalho

Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance ....................... 60Elliott Carter’s Night Fantasies: learning and performance strategiesLuciane Cardassi

Tecnologia de áudio na etnomusicologia .......................................................................................74Audio Technology in EthnomusicologyAndré Vieira Sonoda

Parâmetros para o estudo da sinestesia na música .......................................................................80Parameters for the study of synaesthesia in music Guilherme Francisco Furtado Bragança

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Antes de começarem as aulas: polêmicas e discussões na criação do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo ........................................................................90Before lessons begin: controversies and quarrels around the creation of the Conservatório Dramático e Musical of São PauloAilton Pereira Morila

Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical numa perspectiva fenomenológica .................................................................................................97Memory: An affective key to the meaning of musical performance in a phenomenological perspectiveSérgio de Figueiredo Rocha

Um roteiro atemporal: reflexões sobre a música, os músicos e o ensino musical ...................109A timeless script: thoughts on music, musicians and music teaching Maria Inêz Lucas Machado

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

Recebido em: 21/11/2008 - Aprovado em: 15/11/2009

O pensamento criativo de Paul Klee: arte e música na constituição da Teoria da Forma

Rosana Costa Ramalho de Castro (UFRJ /UFF, Rio de Janeiro, RJ)[email protected]

Resumo: Estudo sobre a Teoria da Forma concebida no início do século XX pelo artista plástico Paul Klee e publicado no livro O Pensamento Criativo (KLEE, 1920). A Teoria da Forma de Paul Klee é uma demonstração do pensamento artístico que adota pressupostos formais, previamente estabelecidos para resultar na prática da representação artís-tica. Klee identificou as relações formais entre a música e as artes visuais, apresentando conexões entre a linha melódica e a linha no desenho; o ritmo e as seqüências de módulos e sub-módulos; os tempos dos compassos e as divisões da pintura; a métrica da música e a modulação da forma e da cor nas artes visuais. Klee também apresentou suas experiências com superposição de cores e texturas para representar visualmente a polifonia. A Teoria da Forma de Paul Klee é um exemplo de estudo que pressupõe modelos formais para a elaboração artística e projetual. Palavras-chave: Paul Klee, arte e música, Teoria da Forma, análise de imagens, metodologia visual.

The creative thinking of Paul Klee: art and music in the formation of the Theory of Form

Abstract: Study on the Theory of Form conceived in the early twentieth century by artist Paul Klee and published in the book The Creative Thinking (KLEE, 1920). The Theory of Form of Paul Klee is a demonstration of an artistic thought that adopts the previously established formal prerequisites that result in the practice of artistic representation. Klee identified the formal relationship between music and the visual arts, providing connections between the melodic line and the line in the drawing, rhythm and sequence of modules and sub-modules, the pulses of the measures and the divisions of the painting, metrics in music and the modulation of shape and color in the visual arts. Klee also presented his experiences with overlapping colors and textures to visually represent polyphony. The Theory of Form of Paul Klee is an example of a study that requires formal models for the artistic and design elaboration. Keywords: Paul Klee, art and music, Theory of Form, image analysis, visual methodology.

1 - IntroduçãoNascido na Suíça em 1879, Paul Klee foi um dos prin-cipais teóricos do movimento construtivista nas artes plásticas. Sua obra tornou-se importante para a fun-damentação do construtivismo alemão, contribuindo para sedimentar o pensamento formalista adotado pela Bauhaus, na Alemanha da década de 1920.

Educado numa família de músicos, Klee demonstrava desde jovem seu interesse na existência de uma relação

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

formal entre a música e as artes visuais. Por isso, desde os primeiros anos de sua vida escolar já realizava expe-rimentos neste sentido, desenhando os códigos simbóli-cos do universo da música nas bordas dos cadernos de aulas de desenho geométrico. Em 1898, com 19 anos de idade, seu aprendizado do desenho era acompanhado de representações da escritura musical. Enquanto aprendia a desenhar uma elipse, Paul Klee via, na forma geométrica, o olhar de Beethoven. A imagem abaixo faz parte dos ca-dernos de estudos do artista.

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Ex.1 - Paul Klee, O Olho de Beethoven do caderno escolar de geometria analítica do artista. Felix Klee, Berna, 1898, p.154; caneta, tinta e lápis, 23 x 18,5 cm.

Além do reconhecimento como artista e teórico das artes visuais e um dos principais mestres da Bauhaus (DROSTE, 1994), Paul Klee também foi reconhecido como músico, chegando a fazer parte, como violinista, da Orquestra Municipal de Berna, além de participar de outros grupos musicais (MARÇAL, 2009).

Talvez pela experiência nos dois segmentos das artes, Klee se debruçara nos estudos que despertavam o interesse de vários artistas da época. No período compreendido en-tre 1850 e 1950, artistas de várias tendências realizavam experiências similares. Dentre eles, nomeamos alguns im-portantes pintores e teóricos das artes: Delacroix, Ruskin, Gauguin, Seurrat, Delaunay, Kandinsky, Matisse, Tobey, Mondrian e Pollock. Todos eles procuravam representar no quadro, alguns em textos escritos, as possibilidades de existir inter-relação entre as artes visuais e a música, mas nenhum deles dedicou tanto tempo e energia para elaborar uma teoria extensa que justificasse as experi-ências visuais representando os valores do compasso, dos tempos musicais, das divisões dos tempos, das notas em seqüências com diferentes valores de tempo e, na essên-cia disso tudo, revelando a manifestação convicta de seu pensamento filosófico sobre a dualidade, do caos ao cos-mos, refletido sobre os opostos: o silêncio necessário ao som; na forma inexistente sem seu complemento que é o fundo; no claro contraposto ao escuro e no movimento como modo de interação entre estes opostos. Talvez o conhecimento adquirido nas duas linguagens artísticas tenha sido o estímulo para desenvolver teori-camente a idéia filosófica que o acompanhava, porque

por um período relativo à 2/3 de sua vida Klee realizou pesquisas no âmbito da pintura e do desenho e elaboran-do, em paralelo, as teorias sobre o pensamento criativo. A tônica de suas pesquisas evidenciava a relação entre a arte pictórica e a música. Assim, dizia ele a respeito da temporalidade existente na pintura:

Cada vez mais estou convencido acerca dos paralelismos entre a música e a arte (...) Sem dúvida ambos são temporais, o que é fácil de demonstrar... os movimentos expressivos do pincel, a gênese do

efeito. (Wick apud KLEE,1990,320)

Mas, apesar de parecer despertar um interesse meramen-te formal, Klee destinava seus experimentos para forma-lizar a idéia de que a representação do movimento levava à dimensão filosófica da existência e do mundo. Ao abor-dar conceitos de natureza puramente plástica, principal-mente a questão da estrutura do quadro, revia a lei do movimento. Ao postular a harmonia plástica, desenvolvia a noção do equilíbrio entre o ‘princípio fundamental mas-culino’ e o ‘princípio fundamental feminino’ (KLEE,1973), entre o espírito e a matéria. Para isso, utilizava a imagem do pêndulo como meio de designar as forças opostas e formadoras do universo. E a música era a essência dessas forças, pois utilizava os opostos: som e silêncio pela re-alização em desenvolvimento, nunca na obra finalizada. Para ele, o processo de formação do universo: do caos à ordem, deveria ser o principio formador da arte. E assim dizia a respeito: [...] não pensar na forma mas na for-mação: interessam mais as forças formadoras do que as formas finais. (Wick apud KLEE,1990)

Valorizando a realização, Klee, considerava uma obra finalizada como o encerramento de um processo con-ceptivo, culminando nela própria. No entanto, para ele, haveria um processo temporal até mesmo no ato de pin-tar, vinculando-o ao movimento físico desenvolvido pelo artista durante o processo de realização da obra. E não apenas neste caminho, também na existência dos pres-supostos formadores da obra se encontravam um pre-existente que também seria dado em contínuo na obra seguinte, ou seja: a partir da elaboração dos conceitos pressupostos formais que alinhavavam a concepção da obra pictórica aos valores formais da música haveria um contínuo movimento para a concepção da obra por vir.

Apesar do empenho em resolver as questões formais, da estrutura e composição do quadro, Klee pretendia alcan-çar mais além, como poderemos compreender por suas palavras apresentadas a seguir:

Somos artistas, homens práticos de ação, razão pela qual atu-amos, por natureza, em um âmbito preferencialmente formal. Sem esquecer que antes do início formal, ou mais simplesmente antes do primeiro traço, existe uma história precedente, e não apenas o anseio, o prazer do homem em se expressar, não apenas a necessidade exterior de fazê-lo, mas também um estado geral de sua condição humana cuja direção recebe o nome de visão de mundo e que surge aqui e acolá com a necessidade interior de manifestar-se. Faço questão de frisar isso para que não se produza o mal entendido de que uma obra se compõe apenas de forma. (Wick apud KLEE,1990)

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A partir de 1919, já reconhecido no meio artístico, Klee fora convidado por Gropius para participar do corpo do-cente da Bauhaus, instituição de ensino artístico desti-nado a formar profissionais nas áreas da arquitetura e do design. A partir de então, Klee passou a lecionar e pintar em seu atelier localizado nas dependências da Institui-ção, enquanto dava andamento aos seus escritos que chegaram a somar mais de 3000 páginas.

E, a partir de 1920, sua obra teórica passou a ser publi-cada. No Pensamento Criativo, nome as obra teórica onde Klee apresenta as bases de seu pensamento, encontramos a elaboração dos pressupostos formais que são relaciona-dos com a escritura musical, servindo como base do pro-cesso criativo construtivista. Estes estudos são legados importantes, apesar de representarem um segmento das artes e do design baseados no formalismo que, na atua-lidade, é motivo de discussões. Ainda se encontram nas escolas artísticas mais tradicionais dedicadas ao ensino da arte, do design e da comunicação visual, os mesmos elementos pressupostos, apesar de não serem detalhadas as relações com a escrita musical. Sendo publicada na época em que Paul Klee lecionava na Bauhaus, sua obra teórica tornou-se fundamental para a constituição da Te-oria da Forma adotada naquela instituição de ensino, daí, ainda hoje é aceita e adotada na disciplina de Metodolo-gia Visual, fomentando o pensamento formalista.

O desenvolvimento do trabalho teórico de Paul Klee deve-se ao incentivo de Walter Gropius, fundador e diretor da Bauhaus, que se interessava pelas pesquisas formais no campo da linguagem universal das artes. Neste sentido, Gropius não só contribuiu para sacramentar o pensamen-to de Klee, incentivando o entrelaçamento entre o traba-lho dos ateliers com as aulas teóricas na Bauhaus como também de vários professores da instituição, como Kan-dinsky, outro importante artista que teorizava sobre seus procedimentos criativos, publicando vários livros tratan-do deste assunto (KANDINSKY 1987, 1989, 1990), além de pintar vários quadros que imaginava serem transposi-ções dos efeitos musicais para suas pinturas. Enquanto Klee procurava desenvolver um trabalho lógico, constru-tivista, Kandinsky buscava a interação espiritual através da pintura expressionista.

2 - o pensamento criativo de Paul Klee A obra teórica de Klee é, provavelmente, o marco inaugu-ral das artes abstratas do campo geométrico. No entan-to, mais do que isto, sua proposta inaugurava uma nova vertente para o ato criativo das artes visuais, pois reve-lava um procedimento mental distinto, iniciando pelos alicerces filosóficos dos quais emergiam os pressupostos formais teóricos e metodológicos. Ao escrever a respeito, Klee elaborou um arcabouço metodológico consistente e singular, como veremos a seguir.

Apresentaremos alguns resultados dos estudos formais de Klee da obra: La Pensée Creatice. Écrits sur L`Art / 1, incluindo textos recolhidos e anotados por Jurg Spiller,

publicada em edição pela Dessais et Tolra em 1973. Ali encontramos propostas do autor com desenhos e textos que procuram demonstrar de modo claro e objetivo os ca-minhos seguidos para a constituição da Teoria da Forma.

De início, ele apresenta a base filosófica de seu pensamen-to, na idéia de dualismo, não apenas dos opostos, mas, inclusive, do ponto intermediário: o ponto “gris” como intermediário entre os opostos: caos e cosmos. Segundo refere-se o autor: “Eu inicio pelo caos, é a maneira mais ló-gica e a mais natural. Eu não me preocupo, pois posso me considerar em primeiro lugar como o caos.” (KLEE,1973,9).

A mesma noção de dualidade percebida no pensamento de Klee é parte dos questionamentos filosóficos desde Pla-tão. O cosmos grego resulta da síntese de dois princípios opostos: as idéias e a realidade cotidiana. Segundo o filó-sofo Platão, o princípio de movimento e de ordem revela o conhecimento do mundo que nos cerca: o ser (as idéias) e o não-ser (a realidade cotidiana) (TARNAS, 2008). O du-alismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta da ordem e da desordem, do bem e do mal.

A imagem de dualidade está presente, também, no pen-samento de outros filósofos e destacamos o de Descartes, filósofo do século XVII que influenciou, e ainda influencia, o pensamento ocidental moderno e da atualidade (TAR-NAS, 2008). No dualismo de Descartes, mente e corpo são substâncias distintas. À mente aproxima-se conceitos de intelecto, de pensamento, de entendimento e de alma do ser humano, sendo o outro ponto do dualismo referente ao corpo. As duas substâncias: res cogitans ou res extensa (KAMPER, 2008), mente e corpo, são distintas, de natu-rezas irredutíveis. Na visão de Kamper, o corpo reclama a não existência em relação à mente, e reage na atualidade desprezando a própria idéia preconcebida de corpo como extensão da mente.

O valor da imagem dual vai aparecer na filosofia antiga e contemporânea, e também nos estudos da lingüística, da semiologia, enfim, em vários princípios teóricos, filosófi-cos e em diferentes pensamentos.

Podemos refletir melhor a respeito do pensamento dual de Klee ao ler suas próprias palavras:

Nós dispomos, a partir daí, de duas energias: uma ofensiva e ou-tra defensiva que se sucedem ou se mesclam. Nós temos a tare-fa difícil de estabelecer um equilíbrio vivo entre estes dois pó-los; significação profunda da interpretação natural a partir da base de referência negro, branco, noção de equilíbrio antitético. (KLEE,1973,10)

Seguindo sua idéia, o ponto “gris” induz ao movimento cósmico e, por este ponto, espraiem-se os opostos que pertencem à natureza dual de todas as coisas. Caos e cosmos são representações máximas destes opostos e o ponto denominado ‘gris’ é o lugar onde se encontra a ‘au-sência absoluta’ dos opostos: a tênue membrana de limite dos opostos. Este ponto, segundo Klee, é caracterizado pela ausência de contraste.

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

Em termos objetivos, Klee propõe que seja considerada a existência do duplo (de um no seu oposto, o outro). Assim, o alto só tem existência a partir da comparação com seu oposto: o baixo; o mesmo sentido existencial ocorrendo entre o frio e o quente; o feminino e o mas-culino; o claro e o escuro etc.

A natureza dual das coisas é expressa na realidade, que enfo-ca o conhecimento de um pelo que não está contido no outro. Sem um não é possível compreendermos o outro. Não pode-mos compreender, por exemplo, o som sem sua relação com o silêncio. Também, no âmbito das artes visuais, a percepção da forma depende da existência do fundo e vice-versa.

A partir destas considerações, podemos entender as ba-ses filosóficas que emergem no pensamento de Klee e seguem para além: do dualismo à constituição do objeto metodológico, criativo, dos pressupostos formais que são comuns no ponto de ligação entre a visualidade e a musi-calidade, no mesmo ponto que mescla os extremos e de-manda a criação musical e também a composição visual. Em termos práticos, quando se refere à visualidade, Klee destaca a idéia de movimento contido na percepção de um (fundo) e de outro (forma) (ARNHEIM,1986), gerando um movimento constante e oscilatório. Assim também ocorre de um (o som) e de outro (o silêncio), que são os componentes básicos da música. Em seguida, apresentaremos os primeiros passos realiza-dos por Paul Klee para elaboração da Teoria da Forma. As páginas do caderno apresentam desenhos esquemáticos

e informações escritas identificando linhas esquemáticas de linhas melódicas.

Ex.2 – Paul Klee, Cadernos Pedagógicos. Introdução e Tradução de Moholy-Nagly.

Plano inicial para Ensino Teórico da Bauhaus alemã. Ed. Frederick A. Praedger, NY, 1953.

A representação acima é seguida de vários exemplos grá-ficos de movimento, linha melódica, e outras grafias rela-cionadas à música. Nosso trabalho, a seguir, é explicitar estes elementos iniciando pelo ponto, elemento mínimo da composição plástica. Para Klee o ponto não é sem di-mensão, mas sim executa o movimento zero (KLEE,1973).

Tratando da tensão existente entre um ponto e outro, ele entende a linha que tanto pode ser reta como curva, ou

Ex. 3 – Tabela de desenhos propostos por Paul Klee em correspondência aos textos, copiados de sua obra La Pensée Créatrice.

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ainda sinuosa, ou, quem sabe, até angulosa. A seqüência de pontos descreve uma linha que é a trajetória de um movimento. Isto ocorre também na música, quando uma seqüência de notas determina uma linha musical. Klee quer compreender a linha pela possibilidade de gerar mo-vimento. Ele vê na seqüência de pontos exatamente o que ocorre também na linha melódica: a seqüência de notas determina a trajetória da linha melódica.

Esta linha é denominada por Klee de linha ativa (KLEE,1973,105), pois executa um movimento perfeita-mente espontâneo (KLEE,1973). Na seqüência de dese-nhos podemos observar de que maneira Klee representa a linha ativa. As ilustrações estão aqui reproduzidas e se-guem com as explicações do próprio autor.

Os desenhos a seguir também são cópias da obra do autor e demonstram outros tipos de linhas e as similaridades entre os movimentos oscilatórios e a linha musical.

Ex.4- Desenhando a duas vozes, notas de Paul Klee para os Cursos da Bauhaus. Paul Klee Foundation, Kunstmu-

seum, Bern.

Linhas melódicas, contrapontos, harmonias, estão cor-relacionados com linhas contínuas do desenho, linhas contrapostas também do desenho e tonalidades harmô-nicas. Mas, sobretudo quando ele conceitua o ponto e a linha, contrapõe à nota musical, à linha melódica, aos tempos rítmicos e passa a representar o movimento no espaço bidimensional. Assim, Klee sistematiza a con-cepção do compasso na existência de uma estrutura de malha de construção, formada por linhas horizontais e verticais para construir estruturadamente o espaço bi-dimensional similar ao universo musical. Estas linhas, quando superpostas, vão formar módulos quadrados ou retangulares e serão por estes módulos que surgirá a relação entre a linha melódica e construção formal do quadro; a divisão de ritmo e a subdivisão do módulo es-tabelecendo definitivamente a relação entre as divisões do espaço bidimensional e o compasso musical. Nes-te sistema, Klee compreende como uma [...] estrutura é uma articulação dividual (KLEE,1973,207) e permite subdivisões proporcionando intenção rítmica. As sub-divisões dos módulos na estrutura encontram similari-dades na divisão rítmica dos compassos e a utilização modular de cada tempo do compasso encontra paralelo na subdivisão modular do quadro.

Assim, Klee facilita a compreensão desses conceitos, iniciando por definir os ‘ritmos estruturais primiti-vos’ formados pelas linhas horizontais e verticais. Este é o primeiro passo para a formação dos qua-drados mágicos.

Ex.5 – Paul Klee: exemplo de uma malha em quadrados constituídos a partir da composição de linhas horizontais e verticais.

Na imagem a seguir, apresentamos a malha de construção e, ao lado, uma pauta musical, com as subdivisões de um compasso quaternário.

Ex.6 – Paul Klee: exemplo comparativo de malha de con-strução com módulos quadrados e, ao lado, uma pauta musical de um compasso quaternário com as divisões

dos tempos.

Os ritmos estruturais representam o primeiro passo para elaborar a estrutura do quadro. Por eles, forma-se o sistema das composições pictóricas com divisões geométricas do espaço bidimensional. Em paralelo, na escritura musical os tempos do compasso podem ser subdivididos para atenderem às necessidades rítmicas da obra musical. E esta subdivisão sempre ocorrerá de modo a proporcionar valores modulares e correspondentes ao tempo definido pelo compositor, como uma semínima numa composição de compasso 4/ 4 corresponderá a uma unidade de tempo, enquan-to, se o autor desejar que este tempo seja subdividido, possibilitando com isto valores rítmicos diferencia-dos, ele estará utilizando duas colcheias ou quatro semicolcheias etc. que ocuparão o mesmo tempo da semínima. E na pintura, o valor modular poderá ser subdividido proporcionando meios de valorizar a composição pictórica.

Os desenhos apresentados a seguir demonstram corres-pondências com a divisão modular pictórica. Comparati-vamente, o quadrado da esquerda corresponderá a uma semínima, os dois retângulos a duas colcheias etc.

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Ex.7 - Paul Klee, módulos quadrados divididos em dois retângulos e em quatro quadrados: correspondências

com a escrita musical.

A partir da constituição de uma rede modular, Klee su-geriria várias possibilidades de malhas estruturais. Estas malhas atenderiam às necessidades de composições har-mônicas. Klee propõe dois modelos de malhas constru-ção estruturais: estruturas sem alternância’ (KLEE,1973) e estruturas com alternância (KLEE,1973). Ainda hoje, o design e a comunicação visual fazem uso dessas estrutu-ras no ensino e na formação do pensamento destinado à concepção de produtos e de imagens de identidade, entre outras aplicações.

Prosseguindo na apresentação da obra teórica, Klee trata da divisão do compasso – do tempo musical – e estabele-ce a relação que a divisão da linguagem visual. Chaman-do de ritmos culturais (KLEE,1973) ao sistema de divisão de um módulo em partes, ele determina uma unidade de medida, podendo ser relacionada ao compasso da música. Quando Klee trata da divisão do módulo a partir de uma norma bivalente ou medida a dois tempos (KLEE,1973) po-demos compreender as similaridades entre este sistema e um compasso binário. O desenho a seguir demonstra visualmente o proposto:

Ex.8 - Paul Klee: uma linha dividida em duas medidas iguais e acompanhando a proposição de Klee para a

norma bivalente ou medida a dois tempos.

Quando ele nomeia de norma bivalente está estabelecen-do que este segmento seja pertencente a um sistema cuja unidade de medida é um elemento modular e que, por sua vez, subdivide-se em duas partes iguais. Ao chamar este sistema de ‘norma bivalente ou medida a dois tempos’ está determinando que esta medida possa ser espacial ou temporal. Como podemos constatar no esquema apre-sentado, trata-se de um segmento de reta que é tratado também como medida de tempo.

O mesmo pensamento referente à divisão binária também é adotado para as outras divisões, assim como a norma trivalente ou medida a três tempos (KLEE,1973).

Poderemos observar no desenho a seguir o que representa a divisão de uma unidade modular em três partes iguais.

Ex.9 - Paul Klee: uma linha dividida em três medidas iguais e acompanhando a proposição de Klee para a

norma trivalente ou medida a três tempos.

Obedecendo ao mesmo critério, percebe-se também que há similaridade entre esta divisão e o compasso ternário. O desenho abaixo demonstra as equivalências entre os tempos do compasso ternário e a divisão da linha em três partes:

Ex10: Paul Klee: uma pauta musical apresentando um compasso ternário e, logo abaixo, a equivalência na

linha visual sub-dividida em três medidas iguais.

Klee propõe variantes para as normas. Para a norma bi-valente ou medida a dois tempos, é possível desenvolver uma variante que seria de uma medida a dois tempos a qual se ajusta uma dupla divisão, resultando numa medida a quatro tempos, como podemos constatar no desenho a seguir:

Ex11: Paul Klee: representação da norma bivalente com variante de medida em dois tempos.

Nesta variante, o módulo de medida é subdividido em duas unidades iguais que, por sua vez, abriga subdivisões, resultando num módulo subdividido em quatro partes iguais. Outra variante é a variante da norma bivalente com tripla divisão resultando numa medida a três tempos (KLEE,1973). Nesta variante, o módulo de medida é sub-dividido em duas unidades e cada uma dessas unidades é subdividida em três partes iguais.

Ex12: Paul Klee: representação da norma bivalente com variante de medida em três tempos.

Ao compararmos com a escrita musical vamos compre-ender que nesta norma está correlacionada à divisão do módulo, unidade de medida, com um compasso binário composto. Neste tipo de compasso, a unidade de tempo é dividida em dois tempos iguais e subdividida em três tempos, em cada unidade de tempo.

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Ainda em outra proposta, Klee apresenta a variante da norma trivalente com tripla divisão, resultando numa me-dida a nove tempos (KLEE,1973).

Apresentamos até o momento apenas alguns modelos propostos por Klee para estabelecer a relação entre as artes visuais e a divisão do compasso, a linha melódica, os valores musicais. A seguir, apresentaremos algumas imagens que demonstram não só a aplicação da Teoria da Forma de Klee e também os primeiros exemplos do pensamento correlacionado. 3 - Primeiras experiências pictóricasAs primeiras experiências realizadas por Paul Klee rela-cionando a música com as artes visuais ocorreram nas obras satíricas, utilizando a técnica da gravura. Na obra realizada em 1909 representa a crítica às músicas moder-nas daquela época. Na grafia da música que se encontra apoiada sobre a estante do piano, há uma série de signos indescritíveis e, no trajeto do trato alimentar da figura que executa a peça musical, há pequenos pontos que se avolumam até alcançarem o local em que o pianista está sentado: um penico. A imagem representa o efeito da peça musical no próprio pianista que a executa. Na representação, há tantas notas a serem dedilhadas que é necessário o uso de duas manivelas, fixadas aos pés do pianista, para que possam auxiliar na interpretação das notas mais graves e nas mais agudas. Podemos observar a gravura a seguir:

Ex.13 – Klee, Paul, O Pianista em dificuldade - Uma sátira: Caricatura de Música Moderna 1909.1. Bico de pena e aquarela, 16.5x18cm.

Felix Klee, Bern.

No sentido de demonstrar o interesse do autor pela repre-sentação conjunta da grafia musical e da pintura, apre-sentamos uma gravura, abstrata, realizada em 1914. Nesta obra, Klee utiliza os símbolos musicais em uma composição visual. Apesar de não estar à altura dos experimentos futu-ros, mesmo assim a representação demonstra a tendência do autor. Podemos observar a obra a seguir:

Ex. 14 – Klee, Paul, Instrumento de Música Moderna, 1914.10. Bico de pena, 17.2x16.9 - Felix Klee, Bern.

Nesta mesma época, Klee iniciava seus exercícios gráficos apoiados na linguagem abstrata. E, por meio dos estu-dos da forma, ele encontra um sentido para sua pesquisa. Apesar da trajetória pela representação figurativa, aos poucos os valores da figuração se tornam relativizados, na medida em que os elementos simbólicos da escritu-ra musical invadem o universo pictórico, revelando uma nova iconicidade, ainda assim pictórica, para os elemen-tos que são modos de representação do movimento. Há um trabalho realizado entre 1908 e 1909, desta etapa de desenvolvimento criativo que representa visualmente a idéia de movimento. Desenhando com a fermata é o nome desta obra que podemos ver a seguir:

Ex.15 – Paul Klee, Desenhando com a fermata, 1918.209. Bico de pena, 15.9x24.3 - Paul Klee

Foundation, Kunstmuseum, Bern.

Segundo KAGAN, na obra Art and Music, esta obra está relacionada ao “Scherzo” e emprega elementos formais abstratos - três linhas paralelas - que parecem desen-volver o movimento de uma linha melódica composta de acordes com três notas. As linhas descrevem um movi-mento no plano do quadro e criam a idéia espacial.

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O “Scherzo” é um forma musical cujo nome que significa jogo, brincadeira. Geralmente, é uma composição ligeira e breve. Na sua obra, Klee caracteriza o “Scherzo”, ou seja, as formas ligeiras e breves, por meio do emprego de seg-mentos de retas que mudam de rumo e criam formando o ambiente onde os jogos podem ocorrer. A fermata é outro elemento da música que está representada nesta cena.

Como elemento musical, a fermata é um símbolo que, ao ser empregado em uma obra, autoriza o intérprete a determinar o tempo de duração da nota sobre a qual o símbolo está representado. Ela determina o tempo, a espera. Nesta gravura, a fermata encontra-se no alto à esquerda e interrompe o caminho já iniciado pelas três retas, significando que a música já começara an-tes do espaço representado. Klee utiliza o símbolo da fermata como lhe convém. Modifica sua posição para dar outro significado: um olho que espreita, ou utiliza-a como elemento que encerra as trajetórias das retas paralelas. Esta noção de espreita está novamente pre-sente no ponto áureo do quadro, no quadrante direito inferior, para onde segue o conjunto de três linhas que percorreram o quadro. Neste ponto áureo encontra-se uma imagem, um olho com pernas ou, quem sabe, uma brincadeira, ou pássaro, enfim, um personagem fictício com duas longas pernas e dedinhos. Nesta figura en-cantadora, o espírito lúdico da obra está em evidência. E, nesta figura, a espera é mais uma vez evidenciada pela fermata que também destaca uma parte impor-tante da obra. 4 - Aplicação da Teoria da Forma para análi-se das pinturas de Paul KleeNeste sub-capítulo, procuramos demonstrar as corres-pondências entre a Teoria da Forma elaborada por Paul Klee e sua própria obra pictórica. Em cada pintura ana-lisada a seguir, perceberemos a preexistência de pressu-postos formais do pensamento do teórico e artista. As análises serão realizadas em pinturas do período compre-endido entre 1914 e 1932.

A primeira pintura, Coupoles Rouges et Blanches, de 1914, demonstra a influência da viagem de Klee à Euro-pa e à Tunísia. Nota-se a intenção de estruturar o espa-ço bidimensional e deixar em evidência a estrutura da malha de construção e, ainda na figuração, encontra-se referências a imagens reconhecíveis, assim como esque-mas de cúpulas arquitetônicas; arremedos de janelas e portas, insinuados por retângulos de diferentes medi-das; telhados insinuados por troncos de prismas, além do espaço urbanístico e do conjunto arquitetônico, re-velados pelo conjunto das formas geométricas, levando ao simbolismo do título da obra.

Analisando a imagem pelos pressupostos formais con-cebidos na Teoria da Forma, o que vemos é o seguin-te: comandam a composição as linhas verticais que se tornam diretrizes para estruturar o quadro em módulos

e sub-módulos. Enquanto as verticais são referências de um arremedo de malha de construção, as nuances das diferentes cores se incumbem de insinuar as linhas horizontais, completando os ‘ritmos estruturais primi-tivos’. E, no centro da composição, variando do verde ao ocre, percebe-se um arremedo de subdivisão mo-dular, como se fossem notas de um conjunto rítmico subdividindo um tempo musical. Podemos observar, na imagem a seguir, a métrica visual em correlação com o ritmo da musica:

Ex.16 – Paul Klee, Cúpulas vermelha e branca, 1914. Aquarela em superfície de cor e papel japonês colado sobre cartão. 14.6 x 13.7 cm - Kunstsammlung Nor-

drhein-Westfalen, Dusseldorf

O pintor realiza, durante este período, inúmeras obras que demonstram sua atenção para a questão formal de-finindo sua identidade de artista: da mente de um músico para as mãos de um pintor.

No mesmo ano de 1919, Klee realiza um trabalho mais es-truturado, no qual evidencia, ainda mais, a relação da pin-tura com a escritura musical. Trata-se de Rhythmic Wooded Landscape, que representa uma paisagem fictícia, composta de desenhos esquemáticos de árvores dispostas em espaços que são representados pelos intermédios entre linhas hori-zontais. Cada espaço contido entre estas linhas horizontais é constituído a partir de um valor modular. Enquanto o menor corresponde à metade do módulo, o maior é composto de três valores modulares. Em cada um desses espaços encon-tram-se círculos de tamanhos diferentes, também constitu-ídos a partir de um valor modulado e que são arremedos de cúpulas das árvores da paisagem. Há, no espaço tingido de terracota, uma imagem que insinua a silhueta de um came-lo. Este espaço é composto pelos três módulos.

Apesar de representado em silhueta, o animal surge entre supostas árvores cujas diferenças de dimensões remetem ao valor de tempo do elemento musical (o ritmo). O título também faz referencia ao ritmo. Portanto, por meio de Rhythmic Wooded Landscape Klee representa seus con-ceitos teóricos como vemos a seguir:

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Ex. 17 – Paul Klee, Paisagem rítmica com ár-vores, 1920. 41, óleo em cartão , 47.4 x 29.5 -

Formerly E. Horstmann, Hamburg.

Os princípios da Teoria da Forma aparecem nesta ima-gem visual, similares à notação rítmica, porque na escrita musical cada valor de tempo equivale à metade de ou-tro valor de tempo (mínimas, semínimas, colcheias etc. são referências de tempos correspondendo o próximo à metade do tempo do anterior). Na pintura, o que vemos são, também, elementos visuais, ou marcações estruturais visuais com medições variáveis.

A seguir, analisaremos a obra realizada em 1927, cha-mada: Flora on the Sand. Totalmente geométrica e composta de quadrados de medidas variáveis, a pintura demonstra como o pintor realiza seqüências de quadra-dos subdivididos, definindo módulos e sub-módulos. E, por meio deste artifício, Klee mantém a idéia de mo-vimento, como também ocorre na divisão do tempo da música. No detalhe esquemático, apresentado ao lado do quadro, podemos compreender a divisão modular, como tempos da notação musical e subdivisões dos módulos quadrados, como as subdivisões dos valores de tempo das notas musicais:

Ex. 18 – Paul Klee, Flora na areia - (1927). Aquarela sobre papel - Collection Felix Klee, Bern.

A duração de um tempo passa a ser uma unidade de me-dida representada pelos módulos e sub-módulos visuais. Este é um passo importante na representação futura dos quadrados mágicos.

Ex.19 – Paul Klee: exemplo de esquema demonstrando os valores modulares e as subdivisões, correspondendo a um módulo na parte superior direita do quadro Flora na areia, apresentado na ilustração anterior.

Na próxima obra, encontraremos a síntese da represen-tação da Teoria da Forma, pois, além de elaborar a es-trutura primitiva (a formação dos módulos quadrados), o movimento emerge como a resposta aos seus anseios. Pela cor, Klee realiza sua intenção na aquarela chamada Alter Klang, de 1925. Podemos observar a obra a seguir:

Ex.20 – Paul Klee, Música Antiga (tradução livre), 1925.236. Óleo sobre cartão, 38 x 38. - Kunstmu-

seum, Basel.

Klee realiza uma composição abstrata geométrica procu-rando transmitir a ambientação da época das velhas can-ções. Na obra Paul Klee: Arte and Music, Andrew Kagan comenta sobre esta obra:

Alter Klang é o espectro de evocações ascendentes que vem da obscuridade dos negros profundos e verdes concentrados nos ân-gulos do quadro para a serenidade dos rosas e amarelos no centro do trabalho (KAGAN,1989).

Utilizando a malha de construção com módulos constan-tes em uma composição inteiramente realizada pela cor, Alter Klang é planar e, ao mesmo tempo, as cores claras estão sobrepostas a um fundo de cor escura. Cada cor é

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um módulo signo cujo conjunto tem a intenção de reme-ter ao antigo tempo das canções harmônicas. Também, a partir destes mesmos módulos, nota-se movimento e ritmo onde cor e módulos definem o movimento dos quadrados mágicos. Cada módulo tem o valor de signo, pela cor re-presentada, mas também pode ser uma nota relacionada ao módulo seguinte, intuindo uma linha pictórica estrutu-rada, remetendo à idéia de movimento da linha musical.

Com Alter Klang, Klee constitui: [...] uma verdadeira estrutura como no compasso musical, a par-tir da qual ele pode compor com as cores [...]. Alter Klang é um paradigma de construção puramente pictórica, e a definição das possibilidades que a temática da cor contém. (KAGAN,1989).

Outro trabalho igualmente importante no sentido de de-monstrar a relação entre a música e as artes visuais foi realizado em 1930: Three-part Time with the Quartered e um trabalho utilizando a tinta guache. Esta obra apre-senta uma proposta ainda mais evidente da utilização dos módulos de cor que remetem aos tempos musicais. Não se encontram referências reais ou figurativas, pois a imagem dispensa a representação de um objeto real ou existente. Three-part Time with the Quartered, pelo contrário, representa um elemento da música que está identificado no título da obra. Three-part Time quer dizer: tempo em três partes, tem correspondência com o com-passo ternário. Vamos observar a obra a seguir:

Ex. 21 – Paul Klee, Divisão a Três Tempos. 1930. Guache, 44.5 x 61.2 - Marlborough Fine Art (London) Ltd.

Klee utiliza nesta obra um esquema com alternância para representar a grafia musical do compasso ternário. O primeiro tempo é identificado pela cor preta; o segundo pela cor cinza e o terceiro pelo branco. Estes elementos se repetem em várias seqüências de pretos/cinzas/brancos. Na composição musical, o compasso determina o ritmo. Assim também ocorre na representação desta pintura.

Na obra, Klee sintetiza a marcação rítmica de uma com-posição em compasso ternário - o primeiro tempo mais forte; o segundo menos forte; e o terceiro mais fraco. Representando cada tempo em preto (mais forte), cinza (menos forte) e branco (mais fraco) ele induz à represen-tação das nuances de marcação dos tempos na música.

Pelos quadrados mágicos, Paul Klee realiza as representa-ções harmônicas. Mas também elabora estudos de trans-parências de cores e superposições para representar a tridimensionalidade: a polifonia.

Ao superpor os elementos modulares, Klee encontra a maneira de representar uma obra polifônica (MAR-ÇAL,2009). O modo de resolver a questão é chamado por ele de cor polifônica. A polifonia constitui-se em um processo complexo de composição musical no qual cada grupo de instrumen-tos realiza, separadamente, seqüências de notas que não corresponde à linha melódica e sim a uma parte desta. Quando os conjuntos instrumentais realizam as seqüên-cias ao mesmo tempo, em conjunto, a melodia surge do somatório de todas estas partes.

Nas experiências de Klee, a polifonia emerge dos planos superpostos de cores transparentes. A superposição das cores transparentes permite vislumbrar o somatório de todas as cores e o resultado que é a forma definitiva. Em termos visuais, o somatório das cores também vai representar um elemento que surge do conjunto de to-das as cores.

Para fins didáticos, Klee apresenta os desenhos que cha-ma de Three-part Polyphony.

Nestes trabalhos demonstra a rede que se forma quando estruturas se cruzam e determinam uma nova estrutura que é o somatório das partes. Ele apresenta três grupos de elementos visuais: dois quadrados vermelhos, hachu-ras horizontais e hachuras verticais. Estes modelos apre-sentam-se à direita do quadro.

À esquerda vemos os três motivos superpostos. Nesta superposição nota-se um padrão composto dos três elementos. Assim, Klee encontra o meio de representar visualmente o efeito produzido pelos conjuntos ins-trumentais da música. Podemos observar o estudo a seguir:

Ex. 22 – Paul Klee, Polifonia a Três Partes, illustra-ção nas anotações de Klee´s para cursos da Bauhaus

(1921-22). Paul Klee Foundation, Kunstmuseum, Bern.

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As experiências com as cores realizadas por Paul Klee a partir de 1930 demonstram sua busca pela representação da profundidade. Para conseguir o recurso que necessita, ele passa a utilizar seqüências de pontos como o meio visual de representar a polifonia. Desta forma, torna-se possível cobrir a superfície do quadro com uma cor, su-perpondo outras sem que nenhuma delas fique encoberta totalmente, solucionando a questão da profundidade e da superposição de panos de cor.

Em 1932 Klee realiza a obra Polyphony como demonstra-ção clara de aplicação dos estudos teóricos e práticos. Na superfície do quadro, Klee realiza uma composição com retângulos de cor (estrutura de módulos) e aplica conjun-tos de cores em forma de pequenos pontos. Neste sistema encontram-se vários conjuntos de cores superpostas for-mando uma unidade e que sugere à Klee a polifonia. Na pintura a seguir é possível observar as superposições dos pontos e as transparências.

Ex. 23 – Paul Klee, Polifonia, 1932-3=273; têmpera em tela, 66.5 x 106 cm. Emanuel Hoffmann Foundation, Kun-stmuseum, Basel.

Em suma, as proposições teóricas de Paul Klee evoluíram ao ponto de alcançar seu propósito: a criação de um sis-tema visual que representasse o movimento, o ritmo, a linha melódica, definido pelas seqüências de notas que se tornam módulos; pelas seqüências de compassos da linha melódica que se tornam divisões do espaço; seguin-do valores mensuráveis na linha melódica que se tornam divisão modular no espaço visual. Por fim, realiza a nota-ção da polifonia, por meio da profundidade que consegue com as transparências obtidas pelas superposições de co-res da aquarela e do pontilhismo.

Conclusão:O estudo realizado por Paul Klee com a intenção de de-monstrar a relação existente entre a linguagem da música e da pintura é bem mais abrangente e detalhado do que fo-mos capazes de apresentar neste artigo. Alguns segmentos representando a Fuga, ou as Variações musicais nem foram sequer nomeados neste trabalho por limitação de espaço.

Mesmo assim, consideramos que o esboço do assun-to tornou possível demonstrar o propósito do pintor ao desenvolver uma teoria destinada ao aprimoramento da linguagem visual que pudesse solucionar para as artes vi-suais as dificuldades de representação do movimento e da profundidade.

Os estudos de Klee resultaram numa elaborada Teoria da Forma, mais tarde organizada por Moholy-Nagly, tam-bém professor da Bauhaus e que servem, ainda hoje, para fundamentar a didática da Metodologia Visual, sendo útil para a formação de designers e comunicadores visuais das Escolas mais tradicionais.

Utilizada na atualidade sem que se cogite a origem dos ensinamentos: a representação visual do movimento pela relação estabelecida com a escritura musical, o sistema adotado tem o sentido de revelar pressupostos formais para a representação. Por ter sido editada durante a es-tadia de Klee na Bauhaus e por ser ele considerado até os dias de hoje como um dos principais professores daque-la Instituição, a teoria que trouxe para as artes visuais as noções de modulação, ritmo, psicodinâmica das cores (não apresentado neste artigo) é, na atualidade, modelo da Boa Forma e, por este motivo, é comumente adotada no ensino do design e da comunicação visual como mo-delo pressuposto de qualidade estética.

Sendo assim, o valor da obra que relaciona a linguagem musical com a visual sequer é explicitado, utilizando-se apenas a tendência da criação artística por meios pres-supostos visuais.

No entanto, pelo fato de que nunca houve, em nenhum tem-po, um artista - pintor e músico - que tenha realizado um trabalho tão aprofundado, teórico e pictórico, procurando demonstrar os paralelismos entre as linguagens das artes, o pequeno demonstrativo deste artigo tem o valor de reviver sua obra e deixar, para mais adiante, o interesse despertado para maiores revelações a respeito de seus questionamentos.

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Rosana Costa Ramalho de Castro é pós-doutoranda do programa de pós-graduação em Letras da UFF, possui doutorado em História pela UFF (2004) e mestrado em Artes Visuais pela UFRJ (1995). É professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 1981 e atualmente ocupa a função de Professor Adjunto. É professora credenciada do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte- UFF e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - UFRJ. É membro da comissão de elaboração do Programa de Pós-Graduação em Design- UFRJ. Dedica-se à pesquisa sobre: semiótica aplicada; repre-sentações culturais; design para a sustentabilidade, comunicação visual, atuando principalmente nas áreas de sociologia cultural e da imagem, semiótica cultural e visual, design e comunicação visual e semiótica do design. É membro da Latin American Studies Association – Pitt/edu.

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Recebido em: 08/10/2008 - Aprovado em: 05/11/2009

Guerra-Peixe: da trilha sonora do filme O diabo mora no sangue ao Prelúdio nº 2 para violão

Clayton Vetromilla (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)[email protected]

Resumo: O presente texto apresenta as conclusões a que chegamos ao verificar a afirmação do violonista Nélio Rod-rigues, segundo a qual o Prelúdio nº 2 para violão (1970) de César Guerra-Peixe foi “idealizado” a partir da trilha sonora do filme O diabo mora no sangue (1967) de Cecil Albery Thiré. Depois de discutir questões gerais acerca da partitura dos cinco Prelúdios para violão publicada em 1973, aproximamos as características do Prelúdio nº 2 não só com os recursos anteriormente utilizados por Guerra-Peixe na música composta para o citado filme, como também nos duos para canto e violão Nesta manhã; Resta, sim, é remover; e Mãe d’água (1969). Palavras chave: Guerra-Peixe, violão, Prelúdios, trilha sonora.

Guerra-Peixe: from the soundtrack of the film o diabo mora no sangue [The Devil dwells in the blood] to the Prelude no 2 for classical guitar Abstract: The present text presents our conclusions on examining guitar player Nélio Rodrigues’s statement that Prelude No. 2 for Guitar (1970) by César Guerra-Peixe was “idealized” from the soundratck of the film O Diabo Mora no Sangue (1967, The Devil Dwells in the Blood), by Cecil Albery Thiré. After discussing general questions relating the score of the five Preludes for Guitar published in 1973, we compare the characteristics of Prelude No. 2 not only to the resources previ-ously used by Guerra-Peixe in the music composed for the mentioned film but also to those used in the duos for song and guitar Nesta Manhã (This Morning); Resta, Sim, É Remover (It Will Have to Be Removed); and Mãe d’Água (1969).Keywords: Guerra-Peixe, classical guitar, Preludes, soundtrack.

1- IntroduçãoEste estudo está inserido em uma pesquisa sobre as ca-racterísticas da linguagem violonística do compositor César Guerra-Peixe. No presente trabalho, apresenta-mos as conclusões a que chegamos ao verificar a proce-dência da afirmação do violonista e amigo próximo do compositor, Nélio Rodrigues, segundo a qual o Prelúdio nº 2 para violão (1970) de Guerra-Peixe foi “idealizado” a partir da trilha sonora do filme O diabo mora no san-gue (1967). Depois de situar a partitura dos cinco Pre-lúdios para violão de Guerra-Peixe, especulamos sobre a gênese do Prelúdio nº 2. Em linhas gerais, formulamos a hipótese que a sonoridade alcançada pelo compositor em suas obras para violão do período sugere uma metá-fora entorno da imagem da água, mais precisamente, do fluxo contínuo de um rio cujas águas correm tranqüila e inexoravelmente. A pesquisa não poderia ter sido re-alizada sem a colaboração de Cecil Albery Thiré (diretor do filme O diabo mora no sangue), do Cineclube João Bênnio (Goiânia, GO) e do Museu da Imagem e do Som (Goiânia, GO) por intermédio de Tânia Mara Quinta A. de Mendonça, a quem agradecemos.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

2- PanoramaConforme NAVES (1988, p.25-26), dentro do panorama modernista da década de 1920, ocorreu um “fenômeno de hierarquização dos instrumentos”: o piano, reservado ao teatro, identificado com a tradição romântica euro-péia, é preterido em lugar do violão, que, confinado ao espaço circense e identificado com as culturas populares, assume o papel de realizar a “mediação entre o erudito e popular”. Por outro lado, ao se estabelecer a cronologia do repertório escrito até 1979 por Francisco Mignone, Rada-més Gnattali, Camargo Guarnieri e Guerra-Peixe, verifica-se que, o instrumento passou, de fato, a merecer maior atenção a partir dos meados da década de 1960.

A lista de obras elaborada por VERHAALEN (2001, p.366-369) mostra que a primeira obra para violão de Guarnie-ri data de 1944, o Ponteio. Posteriormente, o composi-tor fez, em 1954, Valsa-choro e, em 1958, o Estudo nº 1. O quadro cronológico estabelecido por VETROMILLA (2002, p.34-35) demonstra que Guerra-Peixe escreveu as Três Peças em 1946, posteriormente, a Suíte. O Ponte-ado para viola [de dez cordas] ou violão, posteriormen-

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te, Prelúdio nº 5, do mesmo compositor é de 1966, e a Sonata bem como o Prelúdio nº 1, de 1969. Em 1970, ele compôs os prelúdios nº 2, nº 3 e nº 4 e, em 1979, sete (1. Fantasieta, 2. Dança fantástica, 3. Organum acompa-nhado, 4. Berimbau, 5. Modinha, 6. Ponteado com liga-duras e 7. Diálogo) do total das dez Lúdicas.

Disponível na internet, o catálogo de obras de GNATTA-LI (2009), informa que a Toccata em ritmo de samba nº 1 é de 1950. Em 1967, o compositor fez dez Estudos e, em 19[68], a Dança brasileira. Conforme a lista de obras elaborada por BORGES (1997, p.191-192), as primeiras peças para violão de Mignone foram assinadas com o pseudônimo Chico Bororó e escritas em 1953: Modi-nha, Minueto-fantasia, Repinicando e Choro. Em 1970, o mesmo compositor escreveu Canção brasileira, doze Estudos e doze Valsas. Na mesma década, ele fez ainda o Lundu do Imperador, de 1973, a Valsa de esquina e as Variações, ambas de 1976.

Confrontando fontes impressas pelo Serviço de Difusão de Partituras da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), de 1970, com a partitura publicada dos cinco Prelúdios para violão César Guerra-Peixe, em 1973, pela editora Arthur Napoleão, são encontradas diferenças consistentes no que diz respeito a títulos, subtítulos e dedicatórias. A re-visão da literatura acerca das mesmas levanta questões a serem esclarecidas inclusive no que diz respeito às carac-terísticas estilísticas do conjunto de peças.

3- os Prelúdios para violão de Guerra-PeixeEm 1969, Guerra-Peixe compôs duas obras para violão solo: a Sonata e o Prelúdio nº 1. Na partitura do Prelúdio difundida através de cópias heliográficas pela OMB en-contramos a dedicatória “para Léo Soares” (GUERRA-PEI-XE, 1970a), no entanto, na edição de 1973, não aparece o nome do citado violonista. Por outro lado, foi incluído o subtítulo “Lua cheia” (GUERRA-PEIXE, 1973, p.1-3).

São de 1970, outros três prelúdios para violão de Guerra-Peixe, todos distribuídos, inicialmente, pela OMB através de cópias heliográficas: Prelúdio nº 2, “para Geraldo Ves-par” (GUERRA-PEIXE, 1970b); Prelúdio nº 3, “ao prof. Syl-vio Serpa Costa” (GUERRA-PEIXE, 1970c); e Prelúdio nº 4, “a Waltel Branco” (GUERRA-PEIXE, 1970d). Na partitura publicada em 1973, o compositor acrescentou, respecti-vamente, os subtítulos: “Isocronia (em forma de estudo)” (GUERRA-PEIXE, 1973, p.4-6), “Dança fantástica” (GUER-RA-PEIXE, 1973, p.7-9) e “Canto do mar” (GUERRA-PEIXE, 1973, p.10-11).

VETROMILLA (2003, p.84-93) esclarece que, da trilha so-nora original composta para o filme Riacho do Sangue – o povo nordestino entre a tirania dos coronéis e o fanatismo religioso (1965), adaptação, roteiro e direção de Fernan-do Policarpo de Barros e Silva (Aurora Duarte Produções), Guerra-Peixe extraiu o Ponteado, para viola [de dez cor-das] ou violão (GUERRA-PEIXE, 19[70]). Em 1973, a mes-ma peça foi anexada à coleção dos prelúdios, com o título

Prelúdio nº 5, “Ponteado nordestino”, para viola [de dez cordas] ou violão (GUERRA-PEIXE, 1973, p.12-13).

Conforme GUERRA-PEIXE (1971, p.[37]), o Prelúdio nº 3 teve sua estréia realizada por Sebastião Tapajós em reci-tal no Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro (Se-minário de Música), em 1970. Para MARIZ (1983, p.243), Nélio Rodrigues é o “grande intérprete” dos Prelúdios e da Sonata, tendo sido ele, segundo TEIXEIRA (2000, p.19) quem estreou os cinco Prelúdios.

Ao comentar a gravação dos Prelúdios nº 4 e nº 5 rea-lizada pelo violonista francês, Roland Dyens, FRANÇA (1981) afirma que os mesmos são “de envolvente sedu-ção” e “demonstram o grande domínio do métier que o compositor ostenta”, além de expressarem “autenticidade nacionalista”. TEIXERA (2000, p.19) acrescenta que:

Com exceção do segundo prelúdio, todos os quatro restantes evo-cam cenas regionais brasileiras, chegando o compositor inclusive a dedicar uma linha (escrita num pentagrama auxiliar), para anotar a melodia que neste caso é fundamental para a atmosfera regional empregada nas obras.

Por outro lado, percebemos que, durante os anos que se-param a data da composição dos Prelúdios (o de nº 5 é de 1966, o de nº 1, 1969 e os de nº 2 à nº 4 são de 1970), a linguagem do compositor se transformou: a sonoridade do Prelúdio nº 5 contrasta consideravelmente com a dos Prelúdios de nº 1 à nº 4, que, por sua vez, formam uma unidade. É o violonista Nélio Rodrigues quem aponta o caminho para elucidarmos quando se deu tal alteração. Segundo TEIXEIRA (2000, p.24), Rodrigues em entrevista realizada em 12 de abril de 1992, teria dito que o Prelúdio nº 2 foi “idealizado” por Guerra-Peixe a partir da partitura do filme O diabo mora no sangue.

4- A trilha sonora de O diabo mora no sangue Trazendo no elenco João Bênnio, Ana Maria Magalhães, Hugo Broches, Dinorah Brillanti e Maria Pompeu, o filme O diabo mora no sangue tem direção de Cecil Albery Thiré e possui trilha sonora original assinada por Guerra-Peixe. A estória se passa às margens do rio Araguaia (divisa en-tre os estados de Goiás e Mato Grosso do Sul) e trata da relação incestuosa entre Júlio (João Bênnio) e sua irmã, Maria (Ana Maria Magalhães).

Guerra-Peixe escreveu dois temas para demarcar o con-traste entre os universos culturais envolvidos na trama, ou seja, os habitantes nativos da região (entre eles, Júlio e Maria) e o grupo de turistas, que vêm pescar à margem do rio. Conforme AGUIAR (2007, p.145), o produtor do filme, João Bênnio, queria “uma trilha de jazz moderno”; entretanto, Guerra-Peixe desaconselha argumentando que o uso de um gênero de música muito característi-co, torna o filme datado. Assim, “em plena era dos filmes autorais de custo médio”, quando “as orquestras cedem espaço aos pequenos conjuntos”, o compositor grava a trilha sonora do filme utilizando dois grupos distintos: o conjunto formado por Orlando Silva de Oliveira Costa (Maestro Cipó), no saxofone; Geraldo Vespar no violão,

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guitarra elétrica e viola de dez cordas; Antônio Maria, no piano, além de baterista e contrabaixista (não identi-ficados); e o Quinteto Villa-Lobos juntamente com coral misto (não identificado).

O primeiro conjunto interpreta um tema jazzístico (do-ravante, Tema jazzístico), que, juntamente com um frag-mento da canção Lá, lá, lá (Manuel de la Calva e Ramon Arcusa, na versão de Antônio José, interpretada pelo con-junto vocal Trio Ternura) marca a presença dos turistas da capital na região ribeirinha. O segundo conjunto gravou o tema que marca as cenas onde aparece o rio Araguaia (doravante, Tema do rio Araguaia) (Ex.1).

Reaparecendo integralmente também durante a cena de amor entre Júlio e Maria; e, nos instantes finais, quando, morto sobre a canoa, Júlio é carregado pelo rio, o Tema do rio Araguaia é utilizado durante a narrativa com diferen-te instrumentação, andamento e colorido harmônico. Por exemplo, quando Maria se banha nua no rio, a melodia surge executada por voz feminina (Ex.2) e, para sublinhar o clima de tensão entre os irmãos, o tema é tocado pelo clarinete (Ex.3), em ambos os casos com acompanhamen-to da viola de dez cordas.

5- o Prelúdio nº 2O fato de o violonista Manuel Geraldo Vespar ter partici-pado da gravação da trilha sonora do filme O diabo mora no sangue parece uma justificativa coerente para a dedi-catória que Guerra-Peixe incluiu na partitura do Prelúdio nº 2, quando publicada em 1973. O subtítulo “Isocronia” pode ser entendido como uma corruptela do termo “iso-cronismo”, isto é, conforme FERREIRA (1999), “qualidade de isócrono, ou seja, que se realiza em tempos iguais ou ao mesmo tempo”.

Guerra-Peixe utiliza a palavra isocronia para sugerir a existência de um fluxo sonoro decorrente do ataque inin-terrupto dos dedos da mão direita, à maneira dos pre-lúdios atemáticos ou dos estudos de fórmula fixa. Além disso, podemos supor que o compositor incluiu a expres-são “em forma de estudo” por considerá-lo uma espécie de “prelúdio atemático”, ou seja, conforme SILVA (1945, p.51), uma “sucessão de acordes, sem propósito de me-lodia, nem número determinado de compassos”, e que, possuindo “a feição de um acompanhamento de rítmica constante”, adquire o “caráter de estudo de acordes, ar-pejos ou de escalas”.

Ex.1: Fragmento inicial da melodia do Tema do rio Araguaia.

Ex.2: Fragmento inicial da melodia do Tema do rio Araguaia conforme aparece na cena em que a personagem Maria toma banho no rio. A linha melódica (notas com haste para cima) é feita por uma voz

feminina, o acompanhamento (notas com haste para baixo) é feito por uma viola de dez cordas.

Ex.3: Fragmento inicial da melodia do Tema do rio Araguaia conforme aparece na cena que mostra a tensão no relacionamento entre Maria e Júlio. A linha melódica (pentagrama superior) é feita pelo clarinete, o acompanhamento

(pentagrama inferior) é feito por uma viola de dez cordas.

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Em conversa informal com autor do presente texto, o violonista Léo Soares (a quem, inicialmente, Guerra-Peixe dedicara o Prelúdio nº 1) afirmou ter sido ele (Soares), quem sugeriu ao compositor utilizar dois pentagramas ao escrever para violão. Concluímos que o fato de o compo-sitor ter acatado a sugestão nos Prelúdio nº 1, nº 2 e nº 3 (c.32-40), bem como, posteriormente, em Breves III - 3. Arpejando, de 1981, decorre da necessidade de explicitar graficamente uma concepção instrumental cujo gérmen se localiza nos recursos expressivos utilizados na trilha sonora do filme O diabo mora no sangue.

No pentagrama superior, das “cordas soltas”, Guerra-Peixe escreve as notas obtidas ao pinçar com os dedos da mão direita as cordas previamente afinadas do violão. No pentagrama inferior, das “cordas dedilhadas”, o com-positor escreve os sons obtidos em cordas dedilhadas, ou seja, as notas produzidas ao pinçar com os dedos da mão direita as cordas previamente pressionadas pelos dedos da mão esquerda sobre o braço do instrumento (Ex.4).

Com a indicação “Allegro comodo (semínima = ca. 108)” a duração aproximada da peça, segundo GUERRA-PEIXE (1971, p.[36]), é dois minutos. Na gravação realizada por Sebastião Tapajós, o Prelúdio nº 2 é executado em 2’12’’ (TAPAJÓS, 1998). A forma da peça é A (c.1-8) B (c.9-20) A (c.21-24 e c.21-24[bis]) B’ (c.25-43) Coda (c.44-47).

As notas Ré e Si, ou seja, aquelas obtidas pinçando com a mão direita a quarta e a segunda corda do violão, confi-guram um plano sonoro que poderíamos considerar está-tico: as alturas não são modificadas e o desenho rítmico é sempre o mesmo. As notas obtidas pinçando com a mão direita a sexta e a terceira corda do violão previamente pressionadas sobre o braço do instrumento com os de-dos da mão esquerda configuram um plano sonoro que poderíamos considerar dinâmico. O deslizar paralelo dos dedos da mão esquerda sobre as mesmas forma, do ponto de vista vertical, intervalos de décima primeira, ora maior, ora menor. Do ponto de vista melódico, o uso de croma-tismo imprime à peça uma sonoridade dramática onde ao conhecido (as notas pedal e a regularidade rítmica) se sobrepõe o estranhamento e a indefinição tonal-modal (do uso de cromatismo).

6- Das três canções para voz e violão de Guerra-PeixeAntes dos Prelúdios nº 1 à nº 4, Guerra-Peixe escreveu três duos para canto e violão: Nesta manhã, de 27 e 28 de agosto de 1969, Resta, sim, é remover, de 31 de agosto de 1969 e Mãe d’água, de 19 de setembro de 1969, cujos manuscritos pertencem ao acervo da Biblioteca Nacio-nal, Divisão de Música e Arquivo Sonoro (DIMAS), Rio de Janeiro. Nesta manhã e Resta, sim, é remover são textos extraídos do livro Dez canções primitivas (1968) do poeta amazonense Elson Farias.

O encontro entre o poeta e o compositor provavelmente se deu em função do trabalho que reuniu a cantora Maria Lúcia Godoy, o violonista Daudeth Azevedo (Neco) e ou-tros músicos para a gravação do LP O canto da Amazônia (Museu da Imagem e do Som, 1969). Na ocasião, Elson Farias era o Diretor-Superintendente da Fundação Cultu-ral do Amazonas sendo Guerra-Peixe o autor das “trans-crições musicais” do disco onde foram reunidas obras de Cláudio Santoro, Waldemar Henrique, entre outros com-positores amazonenses.

As três obras mencionadas possuem uma concepção harmônica e melódica que está intimamente associada aos recursos manuais do violão. Previamente afinadas, as cordas soltas do instrumento funcionam como um plano sonoro estático; enquanto as notas presas (obtidas atra-vés da pressão dos dedos da mão esquerda sobre o braço do instrumento) configuram um plano sonoro dinâmico.

Do ponto de vista literário, nos dois poemas são signifi-cativas as metáforas entorno da imagem da água: “Nesta manhã és um vaso vago, inteira como água, simples e sóbria, azul” (Cântico II) e “Estarás assim mais nova que a água recém-rachada, como haste de lenha verde que acabou de ser cortada” (Resta, sim, é remover), por exem-plo. Ao mesmo tempo, o título Mãe d’água (“para canto vocalizado e violão” com versão também “para violon-celo e violão”) é auto-explicativo no que diz respeito à aproximação entre a sonoridade do violão e o universo imaginário do compositor acerca da sonoridade da água.Nesse caso, somadas as considerações anteriormente realizadas sobre da trilha sonora de O diabo mora no

Ex.4: c.1-4 do Prelúdio nº 2 para violão de Guerra-Peixe. No pentagrama superior, das “cordas soltas” e, no inferior, das “cordas dedilhadas”, foram abstraídas a configuração rítmica e as outras informações

(agógica, dinâmica) que a partitura original apresenta.

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sangue, supõe-se que Guerra-Peixe, a partir de 1967, adotou como elemento constitutivo de sua linguagem composicional para violão uma textura contrapontística na qual se estabelecem dois planos sonoros distintos: um, estático, das cordas soltas; e outro, dinâmico, das cordas presas. Nesse último, das cordas presas, o com-positor utiliza basicamente dois procedimentos: inter-valos paralelos e passagens cromáticas. Tal recurso pode ser associado à idéia do fluxo sonoro que traduz meta-foricamente o som das águas de um rio.

7- Considerações finaisA relação entre a música de Guerra-Peixe para cinema e sua obra para violão merece uma pesquisa mais ampla. Além de um estudo aprofundado sobre a trilha sonora Riacho do Sangue e do esboço realizado no presente tex-to sobre O diabo mora no sangue, urge, por exemplo, uma análise da música composta para o filme Simeão, o bo-êmio (1969), de João Bênnio. Conforme AGUIAR (2007, p.145), a trilha sonora escrita por Guerra-Peixe inclui a participação de Geraldo Vespar (violão e viola de dez cor-das), Nicolino Copia (flauta) e, “para não ficar sem fazer nada”, o próprio compositor (percussão).

Tendo estabelecido a relação entre a trilha sonora do fil-me O diabo mora no sangue e a partitura do Prelúdio nº 2, torna-se necessário algumas considerações acerca do trabalho a ser desenvolvido posteriormente. Estas se re-ferem essencialmente a dois domínios: a necessidade de se refletir criticamente sobre a produção para violão de autores brasileiros de estética nacionalista e a proposta metodológica do trabalho a ser realizado.

Quanto à primeira dessas áreas, fica-se conhecendo, so-bretudo, a gênese das obras mestras para o estabelecimen-

to da linguagem violonística brasileira e para a afirmação do instrumento no cenário da música erudita nacional. Quanto à segunda área, evidenciam-se as possibilidades didáticas do estudo, por exemplo: comparar com obras contemporâneas entre si bem como de épocas diversas.

Por outro lado, no que diz respeito às características do legado composicional de Guerra-Peixe, abre-se uma nova perspectiva. Em setembro de 1982, o compositor e Marlos Nobre participaram de uma mesa-redonda cujo tema ver-sava sobre as influências africanas na música brasileira.

Nome consagrado como compositor e pesquisador da música nacionalista, Guerra-Peixe, durante sua expo-sição, defendeu a tese de que as características gerais de escalas e ritmos presentes na música nordestina têm origem nos modos e estruturas rítmicas africanas. Marlos Nobre, além de destacar a importância da música trazi-da pelos negros vindos da África para a consolidação da identidade musical brasileira, afirma que foi um “privilé-gio” sua formação ter sido realizada “diretamente com o povo”, pois a música do povo não se pode imitar ou “usar como documento”: “ou você está impregnado dela ou faz uma coisa falsa” (Nobre, 1985, p.107).

Nota-se, por conseguinte, que a problemática envolven-do a trajetória estética do primeiro (Guerra-Peixe), bem como dos compositores que pertencem à sua geração, perdeu completamente o significado para o segundo (Marlos Nobre) e os jovens compositores plenamente integrados no cenário da música erudita de vanguarda. Nesse caso, mesmo que Guerra-Peixe seja considerado um dos principais ícones da música nacionalista brasilei-ra, os aspectos que aproximam sua obra do universalismo ainda estão pouco delineados.

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Clayton Vetromilla foi professor na UEMG (1995-1997) e na UFPel (1997/2004) e, desde de 2005, trabalha no Instituto Villa-Lobos, da UNIRIO. É Mestre em Música / Práticas Interpretativas (Violão) pela UFRJ, orientado pelo professor Turíbio Santos, e Bacharel em Música (Violão) pela UFMG, na classe do professor José Lucena Vaz. Estudou também com Edelton Gloeden (1996-1997, SP) e Eduardo Isaac (1998-1999, Argentina). Como camerista, trabalhou com o Quinteto Tempos e com o Quinteto Sescontu. Como solista de violão, destacam-se seus recitais no Festival Dilermando Reis (Guaratinguetá, SP, 2003) e no Programa Sarau do Museu Villa-Lobos (RJ, 2001). Atualmente é doutorando no PPGM da UNIRIO.

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Recebido em: 08/04/2008 - Aprovado em: 05/11/2009

Coesão discursiva nos Estudos de execução transcendental de Liszt: as últimas sete peças

Daniel Bento (UNESP, São Paulo, SP)[email protected]

Resumo: Parece urgente a investigação dos processos de coesão nos Estudos de execução transcendental de Franz Liszt: a emergência de um todo unificado é sugerida já no plano tonal que os coordena. O exame de outros aspectos que pudessem garantir unidade — vinculados aos materiais específicos das composições — constitui o foco do pre-sente trabalho. Seu recorte é o subconjunto formado pelas últimas sete peças do grupo, justificado pelo fato de elas demonstrarem uma afinidade particular, o salto de sexta ascendente antecedido por diferentes formas de ênfase. O fundamento teórico adotado é uma adaptação do conceito de subtematismo de Dahlhaus, que nutre o procedimento metodológico: a abordagem analítica. Os resultados mostram conexões baseadas não apenas em fenômenos harmôni-cos, mas também na recorrência de materiais flexíveis que sofrem transformações. Com isso, confirma-se a coesão dos recortes e a pertinência dos processos de integração no volume de Liszt. Palavras-chave: análise musical; coesão musical; subtematismo; Franz Liszt.

Discourse cohesion in Liszt’s Transcendental studies: the last seven pieces Abstract: It seems to be urgent the investigation upon the cohesive processes in the Transcendental studies by Franz Liszt: the emergence of a unified whole is already suggested in the tonal plan that coordinates them. The examination of other aspects that could guarantee unity — related to specific materials of the compositions — is this text’s main concern. Its focus is the subset formed by the last seven pieces of the group, and that is justified by the fact that they show a particular affiliation, the ascending leap of sixth preceded by different forms of emphasis. The theoretical basis adopted is an adaptation of Dahlhaus’ concept of subthematicism, which supports the methodological procedure: the analytical approach. The results show connections based not only on harmonic phenomena, but also on the recur-rence of flexible materials that are object of transformations. Hence, it is possible to substantiate the cohesion of the selected pieces and the relevance of the integration processes in Liszt’s volume. Keywords: musical analysis; musical cohesion; subthematicism; Franz Liszt.

1 – IntroduçãoFranz Liszt (1811-1886) termina seus Estudos de execu-ção transcendental (Études d’exécution transcendante, S 139)1 em 2 de abril de 1851; mas o processo envolvendo esse grupo formado por doze composições (publicadas em 1852) é muito anterior a tal data, concernindo mesmo aos seus primeiros anos de atividade composicional. Afinal, em 1826 criaria um conjunto que constituiria a origem da obra em questão, Estudo para o piano em quarenta e oito exer-cícios em todos os tons maiores e menores Op. 6 2 (Étude pour le piano en quarante-huit exercices dans tous les tons majeurs et mineurs, S 136, com primeira publicação em 1827). Não bastasse isso, em 1837 terminaria uma outra versão do material, Vinte e quatro grandes Estudos 3 (Vingt-quatre grandes Études, S 137, livro publicado em 1839); e em 1840 faria uma revisão independente da peça em ré menor (S 138, publicada em 1847) que integra esse longo projeto (SAMSON, 2003, p.136-137, passim).

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É relevante o fato de Liszt não ter abandonado — a des-peito das consideráveis alterações4 que, ao longo de décadas, tenham sofrido os materiais relacionados aos Estudos de execução transcendental — um plano tonal específico que encadeasse essas peças. Tal plano defi-nir-se-ia pelo movimento de terças entre as fundamen-tais das tonalidades. Numa observação mais detalhada, proporia a alternância entre tons maiores e menores marcada por deslocamentos descendentes de terça me-nor após os tons maiores e de terça maior após os me-nores. O resultado seria, de um ponto de vista funcional, a vizinhança entre tonalidades tanto relativas quanto anti-relativas. Desse modo, o primeiro Estudo far-se-ia em Dó maior; o segundo, em Lá menor; o terceiro, em Fá maior; o quarto, em Ré menor; e tal plano continuaria até a última composição, em Si bemol menor.

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Ou seja, não há dúvidas que Liszt tenha associado har-monicamente as doze composições dos Estudos de exe-cução transcendental na versão final que recebe esse título e nas formulações anteriores. Não obstante, res-taria investigar se conexões de outra ordem, vinculadas propriamente aos materiais utilizados, também patente-ariam um processo coesivo, processo capaz de estabele-cer uma dupla função discursiva: as partes integrantes do volume seriam independentes num primeiro patamar de fruição (as peças jamais perderiam suas autonomias formais, aspecto corretamente celebrado nos programas de recital, que com freqüência as separam); mas se po-deriam associar em um nível estrutural mais amplo — tangendo tanto a pares ou subgrupos ainda maiores de peças quanto ao todo do livro. Essa investigação teria especial pertinência no caso da versão5 de 1851, que se dá num período em que Liszt volta-se com particular interesse à composição e, em termos ainda mais especí-ficos, a estratégias de coesão criativa. Dois anos depois, para se dar um exemplo bastante efetivo — atestado (dentre tantos outros) por SAMSON (2003, p.216), HA-MILTON (1996, p.32, 44, passim), WALKER (2004, v.II, p.149-157) e ROSEN (1995, p.479-491) —, terminaria sua Sonata em Si menor (S 178, publicada em 1854), caso relevante de unidade num extenso discurso, em razão de contínuas afinidades de material, por sua vez garantidas pela transformação temática.6

Dado que dez dos doze Estudos de 1851 recebem tí-tulos — Preludio (no 1), Paysage (no 3), Mazeppa (no 4), Feux follets (no 5), Vision (no 6), Eroica (no 7), Wilde Jagd (no 8), Ricordanza (no 9), Harmonies du soir (no 11) e Chasse-neige (no 12) —, é incontornável indagar-se se a coesão das peças se poderia dar não mediante vínculos da arquitetura musical, mas por argumentos programáticos. A resposta mais rápida e efetiva para tal questionamento provém da versão de 1837, na qual nenhuma peça recebe qualquer título poético, a des-peito de, mesmo assim, nela já se fazerem perceber (mais claramente do que na versão de 1826) as funda-ções materiais da revisão de 1851.

Liszt, como se pode ver, de fato associou essas suas composições a fatores extramusicais (lembrando-se que Preludio é exceção, já que o título é puramente funcio-nal); e Mazeppa constitui, nesse sentido, o caso mais sólido, pois em seu fim há alusão textual à conclusão do poema homônimo de Victor Hugo7 (1802-1885). Mas tais manobras refletem, como afirma ROSEN (1995, p.499), pensamento posterior à composição, “estímu-los à apreciação do ouvinte”. Essa função dos títulos e mesmo de textos prefaciais na sua produção como um todo, inclusive no que tange a seus poemas sinfônicos, é reforçada pelo próprio Liszt — que afirma que “a única finalidade do programa é fazer uma alusão preliminar às motivações psicológicas que levaram o compositor a criar sua obra, motivações que ele tenta exprimir atra-vés dela” (Apud in WATSON, 1994, p.225) — e por auto-res voltados à sua música, a exemplo de WALKER (2004,

v.II, p.305, 307). Destaca-se que, até nos casos de maior referencialidade extramusical,8 o programa lisztiano não serve “propriamente como um plano de estrutura musi-cal” (WATSON, 1994, p.156); e, desse modo, a investiga-ção dos processos de coesão baseada na sintaxe musical em si mesma — proposta do presente trabalho — é justi-ficada independentemente dos títulos dos Estudos e de quaisquer vínculos que possam manter com elementos extramusicais. Para tal investigação, seria necessário que se comentasse o conceito de subtematismo, de Carl Dahlhaus (1928-1989).

2 – o subtematismoDahlhaus entende como fenômeno subtemático a pre-sença de elementos criativos que afetem a fruição das construções musicais sem se manifestarem nelas de for-ma estruturalmente rígida, definitiva. Tais elementos cor-respondem a proposições em essência abstratas, no limite perto da subliminalidade, que num certo sentido se fazem perceber mais através de suas variáveis atualizações ma-teriais do que através de sua essência geradora, que não se limita a uma única formulação concreta.

É fácil notar que o termo, referindo-se a “tematismo”, evoca a associação dos parâmetros intervalar (horizontal) e rítmico, própria da idéia de “tema”. Todavia, Dahlhaus assume como representantes do subtematismo ocorrên-cias que não precisam patentear tal vínculo (DAHLHAUS, 1993, p.216-218). Alguns dos seus casos que nesse senti-do devem ser considerados esclarecedores (BENTO, ZAM-PRONHA, 2007, p.3-4) integrarão o presente tópico. Após isso, indicar-se-á os termos em que o subtematismo re-quer adaptação — e resultante expansão — para viabilizar o tipo de estudo aqui proposto.

A obra tardia e pré-tardia de Ludwig van Beethoven (1770-1827) representa o contexto original das formula-ções de Dahlhaus acerca do subtematismo. Nessa produ-ção, o autor trata, dentre outras composições, do primei-ro movimento da Sonata para piano em Mi bemol maior Op. 81a (1810), Les adieux. Destaca, nele, ocorrência sub-temática isolada no parâmetro intervalar,9 baseada no cromatismo descendente — uma “sombra” (DAHLHAUS, 1993, p.209) acompanhando temas e outros componen-tes da superfície formal.

Como poderá ver o leitor, a seguinte reflexão sobre o primei-ro movimento de Les adieux e a posterior ilustração (Ex.1) comprovam que, no subtematismo, a dimensão intervalar não precisa vincular-se à rítmica (que é variada demais nas manifestações cromáticas da composição), apesar de tal in-tegração ser em certa medida esperada diante da própria alusão a “tematismo” 10 no termo criado por Dahlhaus:

É claro como resultado, de fato até mais do que claro, que, a des-peito de nunca o cromatismo ser um tema, no sentido de aparecer numa Gestalt temática, ainda assim, como estrutura ‘subtemáti-ca’, ele tem tão formidável influência no processo formal quanto os temas que poderiam ser vistos de fora como fundação do de-senvolvimento musical (Op. cit., p.209-210).

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Num outro caso de subtematismo, desta vez o parâmetro intervalar horizontal fica totalmente de fora; e é a ação harmônica que passa a ter força, dividindo importância com a rítmica (Op. cit., p.216-218).

Numa das últimas sonatas para piano beethovenianas, a Op. 110 (1822), em Lá bemol maior, o compositor estabe-lece conexões relevantes porém materialmente abertas. Vê-se isso no primeiro movimento, no começo da tran-sição (c.12-15), que tem construção vertical diretamente ligada aos quatro compassos iniciais da obra, definidos por tônica, dominante com sétima11 em segunda inver-são, tônica em primeira inversão e dominante com séti-ma. Mas esses segmentos divergem consideravelmente no geral — a tal ponto que a descrição verbal da harmonia (feita acima) é mais efetiva do que a ilustração musical (que mais patentearia as diferenças dos trechos).

Soma-se à ocorrência um processo paralelo, pois a pri-meira metade da progressão harmônica citada — tônica e dominante com sétima em segunda inversão — também

ganha importância nos c.5-6. Com isso, considerando-se os c.1-2, c.5-6 e c.12-13, vê-se que se firma junto à har-monia uma aceleração rítmica: chega a haver semínima pontuada no 1, mas no 5 o acompanhamento faz-se em semicolcheias, e finalmente no 12 aparecem as fusas.

Em suma, no primeiro movimento da Op. 110 há um “‘subtemático’ curso de eventos” (Op. cit., p.216) que, em suas bases, prescinde do parâmetro intervalar horizontal.

Portanto, vê-se nesses casos que a relação do subtema-tismo com o tipo de entidade musical normalmente cha-mada de “tema” é bastante tênue, mesmo com a utiliza-ção do prefixo “sub–”. Afinal, o subtematismo não só não necessariamente associa os parâmetros intervalar (hori-zontal) e rítmico como pode dispensá-los, nutrindo-se de outros dados musicais. Nesse sentido, sua relação com os processos temáticos justifica-se apenas no fato de haver tanto nesses últimos quanto no subtematismo alguma sorte de proposição que na composição demonstre perti-nência. Contudo, no conceito de Dahlhaus, tal pertinência

Ex.1 – Cromatismo subtemático na mão esquerda no Primeiro movimento da Sonata Les adieux de Beethoven (c.2-4, 17-19, 37-38).

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é mais conceitual do que puramente material, visto que o elemento subtemático não é uma entidade cristalizada; ele mais se materializa do que é, em si mesmo, material. Seus frutos manifestam-se na escrita; mas a diretriz que os gera continua a apontar para uma idéia, para um com-portamento abstrato. Isso exposto, comenta-se a seguir os dois pormenores que fazem o subtematismo aqui so-frer adaptação e, em certa medida, expansão.

Em primeiro lugar, sendo empregado nos Estudos de execu-ção transcendental de Liszt, o subtematismo emancipa-se da produção tardia e pré-tardia de Beethoven, seu âmbito original. Ainda que tal produção traia, em diversas situa-ções, relações que indiquem um princípio abstrato que se materializa de modos variados na composição, o processo jamais poderia ser considerado exclusividade do mestre do classicismo. Basta que se pense, por exemplo, na suíte de variação barroca12 e numa obra que bem a represente — como a primeira Suíte francesa (BWV 812, composta en-tre 1722 e 1725) de Johann Sebastian Bach (1685-1750), cujas partes, das mais variadas maneiras, nutrem-se da sucessão Ré-Lá-Si bemol-Lá (BENTO, 2006, p.375) — para que se constate que os recortes beethovenianos de Dah-lhaus podem, sim, ser especialmente interessantes no que diz respeito a seu conceito; mas de forma alguma estabe-lecem os limites repertoriais de suas implicações.

Em segundo lugar, Dahlhaus mais utiliza o subtematismo para identificar aspectos de coesão próprios de uma única composição: não desenvolve sua possibilidade de mediar a associação de diferentes peças. O autor chega, de fato, a esboçar isso quando mapeia um perfil abstrato definido por dois semitons separados por intervalos variáveis, per-

fil comum aos quartetos de cordas em Lá menor Op. 132 (1825), em Dó sustenido menor Op. 131 (1826) e em Si bemol maior opp. 130 (1826) e 133 (Grande fuga, 1826),13 de Beethoven (Id., 1989, p.83).

Paralelamente, aponta aproximações subtemáticas entre movimentos diferentes da já citada Sonata para piano Op. 110 (Id., 1993, p.217). Mas pensa no subtematismo primordialmente como ferramenta limitada às fronteiras da peça individual.

3 – os sete últimos Estudos de execução transcendentalExiste um aspecto precípuo que une os Estudos de exe-cução transcendental de números 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12. Ainda que firme a abstração que caracteriza o subtema-tismo — seu processo de fazer-se perceber em contextos que apontem para uma idéia que mais materialize do que seja, em termos mais estritos, material em si mes-mo —, tal aspecto recebe considerável ênfase ao longo dessas sete composições. É mais audível (e, na parti-tura, visível) do que qualquer outro fenômeno do livro que se compatibilize com o pensamento de Dahlhaus (e essa afirmação é válida mesmo se se considerar as ou-tras cinco peças que o integram). Como perfil conceitual que, das mais diversas formas, se cristaliza, pode ser de-finido pelo salto ascendente de sexta (maior ou menor), antecedido por alguma sorte de ênfase na primeira nota que o componha. É essa ênfase que faz com que um mo-vimento tão elementar quanto esse salto ganhe surpre-endente importância no volume, ainda que como uma “sombra” (para se lembrar de já citado termo empregado por Dahlhaus) de seus temas.

Ex.2 – Estudo no 6 de Liszt (c.44-45): Nota Ré cercada por Dó sustenido e Mi bemol, integrando em seguida salto de sexta ascendente.

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O perfil mencionado não surge no começo da composição no 6 (Vision), em Sol menor, mas apenas a partir do c.44 — doze compassos, assim, antes da coda. Nesse ponto, a nota Ré ganha destaque por aparecer três vezes e por ser cercada cromaticamente por Dó sustenido e Mi be-mol, que estabelecem bordaduras. Após, com a nota Si, no c.45, consuma-se o salto de sexta maior (Ex.2).

Liszt, logo, introduz na sexta peça elemento que marcará porção maior do que a metade dos Estudos de execução transcendental; só que o faz muito após ter estabelecido o tema e grande parte da estrutura dessa composição, num certo sentido mascarando, ao menos nesse momen-to inicial, o papel de tal elemento. Isso gera um interes-sante desdobramento: o c.44 tem importância maior no contexto global do volume musical lisztiano do que no contexto particular do sexto Estudo.

No entanto, mesmo se firmando tal interessante des-dobramento, é necessário grifar-se que esse desenho do Estudo no 6 — que corresponde à materialização do subtemático movimento ascendente de sexta antece-dido por ênfase na sua primeira nota — emerge pela transformação temática, tão importante na produção madura de Liszt (WATSON, 1994, p.201, 158). Eviden-cia-se isso ao se observar parte do tema da peça (Ex.3), com bordadura e salto descendente de terça (inversão, afinal, do deslocamento de sexta ascendente); salto esse que, por seu turno, obviamente se vincula ao pla-no tonal de terças descendentes do volume, inclusive por aparecer com reforços harmônicos que espelham esses intervalos. Em suma, a propriedade subtemática aqui em discussão se relaciona a uma idéia primordial

do livro, isto é, sua fundação harmônica geral, presente já desde a versão de 1826.

No Estudo no 7 (Eroica, em Mi bemol maior), como no seu predecessor, a partir de certo ponto se cristaliza o perfil conceitual do salto ascendente de sexta antecedido por alguma sorte de ênfase na primeira nota; e tal ponto é o c.38 (Ex.4, com a sexta maior), que integra a primeira variação do tema. Desta vez, a ênfase na primeira nota do salto consuma-se pela simples repetição: não há borda-duras. Comparando-se o que se vê na sétima peça, a essa altura, com a estrutura que emerge no anterior Estudo no 6 (Ex.2, acima), pode-se finalmente perceber, em Liszt, ca-racterística tão importante no subtematismo a que chega Dahlhaus, impulsionado por Beethoven. Tal característica já se impõe como corolário das reflexões apresentadas na segunda seção deste texto. Porém, é agora demonstrada com facilidade: as amplas divergências entre os mate-riais, a despeito de serem eles frutos de um mesmo perfil conceitual, são precisamente o que garante o relevo da qualidade abstrata de seu princípio gerador.

Na composição em Dó menor, Estudo no 8 (Wilde Jagd), o elemento subtemático aqui demonstrado se manifesta claramente de três maneiras. A primeira assume a ênfase na primeira nota do salto (de sexta menor) pela subida e descida cromática, que em tal nota tanto se inicia quanto se encerra (Ex.5); a segunda patenteia um desenho muito próximo daquele encontrado na sétima peça (Ex.6, sex-ta maior), apesar das divergências rítmicas; e a terceira garante por repetição (ainda que com a interpolação de outras notas) o destaque à altura que principia o salto (Ex.7, sexta maior).

Ex.3 – Início do Estudo no 6 de Liszt (c.1-2).

Ex.4 – Estudo no 7 de Liszt (c.38-39).

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Pode-se vislumbrar, a esta altura, o efeito acumulativo dessas estruturas no decurso dos Estudos de execução transcendental. É por meio desse pormenor que o prin-cípio subtemático por trás delas se impõe como fator de grande significância. Nesse contexto, grifa-se que a per-cepção do processo aqui em destaque se vai favorecendo cada vez mais, conforme o conjunto de obras que se in-terligam avança em seu próprio discurso.

O Estudo no 9 (Ricordanza), em Lá bemol maior, dá con-tinuidade às associações. Ocorrências do salto de sexta maior ascendente com sua primeira nota enfatizada nele são numerosas, tendo importância no próprio contexto melódico da composição e fazendo-se próximas, entre si, nas suas linhas gerais: a primeira altura da sexta é basicamente objeto de ornamentação. Apresenta-se aci-ma (Ex.8) a ocorrência fundamental do processo, no c.14,

Ex.5 – Estudo no 8 de Liszt, introdução (c.29-30).

Ex.6 – Estudo no 8 de Liszt, final da introdução (c.58-59).

Ex.7 – Estudo no 8 de Liszt, segundo tema (c.91-93).

Ex.8 – Estudo no 9 de Liszt (c.14, 30).

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bem como outra manifestação, no 30. Contudo, muitos pontos da peça poderiam também servir de ilustração (como atestam os c.49-50 e c.97, dentre tantos outros).

Chegando-se ao décimo Estudo, em Fá menor, vê-se que seu primeiro tema tem um dos seus traços mais mar-cantes no salto ascendente de sexta (menor) antecedido por ênfase na primeira nota que o compõe (comprovam isso os c. 6, c.7-9, c.22-23, c.25-26, c.27-28, dentre ou-tros). Nele, a nota que principia o salto é cercada cro-maticamente (Ex.9).

No caso da peça no 11 (Harmonies du soir, em Ré bemol maior), o perfil subtemático estudado é comum. O início da composição já o patenteia, pelas repetições de Lá be-mol (c.1) que antecedem a entrada da mão direita (c.2), esta com nota superior sexta menor (composta) acima das reiteradas alturas da outra mão. Logo depois, ainda, mais uma ocorrência se firma: a citada entrada destaca posteriormente Ré bemol, nota superior que é cercada

por outras alturas e seguida, após, por Si dobrado be-mol (estabelecendo-se dessa forma outro salto de sexta menor ascendente). Além desses exemplos (Ex.10), alguns outros poderiam ser dados (c.11-12, 58-59, 70-71).

Finalmente, verifica-se a destacada presença, no últi-mo Estudo (Chasse-neige), em Si bemol menor, do salto ascendente de sexta antecedido por ênfase na sua pri-meira nota. Em alguns casos, o processo é complexo: Liszt constrói o salto ascendente de sexta maior; mas, entre o ponto de partida — novamente enfatizado ao ser cercado cromaticamente — e o de chegada, insere uma apojatura, apojatura esta que por enarmonia também estabelece o salto de sexta, ainda que menor (Ex.11, com o salto Lá bemol-Fá e a apojatura Mi bequadro). O fe-nômeno repete-se em pontos como os c.11-12, c.57-58, c.59-60. Todavia, não bastasse isso, vê-se outros casos, em que o salto de sexta com primeira nota enfatizada dá-se sem apojatura intercalada (c.14-15 e c.52, por exemplo), de modo direto, portanto.

Ex.9 – Estudo no 10 de Liszt (c.6-7).

Ex.10 – Estudo no 11 de Liszt (c.1-2).

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O que se vê nesses sete Estudos, destarte, é um processo coesivo que vai muito além daquele sugerido pelo mero encadeamento tonal do volume, pois garante que os materiais das peças firmem conexões — tênues, afinal, porque jamais ocorre entre as composições situação ób-via como a reaparição (ou a reformulação) de um tema. Tais materiais acima discutidos traem transformações, se comparados entre si; grifam um princípio gerador co-mum, cujos resultados, plurais, apontam para a abstra-ção. Esse princípio é de natureza subtemática.

4 – Considerações finaisOutros processos coesivos poderiam ser adicionados à grande união múltipla aqui estudada, formada pelas sete últimas composições dos Estudos de execução transcen-dental. Concernem a dois pares de peças e fundamen-tam-se basicamente em relações harmônicas.

No primeiro par, formado pelos Estudos no 7 e no 8, há algo além da aproximação por tonalidades relativas, pois os dois temas do no 8 (principiando o primeiro deles no c.59 e o segundo no c.85) constroem-se inicialmente na tonalidade do no 7, isto é, Mi bemol maior. Essa anomalia numa estrutura que no geral dialoga com a forma-sonata parece relacionar-se diretamente com a tendência de in-tegração das composições do livro.

Por seu turno, no segundo par, que corresponde às com-posições no 11 e no 12, há planos tonais que se aproximam diante da retrogradação e da transposição. Afinal, pode-se sintetizar o percurso harmônico do Estudo no 11 por Ré bemol maior (início), Sol maior (a partir do c.38), Mi maior (58) e Ré bemol maior (98); e o caminho do no 12 se estabelece através de Si bemol menor (início), Ré bemol maior/menor (9), Mi maior (25) e Si bemol menor (36). Vê-se ainda, nesse contexto, que há dois centros comuns às peças, Ré bemol e Mi.

Por fim, deve-se acrescentar que no volume de Liszt não há apenas coesão (justificada em materiais particulares) envolvendo as últimas sete peças. Outras relações de in-tegração encontram espaço nas primeiras composições dos Estudos de execução transcendental (tratando exata-mente delas o segundo trabalho que consta das Referên-cias deste artigo). Assim, ainda que as últimas sete cria-ções apresentem o mais notável fenômeno subtemático do livro — que lhes caracteriza e não ocorre nas peças anteriores —, os Estudos de execução transcendental es-tabelecem um processo maior, envolvendo suas doze par-tes. Os desdobramentos (inclusive formais) dessa grande associação em muito transcendem as dimensões destina-das ao presente texto.

Ex.11 – Estudo no 12 de Liszt (c.9-10).

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BENTO, D. Coesão discursiva nos Estudos de execução transcendental de Liszt... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.25-33.

ReferênciasBENTO, Daniel. Bach em Chopin: comunicação, influência e permanência nos manuais do teclado. São Paulo, 2006. Tese

(Doutorado em Comunicação e Semiótica) — Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

BENTO, Daniel, ZAMPRONHA, Edson. Coesão discursiva nos Estudos de execução transcendental de Liszt: primeiras seis peças. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA (ANPPOM), XVII, 2007, São Paulo. Anais... São Paulo: ANPPOM/IA-UNESP, 2007. p.1-9. CD-ROM.

DAHLHAUS, Carl. Ludwig van Beethoven: approaches to his music. Trad. Mary Whitall. Oxford: Oxford university press, 1993.

___. Nineteenth-century music. Trad. J. Bradford Robinson. Berkeley, Los Angeles, London: University of California press, 1989.

HAMILTON, Kenneth. Liszt: Sonata in B minor. Cambridge: Cambridge university press, 1996.ROSEN, Charles. The romantic generation. Cambridge: Harvard university press, 1995.SAMSON, Jim. Virtuosity and the musical work: the Transcendental studies of Liszt. Cambridge: Cambridge univer-

sity press, 2003.WALKER, Alan. Franz Liszt. Ithaca: Cornell university press, 2004. 3v.WATSON, Derek. Liszt. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1994. (Estante de música).

notas1 Catálogo de obras de Liszt organizado por Humphrey Searle (1915-1982).2 ‘O título faz referência a quarenta e oito peças, dando a entender que as doze então publicadas seriam apenas o primeiro de

quatro volumes. Todavia, os outros três volumes jamais foram elaborados.3 Ocorre aqui, como se pode ver, questão similar à do volume de 1826: Liszt assume um número de peças (vinte e quatro em

1837) que não corresponde ao efetivamente encontrado na publicação. Assim, mais uma vez se supõe que tenha planejado uma continuação (através de volume posterior), nunca consumada.

4 A maior alteração sem dúvida diz respeito à total exclusão, em versões posteriores, dos materiais da composição no 11 de 1826. Em função dessa eliminação, Liszt transpõe para Ré bemol maior as idéias da peça no 7 desse ano (originalmente em Mi bemol maior), a partir disso chegando a um outro Estudo no 11 em 1837, que nutrirá a composição correspondente de 1851. Paralela-mente, elabora novo material para ocupar o lugar da transposta composição no 7, como comprova o volume da década de 1830 — que também nesse caso serve de base para o da década de 1850.

5 Vinculada a pesquisa de Pós-Doutorado atualmente desenvolvida pelo autor no Instituto de Artes da UNESP, com bolsa da FA-PESP. Em seu primeiro estágio, a pesquisa é supervisionada pelo compositor Edson Zampronha; após, passa a ser pelo atual diretor do Instituto, Marcos Pupo Nogueira.

6 A transformação temática pode ser definida como uma técnica baseada tanto na variação quanto no desenvolvimento de estrutu-ras temáticas. Por meio dela, temas diferentes ou contrastantes se revelam, após observação mais atenta, manifestações de um mesmo componente criativo.

7 Parte de As orientais (Les orientales), obra de Hugo publicada em 1829.8 Como a segunda das Duas lendas (S 175, 1863): Lenda de São Francisco de Paula marchando sobre as ondas.9 Dahlhaus menciona a “quarta” cromática descendente como elemento integrador (1993, p. 209); mas a estruturação exclusiva

desse intervalo não é imprescindível na obra.10 Afinal, “tema” pressupõe a cristalização de uma proposição intervalar-rítmica — nem apenas intervalar nem apenas rítmica.11 Todavia, nessa última harmonia há alguma divergência não mencionada por Dahlhaus (1993, p. 216), se se comparar o c.15 como

c.4. Neste, vê-se dominante com sétima em estado fundamental; naquele, dominante com sétima em primeira inversão.12 A suíte de variação caracteriza-se por relações unificadoras entre suas diferentes peças, relações que podem concernir a mate-

riais motívicos ou a planos tonais aparentados.13 Originalmente parte do Op.130.

Daniel Bento é Professor pesquisador do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, com bolsa de Pós-Dou-torado da FAPESP. Seus trabalhos publicados nos últimos anos vêm envolvendo interligações entre a análise musical, a estética e a performance. Bacharel em Composição e Regência pelo citado Instituto, é também Mestre (bolsa CNPq) e Doutor (bolsa FAPESP) em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação, sua pesquisa de Iniciação Científica (bolsa FAPESP) foi premiada no XI Congresso de Iniciação Científica da UNESP (1999) e tornou-se o livro Beethoven, o princípio da modernidade (Annablume/FAPESP, 2002). Seu próximo livro — A Nona sin-fonia e seu duplo — será publicado em breve pela Editora da UNESP.

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Recebido em: 20/01/2009 - Aprovado em: 02/10/2009

O modernismo no estilo musical tardio de Gabriel Fauré: aspectos estilísticos e formais do Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op.115

nahim Marun (UNESP, São Paulo, SP)[email protected]

Resumo. Análise dos aspectos estilísticos da última fase composicional de Gabriel Fauré, focando sobre aspectos harmônicos, contrapontísticos, rítmicos e formais encontrados no Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op.115.Palavras-chave: Gabriel Fauré, análise musical, estilo musical, música de câmara, interpretação musical.

The modernism in the late Gabriel Fauré’s musical language: stylistic and formal features of the First Movement of the Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op.115

Abstract. Analysis of Gabriel Fauré’s late musical style, with focus on the harmony, counterpoint, rhythm and formal structure of the First Movement of the Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115.Keywords: Gabriel Fauré, musical analysis, musical style, chamber music, musical performance

1. IntroduçãoGabriel Fauré (1845-1924) vivenciou uma época de gran-des mudanças no pensamento musical ocidental. Ao longo dos anos, o compositor absorveu essas transformações e construiu lentamente um estilo musical original, comple-xo e refinado. Sua música transborda uma grande “since-ridade artística”. Esse conceito, renegado por sua aparente ausência de valor científico, surgiu resgatado por CABAL-LERO (2001, p.11-57), no livro Fauré and French Musical Aesthetics. No primeiro capítulo dessa obra, intitulado The Question of Sincerity, demonstra-se a importância capi-tal desse parâmetro de valor para Fauré e para toda uma geração de artistas franceses do início do século XX. O autor cita as próprias palavras Fauré: “Há certas obras que não necessitam ser catalogadas como arcaicas ou moder-nas, porque elas são belas e sinceras.” (CABALLERO, 2001, p.16). Charles Koechlin (1867-1950) assim se referiu a seu mestre: suas sonatas “me iluminaram com luz serena e absoluta sinceridade”. (CABALLERO, 2001, p.18).

Neste artigo veremos uma análise de vários elementos importantes da linguagem musical tardia de Fauré e res-saltaremos a importância capital do seu estilo para a pro-dução estético musical do século XX.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

2. o amadurecimento artístico e os dois Quintetos para piano e cordasSegundo ORLEDGE (1979, prefácio), podemos dividir a vida e obra de Gabriel Fauré em três fases criativas. O primeiro período de 1860 a 1885; o segundo período de 1885 a 1906 e o último período de 1906 a 1924. Fre-qüentemente mencionado como um dos principais repre-sentantes do movimento romântico francês, o compositor é bastante reconhecido pelos trabalhos de sua primeira fase “romântica”, que figuram com relativa freqüência nos programas de concertos dentro e fora da França. Como exemplo desse primeiro período, podemos citar a Ballade Op. 19 (1881), composta originalmente para pia-no solo e orquestrada mais tarde por sugestão de Franz Liszt (1811-1886), a Premier Sonate pour Piano e Violon Op. 13 (1875), o Premier Quartour avec Piano Op. 15 (1876-9), algumas canções como Après un Rêve Op. 7 no. 2 (1878), Automne Op. 18 no. 3 (1878), Notre Amour Op. 23 no. 2 (1879) e os primeiros opus das treze Barcarolas e dos treze Noturnos para piano solo.

No entanto, são nos trabalhos da segunda e terceira fases composicionais que sua linguagem adquire uma força ar-tística sem precedentes. Segundo COPLAND (1924/1991,

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MARUN, N. O modernismo no estilo musical tardio de Gabriel Fauré... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.34-42.

p.49), o longo período de amadurecimento, necessário para depurar a linguagem de Fauré, injustamente tornou-se um fator para lançar sua obra a um relativo esquecimento. Tal-vez o público e a crítica parisienses dessa época estivessem grandemente seduzidos pelo entretenimento dos années folles, ou pela avalanche de experimentação ousada trazi-dos pelos jovens compositores e pelas influências das cul-turas extra-européias. A discreta modernidade da lingua-gem de Fauré do último período não lhe trouxe o merecido reconhecimento. No mencionado artigo, publicado exata-mente no ano da morte de Fauré, o jovem Aaron Copland nos chama a atenção para as grandes inovações presentes no trabalho tardio de Gabriel Fauré. Copland considerou Fauré como o “Brahms da França”, explicando que “não significa absolutamente que (Fauré) imite Brahms, pois ele possui um gênio, um estilo particular e uma técnica tão perfeita quanto o mestre alemão.”

É muito interessante buscar alguns dos fundamentos que originaram essa constatação e analisar a ambigüidade musical presente na obra de ambos os compositores - Brahms e Fauré - considerando-se suas muitas intersec-ções estéticas. Em artigo da Current Musicology, ARNO-NE (2006) discute a música de Brahms e a ambigüidade inerente aos elementos de sua música. Podemos concluir que vários pontos de vista defendidos pelo autor pode-riam ser igualmente aplicados à música de Fauré, como por exemplo, a pouca diferenciação de texturas entre a melodia-acompanhamento e a relativização de parâme-tros formais, métricos e harmônicos. Para citar algumas passagens específicas, vejamos as típicas hemíolas tão exploradas por Brahms, que aparecem insistentemente no quarto movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115 e o tratamento da harmonia em ambos os autores que evitam sistematicamente as posições funda-mentais dos acordes. No caso específico de Fauré, a fusão da tonalidade com os modos eclesiásticos confere uma originalidade particular ao seu sistema harmônico. Ainda podemos constatar em ambos os compositores, muitos exemplos de texturas musicais que fundem admiravel-mente bem as tramas da melodia e do acompanhamento.

Segundo CABALLERO (2001, p.26), Émile Vuillermoz, que fora um dos alunos ilustres de Fauré, escreveu crítica so-bre o Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115 em 1921 e endereçou, em suas entrelinhas, uma crítica severa ao “grupo dos seis”. Assim se expressou Vuillermoz: “Nos seus quatro movimentos há mais incorporações de modernidade do que em todas as bandeiras agitadas por certos aprendizes em música, ansiosos em estabelecer uma revolução em benefício próprio”.

Segundo COOPER (1951, p.141), a partir de 1907, as obras de Fauré praticamente renunciam à cor, e até mesmo a escrita ornamental pianística, típica de sua primeira fase, foi progressivamente modificada. Ainda segundo COOPER (1951, p.152), “o conteúdo intelectual tornou-se denso, as harmonias cada vez mais elípticas, as linhas melódi-cas cada vez mais severas, econômicas e construídas com menos notas.” Fauré foi um dos primeiros compositores a

liderar um movimento para a remoção do “não essencial” da música, que se tornou uma tendência importante para a vanguarda musical do pós-guerra 1914-18.

No domínio dos quintetos de corda com piano, Fauré contribuiu com duas obras primas para o gênero: O Pre-mier Quintette pour Piano et Cordes Op. 89 em Ré menor (1906) e o Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115 em Dó menor (1921). Segundo SMALLMAN (1996, p.113), tais obras demonstram uma pureza clássica de estilo e um notável equilíbrio. Fauré expande sua técnica musical, impregnando esses quintetos de uma nova in-tensidade, constantemente emocional, porém carregados de moderação e contenção. Segundo ORLEDGE (1979, p.314), Eugène Ysaÿe (1858-1931), com o seu quarteto e o próprio Fauré como pianista, deram a primeira audição do Premier Quintette pour Piano et Cordes Op. 89 no Cer-cle Artistique de Bruxelas, no dia 23 de Março de 1906. Segundo SMALLMAN (1996, p.114), o grande violinista assim descreveu a natureza essencial do pensamento do compositor nessa obra: “total rejeição do exibicionismo” e uma habilidade para criar uma “música absoluta, no mais puro sentido da sua expressão”. Conforme o catálo-go de ORLEDGE (1979, p.323), o Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115 foi estreado na Société Nationa-le de Paris em 21 de Maio de 1921, com Robert Lortat (piano), André Toumet e Victor Gentil (violinos), Maurice Vieux (viola) e Gérard Hekking (violoncelo).

3. Algumas particularidades da harmonia empregada por Gabriel Fauré:Segundo GERVAIS (1971, p.272-3) comparando-se a lin-guagem harmônica de Debussy e Fauré observamos que ao contrário de Debussy, “Fauré reuniu modalidade e to-nalidade numa fusão tão íntima que elas formam uma única e perfeita linguagem harmônica”.

Sabe-se que na época de Fauré, o uso dos modos já não era uma inovação dentro do sistema tonal. Podemos assinalá-los já em Beethoven (Heiliger Dankgesange), em César Frank (Prélude, Choral et Fugue) e em diversas obras de Chopin (a exemplos das Mazurcas, Concertos e Baladas), para citar somente alguns exemplos. Porém, na maioria dos casos, os modos gregorianos eram incor-porados em momentos específicos para obtenção de um efeito característico. Na música de Fauré, no entanto, ocorre uma total integração destes modos ao sistema to-nal, revigorando e transformando a percepção da própria tonalidade. Segundo LONG (1981, p.21), a habilidade em trabalhar com estes modos teve origem nos dez anos de estudos rigorosos que o compositor realizou na tradicio-nal École Niedermeyer de Paris, conhecida por preparar alunos para o ofício de mestres cantores e organistas.

A técnica composicional de Fauré utiliza-se de escalas tonais e modais sem levar em consideração suas dife-renças e polaridades. O compositor criou uma lingua-gem que funde escalas semelhantes, ou seja, considera aparentadas as escalas com polaridades comuns. Muitas

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vezes o compositor combina até mesmo dois tetracor-des distintos, um de cada modo musical, criando assim uma nova escala musical. Outras vezes, Fauré enfraque-ce o efeito da nota sensível, abaixando-a em meio tom. Segundo JOHANSSON (1999, p.63), “paradoxalmente, o elemento que parece constituir obstáculo principal para uma melhor apreciação das obras tardias de Fauré - o estilo harmônico singular e muito complexo - constituem também sua qualidade mais encantadora.” Ainda segun-do esse autor, “a linguagem harmônica de Fauré parece resumir e sintetizar todos os recursos e todas as possibi-lidades do sistema harmônico tonal, e ao mesmo tempo incorpora os elementos mais antigos da música modal.” A cadência plagal, justamente por sua característica modal e ausência da nota sensível, tornou-se um dos meios de articulação e de conclusão musicais favoritos de Gabriel Fauré. Podemos observá-las na articulação de fraseado nos compassos 9, 21 e 182 do Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115. No exemplo a seguir, em poucos compassos extraídos desse quinteto, podemos constatar três procedimentos típicos da linguagem de Fauré: a nota

Lá bequadro - no compasso 181 - insinua uma modula-ção para o modo lídio, se relacionarmos a frase anterior à tonalidade de Mi bemol maior que é confirmada logo a seguir; ou indica uma passagem pelo modo dórico se relacionarmos a frase à tonalidade de Dó menor, tônica da obra. Uma típica cadência plagal aparece no compasso 182-183. Podemos observar também o emprego da enar-monia da nota Mi bemol - Ré sustenido, que imediata-mente conduz a tonalidade para outra região.

Fauré usou com muita parcimônia a escala de tons inteiros, normalmente aplicando-a em passagens curtas ou então integradas ao contexto tonal-modal. Podemos observá-la no exemplo seguinte, na linha melódica. Tal escala apa-rece harmonizada com acordes de configurações seme-lhantes aos acordes clássicos de Jean Philippe Rameau (1683-1764), ou seja, os arquetípicos acordes de quinta e sexta acrescentada. Percebemos mais uma vez, a criação de um sistema musical híbrido e elástico que funde magis-tralmente os princípios da tonalidade clássica a elementos musicais novos, nesse caso, a escala de tons inteiros.

Ex. 1: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c.179-186.

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A profunda integração desses sistemas de composição e escalas diversas provoca no ouvinte uma sensação auditi-va inovadora de dilatação do sistema tonal. JOHANSSON (1999, p.63-64) defende a idéia que a linguagem de Fau-ré “escapa a todos os métodos convencionais de análise harmônica. A análise tradicional em algarismos roma-nos, mesmo quando alargada incluindo acordes altera-dos ou cromáticos, é claramente insuficiente”. A “análise schenkeriana indica com clareza a longa direção tonal, mas parece ser incapaz de explicar as origens de certas complexidades harmônicas presentes no primeiro plano.” A principal falha de muitos dos métodos analíticos é a exigência de decisões categóricas, excluindo as interpre-tações alternativas, e impondo às situações equívocas uma só possibilidade de resolução.

A harmonia de Fauré floresceu dentro do equívoco e não se explica completamente ou corretamente partindo-se de um só ponto de vista analítico. JOHANSSON (1999, p.69) assinala que o equívoco harmônico em Fauré não se con-figura simplesmente pelo uso de acordes individuais que se resolvem de maneira inesperada, mas sim pelo empre-go sistemático de um equívoco sustentado que resulta em uma série de enganos individuais, provocando uma se-qüência de ambigüidades sucessivas que envolvem a tona-lidade e sua direção em um complexo caleidoscópio tonal.

Segundo ORLEDGE (1979, p.246), Fauré explora a am-bigüidade e a flutuação harmônica através do uso de acordes alterados, ou seja, acordes diminutos ou aumen-tados que muitas vezes se encadeiam dando a impressão

Ex. 2: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 73-77. Escalas de tons inteiros na linha melódica harmonizadas tonalmente

Ex. 3: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 171-176. Uso de cromatismo em cadeia e de acordes alterados

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de “modulações” auditivas que de fato não ocorrem. As alterações são empregadas em todos os graus da escala, com uma predileção pelos III e VI graus. JOHANSSON (1999, p.78) nos confirma essa informação, assegurando que muitos dos encadeamentos harmônicos audaciosos de Fauré não se confirmam em modulações definitivas, mas apresentam-se somente como sugestões fugazes desse procedimento tonal. Freqüentemente “existe a sensação de estarmos muito longe do nosso ponto de partida, porém na verdade, estamos somente a um passo da resolução”.

4. Considerações sobre o contraponto e rit-mo: Segundo ORLEDGE (1979, p.255-258), no segundo e ter-ceiro períodos, o compositor criou uma técnica inovadora onde ocorre uma interpenetração entre o ritmo melódico e o ritmo harmônico. Geralmente a tensão da harmonia aumenta enquanto a tensão melódica decresce ou vice-versa, criando uma alternância paradoxal entre equilíbrio e conflito. Segundo MELLERS (1947, p.61-2), “Fauré criou um idioma de potência quase bachiana por meio de gran-de vigor na linha melódica e de um domínio rigoroso so-bre o baixo. A melodia e o baixo são interdependentes” (exemplo 4).Segundo VUILLERMOZ (1983, p.136), “a linha melódica de Fauré caracteriza-se geralmente por frases longas e expansivas com intervalos largos”. Por outro lado, segundo JOHANSSON (1999, p.78), pequenos movi-mentos contrapontísticos, geralmente de um tom ou de um semitom no interior da trama harmônica são igualmente muito importantes na música de Fauré. Muitas vezes, a re-escritura enarmônica de uma nota a insere dentro de um novo contexto e lhe confere um novo significado.

Nas suas últimas obras, Fauré procurou não evidenciar a métrica e os acentos convencionais dos tempos fortes. Para obtenção desse efeito, o compositor utilizou ritmos pouco marcados e explorou uma intrincada escrita contrapontís-

tica. Fauré se influenciou muito pouco pela poderosa rítmi-ca da primeira fase de Igor Stravinsky (1882-1971) ou Béla Bartók (1910-1949). Entre as poucas exceções, podemos citar a Fantaisie Op. 111 pour Piano et Orchestre.

No Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, no-ta-se o uso sistemático de ligaduras aplicadas do tempo fraco ao forte, evitando desta maneira o apoio regular do primeiro tempo. Segundo FORTASSIER (1976, p.5), há uma tendência em Fauré em evitar o ritmo iambo que, segundo MEYER e COOPER (1960, p.6), é um dos cinco agrupamen-tos rítmicos, tradicionalmente associados com a prosódia. Segundo FORTASSIER (1976, p.5), o uso restrito do ritmo iambo fraco/forte pelo compositor reflete uma tendência típica da língua francesa, fato evidenciado na estruturação rítmica das suas mélodies para canto e piano.

Pode-se notar até mesmo uma tendência no compositor em abolir a barra de compasso; porém ele nunca a aban-donou de fato, como fizeram alguns de seus contempo-râneos. Segundo ORLEDGE (1979, p.259), Fauré freqüen-temente construía frases com cruzamento de vozes e sentenças musicais de métrica irregular, criando desse modo, um novo artifício para não evidenciar a métrica.

5. Considerações sobre a estruturação musical:Fauré desenvolveu e expandiu sua herança musical, assi-milando e transformando os gêneros musicais e estabe-lecendo um constante diálogo com o passado. O compo-sitor influenciou-se por J. S. Bach (1685-1750) nas duas fugas que fazem parte das Huit Pièces Breves Op. 84. Se-gundo TODD (1990, p.198), o compositor inspirou-se em Felix Mendelssohn (1809-1847) nos Trois Romances sans Paroles Op. 17 e ainda segundo GILLESPIE (1972, p.305), em Robert Schumann (1810-1953) no Thème et Varia-tions Op. 73 - comparar com os Estudos Sinfônicos Op. 13 - em Frédéric Chopin (1810-1849) nos Impromptus, Nocturnes e Barcarolles e em Franz Liszt (1811-1886), ao inspirar-se na Sonate en Si menor para compor a forma cíclica da Ballade Op. 19.

Ex. 4: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 119-123. Intrincado contraponto

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Ex. 5: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c.265-276. Coda: contraponto com linhas melódicas de tessitura ampla

Ex. 6: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 52-56. Intenso contraponto e baixos em contratempos que minimizam os apoios em tempos fortes e emprestam leveza ao discurso

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Ex. 7: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 124-131. Fugato

Segundo ORENSTEIN (1991, p.123), Fauré adotou uma simetria tonal clássica ao estabelecer as relações en-tre os movimentos internos da maioria das suas obras de câmara. No Deuxième Quintette pour Piano et Cor-des Op. 115, o Primeiro Movimento está em Dó menor/maior, o Segundo Movimento em Mi bemol maior, o Ter-ceiro Movimento em Sol maior e o Quarto Movimento novamente em Dó menor/maior.

Em seguida, veremos em maiores detalhes uma proposta de análise do autor deste artigo, que demonstra como o Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115 se relaciona com as formas Pré-Clás-sicas de composição. Seu desenvolvimento ininterrupto emprega vários recursos polifônicos, como os fugatos (exemplo 7) - e uma escrita pianística que remete ao Baixo Contínuo do período Barroco.

5.1. Análise formal do Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Cor-des Opus 115.Segundo SMALLMAN (1996, p.119) o Primeiro Movi-mento dessa obra adota um “processo de desenvolvi-mento contínuo, no qual o tema principal (compassos 83, 177 e 267), anuncia o início de novas seções e pos-sui função estabilizadora, e não de recapitulação”. Em crítica para a revista Musical Times, HOPKINS (1974, p.44) observou que nos quintetos com piano, Fauré re-nunciou aos contrastes dinâmicos da Forma Sonata. O Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115 é construído como um “fundo cons-tante de fluxo contínuo” que valoriza essencialmente a

equanimidade entre o primeiro e segundo temas e entre o piano e as cordas.

Nós poderíamos ir adiante destas constatações e acres-centar que Fauré desenvolve esse movimento aplicando vários procedimentos típicos das formas musicais Clássi-cas e Pré-Clássicas, aproximando-se do Concerto Grosso e das Árias em Ritornello do período Barroco. Segundo MICHELS (1985, p.123), uma das instrumentações típi-cas do Concerto Grosso se desenvolveu utilizando como formação dois violinos, violoncelo e contínuo. Nesse gê-nero, o Tutti (ou ripieno) expõe o tema na tonalidade da tônica, ou próxima dela, e os solistas tocam os episódios em tonalidades mais afastadas ou mesmo modulantes, explorando motivos temáticos livres.

Existe também um parentesco tonal com a Forma Sona-ta no plano geral das tonalidades, como por exemplo, as relações do Tema C que apesar da instabilidade modulan-te, aparece inicialmente polarizando Si bemol que é uma tonalidade relacionada à dominante menor. Na ultima exposição, o mesmo tema aparece polarizando Mi bemol, que é uma tonalidade relacionada à tônica.

Os temas com função estabilizadora citados por Small-man são o Tema A e suas pequenas variantes, que apare-cem em tonalidades próximas do centro tonal Dó menor. Vejamos, a seção iniciada no compasso 83 está em Sol menor, a iniciada no compasso 177 em Mi bemol Maior. Portanto, podemos inferir que a sensação musical de solidez deriva principalmente de pilares de tonalidades construídas sobre as notas fundamentais Dó, Mi bemol e Sol, que por sua vez compõem a tríade do tom principal do quinteto: Dó menor.

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5.2. Seções estruturaisc.1-34 Primeiro pilar tonal:Exposição Tema AApresentação temática da viola, seguida pelos solos do violoncelo, do segundo e primeiro violinos. O tema prin-cipal é derivado da célula de acompanhamento contínuo apresentado pelo piano, o que configura uma técnica de desenvolvimento temática típica do Classicismo musical.

c. 35-44:Tema BTema breve, de influência eminentemente bachiana. Nes-se momento esse material musical é exposto exclusiva-mente pelas cordas.

c. 45-78:Tema CDesenvolvido pelo piano. O material melódico é derivado do Tema A. A técnica de derivar temas de um original, apli-cando-os em diferentes momentos da estrutura musical é característica do Estilo Clássico.

Essa é a primeira região de desenvolvimento modulan-te, onde os solistas se alternam em constante diálogo. O contraste de caráter entre os Temas A e C (típicos da Forma Sonata) acontece por suas diferenças de densidade e de estabilidade harmônica.

c. 79-82:Tema utilizado para articular a forma. Caráter de passa-gem, estático.

c. 83-107: Segundo pilar tonal: Segunda exposição do Tema A .Apresentação temática do primeiro violino com a vio-la, seguidos imediatamente pelo segundo violino e vio-loncelo. O tema é desenvolvido em pares pelas cordas e intensificado pela expressividade, dos contrastes e das modulações.

c. 108-124: Terceira exposição do Tema AO material temático é apresentado novamente com nova textura mais leve e pela primeira vez, desenvolvido pelo piano em diálogo com as cordas.

c. 125-134: Tema BMaterial musical bachiano apresentado no compasso 35 e exposto ainda exclusivamente pelas cordas, em fugato.

c. 135-160: Tema CTextura musical ainda mais fluida e transparente que na seção da exposição. À maneira dos episódios que com-põe o Concerto Grosso do período Barroco, os solistas se alternam em uma segunda região de desenvolvimento modulante.

c. 161-176: Articulação formal. Desenvolvimento cromático do ma-terial de 79-82.

c. 177-185: Terceiro pilar tonal:Quarta exposição do Tema ANessa exposição o material temático aparece, pela pri-meira vez, em uníssono tocado por todas as cordas e acompanhado pelo contínuo do piano. Fauré explora uma intensidade crescente no material temático.

c. 186-192: Tema AHá uma evidência cada vez maior da fusão dos três ele-mentos temáticos do movimento: Tema A / Tema B / Tema CIniciando a terceira região de desenvolvimento modulan-te, observar os fragmentos ou antecipações do Tema B no violoncelo.

c. 194-210: Tema B aparece, pela primeira vez, acompanhado pelo piano, ocorrência que reforça a reconciliação instrumen-tal e temática dos elementos musicais e aumenta a inten-sidade expressiva e emocional.

c. 210-249:Tema CMaterial do Tema C com interferências do Tema B. A tonalidade apresentada pelo Tema C na re-exposição prepara o advento de Dó Maior, tonalidade homônima de Dó menor.

c. 225-248: Tema A + Tema BConfirma-se cada vez mais a reconciliação dos temas principais. Reminiscências do Tema A nos compassos 231-236. No compasso 240, sentimos que Fauré se direciona para a coda preparando a terça de picardia, que finalizará o movimento na luminosa tonalidade de Dó maior.

A escolha de tonalidades com poucos acidentes é típica da última fase do compositor, a exemplo da nona e déci-ma Barcarolles em Lá menor, da última Barcarolle em Dó maior, do décimo segundo Nocturne em Mi menor e da Fantaisie pour Piano et Orchestre Op. 111, em Sol maior.

c. 249-266: Material de articulação, semelhante ao compasso 79 – 82.

c. 267-337:Quarta região de desenvolvimento.

Segundo ROSEN (1987, p.120), na Forma Sonata, “pou-co depois do regresso da tônica há com freqüência uma seção secundária de desenvolvimento que pode ser bastante extensa e conter quase sempre uma re-ferência à subdominante.” Rosen continua afirmando que “esta seção utiliza técnicas de desenvolvimento harmônico e motívico, não para prolongar a tensão, mas para reforçar a resolução sobre a tônica.” Ecos desse recurso estão presentes nessa seção final do Pri-meiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115. Fauré apresenta uma espécie de de-senvolvimento secundário que passa por algumas to-

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nalidades relacionadas com o sentido anti-horário do ciclo das quintas, explorando tonalidades com polari-dades em fundamentais como Fé, Ré b, Lá b e ao mes-mo tempo desenvolve magistralmente todo o material temático sobre o “contínuo” do piano. Nessa seção, um Tutti funde e transforma todos os elementos temáticos em moto perpetuo, incluindo-se os materiais mais sim-ples como aqueles utilizados para a articulação formal, apresentados no compasso 79, 161 e 249. Fauré retor-na ao centro tonal de Dó através de Ré bemol maior, com insistência na região da subdominante Fá maior/menor, uma clara alusão ao arquetípico acorde de sex-ta napolitana: Fá, Lá b, Ré b.

c. 337-360: Uma cadência perfeita no compasso 336 articula defi-nitivamente a região da coda final, explorando cada vez mais a volta e o caráter enfático do Tema A, que aparece confirmado na tonalidade “de picárdia” - Dó maior.

6. ConclusãoEste artigo pretende colaborar para o estudo do estilo tardio do compositor francês Gabriel Fauré. A arte com-posicional de Fauré reflete a maturidade do sistema tonal, expandindo consideravelmente seus limites e dialogando com toda a história da música ocidental.

Retomando o antigo e belo conceito resgatado por Carlo Caballero, a grande “sinceridade artística” de Fauré pro-piciou a criação de uma síntese de elementos aparente-mente opostos e paradoxais, que são revelados por todos os parâmetros de sua obra, sejam eles técnico-musicais, sejam eles emocionais. A técnica composicional de Fau-ré fundiu magistralmente a tonalidade e a modalidade, o contraponto e a harmonia a melodia e o acompanha-mento. Sua estética procurou conciliar a angústia e a se-renidade, os valores apolíneos e dionisíacos, antecipando assim, muitas das questões estéticas da segunda metade do século XX.

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nahim Marun recebeu vários prêmios por sua carreira artística, entre eles, o Prêmio Melhor Solista do Ano da Associação Paulista dos Críticos de Arte. Suas gravações em CDs e DVDs receberam o Prêmio Diapason d’Or e o Prêmio Bravo! de Cultura “Melhor CD de Música Erudita de 2006”. Estudou análise com Koellreutter no Brasil e com Carl Schachter nos EUA. Dedicou-se por vários anos ao estudo da obra de Gabriel Fauré sob orientação do pianista americano Grant Johan-nesen (pioneiro na gravação integral da obra para piano desse compositor). É professor de piano na Universidade Estadual Paulista/UNESP de São Paulo desde 1998, atuando na graduação e pós-graduação. Doutor em Música pela UNICAMP e Mestre em Performance pelo The Mannes College of Music de Nova York. Suas próximas atividades acadêmicas incluem a publicação do livro Técnica Avançada para Pianistas pela Editora da Universidade Estadual Paulista/EDUNESP e Pós-Doutorado na Universidade Paris-Sorbonne sobre a obra de Villa-Lobos, com orientação de Danièle Pistone, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.

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Recebido em: 09/04/2008 - Aprovado em: 05/11/2009

O formante do cantor e os ajustes laríngeos utilizados para realizá-lo: uma revisão descritiva

Cristina de Souza Gusmão (UEMG, Belo Horizonte, MG)[email protected] Henrique Campos (UEMG, Belo Horizonte, MG)[email protected] Emília oliveira Maia (FEAD, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Este estudo descreve, através da literatura da Fonoaudiologia e da Física Acústica, alguns aspectos relacio-nados à produção da voz, tais como o espectro do som como a frequência fundamental, os harmônicos, os formantes e também os ajustes laríngeos. A revisão de literatura inclui a descrição anátomo-fisiológica do aparelho vocal, suas funções e mecanismo para produção vocal. Descreve também os aspectos relacionados à espectografia do som, da localização dos formantes e de ajustes anatômicos e musculares para se obter o formante do cantor. Este estudo visa esclarecer conceitos e levantar questionamentos sobre o que ocorre na fisiologia vocal e o que é dito e aceito pelo senso comum sobre o formante do cantor.Palavras-chave: voz; formante do cantor; canto; fonoaudiologia; física acústica.

The singer’s formant and the laryngeal adjustments used to realize it: a descriptive review

Abstract: This study describes some voice production aspects, like sound spectrum as the fundamental frequency, harmonics, the formants and also the laryngeal adjustments through the phonoaudiology and acoustics literature. The literature review includes the anatomical and physiological description of the vocal apparatus, its functions and the mechanism for the vocal production. It also describes related aspects of the sound spectrographs, to the formants loca-tion and to the anatomical muscle adjustments to realize the singer’s formant. This study aims at clarifying concepts and raising questions about what happens in vocal physiology and what is said and accepted by the common sense about the singer’s formant.Keywords: voice; singer´s formant; singing; phonoaudiology; acoustics.

1. IntroduçãoA voz cantada é considerada uma das mais belas formas de expressão. O canto é conceituado como uma forma de comunicação através da qual o indivíduo é capaz de expressar os sentimentos escondidos na alma.

Segundo COSTA e SILVA (1998), é através da fala que os indivíduos se comunicam melhor e pelo canto se ex-pressam artisticamente; como se pudessem dividir uma metade racional para a fala e outra emocional para ser transmitida pelo canto.

Dentre tipos diversos, o canto lírico é reconhecido pela sua estética particular, projeção vocal adequada, dinâmi-ca e qualidade vocal agradável. Desta forma, observa-se

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

que cantores eruditos têm maior preocupação e cuidados com seu instrumento de trabalho preocupando-se mais com a fisiologia vocal. Por isso iniciaremos este texto abordando alguns aspectos relacionados à produção vo-cal. Antes, porém, vale revisarmos algumas particularida-des da laringe, determinantes na abordagem da produção vocal, que por ora nos propomos a realizar.

A laringe é um órgão situado na extremidade superior da traqueia e na região anterior do pescoço que se conecta, na parte inferior à traqueia e na superior abre-se à faringe. BEHLAU (2001), ZEMLIM (2000) e PINHO (2008) afirmam que o esqueleto da laringe é formado por cartilagens, mús-culos, membranas e mucosas, como se observa no Ex.1 1.

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Ex.1 - Vista anterior e lateral da laringe

A laringe possui funções importantes para o ser huma-no, sendo elas a função respiratória, a deglutitória e a fonatória e tem como função principal proteger as vias aéreas inferiores (BEHLAU, 2001), ou seja, traqueia, pul-mão, brônquios e bronquíolos. Além disso age como uma válvula denominada pregas vocais, cujo papel é impedir que corpos estranhos penetrem na laringe com o risco de causarem alguma infecção.

A laringe também tem uma função não-biológica de ex-trema importância para nós seres humanos, que é a emis-são do som. Suas pregas vocais são capazes de produzir som quando o ar que sai dos pulmões (ar expiratório), passa por entre elas e faz produzir som através da vibra-ção das mesmas. Desta forma, segundo BEHLAU (2001), o som produzido pelas pregas vocais amplifica-se ao passar pelas cavidades situadas acima da laringe, conhecidas como cavidades de ressonância, sendo elas: laringe, fa-ringe, orofaringe e nasofaringe.

2. Espectro do som: frequência fundamental, harmônicos e formantes.2.1. Frequência fundamentalA frequência fundamental é definida através da veloci-dade com que as pregas vocais vibram completando uma vibração ou um ciclo vibratório. A frequência fundamen-tal pode ser definida pelo som inicial que as pregas vocais emitem numa fala habitual, ou seja, a frequência da fala de um indivíduo, ou também pela vibração de qualquer nota emitida mesmo que essa nota não esteja dentro do registro da fala habitual, como exemplo, o canto.Levando em consideração a frequência da fala habitual, a frequência fundamental depende do sexo, da idade e do processo de mudança da voz do indivíduo, que ocorre na puberdade. Mas outros fatores podem interferir tempora-riamente nesse processo, a saber fatores comportamen-tais, emocionais e orgânicos.

A frequência fundamental depende diretamente do resul-tado natural do comprimento das pregas vocais, ou seja, do tamanho e também da velocidade em que as mesmas vibram (BEHLAU, 2001; ZEMLIN, 2000).

2.2. Harmônicos O sinal sonoro, “a voz” produzida na laringe, é muito com-plexo, pois é composto por uma frequência fundamental de-terminada pelo tamanho das pregas vocais, pela velocidade de vibração e por diversas frequências parciais, que são múl-tiplos integrais da frequência fundamental. Essas frequên-cias parciais são conhecidas como harmônicos da frequência fundamental. Dessa forma, pode-se entender que se a fre-quência fundamental de um indivíduo é de 100 Hz, ou seja, as pregas vocais vibram 100 vezes por segundo, a laringe inclui componentes que são múltiplos integrais de 100, sen-do encontrados componentes de 100, 200, 300 Hz no sinal sonoro (ZEMLIN, 2000), como se observa no (Ex. 2)2. Alguns destes harmônicos, ao chegar às cavidades de ressonância, possuem compatibilidade com a frequência do trato vocal. Dessa forma, estes sons que foram transferidos mais facil-mente pelo trato vocal são amplificados e transformados em formantes, sendo este o agrupamento de harmônicos (COR-DEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007; BEHLAU, 2001). MILLER (1996)3, apud VIDAL (2000) e ZEMLIN (2000), relatam que o trato vocal é composto pela cavidade oral, faríngea e, às vezes pela cavidade nasal. Já BEHLAU (2001) e PINHO (2003) relatam que o trato vocal é composto pela cavidade oral, na-sal, nasofaringe, orofaringe e laringe, sendo que para estas autoras as cavidades nasal e paranasal entram como parte integrante do trato vocal.

Ex.2 - Espectro do som com sua frequência fundamental e seus harmônicos.

2.3. Formante O formante é representado pelas frequências naturais de ressonância do trato vocal, especificamente na posição articulatória da vogal falada. As vogais são identificadas pelos seus formantes (BEHLAU, 2001). Os formantes deter-minam a qualidade das vogais e contribuem muito para o timbre pessoal do cantor (CORDEIRO, PINHO E CAMARGO, 2007). Sendo assim, em uma análise acústica, observa-se que os primeiros cinco formantes são os de maior interesse, sendo que os três primeiros são responsáveis pela identi-dade das vogais e possuem características instáveis, já que podem apresentar variações de vogal para vogal, enquanto que o quarto e o quinto formantes não têm a mesma va-riação, sendo então considerados estáveis (MARTER, 2005),

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e são responsáveis pelo timbre pessoal, ou seja, pela quali-dade e brilho da voz (BEHLAU, 2001).

Sobre essa questão, MEDEIROS (2004) ressalta que há uma diferença entre o padrão formântico das vogais fa-ladas em relação às vogais cantadas. O que se observa é que na vogal cantada há uma distorção do formante, tan-to acusticamente quanto articulatoriamente em relação à vogal falada, ocorrendo uma sobreposição do primeiro formante das vogais [a], [e] e [o]. Dessa forma fica sendo responsabilidade do segundo formante a diferenciação acústica dessas vogais, já que não se observa a sobrepo-sição do segundo formante.

Os formantes, na maioria das vezes, são expressos através de seu valor médio em Hertz (Hz), ou ciclos por segundo, e designados por F1, F2, F3... Fn, de modo progressivo (BEHLAU, 2001). De acordo com DINVILLE (1993: 45), “os formantes são frequências que servem para determinar o timbre”. DINVILLE (1993) e CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007) descrevem ainda a localização no trato vocal de cada for-mante, afirmando que o primeiro formante (F1) ocorre na cavidade posterior da boca e está em torno de 250 a 700 Hz. DINVILLE (1993) afirma que o segundo formante (F2) fica situado na cavidade oral entre os valores de 700 a 2.500 Hz. Já CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007) con-cordam que o segundo formante fica localizado na parte anterior da cavidade oral.

Segundo as autoras, CAMARGO e CUKIER (2005), o pri-meiro formante (F1) está relacionado à abertura da boca e à altura da língua na cavidade oral, e o segundo formante (F2) tem relação com o deslocamento ântero-posterior da língua. Já para SUNDBERG (1987)4, apud BARRICHELO (2007), o primeiro formante (F1) é sensível à abertura da mandíbula, já que quanto maior a abertura da boca, mais aguda fica a frequência do formante. Para MAGRI, CUKIER, KARMAN e CAMARGO (2007), as frequências dos três primeiros formantes determinam a identidade fonética da vogal, especialmente a dos dois primeiros. Como se observa no Ex. 35.

Ex.3 - Espectro sonoro da vogal [a] sustentada formando o formante (barras escurecidas no espectro).

Para CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007), o quarto formante (F4) provavelmente tem ligação com o com-primento do tubo laríngeo; o (Ex. 4)6 tenta demonstrar este fenômeno.

Ex.4 - Esquema da distribuição dos formantes das vogais [i], [u] e [a], em tratos vocais distintos em comprimento

e com constrição nos vários locais do trato vocal.

3. Formante do cantorA laringe, através da voz cantada, é o primeiro instru-mento musical utilizado pelo ser humano. O cantor trei-nado tem a capacidade de sobressair-se ao som de uma orquestra sem fazer uso de amplificação sonora como o microfone e sem prejudicar seu aparelho fonador. Desta forma, obtém uma voz clara, com brilho, rica em har-mônicos, com boa articulação e vibrante. Na maioria das vezes, o responsável por alguns destes aspectos é o for-mante do cantor (CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007).

O formante do cantor é encontrado geralmente em vo-zes com treinamentos específicos do canto erudito e é definido pela amplificação sonora das frequências de 2.000, 3.000 e 4.000 Hz, sendo demonstradas no es-pectro acústico pela junção do terceiro, quarto e quinto formante. Isso se deve à sua localização na região aguda e ao elevado pico de amplitude, desta forma, não se tem a ocorrência de outras vozes ou mesmo dos instrumen-tos da orquestra (BEHLAU, 2001 e CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007). Segundo FANT (1970)7, apud CORDEI-RO, PINHO e CAMARGO (2007), o trato vocal, através do controle ativo no canto, pode incrementar de 3 a 5 dB

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na amplitude das frequencias agudas, além do acrésci-mo natural de 10 a 15 dB já existente.

A técnica lírica é utilizada pelos cantores de ópera, por isso suas vozes apresentam um pico espectral intenso e largo em torno de 3.000 Hz. É este pico que proporciona aos harmônicos uma maior amplitude e o agrupamento destes harmônicos – os formantes – possibilita o desta-que da voz sobre o som da orquestra. Para VIEIRA (2004), o responsável por este fenômeno é o formante do cantor; o autor afirma ainda que a ocorrência deste fenômeno está relacionada ao abaixamento da laringe e o alarga-mento da cavidade faríngea, embora este não seja o úni-co mecanismo existente.

DINVILLE (1991) diz que, para se obter o formante do cantor, a laringe deve elevar-se ao atingir um som agu-do e em seguida descer para o grave. ZEMLIM (2000), por sua vez, afirma que ao se abaixar a laringe ou alar-gar a faringe, o indivíduo faz com que os formantes fi-quem mais graves, produzindo então uma voz com um timbre mais escuro. Portanto, é importante ressaltar que um ajuste vocal controverso, ou que foge da fisiologia vocal, pode prejudicar o aparecimento ou a definição do formante do cantor. Isso explica a grande complexidade deste assunto e as divergências entre os autores sobre um mesmo parâmetro.

SUNDBERG (1974) relata que o formante do cantor – a junção do quarto e do quinto formante- pode ser deno-minado como uma ressonância adicional que diferencia o canto da fala. É o responsável pela percepção de “brilho” e projeção da voz que possibilita a sua perfeita percep-ção na presença de toda uma orquestra. Relata ainda que o aparelho fonador isolado já tem sua própria estrutura formântica. Por isso atua como um ressonador indepen-dente gerando um formante adicional entre o terceiro e o quarto formante. Afirma ainda que o nível de pressão sonora (NPS) do formante do cantor depende de vários fatores, dentre eles, o NPS total da emissão.

Conforme as perspectivas mencionadas até o presente momento, podemos notar que existe controvérsia em relação às cavidades onde ocorre o formante do cantor e quais estruturas são utilizadas para realizá-los. SUND-BERG (1974) cita que a formação do quarto e do quinto

formante depende do comprimento de todo o trato vocal e da configuração na profundidade da faringe. O autor defende, também, que o terceiro formante tem ligação com o movimento da língua. Para CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007), o que favorece o aparecimento do for-mante do cantor é o agrupamento de todas as estruturas formando um tubo único, acoplando o terceiro, o quarto e quinto formante.

Para se obter qualquer formante, é necessária a produção de harmônicos gerados pela mucosa das pregas vocais. Sendo assim, os harmônicos só serão amplificados se as pregas vocais produzirem os harmônicos correspondentes à sua faixa de frequência. Com isso, é possível afirmar que a produção de qualquer formante está ligada à in-tegridade da mucosa das pregas vocais, e que patologias que levam à diminuição na produção destes harmônicos dificultam a produção dos formantes, (CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007).

É importante salientar que a intensidade do formante do cantor também ocorre quando o cantor aumenta a intensidade propositalmente, o que significa que uma maneira simples de se criar o formante do cantor é sim-plesmente cantar mais forte, ou seja, com mais inten-sidade. No entanto, isso pode causar vários problemas vocais na maioria das vezes.

4. os ajustes laríngeosA deficiência técnica de cantores não treinados, a grande busca por projeção e brilho na voz e suporte respirató-rio deficiente podem acarretar várias tensões musculares como, por exemplo, a constrição da musculatura situada acima da laringe conhecida como supraglótica, além da tensão das pregas vocais e a redução de seu movimento, o que pode muitas vezes explicar a ausência do formante do cantor em alguns cantores, (CORDEIRO, PINHO e CA-MARGO, 2007).

O primeiro, segundo e terceiro formantes definem as vogais, e o quarto e o quinto formantes definem o tim-bre e a qualidade da voz, conhecido como formante do cantor, e essa definição depende da localização do formante no trato vocal. A literatura aponta alguns ajustes laríngeos corretos para se obter o formante do cantor. Nesse contexto, podemos incluir o abaixamen-

Ex.5 - Cartilagem aritenóidea e cartilagem epiglótica se aproximando para fazer a constrição ariepiglótica.

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to da laringe, o alargamento da cavidade faríngea, a constrição ariepiglótica, sendo esta a aproximação das cartilagens aritenóidea e epiglótica (Ex.5)8, o alonga-mento do tubo faríngeo e, por fim, a expansão de todo o trato vocal. Segundo BEHLAU (2001), estes são al-guns dos ajustes que levam à junção do terceiro, quar-to e do quinto formantes.

Já SUNDBERG (1974) afirma que a ocorrência do forman-te do cantor depende de um abaixamento da laringe e do alargamento da faringe, para que haja aumento de algumas cavidades situadas na laringe. Alguns autores como CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007) consideram que o tamanho do trato vocal interfere diretamente na produção do formante e que tratos vocais maiores enfa-tizam as frequências graves, e os menores enfatizam as frequências agudas.

FANT (1970)6 apud CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007) fazem uma relação dos formantes na qual afirmam que o terceiro formante ocorre devido a uma constrição ocorri-da no percurso do som e que o quarto formante se rela-ciona ao comprimento da laringe. É importante ressaltar que todos os autores citados re-latam sobre a localização dos formantes, (BEHLAU, COR-DEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007; DINVILLE, 1991; SUN-DBERG, 1974; PINHO e TSUJI, 1995), e isso indica, por um lado, que a integridade de todas as estruturas favorece o formante do cantor e determina a qualidade sonora do cantor. Por outro lado, isso indica que a falta da integri-dade pode ser a causa da ausência do mesmo.

É muito comum, no canto lírico, a busca por uma “ca-vidade de ressonância” que proporcione uma voz agra-dável e com muita projeção. Existem pesquisas que re-latam que no canto lírico ocorre uma posteriorização do ponto articulatório, ou seja, (a posteriorização da língua para se fazer determinado fonema) buscando assim uma ressonância posterior, pois a concentra-ção sonora ficará concentrada na cavidade posterior da boca. Além disso, ainda temos a verticalização da mandíbula e elevação do véu palatino, ou seja, pala-to mole. (PERELLÒ, 19759 e PILLOT10, 1996 apud COR-DEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007). Para SUNDBERG (1974), a busca de uma ressonância posterior faz com que ocorra um rebaixamento do segundo formante, já que a língua encontra-se posteriorizada.

A constrição ariepiglótica e a abertura da laringe asso-ciadas ao alongamento circular de toda a faringe, citado por alguns autores (PINHO e TSUJI, 1995 e SUNDBERG, 1974), não são os únicos mecanismos responsáveis pela criação do formante do cantor, mas possivelmente po-dem levá-lo ao centro de frequência ideal para o sur-gimento deles, e isso explica a divergência de alguns autores quanto ao centro de frequência do formante ter, ou não, relação com a classificação vocal no canto (CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007).

5. DiscussãoPara nos posicionarmos mediante essa discussão, é impor-tante lembrar que há uma controvérsia na literatura sobre a localização dos formantes na cavidade oral. Algumas auto-ras, como DINVILLE (1993) e CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007), relatam que o primeiro formante (F1) ocorre na ca-vidade posterior da boca e está em torno de 250 a 700 Hz. CAMARGO e CUKIER (2005) e MAGRI, CUKIER, KARMAN e CAMARGO (2007) já citam que o primeiro formante (F1) está relacionado com a altura e com o deslocamento da língua no plano vertical e com a abertura da boca.

Desta forma, pode-se dizer que a abertura da boca, seja no plano vertical ou horizontal, influencia a produção do primeiro formante, e a altura da língua na cavidade oral também. Isso parece indicar, talvez, que a produção de uma vogal com a língua anteriorizada desfavoreça o primeiro formante.

Em relação ao segundo formante (F2), CORDEIRO, PI-NHO e CAMARGO (2007) concordam que fica localizado na cavidade oral anterior. CAMARGO e CUKIER (2005), por outro lado, relatam que o segundo formante (F2) ocorre devido ao deslocamento da língua no plano hori-zontal, ou seja, com o grau de variação no sentido ânte-ro-posterior. Assim, podemos verificar novamente que a posição da língua, agora horizontalmente, influencia na produção deste formante.

Podemos verificar então que ambos os formantes são pro-duzidos pelos mesmos órgãos, entretanto, esses órgãos utilizam posicionamentos diferentes para produzi-los.

Já o terceiro formante (F3) está relacionado com a cavi-dade atrás da constrição da língua e aquela à frente dela (CAMARGO e CUKIER, 2005). Ou seja, cavidade faríngea e cavidade oral anterior.

E, para MAGRI, CUKIER, KARMAN e CAMARGO (2007), o quarto formante (F4) relaciona-se ao formato da larin-ge e da faringe na mesma altura, mas Cordeiro, PINHO e CAMARGO (2007) dizem que o quarto formante provavel-mente tem ligação com o comprimento do tubo laríngeo. Assim, novamente, autores relatam localidades diferentes para a produção do mesmo formante. O importante é que, se o quarto formante já tem relação com o formante do cantor, e que o formante do cantor determina o brilho, qualidade e projeção da voz, acreditamos que o compri-mento do tubo laríngeo tenha uma grande influência na produção deste formante já que o trato vocal influencia na produção dos harmônicos e consequentemente da produ-ção do formante.

É quase unânime entre os autores consultados que o pri-meiro (F1), segundo (F2) e o terceiro (F3) formantes são responsáveis pela identificação das vogais. Enquanto que os outros dois, o quarto (F4) e o quinto (F5) são respon-sáveis pela qualidade vocal e timbre da voz (Formante do cantor). Mas CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007) e

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BEHLAU (2001) concordam que o terceiro formante (F3) seja responsável pela qualidade e brilho na voz, pelo que, para estas autoras, o formante do cantor é a junção do terceiro, quarto e quinto formantes.

Em relação ao quinto formante (F5), não encontramos na literatura pesquisada qualquer referência a algum local para a sua produção porque há uma concordân-cia entre alguns autores sobre o formante do cantor ocorrer graças à junção do terceiro, quarto e do quin-to formantes (CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007 e BEHLAU, 2001).

Outra discussão que é relevante neste trabalho diz respei-to aos ajustes laríngeos para a realização do formante do cantor. VIEIRA (2005) e SUNDBERG (1974) ponderam que um dos ajustes utilizados para este fenômeno é o abaixa-mento da laringe e o alargamento da cavidade faríngea. Há também a afirmação de CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007) quando relatam que o aparecimento do formante do cantor se deve ao agrupamento de todas as estruturas formando um único tubo, acoplando o terceiro, o quarto e o quinto formantes. A expansão de todo o trato vocal citada por BEHLAU (2001) e ao comprimento da laringe (FANT, 1970 apud CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007).

É importante ressaltar que todos estes recursos citados acima favorecem o aparecimento do formante do cantor, já que todos priorizam um tubo ressonador para a produ-ção dos formantes.

Outros autores, PINHO e TSUJI (1995), encontraram a ocorrência de constrição ariepiglótica e abertura do ves-tíbulo laríngeo, e SUNDBERG (1974) fala da abertura do vestíbulo laríngeo associada ao alargamento circular da faringe, ou seja, mais uma vez a utilização de recursos que favoreçam o alargamento do tubo laríngeo.

Cada autor trata de ajustes ideais para a realização do for-mante do cantor, mas o interessante é que todos buscam um mesmo objetivo: favorecer a projeção e a facilidade dos harmônicos para se obter formantes com brilho e qua-lidade como o encontrado no formante do cantor, e este mecanismo, segundo os autores citados acima, acontece quando se tem um aumento e alargamento de todo o trato vocal. Neste caso, há concordância entre os autores sobre os ajustes para se obter o formante do cantor.

É de extrema importância relatar que todos os autores pesquisados citam o trato vocal como sendo o gran-de responsável pela formação do formante do cantor e mencionam também ser ele o responsável de se obter um tubo único que amplifica toda a voz. Com exceção de BEHLAU (2001) e de PINHO (2003) e PINHO (2008),

nenhum dos autores pesquisados tratam das cavidades paranasais como sendo parte integrante do trato vocal. Tal posição contradiz o senso comum sobre a voz passar pelas cavidades de ressonância incluindo as cavidades paranasais conhecida como voz na máscara para obter brilho e projeção vocal. Porém, a ideia de voz na másca-ra ajuda muito na compreensão de aspectos subjetivos da sensação sonora principalmente no canto, mas não podemos deixar de pensar que a voz ocorre por um pro-cesso fisiológico e que distorções neste aspecto podem prejudicar e muito toda ideia de uma voz fácil, sem ten-são, com qualidade e projeção.

6. Considerações finaisO formante do cantor é um tema ainda pouco discutido na literatura fonoaudiológica o que torna difícil seguir uma única linha de raciocínio para sua abordagem. Ape-sar disso, este trabalho nos proporcionou conhecimentos relevantes sobre esse tema fascinante que é o formante do cantor, como a produção dos formantes, sua localiza-ção e definição, além de ressaltar sobre os ajustes larín-geos utilizados para realizá-los.

Além disso, levantou questões do senso comum, como por exemplo, “voz na máscara”, ressonância nasal, recursos estes utilizados para adquirir qualidade vocal, projeção e brilho na voz. Dentre os autores pesquisados, a ressonân-cia paranasal foi apontada por BEHLAU (2001) e PINHO (2003) como sendo uma cavidade que favorece o formante do cantor. TITZE (2001) ressalta que as sensações vibrató-rias percebidas na face nada mais é do que a conversão de energia aerodinâmica em energia acústica; e não um som ressoado na cavidade nasal e seios paranasais como erroneamente se faz referência. Ou seja, para este autor a voz na cavidade nasal e paranasal nada mais é do que uma sensação sonora. Mas há uma concordância de que o trato vocal como sendo um tubo único favorece todos requisitos dados ao formante do cantor.

É de suma importância para a literatura musical e fo-noaudiológica, que novos pesquisadores discutam sobre este tema e que novos estudos sejam realizados a fim de se compreender melhor este mecanismo pouco discutido. Através do levantamento de novos estudos, também se torna possível esclarecer questões levantadas pelo senso comum, que são importantes e imprescindíveis como par-te de um processo pedagógico.

Mas não podemos deixar de pensar que este assunto deva ser discutido considerando a fisiologia vocal e a física acústica, pois, só assim, teremos embasamento científico e fidedigno desse tema que tanto interessa aos cantores, professores de canto e fonoaudiólogos.

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Leitura recomendadaANDRADE, Simone Rattay; FONTOURA, Denise Ren da; CIELO, Carla Aparecida. Inter-Relação entre Fonoaudiologia e

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Cristina de Souza Gusmão é Fonoaudióloga clínica graduada pela FEAD – Minas desde 2006, especialista em Voz pela PUC- Minas desde 2007. Graduada em Música com habilitação em canto pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) desde 2008. Atualmente trabalha com Assessoria e consultoria com profissionais da voz. É cantora integrante do grupo experimental de ópera da UEMG (GEL), professora de canto e preparadora vocal. Participa ativamente de palestras e oficinas relacionadas a voz profissional, principalmente com cantores, além de lecionar cursos de Oratória.

Paulo Henrique Campos é Licenciado em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte, 1997. Bacharel em Música com Habilitação em Canto pela Escola de Música da UEMG, 2001. Especialista em práticas inter-pretativas da Música Brasileira pela Escola de Música da UEMG, 2003 e possui o título de mestre em educação musical

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GUSMÃO, C. de S.; CAMPOS, P. H.; MAIA, M. E. O. O formante do cantor e os ajustes laríngeos ... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.43-50.

pela Escola de Música da UFMG concluído em Março de 2007. Professor da UEMG nas áreas de canto, fisiologia da voz e pedagogia do ensino de canto desde 2002. Como regente Paulo Henrique Campos atua à frente do “Coral Imprensa Oficial” desde 2000. Além de atuar como músico efetivo da Fundação Clóvis Salgado desde 1995.

Maria Emilia oliveira Maia é Fonoaudióloga graduada pela FEAD – Minas - 2006, especialista em Voz pelo Centro de Estudos da Voz - CEV – São Paulo, graduada em Psicologia pela Universidade Fumec - BH - 1989, especialista em Psicolo-gia clínica pelo Conselho Federal de Psicologia. Atua em atendimento clínico com Assessoria e consultoria ao profissional da voz.

notas 1 Figura disponível em: <www. agmarrazes.ccems.pt/.../s-resp/v-resp-total.htm>. Acessado em 27-07-082. Figura disponível em: SILVIA e CAMARGO, 2001 p.363 MILLER, R. The structure of singing – system and Art in vocal technique. New York: schirmer Books, 1996. 4 SUDBERG. J. The Science of the singing voice. Northern lllinois University Press; 1987.5 Figura disponível em: SILVIA e CAMARGO, 2001 p. 38. 6 Figura disponível em: ZEMLIN, 2000. p. 320.7 FANT, G. Acoustic theory of speech production. Paris: Mouton, 1970.8 Figura disponível em: <www.scielo.br/img/revistas/rboto/v72n6/a18fig01.gif>.Acessado em 06-10-089 Perellò J. Canto-Dicción: Foniatria estética. Barcelona: Editorial científico médica, 1975.10 PILLOT C, Quattocchi S. Mesires acoustiques, jugements perceptifs et correlates physiologiques du singing-formant

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Recebido em: 20/03/2009 - Aprovado em: 10/10/2009

Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer: um estudo sobre sua estrutura intervalar, gestos musicais e possíveis relações com outras composições do autor

Germano Gastal Mayer (Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS)[email protected]

Any Raquel Carvalho (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS)[email protected]

Resumo: O presente trabalho oferece uma análise dos gestos musicais e configurações intervalares da peça intitulada Vastidão, pertencente aos Seis Pequenos Quadros (1981) para piano de Bruno Kiefer. A incidência constante de gestos previamente levantados por Luciane CARDASSI (1998) em outras obras de Kiefer bem como a presença do elemento octatônico são estudados e inter-relacionados com obras precedentes do compositor. A teoria dos conjuntos de Allan Forte é utilizada aqui como base teórica. A densidade gestual encontrada nesta composição de data tardia em meio ao conjunto de obras para piano do autor e sua curta duração apontam para uma síntese estilística. Palavras-chave: Bruno Kiefer, gestos musicais, teoria dos conjuntos, análise.

Vastidão [Vastness] of Seis Pequenos Quadros [Six Small Pictures] (1981) by Bruno Kiefer: a study of its intervallic structure, musical gestures and possible relationships with other works by the composer

Abstract: The present article offers an analysis of the musical gestures and intervallic configurations of the composi-tion Vastidão [Vastness], which belongs to the set entitled Seis Pequenos Quadros [Six Small Pictures] (1981) for piano by Brazilian composer Bruno Kiefer. The recurring musical gestures from other of Kiefer’s compositions, previously sur-veyed by Luciane CARDASSI (1998), as well as the presence of octatonic elements, are studied and related to preceding Kiefer’s works. Set theory by Allan Forte is applied here as a theoretical basis. The density of the gestures observed in this late piece, and its brevity, point to a stylistic synthesis. Keywords: Bruno Kiefer, musical gestures, set theory, analysis.

1 – IntroduçãoO compositor, escritor e professor Bruno Kiefer (1927-1987) formou-se em química, física e flauta transversal na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição na qual também lecionou e participou da implantação do Programa de Pós-Graduação em Música (1987). Tendo estudado harmonia e contraponto com Ênio Freitas de Castro, a música para piano teve fundamental importân-cia na sua produção.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

O presente artigo é um recorte de pesquisa que teve por objetivo a investigação dos Seis Pequenos Quadros (1981) para piano de Bruno Kiefer.1 Neste artigo é oferecida uma análise do 1º Quadro, intitulado Vastidão, o qual con-centra uma significativa quantidade de gestos musicais idiossincráticos do compositor, além de configurações intervalares existentes também em outras obras do autor.

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

O conjunto de peças intitulado Seis Pequenos Quadros (1981) foi encomendado por Aymara Célia para a come-moração do aniversário de quarenta anos de seu marido, o médico psiquiatra e músico que residia em Porto Alegre, Rafael Célia. Trata-se de seis miniaturas musicais perten-centes ao último período composicional de Kiefer. Quan-do compôs esta coleção o compositor já havia atingido sua plena maturidade artística, alcançada por volta de 1970. Nas palavras de Chaves, este criador estava “liberto do afã da pesquisa e da busca pela afirmação pessoal...revelando um compositor mais solto, não raro mais bem-humorado” (CHAVES, 1995, s/p).

A análise proposta toma como pressupostos teóricos os gestos musicais organizados e sistematizados por Lucia-ne CARDASSI (1998), os quais transitam por, pelo menos, vinte e uma obras compostas entre 1970 e 1983. Estas obras, selecionadas em sua tese de mestrado a partir das temáticas “terra”, “vento” e “horizonte” (fato que exclui a peça objeto deste estudo), foram relacionadas à poesia de Carlos Nejar. A autora organizou, nomeou e agrupou todos os gestos musicais em famílias. Estes gestos con-siderados como “de autocitação”, constituem uma das características mais marcantes do estilo do compositor (CARDASSI, 1998, p.176).

Escritos em 1981, os Seis Pequenos Quadros inserem-se no período em que foram compostas as obras analisadas por CARDASSI, sendo que das seis peças, o Quadro nº. 1, Vastidão, é o que apresenta a maior gama de gestos musicais levantados. Em sua pequena dimensão temporal concentra características gerais de seu estilo pianístico, no que parece ser uma síntese de aspectos recorrentes de sua obra. Um indício para este julgamento é a proxi-

midade de temática em relação à Terra Selvagem (1971), obra em que “o estilo instrumental de Bruno Kiefer está exposto à perfeição” (CHAVES, 1992, s/p). O levantamen-to e a contextualização dos gestos musicais2 encontrados em Vastidão em meio à sua estrutura e outras composi-ções prévias projetam nova luz sobre esta peça. Além de caracterizarem a linguagem musical utilizada, situam a composição no contexto estético de Kiefer.

2 - Análise dos Seis Pequenos Quadros de Bruno KieferA partir da constatação superficial de elementos oc-tatônicos em Vastidão,3 optou-se pela investigação da organização de suas alturas no intuito de apu-rar uma possível constante nas relações intervalares que contribuísse para a coesão do discurso. Com este fim, aplicou-se a teoria dos conjuntos de Allen FORTE (1973).

A presente análise estrutura-se nas seguintes etapas:

• Delimitação das estruturas formais e gestuais de Vastidão;

• Análise dos parâmetros textura, ritmo e dinâmi-ca para verificar como estes elementos se inter-relacionam com a estrutura da peça, tomando como unidades básicas os gestos musicais;

• Análise do conteúdo intervalar através da teoria dos conjuntos para constatar a recorrência de pa-drões;

• Organização e sistematização dos dados.

O Ex.1 localiza as seções da peça estabelecidas a partir de alguns gestos musicais de referência:

Seções Localização das Seções e Gestos Musicais por compasso Gestos Musicais

A c. 1 – 12

anacruse ao c. 1 – 2 1º tema da chamadaanacruse ao c. 3 – 5 2º tema da chamada

anacruse ao c. 6 – 7 3º tema da chamada

anacruse ao c. 8-12 Anacruse ao c. 8 4º tema da chamada trilha

melódicac. 10 golpe rítmico

B c. 13 – 33

c. 14 tema contrapontístico

trilha melódica

c. 23 tema contrapontísticoc. 28 tema contrapontísticoc. 29 golpe rítmicoc. 31 golpe rítmico

C c. 34 – 39

c. 34 1º arpejoc. 36 2º arpejoc. 38 3º arpejo

c. 39 – 40 gesto em silêncio

D c. 40 – 45

c. 40 golpe rítmicoc. 43 golpe rítmicoc. 44 golpe rítmico

Ex.1 – Tabela de seções e gestos musicais do Quadro nº. 1

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Abaixo segue a descrição e hierarquização dos gestos musicais estabelecidos por CARDASSI (1998) e encontra-dos em Vastidão:

1) Sonoridades Percussivas: gestos com alto índice de percussivi-dade. Tanto timbre quanto ritmo são prioritários para a sua defini-ção, enquanto altura e intensidade são secundários; – Golpes Rítmicos: São formados basicamente por uma ou duas figuras curtas, freqüentemente acentuadas, seguidas de uma figu-ra longa, associando este gesto a um caráter percussivo, nervoso, com intervalos de 2ª Menor e 3ª Menor.2) Trilhas Melódicas: Configuram tanto fragmentos de linhas me-lódicas quanto motivos temáticos recorrentes. A sua função pre-dominante é produzir momentos de relaxamento, em oposição à atmosfera de tumulto característica dos sons móveis e sonoridades percussivas;– Temas contrapontísticos: O que caracteriza estes gestos é o ca-ráter improvisatório e leggero da linha melódica, que pode ocorrer em solo, com acompanhamento, ou em imitação. Assim, a palavra contrapontístico no nome deste gesto não implica necessariamen-te a ocorrência de contraponto, sendo apenas um indicativo da simultaneidade e do caráter improvisatório dessas linhas. Os temas contrapontísticos ocorrem freqüentemente associados a um trata-mento rítmico em sincopas;- Terça Menor: Constitui-se quase em um motivo temático, pela insistência com que se manifesta (...), e pela sua importância na configuração das demais trilhas melódicas.3) Fragmentos Cortantes: Os fragmentos cortantes são gestos bre-ves que provocam uma interrupção brusca do discurso musical e, como elemento surpresa, contribuem para a manutenção da at-mosfera dramática;- Interferências Angulares: Gestos caracterizados por intervenções muito breves, têm nível elevado de intensidade e investem o tre-cho musical de um caráter agressivo. - Gesto em Silêncio: Freqüentemente pausas como fermata, cons-tituem um elemento de fragmentação do discurso; contribuem para o aumento do nível de incerteza e de imprevisibilidade da música e resultam em eventos de alto teor dramático. (CARDASSI, 1998, p.42-74, passim)

O material apresentado na seção A (Ex.2) envolve uma linha isolada finalizada por uma trilha melódica e dividida em quatro gestos musicais similares descritos como tema da chamada. Este gesto não se encontra na citação acima e será descrito logo a seguir.

Cunhada por Celso Loureiro CHAVES, a expressão tema da chamada refere-se a pequenos fragmentos melódi-cos “que pela sua concepção intervalar funcionam como verdadeiros ‘pedidos de socorro’, como verdadeiras ‘cha-madas” (CHAVES 1982, s/p). Encontrados inicialmente em Terra Selvagem (1971), tais fragmentos possuem configuração rítmica e intervalar semelhante aos ges-tos musicais referidos em Vastidão. Luciane CARDASSI afirma que,

o tema da chamada de Terra Selvagem, nos primeiros compassos da peça, que enfatiza o intervalo de terça menor e ocorre asso-ciado aos golpes rítmicos (sonoridades percussivas), exemplifica essa tendência das trilhas melódicas ao caráter épico, ao lirismo pungente, sem declinar de seu aspecto de suspensão (CARDASSI, 1998, p.107).

O último dos temas da chamada em Vastidão estende-se por uma trilha melódica contendo um golpe rítmico, o que constitui a mais clara similaridade existente entre a introdução de Vastidão e Terra Selvagem (ver Ex.3). Assim, a seção A de Vastidão se identifica com o caráter referido por CARDASSI.

As temáticas “terra”, “vento” e “horizonte” discutidas por CARDASSI (1998) como recorrentes na obra de Bruno Kiefer vão ao encontro do título Vastidão na medida em que todos os quatro termos envolvem necessariamente a idéia de espaço. Esta aproximação e a admissão do com-partilhamento de gestos musicais entre Terra Selvagem e o Quadro nº. 1 tornam inevitável a associação entre os títulos destas duas peças. Assim, a idéia de vastidão que Kiefer empregou aqui se afirma como referência à imensidão territorial. Poder-se-ia ainda inferir que este espaçamento é vinculado a uma delimitação geográfica na medida em que as temáticas “terra”, “vento” e “hori-zonte” originam-se do poeta do pampa brasileiro, Carlos Nejar, e se transfiguram em música por Kiefer. O composi-tor, por sua vez, apesar de ter nascido na Alemanha e to-

Ex.2 – Seção A de Vastidão (anacruse ao c.1–12) de Bruno Kiefer.

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mado um caminho estético independente dos nacionalis-tas (com suas referências diretas ou indiretas ao folclore), ainda assim, se afirmou como compositor legitimamente brasileiro, tendo adotado a capital gaúcha como sua ter-ra. A vastidão que intitula esta música é possivelmente aquela dos campos do extremo sul brasileiro, com pouca ou nula interferência do homem e uma dura realidade social. Os temas da chamada que abrem a peça fazem jus a este panorama com sua brusquidão e isolamento da linha melódica.

As notas longas polarizadas deste gesto4 são sucedidas por elaboração progressiva. Como o exposto no Ex.4, a primeira é apresentada como uma mínima (Sib, c.1), a segunda é repetida e ornamentada (Dó#, c.3-5) e as úl-timas duas se repetem novamente no espaço temporal

de uma mínima (Lá, c.6 e Sib, c.8), sendo a última desen-volvida pela trilha melódica.

O conjunto de classes de alturas [0, 1, 4] (3-3) que per-meia internamente os temas da chamada tanto o faz em pares integrando o conjunto maior [0, 3, 4, 7] (4-17), como se apresentando sozinho, de modo normal ou in-vertido [4, 3, 0]. Além disso, relaciona as notas polari-zadas de cada gesto, como exposto através dos números em tipo maior do Ex.4, o que resulta na unidade inter-na e externa entre os gestos. Os intervalos de 2ª menor e 3ª menor, bem como suas respectivas inversões, são costurados ao longo de toda a seção A. As disposições intervalares aqui presentes resultam em elementos da coleção octatônica em contraste com conjuntos envol-vendo cromatismos.

Ex.3 - (a) = Terra Selvagem (1971) de Bruno Kiefer – anacruse ao c.3–7; (b) = Vastidão (1981) de Bruno Kiefer – anacruse ao c.8–12.

Ex.4 – Seção A de Vastidão (anacruse ao c.1–12) de Bruno Kiefer.

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Na seção B (c.13-33), a linha melódica permanece sendo agora acompanhada por uma sucessão regular de acor-des na pauta inferior, os quais impõem estabilidade rít-mica ao discurso. O Ex.5 apresenta este ostinato através de um trecho da seção B:

Estes acordes não só acompanham a trilha melódica da pauta oposta, como ecoam as alturas que compõem tal trilha. Sua configuração intervalar, como na seção

anterior, delineia o conjunto [0, 3, 4, 7] (4-17), que apresenta, por sua vez, dois subconjuntos [0, 1, 4] (3-3) dispostos em espelho (Ex.5).5

Os temas contrapontísticos encontrados nos c.14, 23 e 28 (vide Ex.8 à frente) ainda que se situem nos tempos fortes de cada compasso e não na anacruse, derivam do tema da chamada em função do contraste de movimentação rítmica que produzem. As inflexões de dinâmica e ritmo

Ex.5 – Seção B de Vastidão: início (c.13-27).

Ex.6 - Acorde em Espelho formando o conjunto (4-17), presente na seção B.

Ex.7 - (a), anacruse ao c.1; (b), c.14-15.

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permanecem, porém de maneira diferenciada, pois as fi-guras rítmicas são mais lentas (com exceção do c. 28) e as indicações de dinâmica se suavizam. O Ex.7 compara estes dois gestos superficialmente similares:

Estas modificações gestuais, juntamente com a estabi-lidade da métrica e a estaticidade dos acordes da pau-ta inferior, configuram um caráter contrastante com o apresentado na seção anterior, pois contribuem para a projeção da trilha melódica que dá seguimento a este tema contrapontístico e se estende liricamente ao longo de toda seção B. No entanto, esta trilha não perde o “ca-ráter agressivo” (CARDASSI, 1998, p.69) propiciado pelos golpes rítmicos (Ex.8d).

As duas trilhas melódicas desta peça possuem fortes traços de semelhança entre si, além da recorrência de parâmetros como altura, intervalos e ritmo. Os Ex.8a-8d focalizam estas semelhanças (Ex.8a representando a 1ª trilha e os demais exemplos representando tre-chos da 2ª trilha):

Na segunda trilha melódica, observa-se o uso quase ex-clusivo da coleção octatônica a partir do c.17. Entre os c.17–27, esta disposição intervalar se apresenta de ma-

neira completa. A única altura que não pertence a (8-28) é uma apojatura com a funcionalidade de ornamento ou nota de passagem no c.25. Como mostram os Ex.8c e Ex.8d, os c.29–33 apresentam o retorno parcial des-ta coleção com o uso das mesmas alturas aplicadas nos c.17–19. O tema contrapontístico do c.28 constitui mais uma vez o conjunto [0, 3, 4, 7] (4-17), o qual também é um subconjunto da coleção octatônica.

A seção C vem ocupar o papel de digressão no discurso musical, sendo a seção mais contrastante de todo o Quadro nº. 1. Aqui o acúmulo vertical dos sons toma o primeiro plano, ocupado anteriormente pela mé-trica. Seus três arpejos configuram uma idéia musi-cal6 categorizada por CARDASSI (1998, p.140) como configuradora de “um processo de autocitação”, pois ocorre em várias outras obras do compositor. A função desta idéia é “de elemento fragmentador do discurso musical, atuando como uma perturbação do material musical lírico elaborado nesses trechos” (ibid, p.154). Em Vastidão tal idéia apresenta as sonoridades que se situam nos registros extremos da peça. As pausas que separam seus arpejos aumentam a cada intervenção, e assim configuram um aspecto fragmentário, como demonstrado no Ex.9:

Ex.8 (a) = anacruse ao c.8–12: 1ª trilha (seção A); (b) = c.23–27: 2ª trilha (seção B); (c) = c.14–19: 2ª trilha (seção B); (d) = c.28–33: 2ª trilha (seção B).

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Por outro lado, mesmo que a seção C seja internamen-te fragmentada, possui traços em comum com a seção A. Estão presentes a seqüência de gestos similares, a ausência de ataques simultâneos e a diminuição da in-tensidade de um determinado parâmetro musical cons-tatada distintamente em cada seção: nos arpejos ocorre a diminuição de textura, enquanto que nos temas da chamada, a diminuição é de dinâmica. Além disso, o aumento do número de classes de alturas contribuindo para o desenvolvimento do texto musical é encontrado em ambas as seções.

Não obstante ao contraste de caráter acarretado pela seção C, seu primeiro arpejo sucede a seção anterior pre-servando as mesmas relações intervalares. Trata-se do conjunto (5-31), outro fragmento da coleção octatônica. O segundo arpejo tende ao cromatismo e o último apro-

xima-se novamente da escala octatônica. O subconjunto (3-3) apresenta-se em um número crescente de ocorrên-cias em cada arpejo, culminando no último (c.38) onde as três versões deste subconjunto são protagonizadas por todas as notas do gesto.

Dentre os vários fatores que ocupam lugar na genealogia de Vastidão, encontra-se o gesto em silêncio, constituído pela fermata entre os c.39-40 (ver Ex.10a). Esta pausa, separando uma estrutura em ff de uma melodia acom-panhada por acordes, remonta à obra Tríptico (1969) de Bruno Kiefer. ALBUQUERQUE (1972, p.5), referindo-se à fermata localizada entre os c.12–13 do 1º Tríptico, carre-ga este elemento de um “sentido de expectativa”. Pode-se referir da mesma maneira ao gesto em questão, dado o fato de que o terceiro arpejo de Vastidão atinge o Dó mais agudo da peça, em um registro não explorado até então:

Ex.9 – Arpejos (Seção C - c. 34-39).

Ex.10 - (a) = Tríptico nº. 1 (1969) de Bruno Kiefer (c.12–13); (b) = Quadro nº. 1, Vastidão (1981) de Bruno Kiefer (c.38–40).

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A seção D prenuncia o final da peça com uma métrica que tende a estaticidade devido à quebra do fluxo rítmico do material da pauta inferior (c.41-42). Esta paralisação evidencia a distância temporal entre os primeiros dois golpes rítmicos (pauta superior, c.40 e c.43), causando com isto um efeito de fragmentação típico da estética de Kiefer. No entanto, a unidade estrutural é reforçada pela economia de materiais: recapitulando o material harmô-nico e textural utilizado na seção B, são empregados não apenas os mesmos intervalos, mas as mesmas classes de alturas, as quais se inserem em acordes em espelho e gol-pes rítmicos distribuídos entre as duas pautas (Ex.11):

3 - ConclusãoEm Vastidão a 2ª menor e a 3ª menor são os intervalos mais presentes, constituindo alicerces da estrutura da peça na medida em que Kiefer constrói os subconjuntos [0, 1, 4] (3-3) e [0, 3, 4] - a inversão de (3-3). Estes conjuntos são co-mumente encontrados juntos dando forma aos acordes de

Ex.11 - (a) = Seção B de Vastidão: c.31; (b) = Seção D de Vastidão: c.43.

acompanhamento da seção B, [0, 3, 4, 7] (4-17) e em alguns fragmentos. Este último, um superconjunto, assim como o 1º arpejo da seção C, constituído por (5-31) são fragmentos da coleção octatônica. O compositor fez uso abundante da configuração intervalar destes acordes de acompanhamen-to, imprimindo à peça um conteúdo harmônico essencial-mente octatônico com toques de cromatismos, fato este que vai ao encontro dos apontamentos de Gerling (2001), sobre as peças Terra Selvagem (1971), Lamentos da Terra (1974) e Alternâncias (1984).

Quanto à estrutura gestual, Vastidão apresenta traços de semelhança, através dos temas da chamada, com Em Pou-cas Notas (1974) e Terra Selvagem (1971), além de trilhas melódicas com gestos internos muito comuns na escrita do compositor. Presume-se por sua riqueza gestual, única no conjunto dos Seis Pequenos Quadros (1981) que esta epígrafe sintetiza os aspectos mais marcantes da obra pianística de Kiefer.

ReferênciasALBUQUERQUE, Armando. Apresentação e Análise dos Movimentos. In: Tríptico (piano – 1969). Editora da Ufrgs. Porto

Alegre. Cadernos de música/1, 1972. 1 partitura. CARDASSI, Luciane. A música de Bruno Kiefer: “terra”, “vento”, “horizonte” e a poesia de Carlos Nejar. Dissertação – Mes-

trado – UFRGS-PPGMUS. Porto Alegre. 1998. CHAVES, Celso Loureiro: Apresentação. In. Terra Selvagem. Editora da Universidade. Cadernos de música/3. Porto Alegre.

1982. FORTE, Allen. The Structure of Atonal Music. New Haven. Yale University press, 1973. GERLING, Cristina C.. Traços característicos na música para piano de Bruno Kiefer. Opus. v. 3 n. 3, p. 75-80. Porto Alegre.

set. 1991._________. ‘Terra Selvagem’, ‘Lamentos da Terra’ e ‘Alternâncias’: o componente octatônico nas últimas três peças para

piano de Bruno Kiefer. In: PER MUSI. v. 4, p. 52 – 71, Belo Horizonte. 2001. LAITANO, Yanto & GERLING, Cristina. Análise da música “Em Poucas Notas...” de Bruno Kiefer segundo a Teoria dos Con-

juntos de Allen Forte. Disponível em: http://www.ex-machina.mus.br/welcome.htm. Acesso em: 28 out. 2008.PERSICHETTI, Vincent. Twentieth-Century Harmony. New York, Norton & Company, Inc.1961.

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

PartiturasKIEFER, Bruno. Seis Pequenos Quadros. Partituras para piano manuscritas em duas cópias: à lápis; à nanquim em papel

vegetal, Acervo particular de Nídia Kiefer, Porto Alegre – 1981 . _____________. Terra Selvagem. Partitura para piano – 1971. Editora da Universidade. Porto Alegre, Cadernos de mú-

sica/3, 1982. _____________. Tríptico. Partitura para piano – 1969. Editora da Ufrgs. Porto Alegre. Cadernos de música/1, 1972.

Leitura recomendadaSTRAUS, Joseph N. Introduction to Post-Tonal Music. New Jersey: Prentice Hall, Inc, 2000.

notas1 A pesquisa realizada resultou na dissertação de Mestrado de Germano Mayer, orientada pela Dra. Any Raquel Carva-

lho e defendida em setembro de 2005, sob o titulo: “Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer: relações inter-valares e outros parâmetros a partir da teoria dos conjuntos e gestos musicais”.

2 CARDASSI entende gesto musical como “um conjunto de sons (ou signos) que compõe uma unidade fundamental e recorrente. Cada gesto apresenta determinadas características peculiares nos quatro parâmetros musicais básicos (altura, intensidade, duração e timbre), as quais devem ser suficientes para sua identificação pelo analista e pelo ouvinte” (CARDASSI, 1998, p.7).

3 Em análise realizada das peças Terra Selvagem (1971), Lamentos da Terra (1974) e Alternâncias (1984), GERLING já havia averiguado “a presença de sonoridades recorrentes cuja conformação coincide com o conteúdo intervalar das coleções octatônicas” (GERLING, 2001, p.52).

4 LAITANO & GERLING afirmam que na peça Em poucas notas (1974), também de Bruno Kiefer, o tema da chamada,“sempre é usado de modo a criar um pólo momentâneo em uma determinada nota”. Trata-se da atração exercida pela nota longa imediatamente posterior às fusas, que faz com que estas últimas “corram” em sua direção constituindo uma polarização. (disponível em http://www.ex-machina.mus.br/welcome.htm)

5 De acordo com PERSICHETTI, “qualquer acorde (de duas, três, quatro notas, policorde ou composto) pode ser espelha-do através da adição dos intervalos da formação original estritamente invertidos” (1961, p.172). Neste caso, o acorde em questão é o conjunto (3-3), e o intervalo de 2ª menor é o pivô desta formação.

6 CARDASSI afirma que a expressão “idéia musical deve ser entendida como a somatória do gesto musical com o contexto em que esse gesto ocorre e a função desempenhada por ele, configurando trechos musicais de diferentes dimensões” (1998, p.140).

Germano Gastal Mayer é Bacharel em música (2003) e Mestre em práticas interpretativas (2005) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com bolsa da CAPES. Foi professor substituto da Universidade Federal de Pelotas (2005-2007), professor colaborador na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (2007), e pianista instrutor da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil (2008). Paralelamente a estas atividades, tem atuado como pianista camerista e solista no sul do país. Desde o início de 2009, é membro do quadro efetivo de professores do Conservatório de Música da UFPEL, onde leciona piano e matérias teóricas.

Any Raquel Carvalho é Doutora em Música e Mestre em Música pela University of Georgia (Athens, Georgia, USA). É Professora Associada no Programa de Pós-graduação em Música e no Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde leciona órgão, contraponto e fuga. Atua como conferencista e organista no Brasil e no exterior. Possui dois livros publicados sobre contraponto: Manual de Contraponto Modal (Editora Evangraf, 2ª ed., 2006) e Manual de Contraponto Tonal e Fuga (Editora Novak Multimidia, 2002). Como pesquisadora do CNPq, desenvolve trabalhos na área de práticas interpretativas, incluindo música brasileira para órgão e contraponto.

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CARDASSI, L. Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.60-73.

Recebido em: 17/11/2009 - Aprovado em: 13/11/2009

Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance

Luciane Cardassi (The Banff Centre, Banff, Canadá)[email protected]

Resumo: Este texto é um relato de minha experiência de aprendizagem e performance da obra Night Fantasies de Elliott Carter. Discuto neste artigo os problemas técnico-pianísticos que encontrei e as estratégias de que lancei mão a fim de superar tais dificuldades, além de algumas questões analíticas e históricas da obra e do compositor que julgo importantes para a performance criteriosa desta peça para piano.Palavras-chave: música contemporânea, música para piano, performance, Elliott Carter, Night Fantasies.

Elliott Carter’s night Fantasies: learning and performance strategies

Abstract: In this article, I write about my experience of learning and performing Night Fantasies by Elliott Carter. I dis-cuss the technical problems that I found, as well as the strategies that I made use in order to overcome those difficulties. I also bring some analytical and historical questions about the work and the composer that I find important for a rigorous performance of this piano piece Keywords: contemporary music, piano music, performance, Elliott Carter, Night Fantasies.

1 - IntroduçãoEste artigo deriva de minha tese de doutorado (CARDAS-SI, 2004), na qual discorri sobre três peças das mais sig-nificativas no repertório para piano da segunda metade do século XX: Klavierstück IX (1961) de Karlheinz Sto-ckhausen, Sequenza IV (1966) de Luciano Berio e Night Fantasies (1980) de Elliott Carter. A minha experiência prática de aprendizagem e performance dessas obras foi o elemento principal desse trabalho, o qual foi comple-mentado pelo estudo da bibliografia sobre o assunto e discussão com colegas pianistas que já haviam se dedi-cado ao mesmo repertório. Dois artigos, resultado desse trabalho, foram publicados anteriormente na Revista Per Musi (CARDASSI, 2005 e 2006). O presente artigo é o ter-ceiro da série e tem como objeto de estudo a obra Night Fantasies do compositor norte-americano Elliott Carter.

O repertório para piano dos séculos XX e XXI pode ser classificado em categorias tais como impressionista, neo-clássica, serial, minimalista e complexista, entre outras. A obra aqui discutida faz parte do grupo de peças modernas complexistas. O conceito de complexismo em música é controverso e não deve ser confundido com complexida-de. Neste artigo utilizo o termo “complexo” quando me refiro a dificuldades técnicas da peça estudada, e utilizo o

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

termo “complexismo” ao descrever uma categoria da mú-sica contemporânea frequentemente associada à música dos compositores Brian Ferneyhough, Chris Dench e Mi-chael Finnissy, mas da qual outros compositores, e certa-mente esta peça de Elliott Carter, também fazem parte 1.

Ao abordarmos uma peça tal qual a obra aqui discutida, ela pode nos causar certo estranhamento, já que mui-tas vezes nos deparamos com elementos técnicos e/ou musicais não tradicionais. Uma fase de pré-leitura se faz necessária, onde procuramos compreender a notação, desvendar os problemas técnicos e definir estratégias para resolvê-los. A escolha de estratégias de aprendizado é fundamental e influirá certamente no resultado dessa fase, ou seja, na performance da obra. Além disso, a com-plexidade de peças tais como a obra aqui estudada não é gratuita; ao contrário, configura elemento essencial da estesia do compositor. Para o performer, o conhecimento dessa estesia influenciará as suas escolhas de abordagem tanto de aprendizado quanto de performance (REDGATE, 2007, p.142). É na fase de início do aprendizado de obras complexas tais como a Night Fantasies, que este artigo encontra a sua razão de ser, podendo ser uma ferramenta útil aos colegas que estiverem iniciando o aprendizado

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CARDASSI, L. Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.60-73.

tanto dessa peça para piano quanto de outras que apre-sentem desafios semelhantes.

Considero fundamental a definição de estratégias de es-tudo já no início do aprendizado de uma obra musical do repertório contemporâneo. Deve-se subdividir a peça em partes menores, compreendendo tanto o plano arqui-tetônico geral da obra quanto os detalhes técnicos de cada célula. Deve-se buscar uma estratégia de simplifi-cação do material que, à primeira vista, pode se mostrar intricado em demasia. “O ato de aprender uma peça é primordialmente o de simplificação, enquanto a arte da performance é a de (re)complexificação” (SCHICK, 1994, p.133). Durante essa fase inicial, ritmos complexos devem ser transformados em unidades que possam ser interna-lizadas, complexidades da forma e textura devem ser subdividas em materiais compreensíveis e “vários tipos de recursos mnemônicos devem ser empregados simples-mente para que o [intérprete] se lembre o que fazer em seguida” (SCHICK, ibid.). Além da subdivisão sugerida por Schick, é necessário estabelecer “imagens” do som dese-jado através de ensaios mentais. Assim como nos espor-tes de precisão, onde a visualização contribui para uma melhor performance do atleta, na música devemos fazer uso do mesmo processo cognitivo. Apesar de chamarmos esse processo cognitivo de ensaios mentais, o que impli-caria uma separação dos processos físicos intrínsecos à performance do atleta e do músico, essa separação não existe. “De fato, processos mentais – pensamentos, sen-timentos e imagens – todos eles originam-se no cérebro e frequentemente envolvem outras partes do corpo, tais como o sistema nervoso autônomo e o sistema hormo-nal... o processo cognitivo é portanto um processo físi-co que ocorre no cérebro e sistema nervoso” (MURPHY, 2005, p.128). Assim, ao criarmos uma imagem sonora de um trecho musical, estamos ao mesmo tempo exercitan-do a nossa capacidade perceptiva e a nossa capacidade física, preparando o corpo para a realização de um trecho musical. A técnica utilizada na busca desse som ideal e as estratégias de aprendizado dependerão de cada músico, de sua experiência e de sua capacidade perceptiva. Entre-tanto, “sem a conceitualização de uma imagem desejada, não existe imagem alguma; não se pode materializá-la mesmo que sejam boas as intenções. Esta é a razão pela qual não existe substituto para o estudo lento ou ‘pré-estudo’” (SHERMAN, 1996, p.30).

O presente artigo tem como objetivo a discussão da obra Night Fantasies de Elliott Carter partindo do ponto de vista do intérprete. Mantive uma pergunta constan-te enquanto elaborava este texto: se um colega pianista quisesse estudar essa obra e me pedisse sugestões sobre como abordá-la, o que eu diria? Que alicerces embasa-riam minhas respostas? Com esse enfoque, a discussão foi organizada nos seguintes tópicos: justaposição de caracteres contrastantes, linhas melódicas (independên-cia das linhas melódicas e melodias com grandes saltos intervalares), textura, polirritmias e modulação métri-ca, episódios em primeiro plano e em segundo plano e

estrutura harmônica. Em cada tópico serão abordadas questões técnico-pianísticas ou analíticas que considero fundamentais para a execução criteriosa da peça. Incluo sugestões de como superar os desafios encontrados, além de um breve histórico do compositor e da obra.

2 - Elliott CarterElliott Carter nasceu em 11 de dezembro de 1908 em New York City. Apesar de ter demonstrado interesse pela mú-sica desde muito jovem, e de ter nascido em uma família próspera, seus pais não o encorajaram a estudar música, pois esperavam que Elliott viesse a ser o líder dos negó-cios criados pelo seu avô. Ele chegou a ter aulas de piano quando criança, entretanto o foco principal de seus estu-dos dessa época era o idioma francês. De fato, Carter pas-sou grande parte de sua infância na Europa e aprendeu a falar francês mesmo antes de ser capaz de escrever em inglês. Esse treinamento precoce para línguas foi decisivo para o grande interesse por diversos idiomas e literatura que Carter sempre demonstrou na sua produção musical.

Em 1922 Elliott Carter ingressou na Horace Mann Scho-ol e começou a se interessar por música nova. Em 1924 ele conheceu Charles Ives, cuja música e idéias exerce-ram grande influência no desenvolvimento musical de Carter. Em 1926 ingressou na Harvard University, mas o programa de música daquela universidade o frustrou e Carter então transferiu seus estudos universitários para Literatura Inglesa, Grego e Filosofia, e continuou estu-dando música (piano, oboé e solfejo) na Longy School em Cambridge. Recebeu seu diploma de Mestre em Música pela Harvard University em 1932, sob orientação de Wal-ter Piston e Gustav Holst. Durante os três anos seguintes estudou em Paris com Nadia Boulanger.

Carter retornou a New York City, em 1935. Apesar de ter sido professor em várias universidades, a escola onde ele deu aulas por mais tempo foi a Juilliard School (1964-84). Foi compositor em residência em vários lugares na Europa e nos Estados Unidos, mas a sua residência permanente é em New York City (Manhattan) e em Waccabuc, ao norte de New York City.

Elliott Carter tem sido um dos mais criativos e influentes compositores por mais de sete décadas. Sua música é fre-qüentemente caracterizada pelas experimentações com textura e com relações temporais. A Sonata para Piano (1945-46) é a primeira obra de Carter a revelar elementos que viriam mais tarde a alicerçar seu estilo:

Aqui, pela primeira vez, Carter deriva o material musical a partir da natureza do instrumento, em particular a amplitude de timbres, a ressonância e os sons harmônicos, construindo uma obra com um plano arquitetônico no qual contrastam tempos muito lentos e mui-to rápidos, e do qual uma continuidade de sons de caráter improvi-satório emergem de um alicerce rigoroso. Nesta peça, Carter revela pela primeira vez a amplitude da dramaticidade que veio a caracte-rizar muitas das suas composições posteriores (SCHIFF, 2001, p.202)

Na sua Sonata para Violoncelo (1948) Carter abando-nou o neoclassicismo. Nessa obra, violoncelo e piano

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parecem ser completamente independentes ritmica-mente. O piano toca em rigor metronômico, enquan-to o violoncelo toca de uma maneira expressiva, com muito rubato. Essas inovações rítmicas, somadas às harmonias também inovadoras e às frases muito ex-pressivas, proporcionaram um fôlego novo à obra de Carter daquele período. Em entrevista recente, o com-positor afirmou que um dos primeiros aspectos que mais lhe chamou atenção na música da primeira meta-de do século XX foi o pouco interesse dos compositores pelo parâmetro ritmo.

Stravinsky foi talvez um dos que mais experimentou, mas apenas em certas obras como a Sagração da Primavera. Schoenberg tam-bém havia procurado elaborar ritmos, já que buscava fazer música como a fala. Sua música tinha ritmos irregulares da mesma ma-neira como quando falamos usamos ritmos irregulares. Senti então que eu gostaria de encontrar um caminho para desenvolver o lado rítmico da música mais do que outros haviam feito (BAKER, 2002).

Em 1961 o compositor escreveu o Double Concerto para cravo e piano, o qual extrapola as relações rítmicas ini-ciadas com a Sonata para Violoncelo. De fato, a partir de então, a manipulação do tempo tem sido um dos elemen-tos mais enaltecidos em sua obra.

A tentativa de escapar de uma sensação de tempo mecânica, simples e unidimensional tem sido uma das características mais radicais da técnica de Elliott, assim como a maneira com que ele procura derivar e dar forma a todo o material melódico a partir da sonoridade dos diferentes instrumentos (ROSEN, 2007).

Prestes a comemorar os seus 101 anos, Elliott Carter tem tido uma produção musical extraordinária nos últimos anos. A estréia recente2 de sua única ópera atesta a per-sonalidade incansável do compositor. O título da ópera, What Next?, nos deixa curiosos. Afinal, que surpresas ainda nos reserva Elliott Carter, um dos mais respeitados compositores norte-americanos da atualidade?

3 - Night FantasiesEm 1980, Elliott Carter compôs Night Fantasies para piano solo. A peça foi encomendada por quatro pianis-tas: Paul Jacobs, Gilbert Kalish, Ursula Oppens e Charles Rosen.3 Esta obra apresenta um universo de caracteres contrastantes e de grande intensidade dramática, o uso de acordes de todos os intervalos e uma superposição de ritmos criados a partir de uma organização subliminar em polirritmias. É uma obra desafiadora ao extremo, que exi-ge conhecimento profundo do instrumento.

Night Fantasies é uma peça de quase meia-hora em um movimento único. Os seus muitos desafios técnicos serão discutidos a seguir. Apesar da escrita detalhada e rigorosa, a peça oferece espaço para a individualidade dos pianistas.

As mudanças imprevisíveis e os gestos deliberadamente ambíguos são os elementos essenciais do seu universo poético musical – e são também a resposta criativa de Carter a essa comissão. Night Fantasies, na sua sucessão de visões fugitivas, cria um ambiente musical que amplia todas as minúsculas facetas da personalidade de cada intérprete. A música não é uma imagem dos intérpretes, mas foi composta de tal maneira que cada interpretação seja um auto-retrato (SCHIFF, 1983, p.213).

Durante os meses que passei estudando a peça, foi-me de grande ajuda a leitura dos artigos escritos pelo com-positor, em particular aqueles escritos no mesmo período da composição da peça. Foi através dessa leitura que vim saber do seu interesse pela literatura, “especialmente a literatura que confronta a natureza do tempo, e a pre-ocupação com o tempo em si. De fato, a sua coleção de textos traz como último artigo o ‘Música e a Cortina do Tempo’, de 1976” (WARBURTON, 1990, p.209).

Além do interesse pela questão do tempo, Carter também demonstra preocupação com o processo narrativo em lite-ratura. Parece que sua preocupação com o tempo encon-trou um correlato literário na busca de Hans Castorp pelo pensamento temporal significativo no romance A Montanha Mágica de Thomas Mann. De fato, em entrevistas a Allen Edwards entre 1968 e 1970, Carter revelou interesse parti-cular pela obra de James Joyce, especialmente pela técnica de epifanias 4 encontrada, por exemplo, nos Dublinenses. Como o relacionamento entre música e literatura tem sido assunto de grande interesse nos meus trabalhos de pesqui-sa anteriores, fiquei entusiasmada ao descobrir a expressão “desenvolvimento epifânico” usada por SCHIFF (1983) para descrever os processos compositivos encontrados na obra de Carter. Meu entendimento das Night Fantasies alcançou ní-veis mais profundos através desse paralelo com a literatura enquanto procurava desenvolver estratégias para aprimorar meu processo de aprendizado da música.

Discuto a seguir as questões técnico-pianísticas ou ana-líticas que considero essenciais para o aprendizado crite-rioso dessa obra de Elliott Carter e as estratégias de que lancei mão a fim de superar os desafios encontrados.

3.1 - Justaposição de caracteres contrastantesUm dos principais desafios que encontrei ao estudar as Night Fantasies foi justamente o aspecto que mais me chamou a atenção quando a escutei pela primeira vez: a justaposição de caracteres contrastantes. Carter afirma que

Night Fantasies é uma peça para piano com caracteres em con-tínua transformação, sugerindo os pensamentos e sentimentos fugazes que nos vêm à mente durante um período de insônia no-turna. A evocação sutil, como um noturno, que inicia a peça e que retorna ocasionalmente, é subitamente interrompida por uma série de frases curtas e rápidas que vêm e vão. Esse episódio é se-guido por muitos outros de caracteres contrastantes de diferentes durações: algumas vezes são abruptos e outras vezes são desen-volvidos de maneira sutil a partir do que aconteceu antes. A obra culmina na repetição periódica, intensa e obsessiva de um acorde enfático, o qual, ao se desfazer, traz a peça ao seu final.

Procurei capturar, nesta peça, a qualidade extravagante e cambiá-vel de nossa vida interior em momentos em que ela não se encon-tra dominada por intenções e desejos direcionados e fortes – cap-turar o temperamento poético que, em um contexto romântico, aprecio nas obras de Robert Schumann como Kreisleriana, Carna-val, and Davidsbündlertänze (CARTER, 1982, prefácio à partitura).

Sendo eu também uma apreciadora da obra de Schu-mann, compreendi as palavras de Carter imediatamente. Entretanto, tocar a sua música com exatidão, e ao mes-

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mo tempo alcançar o nível profundo de interpretação dos caracteres poéticos me parecia tarefa quase impossível. Era evidente que eu ainda precisava percorrer um longo caminho antes de conseguir expressar a intenção poéti-ca do compositor através da minha execução. Optei por aprender a peça dividindo-a em passagens curtas, com o objetivo de nunca perder o conteúdo musical de vista, mesmo que o processo fosse lento. Mantendo esse objeti-vo maior durante o aprendizado da peça, pude vislumbrar, mesmo que por instantes muito breves, a intenção poéti-ca e musical de Carter, o que funcionou para mim como uma recompensa pelo trabalho árduo.

Por exemplo, nas primeiras páginas, as quais considero das mais difíceis devido a mudanças constantes de caráter (e às muitas modulações métricas, assunto que estarei discu-tindo adiante), procurei aprender a música no andamento sugerido pelo compositor, trabalhando no contraste de ca-racteres, e nas muitas indicações de articulação, dinâmica e fraseado. A cada página existem muitos detalhes e po-deríamos ser tentados a deixar alguns de lado, para serem

incorporados posteriormente. Meu enfoque foi sempre incorporar o máximo de informação possível já no apren-dizado inicial. Essa estratégia me deu a confiança de que estava fazendo música em cada passagem, por mais curta que fosse, e não apenas superando dificuldades técnicas. Esse processo lento e cuidadoso significou meses de tra-balho árduo, mas também a certeza de que ao chegar à última página eu teria construído a minha interpretação da Night Fantasies de maneira mais acurada possível.

A primeira mudança crucial de caráter acontece logo no início da peça (Ex.1). Os dois últimos tempos do compasso 14 antecipam o novo andamento e caráter. A nova seção – Fantastico – é bastante ativa em ter-mos de contrastes extremos e esse aspecto gera em si grande desafio ao pianista. Essa seção é leggerissi-mo, com sons de intensidade reduzida e apenas alguns instantes em crescendo para mezzo forte. Devido à grande atividade rítmica e melódica, é difícil manter o nível geral de intensidade reduzida indicado pelo com-positor. De fato, este é um dos desafios da peça como

Ex.1 – Night Fantasies – primeira justaposição de caracteres contrastantes: Tranquillo (aqui somente os compassos 13 e 14) e Fantastico (c.15-18). A seta aponta para a primeira modulação métrica, com o novo andamento das semicolcheias.

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um todo – retornar a sons de intensidade reduzida após passagens intensas. Foi-me útil pensar que de-pois de cada passagem em sons intensos eu precisaria descansar mentalmente, reduzir o peso do meu toque e conseqüentemente guardar energia para ao acordes intensos que viriam ao final da peça.Além da justaposição de caracteres contrastantes em se-ções longas como no Ex.1, o contraste ocorre também em escala muito menor, como interrupções breves em dife-rentes níveis de intensidade e articulação.

3.2 - Linhas melódicas3.2.1 - Independência das linhas mélodicasPor toda a Night Fantasies encontram-se gestos de duas linhas melódicas independentes, compartilhan-do o mesmo caráter declamatório, porém ocorrendo em contextos musicais diferentes. Procurei estudar essas passagens da mesma maneira: por exemplo, o gesto declamatório dos compassos 59-62 (Ex.2) e a passagem em molto espressivo em polirritmia 8 x 5 dos compassos 167-172 (Ex.3). Enquanto estudava esses trechos procurei repetir cada linha melódica em se-parado, freqüentemente com o auxílio do metrônomo, até que eu obtivesse a independência necessária de cada linha. Só então passei a executar as duas linhas concomitantemente, buscando sempre a realização precisa das polirritmias.

Utilizei a mesma estratégia de aprendizado na se-ção a seguir, a qual oferece um desafio a mais: as duas linhas melódicas se sobrepõem em um mesmo registro e apresentam uma aceleração em sentido oposto – a mão esquerda mantém um tempo cons-tante enquanto a mão direita passa de quintinas para tercinas (Ex.4). O som almejado para essa passagem, com as duas linhas melódicas se aproximando e se afastando, requer enorme precisão de ataques e total independência rítmica.

3.2.2 - Melodias com grandes saltos intervalaresNight Fantasies é repleta de escrita melódica, entretanto “a obra não apresenta temas no sentido tradicional e as linhas melódicas, depois de uma primeira aparição, nunca retornam” (ANDERSON, 1988, p.136). As melodias ocorrem freqüentemente com grandes saltos intervalares, visitan-do diferentes registros do instrumento, o que configura um desafio ao pianista. Conectar notas em registros diferentes requer o uso do pedal de sustentação, já que a maioria desses intervalos não pode ser alcançada através da sim-ples extensão da mão. Entretanto, ao usar o pedal corre-se o risco de sustentar notas outras que aquelas que fazem parte do intervalo a ser conectado. Acredito que o único caminho para uma execução precisa de tais passagens seja através do uso econômico do pedal, somado a uma rápida preparação das próximas notas a serem tocadas. Além dis-so, o uso cuidadoso de variações de dinâmica para enfati-zar as inflexões melódicas que são de difícil percepção em saltos intervalares dessa natureza, e finalmente, a memori-zação da linha melódica a fim de que se possa manter con-tato visual com o teclado ao invés da partitura. Melodias com grandes saltos intervalares ocorrem freqüentemente em Night Fantasies, algumas vezes sem acompanhamento, outras vezes com acordes de 3 notas em outra camada de textura, como nos compassos 304-307, ou com acordes de 5 notas como na passagem em quase recitativo nos com-passos 377-386 (Ex.5).

As linhas melódicas em Night Fantasies passam às vezes de uma mão para outra, como se pode observar na se-ção com indicação sempre ben in fuori, cantando (Ex.6). Elas também podem ser encontradas em interrupções bastante breves, como nos compassos 23 e 24. Inde-pendentemente da extensão da melodia, ela sempre guarda semelhança com a música romântica: o caráter cantabile inspirado pelas melodias para voz, como um noturno de Chopin.

Ex.2 – Night Fantasies – gesto declamatório (c.59-62). Os indicativos do caráter declamatório desta passagem são as expressões ben cantando, forte espressivo e legato

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Ex.3 – Night Fantasies – passagem em molto espressivo (c.167-172)

Ex.4 – Night Fantasies – duas linhas melódicas se sobrepondo em registro (c.314-317)

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Ex.5 – Night Fantasies – legato, quasi recitativo (c.377 - 379): melodia em grandes saltos intervalares percorrendo diversos registros do piano (mão esquerda), acompanhada por acordes de 5 notas.

Ex.6 – Night Fantasies – melodia passando de uma mão para outra (c.77)

Contrastando com as melodias com grandes saltos inter-valares, Night Fantasies apresenta uma passagem em que a melodia, ou linha expressiva, fica restrita a intervalos de segunda menor (Ex.7). Esse trecho, bastante expressivo, em intensidade reduzida e com uma melodia que se restringe às notas Lá e Si, é altamente contrastante com todas as melodias anteriores da peça. Ele soa como se as melodias de grandes saltos tivessem sido aprisionadas em um inter-valo de segunda menor. Embora a passagem possa soar de caráter etéreo para alguns, devido ao uso de intensidades

reduzidas e do registro médio-agudo do piano, ou como um “rouxinol mecânico” (SCHIFF, 1983, p.214), percebo esta passagem como um momento de bastante tensão devido às suas restrições: a melodia não chega a lugar algum além das notas Lá e Si, e o uso do pedal é reduzido, o que não permite muita reverberação do instrumento. A extravagân-cia das linhas melódicas com grandes saltos parece estar aprisionada nesse intervalo de segunda menor, pronta para outro arrombo expressivo. A tensão dessa passagem se des-faz quando novas melodias em grandes saltos acontecem

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peça, gera questões técnicas de grande complexidade. Um exemplo do uso de articulações diferentes resul-tando em desafios ao performer é encontrado na seção recitativo collerico dos compassos 235-240 (Ex.8), onde uma camada de textura cordal em intensidades reduzidas ocorre simultaneamente a uma série de ataques curtos em intensidades elevadas.

Nesse exemplo, ambas as camadas são executadas pelas duas mãos. Já que o uso do pedal poderia comprome-ter a camada em staccato, o pianista deve buscar uma maneira de sustentar os acordes com os dedos 3 a 5 em ambas as mãos, enquanto a camada em staccato é rea-lizada pelos dedos 1 e 2. Este é um processo elaborado, o de decidir o melhor dedilhado para seções como esta que resulte em uma seção confortável do ponto de vis-ta técnico-pianístico. Momentos como este acontecem por toda a Night Fantasies e cabe ao performer realizar todas as sutilezas de maneira criteriosa.

Ex.7 – Night Fantasies – melodia “aprisionada” em um intervalo de segunda menor (c.157-162). As setas indicam os ataques nas notas Lá e Si

na seção appassionato dos compassos 168-172 (ver Ex.3 acima). Ao estudar esse trecho, considero essencial uma “compartimentalização” das mãos, especialmente da mão direita, para que as notas Lá e Si da melodia aprisionada não passem desapercebidas, mas ao contrário, que sejam enfati-zadas, assim como seu caráter expressivo e tenso.

3.3 – Textura 5

Night Fantasies oferece ao intérprete uma variedade enorme de possibilidades de texturas ao piano. De acordo com SCHIFF (1983, p.214),

o performer é convidado a usar uma variedade enorme de tipos de toque e dinâmica – de leggerissimo a marcatissimo, de staccato a cantabile. A música cobre um espectro do teclado em confi-gurações que se transformam a todo instante, o que leva a uma variação contínua de possibilidades de cores resultantes.

Essa transformação exaustiva de níveis de intensidade e de articulação, somada à natureza contrapontística da

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3.4 – Polirritmias 6 e modulação métrica 7

Polirritmias são, provavelmente, o maior desafio enfren-tado pelo pianista ao estudar esta peça de Carter. Ni-ght Fantasies foi composta sobre um sistema de pulsos ininterruptos do início ao final: um pulso no tempo de MM 10.8 (um pulso a cada 5 segundos e meio) e outro em MM 8.75 (um pulso a cada 7 segundos), o que forma uma polirritmia subliminar de 216:175. Os dois pulsos somente coincidem no primeiro tempo do compasso 3 e nas últimas notas da peça. Embora não seja aparente ao ouvinte, esta estrutura de polirritmias controla a peça como um todo.

O pulso incansável pode ser comparado a um relógio no quarto de um insone, o seu tic-tac entrando e saindo do nível consciente do ouvinte. Nunca antes havia Carter inserido sistematicamente um tempo real em uma peça de tais dimensões e com tal rigor, e nun-ca antes o contraste entre tempo real e tempo psicológico havia sido apresentado de forma mais estrutural que dramática – embo-ra para o insone a visão do relógio possa desencadear sentimentos os mais terríveis e dramáticos (SCHIFF, 1983, p.217).

Esta estrutura subliminar, as polirritmias e as muitas mo-dulações métricas que ocorrem por toda Night Fantasies

exigem extrema dedicação por parte do intérprete. Mais uma vez, optei por seguir com um estudo em partes. No caso das polirritmias, iniciei com um treinamento rítmico longe do piano, até que eu me sentisse confortável ao executar polirritmias de 3 x 5 notas, 7 x 5 notas, 5 x 4 notas, e assim por diante. Podemos observar no Ex.9 um trecho em polirritmia 5 x 4 semicolcheias em andamento rápido e níveis elevados de intensidade com diferentes acentuações. Trechos como esse, freqüentemente em ar-ticulação non legato, ocorrem em toda a peça. Se o per-former inicia o aprendizado de trechos como esse já com as polirritmias internalizadas, o tempo despendido será certamente reduzido e o nível de exatidão muito maior.

A fim de solucionar polirritmias com as quais eu não es-tava familiarizada, utilizei sempre o método do “menor denominador comum”, com a subseqüente reescrita da polirritmia (WEISBERG, 1993, p. 18). Adicionar a música às polirritmias pré-estudadas se tornou tarefa factível. Uma outra ferramenta essencial para o aprendizado de polirritmias é o estudo de exercícios progressivos tais

Ex.8 – Night Fantasies - recitativo collerico (c.235-240) – duas camadas: uma em acordes em intensidade piano e a outra em ataques curtos em intensidade forte com acentos

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como aqueles encontrados na Cartilha rítmica para piano do compositor Almeida Prado.8 Programas de computador também podem ser úteis na fase de aprendizado de po-lirritmias. A escuta atenta e repetitiva de um trecho em polirritmia pode auxiliar no aprendizado de passagens de grande dificuldade técnica, entretanto ao escolher esse percurso, sugiro que o performer estude a polirritmia de maneira aprofundada, compreenda as várias camadas in-dividualmente e o ritmo resultante, e só então passe a fazer uso do computador.

No que se refere às modulações métricas, procurei es-tudar as transições com muita atenção, repetindo-as tantas vezes quanto necessário para que eu começasse a sentir o novo andamento um ou dois tempos antes da transição. Vale a pena ressaltar o fato de que, atra-vés das modulações métricas, Carter nos proporciona um guia sobre o novo andamento a ser realizado em cada transição. Por exemplo, nos compassos 14 e 15 (Ex.1 acima), a velocidade das últimas semicolcheias na mão esquerda correspondem à velocidade das tercinas da nova seção. Chega-se a esta conclusão através do seguinte cálculo: se o andamento dessa seção é mínima = 47.25, ao multiplicarmos esse valor por 8 (número de semicolcheias equivalente à duração de uma míni-ma), chegamos à velocidade de cada semicolcheia nesse trecho (47.25 x 8 = 378). Na seção Fantástico, o anda-mento é semínima = 126. Logo no primeiro tempo dessa seção ocorrem colcheias em tercinas. A velocidade de cada colcheia em tercina será, portanto, o andamen-to da unidade de tempo (semínima) multiplicado por 3 (126 x 3 = 378). É fundamental o uso de guias tais como este durante as modulações rítmicas em Night Fanta-sies, a fim de que se possa manter o controle dos muitos andamentos e polirritmias que essa peça oferece.

Outro exemplo de modulação métrica e transições pode ser observado no Ex.10. Neste trecho, a velocidade das semicolcheias nos compassos 318 (em quintinas) e 319 (em septinas) é a mesma, enquanto na próxima transição, o guia para o intérprete está na mão esquerda, pois a ve-locidade das colcheias se mantém a mesma entre o com-

passo 319 e 320. Mais uma vez o cálculo se faz através da multiplicação do número de ataques em colcheias em cada unidade de tempo, neste caso a mínima. Se mínima = 67.5, ao multiplicarmos esse valor por 4 (número de colcheias equivalente a uma mínima), chegamos a 270. Essa é a velocidade de cada ataque em colcheias nes-sa seção. Para se calcular o andamento da colcheia no compasso 320, teríamos que multiplicar o andamento da unidade de tempo (semínima pontuada = 90) pelo núme-ro de colcheias em cada unidade de tempo (3). Portan-to, 90 x 3 = 270, exatamente o mesmo andamento das colcheias da seção anterior. Apesar desse cálculo não ser necessário nessa transição, já que o próprio compositor deixou explícito na partitura que o andamento das col-cheias se mantém o mesmo nessa modulação métrica, é fundamental fazer uso desse tipo de cálculo em muitas das transições em Night Fantasies.

A fundação rítmica da Night Fantasies é uma base rigo-rosa e imutável sobre a qual flui uma superfície de sons cambiantes. Acredito que essa base rítmica complexa funcione durante a performance como uma salvaguar-da, algo que sei está presente, e sabê-lo presente me faz sentir mais segura. Durante a performance as estruturas rítmicas, as polirritmias, as modulações métricas, todo esse emaranhado de complexidades dá lugar ao fluir de gestos de caráter improvisatório, os quais superam a rigi-dez da estrutura rítmica sobre a qual a peça é construída. A dramaticidade resultante, conseguida depois de supe-radas as dificuldades técnicas, é um dos aspectos mais fascinantes e intrigantes desta peça para piano.

3.5 - Episódios em primeiro plano e em segundo planoEpisódios rápidos e lentos parecem estar continuamente sendo negociados em Night Fantasies, enquanto materiais inicialmente mantidos em segundo plano passam para um primeiro plano e vice-versa. Esse aspecto de mutabilidade contínua constitui um dos elementos essenciais que fazem desta peça monumental de mais de 20 minutos uma expe-riência auditiva absolutamente fascinante.

Ex.9 – passagem em polirritmia 5 x 4 e andamento rápido: = 94.5 (c.32)

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Ex.10 – Night Fantasies – modulações métricas entre c.317 e 318 e entre c.318 e 319

Ex.11 – Night Fantasies – a seta aponta para o primeiro dos acordes repetidos (c.473-477)

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Carter descreve a obra [Night Fantasies] como um movimento rá-pido interrompido (como em Schumann) por ‘trios’ lentos que gra-dualmente se transformam em um movimento lento interrompido por ‘trios’ rápidos. Episódios rápidos e lentos têm, portanto, suas funções inter-cambiadas de segundo plano para primeiro plano ─ uma diferença que o performer deve evidenciar. Os caracteres de música lenta e rápida também evolvem durante a peça. Vários tipos distintos de música rápida (fantastico, marcato, cantabile, leggero, appassionato) aparecem antes que a seção rápida mais longa da peça aconteça (capriccioso leggerissimo). Todos esses [ti-pos diferentes de música rápida] retornam como ‘trios’ durante a segunda parte da peça, com as passagens em marcato se tornando cada vez mais proeminentes. De maneira semelhante, a música lenta tem uma transformação de caráter que vai do início Tran-quillo, quase inaudível , com acordes flutuando e breves ostinatos estáticos, até aparições cada vez mais líricas e intensas (...) Ma-teriais rápidos e lentos finalmente intersectam em seus pontos de maior intensidade com os acordes agressivos dos compasso 472 e subseqüentes; depois desse clímax de fusão a música gradualmen-te se esvai (SCHIFF, 1983, p.217).

Uma execução criteriosa da obra Night Fantasies deve possibilitar ao ouvinte a percepção dessa transferência de materiais do primeiro para o segundo plano e vice-versa, e me perguntei o que eu poderia fazer para evidenciar esse aspecto. Inicialmente procurei enfatizar o contraste entre as passagens rápidas e lentas, no entanto percebi que esse caminho estava colocando em risco os tempos corretos e as modulações métricas que eu havia trabalhado com tanto afinco. Busquei então me concentrar nesse contraste com o cuidado de não exagerar a diferença de andamen-tos, definidos com precisão pelo compositor. Acredito que cada intérprete, ao executar essa obra, estará em busca constante por precisão técnica, entretanto o caráter único da sua interpretação nunca se perderá. Detalhes interpre-tativos serão adicionados, sem dúvida, e, por conseguinte, cada intérprete fará da sua interpretação de Night Fan-tasies o seu próprio auto-retrato sonoro. O constante in-tercâmbio de funções entre as passagens rápidas e lentas produz em Night Fantasies um clímax extraordinário com a repetição de um acorde (Ex.11) na seção final da peça.

Essa repetição de acordes acontece depois de aproxima-damente 20 minutos de música incrivelmente complexa e é fundamental que o intérprete maneje apropriadamente sua energia física e mental, pois esses acordes finais são essenciais para uma performance convincente.

3.6 - Estrutura harmônicaA estrutura harmônica de Night Fantasies é formada por 88 acordes de 12 notas abrangendo todos os intervalos possíveis. Cada intervalo faz par com seu inverso equiva-lente ao redor de um trítono central. Em outras palavras, segundas menores fazem par com sétimas maiores, se-gundas maiores com sétimas menores, terceiras menores com sextas maiores e assim por diante, sempre mantendo um trítono entre eles (Ex.12).

O compositor faz uso desses 88 acordes de todos os in-tervalos das maneiras mais variadas. Algumas vezes ape-nas uma classe de intervalos se manifesta, outras vezes acordes de três notas predominam. Há passagens em que Carter recorre ao seu aparentemente favorito tetracorde (0,1,4,6).9 O processo compositivo foi, obviamente, muito mais complexo do que apenas escolher alguns interva-los predominantes para cada seção e uma análise desse aspecto vai além dos objetivos deste trabalho. Por outro lado, do ponto de vista do performer, considero impor-tante estar ciente de pelo menos alguns pontos estraté-gicos nos quais determinados intervalos predominam e como eles são transformados nas passagens que seguem. Por exemplo, foi-me útil saber que intervalos de quar-ta e quinta predominam no início, enquanto sétimas e nonas ocorrem mais freqüentemente no final da peça, e que na seção central caprichoso que acontece a partir do compasso 195, um acorde de três notas predomina (0,1,5). Acima de tudo, considero importante estar ciente das transformações pelas quais passam os intervalos de uma seção a outra.

Ex.12 – Night Fantasies – acorde principal entre os 88 acordes de todos os intervalos (SCHIFF, 1983, p.214)

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4 - Comentários finaisA discussão aqui apresentada é o resultado de minhas reflexões durante e após o aprendizado desta obra mo-numental de Elliott Carter. Tive que trabalhar exaustiva-mente em diversas questões técnico-pianísticas, além de desafios rítmicos que eram, de certa forma, novos para mim, e que provavelmente o são para muitos músicos. Considero essencial desenvolver total controle sobre as polirritmias e modulações métricas, assim como absolu-ta independência das mãos, já que cada linha melódica ocorre freqüentemente com um tipo de articulação, ritmo e níveis de intensidade diferentes. Depois de superadas as dificuldades técnicas, o performer pode focar seu estudo na realização eficaz da justaposição de caracteres con-trastantes e no intercâmbio de funções dos episódios em segundo e primeiro plano.

Os detalhes e, conseqüentemente, os desafios que Night Fantasies oferece são muitos. De fato, para Carter, cada detalhe é essencial:

Todo momento deve, de alguma forma, se fazer importante, assim como todo detalhe (...). Estou sempre interessado nas frases de um compositor, no conteúdo e forma dessas frases, na maneira como ele as une, o tipo de articulação que utiliza, assim como no fluxo geral e continuidade de uma seção longa e na construção da obra como um todo (CARTER, 1967).

Existem, sem a menor dúvida, muitos obstáculos técnicos a serem vencidos pelo pianista que se aventura por esta peça, entretanto esses desafios não devem desencorajar o performer interessado nesse repertório. Ao contrário, as dificuldades técnicas devem ser encaradas como ferra-mentas para o performer aprimorar seu desenvolvimento musical. O objetivo deve ser sempre a busca pela per-formance ideal e que proporcione ao ouvinte uma expe-riência perceptiva ideal. Enquanto nos preparamos para essa performance ideal, muitos caminhos terão que ser percorridos, e é nessa fase de definição de estratégias de aprendizado que trabalhos como este encontram a sua razão de ser. Questões técnicas discutidas neste ar-tigo podem parecer sobre-humanas para alguns. Prefi-ro, no entanto, salientar que a peça musical em estudo foi concebida para ser executada por um pianista, não por uma máquina. Deslizes de performance e pequenas imperfeições acontecerão indubitavelmente, e devem ser encarados como oportunidades para criação de uma performance pessoal, diferenciada, única. Apesar dos pro-blemas aqui discutidos terem sido originados na minha experiência prática e as soluções técnicas apresentadas terem, certamente, um enfoque pessoal, espero que este trabalho possa ser útil a outros colegas pianistas que de-cidam se dedicar ao estudo desta peça de Elliott Carter, uma das mais desafiadoras e fascinantes do repertório para piano do século XX.

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notas1 A música complexista apresenta 3 elementos principais: grande quantidade de informação, tanto quantitativa: (uma massa de eventos sonoros

acontecendo de maneira rápida e densa), quanto qualitativa (uma massa de relações subcutâneas exibindo diferentes dimensões, riqueza semântica e grande habilidade em formar contatos mútuos); polivalência dos níveis de significado e um alto nível de energia de coesão entre as partes e o todo (MAHNKOPF, 2002, p. 54).

2 “What Next”, a única ópera de Carter, estreou na Staatsoper Unter den Linden, em Berlim, em 16 de setembro de 1999. A estréia norte-americana aconteceu no Tanglewood Music Centre em Lenox, Massachusetts, em 26 de julho de 2006.

3 Cada um dos quatro pianistas que comissionaram a peça realizou a sua estréia da obra em 1980 e 1981. Oppens foi a primeira a estrear a peça em 1980 (em Bath, England) e a lançar Night Fantasies em CD, em 1981, tendo revisitado a obra desde então e lançado sua nova versão em 2008. Além de gravações de Oppens, Rosen, Jacobs e Kalish, a obra foi lançada em CD por vários pianistas, incluindo Aleck Karis, Stephen Drury e Pierre-Laurent Aimard.

4 Técnica através da qual uma obra literária apresenta momentos em que a realidade ou o significado profundo de algo é percebido de forma súbita, causado por um acontecimento banal.

5 Textura se refere aos aspectos sonoros de uma estrutura musical. Pode estar relacionado tanto aos aspectos verticais de uma obra ou passagem como, por exemplo, a maneira pela qual as partes individuais ou vozes se inter-relacionam, ou a atributos tais como cor e ritmo, ou ainda a carac-terísticas de performance como articulação e níveis de intensidade. Embora o controle textural tenha sido de grande importância para compositores desde a Idade Média, com o advento do dodecafonismo e do serialismo no século XX e com o subseqüente colapso do sistema tonal na música ocidental, textura passou a ser um elemento ainda mais importante na composição (SADIE, 2001, p. 323).

6 Polirritmia é uma manifestação simultânea de diferentes divisões de uma unidade de tempo, ou de uma duração temporal maior. Com polirritmias simples, tais como 3 contra 2, os pulsos coincidem com freqüência. Carter, no entanto, recorre a polirritmias lentas que raramente coincidem (SCHI-FF, 1983, p. 44).

7 Modulação métrica é uma mudança proporcional de tempo que ocorre através da re-escrita de um tempo metronômico como na indicação “nova mínima igual à semínima pontuada anterior”. O termo modulação métrica foi usado pela primeira vez por Richard Franko Goldman em 1951 ao descrever a Cello Sonata de Carter, mas o compositor tem utilizado esse recurso desde a sua Sinfonia n. 1 de 1942. Em Night Fantasies, modulações métricas ocorrem em toda a peça.

8 A Cartilha rítmica para piano do compositor Almeida Prado (GANDELMAN, 2006) oferece vários exercícios progressivos para o aprendizado de po-lirritmias. O valor artístico e pedagógico destas peças curtas é imenso e recomendo aos alunos de piano e outros instrumentos que se familiarizem com essa obra antes de se aventurarem por obras tais como a discutida neste artigo.

9 Utilizo aqui o conceito de classe de intervalos em que as notas são consideradas sem ordem específica. Dessa maneira, os 12 intervalos possíveis em uma oitava são reduzidos a um grupo de 7 classes de intervalos numerados de 0 a 6. Cada classe de intervalos é formada pela menor distância entre duas notas, não importando a ordem delas.

Luciane Cardassi, pianista, é Doutora em Música (Contemporary Piano Performance) pela Universidade da Califórnia, San Diego (EUA) e Mestre em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi bolsista da CAPES. Tem artigos publicados em importantes revistas nacionais na área de performance da música contemporânea, além de palestras e concertos no Brasil e exterior.

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Recebido em: 13/05/2008 - Aprovado em: 02/11/2009

Tecnologia de áudio na etnomusicologia

André Vieira Sonoda (UFPB, João Pessoa, PB)[email protected]

Resumo: Estudo sobre a relação da etnomusicologia com a tecnologia de áudio adentrando nos principais desenvolvi-mentos tecnológicos e conceituais dessas duas áreas desde o final do século XIX. Objetiva resumir a história da primeira área, desde a musicologia sistemática até hoje com base na tecnologia que permeou seu percurso, chamando atenção para questões pouco contempladas. Foram subsídios metodológicos: a pesquisa bibliográfica e de campo, análises de documentos e comportamentos em estúdio de gravação e análises acústicas. Verificou-se a existência de marcos delin-eadores do processo histórico ocorrido. Sugere que qualquer fator relacionado com um processo de produção fonográ-fica pode influenciar o resultado acústico de uma manifestação musical gravada. Sugere também uma maior atenção em pesquisas frente à influência de elementos técnicos e conceituais de produção fonográfica em manifestações de transmissão oral. Palavras-chave: etnomusicologia; produção fonográfica; música de tradição oral; tecnologia de áudio; Pernambuco.

Audio Technology in Ethnomusicology

Abstract: Study about the relation of the ethnomusicology with the audio technology covering the main technologi-cal and conceptual developments of these two areas since the late nineteenth century. It aims at covering the history of the former since the systematic musicology until the present centering on the technology that characterized the way, calling attention to less covered questions. The methodological procedures were: bibliographic and field research, document and behavior analysis in recording studio and acoustic analysis. It suggests the existence of some landmarks in the historical process and that any factor related with the phonographic production process may exert influence on the acoustic result of a recorded musical manifestation. It also calls attention to the need of more research on the influence of technical and conceptual elements of phonographic production on oral transmission manifestations.Keywords: ethnomusicology; phonographic production; oral tradition music; audio technology; Pernambuco (Brasil).

1- A era mecânica da história do áudio e a musicologia comparativa Desde seus primeiros passos a etnomusicologia tem a tecnologia de áudio como elemento chave e de grande importância para o seu desenvolvimento. Mesmo após o importante trabalho de Guido Adler (1855-1941) no sen-tido de tratar formalmente a música não ocidental como objeto de estudos da musicologia sistemática em 1885 (PINTO, 2004, p.104), algumas descobertas ainda esta-riam por acontecer para delinear as bases fundamentais do trabalho musicológico comparativo que, posterior-mente, se chamaria “etnomusicologia”.

A conclusão de Alexander John Ellis de que o sistema so-noro ocidental não era um “padrão natural”, mas uma “concepção cultural” (BLACKING, 1974, p.56), conduziu à constatação de Carl Stumpf de que a “desafinação” era, então, um conceito etnocêntrico por pressupor um “erro” do outro em relação a uma “verdade” sua (OLIVEIRA PIN-TO, 2004, p.107). Tais acontecimentos, contudo, além de reconhecidamente importantes para a estruturação da etnomusicologia, apresentavam uma relação direta com

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

o fonógrafo de Thomas Edison que, naquele fim de século, já se configurava como uma importante tecnologia em pesquisas antropológicas.

O fonógrafo de cilindro mecânico de Thomas Edison foi o primeiro dispositivo prático de gravação e reprodução so-nora. Tendo sido inventado em 1877, chegando ao Brasil em 1879 (SILVA, 2001, p.1-2), este dispositivo utilizava cilindros de cera como mídia para gravação dos sons que eram gravados em forma de cavidades.

O registro sonoro mecânico acontecia a partir de um cone de metal que tinha em sua extremidade um diafragma. Este comandava a agulha que cavava os sulcos na cera. Portanto, era necessário potência sonora para se ter cer-teza de que houve a gravação do som. [...] (CAZES, 1999, p.41. Apud SILVA, 2001).

O cilindro de cera foi a principal mídia para consumidores em larga escala entre 1890 e 1910, sendo utilizado no

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Brasil para gravações etnográficas até 1937 (OLIVEIRA PINTO, 2004, p.119). Em 1902, inicia-se a gravação de discos comerciais no Brasil, dando início à “era mecâni-ca” (CARDOSO FILHO; PALOMBINI, 2006), denominação relacionada ao princípio de funcionamento desse proces-so de gravação e reprodução sonora. Esta durou, aproxi-madamente, até o final da década de 1920 (1928-1929), quando os gravadores de fita magnética começaram a se disseminar. Vale ainda salientar a existência de casos que não se enquadram nessas datas como a Missão de Pes-quisas Folclóricas organizada por Mário de Andrade em 1938, que ainda realizou gravações com discos no Norte e Nordeste do Brasil.

No início do século XX, com os norteadores artigos de HORNBOSTEL (1905) para a musicologia comparativa, evidencia-se a utilidade desta tecnologia para os arquivos fonográficos e, consequentemente, para a disciplina que já delineava uma história paralela à dos gravadores de áudio. A criação de tais arquivos, possibilitada, sobretu-do, pela criação e desenvolvimento do fonógrafo, passa a representar, na história da musicologia comparativa, uma era marcada por registros musicais de todos os pontos do planeta, mesmo que realizados por pessoas externas à área desta musicologia. Sob a influência do evolucionis-mo, busca-se representar uma história da musicalidade da humanidade como um contínuo se estendendo desde seus “primeiros estágios de desenvolvimento”, ou seja, sociedades economicamente não desenvolvidas, até está-gios tidos “mais evoluídos” como sinônimo de sociedades ocidentais econômica e politicamente dominantes.

Ao observar a história do fonógrafo por esta ótica, pa-rece razoável concluir que durante o século XX o desen-volvimento de equipamentos de gravação de áudio para trabalhos em campo foi influenciado de alguma forma pela crescente demanda dessa tecnologia entre pesquisa-dores e interessados em gravação etnográfica. Contudo, supondo a veracidade dessa hipótese, se durante a época dos arquivos fonográficos observa-se um aumento de in-teresse por gravadores de campo, vale lembrar que um fato posterior parece ter sido ainda mais responsável por este aumento de demanda tecnológica. Ou seja, a defini-tiva mudança de paradigma na musicologia comparativa dando ênfase ao trabalho de campo, fato este que termi-naria por aproximar a disciplina dos novos direcionamen-tos antropológicos, distanciando-a, cada vez mais, das características musicológicas “comparativas” nos moldes conhecidos do final do século XIX.

Com a crescente importância da teoria da relatividade de Albert Einstein (1905) e o desenvolvimento do difusionis-mo na antropologia, a exemplo dos estudos de Franz Boas sobre os Inuit das ilhas de Baffin e os estudos de Horn-bostel sobre indígenas norte-americanos, surge uma nova consideração sobre a cultura do “outro” na musicologia comparativa. Isto coincide cronológica e ideologicamen-te com o desenvolvimento dos princípios modernistas, se despoja da velha visão oitocentista de uma via única

de desenvolvimento das sociedades e passa a considerar pontos de vista culturais distintos sem o anterior julga-mento de valores.

Outro fato característico desta nova musicologia e imprescindível de se lembrar nesta abordagem, é a assimilação das novas tecnologias como indício de renovação da disciplina que, com isso, passava a se aproximar dos moldes das ciências exatas e se contra-por às tradições filológicas das ciências humanas que desde a segunda metade do século XIX buscavam, sem nenhuma unanimidade, um modelo ou metodologia de pesquisa científicos mais adequados à sua condição. Modelo este, classificado de “qualitativo” ou “visão idealista/subjetivista” (QUEIROZ, 2006, p.88). Aliás, a assimilação de novas tecnologias na etnomusicolo-gia como ferramentas auxiliares se tornariam, duran-te todo o século XX, uma espécie de característica na disciplina (BOHLMAN, 2003, p.03). Neste aspecto, vale lembrar a ótica visionária de Hornbostel, já em 1905, realçando a importância da tecnologia de gravação de imagens em movimento nos registros fonográficos, o que se chamaria mais tarde na antropologia de “per-formance studies” (PINTO, 2004, p.113).

2- A era magnética e o realinhamento da etno-musicologiaCom a invenção da gravação elétrica (1927) e o conse-qüente desenvolvimento dos gravadores de fita magnéti-ca na década de 1930, seguidos pela popularização desta tecnologia na década de 1940 com a difusão do gravador Ampex, diminuíram os custos e inconvenientes para a re-alização dos processos de gravação, além, evidentemente, do aumento da qualidade de áudio imposta por esta nova tecnologia. Nesta época, surgem consagrados gravadores de fita magnética equipados com baterias e específicos para trabalhos de campo, a exemplo dos conhecidos Na-gra e Stellavox (MYERS, 1992, p.54).

O desenvolvimento da gravação elétrica simultaneamen-te ao da tecnologia de gravação de imagens, tornaria possível, alguns anos mais tarde, a criação do filme como o conhecemos hoje, associando duas importantes dimen-sões da percepção humana, o som e a imagem. Esta nova possibilidade configurou um grande avanço para análises científicas e, consequentemente, para a área da antropo-logia e musicologia. A partir dessa época (últimos anos da década de 1930), o registro de imagens em movimento na produção de etnografias se tornaria mais comum, fato que vem sendo observado até a atualidade com consecu-tivos avanços tecnológicos.

Como exemplos de célebres trabalhos utilizando imagem, podemos citar a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 organizada por Mário de Andrade com objetivo de reali-zar gravações sobre a música do Norte e Nordeste do Bra-sil; as gravações de Jean Rouch na “Mission Niger 1950-1951 de L´Institut Français de L´Afrique Noire” e “Les Maitres Fous (1956)”, além de muitos outros trabalhos

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desenvolvidos por pesquisadores e etnomusicólogos em todo o planeta com a mesma tecnologia. Como exemplo mais recente, vale mencionar o documentário Tambours et Djembés du Burkina Faso.

Por volta da década de 1950, a musicologia comparativa sofre um realinhamento conceitual e paradigmático, o que resultou na mudança do termo para “etno-musicologia” e, posteriormente, etnomusicologia. O novo termo, além de simbolizar este realinhamento disciplinar, coincidiu cronologicamente com outras mudanças durante as pri-meiras décadas que seguiram a segunda guerra mundial, a exemplo da mudança do centro de pesquisa de campo etnomusicológica da Europa para os Estados Unidos da América; da maior afinidade disciplinar da etnomusico-logia com a antropologia cultural e social por conta de etnomusicólogos americanos; de uma maior aproximação de práticas etnográficas por parte da etnomusicologia asiática e européia; da mudança de método científico; do acompanhamento das revoluções tecnológicas por pes-quisadores desta área, etc. (BOHLMAN, 2003, p.1-3). Ou-tro importante fato para a segunda metade do século XX foi a criação do transistor, facilitando o desenvolvimento das tecnologias e possibilitando, sobretudo, o desenvolvi-mento e aprimoramento dos computadores.

Durante a segunda metade do século XX, o direcionamen-to do enfoque etnomusicológico no sentido de constituir uma imagem mais abrangente de fenômenos relativos à música, termina por distanciar a disciplina dos velhos ob-jetivos observados nos anos 1950 que privilegiavam uma investigação minuciosa de uma única cultura musical (BOHLMAN, 2003, p.03). O fenômeno global do concei-to de estado nação favorece assim o desenvolvimento da pesquisa musical intensiva e extensiva, conduzindo à adaptação das práticas políticas e institucionais da etno-musicologia (BOHLMAN, 2003, p.03).

No âmbito das tecnologias de gravação de áudio e vídeo após a segunda guerra, vemos o surgimento do cassete em 1963 (GOHN, 2001, p.05) como tecnologia holan-desa da Phillips; o VHS (Video Home System) criado em 1976 pela JVC; o DAT (Digital Audio Tape) criado pela SONY em 1977 (GOHN, 2001); o CD (Compact Disk) em 1977 (GOHN, 2001, p.05); o desenvolvimento dos com-putadores pela IBM durante a década de 1980; o ADAT (Alesis Digital Audio Tape), com 8 canais simultâneos desenvolvido pela empresa Alesis em 1991; o DV (Di-gital Video) em 1996, além de tecnologias como o MD (Mini Disk), Mini DV, formatos compactados de arquivos digitais de áudio e vídeo, os conhecidos MP3, MP4, etc. Todos estes subsídios tecnológicos contribuíram e ainda contribuem para a realização de etnografias e pesquisas em diversas áreas científicas.

Apesar de todo este desenvolvimento tecnológico, as-sociado à diversificação dos objetos, objetivos e abor-dagens nas pesquisas etnomusicológicas, o emprego dessas tecnologias ainda representava, apenas, um

subsídio auxiliar para estudos e pesquisas. Seja porque o áudio isoladamente não fornece informações sufi-cientes para se constatar algo sobre uma cultura, seja porque, geralmente, a música em contextos de trans-missão oral apresenta-se como elemento indissociável de outros aspectos humanos e sociais como, indire-tamente, afirma Bohlman: [...] ao contrário das bases etnográficas dos anos 1950, baseadas em tecnologias de gravação sonora, nos anos 1990 tais conceitos et-nográficos baseavam-se raramente só em gravações (BOHLMAN, 2003. p.3).

Ainda para corroborar a idéia central, Rafael José de Me-nezes Bastos se referindo, especificamente, à música in-dígena, afirma:

A música, nas terras baixas da América do Sul, não é simplesmen-te um veículo para dizer-se algo, mas o cerne do dizer. [...] está congenitamente ligada à dança, à poesia e a outros universos de sentido, não necessariamente auditivos [...] (BASTOS, 2005. p.11).

Neste novo contexto temático mais abrangente, as pesquisas passam a abordar questões outras que envolvem, por exemplo, os usos e funções da músi-ca para aqueles que a produzem (MERRIAM, 1964); interpretações de contextos culturais variados (GE-ERTZ, 1978); música popular (CAZES, 1998; SANDRO-NI, 2001; KUBIK, 1981); música indígena americana (TRAVASSOS, 1986; SETTI, 1985); contextos religiosos (BRAGA, 1998); relações entre vida musical, regras sociais e sistema musical (NETTL, 2003); mito e hie-rarquia na música (BLUM, 1991); abordagens etno-musicológicas macro e microcósmica sobre músicas variadas (NETTL, 2003; BASTOS, 2005); análises so-bre a música culta ocidental (NETTL, 2003); relação da música com a violência ou como arma (CUSICK, 2006); etc., ou seja, no final do século XX, os etno-musicólogos se voltam para a constituição de uma imagem tão completa quanto possível dos diversos fenômenos que constituem a música, indo em direção quase completamente oposta aos objetivos dos anos 1950 de investigação detalhada de uma única cultura musical. Dessa forma, a incompatibilidade do rotulo “etnomusicologia” às novas abrangências da discipli-na conduziu a Sociedade de Etnomusicologia (SEM) a discutir uma substituição para esse termo em 1990, só vindo, contudo, a enfatizar a disciplinar revolução de 1950 (BOHLMAN, 2003, p.03-04).

3- A era digital e a influência da tecnologia de áudio na etnomusicologiaIndiscutivelmente o século XX foi um divisor de águas no âmbito das ciências humanas. Mesmo porque, essa mudança ocorreu na ciência em geral como resultado de uma modificação conceitual no pensamento do ho-mem enquanto ser que questiona. Não se tratava mais de atribuir um status maior para as ciências exatas em detrimento das “outras”. Essa condição hierárquica das ciências, aliás, parece nunca ter tido muito sentido, uma vez que a ciência é um produto do pensamento humano,

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portanto, considerações de graus de importância entre ciências só refletiam a parca consciência do homem em relação à sua própria capacidade de imaginação e inteli-gência. Além disso, o próprio conceito de “importância” é contextual, ou seja, relativo a algo, em algum momento e para alguém definido.

Ao pensarmos nas mudanças conceituais ocorridas na antropologia, traçando uma nova lógica para entender o ser humano, sobretudo com base na importância que o trabalho de campo assume no século XX, podemos imaginar um paralelo desta área com a etnomusicolo-gia. Esta última tratou de trazer para a área da música uma dimensão antropológica, nesta acepção, nunca antes experimentada. Estudos de educação musical, performance, teoria musical, etc. não mais poderiam ser encarados da forma como o eram antes do que po-deríamos chamar de fase de reconhecimento da condi-ção étnica da música.

Neste aspecto, vale lembrar que se a etnomusicologia realmente foi responsável por esta revolução na área da música, internamente permaneceu sem uma abor-dagem convincente de alguns âmbitos importantes. As consequências da utilização das tecnologias de áudio na gravação de tradições não escritas foram um desses pontos. Pouco se discutiu sobre a influência que um pro-cesso de gravação (etnográfica ou mercadológica) pode causar em uma cultura. Com a devida consideração dos trabalhos realizados sobre temas semelhantes, venho realizando uma pesquisa que aborda, especificamente, esta questão com ênfase nos resultados acústicos de-correntes de processos de gravação de áudio relativos à culturas de transmissão oral. Com base nos dados le-vantados neste processo de pesquisa, é possível per-ceber uma certa influência dos conceitos de produção fonográfica, não apenas nos resultados acústicos dos materiais gravados, mas, principalmente, nas próprias manifestações culturais.

Nesta pesquisa, tento considerar, sobretudo, conceitos norteadores mais condizentes com a especificidade da questão, a exemplo de considerações como:

a) A impossibilidade de registro de uma “realidade acústica” em gravações - Esta dita realidade não é real, ou seja, ela é essencialmente contextual e não apresenta parâmetros de comparação. Além disso, é variável entre indivíduos devido, tanto às diferenças entre os sistemas auditivos humanos, quanto, princi-palmente, aos respectivos legados culturais das diver-sas sociedades.

b) Consciência de que o produto de uma gravação de áudio deriva, essencialmente, da influência do produ-tor (pesquisador), além dos fatores técnicos e con-textuais - Além disso, sua interpretação depende dos conceitos ou pré-conceitos do ouvinte que a assimila e interpreta de forma singular.

c) A performance dos produtores, técnicos e/ou pesquisa-dores durante a gravação – Indiscutivelmente, um fator de forte influência no produto final de uma gravação de áudio. Como é comum, entre produtores fonográficos, o desconhe-cimento de detalhes dos processos técnicos de gravação de áudio, a figura do técnico de gravação, por exemplo, exerce influência direta no resultado acústico obtido.

d) A idéia de que os conceitos de uma cultura só exis-tem, em plenitude, entre os indivíduos dessa cultura (insiders) - Como seriam tais gravações, pós-produções, etc. se realizadas por nativos produzindo suas próprias músicas, segundo seus próprios conceitos culturais e mu-sicais, principalmente? Sem dúvidas, seriam muito mais realistas para eles e, talvez, representassem melhor seus conceitos acerca daquilo que chamamos “música”!

e) o que é considerado essencial em música? – Para um indivíduo qualquer, certos parâmetros são considerados primordiais para se considerar esta sonoridade como “sua música”. Isso, evidentemente, se aplica para realização de uma gravação coerente. Sobretudo, frente à realidade e às considerações culturais daquele povo, ou seja, cada et-nia tem parâmetros que os julga necessários para que se possa considerar uma música como “sua própria”.

Intitulada “Processos Fonográficos e Música de Tradição Oral em Pernambuco”, a pesquisa trata a relação dos con-ceitos de produção fonográfica com a música de trans-missão oral gravada, apesar de considerar, também, a repercussão desta relação na sociedade.

Respostas para a questão central desta investigação, se mostram de especial importância, sobretudo, quando esta relação se configura como algo capaz de modificar a ima-gem desses estilos musicais para a sociedade. Infelizmente, esse fato, na grande maioria dos casos, acaba por consti-tuir uma visão equivocada dessas tradições, perpetuando padrões musicais comerciais em detrimento da manuten-ção de características importantes e singulares da música de tradição oral brasileira. Isso proporciona uma modifi-cação na estrutura musical e social do contexto inicial da manifestação, o que tem reflexo direto na estrutura da so-ciedade local e, indiretamente, em toda a sociedade.

Com todo o desenvolvimento tecnológico do século XXI vol-tado para etnografias e gravações em contexto específico, espera-se agora um avanço em sentido diverso do almejado até aqui. Avanço este que, não mais se voltando para ques-tões de áudio diretamente, tende a seguir para o desenvolvi-mento de conceitos sobre procedimentos de gravação mais pertinentes em relação aos anseios, tanto de uma etnografia responsável, quanto de grupos sociais que prezam pela ma-nutenção das características de sua música.

Neste sentido, vale lembrar que mesmo considerando a impossibilidade de manutenção das características bási-cas de um elemento musical após um processo de produ-ção fonográfica, sobretudo no que diz respeito às mudan-

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ças entre performances e gravações musicais, podemos considerar que um limiar mínimo de variação acústica na sonoridade do objeto é desprezível se considerarmos as capacidades auditivas humanas como ponto de refe-rência. Além disso, esta variação acústica seria desprezí-vel, principalmente, se quem produziu (tocou) a música, considera que a gravação é digna de representá-lo, ou seja, se, para o músico, aquela gravação pode, enfim, ser considerada “a” sua música gravada. Outra importante questão é que a tecnologia de gravação de áudio atual já é perfeitamente capaz de manter carac-terísticas musicais e acústicas da maioria dos elementos e/ou contextos sonoros inalteradas ou com alterações mínimas após um processo de gravação. Evidentemente, com base em processos de gravação pautados nos co-nhecimentos teóricos de acústica. Assim, as mudanças nos aspectos musicais e acústicos, como anteriormente mencionado, parecem ser decorrentes, principalmente, do emprego de conceitos equivocados de produção fo-nográfica na produção de músicas de transmissão oral, processos estes que geralmente apresentam interesses econômicos e/ou políticos como objetivo principal.

Sob esta ótica, então, a presente pesquisa terá papel fundamental no esclarecimento dessa influência e, con-sequentemente, em propiciar o desenvolvimento de al-ternativas conceituais para contornar o problema, já que, apesar da contribuição da tecnologia de áudio para a etnomusicologia, poucas pesquisas são voltadas para a forma como esta é utilizada e suas consequências para as manifestações de tradição oral.

Nesta pesquisa, os interesses se voltam exatamente para esta dimensão, por entender o conceito de produção fo-nográfica como um dos aspectos determinantes dos re-sultados acústicos de gravações musicais. Sobretudo, no caso da música transmitida de forma não textual.

Sem dúvida, a influência das tecnologias utilizadas na etnomusicologia ao longo do século XX foram determi-nantes para conseguirmos o nível de consciência antro-pológica e filosófica; a abrangência dos métodos e obje-tos tratados; uma ética profissional e, principalmente, o respeito às diferenças entre culturas de que agora des-frutamos. Resta-nos, porém, desenvolvermos um parâ-metro conceitual de utilização desta tecnologia de áudio em nossa área que seja mais adequado às características e necessidades inerentes à mesma. Este passo, certamen-te, abrirá um novo horizonte para tais pesquisas, tornan-do mais evidente não apenas a necessidade de maiores conhecimentos sobre acústica e engenharia de áudio na área, mas, principalmente, de utilização desses conheci-mentos de forma específica e direcionada para contextos etnomusicológicos segundo uma perspectiva de produ-ção fonográfica mais realista em relação às sonoridades peculiares de cada cultura.

4- Considerações Finais Apesar do grande desenvolvimento tecnológico alcan-çado desde o século XIX, os processos de produção fo-nográfica podem influenciar os resultados acústicos dos fonogramas de manifestações musicais de tradição oral, proporcionando diferenças entre a sonoridade do con-texto de performance e a sonoridade da mídia após o processo fonográfico. Tais diferenças, em geral, decorrem dos diversos fatores que compõem este processo. Estes fatores possibilitam influências, também, sobre alguns aspectos da própria manifestação musical.

Como os mecanismos da mídia têm profunda relação com algumas mudanças culturais e os processos fono-gráficos relacionam-se diretamente com estes mecanis-mos, por consequência, os processos fonográficos são in-timamente relacionados com algumas dessas mudanças, principalmente, no âmbito da música de tradição oral. Assim, conceitos impróprios para a produção desse tipo de música, parecem contribuir, também, para mudanças nas estruturas sociais destas manifestações musicais.

Neste sentido, a análise dos processos fonográficos não só representa tópico de considerável importância para a etnomusicologia, alertando para questões de mudan-ças na música decorrentes desses processos de grava-ção, como também denunciam uma lacuna na disciplina acerca de considerações sobre estruturas de poder (quem determina o resultado do fonograma) e pertinência (di-ferenças entre performance e mídia) relacionadas ao processo de produção musical. Ou seja, mediante influ-ência das variáveis do processo fonográfico, o resultado acústico de gravações de músicas de tradição oral pode sofrer alterações que, em alguns casos, contribuirão para a modificação de características estéticas da própria tra-dição musical, podendo apresentar, inclusive, reflexos em âmbitos da estrutura social dessa cultura.

Desde o final do século XIX a tecnologia de áudio tem contribuído para o desenvolvimento da etnomusicologia enquanto disciplina. O avanço tecnológico observado neste período foi imprescindível para o aprimoramento da área. Contudo, o emprego destas tecnologias e suas consequências para a música, raramente figuram como objetos de estudo em pesquisas.

Finalmente, vale lembrar que a necessidade de um apri-moramento conceitual e técnico na área da etnomusico-logia acerca da tecnologia de áudio é visível. Iniciativas de pesquisa neste âmbito, certamente, contribuirão para o desenvolvimento da disciplina. Assim, um importante aprimoramento para cursos de etnomusicologia no Brasil, seria a criação de disciplinas que pudessem contemplar, de forma mais apropriada, estudos de acústica, engenharia de áudio e tecnologia musical. Tópicos estes, igualmente importantes em graduações e pós-graduações para toda a área de música no país.

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André Vieira Sonoda possui graduação em Música Licenciatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE - 1999), Pós-Graduação em Etnomusicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE - 2003), Mestrado em Etnomusi-cologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB - 2008), trabalha como Analista em Tecnologia de Áudio no Estúdio de Gravação do Centro de Difusão e Realizações Musicais (CDRM – SESC - Pernambuco) e é Professor do Curso de Áudio Profissional – André Sonoda. Atua principalmente nas áreas de ensino e pesquisa de Tecnologia de Áudio, Acústica, Sistemas de Gravação de Áudio e Etnomusicologia, com especificidade em Música Erudita e de Tradição Oral Brasileiras. Em 2008, foi o primeiro colocado no concurso público para Professor de Tecnologia de Áudio do Conservatório Pernam-bucano de Música (CPM).

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Recebido em: 03/04/2009 - Aprovado em: 10/08/2009

Parâmetros para o estudo da sinestesia na música

Guilherme Francisco Furtado Bragança (Coral ALMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Estudo sobre a relação entre sinestesia como condição neurológica e a metáfora sinestésica. Propõe-se uma escuta sinestésica do 5º movimento Joie du sang des étoiles de Turangalîla de Olivier Messiaen, seguida de uma análise da relação entre os elementos apontados na escuta sinestésica e a estrutura da obra. A partir desta análise e da fenom-enologia, sugere-se a sistematização de categorias sinestésicas, tomando-se a sensação sonora como primária entre as sensações sinestésicas mais comuns. Palavras-chave: sinestesia, escuta, análise musical, composição, Messiaen.

Parameters for the study of synaesthesia in music

Abstract: This paper studies the relationship between synaesthesia as a neurological condition and synaesthesic meta-phor. It aims at investigating synaesthesia as a way of conscious listening and proposes a synaesthesic listening of the 5th movement Joie du sang des étoiles of Olivier Messiaen’s Turangalîla, including an analysis of the relationship between the elements found in the synaesthesic listening and the structure of the work. Relating analysis and phenomenology, it also suggests a systematization of synaesthesics categories, departing from the sound as the primary sensation among the most common sensations.Keywords: synaesthesia, listening, music analysis, composition, Messiaen.

1 – Conceito de sinestesiaNo presente artigo, pretendo discorrer sobre a importân-cia da sinestesia na escuta, análise e composição musi-cais, estabelecendo parâmetros gerais para o seu estudo na música. A palavra “sinestesia” deriva do grego antigo, pela justaposição da preposição syn (σύν), denotando união, com a palavra aisthēsis (αἴσθησις), que significa sen-sação (CUNHA, 2001). A sinestesia significa o cruzamento de sensações, ou seja, a capacidade da estimulação de um sentido despertar a sensação de outro. Ela é estudada por médicos e psicólogos como um transtorno da percepção, quando esta sensação secundária se dá de forma involun-tária e intensa, como uma sensação real. O neurologista RICHARD E. CYTOWIC (2002) menciona que o relato médi-co sobre sinestesia mais antigo de que se tem notícia data de 1710, e que o primeiro trabalho que chamou a atenção da comunidade científica para o assunto foi a publicação, por Sir Francis Galton, de um artigo na revista Nature, em 1880, com o título Visualized Numerals.

De acordo com CYTOWIC (2002), há poucas referências importantes sobre sinestesia durante a maior parte do século XX, principalmente porque havia poucos recursos tecnológicos, exames ou testes para comprovar experi-mentalmente a existência dessa habilidade perceptiva incomum. Os cientistas dependiam apenas da coleta de

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

relatos de pacientes, procedimento considerado pouco confiável para sustentar uma pesquisa empírica. Os de-poimentos costumam ser imprecisos, pois muitos entre-vistados se sentem inseguros em declarar que percebem algo que sabem não existir (o sinesteta tem plena cons-ciência da realidade) e muitas vezes acabam atribuindo sua percepção à mera imaginação. Outros fantasiam suas percepções, mascarando a distinção entre a condição neurológica e a metáfora sinestésica.

Nas duas últimas décadas do século XX, tecnologias de imageamento cerebral, principalmente a ressonância mag-nética e a tomografia por emissão de pósitrons, que regis-tram as variações do fluxo sangüíneo nas regiões do córtex em função de estímulos recebidos naquela área, amplia-ram de forma significativa as pesquisas e levaram a con-clusões bem mais precisas sobre a condição neurológica da sinestesia (BARON-COHEN e HARRISON, 1997, p. 5-6). Além disso, foram criados testes capazes de diagnosticar alguns tipos de sinestesia. Um teste eficaz para um tipo de sinestesia (grafema-cor) é mostrado no Ex.1, em que é apresentado um quadro com todos os numerais grafados em cinza, como o primeiro quadro abaixo (podem ser letras ou outros tipos de grafemas). O sinesteta grafema-cor, por enxergar cada caractere com uma cor diferente, identifica

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os numerais 2 com a mesma velocidade e acerto que uma pessoa de percepção normal e não dotada de capacidade sinestésica responderia ao ver um quadro com os numerais 2 destacados, como o segundo quadro abaixo.

Ex.1 – Lâmina de teste para diagnosticar de sinestesia grafema-cor.

Fonte: RAMACHANDRAN; HUBBARD (2003).

Há diversos tipos de sinestesias, sendo que alguns sines-tetas apresentam sinestesias múltiplas. O lingüista SEAN DAY (2007) enumera 54 tipos de sinestesias. O tipo mais freqüente é o grafema-cor, mas são muito comuns tam-bém sinestesias envolvendo sons e cores, sons musicais e cores, nomes de notas musicais e cores. São encon-tradas também, tendo o som como estímulo primário, as sinestesias som-movimento, som-odor, som-sabor, som-temperatura, som-tato, dentre outras. Estudos des-se pesquisador apontam a audição como o sentido que mais desperta sinestesias. Segundo DAY (2007), alguns músicos e pintores possuíam, provavelmente, a sinestesia como condição neurológica, tais como Olivier Messiaen, Ligeti, Sibelius, Duke Ellington e Charles Blanc-Gatti. Outros utilizavam idéias sinestésicas em seus trabalhos, embora, possivelmente, não possuíssem essa condição neurológica. Dentre estes podemos citar Scriabin, Miles Davis, Kandinsky, Paul Klee e Mondrian.

Para o objetivo deste artigo, abordamos a sinestesia no seu sentido estilístico, de alusões voluntárias a outras percepções ao se verbalizar determinada sensação. A si-nestesia como figura de linguagem é um recurso quase obrigatório ao se discorrer sobre a percepção musical, uma vez que as sensações sonoras escapam, freqüente-mente, a uma definição mais objetiva. Algumas pesquisas no campo da neurologia apontam para uma proximidade entre a sinestesia congênita e a metáfora sinestésica.

Os pesquisadores da Universidade da Califórnia, V.S. RA-MACHANDRAN e EDWARD M. HUBBARD (2003 p.53), afirmam que um processo semelhante à sinestesia pode ser responsável pela capacidade humana de criar metá-foras e pode explicar também a atividade criativa:

Uma característica compartilhada por muitas pessoas criativas é a habilidade em utilizar metáforas. É como se seus cérebros esti-vessem programados para fazer ligações entre domínios aparente-mente dissociados. Assim como a sinestesia tece ligações arbitrá-rias entre entidades sensoriais como cores e números, a metáfora envolve a conexão de campos conceituais aparentemente desvin-culados. Talvez isto não seja apenas coincidência.

Um experimento idealizado pelo psicólogo gestaltista Wolfgang Köhler demonstra a presença da sinestesia em todos nós, indicando ainda que estas percepções sines-tésicas possam ser compartilhadas, ou seja, a maioria de nós experimentaria alguns aspectos da sinestesia de forma semelhante. O experimento consiste em solicitar que associemos cada uma das figuras abaixo (Ex.2), aos nomes booba ou kiki.

Ex.2 – O experimento criado pelo psicólogo Wolfgang Köhler, que consiste em associar os nomes kiki ou

booba às figuras, demonstra a presença de traços de sinestesia em não-sinestetas.

Fonte: RAMACHANDRAN; HUBBARD, 2001.

Aproximadamente 95 a 98% das pessoas escolhe kiki para a forma angular e booba para a arredondada. Segundo RAMACHANDRAN e HUBBARD (2001, p.19) a razão para esta forte convergência de resultados está na tendência a associar o desenho pontiagudo da primeira figura a uma inflexão fonética mais aguda, como em kiki, além de uma tendência maior à contração da língua contra o palato, propensões conduzidas por uma espécie de sinestesia visual-sonora-motora. Esta sinestesia do sensório para o motor explicaria também a dança, que é a imitação do ritmo ouvido em movimentos.

2 – Sinestesia e significação musicalNa dissertação de mestrado (BRAGANÇA, 2008), reali-zada sob orientação do compositor OILIAM LANNA, es-tabelecemos relação entre a sinestesia e a significação musical. Para chegar a tal relação, procuramos entender como se realiza o processo de significação na música. JEAN-JACQUES NATTIEZ, em seu artigo Etnomusicologia e Significações Musicais, publicado na revista Per Musi número 10 (2004a, p.6), propõe três pontos que são basi-lares para o entendimento da significação musical:

(...) Aquilo que denominamos ”significações”, quaisquer que sejam as formas simbólicas (linguagem, música, mito, cinema, pintura, etc.) em que aparecem, explicam-se semiologicamente por três princípios: todo signo é a remissão de um objeto a uma outra coisa (Santo Agostinho); o signo remete a seu objeto pelo intermédio de uma cadeia infinita de interpretantes (Peirce); es-tes interpretantes se repartem entre as três instâncias que ca-racterizam todas as práticas e as obras humanas: o nível neutro, o poiético e o estésico (Molino).

As instâncias apresentadas por JEAN MOLINO (s.d.) são dimensões de existência de um mesmo objeto simbólico. A dimensão poiética do fenômeno musical refere-se ao processo de criação, às intenções e estratégias composi-

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cionais; o nível estésico se refere ao modo como o objeto simbólico (musical) é percebido; nível neutro é o fenô-meno simbólico como matéria, submetida a uma forma e pode ser comparado e categorizado no conjunto de ou-tros objetos semelhantes. NATTIEZ propõe, ainda, que na música existem dois tipos de remissões: intrínsecas e ex-trínsecas. As primeiras se referem às relações formais en-tre estruturas musicais e é onde NATTIEZ situa o “sentido1 musical”, termo que o autor identifica com a sintaxe mu-sical, um sistema de relações formais entre os constituin-tes de um evento musical, delineando sua estruturação. As remissões extrínsecas estão associadas à “semântica musical”, na qual NATTIEZ relaciona as vinculações que o compositor (ou o executante ou o ouvinte) faz entre a música e alguma sensação, emoção, imagem, ideologia ou qualquer outra referência. Mesmo que a semântica musical seja recriada a cada momento (pelo compositor, intérprete e ouvinte), “não existe peça ou obra mu-sical que não se ofereça à percepção sem um cortejo de remissões extrínsecas, de remissões ao mundo. Ignorá-las levaria a perder uma das dimensões semiológicas essen-ciais do fato musical total” (NATTIEZ, 2004a, p.7).

NATTIEZ apresenta duas posições quanto ao funciona-mento das remissões extrínsecas. A primeira – reputada a LEONARD MEYER (1992), que a denomina “expressionista absolutista” – defende que as significações expressivas nascem em resposta à música, veiculadas pelo próprio significante musical. MEYER percebe relação entre as es-truturas formais e algumas expectativas e respostas emo-cionais. A outra posição apresentada por Nattiez é de que as remissões extrínsecas existem em função de referên-cias externas à música, ou seja, as relações entre o even-to musical e as significações percebidas pelo ouvinte são construídas por convenções. NATTIEZ admite que as duas posições sejam possíveis: “existem significantes musicais que levam imediatamente a associações semânticas ex-trínsecas e existem aqueles que só o fazem em função de codificações convencionais”. Segundo NATTIEZ, o trabalho de Meyer consiste em descrever relações entre as estru-turas formais e as expectativas e realizações emocionais: “as significações musicais imanentes à matéria musical nascem da confirmação, da consolidação ou da decepção das expectativas do ouvinte” (NATTIEZ, 2004b, p.8).

LEONARD MEYER adota as leis da Gestalt descritas em seu livro Emotion and Meaning in Music (1992) como base para a compreensão das expectativas e aumen-to da carga emocional. Uma lei da Gestalt que MEYER considera importante para o entendimento das emoções na música é a da pregnância, que estabelece que a or-ganização perceptiva seja a melhor que as condições prevalentes permitirem, sendo considerada boa orga-nização a percepção que abarca condições de simpli-cidade, simetria, regularidade, entre outras. Outra lei da Gestalt importante no estudo de MEYER é a da boa continuidade, que é a tendência a uma forma ou padrão continuar no mesmo modo de operação se outras forças não atuarem. Tal princípio rege, por exemplo, as pro-

gressões. Rege também os padrões rítmicos e métricos. Mais uma lei importante para Meyer é a da completude ou fechamento, que faz com que busquemos completar uma forma ou padrão. Tal lei nos faz, por exemplo, sen-tir a necessidade de conclusão de uma cadência. Outro principio é o do retorno, a tendência a voltarmos a um ponto anterior. Esta lei rege desde primitivas melodias até a macroestrutura de uma peça complexa.

A presença das leis da Gestalt confere sensação de or-ganização à música, mas não indica a qualidade musi-cal, pelo contrário, são os adiamentos e desvios a essas leis que geram expectativas e interesse à música, pois a correspondência às leis da Gestalt produz uma músi-ca em que o nível de tensão e expectativa tende a zero. É central na teoria de MEYER a idéia de que as emo-ções são aumentadas quando a tendência de resposta é suspensa. Seu vínculo entre emoções e expectativas implica a necessidade de se conhecer o estilo, que o autor define da seguinte forma: “estilos musicais são sistemas mais ou menos complexos de relações sono-ras entendidas e usadas por um grupo de indivíduos.” (MEYER, 1992, p.45)2 Em outros termos, podemos dizer que o estilo é um conjunto de expectativas aprendidas. O estilo fornece as normas para que os eventos mu-sicais possam ser considerados esperados ou surpre-endentes. Para Meyer, se surge um evento inesperado, a expectativa aumenta, mas se nenhuma clarificação subseqüente da expectativa aparece, a mente rejeita todo o estímulo, que dá lugar à irritação.

Apresentamos outra abordagem, menos ligada ao co-nhecimento do estilo musical, para a compreensão das relações entre as estruturas formais e as remissões ex-trínsecas, já que podemos atribuir significações mesmo a músicas de sonoridades novas, sobre as quais não temos conhecimento prévio de seu estilo musical (BRAGANÇA, 2008). Assim, levantamos a hipótese de que existiriam dois níveis (ou dois passos) para a remissão extrínseca: o primeiro nível seria a transposição do estímulo sono-ro para outras sensações, fenômeno que é definido como sinestesia no seu sentido lato, o segundo nível das remis-sões extrínsecas estaria relacionado ao que normalmente reconhecemos como as remissões extrínsecas propria-mente: associações a sentimentos, imagens, referências, memórias, etc. A sinestesia seria um primeiro passo para a remissão extrínseca, sugerindo que as significações ex-ternas à estrutura musical passam, geralmente, por as-sociações entre a sensação sonora e outras sensações, como visuais (brilhos, cores, claro/escuro), movimentos (direcionais, circulares, estáticos, dinâmicos), densidades (denso, rarefeito), peso (leve, pesado) ou texturas (liso, áspero). Mesmo que tais associações nem sempre che-guem a se mostrar conscientes, elas influenciariam nossa percepção.3 Um forte indicativo dessa hipótese está na terminologia que geralmente utilizamos para descrever o sonoro, recheada de termos oriundos de outras sensa-ções, como os mencionados acima. Mesmo na descrição de estruturas musicais, ou seja, do nível imanente, recor-

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remos a termos como “texturas”, “densidades”, “verticali-dade”, etc., que são referências sinestésicas.

3 – A sinestesia e o formalismo musicalO que propomos é tornar conscientes as percepções si-nestésicas na audição, acompanhando sua condução em uma obra musical, identificar como esta sinestesia está presente como escrita musical e sugerir como idéias si-nestésicas podem auxiliar no processo composicional.4 Uma abordagem de análise e composição que parte das remissões extrínsecas, particularmente das sensações, buscando relações entre elas e a sintaxe musical, parece estranha para o músico educado no formalismo do século XX. No entanto, tal abordagem era comum no romantis-mo, como defende LIAN (2005, p.1-2):

Até meados do século XIX, além do plano expressivo, o conteú-do sentimental e evocativo da música constituía inquestionável ponto de partida para a criação sonora, destacando-se os compo-sitores que, de uma ou outra forma, mostravam-se bem sucedidos no estabelecimento de uma comunicação emocional e intelectual com os ouvintes, sugerindo-lhes estados de espírito, idéias e des-crições a partir do discurso musical, com ou sem a concorrência de um texto verbal subjacente.

Foi nesse contexto que EDWARD HANSLICK publicou, em 1854, o livro Do Belo Musical, que contém ainda o seguinte subtítulo: Uma contribuição para a Revisão da Estética Musical. O objetivo do autor é fazer uma refor-mulação das bases da estética musical, criticando a es-tética do sentimento em voga e construindo um concei-to de belo musical autônomo. Sua crítica se volta para

a sujeição da avaliação artística aos sentimentos susci-tados no ouvinte e propõe que a estética deve se voltar para o objeto de beleza (a obra) e não para o efeito, investigando os aspectos técnicos que qualificam uma música como bela. Para tal, a fruição da música deve se dar pela contemplação, um ouvir atento e com enten-dimento, acompanhando a movimentação das formas sonoras. O esteta deve retirar de seu campo de estudo tudo o que é transitório ou contingencial. HANSLICK foi o precursor de uma estética formalista, que atribui o valor da música às suas relações internas e define como seus conteúdos as interações entre os elementos cons-tituintes da sintaxe musical.

A estética inaugurada por HANSLICK tornou-se pratica-mente consenso durante boa parte do séc. XX, influen-ciando a Musicologia e mesmo a composição. NATTIEZ (2004b, p.9) afirma que:

Antes de 1968, eram poucos os compositores notáveis que não tinham aderido à concepção estética da música como “forma em movimento” (...) ou à concepção semiológica da música como ‘sistema autotélico’, isto é, que se remete a si próprio (...). Stravinsky afirmava: A música é, por sua essência, impotente para exprimir qualquer coisa. (...) A expressão não foi jamais propriedade imanente da música. (...) Varèse: Minha música não pode exprimir outra coisa senão ela mesma. (...) Boulez: A mú-sica é uma arte não significante.

A partir de HANSLICK, considera-se mais “correto e evoluído” concentrar a escuta musical nas estruturas e suas relações (em contraposição a uma escuta “primitiva” das sensações):

Ex.3 - Excerto de Sept Haïkaï – nº V, de Olivier Messiaen. Fonte: Messiaen (1966, p.58).

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Este regalar-se de sentimento é, no mais das vezes, coisas da-queles ouvintes que não são evoluídos o bastante para a com-preensão artística do belo musical. Ouvindo música, o leigo ‘sen-te’ o máximo; o artista culto, o mínimo. Ou seja, quanto mais significativo é o elemento estético junto ao ouvinte (exatamente como na obra de arte), mais indiferente se torna o efeito pura-mente elementar (como o autor denomina os sentimentos des-pertados) (HANSLICK, 1992, p.128).

HANSLICK propõe uma escuta principalmente tempo-ral – importa acompanhar as transformações estrutu-rais que geram a forma, atendo-se ao nível imanente da música, sem se “desviar” em remissões extrínsecas. No entanto, não nos restringimos a esta escuta, geralmen-te uma música nos gera impressões, desperta sensações não sonoras, remete a imagens, idéias, lembranças. Longe de ser um problema, é em tal audição que “saboreamos” realmente uma música. Essa forma de escuta se “impõe”, porque a sinestesia está constantemente presente, mes-mo quando não tomamos consciência dela.A escuta sinestésica consiste numa percepção que privi-legia o instantâneo: a percepção das transposições das sensações sonoras em outras sensações. Essa forma de percepção é subestimada por estar associada a uma es-cuta primitiva. Apesar de sua característica eminentemen-te pontual, podemos “temporalizar” a escuta sinestésica, tomando consciência das sinestesias que surgem a cada momento e acompanhando como as transformações si-nestésicas vão conduzindo a forma musical. Ao olharmos a música a partir da perspectiva sinestésica, percebemos que as elaborações estruturais só têm sentido e geram forma à música se têm a função de criar e transformar sinestesias. Sob este ponto de vista, uma elaboração estrutural será considerada ineficaz se não for capaz de conduzir trans-formações sinestésicas no ouvinte.

Como mencionei acima, é provável que OLIVIER MESSIA-EN possuísse a condição neurológica da sinestesia, sendo suas obras fortemente marcadas pelas sensações visuais que eram nele despertadas. MESSIAEN estabeleceu rela-ções entre sons e cores de forma bastante explícita em alguns textos que escreveu sobre suas obras: em Vingt Regards sur L’Enfant Jésus, para piano (1944), definiu co-res para cada umas das partes, como azul-violeta para a parte V ou laranja, roxo e azul para a XIII (NAVARRO, 2008). Também na partitura dos Sept Haïkaï (Ex.3) en-contramos, no nº V, indicações de cores:

4 – Escuta sinestésica de Turangalîla - Joie du sang des étoilesA Sinfonia Turangalîla, de OILIVIER MESSIAEN, é uma obra orquestral em grande escala, em dez movimentos, repleta de cores, matizes, texturas, densidades e sensa-ções de movimentos. Ela foi escrita entre os anos de 1946 e 1948, em virtude de uma encomenda feita por Serge Koussevitzky para a Orquestra Sinfônica de Boston. Para esta encomenda, não foram estabelecidos parâmetros de duração, orquestração ou estilo, dando total liberdade ao compositor. A estréia aconteceu em 2 de dezembro de 1949, em Boston, sob a regência de Leonard Bernstein.

MESSIAEN (2008) escreve em uma nota de programa:

Turangalîla é uma palavra em sânscrito. Como todos os vocábulos pertencentes às línguas orientais antigas, é muito rico de senti-dos. Lîla significa literalmente jogo: mas jogo no sentido da ação divina sobre o cosmos, o jogo da criação, o jogo da destruição, da reconstrução, o jogo da vida e da morte. Lîla é também o Amor. Turanga: é o tempo que corre, como o cavalo à galope, é o tempo que flui, como a areia da ampulheta. Turanga: é o movimento e o ritmo; Turangalîla quer, então, dizer ao mesmo tempo: canto de amor, hino a alegria, tempos, movimento, ritmo, vida e morte. A Sinfonia Turangalîla é um canto de amor, é um hino à alegria.5

O quinto movimento de Turangalîla tem o título Joie du sang des étoiles (Alegria do Sangue das Estrelas). Seu caráter enérgico e seus coloridos despertam no ouvinte as mais variadas sensações. Procurarei descrever uma escuta sinestésica deste movimento. Destacarei, em ne-grito, as principais sensações despertadas, para depois listá-las, acrescentando outras sensações. Tal listagem pode ser útil para uma futura sistematização de uma abordagem sinestésica de análise. Nesta descrição, em-prego termos tradicionais de análise, como frases, se-mifrases, períodos, melodias e temas para dar destaque ao aspecto fortemente discursivo deste movimento da sinfonia, muito semelhante a uma conversa onde vários personagens, representados principalmente por diferen-tes combinações tímbricas, concordam ou discordam, reforçando ou contrapondo sensações.

Logo nos 17 segundos iniciais,6 somos capturados pelo diálogo enérgico e brilhante dos naipes orquestrais, em que percebemos frases afirmativas interrogativas, exclamativas e conclusivas. Nestas frases, “conversam” os sopros e as cordas, junto com as ondes de martenot7 em pergunta e resposta, seguidas por um comentário de piano e sopros mais cordas, e, por último o piano numa escala ascendente e tutti numa escala descen-dente pontuam a “conversa”. Este trecho é bastante simétrico, direcional e conclusivo, sendo logo repe-tido com uma clareza clássica. A direcionalidade é reforçada principalmente pela relação dominante tô-nica das frases, mas também pela regularidade rítmica. Além do andamento vivo e da energia do ritmo, as constantes mudanças de timbre reforçam a sensação de movimentação. O calor e o brilho parecem estar muito presentes neste trecho. As frases musicais pare-cem soltar “faíscas”, pela presença do prato em cada uma delas. Este trecho, com sua repetição, expõe o primeiro tema e dura, ao todo, 34 segundos.

A seguir, inicia-se uma dança, em que os motivos se al-ternam rapidamente nos metais e nas cordas. A frase ter-mina como um desenho mais circular do piano, celesta, madeiras e cordas. Esta frase é logo repetida. A sensação de simetria continua neste trecho: os motivos angulares nos metais e cordas têm o mesmo número de tempos que o desenho circular do piano. Logo em seguida é a vez da alternância entre madeiras e metais, que funciona como uma “quase imitação”, na forma de pequenos arranques, também repetidos. Há uma pontuação de pandeiros, com o cintilar das pratinelas. Segue um motivo ondulante nas

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trompas. Este trecho contrasta-se com o primeiro, por não ser tonal, mais anguloso e menos direcional.Uma grande escala ascendente em crescendo faz emergir novamente o primeiro tema, após cerca de 50 segundos de música. Esta reexposição do tema acontece num “am-biente” mais agitado, porque o piano e a celesta fazem um movimento contínuo e rápido, num sobe e desce que fica ao fundo do tema. O segundo tema também é apresentado com modificações. Há um peso maior, pela presença do bombo pontuando a primeira frase. Alguns motivos em notas rápidas são substituídos por notas um pouco mais longas em crescendo, gerando uma ten-são que se represa e cresce. Há o tema ondulante nas trompas e a escala ascendente, fazendo ressurgir, com 1 minutos e 27 segundos de música, o início do primeiro tema, mas apenas para iniciar uma seção de finalização dessa seção. Aqui temos a primeira semi-frase do tema, repetida em progressão, a escala descente da orquestra junto com um movimento ascendente no piano, moti-vos angulares, motivos não tonais justapostos ao acorde de tônica, mesclando, assim elementos do primeiro e do segundo temas. O movimento contínuo do piano e das cordas no final dessa seção conduz toda a energia para a finalização num acorde de tônica, pontuado pelo tam-tam. Há também uma aceleração no pandeiro que acu-mula energia para o final.

Após um minuto e 50 segundos de música, há a maior articulação até o momento, iniciando a segunda grande parte do movimento. Esta seção contrasta muito com a primeira pelo caráter muito mais desordenado. O piano é tocado freneticamente, enquanto os instrumentos da orquestra fazem motivos que parecem ser tirados dos te-mas iniciais, mas soltos na massa sonora. A sensação é de discussão acirrada entre os instrumentos, surgindo, por algumas vezes, gemidos dos glissandi das ondes de mar-tenot. O piano, junto com as cordas graves, produz sons semelhantes a trovões.

Apesar de haver muitos sons agudos soando todo o tem-po (a celesta parece tocar quase continuamente nesta seção), não há o brilho alegre anterior, pelo contrário, a alternância muito próxima de agudos e graves gera ten-são e angústia. Aos 2 minutos e 26 segundos de música há um leve afrouxamento da densidade sonora e surge nas ondes de martenot e nas cordas, dois fragmentos do primeiro tema. Logo após, três fragmentos do primeiro tema aparecem mais fortes, principalmente nos metais. Voltam os graves, com a intervenção do bombo, e então aparece, aos 2 minutos e 47 segundos, um fragmento do segundo tema. Há uma aceleração e voltam a se instalar a tensão e o caos, com muitos elementos semelhantes aos momentos que antecedem o ressurgimento do pri-meiro tema. Novamente, há um relaxamento da densi-dade e um fragmento do primeiro tema surge nas ondes de maternot, aos 3 minutos e 30 segundos. Ele aparece outra vez nas ondes de maternot e mais duas vezes nos metais e madeiras. Outros elementos do primeiro e se-gundo temas aparecem, como o motivo ondulante das

trompas, que se estende para o restante da orquestra e acumula tensão para preparar a reexposição.

Aos 4 minutos e 14 segundos, o primeiro tema é reex-posto no mesmo “ambiente” mais agitado que aconteceu aquela exposição do quinqüagésimo segundo de música. Apenas o primeiro tema é apresentado. Em seguida, há uma parte muito semelhante à finalização da primei-ra parte da música, mas que se estende, surgindo dois grandes glissandi das ondes de maternot, que dialogam com os trombones, numa retenção do fluxo. Temos, en-tão, uma interrupção do tempo, para a realização de uma cadência de piano. Após um ruflar do bombo, toda a or-questra toca acordes finais, sendo o último mais longo, num crescendo que despeja, fulgurante, toda a energia da orquestra.

Dentre as palavras destacadas, a maioria conota sensa-ções sinestésicas (sensações não-sonoras despertadas pelo evento sonoro). Outras, como a palavra angústia, si-tuam-se no campo dos sentimentos, relacionando-se ao segundo nível de remissão extrínseca que apresentamos, provavelmente porque o primeiro nível de remissão, o das sensações físicas, permaneceu inconsciente. Neste artigo, vamos nos limitar às sensações sinestésicas.

5 – A sinestesia na análise e composiçãoA análise sinestésica consiste em procurar entender como as estruturas se relacionam com as sensações si-nestésicas e como as transformações estruturais modi-ficam as sinestesias e geram a forma musical.8 Não se pretende, na análise sinestésica, construir uma relação única de causa e efeito entre sensações e estruturas. Certamente há outras sinestesias possíveis para esta música e as descritas podem ser despertadas por even-tos sonoros diversos do que poderiam ser encontrados numa análise. Estamos aqui num campo de tendências e possibilidades, não de leis composicionais. Por outro lado, acreditamos ser possível mapear relações entre o nível neutro e o estésico, o que parece ser algo bastan-te óbvio, já que o oposto seria conceber que qualquer estrutura poderia despertar qualquer sensação e as es-colhas composicionais não teriam qualquer repercussão no resultado musical.

A análise a partir da sinestesia pode ser entendida como um ramo da abordagem fenomenológica da análise mu-sical. A fenomenologia retoma a questão da relação entre sujeito e objeto, fazendo frente à visão positivista, que considera reais somente os conhecimentos resultantes de fatos observados. Esta corrente de pensamento postula que a verdade é encontrada quando um sujeito observa com neutralidade o mundo externo, munido de rigoroso método científico. Apresenta-se, assim, uma dicotomia entre sujeito e objeto, na qual o mundo externo existe como uma verdade independente, à espera de um sujeito que, de fora desse mundo, decifre suas leis fundamentais. O positivismo manifesta-se no estudo musicológico quan-do se isola uma partitura da percepção musical e de todo

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o contexto, para estudá-la com uma minuciosa metodolo-gia de análise, descobrindo suas leis composicionais.

A palavra “fenômeno” deriva do grego phainómenon, sig-nificando “tudo que é percebido pelos sentidos ou pela consciência” (CUNHA, 2007, p. 353). A fenomenologia estuda o objeto não como algo independente, mas como um fenômeno, aquilo que se apresenta à consciência. Esta, por sua vez, não é um ente abstrato, mas consciên-cia de algo. Supera-se, assim, a dicotomia sujeito-objeto: o mundo da fenomenologia é o mundo experienciado por uma consciência que sempre visa algo, tem uma inten-cionalidade. Essa intencionalidade da consciência doa sentido ao mundo.

A palavra intencionalidade não significa outra coisa senão essa característica geral da consciência de ser consciência de alguma coisa, de implicar, na sua qualidade de cogito, o seu cogitatum em si mesmo (HUSSERL, apud COELHO JÚNIOR, 2002).

Para a fenomenologia não há por que estudar a músi-ca como um conjunto de elementos que se organizam numa sintaxe. A música existe como um fenômeno que se apresenta para um ouvinte e é a partir desta instân-cia que ela é investigada. Uma análise fenomenológi-ca não terá a finalidade de explicar a música ou dela derivar leis fundamentais, mas procurará descrever a vivência do fenômeno musical. Nas palavras de KOELL-REUTTER (1989, p.1):

A análise fenomenológica não visa uma explicação teórica da obra, mas sim, exclusivamente, uma interpretação da mesma, apontando um único objetivo: o de vivenciar as idéias musicais e de conscientizá-las de acordo com o entendimento terórico-musical e estilístico, conforme o grau de sensibilidade de quem a analisa.

A composição a partir da perspectiva sinestésica sus-tenta-se, como a análise sinestésica, na hipótese apre-sentada anteriormente de que as remissões extrínsecas são de dois níveis: o primeiro de remissões sinestésicas e o segundo de evocações externas ao fenômeno mu-sical. Estes níveis atuariam como dois “passos” da re-missão extrínseca. Dessa forma, uma música (sensação sonora) desperta outras sensações (visuais, cinéticas, táteis, etc.) que podem evocar uma imagem, um poema, uma vivência pessoal, etc.

No processo composicional pode acontecer o mesmo (em ordem inversa): um poema, um programa ou lem-branças despertariam sensações (de claro e escuro, direcionamento ou circularidade, por exemplo) que seriam transpostas para eventos musicais. O segun-do nível de remissões extrínsecas realiza-se não só na criação, mas refaz-se a cada interpretação e au-dição de forma idiossincrática, ou seja, compositor, intérprete e ouvinte fazem remissões extrínsecas de segundo nível a partir de suas histórias pessoais. Já o primeiro nível de remissões extrínsecas, de relações sinestésicas, é relativamente compartilhado, pelo

menos numa mesma época e cultura, cabendo até a criação de um sistema de classificação: seria possível relacionar objetos sonoros a sensações sinestésicas que estes despertam.

A primeira contribuição que podemos dar para a compo-sição a partir da perspectiva sinestésica seria a elabora-ção de um sistema de classificação que relacionaria pro-cedimentos e objetos sonoros a resultados sinestésicos possíveis de serem despertados. É claro que não preten-demos construir um sistema fechado, em que somente um determinado procedimento conduziria a apenas um tipo de sinestesia, mas categorias de possibilidades si-nestésicas. Categorias mais amplas e gerais seriam mais objetivas (mais consensuais, porém menos interessantes musicalmente), já categorias mais sutis e musicais te-riam maior grau de subjetividade. Por exemplo, podemos classificar eventos musicais em grandes categorias si-nestésicas como “brilhante” e “escuro” ou então “denso” e “rarefeito”. No entanto, existem muitas formas e gra-dações de “brilho” sonoro ou de “densidades”, existem inúmeras combinações sinestésicas (brilhos, densidades, texturas, movimentos) nas mais variadas gradações, podendo haver ainda variadas formas e velocidades de transformações de uma sinestesia em outra. A maes-tria composicional, do ponto de vista sinestésico, signi-fica o domínio dessas formas, gradações, combinações e transformações que tornam a música menos óbvia e muito mais rica.

A sistematização de categorias sinestésicas é uma ta-refa longa, não sendo possível desenvolvê-la no âm-bito de um artigo. Pretendemos aqui apenas lançar a proposição de tal sistematização. Um caminho para isso seria distinguir pólos de sensações secundárias (sinestésicas) despertadas pela sensação sonora. As-sim, na categoria de sinestesia visual teríamos proce-dimentos de matizes – do claro ao escuro. Podemos ter também categorias de cores. As relações entre cores e elementos musicais têm geralmente um grau mui-to alto de subjetividade, mas podemos perceber uma tendência geral de cores de faixa de freqüência mais baixa (próximas ao vermelho) serem despertas por ele-mentos musicais mais agitados, densos e “quentes”. Ao contrário, elementos musicais mais calmos, rarefeitos e “frios” tendem a associar-se a cores de freqüências mais altas (como o azul ou violeta).

Além de cores e matizes, são muito comuns na descrição de eventos musicais o emprego de referências a densida-de, pressão, movimento, calor e textura (como sensação de superfície e como trama). Em cada uma destas sensa-ções, podemos encontrar, pelo menos, dois pólos opos-tos, que são, geralmente, extremos de um contínuo de possibilidades. Podemos construir a tabela abaixo (Ex.4), incluindo algumas sensações descritas na escuta de Tu-rangalîla, além de outras:

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6 – Conclusão Algumas qualidades sinestésicas são intercambiáveis, ou seja, um mesmo trecho musical pode ser percebido como transparente, numa sinestesia visual, ou leve, numa refe-rência tátil de pressão, ou gélido, pela sinestesia tátil de calor. Os parâmetros sonoros contribuem de forma conjun-ta, porém, muitas vezes, com pesos diferentes, na produ-ção de uma sinestesia. Assim, uma sinestesia de movimen-to como a percepção de agitação em trecho musical tem uma forte contribuição do parâmetro rítmico, mas pode ser reforçado por determinado timbre ou registro. Uma

Sensação secundária Pólos opostosBrilho Claro Escuro

Brilhante (fulgurante) Apagado, sombrioTransparência Transparente OpacoCores Violeta VermelhoDensidade Rarefeito DensoEnergia Débil Enérgico

EspaçoFigura FundoAmplo Constrito

Pressão Leve Pesado

Movimento

Não-direcional DirecionalAcelerado RetardadoCrescer DecrescerCircular Angular LinearSubir DescerCalmo AgitadoLento Rápido

OrdenaçãoRegular Irregular (caótico)Simétrica Assimétrica

Temperatura Frio QuenteTextura – superfície Liso ÁsperoTextura – trama Unilinear Intrincada

Ex.4 - Sensações secundárias que comumente decorrem da audição musical e os pólos opostos de cada uma delas.

sensação de leveza pode ser construída pela combinação de parâmetros de intensidade, timbre, registro e rítmica.

A sinestesia tem uma aplicação direta na análise feno-menológica da música, ao criar as bases para uma me-todologia de análise musical a partir da percepção sines-tésica da música e da compreensão das construções que condicionam tais percepções. A abordagem sinestésica pode ainda auxiliar o estudante de composição a rela-cionar determinados resultados sonoros (sinestésicos) a determinados sistemas de construção musical.

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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

notas1 A palavra”sentido” tem muitos empregos e é por demais corriqueira para que seja reservada apenas a um significado

definido por determinado autor. Assim, tal palavra continuará sendo utilizada no texto em seus múltiplos significados comuns, aparecendo entre aspas na expressão “sentido musical” quando designar, como faz Nattiez, a sintaxe musi-cal.

2 Musical Styles are more or less complex systems of sound relationships understood and used in common by a group of individuals.

3 Em 1953, o psicólogo britânico E. C. CHERRY estudou um processo de audição seletiva que denominou “fenômeno da festa de coquetel”, que consiste na capacidade de focar em uma conversa no meio de várias outras, mesmo que a conversa focada não seja a de maior intensidade. Em 1958, o psicólogo DONALD BROADBENT desenvolveu estudos relacionados ao foco da atenção, criando a teoria do filtro de que temos uma capacidade limitada de apreender in-formações sensoriais, selecionando as que julgamos mais importantes. Teorias posteriores postularam que a audição seletiva não é um processo tudo-ou-nada, mas opera por múltiplos estágios onde algumas informações são filtradas, não chegando à consciência, embora possam alterar a percepção final. (GAZZANIGA; HEARTHERTON, 2005).

4 Na dissertação de mestrado, discorro sobre a relação entre a sinestesia e as três dimensões de existência do objeto simbólico, definidas por Molino: dimensões estésica, neutra e poiética.

5 Tradução do autor do texto original em francês: Turangalîla est un mot sanskrit. Comme tous les vocables apparte-nant aux langues orientales antiques, il est très riche de sens. Lîla signifie littéralement le jeu : mais le jeu dans le sens de l’action divine sur le cosmos, le jeu de la création, le jeu de la destruction, de la reconstruction, le jeu de la vie et de la mort. Lîla est aussi l’Amour. Turanga : c’est le temps qui court, comme le cheval au galop, c’est le temps qui coule, comme le sable du sablier. Turanga : c’est le mouvement et le rythme ; Turangalîla veut donc dire tout à la fois : chant d’amour, hymne à la joie, temps, mouvement, rythme, vie et mort. Turangalîla-Symphonie est un chant d’amour. Turangalîla-Symphonie est un hymne à la joie.

6 Como referência para a descrição realizada neste trabalho, utilizei duas gravações: 1) Messiaen - Turangalila - 05 - Joie du sang des étoiles – Jeanne Loriod e Seiji Ozawa, Boston SO, Tanglewood 1975. 2) Messiaen’s Turangalîla Symphonie, 5th Movt “Joy of the Blood of the Stars”. Pierre Laurent Aimard, Cynthia Millar, Andrew Davis, and the National Youth Orchestra of Great Britain at the 2001 Proms. (disponível no Youtube). A minutagem foi realizada a partir desta última referência. Nela, há 13 segundos antes do início da música, que foram descontados.

7 É um dos primeiros instrumentos musicais eletrônicos (o primeiro foi o Theremin), inventado em 1928 por Maurice Martenot, que produz sons por meio de um teclado que controla freqüências de um oscilador. As capacidades do instrumento sonoro foram posteriormente ampliadas por meio da adição de controles de timbres e alto-falantes co-mutáveis. Produz apenas um som de cada vez, de freqüência ondulante, sendo também, capaz de produzir glissandi.

8 No presente artigo restringimo-nos à descrição de uma escuta sinestésica, sem recorrer à partitura da obra. Para ver um exemplo de análise sinestésica, consulte o trabalho A sinestesia e a construção de significação musical (BRAGAN-ÇA, 2008) onde, além de relatar a escuta da música Baku Pari, de Guilherme Nascimento, dentro de uma perspectiva sinestésica, realizamos a análise daquela música a partir das sinestesias percebidas.

Guilherme Francisco Furtado Bragança graduou-se em Composição pela UFMG (1989), concluiu os cursos de Pós-Gradu-ação Lato-Sensu para o Magistério Superior pela FUMA (1990) e “Musicologia Histórica Brasileira”, pela UFMG (1994). Es-tudou regência coral com Carlos Alberto Pinto Coelho e Hans Joachin Koellreuter. Em 2008, concluiu o mestrado em Música pela UFMG. Lecionou, por dois anos, no curso superior de música da UEMG as matérias Acústica e Música Contemporânea e para o curso básico, Harmonia I e II. Atualmente, rege o Coral da Assembléia Legislativa de Minas Gerais.

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Recebido em: 22/02/2009 - Aprovado em: 10/09/2009

Antes de começarem as aulas: polêmicas e discussões na criação do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo

Ailton Pereira Morila (UNICEP, São Paulo, SP)[email protected]

Resumo: O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo foi fundado em 1906, fruto da iniciativa de vários músicos do Estado de São Paulo. O caminho para sua fundação foi de conflitos, lutas e opiniões divergentes, mas também de as-sociações e objetivos comuns. O objetivo deste artigo é ressaltar esta trajetória, procurando destacar sua intima ligação com as discussões acerca do papel da música e dos músicos na sociedade em transformação.Palavras-chave: Conservatório Dramático e Musical de São Paulo; música e sociedade; organização profissional, ensino musical.

Before lessons begin: controversies and quarrels around the creation of the Conservatório Dra-mático e Musical of São Paulo

Abstract: The Conservatório Dramático e Musical of São Paulo was established in 1906 as an initiative of some musi-cians of the State of São Paulo, Brazil. The way for its foundation was one of divergent opinions, fights and conflicts, but also of common associations and objectives. This article aims at to tracing its trajectory, focusing on the quarrels concerning the position of music and musicians in a society in transformation.Keywords: Conservatório Dramático e Musical of São Paulo; music and society; professional organization, music teaching.

1- IntroduçãoAtrás do Teatro Municipal, com entrada na Avenida São João existe um edifício que normalmente passa despercebido. Observando algum tempo, é possível no-tar um entra e sai de pessoas com seus instrumentos musicais protegidos por caixas das mais variadas for-mas e tamanhos. É o Conservatório Dramático e Musi-cal de São Paulo.

Se hoje ele é só mais um prédio no centro velho de São Paulo, só mais uma escola de música dentre tantas ou-tras que povoam e proliferam em uma metrópole que não para de crescer, outrora foi a escola onde Mário de An-drade e Francisco Mignone – só para citar dois importan-tes nomes – estudaram e lecionaram.

O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, inaugurado em 12 de março de 1906 com a presença do então Presidente do Estado Jorge Tibiriçá e outras autoridades, funcionou inicialmente na Rua Brigadeiro Tobias, onde morou a Marquesa de Santos, mudando-se para a Av. São João em 1909. Seu fundador oficial foi Pedro Augusto Gomes Cardim e no primeiro corpo docente encontramos nomes como:

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

Luigi Chiaffarelli, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Macha-do e Silva Junior, João Gomes de Araújo, Giulio Bastiani, Paulo Florence, Felix Otero, Dr. Luiz Pinheiro da Cunha, Dr. Wenceslau de Queiroz, Augusto César Barjona, Hyppolito da Silva. Todos, membros de destaque do ambiente artístico daquelle1 tempo. (ALMEIDA, 1931, p.57).

Os primeiros no departamento musical, enquanto que os quatro últimos no departamento artístico a quem se soma ainda o fundador, Pedro Augusto Gomes Cardim. Além destes nomes, ainda outros como Guido Rocchi, Paulo Tagliaferro, Adolpho de Araújo, Gomes Cardim, Henri Ruegger e G. Foschini fizeram parte da primeira congregação, enquanto outros como Zulmira de Andra-da Machado, Anna Freymann, Olympia Catta Preta, Olga Massucci, Felippe De Lorenzi, Gervazio de Araújo e José de Souza Lima foram contratados. (ALMEIDA, 1931, p.57).

Estes e outros nomes – que por motivos vários não par-ticiparam da fundação do conservatório – foram sujeitos das transformações sofridas por São Paulo e pelo Brasil nas últimas décadas do século XIX e na primeira do século XX. Transformações não só no aspecto visível, nas casas, ruas, avenidas, prédios, praças e transportes, mas tam-

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bém nos aspectos culturais e sociais. Coelho Neto (Apud ALMEIDA, 1931, p.74-75), ao assinar o livro de ouro do Conservatório, em 1913, sintetiza:

Entrando nesta casa sob flores tive a suave fortuna de ouvir os alumnos que nella estudam e delles tive a prova de que o sonho de meus irmãos em Arte começa a tornar-se realidade. Conheci São Paulo no tempo das construcções coloniaes e, á noite, por entre a nevoa da garôa, soavam docemente as serenatas romanti-cas. Retirei-me, como que foi commigo o som da ultima guitarra... Annos depois tornei. A cidade das taipas era a maravilha de hoje... Os palacios porem, pelo silencio que os cercava, na espessura do arvoredo, lembravam o da lenda da princesa adormecida... Agora resôam vozes, vibram melodiosos instrumentos, a musica desperta a cidade... É a nova cultura artistica que opera o desencantamento e, graças a este instituto, dentro em breve, o genio paulista, que soube fazer o ninho formoso, de marmore e de ouro, soltará delle, para gloria da Arte brasileira, o bando de rouxinóes que afinam as vozes nesta casa que, modestamente, sem rumor, está preparando um nucleo de artistas dignos da terra de Carlos Gomes.

São Paulo trabalha como as abelhas - mysteriosamente... e, como appareceu, do dia para a noite, grande no progresso ha de surgir improvisamente, grande na cultura: tem o que é necessario: talen-to, iniciativa e o amor de seus filhos.

Para Coelho Neto a São Paulo “das taipas” transformou-se em São Paulo dos Palácios da “noite para o dia”. Apesar de assim parecer para quem permaneceu longe de São Paulo por um tempo, a transformação perpetrada em São Paulo não se fez isenta de polêmicas e conflitos como mostra a historiografia. A organização musical que cul-minou na inauguração do Conservatório Dramático e mu-sical de São Paulo também não.

2 - Entre polêmicas e confraternizações: or-ganização e profissionalizaçãoNa “Capital Artística”, como costumavam chamar São Paulo, o viver de música encontrava-se longe de ser fácil e as rivalidades afloravam:

Assim, as relações dos músicos com o público paulistano, muitas vezes tensas, envolviam igualmente algum tipo de atrito entre os próprios músicos, implicado nas disputas por clientela e aceitação social. ‘Trabalhando para viver’, os músicos por vezes relaciona-vam-se de forma bem pouco fraterna. (GONÇALVES, 1995, p.1863)

Entretanto, ou até mesmo por isso, as polêmicas gesta-das no final do século XIX – e que permanecem, embora ressignificadas, no século XX – não podem ser vistas sim-plesmente como disputa por público ou alunos. Devem ser encaradas também como disputas em torno do papel da música nesta sociedade em transformação, e com ela o papel do músico. Há que se lembrar ainda o que VENTU-RA (1991, p.80) percebeu para as polêmicas entre Romero e seus contemporâneos:

Afinal, na ótica de Romero e de seus contemporâneos, cabia a polêmica contribuir para o processo de seleção e depuração das obras e escritores, lançados ao público na luta pela existência.

Inserida no contexto da ciência evolucionista, a polêmi-ca – típica do final do século XIX – inicia também um debate que não é apenas entre gerações, entre o novo e o velho, como antes, mas no interior da própria geração,

como observou VENTURA (1991, p.152), na tentativa “de se formarem distinções teóricas e políticas...”2

Portanto, as disputas em torno da música realizadas atra-vés das polêmicas – mormente publicadas nos periódicos – eram disputas em torno do papel da música na socie-dade, muito embora algumas delas encobrissem disputas por público, alunos e prestígio.

Deixemos a polêmica por enquanto. Entremos na casa de Antonio Carlos de Andrada e sua esposa, a “distinc-ta professora D. Zulmira”. Na noite de 15 de agosto de 1897 confraternizavam-se vários convidados, entre eles Chiaffarelli que acompanhou ao piano juntamente com Antonio Carlos, D. Zulmira cantando composições várias e entre elas algumas do cônjuge. A notícia foi escrita por C. d. M3., que também foi convidado.

Era comum, segundo Pelágio Lobo, Elias Alvares Lobo ou-vir na sua janela:

— Elias! Elias! ... é o Américo. [Américo de Campos]Pouco depois estavam os dois na sala.O que é que você tem de bom para tocar? Missa, não!Vamos ouvir uma toada antiga, uma valsa de Itú, uma cantiga qualquer, uma modinha da sua invenção. Começava a tocata e Américo descobrindo a um canto um violino, tomava-o, punha-se a encaixar suas arcadas nos compassos do piano, ornamentando-o de variações inesperadas. Entusiasmavam-se, riam, folgavam, despertavam a vizinhança com aquelas tiradas boemias. (Correio Paulistano, 1950 apud SERGL, 1991, p.102-103)

Em A Música para todos foi escrito um artigo humorís-tico sobre um banquete oferecido pelos músicos de São Paulo a concertistas portugueses, em 1897, revelando de forma bem humorada as características dos presentes. As referências, quer seja o modo de falar – Chiaffarelli e sua “original linguagem” – quer seja a profissão – Antonio Leal “esquecera” seu martelo de leiloeiro – mostram tra-ços pessoais que só a convivência é capaz de perceber. (A Música para todos, 1896 n. 32-33, p.267).

Estes episódios mostram a existência, para além das po-lêmicas, de um círculo de amizades, ou pelo menos de conhecidos e colegas reunidos em torno da música.

Se em muitos assuntos eles divergiam, em um ponto to-dos concordavam: havia chegado o momento de se orga-nizar. Vejamos esta passagem de outro artigo:

Uma tarde um compositor de ‘couplets’ entrou n’uma café con-certo onde estavam muito em voga as suas cançonetas e sentou se a uma mesa.O creado perguntou-lhe o que queria.— Nada, vim simplesmente assistir á interpretação das minhas canções.— Mas é necessario ‘consumir’, diz-lhe o creado.Interveio no caso o dono do café que convida egualmente o fre-gues a ‘consumir’ ou abandonar o local que tinha tomado.— Mas, senhor, eu sou o auctor das canções.— Deilal-o ser. Pois bem, tragam-me um copo d’agua com assucar, mas por meu turno, prohivo-os que cantem as cançonetas de que sou ou [sic] auctor e que estão annunciadas no programma.

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O dono do café não fez caso da prohibição e isso deu origem a que intentassem um processo cujo resultado foi elle condenado a cem francos de indemnização.Logo que se lhes offereceu ensejo reuniram-se diversos escripto-res, que acordaram nas bases para formnar uma associação.Eis porque é costume dizer-se que d’um copo d’agua com assucar nasceu a sociedade actual de auctores, editores e compositores de musica. (A Paulicéia, 1896, p.7)

Este episódio, colocado em tom de humor pelo periódi-co, expõe a situação dos músicos e indica que associação entre eles parecia ser uma solução viável para problemas de ordem autoral, entre outros. A profissionalização tra-ria certos direitos, enquanto as associações garantiriam e expandiriam esses direitos. Este humorismo coloca bem, não só a posição do músico na sociedade, como também serve como paradigma da profissionalização do período: existia uma preocupação em criar associações, agremia-ções, organizações que assegurassem direitos e criassem um sentido de profissionalismo partindo dos mais diver-sos setores da sociedade.

VENTURA (1991, p.102-103) procura evidenciar como as disputas políticas e sociais que cerceavam o debate dos literatos cede lugar a preocupação puramente classista. Reunidos em torno da Revista Brasileira, estes escritores4 fundaram a Academia Brasileira de Letras em 1897:

Com a estabilização política a partir de 1898, os escritores dei-xaram de lado a luta pela regeneração nacional, característica da ‘geração de 1870’. Sua missão se tornara literária no sentido estri-to, relacionada à afirmação profissional do critico e do escritor, o que se manifestou na criação da Academia em 1897. A iniciativa partiu do grupo que se refletia na Revista Brasileira, da qual Ve-ríssimo era diretor, para debater temas estéticos e literários, sem o envolvimento de questões políticas. Os acadêmicos buscavam o reconhecimento da criação literária e adotavam certa distância entre a sociedade e a sua própria esfera, mas não mais aceitavam a marginalidade ou o engajamento.

Da mesma maneira, Denice CATANI (1989) apresenta o quadro para os professores em São Paulo, que em torno da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo criada em 1901 e da Revista de Ensino, órgão da associação, criada em 1902, procuraram nortear suas práticas educacionais, servindo também como porta-voz dos interesses de classe.

Quanto aos músicos de São Paulo, uma das primeiras tentativas foi empreendida por Elias Alvares Lobo e seu cunhado, Tristão Mariano da Costa. Através de ofícios en-viados de Itu, onde residiam, convocaram os músicos da província para um congresso a realizar-se no dia 26 de setembro de 1875. (SERGL, 1991, p.86-87).

Segundo SERGL (1991, p.87) o “congresso coroou-se de pleno êxito”, sendo apresentados dois métodos de ensino e criada uma comissão que ficou encarregada de regis-trar os estatutos da nova sociedade. Participaram deste congresso além de Elias Alvares Lobo e Tristão Mariano da Costa, Antonio José de Almeida, Luis Mauricio, Gabriel Giraudon, Melchiades da Boa-Morte Trigueiros e Américo de Campos, entre outros. (GONÇALVES, 1995, p.189). Esta

sociedade, entretanto, não logrou, e a imprensa da época não conseguiu identificar o porquê. (SERGL, 1991, p.87).

Em 1883 aparece uma nota n’A Provincia de São Paulo:

Sociedade Artística BeneficentePergunta-se aos membros da directoria d’esta associação quando pretendem convocar Assembléia Geral para darem conta de seus atos: pois que, ha trez annos, mais ou menos, nada sabemos rela-tivamente á marcha da mesma sociedade.Alguns sócios inimigos das directorias em prorrogação.” (p.1)

Trata-se da mesma associação ou era outro caso de orga-nização frustrada?

Em 1889, uma tentativa de se criar um conservatório por iniciativa de alguns professores liderados por Antonio Carlos Junior, da qual participaram Antonio Carlos Junior, João Gomes de Araújo, Antonio Leal, Santini, Hollender, Gabriel Giraudon, Bastiani, Gustavo Wertheimer, Barrei-re, também fracassou. Esta tentativa frustrada gerou por parte da imprensa, uma crônica carregada de humor:

Antonio Carlos Junior, presidindo a reunião, nem bom a declara aberta e já é contestado por João Gomes; ato contínuo, se retira. João Gomes pede a palavra ao presidente sem que haja presiden-te; a palavra lhe é concedida mas as interrupções são constantes: em vários momentos exige-se que retire ou corrije afirmações que fez, e o Sr. Festa pede até mesmo licença ‘para cantar uma aria dramatica de sua composição’. No momento da ária, Antonio Car-los, que inexplicavelmente volta a estar presente, sussurra para Américo de Campos, em seu português acentuadamente lusitano: ‘O Amareico, o Festa não é de festa! Hom’esta? Isto não presta!’. E se retira ‘com uma revista franceza em baixo do braço e um sorri-so nos labios’. João Gomes continua como orador até que Santini peça para falar ‘due palavri’; seu português macarronico provoca protestos dos demais: ‘Falle portuguez, do contrario apanha!’ Ven-cido, Santini volta a sentar-se, choroso. O adiantado da hora faz com que Wertheimer informe, em português de acento germânico: ‘Eu va emborra porque eu va a Strasella!’; aproveitando a brecha, Hollender pede ‘parra lerr um artigue de critica musicale!’. Frente a essa verdadeira ameaça, ‘todos saem correndo’. Todos, com ex-ceção de Américo de Campos que, ao som das primeiras palavras do artigo de Hollender, desperta do sono que tirava nas galerias. (Apud GONÇALVES, 1995, p.190-191)

Mas o humor é apenas uma parte do discurso: o artigo culpa a inabilidade dos músicos pelo fracasso da tenta-tiva. Diferentemente do texto publicado pela A Música para todos que ressaltava as idiossincrasias dos presen-tes no intuito de mostrar como foi animado e concorrido o banquete (1896 n. 32-33, p.267), neste, descambando para o sarcasmo aponta características que impedem a realização de algo concreto. A falta de comunicação, a desorganização, as intrigas internas, a incapacidade de pensar noutra coisa a não ser música, e até mesmo a existência de várias nacionalidades são apontadas como fatores do fracasso.

Em 1897, um movimento que contava com Luigi Chia-ffarelli, Felix de Otero, Antonio Leal, Mello Abreu, Luiz Levy, Victor Rondelli, Leopoldo de Freitas, João Escobar, Almeida Junior, Ezequiel Ramos Junior, Augusto Barjona, Antonio Carlos, Rugger e Carlos de Campos tentava criar um club artístico. Até mesmo uma comissão para análise

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do projeto de estatuto foi criada. (A Música para todos, 1897, 288). Em agosto de 1898 o mesmo periódico se mostrou estupefato:

A sociedade que alguns musicos pretendiam fundar na Capital Artistica foi enterrada. Por quem e porque? (A Música para todos, 1898, p.412)

Exceção a estas tentativas frustradas é a própria exis-tência do periódico A Música para todos, que de 1896 a 1899, circulou na capital de São Paulo, trazendo a agen-da artística da cidade, discussões e assuntos referentes a música. Este mesmo periódico, através de seus colabora-dores, encampou as expectativas dos músicos na organi-zação profissional. Por ocasião da fundação da Academia Livre de Música do Rio de Janeiro, em 1897 publicou, em tom de lamento:

Aqui continuamos sem conservatório official, nem academia livre; ainda vivemos na espectativa de melhores tempos para se cogitar da educação artística do povo.Pobre ‘Capital artística’! (A Música para todos, 1897, p.181)

No mesmo tom, A Paulicéia publicara um ano antes:

Pensou-se, discutiu-se e cremos que até se projectou n’esta terra um theatro municipal. Um jornal, que não se publica já, pediu con-servatório, aulas de música e, por essa epocha d’aqui dissemos que theatro apenas era um bom começo mas que provavelmente nem isso não teremos tão cedo.Infelizmente o tempo veio demonstrar que prophetisamos. (A Paulicéia, 1896, p.7)

Os músicos teriam de aguardar, até 1906, a criação do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

Pedro Augusto Gomes Cardim, então vereador munici-pal, apresenta um projeto para a criação do Conservató-rio Dramático e Musical de São Paulo. Este projeto, que inicialmente propunha o custeio por parte da municipa-lidade, sofreu alterações, e ao município caberia apenas uma subvenção. Também foi frustrada a tentativa de fazê-lo funcionar, provisoriamente, no Teatro Munici-pal. Tentativas de loterias – proibidas na Constituição, mas abriu-se uma exceção – se mostraram infrutíferas. O porquê, entretanto não foi explicado. Após a primeira reunião, realizada no Club Internacional, foi nomeada uma comissão assim constituída: Presidente, A. de La-cerda Franco; Tesoureiro, Carlos de Campos; Diretor se-cretário, Pedro Augusto Gomes Cardim e para o primeiro caixa, companhias teatrais e líricas cederam a bilheteria de alguns dos seus espetáculos, bem como uma quer-messe foi realizada. A primeira reunião foi realizada em 1/02/1906 no antigo prédio da Marquesa de Santos, e foi inaugurado oficialmente em 12 de março de 1906. (ALMEIDA, 1931, p.53-56).

Os cursos inicialmente abertos foram: italiano, arit-mética, literatura, dicção no curso dramático, rudi-mentos de música, solfejo, harmonia, piano, canto coral, canto, harpa e instrumentos de sopro. Realiza-do, enfim, o antigo sonho dos músicos de São Paulo. (ALMEIDA, 1931, p.56).

Estas tentativas de organização – frustradas ou não – implicam em uma tentativa de redefinição do cam-po de atuação dos próprios envolvidos. BASTOS (1995, p.54) afirma que a música ocidental encontra nos con-certos – que a reinventa – e nos conservatórios – que a conserva – “os templos ideais de sacralização, cultivo e consensualização”.

VENTURA (1991, p.116) vem alertar, para o campo literá-rio, esta condição:

Para reconhecer a autoridade da crítica e do ensino da literatura, era preciso definir o seu campo de competência, de acordo com a identidade ‘natural’ de seus objetos. O estabelecimento de ativi-dades profissionais, relacionadas à literatura, depende da rede de inclusões e exclusões, por meio da qual se formam as matrizes institucionais que regulamentam as práticas de leitura e o cânone das obras integradas à história literária.

Como esta rede de inclusões e exclusões se manifesta no campo musical? Qual seria o cânone das obras musicais aceitas pelas “matrizes institucionais”?

Em São Paulo, no final do século XIX e início do XX, a posição social do músico em relação a seus pares é objeto de disputa que frequentemente extravasa do círculo de conhecidos para a imprensa.

O principal objeto de discussões gira em torno das apre-sentações musicais. Emilio do Lago, ainda em 1866, quando era regente da Orquestra do Teatro, recusou-se a tocar em bailes do Hotel das Quatro Estações, afirmando que “desde que veio para São Paulo ainda não tocou em bailes públicos”, posição esta referendada por José Jovita Correa do Lago: “não toco em bailes públicos e não faço parte do numero dos que se contractão para esse fim” (GONÇALVES, 1995, p.180).

Em lado oposto, Gabriel Giraudon não se importava em tocar em bailes, chegando mesmo a dirigir a orquestra do mal-afamado “Alcazar Lyrique”5 no Rio de Janeiro, antes de vir morar em São Paulo. (GONÇALVES, 1995, p.182).

Da mesma maneira Chiaffarelli se bateu n’A Música para todos com Felix Otero e Gustavo Wertheimer, estes últimos acusando o primeiro de realizar mara-tonas pianísticas com suas alunas, mais ao modo do espetáculo circense do que de concerto de arte musical (A Música para todos, 1897).

Entre a luta pela sobrevivência e a luta pela profissiona-lização, os músicos caminhavam do baile ao concerto, e também do popular ao erudito, como o fez paradoxal-mente o próprio Emilio do Lago ao compor músicas mais afeitas ao gosto popular.

De forma similar, Elias Alvares Lobo transitava entre óperas e canções populares, colocando-se ainda entre a República e a Igreja, compondo hinos republicanos e músicas sacras, em um momento em que a Igreja era sinal de monarquia.

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Apesar de o cânone ser composto por obras de caráter erudito, baseadas nas escolas européias6, alguns músicos transitavam entre este cânone e música popular, servindo como instrumentos de ligação entre a cultura popular e a cultura erudita (MORILA, 2004).

Se a disputa entre o que compor e aonde se apresentar não era consenso, outra questão era um pouco mais clara. Tomemos este artigo intitulado “Entendidos Musicais”:

Não há cidade que não apresente alguns especimens de en-tendidos em tudo, pseudo-sabios que em tudo mettem o be-delho, intrometendo-se em conversas, apresentando uma alta opinião, em ar dogmático, como quem pisa em terreno seguro, comquanto a socapa, de si para si, se considera uma nullidade na matéria em que discute.

O artigo continua citando um exemplo jocoso que teria acontecido no dia seguinte da representação da ópera Ri-goletto. Estando o “entendido musical” na casa Levy, tra-va diálogo com Alex. Vale a pena transcrever um trecho:

— Já viu você que tamanha porcaria? Aquelle Rigoletto que apre-sentaram hontem? Aquilo não é Rigoletto, não é nada, justamente os melhores pedaços da opera foram cortados! Você não acha?...— Como! Creio que não cortaram grande cousa...— Hom’essa...Espere, que já lhe digo qual é um delles... Diabo! Não me lembro bem...— ?— Ah, sim! Agora achei. Eu bem vi que os patifes cortaram o me-lhor pedaço! Aquelle...você conhece... Olhe, é aquelle...(cantando) ‘E che buccano sul caso strano e che commenti per la città!’... e che commenti per la città!...— Ora vá plant... Isso é do Baile de Mascaras!!!— Homem! Espere, então é outro, enganei-me!...Nisso passa um amigo do melro, aproveitando este a boa ocasião de seguil-o, assim como quem precisa falar de negocio urgente. (A Música para todos, 1897, p.206)

Quem poderia ser considerado um crítico musical? Quem poderia ser considerado um músico? No artigo “Músicos amadores”, Alfredo Camarate busca separar os músicos profissionais, artistas que aprenderam seu ofício de ma-neira formal, em escolas, conservatórios ou com reno-mados professores, e os músicos amadores que apren-deram na prática. Comparando o músico amador com os tuberculosos pulmonares (pois não há cidade populosa que não os tenha), explica em tom sarcástico sua origem:

Como nasce o musico amador?Homem, nasce como todos os outros: chorando e chuchando no dedo.Musico, desenvolve-se com a velocidade dos cogumelos. Pôe um dia o dedo n’um teclado de piano e fez-se musico amador; o que é muito differente de amador de musica.Inicia as suas lides artísticas com o lundu, o lundu clássico, que se chama lundu, como se poderia chamar outra cousa.

Depois de castigar as oito teclas, em que se desenvolve o lundu, o musico amador conhece que pode manejar dous accordes; dó, mi, sol, dó e sol, si, ré, fá. Animado com estes progressos, de que é que suppõem que o amador se lembra? (A Música para todos, 1899, p.554)

O autor continua ridicularizando e menosprezando este músico que aprende na prática. Outro elemento entra na história: um músico amador mais adiantado, que lhe en-

sina outros acordes, outros tons. A falta de nomenclatura erudita é também alvo de piada:

Continua a estudar, apenas com os elementos que possue, auxi-liando o furabolos com o pai de todos e o seu vizinho. No fim de três mezes já o nosso maestro faz passos oitavados, empregando o míminho e o matapiolhos.Um dia, n’um arroubo inspirado, deu taes reviravoltas com tres dedos, que dá com o mordente. Acha sublime e, como na estudou a artinha, baptisa este passo com o nome de saca-rolhas. Dálli em diante não há meio que não acabe pelo tal saca-rolhas. (A Música para todos, 1899, p.554)

Aqui, revela o nome dos dedos e dos movimentos pia-nísticos no jargão popular. Na seqüência do artigo, e em determinado momento o autor sentencia:

Se o leitor tiver a desgraça de se encontrar com um destes ama-dores, dê-lhe desapiedadamente com um cacete, que eu compro-metto-me a ir advogar-lhe a causa, comprometendo-me também a faze-lo sahir do tribunal em triumpho das bênçãos de todas as famílias de S. Paulo e arrabaldes! (A Música para todos, 1899, p.554)

É notável a forma como, neste artigo, ao mesmo tem-po em que promove a separação entre duas classes de músicos – os profissionais e os amadores, estes devendo ser metaforicamente espancados “com cacete”, ou seja, excluídos do universo musical paulistano – Alfredo Ca-marate deixa registrado todo o processo de aprendiza-do informal que o músico popular enfrenta, registrando inclusive nomes populares para movimentos musicais (Sacarrolhas, soluço), melodias e ritmos consagrados no popular (lundu, polca, modinhas, contradanças, trechos de óperas), e comparando-o a outros saberes populares como o curandeirismo.

É mesmo interessante esta analogia do músico popular com o curandeiro. Ao analisar a produção da razão médi-ca no século XIX, J. G. GONDRA (2000, p. 521-522) apon-ta um combate aberto pelos médicos em duas frentes: a interna, onde se combatiam a homeopatia, a helvética e a medicina oriental e; a externa, onde os alvos eram o curandeiro, a benzedeira, os bruxos, mágicos, indíge-nas, escravos e curiosos. Assim, ao mesmo tempo em que produziam uma razão médica e com ela garantiam o “monopólio sobre a arte de curar”, criavam – por assim dizer – os charlatães, i.e., todos que estivessem fora das práticas ditas científicas.

A ironia deste procedimento de criação do charlatanismo e deste artigo em especial, talvez o mais crítico em rela-ção à música e ao músico popular 7– é que ele é também o que melhor registra o aprendizado deste músico. Outros registros são por vezes simples demais:

No Natal todo mundo tocava violão, tocava flauta, as crianças gostavam de tocar flautinha de bambu, não sei como tocavam tudo bonitinho naquela flautinha. Quase todo mundo tocava vio-lão de ouvido, a criançada dançava, era bem divertido antigamen-te (BOSI, 1994, p.375) [grifos meus]

No número seguinte de A Música para todos (1899, p.562), Camarate dá continuidade a sua explanação,

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porém em texto muito mais comedido que o anterior. Talvez por ter sido criticado, ou talvez por ter percebido que esta casta de músicos é de um lado potencial públi-co dos músicos “educados”, e de outro lado, constitutivo de grande parte das agremiações musicais brasileiras, ele diminuí o tom de crítica e assume uma postura con-ciliatória, e às vezes, adulatória:

Não conheço paiz onde as senhoras cheguem a tão alto grao de aperfeiçoamento musical, como no Brazil. Alem do talento natural que possuem para a música, denotão uma educação musical, que não parece a que lhes pode ter fornecido um pais relativamente atrasado no estado theorico da música. Conheço dezenas de se-nhoras brasileiras que, não só tocão peças difficilimas com summa perfeição, como até leiem, muito discretamente, qualquer música à primeira vista.

As senhoras e as moças de família merecem aqui um tra-tamento diferenciado visto que elas constituem parte do público dos concertos, como também consumidoras das partituras editadas.

Mesmo procurando adular determinada parcela destes músicos amadores, Alfredo Camarate sintetiza uma pro-fissionalização crescente do músico no Brasil e em espe-cial em São Paulo, profissionalização esta que incluem uns e excluem outros, valoriza gêneros e estilos em de-trimento de outros, em um movimento semelhante ao descrito por VENTURA (1991) para o campo literário e CATANI (1989) para o campo educacional.

Se não se pode eliminá-los – como propôs no primeiro artigo – pode-se separá-los como propõe o final deste segundo artigo:

E, demais, eles já não devem estar macios, com esta critica e faço ponto no assunto; não porque receie que me desacompanhão, mas porque temo que me venhão dar uma serenata, em frente a janela! (A Música para todos, 1899, p.562)

Cantem, toquem e componham, mas longe do ouvido agu-çado do músico e do crítico profissional, que se comporta como o autêntico “botafogano” descrito por Lima Barreto8.

3- Considerações finaisEm 1906 estava delineado um caminho para a música e seu papel na cultura paulista. Os músicos e a música erudita tinham seu lugar privilegiado: o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. A música popular que anteriormente perpassava a cidade começava a se res-tringir somente à cultura popular.

Aquele músico que escrevia ao mesmo tempo música sa-cra, música popular e música erudita estava em vias de extinção. Elias Alvares Lobo morreu em 1901, e Tristão Mariano da Costa em 1908. O paradigma do músico ec-lético, da qual ambos eram casos exemplares, chegava a um termo. Inaugurava-se uma nova fase, a do músico especialista. É claro, alguns músicos da antiga tradição continuariam por algum tempo dentro do ecletismo, mas este não era mais o paradigma hegemônico.

No entanto, eles mesmos iniciaram esta especialização, esta racionalização musical. Lembremos que Elias Alvares Lobo e Tristão Mariano da Costa organizaram o primeiro congresso de músicos. Elias Alvares Lobo foi também o criador do primeiro método de ensino nacional aprovado para as escolas públicas republicanas paulistas.

Em um período de intensas transformações, os músicos se perguntaram qual o papel que seria destinado à mú-sica, e, por conseguinte qual o papel que eles desem-penhariam na sociedade. Mas se esta pergunta ecoava no círculo musical paulistano, as propostas não foram unânimes: o caminho foi de conflitos, lutas e opiniões divergentes. Cada qual procurava expor suas idéias da maneira que podia. Artigos na grande imprensa, artigos em publicações especializadas, conferências, concertos, todos os meios disponíveis eram utilizados.

O quase despercebido prédio da Av. São João, atrás do Teatro Municipal tem muita história para contar. Foi alvo de muitas polêmicas e discussões, mesmo antes de ser fundado. Bem antes das aulas começarem.

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tico e Musical de São Paulo. São Paulo: Typographia Fiume, 1931.BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994.BURKE, P. Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Companhia das letras, 1989.CATANI, D. B. Educadores à meia-luz (um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado

Público de São Paulo: 1902-1918). 1989. Tese (Doutorado em educação) - FEUSP, São Paulo, 1989.COSTA, A. M. da; SCHWARCZ, L. M. 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Cia das Letras, 2000.GONÇALVES, J. Música na cidade de São Paulo (1850-1900): o circuito da partitura. Dissertação (Mestrado em história) –

FFLCH-USP, São Paulo, 1995.GONDRA, J. G. Medicina, higiene e educação escolar. In: LOPES, E.M. T.; FARIA filho, L. M.; VEIGA, C. G. (org). 500 anos de

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(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.Relatório do Conservatório Dramatico e Musical de São Paulo. São Paulo: Typographia Fiume, 1930- 931.SERGL, M. J. Elias Alvares Lobo e a música em Itu. Dissertação (Mestrado em Artes) – ECA-USP, São Paulo, 1991.VENTURA, R. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

notas1 Optou-se por manter a grafia original de todas as citações.2 Apesar de Ventura colocar a polêmica como tentativa de se formar distinções teóricas, em um contexto da ciência

evolucionista, ele não se esquece de dizer, entretanto, que esta polêmica teria também a influência dos desafios populares, tão comuns em diversos gêneros da época.

3 Provavelmente Carlos de Mello.4 Entre eles: Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay, Carlos de Laet, José do patrocínio, Lúcio de Mendonça, Graça Ara-

nha, Rui Barbosa, Medeiros e Albuquerque, Oliveira Lima, Machado de Assis. (VENTURA, 1991, p.102 e 113).5 Famoso Café-concerto na cidade do Rio de Janeiro.6 As escolas italiana, francesa e alemã foram, respectivamente os modelos para a música erudita. É interessante notar

que a maior parte dos compositores do período compuseram, ou tentaram compor óperas, expressão máxima da escola italiana.

7 A exemplo do que descreveu Peter BURKE (1989, p. 92) para a cultura popular européia, quando afirma que a Inquisi-ção, no intuito de destruir a cultura popular, acabou eternizando-a nos autos inquisitoriais: “Outras atividades popu-lares estão documentadas simplesmente porque as autoridades da Igreja ou do Estado estavam tentando eliminá-las. A maior parte do que sabemos sobre as rebeliões, heresias e feitiçarias do período foi registrada porque os rebeldes, hereges e bruxas foram levados a julgamento e interrogados.”

8 Em debate com Oscar Lopes, Lima Barreto escreve: “tu que queres fugir à nossa grosseria, à nossa fealdade, à nossa pobreza agrícola, comercial e industrial, és um botafogo. Botafogano é o brasileiro exilado no Brasil; é o homem que anda, come, dorme, sonha em Paris.” (COSTA, 2000, p. 151)

Ailton Pereira Morila é Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre e Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atualmente, é docente do Centro Universitário Central Paulista (UNICEP). Atua na área de História, com ênfase em História da Cultura, Educação e Música.

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Recebido em: 20/11/2008 - Aprovado em: 13/10/2009

Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical numa perspectiva fenomenológica

Sérgio de Figueiredo Rocha (UFSJ, São João del Rey, MG)[email protected]

Resumo: Relato de experiência sobre a rotina de prática e atuação do quarteto de trombones Trombominas, no qual se propõe uma interlocução entre três eixos: performance musical, fenomenologia e a memória musical, enquanto função cognitiva. São descritos procedimentos sob o referencial fenomenológico, a partir das impressões subjetivas dos participantes do grupo, coletadas através de entrevistas. Busca-se explicar como a memória pode agir como uma chave na construção do sentido para os sujeitos da performance.Palavras-chave: performance musical, memória, fenomenologia, fenomenologia da música.

Memory: An affective key to the meaning of musical performance in a phenomenological perspective

Abstract: Descriptive study about the routines of practice and performance by the Brazilian trombone quartet called Trombominas, according to three axes: musical performance, phenomenology and musical memory as a cognitive func-tion. The group’s procedures are described within the perspective of the phenomenological referential, departing from interviews with the members of the group and their subjective impressions. It aims at explaining how memory can act as a key in the construction of musical meaning for the subjects of the performances.Keywords: musical performance, memory, phenomenology, musical phenomenology.

IntroduçãoO presente trabalho tem como perspectiva a experiência na performance musical. A experiência na música de câ-mara tem se mostrado enriquecedora e poderia contribuir para a elaboração de questões a serem aprofundadas no ambiente acadêmico. Por outro lado, a conexão das ex-periências na prática musical em grupo com outras áre-as pode tornar mais clara a compreensão desse processo. As funções psíquicas têm sido largamente pesquisadas e essas, juntamente com a fenomenologia, têm se articula-do de forma muito freqüente no campo da saúde mental. O presente artigo pretende se aprofundar no universo da performance musical se valendo de referenciais de outras áreas, o que pode vir a enriquecer a discussão.

Dentro da rotina do Grupo Trombominas há uma questão que potencialmente fornece material para uma investiga-ção científica. A memória tem sido um importante foco de discussões informais entre os integrantes do grupo, praticamente desde sua criação. Sendo, então, a memó-ria e sua relação no grupo um tema a ser desenvolvido, criou-se a demanda para uma articulação teórica que viesse a contribuir para um entendimento mais amplo acerca da performance musical.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

A estruturação do artigo se deu através da conexão entre a prática musical, o entendimento da memória enquanto função cognitiva e o relato das experiências vividas pelos componentes do Grupo Trombominas (referencial feno-menológico). Foram, então, organizadas duas seções no artigo, sendo uma sobre a memória e sua relação com a performance musical, e a outra sobre a fenomenologia e sua aplicação na vivência musical.

Na abordagem da memória e na descrição de suas ca-racterísticas inerentes, tomei como fontes principais os trabalhos do Professor Daniel Schacter, chefe do Depar-tamento de Psicologia da Faculdade de Artes e Ciências da Universidade de Harvard (E.U.A.). Fazendo a conexão entre a memória e a performance musical, me baseei nos trabalhos do Professor John Sloboda, atualmente atuan-do na Universidade de Keele (U.K.), o qual desenvolve pes-quisas na área da psicologia cognitiva aplicada à música há pelo menos três décadas.

O campo das ciências humanas que lida com o estudo dos fenômenos em si é a fenomenologia. Foi o filósofo ale-mão Edmund Husserl quem formulou as bases teóricas da

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fenomenologia no início do século XX. Thomas CLIFTON (1983), fez a “transposição” da fenomenologia aplicando-a à música ao produzir o livro Music as heard: a study in applied phenomenology.

Seguindo-se à exposição teórica de cada um dos temas, quais sejam: 1) Memória e memorização; 2) Memória e performance musical e 3) fenomenologia e fenomenolo-gia da música, haverá um tópico – A experiência feno-menológica num grupo de trombones -, onde serão le-vantadas questões relativas aos referenciais teóricos que tragam à tona discussões aplicadas à performance.

2. Memória2.1- Memória e MemorizaçãoÉ oportuna a divisão nesse subtítulo uma vez que a me-mória será abordada enquanto uma função cognitiva, um processo fisiológico do funcionamento mental; por outro lado, a memorização nos remete à idéia de intenção de se valer da memória com algum fim.

Definições acerca desses termos são encontradas nos mais diferentes campos. FERREIRA (1999, p.1315), entre outras conotações, propõe a seguinte para a memória: “faculdade de reter idéias, impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente”. Esse autor ao se referir à me-morização, aponta: “reter na memória, aprender de cor”. O termo aprender é aqui grifado por ir ao encontro da idéia de intenção, empregada no parágrafo anterior. Entre outros sentidos, memorização é definida por como “reter na memória, mediante o estudo, a observação ou a expe-riência”. Há também definições mais poéticas como a de SARAMAGO (1991, p.168), quando se refere ao tempo: “(...) o tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar”.

No campo das neurociências, há também concepções acerca da memória, como que a subdividindo em várias categorias. Segundo CARTER (2002, p.316), “cada tipo diferente de memória é armazenado e recuperado em um caminho diferente, e dúzias de áreas cerebrais es-tão envolvidas numa complexa rede de interações”. O processo se inicia a partir de um estímulo que “dispa-ra” uma reação química na unidade básica do sistema nervoso, que é o neurônio. Quanto maior o estímulo, maior o número de neurônios afetados. Hebb, citado por SCHACTER (2003), postulou uma teoria segundo a qual as memórias têm relação com a intensidade e freqüên-cia das conexões sinápticas. As memórias são padrões específicos de estímulos que podem ser codificados e permanecem “arquivados” mesmo após a cessação do estímulo. Há regiões que “gerenciam” por assim dizer os diferentes tipos de memória.

A memória procedimental caracteriza-se por evocar o “como fazer”, como, por exemplo, “andar de bicicleta”. Essa memória diz respeito a hábitos cotidianos. Os dados liga-

dos a esse tipo de memória são processados em estruturas denominadas Cerebelo, Putâmen e Núcleo Caudado.

A memória semântica é como um arquivo de coisas que sabemos independentemente de relações pessoais que estabeleçamos com elas. Quando tomamos contato com um objeto qualquer, como um telefone, por exemplo, o estímulo é pessoal, mas com o tempo as relações asso-ciativas com esse objeto vão se perdendo a ponto de nos relacionarmos apenas com o vocábulo telefone. Memó-rias semânticas registradas no Córtex são codificadas no Lobo Temporal e recuperadas no Lobo Frontal. Por outro lado, a memória episódica nos remete a acontecimentos pessoais vivenciados e relevantes. É como se guardás-semos o número do telefone de uma pessoa com quem mantemos contato freqüentemente. Memórias episódicas são processadas em estruturas denominadas Hipocampo e armazenadas no Córtex.

No caso das memórias de longo e curto prazo, há um processo de “sedimentação” de informações. Quando o estímulo é recente, ele é codificado no Córtex e, na medi-da em que é “regerado” tal padrão, outras estruturas vão se envolvendo nesse processo, como o Hipocampo. Essa estrutura se liga a inúmeras estruturas corticais, fazendo com que seja criada uma representação global dos even-tos. Tamanha associação de idéias (em última análise) é estímulo suficiente para a manutenção das lembranças do evento. Um caso particular da memória de longo pra-zo é a memória do medo, chamada de flashback e fobia, relacionada a fatos desagradáveis e negativamente mar-cantes. Nesse caso, as memórias são armazenadas numa estrutura cerebral denominada amígdala.

Segundo CARTER (1999), há fatores que podem contribuir para que determinado pensamento ou percepção seja armazenado na memória. Quanto maior o esforço para definirmos as características de algum objeto, seja ele vi-sual, auditivo ou uma descrição a respeito deles, maior será a associação entre os neurônios ligados a eles. Isso significa dizer que, após ocorrer esse empenho de especi-ficação, um esforço mínimo para lembrar desses “objetos” já será suficiente para detectá-lo instantaneamente. Por outro lado, Morton, citado por CARTER (1999), assina-la fatores que podem inibir a lembrança, entre os quais destaco a falta de “dicas” relevantes, que seriam como pistas associativas. SCHACTER (2003) ressalta que dividir a atenção influencia o processo de armazenamento na memória. Contudo, esse processo tem pouco efeito sobre a impressão subjetiva de conhecimento prévio de algo, ou seja, sobre a “familiaridade”.

O processo de registro na memória não é algo fiel como uma fotografia. Segundo SCHACTER (2003, p.21), “ex-traímos elementos fundamentais de nossas experiên-cias e os arquivamos; então recriamos ou reconstruímos nossas experiências em vez de resgatar cópias exatas delas”. No processo de reconstrução há como uma dis-torção, impregnada de emoções, sentimentos, crenças,

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conhecimentos e associações, obtidas muitas vezes, se-gundo o autor, até mesmo de conhecimentos “obtidos após a experiência”.

Há características da memória que contribuem para esse processo “fluido” e “re-criativo”. SCHACTER (2003) deli-mitou tais características, a saber: transitoriedade, dis-tração, bloqueio, atribuição errada, sugestionabilidade, distorção e persistência.

Por transitoriedade entende-se o fato de o passado inexo-ravelmente se perder na medida em que se vivenciam no-vas experiências. Ebbighaus, citado por SCHACTER (2003), já havia pesquisado tal característica da memória nos fins do século XIX, ao formular uma curva gráfica do esque-cimento. Tal medição apontava que cerca de 60% das informações recém adquiridas são perdidas nas primeiras horas. O índice de perda é gradativamente menor com o passar do tempo. Thompson, citado por SCHACTER (2003) encontrou achados semelhantes em estudo realizado em 1990 na Universidade do Kansas. Pontos iniciais da curva coincidem com descrições ricas e pormenorizadas dos fa-tos. Na medida em que se distanciam do início da curva, as memórias tendem a ficar cada vez mais gerais, formando mais uma impressão genérica do que uma enunciação pre-cisa. Tal processo pode se constituir numa vantagem, como ressaltam Bjork e Bjork, citados por SCHACTER (2003): informações que deixam de ser importantes e tornam-se desnecessárias são como que “progressivamente deleta-das”, sendo cada vez menos acessíveis com o tempo.

A distração, outra característica da memória, é, segundo SCHACTER (2003), o esquecimento da informação que nunca foi codificada de forma adequada (se é que o foi) ou está guardada na memória, mas indisponível quando tentamos resgatá-la. A falta de atenção no momento de codificar uma informação tem sido postulada como prin-cipal causa de distração. Essa falta de atenção pode se atribuir, por exemplo, às “pré-ocupações” que desviam o foco de prioridades de informações gerenciadas no lobo frontal. Assim é que SCHACTER (2003, p.75) aponta: “Quando estamos concentrados em outros assuntos que exigem atenção, as associações freqüentemente não con-seguem nos fazer lembrar o que precisamos”.

O bloqueio se constitui naquela situação em que a pala-vra ou nome, os quais sabemos conhecer, não nos vêm à mente. É, portanto, uma característica distinta da transi-toriedade, já que a informação não foi apagada, ela está apenas “escondida”; tampouco se relaciona à distração uma vez que no bloqueio a palavra ou nome foi codifica-do e armazenado na mente, e, por vezes, até existem “pis-tas” ou associações que normalmente seriam suficientes para a lembrança. Segundo Burke e Mackay, citados por SCHACTER (2003), há uma grande diferença entre nomes próprios e substantivos. Os primeiros têm um leque asso-ciativo mais específico enquanto os substantivos podem ser substituídos com palavras de mesmo valor conotativo.Brown e Mcneill, citados por SCHACTER (2003) foram os

primeiros psicólogos a estudar a situação em que a pes-soa reconhece que sabe a palavra, porém, naquele mo-mento não consegue lembrá-la, o que foi denominado de “situação de ponta de língua” (SPL) em 1966. Os autores demonstraram que, apesar de tal situação ocorrer mais freqüentemente com nomes próprios, acontecem tam-bém ao tentarmos evocar nomes de lugares, por exemplo, e substantivos comuns. Estudos mais recentes demons-tram que o que contribui mais fortemente para as SPLs é o fato de as palavras serem usadas menos freqüentemen-te. Além disso, os nomes próprios são particularmente susceptíveis ao bloqueio e SPLs porque são isoladas do conhecimento conceitual, ou seja, têm menos associa-ções funcionais acerca do significado da palavra.

Experimentos revelam que o ato de resgatar informações da memória também inibe a recordação posterior de in-formações relacionadas (SCHACTER, 2003). Por exem-plo, para que nos lembremos de uma associação como vermelho/sangue, é necessário suprimir a lembrança de outras “coisas vermelhas”, evitando assim uma sobrecar-ga com informações irrelevantes, as quais poderiam vir a comprometer o processo de “busca” da palavra desejada. Segundo Anderson, citado por SCHACTER (2003, p.106), ao recordarmos uma situação específica e não falarmos sobre outros fatos ocorridos durante essa mesma situa-ção, esses poderão ser suprimidos da memória; é o que é denominado de “inibição de informações não recordadas”.

Outra característica significativa da memória é a atribui-ção errada. Ela foi discutida pela primeira vez em fins do século XIX. A atribuição errada foi definida como um tipo de “julgamento equivocado”, atribuindo-se erroneamente sensações e experiências do presente ao passado. O termo empregado em 1896 pelo psiquiatra francês ARNAUD foi o “déjà vu” (SCHACTER, 2003). WHITTLESEA (1993) sugere que o “déjà vu” pode ocorrer em função de características do presente que evocam respostas atribuídas erradamen-te a uma experiência passada. Estudos demonstram que a falta de detalhes em lembranças pode funcionar como lacunas que por vezes são preenchidas com “atribuições erradas na fonte”. “As pessoas podem lembrar, por exem-plo, que viram um rosto que já apareceu antes, mas não se lembram da hora ou lugar em que viram esse rosto” (SCHACTER, 2003, p.119).

Segundo SCHACTER (2003), vários estudos demonstram que a simples imaginação de um fato pode ser, num outro momento, evocado como um fato que realmente aconte-ceu. Quando há uma atribuição errada com uma sugestão clara, ocorre o que é chamado de sugestionabilidade, ou-tra característica da memória.

Segundo SCHACTER (2003, p.143), a sugestionabilidade da memória pode ser descrita como uma tendência do indivíduo a incorporar informações enganosas de fontes externas – “outras pessoas, material escrito, imagens, até mesmo meios de comunicação” – a recordações pesso-ais. Há outros fatores que podem se somar aos descritos,

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como tensão emocional, pressões sociais e a sugestão, os quais podem até fazer com que alguém admita que cometeu um crime sem que isso tenha, realmente, ocor-rido (Munsterberg, citado por SCHACTER, 2003). Hyman, citado por SCHACTER (2003, p.156) observou que ocorre um número menor de falsas memórias quando as pessoas podem “sentar-se em silêncio e pensar se o evento havia, de fato, ocorrido”.

Ross, citado por SCHACTER (2003, p.173), observou uma característica da memória chamada distorção. Segundo o autor, muitas vezes as pessoas não têm lembranças claras e exatas sobre o que achavam ou sentiam no passado. Em vez disso, aponta, “suas conclusões sobre seus jul-gamentos e atividades passadas são feitas com base no presente”. Há dois tipos de distorção: a distorção de com-preensão tardia, que se caracteriza pela tendência a ver um resultado de um acontecimento como inevitável em retrospectiva (“eu já sabia”); e a distorção de coerência, onde se reconstrói o passado para torná-lo coerente com o que sabemos no presente.

Com relação à distorção de compreensão tardia, as pes-soas podem, por exemplo, lembrar mais facilmente inci-dentes e situações que confirmam um episódio já ocor-rido. Por outro lado, segundo Carli, citado por SCHACTER (2003, p.183), “quanto maior são as memórias falsas, maior é a distorção de compreensão tardia”. Temos a ten-dência em confirmar o que nos “diz” a nossa memória, ainda que seja uma grande distorção, a acreditarmos na versão de outrem. Outro problema advindo da distorção é o que Allport, citado por SCHACTER (2003, p.190) aponta como categorização feita pelo estereótipo. Pesquisas re-centes demonstram que as distorções estereotipadas po-dem ocorrer automaticamente, “sem que estejamos cons-cientes disso”. Além disso, os estereótipos distorcem não somente a maneira como pensamos e nos comportamos, mas também como nos lembramos. Gazzaniga, citado por SCHACTER (2003) propôs uma teoria neurofisiológica so-bre o controle da memória. Segundo esse autor, há no hemisfério esquerdo do cérebro uma espécie de “intér-prete” que utiliza o conhecimento geral na tentativa de organizar coerentemente nossa percepção psíquica do mundo. Ocorre que o hemisfério esquerdo, ao tentar essa organização, se vale de generalizações, deduções e racio-nalizações que acabam por cometer distorções de coe-rência e de compreensão tardia. A vantagem é que, para contrabalançar esse desequilíbrio, o hemisfério direito atua regulando nossas percepções do mundo exterior, fazendo-as realistas, como um mediador crítico.

Outra importante característica da memória é a persis-tência. Essa tem uma estreita ligação com vivências que envolvem emoção. A emoção atua como que polarizando a atenção para determinado foco. Tal “foco” permane-ce claramente distingüível na memória. Por outro lado, informações periféricas, ainda que importantes, são per-didas em função do efeito do desvio da atenção. OCHS-NER (2000) aponta que temos a tendência em lembrar

experiências negativas mais do que positivas, e, com isso, também corremos o risco de recordar, com persistência, detalhes dolorosos de experiências que na verdade querí-amos esquecer. O problema é que sabendo que queremos esquecer, acabamos nos lembrando, e o que é pior, lem-bramo-nos mais intensamente (WEGNER, 1994). Segundo Pennebaker, citado por SCHACTER (2003, p.217), “a curto prazo, a persistência é praticamente uma conseqüência inevitável de experiências difíceis”. Por outro lado, apon-ta, a longo prazo a forma de se abordar a persistência en-volve “enfrentar, revelar e integrar essas experiências”. Há uma estrutura ligada às experiências difíceis: a amígdala.

Finalmente, parece haver uma integração entre as carac-terísticas da memória de forma a permitir uma melhor adaptação àquilo que nos cerca. Assim aponta SCHACTER (2003, p.250):

A memória recorre ao passado para informar o presente, preserva elementos de experiências atuais para futura referência e permite que voltemos ao passado quando desejamos. Os vícios da memória são também virtudes, elementos de uma ponte através do tempo, que permite que façamos uma ligação da mente com o mundo.

2.2- Memória e Performance MusicalA relação entre o nível de performance e compreensão de obras musicais parece estar bem documentada. Segundo FRANÇA (2001, p.03):

(...) só podemos avaliar mais efetivamente a extensão da com-preensão musical do indivíduo quando ele toca aquilo que pode realizar confortavelmente. Desta forma o problema da técnica é de alguma forma neutralizado para que a pessoa possa ter oportuni-dades de revelar o limite de sua compreensão musical.

Em outro estudo realizado por FRANÇA e MARGUTTI (2002), onde se objetivou identificar eventuais padrões de desenvolvimento da compreensão musical, a memó-ria/memorização foi correlacionada a níveis mais altos de performance. Desse modo, a memória tem sido muito fre-qüentemente empregada no campo da performance mu-sical. Em entrevista publicada na Revista Per Musi (CA-VAZOTTI e GANDELMAN, 2002), Janet Schmalfeldt, ao ser perguntada sobre sua abordagem inicial numa peça, diz: “Busco memorizar uma nova peça, frase a frase, desde o princípio; o que requer um pensamento analítico (...)”. Segundo CASTRO (1997, f.150), “em seu relacionamento estabelecido com a música, a memória se mostra funda-mental no processo de constituição do sentido musical”; e argumenta: “(...) cabe à memória proceder a interliga-ção daquilo que de seu próprio material (música) é expos-to, de modo que o sentido seja estabelecido”.

O processo de como se dá essa interligação música/me-mória é objeto de pesquisas há várias décadas. A primeira descrição sistematizada acerca da correlação da memória enquanto função cognitiva na música foi o relato feito pelo pai de Mozart (Leopold Mozart) em 1770 (Anderson, 1966 citado por SLOBODA, 1985). Nessa passagem, o jo-vem Mozart, então com cinco anos de idade, proibido de ter acesso às partituras do Miserere de Gregorio Allegri

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(1582-1652), escutou por duas vezes tal música tocada numa missa e então a escreveu de memória. A questão é entender como se deu esse processo, se o mesmo é uma habilidade treinável ou nata e de que forma se estabele-cem conexões entre o saber musical e as funções cogni-tivas na performance.

Há evidências de que a identificação da forma do ma-terial, sistematizado em unidades menores (organizado em pequenos grupos), otimiza a possibilidade de memo-rização. Um musicista experiente pode fazer isso reco-nhecendo padrões de linguagem numa peça musical. Por exemplo, a repetição do tema é um fundamento em mui-tas músicas, assim como certas progressões harmônicas.

A identificação da forma do material pode se dar a partir de uma percepção rítmica, visual (observação da nota-ção na partitura), sonora, entre outras. Há uma conexão de muitas informações que contribuem para o reconhe-cimento de um idioma (tonal, modal ou atonal) ou um estilo musical.

Quanto mais familiarizado com essas informações está o indivíduo, mais facilmente poderá disponibilizar tais da-dos na memória, tornando a preparação da peça mais ágil e eficiente. Algumas vezes a mesma música é literalmen-te repetida, mas, quando essa é transposta ou transfor-mada, a música inicial fornece uma estrutura para otimi-zar a percepção. Os Ex.1 e 2 ilustram questões relativas à forma, ritmo, estímulo visual e sonoro.

Embora os dois excertos tenham os mesmos tons, métri-ca e notas, o segundo apresenta-se mais difícil de me-morizar porque suas partes são menos familiares, além de também ter princípios de construção ou de movi-mento mais complexos.

A memória dá sentido à performance conectando as es-truturas menores dentro de uma unidade maior. Há estu-

dos que procuraram demonstrar que tipo de interferência poderia haver sobre a memória musical (Deutsch, Sérge-ant, Cuddy, citados por SLOBODA, 1985). Verificou-se que o reconhecimento das alturas é parte fundamental desse processo. A adoção de um sistema padronizado de alturas (modos e escalas) possibilitou a nomeação dos mesmos (cada um numa determinada freqüência). Houve, a partir de então, uma correlação direta entre o som e o nome atribuído a esse.

Apesar disso, a capacidade de reconhecimento de cada altura isoladamente (chamada de “ouvido absoluto”) não se traduz necessariamente numa boa memória musical. Mais importante que esse, é o “ouvido relativo”, ou seja, a capacidade de correlacionar intervalos sonoros. Essa habilidade facilita o processo de conexão das estruturas numa peça musical. Felizmente, demonstrou-se que essa capacidade é treinável (Siegel e Siegel, 1977, citados por SLOBODA, 1985). Isso é particularmente válido para o idioma tonal. Muitas evidências apontam para a impor-tância de se estabelecer o tom ou centro tonal para a memorização de seqüências melódicas (Dowling, Bartlett, Cuddy citados por SLOBODA, 1985).

Outros parâmetros, além da percepção das alturas (melo-dia e harmonia), são importantes para a formação de co-nexões na memória musical. As estruturas rítmicas, assim como a percepção subjetiva sobre o caráter fraseológico, fornecem material na construção dos nexos musicais.

Na música, tais relações estão em grande parte presen-tes na estrutura da composição. Geralmente, um com-positor, deliberadamente, escreve pequenos segmentos que têm similaridades entre si e se conectam formando unidades maiores. É justamente descobrindo tais simi-laridades e conexões que os limites da memória são ex-pandidos. Assim é que musicistas mais experientes são capazes de memorizar peças extensas. Parece haver um exercício que gradativamente vai se otimizando, uma

Ex.1 - Excerto de natureza mais familiar

Ex.2 - Excerto de natureza menos familiar

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economia de decodificação que pode ser alcançada se as repetições (melódicas, harmônicas, rítmicas e de ca-ráter) são identificadas e anotadas. Portanto, mesmo que haja ocorrências similares na seqüência musical, essas podem ser codificadas uma vez apenas na me-mória e evocadas nos vários pontos ao longo da peça. Talvez, numa primeira escuta, o ouvinte não tenha como estabelecer todas as diferenças, mas se lembrará disso como algo que já tenha escutado.

No meio acadêmico, sobretudo no universo composicional, a notação musical tem grande relevância e é preponderan-te na estruturação das unidades musicais. Por outro lado, ao se considerar a linguagem oral (ou sonora), podemos estabelecer caminhos diferentes e complementares com relação à memória musical na performance. Quando se fala em “aprender de ouvido”, está em questão a apreensão de estímulos que muitas vezes ocorrem em bloco: estímulo visual, corporal e sonoro. Parece ser uma linguagem que se caracteriza pelo global, pela unidade do conjunto enquan-to que o discurso literário (inclusive o da notação musical) traz consigo as vantagens complementares daquilo que se pode observar em partes, analisar em estruturas, células que compõem o todo.

Conforme se aguça a percepção musical, não só estí-mulos concretos como a notação ou os próprios sons vão formando a memória, mas, também, estímulos complexos e elaborados relacionados às emoções. Es-sas podem ser produzidas a partir da música, criando-se uma relação afetiva, ou podem ser evocadas para contribuir para o melhor entendimento de uma deter-minada peça; é o que é denominado de indução per-ceptiva (SLOBODA, 1985).

A memória é, portanto, parte de um complexo processo de apreensão do sentido musical. Tal processo é treiná-vel e envolve estímulos que vão do concreto ao abstrato conforme o grau de elaboração e sofisticação da perfor-mance musical.

3- FenomenologiaO presente trabalho propõe um melhor entendimento da vivência musical pertinente ao grupo Trombomi-nas. Para tanto, é necessária uma abordagem que se aproxime essencialmente da experiência musical, sem, contudo, se distanciar do contexto mais amplo ao qual estão inseridos os indivíduos em questão. Nesse sentido, a fenomenologia é o referencial apropriado. A fenome-nologia é um campo da filosofia que busca descrever os fenômenos a partir da consciência subjetiva dos objetos. Da mesma forma, a fenomenologia da música trata de abordar essas questões de maneira mais particularizada. Partindo desses referenciais, foi empregada uma entre-vista como forma metodológica para o registro das im-pressões referentes ao processo da performance musical assim como questões relativas à memória e seu papel na preparação individual.

3.1 Fenomenologia e Fenomenologia da MúsicaEm fins do século XIX e princípios do século XX, havia uma crise entre o Positivismo e o Irracionalismo. Edmund Hus-serl (1859-1938), filósofo alemão, postulou uma terceira via, uma possibilidade que nos colocaria no mesmo plano da realidade, antes de todo raciocínio (DARTIGUES, 1973), preocupando-se em conhecer as coisas a partir delas mes-mas, sem preconceitos ou argumentações (CARVALHO, 1997). A esse respeito, LYOTARD (1954, p. 9) comenta: “O célebre “por entre parênteses” consiste em primeiro lugar, em dispensar uma cultura, uma história, em refazer todo o saber elevando-se a um não saber radical”.

Husserl propôs o entendimento dos fenômenos. Tal enten-dimento teria como meta o conhecimento da vivência de determinada realidade por meio da descrição dos fenôme-nos, feita de forma mais completa e fiel possível, isenta do juízo dos fatos (RIBEIRO, 2003). Uma vez conseguida a descrição do fenômeno, chega-se à sua essência. A es-sência é o objeto da pesquisa fenomenológica. Segundo RIBEIRO (2003), a essência é o conceito universal ou forma capaz de se verificar invariavelmente em diferentes indiví-duos, aquilo que permanece idêntico através das variações (LYOTARD, 1954).

O método fenomenológico parte da intuição ou da consci-ência dos objetos. A redução é o recurso da fenomenologia para se chegar ao fenômeno como tal, ou à essência. A redução fenomenológica consiste em retornar à experi-ência vivida e sobre ela fazer uma profunda reflexão que permita chegar à essência do conhecimento. Esse conhe-cimento tem como objetivo a apreensão do sentido ou do significado da vivência subjetiva (FORGUIERI, 1993). Sobre a vivência subjetiva, LYOTARD (1954, p.21) aponta: “Todo objeto é objeto para uma consciência (...) importa descre-ver neste momento o modo como eu conheço o objeto e como o objeto é para mim”.

A fenomenologia foi, assim, sistematizada no início do século XX (1901) com o primeiro trabalho sobre o as-sunto. A partir de então, outras áreas do conhecimento passaram a se valer da fenomenologia. Na área da psi-quiatria, a investigação fenomenológica surgiu na Euro-pa, com Karl Jaspers (1913), que, com a publicação de sua obra Psicopatologia Geral, marcou o surgimento da psiquiatria fenomenológica. Na área da psicologia, os pri-meiros trabalhos surgiram nos Estados Unidos na década de 1970 (FORGHIERI, 1993). Em outros domínios também houve a influência fenomenológica, notadamente nas áreas da vida afetiva e religião (SCHELER), artes (GEIGER e INGARDEN), direito, sociologia, etc (DARTIGUES, 1993).

Em 1928, Roman Ingarden, após publicar A Obra de Arte Literária, expandiu sua discussão também para a música.A fenomenologia, no contexto do presente trabalho, é algo que potencialmente nos permite aproximarmo-nos da vivência dos sujeitos enquanto artistas, captando

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aquilo que essencialmente os conduz na performance musical. A esse respeito, CLIFTON (1983) busca aplicar o método fenomenológico à vivência musical. Para tanto, estabeleceu essências que constituem o fenômeno musi-cal: tempo, espaço, elemento lúdico e sentimento.

A percepção temporal (o tempo) na música diz respeito à vivência subjetiva de um tempo que não é o cronológico, e, sim, o das lembranças evocadas a partir de mecanis-mos de reconhecimento de estruturas musicais. Tal reco-nhecimento pode ser imediato (retenção) ou uma expec-tativa daquilo que reconduz a algo conhecido há pouco (protensão) ou mais remotamente (reprodução).

O espaço, segundo CLIFTON(1983) emana da percepção das texturas. Esse, portanto, não é geométrico ou palpá-vel. É o resultado da percepção simultânea da percepção das alturas, timbre e textura, que registra profundidade. A estruturação composicional determina o espaço fenome-nológico na música, descrito como relevos.

O elemento lúdico nos remete à idéia de jogo. É o jogo que ocorre na construção composicional, no processo de reconhecimento de formas, na preparação na performan-ce e na apreciação musical. É como um quebra-cabeça, que se revela conforme as peças vão se encaixando. Vi-venciar cada “encaixe” faz parte da experiência do ele-mento lúdico na música.

O sentimento é como uma decorrência das outras essên-cias, na medida em que se traduz no sentimento de pos-se, a sensação recíproca e irreversível de fazer parte um do outro: Música e Sujeito.

O trabalho de captar essas essências na rotina de um gru-po e conectá-las ao cotidiano dos indivíduos requer um instrumento que traduza não só aspectos específicos re-lativos à música, mas que, também, de forma igualmente importante, revele vivências que possam ser detectáveis em âmbitos progressivamente mais abrangentes.

Assim sendo, tem-se que a fenomenologia da música está contida no universo da fenomenologia. A questão é que os sujeitos aos quais será aplicada uma entrevista não têm uma experiência apenas musical. Na unidade de cada sujeito estabelecem-se seus vários laços com os mais di-versos campos, inclusive com a música. Não bastaria, por-tanto, “pinçar” apenas aspectos relativos à música, ainda que esses, supostamente, sejam a ênfase de determina-do discurso. A fenomenologia da música seria, então, no contexto das entrevistas, algo que possa auxiliar na inter-pretação de aspectos aplicados à música. Entretanto, ao nos aproximarmos dos sujeitos em questão, o fazemos da forma mais integral e autêntica possível, buscando revelar aspectos não só musicais, mas também vivências outras que se integram ao processo da performance musical.

3.2 A Experiência Fenomenológica num Grupo de Trombones3.2.1 Breve Histórico do GrupoO Grupo Trombominas surgiu em fev/2000, a partir da disciplina Música de Câmara na Escola de Música da UFMG. Quatro colegas em vários períodos do curso, com a mesma demanda – constituir um grupo para se preparar ao longo do semestre letivo – se reuniram para organizar tal atividade, muito incentivados pelo então Prof. Pau-lo Lacerda, o qual já tinha tido experiência semelhante, participando do Quarteto Trombonias na década de 1990.

Felizmente, o grupo não se limitou às formalidades curriculares e continuou sistematizando sua forma de preparação. Desde então, vem participando de varia-dos eventos, entre os quais se destacam os Encontros Latino-Americanos de Trombonistas, que ocorrem anu-almente, e diversos Festivais de Inverno em Minas Ge-rais (Ouro Preto, Diamantina, São João Del Rei, etc.). Em 2001, participando do I Concurso de Jovens Cameristas, promovido pela Escola de Música da UFMG, o Grupo Trombominas foi premiado com o segundo lugar ge-ral. Nesse momento já havia uma “consciência” de que aquele grupo tinha certos aspectos especiais, particula-ridades que refinavam a vivência musical.

Nesse contexto, o grande diferencial, pelo menos dentro desse universo em que o grupo atua, foi a preparação se valendo da memorização. Não há partitura na apresen-tação: a peça é apresentada em bloco, na tentativa de uma comunicação integral. Por várias oportunidades já se falou sobre isso, fazendo uma analogia com o teatro: os atores se valem de um texto para comunicarem algo, texto esse, que, no caso do teatro, é inexoravelmente abandonado. O Grupo Trombominas, de forma análoga ao teatro, também abandona a partitura musical e se apro-pria da música, deixando-se, ao mesmo tempo, que essa, por sua vez, se aposse do Trombominas.

Em 2002, por ocasião do Encontro Latino-Americano de Trombonistas (Salvador/BA), houve a oportunidade de construir uma performance meio “híbrida”, com ele-mentos cênicos, de dança, e, essencialmente, musical. Na ocasião, houve uma preparação realizada por um diretor de teatro que abordou aspectos como a presen-ça de palco, as questões gestuais, o figurino (vide Ex.3) para transformar a Suíte para quatro trombones de Enerst Mahle num espetáculo musical com elementos visuais. Foi, realmente, uma mostra consistente dessa nova proposta de trabalho.

Atualmente, o Grupo Trombominas é integrado pelos seguintes músicos: Marcos Flávio de Aguiar Freitas, Pe-dro Aristides de Castro, Sérgio de Figueiredo Rocha e Renato Rodrigues Lisboa.

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3.2.2-EntrevistasPara que a vivência subjetiva dos componentes do Grupo Trombominas pudesse ser registrada e manipulada como dados, havia a necessidade de se empregar um instru-mento que preservasse as impressões de cada um.

A técnica escolhida para a coleta de informações foi a entrevista semi-estruturada. Tal técnica corrobora com a abordagem fenomenológica desse estudo, ao privile-giar o subjetivo, aquilo que parte da vivência do sujeito. Segundo LAVILLE e DIONNE (1999, p.188), a entrevista semi-estruturada se caracteriza por: “(...) uma série de perguntas abertas, feitas verbalmente em uma ordem prevista, mas na qual o entrevistador pode acrescentar perguntas de esclarecimento”.

Além disso, parece ter vantagens sobre o questionário, já que permite uma flexibilidade, o que pode vir a esclare-cer pontos importantes no transcorrer da entrevista. Por outro lado, tal flexibilidade pode tornar menos uniformes tanto as perguntas quanto as respostas. Para evitar esse problema, foram estabelecidas categorias de informações as quais se enquadram em eixos temáticos, denominados de enfoques (vide anexo, p.16).As entrevistas foram gravadas em MD (num total de cerca de duas horas) e transcritas literalmente. Em um segundo momento da entrevista, foram acrescentadas perguntas complementares a fim de tornar mais claros alguns pon-tos. A estrutura final da entrevista encontra-se no anexo.

Para preservar as informações pessoais, de forma a torná-las anônimas, os entrevistados serão denominados de A, B, C e D. Obviamente, aquele que seria o quinto entrevista-do não foi incluído por ser o próprio entrevistador. Serão transcritas passagens de cada entrevista, as quais, pela sua relevância, podem traduzir as impressões e concep-ções subjetivas, constituindo-se num material que revela as características gerais de cada entrevistado em cone-xão com o grupo, ou seja, fornece “noções da totalidade” (Bogda e Biklen, citados por DEL BEN, 2001, p.82).

4- DiscussãoA idéia básica do trabalho foi correlacionar um aspecto relevante presente na rotina do Grupo TROMBOMINAS e fazer uma reflexão fundamentada em questões relativas à fenomenologia. Dessa forma, a memória foi eleita como um ponto de conexão com o fazer musical do grupo. Cer-tamente poderia haver inúmeras outras possibilidades.

O fato de as entrevistas serem feitas pelo pesquisador que ao mesmo tempo fazia parte do grupo não trouxe uma contaminação do estudo uma vez que o mesmo não foi entrevistado. Além disso, as perguntas foram as mesmas, colocadas de forma isenta para todos os componentes.

A elaboração das sínteses permitiu que se observas-sem objetivamente aspectos relevantes da vivência do Grupo Trombominas. A valorização da formação artís-

Ex.3 – Figurino da performance do Trombominas em Salvador, Bahia em 2002 (da esquerda para direita: Ednilson Go-mes, Sérgio Rocha, Marcos Flávio Aguiar e Renato Lisboa.

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tica foi um aspecto muito comentado enquanto parte da contextualização pessoal na performance musical. Por outro lado, revelaram-se dicotomias presentes no cotidiano de cada um, mostrando conflitos profissio-nais: Ao mesmo tempo em que o aspecto econômico é priorizado por questões de “sobrevivência”, o “prazer” é apontado como fundamental na escolha das ativida-des profissionais. Além disso, esse mesmo “prazer” foi reincidentemente colocado como algo que acompanha a vivência musical do Grupo. Nesse contexto, o prazer correlaciona-se com uma das essências fenomenológi-cas descritas por CLIFTON (1983): o sentimento, trazen-do na “posse”, enquanto uma “simbiose” entre a música e o sujeito, conhecimento que fornece a sensação recí-proca de possuir e ser possuído.

A “posse” parece viabilizar outro aspecto enfatizado nas entrevistas com relação ao entendimento pessoal a res-peito da performance musical: a comunicação. Ao longo das entrevistas, observam-se vários níveis de comunica-ção, os quais se dão de forma gradativamente mais com-plexa e ampla, como proponho a seguir:

Seguindo-se a cada nível, são transcritas passagens das entrevistas.1 Entre o indivíduo e a música: Estabelecendo-se cone-

xões entre informações contidas na música e o enten-dimento do indivíduo sobre ela.

“Percebo a música caminhando e fazendo parte de mim, sem muletas”.“(...) estabelecidas as peças, tenho sempre em mente, principal-mente nos últimos dois anos, a questão da memorização mesmo, a preparação começa aí”.“(...) o estudo da peça com e sem instrumento, o processo, enfim... é a performance”.“Há momentos em que eu vejo a partitura na minha frente [men-te], eu sei a contagem, vejo a partitura na minha cabeça”.“(...) o mais importante é trazer a música para dentro de mim, ficar íntimo da música (...)”.“(...) o mais importante é a vivência do artista com a músi-ca que vai ser tocada”.

2 Consigo próprio: O indivíduo estabelece associações cada vez mais complexas para o entendimento da mú-sica, porém, tais informações já não partem apenas da música, mas do seu próprio background.

“Na preparação da peça eu não pego só o tocar, eu pego a prepa-ração corporal e mental... procuro tocar imaginando as pessoas”.“Quando possível, me preparo no local onde vou me apresentar”.“A preparação física eu acho muito importante na performance”.“Cada dia que eu estou tocando, estou pensando na apresen-tação (...) como se estivesse tocando na hora, e isso vai me deixando tranqüilo”.

3 Entre o indivíduo e o grupo: a conexão entre os compo-nentes permite que o “algo mais” aconteça e que haja como que uma cumplicidade na performance.

“Eu e o Trombominas somos a mesma coisa”.“Tocando de cor consigo perceber com mais nitidez os instrumen-tos que estão à minha volta”.Comentando sobre o “tocar de cor”: “Isso faz com que eu esteja bem seguro (...) sinto mais prazer tocando assim (...) a movimen-

tação no palco é diferente (...) posso ver mais meus amigos e a interação é maior”.“No Trombominas há muitas particularidades, uma delas é a faci-lidade de tocar junto, a convivência (...) a facilidade é em função da simpatia”.“(...) quando junta é uma experiência complementada pelo conjun-to, naquilo que cada um tem de melhor”.

4 Entre o grupo e o público: corolário de uma conjunção de fatores que se estabelece idealmente entre o pró-prio grupo e o público.

“Acho que o Trombominas é um grupo muito coeso... pra mim é uma experiência fantástica, porque é o grupo mais performático entre todos que eu participei”.“O que mais se diferencia entre os grupos onde participo é o Trom-bominas, pela forma como a gente lida com isso, a maneira de estar no palco (...)”.“Performance é o tocar ao vivo, é necessário o público, alguém se apresenta para outrem”.

O ambiente amistoso no grupo realmente tem trazido uma cumplicidade no aprendizado e tem contribuído para a otimização do rendimento dos ensaios. Nesse contexto, é possível coexistirem várias linguagens (escrita, oral, so-nora, corporal, etc) na performance musical. A respeito do corpo e sua vinculação à percepção, é adequada a noção de Merleau-Ponty sobre a participação corporal enquanto constituinte mesmo das coisas, “algo que se dissolve no mundo de modo que não se possa mais separá-los” (MA-CIEL, 1997, p. 132).

5- ConclusãoA memória, no contexto do Grupo Trombominas, tem atu-ado como um determinante facilitador do sentido mu-sical, e, enfim, da comunicação, nos seus vários níveis, como dito. É a construção, permanente, diária e persis-tente de uma possibilidade. É necessária, realmente, uma conjunção de fatores, como se estivéssemos à espera de um fenômeno natural, na expectativa de que algo raro e fascinante como o “arco-íris” pode, de fato, a qualquer momento, acontecer: Há uma série de eventos que, coe-xistindo no momento certo, permitem que a “música”, em sua plenitude, aconteça.

A memória também permite e viabiliza a intimidade. So-mos íntimos de muitas coisas que às vezes nem nos da-mos conta. SACKS (2000, p.70) descreve um caso de um paciente chamado Greg, cuja lesão cerebral destruía toda possibilidade de se tornar íntimo de alguém ou de algo:

A memorização de ordem superior é um processo de múltiplos está-gios, envolvendo a transferência de percepções, ou sínteses percepti-vas, da memória de curta duração para a de longa duração. É apenas essa transferência que deixa de ocorrer em pessoas com lesões do lobo temporal. Portanto, Greg pode repetir uma sentença complicada com total exatidão e entendimento no momento em que a ouve, mas em três minutos, ou antes de se distrair por um instante, não guardará nenhum vestígio dela, ou qualquer idéia de seu sentido, ou qualquer lembrança de que tenha alguma vez existido.

A comunicação entre o indivíduo e a música (partitura/texto) e aquela envolvendo o indivíduo consigo mesmo é o que se estabelece na preparação individual frente ao

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coletivo. Nesse contexto, a “preparação corporal” aparece para um indivíduo como importante fator adjuvante na performance, já para outro indivíduo, foi a apreensão au-ditiva o aspecto mais relevante, e assim por diante. DAR-TIGUES (1973, p.143), ao se referir à fenomenologia como acesso ao mundo das pessoas, aponta:

(...) a relação da pessoa com o mundo será tão singular quanto o é a pessoa, o que permite dizer que, se cada pessoa é uma voca-ção, haverá tantos mundos pessoais, ou “microcosmos”, quanto vocações. Mas esses mundos singulares não são fechados uns aos outros a ponto de sua multiplicidade tornar impossível a unidade de um mundo comum. Este se enriquece, ao contrário, com a mul-tiplicidade das perspectivas pessoais e cada uma dessas perspec-tivas se enriquece, por sua vez, no mundo comum, com todas as outras perspectivas complementares (...).

Aspectos dessa intimidade, revelados nas entrevistas, re-fletem um outro conhecimento compartilhado entre os componentes do grupo. É como se dar conta de como as

pessoas se relacionam, valorizando funções que, apesar de fundamentais, passavam despercebidas e continuavam, mesmo assim, influenciando o grupo de forma vital e “re-criativa”. Desvendar aquilo que era “quase óbvio” tem sido motivo de surpresa para muitos. Nesse processo, conhe-ceu-se outra faceta de um mesmo grupo, redescobriram-se pessoas e ficaram mais claros os “papéis” de cada um como “atores” da performance musical. Nessa experiência reveladora percebem-se sutilezas na construção do senti-do musical em grupo. A esse respeito, é oportuna e apro-priada a citação de Merleau-Ponty (1908-1961, citado por CHAUÍ, 1980, p.XIII):

Como meu corpo, que, entretanto é apenas um pedaço de maté-ria, se unifica em gestos que visam além dele, assim também as palavras da linguagem, que, consideradas uma a uma, são apenas signos inertes aos quais corresponde alguma idéia vaga ou ba-nal, inflam-se subitamente com o sentido que extravasa no outro quando o ato de falar os ata em um único todo.

5. Anexo

Protocolo de Entrevista Semi-estruturada

Categoria de Informações Enfoque

Formação e atuação profissionala- Fale sobre sua formação musical.b- Descreva suas atividades profissionais.c- Como é distribuído seu tempo para tais atividades?d- Existe alguma priorização entre as atividades?e- Caso positivo, o que contribui para isso?

Contextualização pessoal na performance musical.

Concepções / Performance Musicala- O que você entende por performance musical?b- Na sua prática, para quem tem sido ofertada tal atividade? (o

público)c- Você encontra conotações diferentes para a performance?d- Em sua vivência musical, há diferenças na forma de apresen-

tação (performance/atuação) em função do tipo de grupo em que atua? Dê exemplos.

e- Como tem sido a vivência musical no Grupo Trombominas?f- Como você percebe e descreve a performance do Grupo Trom-

bominas?g- Como você se sente numa performance em que toca “de cor”?

Caracterização pessoal sobre o universo da performance musical.

Concepções sobre a preparaçãoa- De um modo geral, como você se prepara para uma apresen-

tação (o processo)?b- Na sua prática, há diferenças em função do tipo de grupo em

que atua (particularidades)?c- Descreva sua rotina relacionada ao Grupo Trombominas.

Descrição de elementos constitutivos da prepa-ração performática individual em conexão com o coletivo.

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ROCHA, S. F. Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.97-108.

notas1 Grupo de Trombones criado em 2000. Para detalhes, vide Tópico 3.2: A experiência fenomenológica num grupo de trombones.2 Entendida como função cognitiva.3 Na verdade, Roman Ingarden já havia feito isso 55 anos antes, porém, Clifton empreendeu essa tarefa de forma mais específica

e sistemática. Para mais detalhes vide Tópico 3.1 – Fenomenologia e Fenomenologia da Música.4 Sinapse é o ponto de ligação entre neurônios.5 Córtex é a substância cinzenta que se dispõe em uma camada fina na superfície do cérebro e do cerebelo.6 Essa característica da memória será abordada mais à frente.7 Importante pianista do cenário acadêmico, atuando como professora em várias instituições de ensino superior nos E.U.A.8 Para detalhes ver fonte: HUSSERL, E. Investigações lógicas. Tradução de Zeljko Loparic e Andréia Maria Altino de Campos

Loparic. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 224 p. Título original: Logishe untersuchungen.9 Filósofo polonês (1893-1970), aluno de Husserl.10 Paulo Roberto Lacerda (Paulão) (1958-2003), atuou como professor na Escola de Música/UFMG no período de 1990-2003.11 O Quarteto Trombonias era formado por músicos integrantes da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais (OSMG).12 Espetáculo “Suíte Brasileira”, baseado na Suíte para Quatro Trombones do compositor Ernst Mahle, dirigido por Anderson Aníbal.

Sérgio de Figueiredo Rocha é Graduado em Educação Física (1988), Medicina (1995) e Música (2002), todas pela UFMG; Residência Médica em Psiquiatria pelo Hospital das Clínicas da UFMG (1999), Especialização em Música Brasileira pela UEMG (2001) e Mestrado em Música pela UFMG (2005). Atualmente cursa o Doutorado em Psiquiatria na USP. Desde 1990, tem atuado em variadas formações musicais, entre as quais se destacam a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, o Coral de Trombones da UFMG e o Grupo Trombominas. Foi professor na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), onde implantou os cursos de Bacharelado e Licenciatura em Trombone em 2006. Na UFSJ é docente nos cursos de Música e Educação Física. Implantou a disciplina Corporeidade e Música, a qual é oferecida em ambos os cursos. Atrua em pro-jetos de extensão, como o “Coral de Trombones”, e na organização de eventos cuja principal proposta é pensar a prática musical a partir de vários olhares do saber. Em fevereiro de 2008 coordenou o XIV Festival Brasileiro de Trombonistas na cidade de São João del Rei.

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Recebido em: 20/06/2009 - Aprovado em: 15/10/2009

Um roteiro atemporal: reflexões sobre a música, os músicos e o ensino musical

Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Trata-se de um estudo reflexivo e comparativo a partir de textos de três principais referências, o poeta por-tuguês Fernando Pessoa (1888 – 1935), o maestro italiano Sérgio Magnani (1914 – 2001), radicado em Belo Horizonte em 1950, e o educador inglês Keith Swanwick (1931). Algumas concepções destes autores - e de outros autores e músicos - foram analisadas e diretamente correlacionadas com a prática e a reflexão sobre a música e o ensino musi-cal. O processo comparativo entre as diversas ideias e manifestações possibilitou o estabelecimento de parâmetros, apontando fundamentos para as considerações apresentadas sobre a música e também sobre temas como o ensino e o desenvolvimento musical, a performance, a criação e a apreciação.Palavras-chave: autores e idéias, estudo comparativo, música e práticas interpretativas, ensino musical.

A timeless script: thoughts on music, musicians and music teaching

Abstract: This is a reflective and comparative study of texts from the three main references, the portuguese poet Fern-ando Pessoa (1888 - 1935), the italian conductor Sérgio Magnani (1914 - 2001), based in Belo Horizonte, Brazil, in 1950, and the English music educator Keith Swanwick (1931). Some ideas of these authors – as well as of other writers and musicians – were analyzed and correlated directly with the practice and thinking about music and music teaching.The comparison process between the various ideas and events enabled the establishment of parameters, indicating rea-sons for the considerations made about the music and also on issues such as music teaching, development, perform-ance, composition and appreciation.Keywords: authors and ideas, comparative study, music and performances practices, music teaching.

1 - IntroduçãoEstou sempre me despedindodo ponto de partida que me lança de si,

do ponto de chegada que nunca é aqui. (LUFT, 2005, p.15)

A busca de afinidades e similaridades entre conceitos sobre a atividade artística, constantes no legado de alguns pen-sadores, estimulou-nos a delinear um roteiro, com o qual fosse possível transitar em vários sentidos, através de inter-penetrações. Na visão do todo ou no exame dos pequenos detalhes, procuramos um percurso circular que realimen-tasse novas possibilidades, para uma reflexão abrangente. Com o foco introdutório detalhado em alguns de seus tex-tos, escolhemos três autores como principais referenciais neste estudo. O primeiro, por ordem cronológica de suas vidas, é o poeta português Fernando Pessoa, nascido no sé-culo XIX e falecido no século XX, em Lisboa (1888 - 1935). O segundo é o maestro Sérgio Magnani (1914 - 2001), músi-co italiano graduado também em Letras e Direito. Magnani veio para o Brasil em 1950 e radicou-se em Belo Horizonte, cidade em que se destacou como músico influente e profes-sor de várias gerações, inclusive na Faculdade de Letras e na

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010

Escola de Música da UFMG. O terceiro autor é o educador inglês Keith Swanwick, (1931), professor emérito do Insti-tuto de Educação da Universidade de Londres, que acumula ainda as experiências como regente, músico de orquestra e organista em igrejas.

Outras referências de pensadores e músicos, independente-mente da contemporaneidade destes com o trio principal, foram acrescidas e entrelaçadas através de aproximações entre os seus discursos, como num contraponto de vozes. Algumas manifestações verbais às quais tivemos acesso, em situações diversas como palestras ou entrevistas, também foram analisadas como elementos constitutivos deste con-junto multifacetado de pensamentos.

Partindo dos três autores mencionados, selecionamos textos de caráter diferente, que contêm reflexões sobre o ser humano diante do objeto artístico, a interpretação e a formação artísticas. Os discursos detiveram a nossa atenção por aspectos tais como o conteúdo expresso, o tratamento poético das idéias e a organização conceitu-al. Nosso intuito foi o de evidenciar ressonâncias, con-

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vergências e complementaridades entre as convicções apresentadas, cujos fundamentos nasceram de vivências e escopos específicos, com os quais os autores discorre-ram sobre alguns temas e suas interseções. Este caminho apontou-nos interconexões entre formas aparentemente distintas de descrever aspectos inerentes à atividade ar-tística, contidas nos textos produzidos em diferentes cul-turas e períodos do século XX. A aproximação entre elas significou o encontro de novos paralelos para a compre-ensão de aspectos que, isoladamente, já carregam uma densidade própria, quando justapostos ou sobrepostos, denotam maior complexidade em interligações e seus desdobramentos. Neste tipo de triangulação, no qual in-cluímos outros coadjuvantes, há sempre um trânsito livre e contínuo, como se um pensamento elucidasse o outro e nele estivesse imanente.

2 - Ideias e reflexões: a interpretação, a cria-ção, a apreciação e o ensino musicalComeçamos com um apontamento de Fernando Pessoa, publicado no livro Fernando Pessoa obra poética: organi-zação, introdução e notas (GALHOZ, 1960). O apontamen-to escolhido é uma das Notas Preliminares catalogadas pela organizadora do livro, em trabalho de pesquisa do-cumental e de entrevistas com familiares do poeta, que lhe cederam material inédito, anexado ao corpo da Obra Poética. Dada a universalidade do conteúdo deste apon-tamento e o alcance que a ele aferimos, tanto nos aspec-tos conceituais da arte como também na aplicabilidade destes em alguns fundamentos da educação musical, Pessoa será o elo mais evidente e uma constante referên-cia, projetada direta ou indiretamente. Apresentamos, a seguir, a transcrição integral da Nota Preliminar, que será um ponto de partida no processo comparativo ao qual nos propusemos (GALHOZ, 1960, p.5):

NOTA PRELIMINAR 1

“O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condi-ções, sem as quais os símbolos serão para ele mortos e êle um morto para êles.

A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta, a irô-nica, a deslocada - tôdas elas privam o intérprete da pri-meira condição para poder interpretar.

A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aque-la espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja.

A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, de-compõe, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que se usou da simpatia e da intui-ção. Um dos fins da inteligência, no exame dos símbo-

los, é o de relacionar no alto o que está de acôrdo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado esta relação, se a intuição não a tiver estabelecido. Então a inteligência, de dis-cursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado.

A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma sín-tese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes.

A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns que é a graça, falando a outros que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aquêles que delas usam, falando ou escrevendo. (grifos nossos)

Para usufruir mais intensamente das considerações do au-tor, com as quais tivemos uma empatia imediata, fizemos várias releituras que nos reportaram às concepções de ou-tras pessoas. Durante este trajeto, buscamos2 a origem eti-mológica de algumas palavras, seus diversos significados. Procuramos sentir as aproximações e equivalências entre as conjecturas do poeta e as nossas próprias, com relação à diversidade nas possibilidades de experiência com a lin-guagem da música e com o ensino. Este processo trouxe à tona várias influências do que já ouvimos, aprendemos, lemos e compartilhamos, na contínua transformação dese-nhada pela música em nossa trajetória pessoal.

Símbolo, do grego symbolon, pelo latim symbolu, é o que, ‘pela sua forma ou natureza, evoca, representa ou substitui, em determinado contexto, algo abstrato ou ausente’; ‘obje-to material usado para representar coisas imateriais’; ‘tem valor mágico e místico’. Em Wisnik encontramos um outro esclarecimento: o símbolo é “o que joga unindo”, e se opõe etimologicamente, na sua raiz grega, ao diabulus, ou “o que joga cortando, o que joga para dividir” (WISNIK, 2001, p.82-83). Julgamos que uma das formas de jogar unindo, ou apro-ximando, é o ato de tecer, com os fios disponíveis no exame dos símbolos, as texturas impregnadas de significados espe-ciais. Para entender os símbolos e os rituais simbólicos - que poderíamos considerar no caso da música como requisito primordial para a performance, a apreciação e criação -, Pessoa cita cinco condições indispensáveis a um intérprete, apontando-as, segundo sua própria explicação, por ‘graus de simplicidade’ e não por uma organização temporal. De fato, ele discorre sobre as suas premissas, partindo da simpatia pelo objeto - condição prévia de quem gosta da atividade que visa realizar - e segue, gradativa e poeticamente, até pousar no campo sensível e elevado da ‘conversação com

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o anjo da guarda’, ou da ‘graça’. Diante da sua organização expositiva, imaginamos que Pessoa tenha evitado o risco de seu texto ser tomado como uma receita que estabelece uma forma padronizada para aquisição dos ingredientes, ou uma seqüência pré-determinada para a sua utilização, com momentos estanques. Após essas considerações iniciais, ele enfatiza que, se o intérprete for desprovido das tais cinco qualidades ou condições, qualquer tentativa de aproximação se mostrará inútil, pois ele será ‘um morto’ para os símbolos, que igualmente permanecerão na condição de ‘mortos’. Es-taria assim configurada a impossibilidade de uma verdadeira relação vital nos rituais, justamente pela existência de uma barreira real entre o intérprete e a obra diante dele: nada poderia ser revelado ou vivificado.

A Simpatia, do grego Sympátheia e pelo latim sympa-thia, tem significados tais como ‘afinidade de espírito’; ‘participação em’; ‘sensibilidade ao sofrimento do outro’; ‘conformidade de gênios’; ‘compaixão’; ‘atração que uma coisa ou uma ideia exerce sobre alguém’. De fato, o intér-prete tem que ter simpatia pelo que vai interpretar e estar livre de atitudes impeditivas como a ‘ironia, a cautela ou o deslocamento’, pois estas o privam da simpatia. O pro-cesso de escolha de repertório para um músico é crucial e exemplifica, de forma clara, esta questão. Ele tem re-lação direta com o comprometimento pessoal no estudo da obra, com o resultado expressivo e o valor aferido à interpretação. Da mesma forma, o interesse e a afinida-de movem quem está envolvido com a criação ou com a apreciação da música. Trata-se, como preconiza Pessoa, de preservar pela simpatia uma condição de entrega, ine-rente à relação afetiva que nasce quando o intérprete, o compositor e o ouvinte se sentem atraídos, ou arrebata-dos pelo símbolo (ou pelos rituais simbólicos).

A Intuição, do latim intuitione, ‘percepção que se adianta ao raciocínio’; é o ato de ver, pressentir, ‘ter percepção ou conhecimento, claros e imediatos, de um objeto na plenitude da sua realidade, seja este de ordem material, ou espiritual’. É quando da contemplação emana uma ver-dade plena, de natureza diversa daquela obtida através da razão ou do conhecimento analítico. Segundo o poeta, a simpatia não cria a intuição, ela vem auxiliá-la, se esta é uma qualidade que o intérprete já possui. Acreditamos que a intuição permite ao intérprete pressentir algo que está além do símbolo, por conseguinte, se apossar daquilo que não é igualmente perceptível por cada um que venha a se aproximar do objeto. Muitas decisões interpretati-vas musicais acontecem em domínios onde não existem confortáveis evidências, pois, tais revelações não podem se dar e nem prevalecer, senão em níveis mais profundos. A Inteligência, do latim Intelligentia, é a ‘faculdade de aprender, perceber, apreender’; ‘astúcia’; ‘capacidade de penetração, agudeza e perspicácia’. Como afirma Pessoa, a inteligência analisa, decompõe e reconstrói o material no processo da interpretação, depois que o artista já se valeu da simpatia e da intuição. De discursiva e descritiva, a inteligência passa a ser analógica; engendra recursos e estabelece novas conexões para que o símbolo possa ser

interpretado e reinterpretado. Na sua origem latina, in-teligência significa “intus legere”, ou seja, ler do lado de dentro. Com este tipo de leitura, a inteligência musical constrói relações do ‘lado de dentro’ e em outros patama-res. Aproximar o que aparentemente não está relacionado, ou explícito na partitura, é uma abordagem da obra musi-cal que a simpatia suscita e a intuição celebra.

A compreensão é o conceito apresentado por Pessoa para se referir ao conhecimento de outras matérias que ilumi-nam o símbolo e o relacionam com outros. Apreendemos disto que essas luzes provêm de outros tipos de objetos do conhecimento, de outras conversações, correlações e temáticas. Para se compreender certos símbolos, ele julga ser preciso, antes ou ao mesmo tempo, o entendimento, a vivência de símbolos diferentes. Compreender, do latim comprehendere, significa ‘assimilar mentalmente, ter do-mínio intelectual de um assunto’; ’ter percepção e enten-dimento’; ‘conter em si, incorporar’, ‘perceber as inten-ções ou o sentido’, ‘dar-se conta de alguma coisa’. Nessa perspectiva de incorporação podemos incluir o interesse por símbolos transportados num diálogo entre formas de arte distintas, que, ao se integrarem podem arquitetar novas associações, outros significados, reflexões e desco-bertas subjetivas. Cremos que, por isto, a compreensão foi o termo escolhido, como justifica Pessoa, e não a erudição significando ‘soma’, nem a cultura, significando ‘síntese’. A compreensão dá autenticidade às realizações expressi-vas, na performance e na criação, e permite uma escuta musical sensível e ativa. É um resultado de vida interior intensa, da experiência profunda e da incorporação.

A Graça, ou a mão do Superior Incógnito, ou Conheci-mento e Conversação do Santo Anjo da Guarda: para Pes-soa, estas são algumas das denominações possíveis para a menos definível das cinco condições. Elas designam a mesma coisa - ou recurso, captado em outra dimensão de valor - e são acolhidas da maneira como esta condição pessoal é entendida por quem, mesmo na impossibilidade de descrevê-la ou compartilhá-la, dela se vale para lidar com a linguagem simbólica.

Observamos que as cinco condições necessárias ao in-térprete contemplam as dimensões afetiva, intelectual e espiritual do fazer artístico. Na filosofia e na psicologia da educação musical, os pensadores, de uma forma ou de outra, mesmo com desdobramentos teóricos especí-ficos e terminologias diferentes, afins às distintas áreas do conhecimento, tratam sempre estas dimensões como essenciais nos fundamentos filosóficos, sociológicos e psicológicos da música e da educação musical.3

Em outras notas soltas, constantes da Obra Poética Fer-nando Pessoa escreve sobre necessidades humanas e so-bre paisagens interiores e exteriores. Ao comentar sobre uma frase gloriosa dos antigos navegadores portugueses - ‘Navegar é preciso: viver não é preciso’ - ele faz a sua adaptação: “Quero para mim o espírito desta frase, trans-formada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não

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é necessário; o que é necessário é criar” (GALHOZ, 1960, p.XIII). Tendo em conta que a música não pode ser usada para comunicar significados explicitamente, atribuímos o seu poder à necessidade humana de criar e se comunicar através de sistemas simbólicos. Em sintonia com a convic-ção do poeta, podemos confirmar essa necessidade pelo registro permanente da música no fio condutor da história da humanidade. Ela está presente, com grandiosa varie-dade, em todos os períodos já rastreados pelo homem em seus estudos e - resguardadas as distintas atribuições de valor e função -, em todas as culturas, de ontem e de hoje.

Ao analisar certas necessidades humanas, instaladas em seu universo interior e expostas no mundo exterior, F. Pes-soa faz uma descrição sobre toda atividade mental, espe-cialmente a da criação, e aponta para o que ele chama de:

(...) duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência dum estado de alma, temos, diante de nós, impressionado-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, en-tendendo por paisagem, para conveniências de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção. Todo estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo estado de alma é não só re-presentável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem (GALHOZ, 1960, p.31).

Na sua conceituação, Pessoa declara que a arte é a repre-sentação simultânea dessas duas paisagens, a interior e a exterior. Ele discute que, mesmo não se aceitando que um estado de alma seja considerado uma paisagem, a arte pode ser admitida como a interseção de “um esta-do de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior”(GALHOZ, 1960, p.31).

Esta consideração nos leva a Howard Gardner, que em sua teoria das inteligências múltiplas trata da inteligên-cia musical e faz uma interessante comparação entre a gênese da composição musical e a da poesia (GARDNER, 1994). O seu pensamento nos permite uma associação com as paisagens apresentadas por Pessoa, as quais o processo artístico permite conjugar. Na análise da inteli-gência musical Gardner sugere que compositores e poe-tas se parecem “na súbita apreensão das idéias germinais iniciais, na necessidade de explorá-las, realizá-las e no entrelaçamento de aspectos emocionais e conceituais” (GARDNER, 1994, p.90). Entendemos que essas ideias sú-bitas tendem a encontrar uma forma de representação no mundo exterior, que é apreendido por meio dos sentidos. Através da manifestação artística, os sentidos direciona-dos ao meio exterior utilizam e também criam recursos necessários para nele interferir.

Gardner inclui em seu texto as seguintes descrições de outros compositores sobre os processos nos quais se en-gajam. Para Aaron Copland compor é tão natural quanto comer ou dormir: “É algo que o compositor nasceu para fazer, por isto perde o caráter de virtude especial aos seus

olhos”. O único elemento misterioso, para ele, é a fonte de uma ideia inicial, os temas parecem dons vindos do céu, como na escrita automática. Saint-Saëns compara o processo da criação ao de uma macieira que produz ma-çãs e Arnold Shoenberg acredita que qualquer ocorrência de uma peça musical “nada é além do que um infindá-vel remodelar de uma forma básica”, ou nada além “do que vem do tema, brota dele e pode ser traçado de volta a ele” (GARDNER, 1994, p.80). Gardner acrescenta ainda ao seu texto o pensamento de Schopenhauer: “O compositor revela a essência mais íntima do mundo e profere a mais profunda visão em uma linguagem que seu raciocínio não entende, assim como um hipnotizado revela coisas das quais não tem nenhuma idéia quando está desperto” (GARDNER, 1994, p.81).

Parece haver alguma semelhança entre os pontos de vista acima mencionados e o pensamento do compositor bra-sileiro, Camargo Guarnieri, que equipara os mistérios da gênese e os processos criativos da composição musical e da literatura, conforme informações que obtivemos re-centemente, em depoimento4 de Vera Guarnieri. Pessoa e Gardner apontam para a necessidade interna e a busca de satisfação pessoal no ato de lidar com as estruturas composicionais, seja na música, pelos sons, ou na litera-tura, pelas palavras. A ‘apreensão de ideias germinais’, no nosso entendimento, é uma outra forma de se referir ao que acontece pela conjunção da simpatia com a intuição. Na exploração deliberada e consciente do material, o ar-tista se vale de ambas as qualidades e da sua inteligência. A realização ou a percepção da ‘combinação de aspectos emocionais e conceituais’ depende da compreensão dos significados, alcançada nos patamares superiores da sen-sibilidade e da inteligência. A nosso ver, assim também acontece a experiência musical profunda dos composito-res, dos intérpretes ou dos ouvintes ativos. Segundo Gard-ner, as questões das diferenças das personalidades são determinantes para a busca das fontes pessoais de prazer. Ao comparar as capacidades musicais com outras compe-tências intelectuais, ele sugere haver evidências de que “assim como a linguagem, a música é uma competência intelectual separada, que também não depende de objetos físicos no mundo” (GARDNER,1994, p.95). Ele explica que na música e na linguagem a destreza pode ser elaborada até um grau significativo, apenas através da exploração e aproveitamento do canal oral-auditivo. Não acredita ser mero acidente o fato de que as duas competências, desde o início do desenvolvimento, procedam sem relação com objetos físicos e baseiem-se ambas, de maneiras neuroló-gicas distintas, no sistema oral-auditivo.

Parece-nos que as competências artísticas correspondem à vitalidade de um mundo interior independente, com suas próprias paisagens, apesar de conectado com o meio exterior, no qual encontra múltiplas formas de se expres-sar. Cecília Meireles, no prefácio do livro Cartas a um Jo-vem Poeta (RILKE, 1999), depura alguns aspectos tratados pelo autor, que nos parecem condizentes com a conquista de um espaço criativo internalizado. Ao comentar sobre a

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essência dos conselhos dados por Rilke ao jovem escritor, ressalta algumas atitudes que ela considera como pre-valentes, e, por isto, devem ser cultivadas e valorizadas pelos artistas: “um gosto pela solidão constante e inte-ligente” e “uma disciplina poética humilde e vagarosa” (RILKE, 1999, p.12).

Em seu livro Expressão e Comunicação na Linguagem da Música, (MAGNANI, 1996, p.61-67), o maestro Sér-gio Magnani explica: interpretar (do latim inter petras, ou entre as pedrinhas) é “o ato de descobrir e comunicar significados que podem estar ocultos por detrás de uma série de significantes fundamentais” (p.61). Ler nas en-trelinhas, ou ‘ler do lado de dentro’, é perceber o que não está explícito. Ele compara esta leitura com a dos adivi-nhos, que nas configurações de pedrinhas, borras de café ou cartas do baralho percebem sinais do destino e fa-zem previsões do futuro. A interpretação para o maestro pode ser descrita como: “Atividade, portanto, de intuição e técnica, baseada no reconhecimento dos símbolos e dos caminhos misteriosos da sua gênese, a fim de se chegar à tradução dos símbolos em eventos ou fenômenos, em nos-so caso, sonoros” (MAGNANI, 1996, p.61).

Segundo o autor, são apoios para o intérprete a cultura, a sensibilidade e a tradição. A cultura, que em Pessoa também é ‘síntese’, é conceituada por Magnani como preparo filológico e conhecimento estilístico. Mas, com a ressalva de que este último requer uma penetração com o espírito, livre de preconceitos arraigados, das “falsas e pomposas regras” e da rigidez preconizada por determinados historiadores. Desta forma, o intérpre-te deve alcançar o equilíbrio entre cada estilo e a sua própria sensibilidade, além de ser capaz de integrá-la à sensibilidade do autor e da obra. Semelhante ao expres-so no pensamento de Pessoa, esse processo apontado pelo maestro nos confirma a inteligência musical analó-gica, a simpatia pelo símbolo e pelos rituais simbólicos e a intuição como agentes motivadores e propulsores para uma boa realização musical.

Também em Magnani reencontramos a avaliação de que a compreensão é a condição para a autonomia e a per-sonalidade do intérprete. Referindo-se à tradição, ele também alerta para o fato de que “ela pode alimentar o espírito da obra, assim como pode, também, coagulá-lo em esquemas sem vida” (p.66). Por isto, esclarece em seu texto que é preciso integrá-la com lucidez a uma ava-liação crítica e também aos questionamentos culturais. Neste sentido, na relação entre o intérprete e a compo-sição musical há aspectos abordados pelo maestro, que merecem a nossa atenção. Quando se refere à produção do compositor ele ressalta:

(...) a obra acabada se destaca do autor, adquirindo vida própria; em certo sentido, não mais pertence ao autor. É um campo aber-to de possibilidades às suas próprias concepções de intérprete. A obra é um novo astro – ou apenas um asteróide – que se acres-centa a uma outra constelação no puro céu da arte: o artista só começa a viver na obra de amanhã, que está a fecundar a sua fantasia (MAGNANI,1996, p.65).

Para Magnani, o bom ouvinte deve esperar do intérprete que este não invada indevidamente a obra com a sua personalidade. O equilíbrio está em se respeitar os mes-tres, a tradição, as escolas e o meio cultural, visto que estes não podem ser ignorados, mas, tão pouco, devem ser aceitos sem reservas, ou questionamentos. Se a obra musical tem vida própria, a relação é de fato de-licada:

Parece, às vezes, que o intérprete revela a obra, acrescentando algo que é só dele. Isso, porém, é ilusão: ele apenas descobriu uma po-tencialidade da obra que aos outros havia escapado. Um grande mérito, sem dúvida, mas sempre subsidiário ao conteúdo implícito no texto (MAGNANI,1996, p.66).

Quanto a esta consideração, acrescentaríamos que é muito tênue, ou impreciso, o limite entre a invasão in-devida e as descobertas individuais. É difícil se estabe-lecer o ponto onde uma começa e a outra termina, com objetividade e argumentação irrefutável. Na verdade, com alguma frequência é possível observar avaliações tão apaixonadas quanto contrastantes a respeito de performances que se destacam pela ousadia e inovação. Músicos experientes realizam diferentes apreciações e julgamentos de valor e, felizmente, a não ser no caso de deturpações evidentes, essa variedade corresponde a uma riqueza de possibilidades que boa obra encerra e o bom intérprete ressalta.

Na visão do maestro Magnani, o papel do intérprete exi-ge constante “auto-educação, renovação da juventude de espírito, (...) consciente superação do epidérmico para a conquista de zonas mais profundas da sensibilidade” (p.67). Tais zonas talvez sejam aquelas acessadas através da graça, da conversação com o Santo Anjo da Guarda, na visão poética de Pessoa. 5

Ao abordar filosoficamente a questão, Sandra Abdo co-loca-nos diante de uma síntese muito feliz sobre o fenô-meno da interação entre o intérprete e a obra, que ajuda a referendar nossas explanações anteriores:

Tratando-se de uma relação dialética, na base da qual estão polos orgânicos, constitutivamente multifacetados, plurissêmicos e ine-xauríveis, o que, em suma, se pode esperar desse tipo de atividade é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, a revelação da obra em uma das suas possibilidades e a expressão da pessoa que in-terpreta, condensada em um dos seus múltiplos pontos de vista (ABDO, 2000, p.23). (grifos da autora)

Sonia A. LIMA (2006), entende a música como uma arte com essência interior temporal, à espera de realização (p.60-61) e vê o intérprete como aquele que, de certa forma, a recria: “Ele é o elemento intermediário que dá vida à música, dá-lhe uma temporalidade concreta e dá vida aos símbolos expressos na partitura” (2006, p.60). A autora menciona a perspectiva de G. Brelet sobre a pro-blemática existente entre a obra musical, com necessi-dade congênita de intérprete, e a diversidade possível de interpretações. Segundo BRELET:

O que separa a concepção da realização é, nem mais nem menos, seu caráter indeterminado e rico de possibilidades. A concepção é um es-

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quema fecundo, um tema gerador. (...) A obra musical não extingue o estado de pensamento puro. A multiplicidade de execuções possíveis, por meio das quais a obra se realiza, atesta em grande parte, seu cará-ter inacabado e todas as possibilidades que se encontram intactas na obra (apud Fubini, 1994, p.119; in LIMA, 2006, p.61).

Continuando a explanação acerca da plenitude da obra a ser vivida pela consciência do intérprete, Lima se apóia na visão de Brelet a respeito da partitura: uma virtualidade, ou campo de possibilidades. A música tem uma tempo-ralidade que é vivente, não esquemática ou abstrata e a obra se realiza numa subjetividade essencial e constitu-tiva. Para BRELET:

A Música tem a mesma dimensão temporal que nós temos (...) a música vive na duração, duração esta que é essencialmente dra-mática, posto que ela resume, acima de todos os dramas particu-lares, o drama puro da existência (...) os grandes esquemas da vida interior (apud Fubini, 1994, p.126; in LIMA, 2006, p.62).

Keith SWANWICK discorre sobre os parâmetros da edu-cação musical, em seu livro A Basis for Music Education (1979), e faz um alerta aos professores para que fiquem atentos à efemeridade da música. Devido a esta condição, a música deve ser tratada e compreendida enquanto se afasta no tempo, como se fosse guiada em um tipo de vôo. Esta abordagem - na qual a revelação de uma obra pela expressão do intérprete é como se fosse a condensação, no tempo, de uma das inúmeras possibilidades desse vôo - parece se adaptar às concepções de ABDO (2000) e LIMA (2006), acima mencionadas. De fato, perante a uma mes-ma obra, o músico experiente sabe que, em cada ocasião diferente, ele vai expressar apenas um dos resultados pos-síveis do seu ‘exame dos símbolos’; estes, por sua vez, sen-do constitutivos de um outro pólo orgânico - a obra -, não se encontram na condição de ‘mortos’ para o intérprete. Ao aceitarmos que cada obra e cada intérprete têm as suas idiossincrasias e suas surpresas, somos levados a crer que a apreciação acontece num processo de interação, no qual as experiências de vida e com a música, incorporadas pelo ouvinte, definem os níveis de impacto desta relação.6

No ato da criação, as experiências e os sentimentos tam-bém se interligam; quem escreve a música, ao mesmo tempo a está submetendo à sua própria apreciação. O julgamento crítico do compositor parece buscar uma mo-dalidade de interação entre as paisagens do seu mundo interior e do mundo exterior. Por sua vez, o intérprete co-loca-se diante da peça entregando à sua execução, além do seu conhecimento, a intensidade do seu sentimento, para estabelecer laços individuais profundos. Este tipo de comprometimento é, simultaneamente, uma ajuda, tanto na comunicação da obra para o seu ouvinte, quanto na sua própria apreciação musical.

Nas narrativas de dois grandes pianistas brasileiros, de re-nome e carreiras internacionais, há revelações sobre suas sensações pessoais diante do ato da interpretação mu-sical e suas variáveis temporais e afetivas, sobre o ritual diante de uma platéia e sobre a escuta da obra musical, após a gravação em estúdio. Há alguns anos, ouvimos Ar-naldo Cohen em entrevista concedida a uma rede de tele-

visão. Na ocasião, ele fez uma descrição instigante sobre a situação de um pianista que sobe ao palco para uma apresentação pública. Para o pianista, o momento é único e de tal delicadeza e profundidade que, nessas oportuni-dades ele próprio se sentia como que ‘despido diante da platéia’. Cohen concluiu a sua análise comparando a vul-nerabilidade do artista, naquela fração de tempo em que acontece a performance, com uma espécie de ‘strip-tease emocional’ feito pelo pianista, que se mostra sem véus diante das pessoas, através da música. Nelson Freire, em entrevista a uma emissora de rádio, explicou o incômodo que sempre sentia ao ouvir suas próprias gravações. Em sua opinião, a gravação era apenas uma forma de con-gelar no tempo uma versão que ele havia realizado de alguma música, em dado momento. Pela sua experiência, quando ouvia alguma peça que havia gravado, sentia-se incomodado com a constante autocrítica e a constatação de que não tocaria uma ou outra passagem da mesma forma, em outra performance. Na ocasião da entrevis-ta, ele havia lançado um CD recentemente e disse, para exemplificar a sua particularidade, que não havia tomado a iniciativa de ouvi-lo, por falta de interesse. Entretanto, explicou que, alguns dias antes daquela conversa, havia se confrontado (não intencionalmente) com o trabalho, ao ouvir pelo rádio uma programação musical enquanto dirigia o seu carro. Foi quando, de repente, reconheceu uma faixa da sua gravação e disse para si mesmo: “Ih!! Sou eu...” Com bom humor, relatou ao entrevistador que ele “até ficou ouvindo assim, meio de lado”...

Em geral, os músicos em suas avaliações e conversas, falam com entusiasmo sobre a experiência que a músi-ca pode representar para cada um e sobre as respostas pessoais que lhe são dadas. SWANWICK (1979) enfati-za, entretanto, que não há como construir uma relação concreta entre uma melodia, por mais simples que seja, com algo que lhe seja equivalente, ou com qualquer acontecimento extrínseco. Os músicos, ao que parece, concordam com esta afirmação do professor e vemos aí a confirmação de que, como nas artes plásticas não figurativas, o significante sonoro não possui um signi-ficado lógico ou universal. Nas palavras de Swanwick, falar sobre música “como se ela fosse uma coisa simples e única é correr o risco de subestimar sua força potencial e infinita variedade”. O tratamento da linguagem musi-cal, em qualquer tipo de atividade, “requer habilidade para responder e se relacionar intimamente com o ob-jeto musical como entidade estética. Isso se assemelha com um estado de contemplação” (SWANWICK, 1979, p.42-43). Adverte o autor que a concentração e o com-prometimento do músico requerem a ‘exclusão virtual’ de tudo o que está à sua volta. Realmente, quando es-tamos inteiramente absorvidos, entregues, somos trans-formados pela experiência. Neste ponto, novamente nos deparamos com um estado de contemplação, ao qual fomos levados pela nossa vontade e pela simpatia, com a ‘conquista de zonas mais profundas’ - segundo o ma-estro Magnani -, ou com a ação da ‘mão do superior incógnito’ - de acordo com F. Pessoa.

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Quando Swanwick apresenta sua base para a educação musical, usa o mnemônico C(L)A(S)P para estabelecer re-ferências às atividades de criação (C), apreciação (A) e performance (P) na formação musical, amparadas pelos estudos de literatura da música e sobre a música (L) e pela aquisição de habilidades específicas para as práti-cas musicais (S - Skills). Ele esclarece que este modelo é somente uma formulação teórica do que acontece numa boa prática de ensino musical e do que falta, quando o ensino é ruim. Concordamos com o autor quanto à vali-dade da aquisição de habilidades técnicas, dos estudos teóricos e musicológicos, do treinamento auditivo e de leitura. Estes são exemplos de recursos importantes e in-dispensáveis, que devem ser considerados como alguns dos meios através dos quais se dá a formação musical - seja qual for a perspectiva profissional daqueles a quem esta preparação é direcionada. Não devem, entretanto, constituir-se como uma finalidade em si. Esforços con-centrados somente nesses enfoques, tratados de forma desarticulada, caracterizam uma educação musical frag-mentada e restritiva, a qual, não raro, pode conduzir às seguintes situações: a interpretação que não envolve o público, que, por sua vez, não percebe o envolvimento do intérprete; a composição que, mesmo bem estrutura-da, não alcança a comunicabilidade; a escuta superficial, sem impacto significativo. Em outros termos, a ‘soma’ da erudição, com acúmulo de habilidades e de informações sobre música, ou a ‘síntese’, processada no domínio de certos aspectos históricos e culturais, não significam, tanto em Swanwick, como em Pessoa e Magnani, o al-cance da expressão humana através da linguagem artís-tica e a vivência profunda do prazer estético.

Para a interseção entre as paisagens interior e exterior, descritas por Pessoa, não basta a inteligência, discursiva ou analógica, que pode se manifestar na contextualização histórica da obra, na análise musical minuciosa e descri-tiva, na técnica primorosa de execução instrumental ou de escrita composicional. No nosso ponto de vista, para a exploração do universo criativo do indivíduo e expan-são do seu potencial expressivo, a inteligência deve atuar com o suporte de um conjunto de condições, tais como: o amor pela arte, a intuição, o prazer das descobertas, a liberdade de escolhas, a conquista de zonas mais sensí-veis, ou experiência em estados de contemplação. Sem estas condições, o intérprete, o ouvinte e o compositor continuarão distantes dos símbolos e estes, apartados deles; o entendimento pleno e individual não terá como desabrochar. É pouco provável que experiências isoladas na formação musical resultem em um comprometimento pessoal, pois elas não se integram e nem se iluminam. Assim, habilidades técnicas adquiridas e confinadas em certos tipos de adestramentos, servem, a nosso ver, ape-nas para a realização de reproduções musicais impesso-ais, padronizadas e inexpressivas.

Encontramos em Rubem Alves reiteradas críticas ao culto dos meios, em detrimento das finalidades, prin-cipalmente com relação à educação formal. Ele revela

suas preocupações quanto à valorização exacerbada da aquisição de saberes, que resvala para o culto ao adestramento dos alunos, sem a construção de um gosto refinado pela descoberta, ou pela criação de sabores. No seu entendimento, a inteligência é a nos-sa capacidade de conhecer e manipular o mundo, por isto, tem a ver com aquisição do poder. Por outro lado, a sabedoria tem a ver com a felicidade, pois “é a graça de saborear o mundo” (ALVES, 1997, p.53). Revemos em Alves a opinião de que inteligência nos fornece os meios importantes, mas é a sabedoria que nos dá motivação para viver. Ele compara o cérebro a uma caixa de ferramentas e conclui que a inteligên-cia não corresponde à posse de um arsenal destas, mas à capacidade de andar leve, carregando apenas algumas, escolhidas segundo a necessidade de cada situação. O que importa é saber como procurar e onde encontrar aquelas que, eventualmente, vierem a faltar (ALVES, 2002, p.183). Vimos que, também no seu entendimento, significados específicos alcança-dos pela inteligência, que podem ser explícitos em outras formas de comunicação, não são prioridades no mundo da arte. Ao discorrer sobre suas repetidas experiências como apreciador musical e na condição de profundo amante da música, ele apresenta con-ceitos tais como “A beleza não precisa do sentido. Ela salva sem nada dizer” (ALVES, 1997, p.72). Nesta descrição poética percebe-se uma afinidade implícita com os autores anteriormente mencionados, quando ele confere à experiência musical, ou à experiência com qualquer outra forma de arte, um valor huma-nístico revelado em estados de interiorização sensí-vel, de maior proximidade com o insondável. Alves enfatiza o poder da música, transitando, com liber-dade e metáforas, em outras dimensões: “Deus não está na letra. Está na música. Ou ainda: “(...) o repicar dos sinos (...) é um altar construído com sons. Os sinos fariam o corpo se lembrar de Deus mais que muitos sermões” (ALVES, 1997, p.73-74).

Retornamos a Swanwick, focalizando a educação musical e à procura de ressonâncias entre suas concepções e as dos demais autores e músicos aos quais estamos nos refe-rindo. Quando analisamos o Modelo Espiral de Swanwick e Tillman, vemos o desenvolvimento musical - para a per-formance, a criação e a apreciação - experimentado num processo evolutivo e circular, em que são agregados pa-tamares diferentes das condições desabrochadas.7 Neste Modelo, as dimensões cumulativas do discurso musical são quatro: os Materiais, o Caráter Expressivo, a Forma e o Valor, sendo cada uma delas um estágio de desen-volvimento. As mudanças entre os estágios se amparam na intuição e na aquisição das capacidades analíticas, construídas num processo evolutivo, com a interação das tendências assimilativas e acomodativas. Cada um dos quatro estágios tem dois níveis, o primeiro deles no lado esquerdo - assimilação, intuição, jogo espontâneo, moti-vação interna -, e o segundo, no lado direito - acomoda-ção, análise, imitação, adaptação ao social.

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Acatamos o fato de que, aquilo que desabrocha, já está internalizado e, num estágio ulterior, passa a ser expres-so, ou revelado, desde que haja condições e estímulos para que isto ocorra. A mudança de patamares neste processo evolutivo e circular se dá através dos impul-sos possibilitados pela intuição e pela simpatia. Através do interesse, da motivação - ou simpatia pelo símbolo, segundo Pessoa -, há como se explorar os materiais nos níveis sensorial e manipulativo: é possível viver o as-pecto lúdico e ter o prazer inicial. É esta experiência que favorece a inclinação pessoal para interligar sons, fazer imitações ou variações; ela estimula a inteligência (“intus legere”) para que o principiante comece a lidar com uma dimensão analítica. A inteligência musical, sempre presente, será necessária no controle dos sons e concatenação das ideias e para a aquisição do caráter expressivo. A espontaneidade da expressão individual nasce da intuição e da simpatia pela atividade, que, am-paradas pela inteligência, conduzem ao amadurecimen-to, galgado em etapas. Nesse percurso, são atingidos graus diferenciados ou no emprego, ou na libertação, paulatina, das convenções e estereótipos. Para a cons-trução de uma forma de comunicação individual, com sua dimensão afetiva, os esquemas pré-existentes serão revisitados no estabelecimento dos processos de assi-milação e acomodação do desenvolvimento musical, em sua dimensão cognitiva.

A compreensão é uma qualidade fundamental, quando se lida com as dimensões formal e simbólica da música.8 As especulações e os traços idiomáticos, expostos no emprego criativo da linguagem, correspondem à assi-milação de convenções, em um campo de imaginação onde já se desenham paisagens interiores. Novas rela-ções são construídas (relacionando no alto, de acordo com o que está relacionado em baixo, segundo Pessoa) e as surpresas (e individualidades) podem integrar-se em estruturas mais complexas. Na nossa percepção, este processo depende da capacidade de compreender, porque ele é mais que somar ou sintetizar. Requer, por-tanto, para cada estágio de desenvolvimento musical, o amadurecimento, a vivência, e incorporação de proces-sos e de valores.

Ainda analisando o Modelo Espiral, concordamos que é perceptível a conquista de um valor simbólico, impor-tante para a pessoa ou para a coletividade, quando são extrapolados certos padrões e patamares pré-determi-nados. Para atingir essa liberdade e a personalidade na interpretação musical, parecem-nos também requisitos fundamentais o impulso do espírito, o desejo de supe-ração e a capacidade de ultrapassar superficialidades. Também nesta análise do Modelo Espiral, somos levados a agregar os conceitos dos nossos outros dois principais interlocutores, o maestro Magnani e o poeta Fernando Pessoa. Tentando trazê-los novamente para este diálogo atemporal, parece ser viável entender cada etapa viven-ciada na arte musical como vitória da sensibilidade, ou momento de graça.

Como uma decorrência das inúmeras variáveis, qua-litativas e quantitativas, justapostas às individuais e interpessoais, a particularidade da avaliação de de-sempenho musical dos alunos com base no Modelo Es-piral não é a aferição exata do seu patamar de desen-volvimento, através de suas manifestações musicais. Por isto, nos deparamos com as aproximações, quando analisamos os resultados produzidos por diferentes avaliadores, mesmo que atuem em número reduzido, a partir do mesmo material. Isto nos confirma que o olhar humano voltado às atividades humanas tem, felizmente, a propriedade de ressaltar as diferenças e não enrijecer as categorizações. Isto não significa, entretanto, que os modelos de avaliação nos sejam prescindíveis. Na verdade, eles são produtos de olhares minuciosos e criteriosos, registrados em organizações tão maleáveis quanto abrangentes. Na variedade de julgamentos encontra-se a oportunidade de interseção entre diversas paisagens pessoais, expostas num meio exterior. Este processo é comparável ao que ocorre quando, após percorrermos em conjunto um mesmo caminho, ao final do percurso, teremos captado e guar-dado como relevantes aspectos diferentes, de acordo com a influência destes em nossa mente e a resposta da nossa sensibilidade individual. O que não existia no roteiro não poderá, de fato, ser descrito, mas, as cores e a intensidade com que faremos as nossas descrições pessoais - ou os eventos que escolheremos para tal - demonstrarão a riqueza humana na variedade implícita das nossas percepções.

Julgamos, finalmente, ser possível inferir do Modelo Espi-ral que, mesmo nos estágios primários da pura exploração sensorial por parte dos iniciantes - ou, mais adiante, quan-do já são perceptíveis pequenos motivos musicais ou frases organizadas em estruturas simples -, a simpatia pela ativi-dade e o prazer encontrado no entrelaçamento dos sons já significam, numa avaliação estritamente contextual, for-mas superiores de expressão pessoal. Isto porque, aquele indivíduo, de qualquer idade, que se entrega ao exame ou à exploração dos símbolos e dos rituais simbólicos musicais, não o faz à procura de um significado específico, através de habilidades e códigos já assimilados, mas sim, em busca de uma possibilidade para expressar o seu eu, de revelar as suas paisagens interiores num meio exterior. Essa poderia ser, na visão poética do nosso primeiro interlocutor, uma forma elevada de manter a conversa íntima com o Superior Incógnito, que habita em cada um de nós.

3 - Concepções de músicos professores e as qualidades preconizadas por Pessoa Em entrevista, o pianista e professor Michel BLOCK,9 belga naturalizado americano, faz alusão ao que apren-deu sobre a cultura de Camarões, com um amigo africa-no natural daquele país. Na oportunidade, Block discor-re sobre a importância social e cultural que aquele povo atribui ao talento de “alguém que é capaz de transmitir do intangível para o tangível”, quando toca um instru-

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mento. Segundo as referências do professor, é preciso esclarecer que para a cultura de Camarões a atividade dos músicos é muito importante, já que a música existe para ser vivida ou sentida e não apenas ouvida. Sobre-tudo, ela é uma necessidade humana e, portanto, deve ser um valor compartilhado. A partir da análise desses valores e das próprias experiências como músico e como professor, o pianista apresenta a sua concepção de que o talento musical é “uma identificação natural com a própria linguagem da música e com os blocos constru-tivos desta linguagem”. A estas ponderações pode ser acrescida outra dimensão que o compositor Arthur Ho-negger oferece quando se refere ao talento: “É preciso que se tenha a coragem de recomeçar três, quatro, cinco vezes. Esta foi a definição que, respondendo a uma en-quete, eu dei sobre o talento: A Coragem de Recomeçar” (Honegger, in RAPIN, J.J.,1980, v.1, p.6)

Para a identificação natural entre o sujeito e a música, apontada por Block, acreditamos na existência de con-dições favoráveis, comumente encontradas nos perfis dos músicos que se destacam. Dentre elas ressaltamos a aptidão mental - revelada em características pessoais como, por exemplo, inteligência, intuição, sensibilidade, expressividade, curiosidade, concentração, flexibilida-de e disciplina - e uma qualidade de aptidão, ou pré-disposição física, que necessita do trabalho direcionado ao bom aproveitamento de características anatômicas e motoras. Entretanto, por julgarmos não ser esta uma questão objetiva, tampouco imprescindível, não é nossa intenção fazer um inventário de habilidades, tendências ou condições pessoais inerentes ao talento. Por este motivo, parece-nos interessante, dentre outras, a pos-sibilidade de entendermos o talento musical como uma capacidade diferenciada de viver, sentir e compartilhar a música, adotando-se um significado semelhante ao que essas ações têm na cultura africana mencionada pelo professor Block. Entendemos, por consequência, que abordagens pedagógicas talentosas visam estimular os indivíduos para que persistam - ou recomecem várias vezes, de acordo com Honegger - no desenvolvimento das suas distintas capacidades.

O pianista e professor austríaco Artur SCHNABEL (1988), ao discorrer sobre o mundo da música, menciona os mistérios intrínsecos da atração ou da indiferença, que a mesma obra pode causar nas pessoas. Ele próprio ar-gumenta que não consegue enxergar a razão pela qual deveria produzir sons sem nenhuma participação inte-rior neles. Com muita propriedade, estende o assunto e correlaciona estas observações com as práticas peda-gógicas dos professores, ponderando que, mesmo neste campo, “devido à impressionante variedade nas dispo-sições de musicistas, a unidade de julgamento não pode jamais ser esperada” (p.128). Schnabel acredita que um bom músico deve ser capaz de julgar se o resultado da sua interpretação corresponde, realmente, ao que de-seja. Isto depende do seu talento, em cada fase do de-senvolvimento. Quaisquer que sejam os seus talentos,

o músico deve fazer tudo para alcançar o máximo de suas capacidades pessoais, o que requer mais um dom (p.133). Referindo-se ao seu professor polonês Lesche-tizky, Schnabel faz comentários sobre a sua experiên-cia pessoal no período de estudos, valorizando o que aprendeu com seu mestre e reconhecendo a influência marcante deste em sua vida. Ao ser perguntado sobre o método utilizado por Leschetzky, foi enfático ao desta-car uma importante característica de trabalho do seu professor, respondendo:

Não houve um método. Seu ensinamento era muito mais que um método. Era uma corrente que pro-curava libertar a vitalidade latente em cada estu-dante. Era direcionado à imaginação, ao gosto e à responsabilidade pessoal; não como uma cópia ou um caminho curto para o sucesso. Ele dava aos seus alunos uma tarefa, mas não uma receita (SCHNA-BEL, 1988, p.125).

Esta avaliação demonstra que suas convicções a res-peito do ensino musical não se restringem apenas à mera discussão sobre métodos específicos. O pensa-mento de Schnabel parece apontar mais claramente para a necessidade de reflexão e para a análise de al-guns princípios básicos. Com esta perspectiva, perce-bemos afinidades entre o sentido das manifestações tanto de Schnabel, como as de Block e Honegger, e a concepção de Fernando Pessoa sobre as cinco quali-dades necessárias a um intérprete. Entendemos que professor e aluno, na própria atuação, devem alimen-tar e libertar a vitalidade latente e a imaginação. O gosto e a responsabilidade pessoal são qualidades - e talentos - de quem ensina e de quem aprende, em troca permanente; neste universo não há unanimi-dades confortáveis, caminhos curtos, nem receitas. O cuidado com os pequenos detalhes pode propiciar significativas descobertas musicais, além de ser tam-bém uma atitude válida para o relacionamento entre as pessoas de forma geral e, especificamente, entre o professor e seu aluno. O exame atento das particula-ridades de uma obra favorece a compreensão sobre as relações - nem sempre aparentes - entre os ele-mentos que se articulam no discurso musical. Quando desenvolvemos a nossa percepção da música pode-mos realçar as sutilezas que existem nas entrelinhas deste discurso, seja como intérpretes, compositores ou ouvintes. Partindo desta premissa, acreditamos que o professor de música deve valorizar as diferen-ças e compreender possibilidades e sutilezas do uni-verso musical e também as sutilezas pessoais. Estas são potencialidades que cada indivíduo descobre no seu próprio tempo e à sua maneira. Mantendo ain-da o foco na educação musical, julgamos pertinente incluir a mensagem do poeta Manoel de Barros, na qual percebemos uma espécie de síntese da aborda-gem de ensino que valoriza, em mínimos detalhes, os aspectos objetivos e os subjetivos, os pessoais e os musicais: “É no ínfimo que eu vejo a exuberância”.10

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4 - Considerações finais sobre o ensino da música Entendemos que o ensino da música - desde a musicali-zação até formação acadêmica - é um processo situado no campo das relações humanas; pode ser analisado na perspectiva que o coloca como uma forma de interpreta-ção e validação da vida. Esta perspectiva requer o exame minucioso dos rituais aos quais nos integramos e dos seus significados. Segundo as nossas observações, um bom profissional deve estar preparado para interpretar uma multiplicidade de situações educacionais e institucionais, com o foco nas pessoas, suas distintas personalidades e interações musicais e sociais. Para o exame e a interpre-tação deste conjunto mutável de possibilidades, no qual são apreendidos inúmeros sinais e significados, conside-ramos indispensáveis as cinco qualidades apontadas por Fernando Pessoa, em sua Nota Preliminar, transcrita no início deste texto. As ‘atitudes cautas ou irônicas’ que impedem a interpretação dos símbolos, também afastam o professor da interpretação de sinais sobre as necessi-dades e potencialidades, tanto suas quanto dos alunos. É utilizando conotação similar que Rainer M. Rilke aconse-lha a um poeta principiante: “Busque o âmago das coisas, aonde a ironia nunca desce; e ao sentir-se destarte como que à beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas deriva de uma necessidade do seu ser” (RILKE, 1999, p.28).

Transpondo as condições primordiais aventadas por F. Pessoa para a vivência de quem ensina, diremos que o bom professor deve, prioritariamente, gostar do que faz e manter a esperança ao tentar desvendar, a cada dia, o mistério do outro. É preciso desejar tocá-lo humana-mente, através de um canal de comunicação aberto pela sensibilidade, e construir laços musicais e afetivos. Esta qualidade é a simpatia.

Quem ensina sempre está, ao mesmo tempo, imerso no processo de aprender e, às vezes descobre, subitamen-te, caminhos e correlações que antes não eram perce-bidas. Ficar atento aos pequenos sinais e insistir naquilo que parece estar subentendido são atitudes que podem conduzir à satisfação de soluções convincentes, embora não definitivas. Aquilo que está além do previsível pode ser antevisto pelo professor, com o auxílio da simpatia e através de um olhar perscrutador de quem está envolvido inteiramente no processo. Esta qualidade é a intuição. sUm professor analisa, experimenta, compara e integra métodos, nos quais encontra a sustentabilidade para

os seus princípios e suas premissas. Não é uma tare-fa fácil, se ele não souber interpretar os impactos de suas propostas, na sua prática diária. Mais uma vez, o professor vai precisar do suporte dado pela simpatia e pela intuição. É preciso gostar das mudanças de rumos, de escolher rotas ainda inexploradas e ficar atento às estratégias: construir no ponto mais alto outras relações possíveis, de acordo com o que já está relacionado em-baixo. O bom profissional sabe que ao observar, inter-pretar e reinterpretar resultados - objetivos ou subjeti-vos - as interconexões e analogias suplantam as simples descrições. Isto é saber ler do lado de dentro - “Intus legere” -, ou a qualidade da inteligência.

O tempo e a experiência de um educador parecem im-primir no seu íntimo uma generosa disposição para aco-lher suas convicções e dúvidas, em uma dualidade inte-grada e constante. A soma de informações e vivências, ou a sua síntese sempre em reconstrução, não seriam frutíferas se não fossem maturidade do profissional e as suas impressões pessoais, incorporadas à profundidade dos seus pensamentos. Isto não acontece no ato super-ficial de acumular dados estatísticos e referências, mas em outros domínios, ou, segundo a visão de Rilke, “não talvez no intelecto, que ficará atrás espantado, mas sim na sua mais íntima consciência, que vigia e sabe” (RILKE, 1999, p.37). Esta qualidade é a compreensão.

Chegamos, através do roteiro de Pessoa, a uma espé-cie de clarividência que amplia nossa leitura das coisas do mundo e da arte. Ao olhar para a paisagem exterior, podemos nos sentir como se explicou Mario Quintana, em uma oportunidade, “Eu não tenho paredes. Só tenho horizontes...”11 É bom transpor as paredes ou os limites que se impõem e que, em algumas situações, são cons-truídos por nós mesmos, os professores. Em certos pa-râmetros, estas limitações podem nos acenar com falsas expectativas de segurança. Buscando outra perspectiva, nosso mundo interior pode ser uma fonte inesgotável de paisagens e novos horizontes. Após o rompimen-to de barreiras internas, surge o espaço reservado para encontros e conversações íntimas, em dimensões pesso-ais pouco exploradas. Afinal, nem tudo é exprimível em palavras, e para qualquer músico esta verdade está na essência da sua arte. Segundo Fernando Pessoa, a quinta qualidade é pouco definível, porém, seja qual for a de-nominação que possamos lhe atribuir, acreditamos que a sua ausência significa o empobrecimento das relações humanas e dos rituais simbólicos.

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notas1 Apontamento solto de Fernando Pessoa; s.d.; não assinado; inédito (GALHOZ, 1960)2 Dicionários Aurélio (2ª edição, 1986) e Houaiss (1ª edição, 2001).3 Para E. WILLEMS (1970, p.10 e 68) não são apenas físicos e formais os elementos constitutivos da música, são elemen-

tos de vida de ordem fisiológica, afetiva e mental; tributários de uma síntese viva e, ao mesmo tempo, constitutivos dessa síntese. Os aspectos elevados da afetividade ultrapassam em valor artístico as manifestações da inteligência. Conforme o autor, são elementos afetivos supramentais a intuição (como um princípio de unidade que compreende a sensibilidade e a inteligência) e a inspiração, “na acepção mais nobre do termo”. Embora o intelecto apreenda os seus efeitos, a natureza real da intuição transcende a razão.

4 Em abril de 2007, na programação semanal da série de concertos VivaMúsica da EM UFMG, Vera Guarnieri, viúva de Camargo Guarnieri, fez uma palestra sobre a sua vida e a sua obra. Expôs que, para ele, a criação literária e a musical se equiparavam no esforço para que as intenções ou impulsos criativos, nascidos da imaginação e sem aviso, resultas-sem numa obra de valor, resistente à crítica do próprio criador. Com relatos quase que pictóricos, dada a vivacidade na descrição de detalhes, própria de quem conviveu com o compositor de forma tão próxima, Vera Guarnieri revelou uma faceta muito especial do processo composicional de Guarnieri, o que nos reportou à avaliação de Gardner, sobre o fenômeno ou ato da composição musical. Guarnieri tinha o hábito de se levantar à noite e, depois, não se dar conta claramente do que havia acontecido durante o período em que se ausentava do quarto. No dia seguinte, ele próprio se espantava ao encontrar partituras manuscritas de fragmentos ou até mesmo de peças completas. Por vezes, após comentar que havia sonhado à noite com uma determinada composição (ou paisagem sonora?), ele ficava surpreso diante do seu próprio manuscrito, constatando que não havia sido um sonho. Num exercício de imaginação, podemos supor que este tipo de episódio talvez não surpreendesse o poeta Pessoa, que o atribuiria às possibilidades de um ar-tista - possuidor das cinco qualidades indispensáveis -, inclinado a entabular conversações com certo Anjo da Guarda.

5 A nosso ver, o pensamento de H. J. Koellreutter complementa estas concepções: “A obra musical, assim como toda obra de arte, deveria ser considerada como manifestação do mundo simbólico, do mundo simbólico de um mito. Porque, como este, não é subjetiva nem objetiva, mas sim onijetiva. A palavra onijetivo refere-se a fenômenos que desconhe-cem a divisão rigorosa entre as realidades objetiva e subjetiva. Manifestar-se miticamente significa revelar, simbolizar o real e o irreal, o dito e o não-dito, som e silêncio. É tornar audível o que a alma sente e vive. O mito é afirmação e de-

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poimento. É negação e aprovação. É aceitação e recusa” (KOELLREUTTER,1994, p. 09). 6 H. Koellreutter (1994, p. 09) apresenta uma reflexão sobre a apreciação musical: “o conteúdo de uma obra musical (...) nunca pode ser assimilado pela simples audição, mas sim, somente através da plena participação, da participação ativa e da co-autoria, por assim dizer, do ouvinte.”

6 H. Koellreutter (1994, p. 09) apresenta uma reflexão sobre a apreciação musical: “o conteúdo de uma obra musical (...) nunca pode ser assimilado pela simples audição, mas sim, somente através da plena participação, da participação ativa e da co-autoria, por assim dizer, do ouvinte.”

7 Modelo Espiral de Swanwick e Tillman (1986) foi o resultado de um estudo de 745 composições de 48 crianças entre 03 e 11 anos. Este trabalho durou 04 anos e teve a fundamentação teórica ampliada mais tarde, em 1994, quando Swanwick transformou-o no Modelo Psicológico do Desenvolvimento Musical.

8 Violeta Gainza recomenda que o aluno seja conduzido a viver e compreender a música através da sua prática, par-tindo do que lhe é próximo e familiar em direção ao conhecimento sistematizado (reconhecer e manejar estruturas básicas) e à expressão pessoal. Segundo Gainza, a criação surge naturalmente como produto de um saudável meta-bolismo, quando há a clareza a respeito das estruturas musicais e instrumentais. A autora defende os princípios de que a compreensão - que favorece a performance - traz extraordinária facilidade para a memorização e ainda, que é desejável e positivo incluir no repertório de iniciantes os próprios trabalhos de criação musical (GAINZA, 1977, p. 1 e 7).9 Nossas citações baseiam-se também na tradução do Professor Maurício Veloso (UFMG, 2005), feita a partir do original, não publicado na íntegra, de entrevista concedida por M. Block a Jeffrey WAGNER (1988).

9 Nossas citações baseiam-se também na tradução do Professor Maurício Veloso (UFMG, 2005), feita a partir do origi-nal, não publicado na íntegra, de entrevista concedida por M. Block a Jeffrey WAGNER (1988).

10 Barros M. Livro Sobre Nada. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997; p. 5511 Do livro Ora Bolas - O Humor de Mario Quintana, de Juarez Fonseca (L & PM Pocket, R.S. 2006; p. 17).

Maria Inêz Lucas Machado é Graduada em Piano, Especialista em Educação Musical e Mestre em Estudos das Práticas Musicais, pela Escola de Música da UFMG. Professora com experiência pedagógica e administrativa, inclusive em projetos e cursos diversos de Extensão, exerce atualmente o segundo mandato como Vice-Diretora da Escola de Música da UFMG. Atua em disciplinas do núcleo comum - percepção musical, treinamento auditivo, piano complementar - com ênfase em performance e educação musical. Áreas de interesse, estudos e trabalhos publicados em temas tais como as dinâmicas da formação básica, intermediária e acadêmica em música, a Extensão e a Graduação em Música na Universidade Pública, com diagnósticos a partir da experiência e de opiniões docentes e discentes, além de estudos documentais.