bolivia livro premio funag 2006

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Prmio Amrica do Sul - 2006

Bolvia: de 1952 ao Sculo XXI

FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

Presidente Jeronimo Moscardo

CENTRO DE HISTRIA E DOCUMENTAO DIPLOMTICA

Diretor lvaro da Costa Franco

INSTITUTO DE PESQUISA DE RELAES INTERNACIONAIS

Diretor Carlos Henrique Cardim

A Fundao Alexandre de Gusmo (Funag), instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio publica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira. A Funag tem dois rgos especficos singulares:

Instituto de Pesquisas de Relaes Internacionais (IPRI) tem por objetivo desenvolver e divulgar estudos e pesquisas sobre as relaes internacionais. Com esse propsito: promove a coleta e a sistematizao de documentos relativos ao seu campo de atuao; fomenta o intercmbio cientfico com instituies congneres nacionais, estrangeiras e internacionais, e realiza e promove conferncias, seminrios e congressos na rea de relaes internacionais. Centro de Histria e Documentao Diplomtica (CHDD) cabem-lhe estudos e pesquisas sobre a histria das relaes internacionais e diplomticas do Brasil. Cumpre esse objetivo por meio de: criao e difuso de instrumentos de pesquisas; edio de livros sobre histria diplomtica do Brasil; pesquisas, exposies e seminrios sobre o mesmo tema; publicao do peridico Cadernos do CHDD.Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo, Sala 1 70170-900 Braslia, DF Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847 Fax: (61) 3322 2931, 3411 9125 Site: www.funag.gov.br Instituto de Pesquisas de Relaes Internacionais (IPRI) Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia, DF Telefones: (61) 3411 6786/6800/6816 Fax: (61) 3224 2157 / 3323 4871 E-mail: [email protected] Centro de Histria e Documentao Diplomtica (CHDD) Palcio Itamaraty Avenida Marechal Floriano, 196 Centro 20080-002 Rio de Janeiro, RJ Telefax (21) 2233 2318/2079 E-mail: [email protected]

Prmio Amrica do Sul - 2006

Bolvia: de 1952 ao Sculo XXIA Outra Volta do Bumerangue: Estado, Movimentos Sociais e Recursos Naturais na Bolvia (1952 2006)

Maurcio Santoro RochaBolvia: de 1952 ao Sculo XXI Processos Sociais, Transformaes Polticas

Marcelo Argenta CmaraBolvia: de 1952 ao Sculo XXI Diversas Snteses de uma Revoluo

Alessandro Segabinazzi

Braslia, 2006

FOTO

DA

CAPA: Abrazo. 1986. Oruro.

Oleo-lienzo. 89x70 cm. Coleccin particular. Oruro. Equipe Tcnica Coordenao: ELIANE MIRANDA PAIVA Assistente de Coordenao e Produo: ARAPU DE SOUZA BRITO Programao Visual e Diagramao: PAULO PEDERSOLLI

Bolvia: de 1952 ao sculo XXI / Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo; Insituto de Pesquisa de Relaes Internacionais, 2007. p. 156 (Coleo Amrica do Sul) ISBN 85-7631-069-4 Contedo: A outra volta do bumerangue: estado, movimentos sociais e recursos Naturais na Bolvia(1952-2006) / Maurcio Santoro Rocha Bolvia: de 1952 ao sculo XXI: processos sociais, transformaes polticas / Marcelo Argenta Cmara Bolvia: de 1952 ao sculo XXI: diversas snteses de uma revoluo / Alessandro Segabinazzi. Prmio Amrica do Sul 2006. 1. Bolvia Histria. 2. Bolvia Poltica. 3. Bolvia Condies sociais. 4. Bolvia Condies econmicas. I. Rocha, Mauricio Santoro. A outra volta do bumerangue: estado, movimentos sociais e recursos naturais... II. Cmara, Marcelo Argenta. Bolvia: de 1952 ao sculo XXI: diversas snteses de uma revoluo. IV. Srie. CDU 94 (84) (ed. 1997)

Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo (Funag) Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847/6028 Fax: (61) 3411 9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected] Impresso no Brasil 2007 Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Decreto n 1.825 de 20.12.1907

SumrioPREFCIO - EMBAIXADOR JERONIMO MOSCARDO ............................................... 9 1 PRMIO - MAURCIO SANTORO ROCHAA Outra Volta do Bumerangue: Estado, Movimentos Sociais e Recursos Naturais na Bolvia 1952 2006) ............................................................. 12 1. Introduo .......................................................................................... 12 2. A Revoluo de 1952 .......................................................................... 2.1 Antecedentes ............................................................................ 2.2 Reforma Agrria e Nacionalizao das Minas ................................ 2.3 Corporativismo e Cidadania Tutelada .......................................... 3. As Ditaduras Militares (1964 1982) ................................................... 3.1 O Pacto Militar-Campons .......................................................... 3.2 O Movimento Katarista ............................................................... 3.3 As Mudanas na Explorao do Petrleo ....................................... 16 16 18 21 22 22 23 25

4. Redemocratizao sob o signo da Desrevoluo (1982 2000) ............ 28 4.1 A Nova Poltica Econmica ......................................................... 28 4.2 As Disputas Partidrias ............................................................. 31 4.3 A Ascenso dos Movimentos Sociais: cocaleiros e ayllus .................. 33 5. Crise de Hegemonia (2000 2006) ...................................................... 5.1 A Guerra da gua ...................................................................... 5.2 A Guerra do Gs ....................................................................... 5.3 Os Desafios do Governo Evo Morales ........................................... 37 37 39 41

6. Concluso .......................................................................................... 45 7. Glossrio ........................................................................................... 53 8. Referncias Bibliogrficas ................................................................... 59

QUADROSQuadro 1: Ditaduras Militares na Bolvia (1964 1982) .............................. 28 Quadro 2: Hidrocarbonetos e Poltica na Bolvia ....................................... 44 Quadro 3: A Luta pelos Recursos Naturais na Bolvia ................................ 47

2 PRMIO - MARCELO ARGENTA CMARABolvia: de 1952 ao Sculo XXI Processos Sociais, Transformaes Polticas ................................................................................................. 65 Introduo .............................................................................................. 65 O que levou o indgena, ento, a votar no indgena? ................................... 67 O Pas e o Perodo ................................................................................ 68 A organizao do espao latino-americano: o processo de colonizao ........ 71 Independncia e Neocolonialismo ............................................................ 74 A rosca: em busca das origens da Guerra do Chaco ............................... 77 A Guerra do Chaco e as razes do nacionalismo boliviano .......................... 79 A Revoluo de 1952 Revoluo e Poder ............................................... 83 Polticas do governo do MNR .................................................................. 85 Transio: Ditaduras e Redemocratizao ............................................... 88 A formao social abigarrada uma anlise sociolgica da questo boliviana .................................................................................... 91 Transfiguraes da poltica o retorno do indgena ................................... 94 Perspectivas ........................................................................................... 98 Referncias Bibliogrficas ........................................................................ 103

3 PRMIO - ALESSANDRO SEGABINAZZISummary ............................................................................................... 107 Resumo ................................................................................................. 109 Bolvia de 1952 ao Sculo XXI: Diversas Snteses de uma Revoluo ......... 111 Preldio Revolucionrio ........................................................................... 117 A Revoluo Nacionalista de 1952 .......................................................... 124 O Retorno dos Militares .......................................................................... 132 O Perodo Democrtico ........................................................................... 141 Consideraes Finais .............................................................................. 149 Referncias ............................................................................................ 153

Prefcio

Prefcio

Com vistas a estimular a reflexo e a pesquisa sobre questes do continente sul-americano e fortalecer os vnculos da comunidade acadmica com o processo de integrao regional, a Fundao Alexandre de Gusmo (FUNAG) instituiu em 2005 o Prmio Amrica do Sul. Trata-se de um prmio anual, destinado aos autores de trs monografias selecionadas por uma Banca Julgadora formada por reconhecidos profissionais do campo das relaes internacionais. Os resultados alcanados na primeira edio do Prmio Amrica do Sul foram auspiciosos. As trs monografias premiadas representaram uma valiosa contribuio reflexo sobre o processo de integrao sul-americana, tema prioritrio da poltica externa brasileira. Em sua segunda edio, o prmio teve como tema Bolvia: de 1952 ao Sculo XXI. Reconheceu-se, dessa forma, a importncia de aprofundar os conhecimentos no Brasil acerca da realidade poltica, econmica e social de um pas vizinho e amigo, sobretudo num momento em que o relacionamento com a Bolvia tem merecido especial ateno tanto por parte dos formuladores da poltica externa brasileira como da opinio pblica nacional. A Banca Julgadora , formada pelos Professores Paulo Vizentini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS), Tullo Vigevani (Universidade Estadual de Campinas UNESP) e Carlos Henrique Cardim (Presidente do Instituto de Pesquisa em Relaes Internacionais IPRI), examinou diversas monografias de alta qualidade e decidiu atribuir o Prmio Amrica do Sul de 2006 a:9

PREFCIO - EMBAIXADOR JERONIMO MOSCARDO

1. Lugar - Maurcio Santoro Rocha

A Outra Volta do Bumerangue: Estado, Movimentos Sociais e Recursos Naturais na Bolvia (1952-2006) Prmio: R$15 mil2. Lugar- Marcelo Argenta Cmara

Bolvia: de 1952 ao Sculo XXI Processos Sociais, Transformaes Polticas Prmio: R$10 mil3. Lugar- Alessandro Segabinazzi

Bolvia: de 1952 ao Sculo XXI Diversas Snteses de uma Revoluo Prmio R$5 mil Ao reunir neste volume os textos premiados em 2006, a FUNAG espera, ao mesmo tempo, oferecer novos subsdios para os estudos no Brasil sobre a Bolvia e encorajar Mestres e Doutores de todo o pas a contriburem com suas prprias reflexes sobre a realidade da Amrica do Sul.

Jeronimo Moscardo Embaixador - Presidente da Fundao Alexandre de Gusmo - FUNAG

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1 Prmio Maurcio Santoro Rocha

A Outra Volta do Bumerangue: Estado, Movimentos Sociais e Recursos Naturais na Bolvia (1952 2006)

A outra volta do bumerangue: estado, movimentos sociais e recursos naturais na Bolvia (1952 2006)Maurcio Santoro Rocha* 1 - Introduo O objetivo deste trabalho analisar os ciclos polticos da histria contempornea da Bolvia em funo das disputas pelo controle dos recursos naturais do pas. Da Revoluo de 1952 nacionalizao do petrleo e do gs promovida pelo governo Evo Morales, o centro dos conflitos pelo poder boliviano so exatamente as riquezas como terra, minrios, hidrocarbonetos, coca, gua. Os principais atores envolvidos so o Estado, os partidos polticos, os militares, os movimentos sociais e as empresas transnacionais. Toda mudana de ciclo poltico leva ao reordenamento dessas foras e a novas regras para a explorao dos recursos naturais. Desde a colonizao espanhola, a Bolvia clebre por sua abundncia de riquezas. A prata foi o centro da economia at o fim do sculo XIX, quando foi substituda pelo estanho, que predominou com altos e baixos at a dcada de 1980. Os hidrocarbonetos comearam a se tornar importantes na dcada de 1930 e o gsMaurcio Santoro Rocha pesquisador do Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas e professor da Ps-Graduao em Relaes Internacionais da Universidade Cndido Mendes. Formou-se em jornalismo pela UFRJ e fez o Mestrado em Cincia Poltica pelo IUPERJ, onde cursa o doutorado. Trabalha em projetos de cooperao social em vrios pases da Amrica do Sul e da frica.

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MAURCIO SANTORO ROCHA

transformou-se no eixo econmico nacional a partir dos anos 90. O cultivo de coca tradicional na Bolvia h milnios, mas o surgimento da indstria da cocana, na dcada de 1970, originou lucrativo plantio para abastecer os mercados norte-americano e europeu, causando sria tenso por causa do envolvimento das redes do crime organizado, que criam problemas para a poltica externa boliviana, sobretudo nas relaes com os Estados Unidos. Apesar disso, o agronegcio tem prosperado, em especial a soja, nas provncias orientais. A economia da Bolvia , e sempre foi, do tipo primrioexportadora, com o setor mais dinmico e importante dominado por poucos produtos minerais e agrcolas. Ao longo de quase duzentos anos de vida independente, o pas experimentou diversos tipos de regimes polticos, mas nenhum alcanou o desenvolvimento econmico e a incluso social da populao. Embora a economia e a sociedade tenham-se modernizado bastante ao longo do perodo abordado neste estudo, o pas o mais pobre da Amrica do Sul. O ndice de Desenvolvimento Humano comparvel ao das naes da frica Subsaariana. As pssimas condies sociais do pas e a disputa pelos recursos naturais so inseparveis da questo indgena, a luta pelo reconhecimento da cultura dos povos originrios como os quchuas, aymaras e guaranis preferem chamar a si mesmos , que formam cerca de 60% da populao. A identidade destes povos foi reprimida mesmo pela Revoluo de 1952, mas tornou-se um dos pilares da agenda nacional aps a redemocratizao. Os recursos naturais tambm esto no centro da agenda diplomtica que torna a Bolvia fundamental para a poltica externa brasileira na Amrica do Sul. O gs boliviano responsvel pelo abastecimento de cerca de 50% do parque industrial do Brasil, em especial no Estado de So Paulo. As reservas de gs recm-descobertas nas bacias de Campos e de Santos oferecem possibilidade de diminuir o quadro de dependncia, mas esto localizados em guas profundas,14

A OUTRA VOLTA DO BUMERANGUE: ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E RECURSOS

de explorao difcil e cara, que s deve se tornar vivel em alguns anos. Alm disso, a Bolvia o lar de cerca de duzentos mil brasileiros, a maioria dedicada ao plantio da soja nas provncias orientais. As disputas em torno da reforma agrria e do modelo de desenvolvimento agrcola tm sido elemento importante da poltica boliviana nos ltimos cinqenta anos, e podem afetar esse grupo. Outro elemento que liga os dois pases o trfico de cocana. A Bolvia um dos maiores produtores mundiais da droga, ao lado da Colmbia e do Peru. Os conflitos sobre o plantio da coca envolvem as redes transnacionais do crime organizado, que so a principal ameaa para a segurana pblica brasileira. A questo tambm preocupa por envolver os Estados Unidos em polticas de militarizao, em uma zona rica em recursos naturais, e estratgica para o Brasil. Por fim, a Bolvia ocupa posio central no tabuleiro geopoltico da Amrica do Sul, participando dos sistemas do Prata, dos Andes e da Amaznia. No toa que o pas esteve na mira dos arquitetos de grandes transformaes continentais, de Simn Bolvar a Ernesto Guevara. Uma Bolvia estvel, prspera e pacfica essencial ao projeto de integrao sul-americana e aos interesses da poltica externa brasileira na regio. Para alcanar esses objetivos, preciso entender as lutas polticas que ocorreram no pas, tomando como marco inicial a Revoluo de 1952, tema da prxima seo, que analisa as principais medidas do perodo, como a nacionalizao das minas e a reforma agrria, destacando os avanos e as limitaes do modelo poltico corporativo estabelecido pelo Movimento Nacionalista Revolucionrio. A terceira seo examina os ciclos das ditaduras militares bolivianas (1964 1982), com nfase na questo agrria e na explorao petrolfera. A relao com a populao rural foi marcada, no primeiro momento, pelo estabelecimento do Pacto MilitarCampons, do governo Ren Barrientos, mas esse precrio arranjo15

MAURCIO SANTORO ROCHA

desmoronou com os massacres durante o regime do general Hugo Banzer. O autoritarismo do Estado boliviano foi desafiado pelo nascente Movimento Katarista, que mesclava luta sindical agrria com a demanda pelo reconhecimento da identidade indgena, o que, desde ento, a marca da mobilizao social naquele pas. O petrleo tambm foi epicentro de combates polticos, com as regras do setor oscilando entre nacionalizao e estmulo ao investimento estrangeiro. O retorno democracia nos anos 1980 o tema da seo 4. O processo foi marcado pela adoo da Nova Poltica Econmica, de inspirao neoliberal, com a privatizao das minas de estanho e a abertura comercial que prejudicou os pequenos agricultores. O cultivo da coca aumentou exponencialmente, sendo alvo de represso militar. O movimento cocaleiro surgiu do enfrentamento dessa poltica, no contexto de outras lutas sociais que tambm valorizavam as tradies indgenas, como a mobilizao dos ayllus. O gs tornou-se o principal produto da economia, sobretudo aps a construo do gasoduto BrasilBolvia. A quinta seo aborda a crise de hegemonia do sistema poltico boliviano, cujos elementos centrais so o descolamento entre os partidos e a sociedade, que culmina em diversos enfrentamentos em torno ao controle da gua e do gs, em padro de conflitos violentos. Ao fim, um indgena eleito presidente e d voz s demandas populares, nacionalizando o gs natural. Mas que perspectivas seu governo tem de ser bem-sucedido onde tantos outros falharam, em um quadro de instabilidade, fragmentao e tenses?2. A Revoluo de 19522.1 Antecedentes

A Revoluo de 1952 foi um dos mais importantes processos de mudana social ocorridos na Amrica Latina, comparvel queles que aconteceram no Mxico e em Cuba. O movimento boliviano16

A OUTRA VOLTA DO BUMERANGUE: ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E RECURSOS

realizou ampla reforma agrria, acabou com as formas servis de trabalho indgena (como o pongueaje, a prestao gratuita de servios aos proprietrios de terra), estabeleceu o sufrgio universal, impulsionou a educao e promoveu o desenvolvimento econmico pela ao de empresas estatais na rea de minerao e energia. O regime falhou, contudo, em consolidar a democracia, implantando um modelo de cidadania corporativa que degenerou em relaes clientelistas e autoritrias da sociedade com o Estado. Os antecedentes da revoluo esto na grande depresso dos anos 30, que abalou a economia, dependente da exportao do estanho. A crise foi agravada pela deciso desastrosa do governo em ir guerra com o Paraguai pelo controle do Chaco Boreal, regio contestada pelos dois pases, onde se supunha (erradamente) haver grandes reservas petrolferas. A Bolvia perdeu o conflito, que durou de 1932 a 1935. O mau desempenho do Exrcito e as dificuldades de transporte e abastecimento das tropas foram o estopim para intensas discusses sobre os problemas sociais do pas:A nova gerao desiludida do Chaco intensificou, a partir de ento, um debate nacional expresso amplamente na literatura da poca sobre temas fundamentais, postergados pela emergncia da guerra: a explorao de recursos naturais (minerais, petrleo, borracha), a extrema dependncia econmica a que o pas estava sujeito diante da variao dos preos internacionais e das grandes mineradoras privadas, a desigualdade na distribuio de terras (causadora de tanta violncia nas reas rurais) e a situao dilacerante das maiorias indgenas submetidas ao pongueaje e dos setores operrios e mineiros. (Arze, 1999: 58).

A guerra do Chaco no criara tais problemas, mas o conflito funcionou como um catalisador, expondo as contradies sociais bolivianas e provocando crise de legitimidade da elite poltica, a17

MAURCIO SANTORO ROCHA

oligarquia do estanho de La Paz e os grandes proprietrios rurais do Altiplano. Nesse contexto, ganhou fora o nacionalismo econmico e a mobilizao poltica dos militares por intermdio das associaes de ex-combatentes. Elas foram a base para golpes dados por majores e coronis, que ocuparam o governo por diversos anos at a revoluo. A empresa petrolfera dos EUA Standard Oil teve seus ativos na Bolvia nacionalizados no governo militar de David Toro (1936), sob acusao de que a companhia havia ajudado o Paraguai na guerra. Para atuar em seu lugar, foi criada a estatal Yacimientos Petrolferos Fiscales Bolivianos (YPFB), que tem, desde ento, papel importante na economia do pas. Os primeiros executivos e tcnicos foram formados em estgios e parcerias com a YPF da Argentina e a Pemex do Mxico, seus grandes modelos e inspiraes. Em 1938, firmou-se acordo com o Brasil, criando uma comisso mista para explorar o petrleo boliviano, mas a cooperao no chegou a se concretizar na prtica. A efervescncia poltica provocada pela guerra teve impacto decisivo nas classes mdias urbanas e em setores mais organizados dos trabalhadores, como mineiros e operrios industriais. Estes grupos fundaram em 1941 o Movimento Nacionalista Revolucionrio (MNR), sob liderana dos intelectuais Victor Paz Estenssoro e Hernn Siles Zuazo, e do lder sindical Juan Lechn. O MNR apoiou o golpe militar de Gualberto Villaroel, que permaneceu brevemente no poder em 1943 e 1944. O Movimento chegou presidncia mediante outra insurreio armada, em abril de 1952, que encerrou um perodo de seis anos de governos conservadores. Paz Estenssoro assumiu a presidncia em dois mandatos (1952 1956 e 1960 1964) e Siles Zuazo, em um (1956 1960).2.2 Reforma Agrria e Nacionalizao das Minas

Na clebre definio da sociloga Slvia Rivera, os membros do MNR eram jacobinos sem burguesia e os primos pobres da oligarquia que:18

A OUTRA VOLTA DO BUMERANGUE: ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E RECURSOS

[se sentiam] portadores da misso histrica de converter-se em uma ativa e progressista burguesia nacional capaz de consumar, por fim, o desenvolvimento capitalista do pas. Assim esses jovens profissionais criollos terminaram impondo um rumo burgus a um movimento onde todos tinham participado, menos a burguesia. (Rivera, 1986: 79).

No que toca aos recursos naturais, as aes mais importantes do governo revolucionrio foram a nacionalizao das minas de estanho e a ampla reforma agrria. O estanho passava por dificuldades desde a dcada de 1920, que levaram oligopolizao do setor. Os proprietrios de mdio porte faliram ou venderam seus negcios para um punhado de magnatas conhecidos como bares do estanho, como a famlia Patio. As empresas estrangeiras, principalmente dos EUA, tambm entraram com fora no mercado boliviano. O contraponto do processo de concentrao de capital foi o aumento da organizao sindical, com a fundao, pouco antes da revoluo, da Central Operria Boliviana (COB), um dos atores mais importantes da poltica boliviana desde ento. Para gerir as minas nacionalizadas, o governo criou a estatal Corporao Mineira da Bolvia (Comibol), a empresa mais importante do pas, ao lado da YPFB. Nos primeiros anos da revoluo, houve um modelo de co-governo entre o MNR e a COB, pelo qual o poder era compartilhado em questes ligadas minerao e aos temas sociais. Isso tornou possvel COB desenvolver enorme poder de veto contra as polticas governamentais, que transcendeu a queda do MNR e sobreviveu at a transio democrtica. (Mayorga, 1999: 341). Na zona rural, o governo apoiou a formao de milcias camponesas, que ocuparam as grandes propriedades e pressionaram pela reforma agrria, decretada em 1953. Os antecedentes das milcias tambm se encontram na Guerra do Chaco, que mobilizou mais de duzentos mil soldados e os fez sentirem-se parte de uma comunidade poltica mais ampla:19

MAURCIO SANTORO ROCHA

Pela primeira vez, no apenas os mestios e os brancos eram chamados a servir ptria, mas tambm os camponeses das comunidades indgenas e das fazendas. Os recrutas, na maioria do Altiplano e dos vales altos da Bolvia, entraram em um mundo novo... Aprenderam a usar armas e conheceram seus camaradas, gente de outras partes da Bolvia. Pela primeira vez, em particular os camponeses, deram-se conta de que eram parte no apenas de sua pequena comunidade ou vilarejo, mas igualmente de uma nao. (Langer, 1999: 7374).

A Bolvia tinha uma das piores concentraes fundirias da Amrica do Sul, com a propriedade retida nas mos de menos de 5% da populao. Estima-se que a distribuio de terras tenha beneficiado cerca de 1,5 milho de camponeses (Arze, 1999: 62). Alm disso, a abolio do trabalho servil liberou mo-de-obra para produzir para conta prpria, em vez de prestar servios gratuitos aos patres. A maioria dos camponeses era de origem indgena. A elite boliviana, no sculo XIX e na primeira metade do sculo XX, havia lidado com os ndios sob o prisma do darwinismo social, como uma raa inferior que desapareceria pelo contato com os brancos. As leis de segregao eram profundas e envolviam a obrigatoriedade do trabalho servil dos ndios e a proibio de que circulassem pelas ruas principais das cidades. A postura comeou a mudar a partir da Guerra do Chaco. O governo militar de Villaroel chegou a organizar um congresso indgena no prprio palcio presidencial em La Paz. No entanto, o MNR combateu a identidade tnica e reforou valores ligados classe social, o que era visto como modernizao econmica e poltica. Tratou com os ndios, sobretudo, mediante a criao do Ministrio de Assuntos Camponeses e transformou os ayllus, comunidades tradicionais, em sindicatos rurais, o que foi considerado parte de uma estratgia de modernizao poltica e econmica, por meio da fbrica, escola, exrcito:20

A OUTRA VOLTA DO BUMERANGUE: ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E RECURSOS

O pas de ndios governado por senhores devia desaparecer com a revoluo. Os senhores se converteriam em burgueses de mentalidade democrata e progressista e os ndios, em cidados, integrados no slido cimento do mercado interno e da castelhanizao [isto , uso do idioma espanhol e dos hbitos culturais europeus]. O ndio devia desaparecer com a mestiagem, a educao, a migrao aos centros urbanos e o parcelamento das comunidades [...] (Rivera, 1986: 4).

Adiante veremos como esse quadro se transformou a partir dos anos 1970.2.3 Corporativismo e Cidadania Tutelada

A Revoluo de 1952 rompeu com a dominao da oligarquia do estanho e dos proprietrios rurais, mas no substituiu esse regime por uma democracia de massas. O modelo estabelecido pelo MNR foi o da cidadania tutelada. Mais do que a garantia de direitos individuais, tratava-se de um arranjo corporativo entre o Estado e os principais sindicatos (mineiros, operrios, trabalhadores rurais). O apoio poltico ao governo era conquistado por uma combinao de presses e aes clientelistas, como crdito, acesso a alimentos de preos subsidiados, obras de infra-estrutura, escolas e hospitais. O padro semelhante ao que se consolidou no Mxico aps a Revoluo de 1910. Ao contrrio do PRI, o MNR jamais conseguiu controle efetivo sobre o movimento sindical, particularmente no campo. Apesar dos esforos do governo, permaneceu a tenso entre comunidades indgenas e os dirigentes trabalhistas que deveriam organizlas como sindicatos modernos. O conflito mais grave ocorreu na chamada Guerra Champa, na regio de Ucurea. Ali os indgenas se rebelaram em armas contra os dirigentes que deveriam tutel-los, em enfrentamentos que levaram a centenas de mortos entre 1959 e 1964. O MNR tambm enfrentou srias dificuldades econmicas, pois a poca do auge do estanho j havia passado, e o governo tinha21

MAURCIO SANTORO ROCHA

problemas em conseguir fechar as contas e precisou adotar medidas conservadoras do ponto de vista fiscal. A partir de 1960, as dissidncias formaram partidos direita (Partido Revolucionrio Autntico) e esquerda (Partido Revolucionrio da Esquerda Nacional). O segundo governo de Paz Estenssoro foi marcado por conflitos com a COB e com os militares, que tomaram o poder em um golpe em 1964, liderado pelo general Ren Barrientos, que havia conquistado prestgio como o pacificador da Guerra Champa.3. As Ditaduras Militares (1964 1982)3.1 O Pacto Militar-Campons

O general Barrientos era um oficial carismtico e de origem humilde, com grande capacidade de comunicao popular, que falava fluentemente o idioma indgena quchua. Em seu governo (1964 1969), foi arquitetado o Pacto Militar-Campons, tentativa de utilizar o sindicalismo rural para se contrapor s demandas da COB, onde a influncia comunista era forte. O arranjo funcionou razoavelmente sob liderana de Barrientos: A COB ficou isolada e desta maneira a confrontao entre ela e as Foras Armadas tornou-se o eixo de toda a luta poltica at a transio democracia. (Mayorga, 1999: 345). Os mineiros no eram numerosos, mas tinham imensa importncia devido fora econmica do setor. Em 1965, representavam apenas 2,7% da populao economicamente ativa, mas garantiam 94% do valor das exportaes, as quais, por sua vez, respondiam por uma altssima porcentagem do PIB. (Castaeda, 1997: 408). As grandes minas concentravam centenas ou milhares de trabalhadores, em condies durssimas. Desde a Grande Depresso, o setor era muito bem organizando e seu lder Juan Lechn foi um dos mais conhecidos e celebrados lderes da esquerda sul-americana no sculo XX.22

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Durante o governo Barrientos, Ernesto Guevara tentou criar um foco guerrilheiro na remota regio de ankaguasu, na expectativa do apoio dos mineiros e da adeso dos camponeses. O fracasso da iniciativa resultou na morte do revolucionrio. Para alm dos problemas de articulao com o Partido Comunista Boliviano, Guevara escolheu uma rea guarani, etnia que representa menos de 1% da populao do pas e no havia sido to mobilizada politicamente quanto os aymara e os quchua do Altiplano Guevara tambm errou, ao buscar transplantar a experincia da Revoluo Cubana para um contexto muito diferente, no qual o elemento central da tradio de lutas sociais eram os sindicatos, mineiros e rurais, e no a insurreio armada. O abismo que separava sua pregao socialista das expectativas dos guaranis comparvel pergunta que os espantados ndios do sculo XIX faziam aos soldados que lutavam pela independncia da Bolvia: O que a ptria?.3.2 O Movimento Katarista

O Pacto Campons-Militar enfrentou problemas medida que uma nova gerao de lderes sindicais resistiu s interferncias da ditadura. O acordo naufragou durante os massacres do governo de Hugo Banzer (1971 1978). Ao fim do perodo autoritrio, havia surgido na Bolvia um forte movimento contestatrio de base rural, que se expressava no somente em termos de classe social, mas tambm de identidade indgena. Essa corrente conhecida como Movimento Katarista, em homenagem a Tupac Katari, lder da grande insurreio indgena do sculo XVIII. Surgiu a partir de ndios, principalmente da etnia aymara, que migraram para as cidades e fizeram estudos avanados, no nvel do ensino mdio ou da universidade. Foram educados no quadro das expectativas crescentes despertadas pela Revoluo de 1952 e beneficiados pelas oportunidades educacionais que ela criou.23

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Mas as promessas de ascenso social e integrao foram frustradas pela experincia do racismo que enfrentaram no meio urbano e pela manipulao que sofreram dos governos do MNR e das ditaduras militares:Quer dizer que , para esta nova gerao aymara, que recebia cotidianamente o impacto da educao rural, a migrao estacional, a castelhanizao e a incurso no mundo urbano, tornavam mais evidentes os traos paternalistas e manipuladores que prevaleciam no manejo oficial do problema campons. Pode-se dizer que percebiam com maior agudeza as continuidades senhoriais do sistema ideolgico dominante, visto que, apesar de formalmente interpelados como cidados livres e iguais, na prtica eram excludos e marginalizados (salvo como massa de manobra), e ao mesmo tempo impedidos de exercer sua diferena. (Rivera. 1986: 121).

Os pais dos kataristas haviam participado da Revoluo de 1952, mas como camponeses. Qui seus avs houvessem lutado na Guerra do Chaco, mas seus manifestos apontavam outro desejo: Reduziram-nos a camponeses e nos arrebataram nossa condio de Povo Aymara. (Citado em Alb, 1999: 472). O movimento passou a utilizar a bandeira wiphala, smbolo dos povos indgenas, e a recuperar tradies e o prprio uso do idioma. O Katarismo usou intensamente as rdios, para transmitir programas e radionovelas em aymara sobre as lutas histricas desta etnia, e tambm para diverses cotidianas, como partidas de futebol e adaptaes de filmes de sucesso, como O Exorcista. O movimento aproveitou a relativa abertura poltica dos governos dos generais Alfredo Ovando e Juan Torres (1969-1971) para estabelecer uma ponte entre o ativismo urbano e o sindicalismo rural. Com a teoria dos dois olhos, trabalharam a questo indgena24

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da dupla perspectiva dos problemas camponeses e da valorizao da identidade tnica. Os kataristas ascenderam rapidamente na luta sindical e passaram a liderar a Confederao Nacional dos Trabalhadores Camponeses da Bolvia (CNTCB), mais importante rgo do setor rural. Embora o Katarismo visasse a reformas sociais, e no revoluo, os enfrentamentos com as ditaduras militares foram violentos, particularmente durante o governo Banzer o mais longo da histria boliviana no sculo XX. De 1971 a 1974, o regime ainda mantinha algum grau de liberdade, mas o general deu um golpe dentro do golpe e assumiu enormes poderes, ao mesmo tempo em que imps um duro pacote econmico, que inclua aumentos de preos em alimentos essenciais. Os protestos indgenas foram reprimidos com violncia, com ataques de blindados e artilharia contra manifestantes, resultando nos massacres de Tolata, Epizanga e Melga. Os lderes kataristas foram perseguidos e muitos foram presos ou tiveram de exilar-se. Mas o movimento tambm contou com o apoio significativo da Igreja Catlica, em particular dos religiosos que haviam se entusiasmado com as transformaes sociais preconizadas pelo Conclio Vaticano II. As organizaes no-governamentais tambm auxiliaram com financiamento e cooperao tcnica, com nfase nas entidades do norte da Europa, como Oxfam (Reino Unido) e Novib (Holanda). Apesar da represso do governo militar, o Katarismo sobreviveu e teve influncia decisiva posteriormente. Um de seus dirigentes, Victor Hugo Cardenas, foi vice-presidente na chapa de Snchez de Lozada. Nos anos 1980, os kataristas foram decisivos na formao da nova leva de sindicalistas indgenas da zona cocaleira (ver seo 4).3.3 As Mudanas na Explorao do Petrleo

A Revoluo de 1952 havia mantido a importncia central da YPFB para a explorao dos hidrocarbonetos, mas tambm realizara25

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aberturas ao capital externo como exemplificado pelas Notas Reversais de Robor, firmadas com o Brasil em 1958, que previam a ao de empresas privadas brasileiras para extrair petrleo. As Notas atualizaram acordo assinado em 1938 e nunca efetivado, e causaram enorme controvrsia no Brasil, devido s interpretaes de que companhias estrangeiras poderiam usar brechas no acordo para entrar no mercado boliviano. O Congresso tambm protestou por ter sido alijado de negociaes:Com efeito, as reversais extrapolaram seu mbito ao introduzir graves modificaes no que j havia sido acordado entre os dois governos. O procedimento adotado equivalia a deixar ao arbtrio dos negociadores a resoluo de assuntos privativos do Congresso Nacional. (Cervo e Bueno, 2002: 304).

A polmica acirrou-se com a instalao de Comisso Parlamentar de Inqurito, que criticou duramente as Notas e afirmou que deveriam ser objeto de tratado, submetido ao Congresso. A questo arrastou-se por anos, at que, em 1961, o ministro das Relaes Exteriores do Brasil, Santiago Dantas, decidiu encaminhar as notas ao Parlamento. Na Bolvia, a abertura ao capital estrangeiro foi aprofundada pelo governo militar de Barrientos. Ao mesmo tempo em que se aproximava politicamente dos EUA no contexto do acirramento da Guerra Fria, o general tambm abria oportunidades de negcios para empresas petrolferas norte-americanas. A principal beneficiada foi a Gulf Oil, que se tornou a maior investidora externa na Bolvia. Nova virada ocorreu em 1969, no governo do general Ovando. O Ministrio dos Hidrocarbonetos foi assumido pelo lder socialista Marcelo Quiroga Santa Cruz, que decretou a nacionalizao das propriedades da Gulf Oil, mas a experincia no teve melhor desempenho do que a medida semelhante adotada em 1936:26

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Nenhuma das duas nacionalizaes logrou resolver os problemas do pas. A Bolvia continuou to pobre quanto era antes e a YPFB revelou-se incapaz de assumir os elevados encargos necessrios para conduzir a indstria petrolfera. Em ambos os casos, faltaram capitais para investir em pesquisa, explorao e modernizao. Faltava tambm mo-de-obra qualificada para tocar o setor. (Cepik e Carra, 2006: 23)

Na instabilidade que caracteriza a poltica boliviana, o quadro regulatrio foi alterado outra vez em 1972, no governo Banzer. O general outorgou nova Lei Geral dos Hidrocarbonetos, que estabeleceu o monoplio flexibilizado (Miranda, 1999) da YPFB, com participao do capital privado nos setores de explorao e de produo do petrleo. Tal marco foi mantido at a dcada de 1990, quando o setor foi liberalizado. Quiroga, o ministro da segunda nacionalizao, teve fim trgico. No governo do general Garca Meza (1980 1982), foi atacado por capangas do governo e ferido bala. Seus algozes prenderam-no e assassinaram-no sob tortura. O crime tornou-se o smbolo do perodo, infame pela truculncia da represso, pelo envolvimento do ditador com o trfico de drogas e pelo colapso da economia. O quadro abaixo busca resumir os elementos mais importantes do ciclo de ditaduras militares da Bolvia.

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Quadro 1: Ditaduras Militares na Bolvia (1964 1982)

4. Redemocratizao sob o Signo da Desrevoluo (1982 2000)4.1 A Nova Poltica Econmica

As dcadas de 1980 e 1990 tiveram impacto ambguo sobre a sociedade boliviana. Ao mesmo tempo em que foram marcadas pela redemocratizao e pelo aumento das liberdades civis e polticas, tambm se destacaram pela implementao de reformas econmicas neoliberais, que resultaram na piora das condies de vida para a populao pobre, com perda de direitos sociais. Neste contexto de transformaes e crises, o gs natural tornou-se o motor da economia nacional e surgiram novos movimentos sociais, com destaque para o sindicalismo dos produtores de coca. Ao fim de vinte anos, ocorreu um processo de desmonte do regime estabelecido em 1952, uma Desrevoluo, como a chamam Yaksic e Tapia (1997). A transio da ditadura militar democracia foi marcada por severa crise econmica, cuja pior manifestao foi a hiperinflao,28

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que durou de 1982 a 1985 e chegou a superar 24 mil % ao ano. O governo de Victor Paz Estenssoro novamente na presidncia lidou com o problema por meio de um pacote de ajuste estrutural, que provocou uma mudana completa da economia, servindo de prottipo para medidas semelhantes em outros pases em desenvolvimento. A legislao decisiva para o processo foi o Decreto Supremo 21.060, que estabeleceu a Nova Poltica Econmica (NPE). O primeiro passo foi o combate hiperinflao, tentando conter o dficit pblico pela via da elevao das receitas da YPFB. O economista norte-americano Jeffrey Sachs comandou o processo:O programa foi lanado no dia 29 de agosto, com um forte aumento dos preos dos combustveis. Com a exploso dos preos da gasolina (um gasolinazo), o dficit oramentrio desapareceu. Choveu dinheiro na companhia estatal de petrleo e dela para os cofres do governo. O sbito fim do dficit oramentrio levou a uma estabilizao imediata da taxa de cmbio. Uma vez que os preos eram estabelecidos em dlares e pagos em pesos, a estabilizao sbita da taxa de cmbio significou igualmente a sbita estabilidade dos preos em pesos. Dentro de uma semana, a hiperinflao acabou. (Sachs, 2005: 126-127)

A NPE prosseguiu com a privatizao da Comibol, a poderosa estatal mineira. Antes de ser vendida ao setor privado, a empresa passou por grandes mudanas: de seus 27 mil trabalhadores, 21 mil foram demitidos. O combativo sindicalismo mineiro, fora decisiva na poltica boliviana desde a Revoluo de 1952, nunca mais se recuperou. A era do estanho havia acabado, sepultada pelo baixo preo do produto no mercado internacional. A COB reagiu s medidas, convocando greve geral, que durou quinze dias, e realizando a Marcha pela Vida, que partiu de Oruro29

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e se dirigiu a La Paz, onde os manifestantes pretendiam ocupar o palcio presidencial. Entretanto, o protesto foi interceptado pela polcia e desfeito antes de chegar capital. Os mineiros demitidos tomaram o rumo do campo e muitos se juntaram ao movimento cocaleiro (ver seo 4.3). As privatizaes no se restringiram minerao. Em 1996, chegou a vez dos hidrocarbonetos. A YPFB teve seus ativos divididos, e os campos de petrleo e gs e as refinarias passaram a ser administrados por contratos de risco sob controle de empresas estrangeiras, como Petrobras, Repsol-YPF e BP. A estatal boliviana continuou a existir, mas sem atuar nas reas de explorao e produo de hidrocarbonetos. Os recursos adquiridos com a capitalizao (nome oficial do processo de privatizao) foram utilizados para financiar mudanas no sistema de previdncia (Cominetti e Hofman, 1998). Um exemplo foi a distribuio do Bonosol, um abono concedido aos aposentados no fim do ano. O bnus, contudo, s foi distribudo uma vez, sendo cancelado por falta de recursos, o que contribuiu para deixar em muitos bolivianos a impresso de que as privatizaes haviam sido feitas de maneira fraudulenta, para benefcio de um pequeno grupo. Foi neste contexto que a Petrobras se tornou a maior investidora externa na Bolvia, com ativos totalizando 18% do PIB do pas. O desejo brasileiro de comprar o gs boliviano j fora mencionado nas Notas Reversais de Robor (1958) e renovado em vrios acordos e negociaes nos anos 70 e 90. Na dcada de 1990, a Petrobras descobriu que as reservas gasferas bolivianas eram, na realidade, dez vezes maiores do que se imaginava, tornando vivel a construo de um gasoduto que abastecesse as indstrias do sudeste brasileiro. O gasoduto foi inaugurado em 1996 e atendia ao interesse brasileiro de aumentar a participao do gs natural na matriz30

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energtica nacional, substituindo o petrleo por uma fonte de energia mais eficiente, barata e limpa. Tambm se esperava que ele diminusse a presso sob o sistema hidreltrico, j em meio s dificuldades que culminaram na crise de abastecimento. Entretanto, dois fatores criaram tenses srias que culminaram na nacionalizao boliviana de 2006: a ascenso de movimentos sociais que disputavam o controle dos hidrocarbonetos como chave ao desenvolvimento do pas e a disparada nos preos do petrleo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, aumentando a importncia geopoltica do gs natural e a margem de manobra diplomtica dos pases ricos nesse recurso (mais detalhes na seo 5).4.2 As Disputas Partidrias

No perodo de 1952 a 1982, os principais atores polticos da Bolvia foram o MNR, as Foras Armadas, a COB e os sindicatos rurais. Na redemocratizao os partidos polticos ganharam fora. O MNR abandonou o modelo econmico centrado no Estado e adotou o neoliberalismo, mas continuou a ser a sigla mais influente, exercendo a presidncia com Paz Estenssoro (1985 1989) e Gonzalo Snchez de Lozada (1993 1997 e 2002 2003). O Movimento da Esquerda Revolucionria (MIR) fora fundado em 1971, reunindo socialistas e marxistas. Ocupou a presidncia entre 1989 e 1993, com Paz Zamora, que realizou surpreendente aliana poltica com o ex-ditador Hugo Banzer. O governo Zamora deu continuidade ao programa da NEP, tentando at mesmo ampliar as privatizaes. O prprio Banzer voltou presidncia entre 1997 e 2002, frente do partido Ao Democrtica Nacionalista, que fundara em 1979. Os diversos partidos revezavam-se na presidncia e buscavam apoio no Congresso pela distribuio de cargos, verbas e outros recursos pblicos, em rede clientelista conhecida como cuoto.31

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As dcadas iniciais da redemocratizao foram relativamente bem-sucedidas em termos de estabilidade poltica, levando em conta que o perodo anterior, 1952 1982, teve vinte governos, mas apenas seis constitucionais. Em contraste, entre 1982 e 2002, todos os governos foram eleitos e cumpriram seus mandatos: O problema que a consolidao deste sistema foi acompanhada por um crescente descolamento dos partidos da sociedade, prenunciando problemas que se tornariam dramticos. (Domingues, Guimares e Maneiro, 2005: 2). No que toca economia, o PIB da Bolvia cresceu 4,1% anuais entre 1987 e 1998, bem mais do que a mdia latino-americana para a poca, que foi de 2,6%. Contudo, a renda per capita era apenas 1/3 daquela dos demais pases do continente, com 2/3 da populao na pobreza e mais de 70% no mercado informal de trabalho. (Cunha, 2004: 465477). O mau desempenho socioeconmico explica por que a sociedade assumiu posies cada vez mais crticas diante dos governos, sobretudo a partir de 2000. Os principais atores nesse processo foram os movimentos sociais que surgiram em torno das questes da coca, da gua, da cultura indgena e do debate sobre o controle dos recursos naturais. Tambm houve iniciativas dos partidos polticos em se aproximar das demandas sociais. Esse movimento de abertura foi especialmente presente no primeiro governo Snchez de Lozada (1993 1997), cujo vice-presidente era o lder indgena katarista Victor Hugo Cardenas. Snchez de Lozada era um magnata da minerao formado em economia nos EUA, que fala espanhol com forte sotaque norteamericano. De orientao ideolgica liberal, foi um dos principais arquitetos da NPE, exercendo o cargo de ministro da Fazenda no governo Paz Estenssoro. Os dois marcos legislativos da abertura so a Reforma Constitucional de 1994 e a Lei de Participao Popular, de 1995. A reforma estabeleceu o princpio da Bolvia como pas multitnico e32

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plurinacional, incorporando importantes tratados internacionais de direitos humanos e de combate discriminao racial, como a Conveno 169 da OIT. Foram realizadas conquistas histricas para os povos indgenas, como a educao bilnge, em espanhol e em quchua, aymara ou guarani. A Lei de Participao Popular implica uma reorganizao poltica do pas e uma virtual municipalizao at em zonas de populao indgena (Langer, 1999: 87). Elites regionais e movimentos populares ganharam autonomia com relao ao poder central, em medidas que beneficiaram em especial as lideranas empresariais de Santa Cruz de La Sierra e as comunidades indgenas tradicionais, ayllus. Tal descentralizao um marco importante na poltica boliviana, contrariando a centralizao que se seguiu Revoluo de 1952 e prosseguiu na ditadura militar.4.3 A Ascenso dos Movimentos Sociais: cocaleiros e os ayllus

No incio da dcada de 1980, a produo da folha de coca tornara-se um dos comrcios mais lucrativos da Bolvia. Embora atendesse s demandas tradicionais, boa parte do boom destinava-se a suprir o mercado de cocana nos EUA. Por sua natureza clandestina, difcil precisar a real fora econmica do narcotrfico, mas estima-se que o cultivo da coca empregue cerca de trezentas mil pessoas, 7% da populao economicamente ativa do pas. (Yashar, 2005: 185). A demisso em massa dos mineiros, em 1985, fez que muitos migrassem para as regies de Las Yungas e Chapare, fronteira agrcola da coca. A populao local dobrou na segunda metade da dcada de 80, incorporando tambm muitos migrantes pobres, cujos cultivos tradicionais, como milho e arroz, no conseguiam se manter viveis no novo quadro de abertura comercial implementado pela NPE. Os mineiros levaram com eles suas tradies de luta poltica e fundiram-nas com as caractersticas locais:33

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Houve uma fuso muito particular entre culturas polticas diferentes; de um lado, o movimento campons, que exige terra, autonomia cultural indgena, respeito aos valores culturais arraigados nas comunidades camponesas, e, de outro, a experincia de mobilizao e de confronto dos sindicatos operrios organizados. (Wasserman, 2004: 332).

O lder poltico mais importante do movimento Evo Morales, migrante oriundo da regio de Oruro, que se destacou frente dos sindicatos cocaleiros. Morales foi um dos fundadores do Movimento ao Socialismo (MAS), em 1987. O partido logrou formar pontes entre diversos setores sociais descontentes com as condies de vida na Bolvia. A questo da coca foi um dos elementos da valorizao da cultura nacional e da identidade indgena, continuando a tradio de mobilizao herdada do Katarismo. Em meados da dcada de 90, Morales j tinha grande prestgio e chegou em segundo lugar nas eleies presidenciais de 2002, apenas 2% atrs do vencedor, Snchez de Lozada:O MAS passou a desenvolver um discurso e uma plataforma poltica que mesclaram o Katarismo com outras tradies do pas, ao recolher e atualizar as vertentes da esquerda classista. Construindo alianas com grupos polticos, sindicatos e lideranas comunitrias atravs do pas, em um contexto de radical descontentamento com os partidos tradicionais, o MAS logo emergiu como uma fora nacional. (Domingues, Guimares e Maneiro, 2005: 7).

A ascenso dos cocaleiros, no entanto, foi de encontro poltica antidrogas dos EUA. Visando represso da oferta, os Estados Unidos passaram a financiar programas de erradicao das plantaes de coca na Bolvia, na Colmbia e no Peru. As medidas adotadas oscilavam entre o uso das Foras Armadas e a concesso de benefcios econmicos, como34

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acesso facilitado de produtos agrcolas ao mercado norte-americano (a Iniciativa Andina) e polticas nacionais, como o Plano Dignidade na Bolvia, que oferecia ajuda financeira e tcnica para trocar a coca por outros cultivos. O problema vinha dos prejuzos econmicos:Segundo os sindicatos cocaleiros, as vantagens oferecidas para a troca de produtos eram muito pequenas, pois os rendimentos das novas lavouras reduziam a renda de 30 para 4,5 dlares por famlia semanalmente. Alm disso, eles ficavam refns das multinacionais, porque o pacote tecnolgico oferecido inclua a compra de insumos (adubos, fertilizantes e diesel) importados, o que agravava a situao. (Cepik e Carra, 2006: 5).

Os resultados da poltica antidrogas dos EUA foram contraditrios. Por um lado, muitas plantaes foram destrudas. Mas a represso militar, com uso de fumigaes de produtos qumicos e violncia contra os cocaleiros, contribuiu para mobilizar em massa a categoria, em um processo de radicalizao em que disputavam tudo ou nada, como fica claro nesta entrevista de uma jornalista norteamericana com um agricultor boliviano:Perguntei a ele porque, entre todos os lderes de base produzidos pelos anos de misria e turbulncia da Bolvia, no era um campons ou um lder sindical mineiro que tinha surgido como a escolha consensual para comandar o partido e concorrer presidncia, mas Evo Morales, um plantador de coca que representava apenas uma frao minscula da populao. Porque os cocaleiros tinham uma luta diferente, ele respondeu. No meu distrito ningum estava bombardeando minhas vacas ou erradicando minha soja. No estavam ameaando nossa prpria subsistncia, de modo que nossos agricultores podiam escolher se queriam ou no se juntar Federao ou participar de um bloqueio de estrada. Isso tornava a organizao 35

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muito difcil. No Chapare no havia escolha: eles tinham que lutar. Ento os cocaleiros sempre chegavam a nossos congressos como um grupo coeso e forte. Logicamente, Evo foi eleito seu lder. (Guillermoprieto, 2006).

Outra corrente poltica importante a se consolidar durante a redemocratizao foi o movimento dos ayllus, as comunidades tradicionais indgenas. Como abordado anteriormente, os governos bolivianos posteriores Revoluo de 1952 trataram a populao indgena da perspectiva camponesa, como classe social a ser organizada em sindicatos. Esse modelo foi questionado na dcada de 1970 pelo Katarismo e posteriormente pelos cocaleiros. A mobilizao ayllu privilegia as autoridades originrias, a estrutura da famlia ampliada e promove intensa valorizao da identidade indgena:Reinterpretando os princpios coloniais da ideologia do movimento indgena, os ativistas do ayllu exitosamente o apresentaram, e as autoridades originrias, como mais indgenas (autenticidade) e com mais potencial (progresso), criando um movimento indgena rural formidvel e legtimo no Altiplano boliviano. (Andolina, Radcliffe e Laurie, 2005: 162).

O movimento se fortaleceu com as mudanas empreendidas pelo governo Snchez de Lozada, estabelecendo-se como importante ator poltico no contexto da Lei de Participao Popular. Os ayllus conseguiram notvel interconexo nas redes transnacionais, atuando em territrio boliviano, tornando-se referncia para projetos de desenvolvimento e cooperao social conduzidos por agncias de financiamento internacional e organizaes no-governamentais, ao ponto em que expresses como glocalizao e etnodesenvolvimento passaram a ser utilizadas para se referir s atividades do movimento.36

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Nem todos os movimentos de afirmao da identidade indgena foram pacficos. O lder aymara Felipe Quispe, conhecido como o Mallku (condor ou prncipe), tentou organizar um foco guerrilheiro nos anos 90, para criar um Estado indgena prprio. A iniciativa contou com apoio de intelectuais marxistas importantes, como lvaro Garca Linera, que depois se tornou vice-presidente na chapa de Evo Morales. A luta armada foi desbaratada rapidamente pelo Estado boliviano, e Quispe passou anos na cadeia. Continua envolvido na poltica, com o Movimento ndio Pachakutik, e se lanou candidato presidncia em 2005, obtendo apenas 2% dos votos.5. Crise de Hegemonia (2000 2006)5.1 A Guerra da gua

Entre 2000 e 2006, a Bolvia teve sete presidentes e uma mdia anual de 3.450 conflitos entre movimentos sociais e o Estado, que deixaram o saldo trgico de cerca de trezentos mortos mais do que os massacres cometidos durante as ditaduras militares. (Quiroga, 2005: 9). Repetiu-se o padro recorrente na histria do pas: o centro das disputas foi o controle dos recursos naturais, em particular a gua e o gs. Ao longo destes anos turbulentos, tornou-se clara uma crise de hegemonia, na qual nenhum grupo poltico foi capaz de manter o poder sem recorrer violncia. A palavra guerra passou a ser utilizada com freqncia, para definir o carter das disputas em curso. Os prprios rgos de coero estatal, polcia e Foras Armadas, chegaram a se enfrentar nas ruas. No houve consenso social sobre quais as melhores polticas pblicas a serem adotadas com relao agenda dos conflitos. Ao fim do perodo, o MAS tornouse o partido mais importante do pas, com Evo Morales conquistando a presidncia em dezembro de 2005 o primeiro ndio a ser eleito para o cargo na Amrica do Sul.37

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O ano de 2000 um marco nesses processos devido Guerra da gua em Cochabamba. Naquela cidade, seguiram-se recomendaes do Banco Mundial, e o servio de abastecimento foi privatizado para um consrcio internacional que reuniu empresas da Bolvia, da Espanha, da Itlia e dos EUA. Os novos donos impuseram leis draconianas que incluam a proibio de se recolher gua da chuva, alm do aumento das tarifas. Numa regio onde a maioria das pessoas sobrevive com menos de US$1 por dia, as novas regras significaram, na prtica, a excluso do acesso a este bem vital para os segmentos mais pobres da populao. Diversos movimentos sociais de Cochabamba organizaramse para protestar contra a privatizao, formando a Coordenadora de Defesa da gua e da Vida, que comandou bloqueios de estradas e a ocupao simblica da cidade. O governo reagiu, decretando estado de stio, mas com dificuldades de impor a ordem, devido a uma greve na polcia. Ainda assim, houve conflitos entre o Exrcito e os manifestantes, resultando em dezenas de mortos. Com a interveno da Igreja Catlica e a continuidade dos protestos, chegou-se a uma soluo negociada, pela qual o contrato de privatizao foi anulado e a gesto do abastecimento de gua passou ao controle da prpria Coordenadora:A novidade introduzida pela Coordenadora foi reunir essa multiplicidade de setores: organizaes de bairros, profissionais liberais, perfuradores de poos, professores, camponeses, cocaleiros, aposentados, estudantes e muitos outros, lutaram articulados em um protesto pelo domnio pblico dos recursos naturais [...]. O movimento que se construiu por meio da Coordenadora resume o novo perfil dos movimentos sociais que comearam a tomar corpo na Bolvia e em vrios outros pases latino-americanos, como Mxico, Colmbia e Peru. Estes movimentos sociais esto vinculados, 38

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sobretudo, aos problemas cotidianos populares, como acesso noeqitativo e uso no-sustentvel de recursos naturais; demandas de maior participao na gesto local; controle democrtico da tomada de decises polticas em relao aos aspectos que afetam as condies socioeconmicas e a qualidade de vida da populao; e, nesse sentido, esses problemas no tm um contedo necessariamente classista. (Wasserman, 2004: 335336).

A Guerra da gua tambm foi importante vitria simblica para os movimentos sociais, que conseguiram contrapor a agenda comunitria que trata os recursos naturais como um bem da coletividade, derrotando a racionalidade de mercado que guiara a adoo das reformas neoliberais nas dcadas de 1980 e 1990.5.2 A Guerra do Gs

A Nova Poltica Econmica implementada a partir de meados dos anos 1980 mudou a face da economia boliviana. O pas do estanho ficou para trs e em seu lugar os hidrocarbonetos assumiram o posto central, sendo responsveis por 86,2% das exportaes do pas. A privatizao do setor levou multiplicao do investimento estrangeiro na Bolvia, que saltou de 17% do PIB (1982) para 70% (2000). Cerca de metade desse capital foi para as reas de petrleo e gs, com o restante distribudo por outras empresas privatizadas (eletricidade, gua, minerao, aviao). A Bolvia tornou-se um dos pases em desenvolvimento, com a economia mais internacionalizada. O percentual da participao dos estrangeiros no estoque de capital do pas era o triplo do existente no Brasil e no Mxico. (Cunha, 2004: 482485). Os hidrocarbonetos j haviam sido centrais nas disputas polticas das dcadas de 30 e 60, quando ocorreram nacionalizaes. O setor tornou-se novamente o catalisador das lutas do pas na dcada de 90, culminando com a terceira nacionalizao boliviana, sob o39

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presidente Morales, em 2006. Foram basicamente trs fatores que levaram ao acirramento das tenses: 1) a importncia crescente do gs natural para a economia da Bolvia; 2) a concentrao de poder no setor em empresas estrangeiras; 3) o contraste entre o boom dos hidrocarbonetos e a persistncia da misria para a maioria da populao boliviana. Os novos movimentos sociais bolivianos passaram a reivindicar o aumento do controle, ou at a nacionalizao dos hidrocarbonetos no incio da privatizao, as empresas estrangeiras pagavam apenas 18% de impostos. O ncleo duro da mobilizao nacionalista veio dos sindicatos cocaleiros e dos grupos de Cochabamba, que no se interessavam, a princpio, por petrleo e gs, mas passaram a ver na posse destas riquezas naturais a chave para o desenvolvimento da Bolvia. O estopim para a guerra do gs foi o anncio, feito em 2003 pelo presidente Snchez de Lozada, do projeto de exportar esse recurso para os EUA, atravs de portos chilenos. O plano parecia feito sob medida para irritar os nacionalistas, pois implicava acordos econmicos com os Estados Unidos, a quem detestavam por causa da poltica antidrogas e do apoio prestado s ditaduras militares da Bolvia. E ainda por cima envolvia o Chile e a ferida aberta da perda do litoral boliviano para as tropas daquele pas na guerra do Pacfico, no fim do sculo XIX. Os protestos sociais foram violentssimos e levaram renncia do presidente Snchez de Lozada. O ano de 2003 tambm foi marcante pelo conflito entre polcia e Foras Armadas, em razo de uma greve policial, com mais de trinta mortos. A Bolvia corria o risco de transformar-se em um failed State, foco de instabilidade que poderia se espalhar pela Amrica Andina.40

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Snchez de Lozada foi substitudo pelo vice-presidente Carlos Mesa, um respeitado intelectual que assumiu o poder com promessas de moderao e de busca de solues negociadas entre os diversos grupos polticos em conflito. Mesa prometeu um pacto de governabilidade calcado na convocatria de um referendo sobre os recursos energticos, na reviso da Lei de Hidrocarbonetos e na eleio de uma Assemblia Constituinte. A presso popular fez que Mesa aumentasse os impostos sobre petrleo e gs de 18% para 50%, mas desistiu de nacionalizar o setor, temendo as indenizaes bilionrias que poderia ser obrigado a pagar. O frgil equilbrio de poder no qual Mesa se sustentava rompeu-se quando resolveu romper com os cocaleiros. Tal deciso, e mais a insatisfao com a questo dos hidrocarbonetos, levou nova onda de protestos generalizados em meados de 2005: A gesto soberana dos recursos naturais gua, gs, florestas, terra, territrio e a reivindicao do exerccio dos direitos cidados ocupam a trincheira atual do conflito na Bolvia. (Quiroga, 2005: 20). Houve risco de golpe militar e as Foras Armadas sugeriram ao presidente transferir a capital para Santa Cruz de la Sierra, onde se acreditava que o governo estaria mais protegido das demandas populares, cujo centro era o Altiplano. Ao fim, Mesa renunciou e, aps um perodo de instabilidade, foi substitudo pelo presidente da Suprema Corte, Eduardo Rodriguez, que governou por seis meses at as eleies presidenciais vencidas por Evo Morales.5.3 Os Desafios do Governo Evo Morales

Morales ganhou as eleies no primeiro turno, com expressivo apoio popular e respaldado por amplos movimentos sociais, porm sua vitria se deu em um quadro de expectativas crescentes por parte da populao pobre, que esperava do presidente respostas rpidas quanto melhoria das condies de vida do pas.41

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Durante a campanha e os primeiros meses na presidncia, Morales foi ambguo no que diz respeito aos hidrocarbonetos, ora defendendo sua nacionalizao, ora afirmando que a Bolvia queria scios, e no patres, declarao que apontava para a reviso dos contratos com as principais empresas do setor. O governo boliviano reclamava dos preos, alegando que a alta do petrleo significava que o gs tambm deveria ser reajustado em 45%. As dificuldades iniciais enfrentadas por Morales fizeram que sua popularidade casse 12% de janeiro at abril. O presidente reagiu com um golpe de fora: no dia 1 de maio, promulgou o Decreto Supremo 28.701, batizado de Heris do Chaco nacionalizando os hidrocarbonetos. Em um gesto controverso, o Exrcito ocupou as refinarias da Petrobras e 56 blocos de explorao de outras empresas. O decreto de nacionalizao, entretanto, era bem menos abrangente do que os dois anteriores, dos anos 30 e 60. O Estado boliviano assumiu controle acionrio (50% + 1) de diversas empresas e os maiores campos aqueles operados pela Petrobras e pela RepsolYPF tiveram seus impostos aumentados de 50% a 82% . Os outros continuavam a pagar 50%. A nacionalizao de Morales atendeu s demandas que os movimentos sociais formularam desde a dcada de 90 e a popularidade do presidente disparou, atingindo mais de 80% e dando-lhe vitria nas eleies de julho para a Assemblia Nacional Constituinte, ainda que no conseguisse os 2/3 das cadeiras necessrias aprovao de emendas constitucionais. Opositores de Morales dentro e fora da Bolvia afirmaram que a nacionalizao era contraproducente, pois indispunha o pas com o Brasil, maior parceiro econmico e investidor, destino de mais de 60% das exportaes de gs boliviano. H poucas opes ao pas, visto que, dos outros vizinhos, a Argentina auto-suficiente em gs e o Chile sequer mantm relaes diplomticas plenas com a Bolvia, por causa do conflito em torno do acesso martimo. A disputa judicial42

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iniciada com a Petrobras confirmou algumas dessas preocupaes, devido paralisao dos investimentos e ao descontentamento de boa parte da opinio pblica brasileira, em particular com o uso do Exrcito boliviano para implementar a nacionalizao. Os crticos tambm examinaram a histria frustrada das duas nacionalizaes anteriores da Bolvia, para ressaltar a necessidade do pas se abrir ao capital estrangeiro e cooperao com pases mais desenvolvidos. Para superar esse obstculo, Morales conta com o auxlio do governo da Venezuela, esperando que o presidente Hugo Chvez e a PDVSA possam desempenhar melhor o papel anteriormente representado pela YPF argentina e pela PEMEX mexicana, que falharam na capacitao dos bolivianos. As autoridades bolivianas tambm apostam na alta dos preos dos hidrocarbonetos como um elemento que refora seu poder, mirando-se nos exemplos da prpria Venezuela e da Rssia. Com o petrleo cada vez mais caro devido aos conflitos no Oriente Mdio, o gs cresce em importncia como fonte de energia. O quadro abaixo sintetiza as oscilaes no marco regulatrio dos hidrocarbonetos no perodo que vai do incio da explorao em grande escala at os dias atuais:

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Quadro 2 Hidrocarbonetos e Poltica na Bolvia

Fonte: elaborado com base em Miranda (1999); Cepik e Carra (2006).

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Evo Morales tem grandes desafios pela frente. Embora possua maior base de apoio que seus antecessores portanto, a expectativa de mais estabilidade poltica ter de enfrentar a oposio de parte significativa das elites, sobretudo na regio de Santa Cruz de la Sierra. H tenses com os principais parceiros econmicos da Bolvia gs e reforma agrria, no relacionamento com o Brasil, e coca, com os EUA. O governo norte-americano pode cancelar os benefcios comerciais aos produtos bolivianos pelo descontentamento com a questo cocaleira e com as alianas internacionais do presidente Evo Morales. Ele tambm o risco de ficar atrelado aos projetos de liderana regional da Venezuela de Chvez, com tudo que isso implica em termos de confronto e turbulncia com os pases vizinhos e com os Estados Unidos. O presidente boliviano precisar lidar com todos esses problemas na busca da retomada do desenvolvimento para seu pas, em meio a fortes presses populares por solues rpidas. Seria uma tarefa difcil at para um Estado mais slido e estvel do que a Bolvia.6. Concluso

A Revoluo de 1952 foi feita na esteira da derrota na Guerra do Chaco e da constatao dos graves problemas sociais da Bolvia e de seu atraso perante os outros pases da Amrica do Sul. Seu mpeto modernizador e de integrao social foi notvel, mas no logrou incorporar os setores mais pobres a um sistema democrtico, prendendo-os a relaes clientelistas e tuteladas e recusando-se a discutir a questo vital da identidade indgena, esperando que ela fosse sepultada pelo desenvolvimento econmico. As duas dcadas de ditadura militar continuaram a modernizao da economia boliviana, abrindo a fronteira agrcola nas provncias orientais e na regio do Chapare. As duas regies tornaram-se fundamentais para a Bolvia: a primeira, por concentrar45

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as reservas de gs e a soja; a segunda, pelas plantaes de coca e pelo movimento social que se transformou no principal porta-voz das demandas populares. Apesar da tentativa de estabelecer um Pacto Militar-Campons, os governos ditatoriais reprimiram com violncia os movimentos dos trabalhadores rurais e das minas, com massacres e prises. Ainda assim, o perodo foi marcado pela ascenso do Katarismo, com sua teoria dos dois olhos, juntando a questo agrria valorizao da cultura indgena. Influenciaram de maneira decisiva os movimentos posteriores, como os cocaleiros. A volta democracia deu-se pelo signo ambguo de mais liberdades polticas e por um quadro de deteriorao econmica e social, no qual os partidos polticos se afastaram cada vez mais da sociedade, em descompasso de conseqncias trgicas, com violncia generalizada. O gs natural tornou-se o centro da economia e o controle deste recurso virou o objetivo principal da luta poltica, culminando com a nacionalizao de 2006. A mobilizao dos cocaleiros foi outro elemento explosivo, combinando demandas por terra, reconhecimento cultural e a resistncia poltica antidrogas financiada pelos EUA. Os plantadores de coca foram hbeis em se articular com outros movimentos sociais, no arranjo que resultou na fundao do MAS e seu rpido crescimento para principal partido do pas. A questo indgena tambm foi trabalhada pela corrente poltica que favoreceu o ayllu, a comunidade tradicional, conseguindo transform-la num ator relevante tanto no plano nacional (pela Lei de Participao Popular), quanto na esfera internacional, vinculandose a ONGs e agncias de financiamento, e estabelecendo o paradigma do etnodesenvolvimento. O Movimento ndio Pachakutik, de Felipe Quispe, aponta para outra direo, a do distanciamento do Estado e rejeio radical das propostas de integrao. Seu pequeno apoio mostra que tais idias no so populares na Bolvia, mas permanecem como46

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um espectro do descontentamento que pode explodir com a persistncia da misria. O quadro abaixo ilustra as principais lutas e reviravoltas associadas aos recursos naturais na Bolvia, no perodo abordado neste ensaio. Quadro 3: A Luta pelos Recursos Naturais na Bolvia

Como se pode perceber pelas informaes apresentadas acima, o controle dos recursos naturais dominou a agenda poltica da Bolvia nas ltimas dcadas e em realidade, desde a colonizao, com os espanhis atrados pelas montanhas de prata do Potos. A posse destas riquezas, sobretudo, a terra, inseparvel da luta dos povos indgenas pela preservao de sua identidade e pela valorizao de sua cultura e tradies. A Bolvia no mais o regime de segregao racial que era h sessenta anos. A redemocratizao conquistou o reconhecimento da estrutura multitnica e plurinacional da nao, mas permanecem a excluso social e a pobreza, que afetam a maior parte da populao47

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indgena. A integrao plena deste importante setor essencial para a consolidao da estabilidade democrtica na Bolvia e pode ter repercusses positivas nos demais pases da regio andina. O jogo poltico da Bolvia mudou com a ascenso desses novos atores, que se consolidam em um movimento de ao e reao a uma histria de injustia e opresso:Ento, na medida em que so marginalizados pelo sistema, mais facilmente recorrem a sua prpria tradio em busca de formas alternativas de sobrevivncia. o efeito bumerangue de um desenvolvimento excludente. (Alb, 1999: 480).

Para a poltica externa brasileira, muito importante compreender esses novos atores sociais e suas demandas com relao explorao de recursos naturais. Trata-se de campo marcado por tenses e disputas econmicas e ambientais, com forte componente nacionalista. A resoluo de tais problemas fundamental para que o processo de integrao regional possa se desenvolver de maneira adequada. H muitos pontos com risco para conflito: a ao das empresas brasileiras na Bolvia, a construo de grandes obras de infra-estrutura (hidreltricas, rodovias) e a presena de centenas de milhares de brasileiros em territrio boliviano, e vice-versa. A prpria estrutura da relao, contudo, aponta para a interdependncia e a necessidade de encontrar mecanismos de soluo de controvrsias, de modo pacfico e negociado. A experincia da poltica domstica brasileira oferece modelos no que toca ao relacionamento entre Estado e movimento sociais, como os conselhos deliberativos de que participam representantes do governo e da sociedade. O Comit Gestor da BR-163 especialmente interessante como frum-modelo, no qual houve dilogo significativo, que contribuiu para o apaziguamento de problemas em uma zona difcil, em que uma obra importante para o agronegcio atravessa zona de impacto ambiental.48

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Mecanismos como o Comit Gestor funcionam como medidas de construo da confiana e criao de laos pessoais entre os envolvidos, que passam a se conhecer melhor e aumentam a capacidade de entendimento mtuo. A criao de fruns permanentes de dilogo e negociao deve ser complementada por maior ateno s demandas dos movimentos sociais, no esforo de pesquisa e anlise que no deveria ficar restrito aos rgos oficiais, mas abranger as universidades e a imprensa. A reao da opinio pblica brasileira nacionalizao boliviana mostrou que o Brasil no est isento do risco do extremismo baseado na xenofobia e na intolerncia. Os novos movimentos sociais oferecem boa oportunidade para avanar na democratizao e na estabilidade da Bolvia. Nesse aspecto, do interesse nacional brasileiro encontrar formas de cooperao e entendimento com tais grupos.

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Glossrio

7. GlossrioAo Democrtica Nacionalista (ADN) Partido conservador fundado em 1979 pelo ex-ditador Hugo Banzer. Ayllu Comunidade tradicional indgena, organizada em torno da famlia ampliada, base de movimento social de valorizao da identidade tnica. Capitalizao Nome oficial do processo de privatizao adotado nos anos 1980 e 1990. Central Operria Boliviana (COB) Principal rgo sindical da Bolvia desde os anos 50, de forte inspirao trotskista. Cocaleiro Plantador de coca, base do mais ativo movimento social da Bolvia desde os anos 1980. Confederao Nacional dos Trabalhadores Camponeses da Bolvia (CNTCB) Principal rgo do sindicalismo rural, controlado pelo Movimento Katarista. Coordenadora de Defesa da gua conjunto de organizaes populares e movimentos sociais que se opuseram privatizao da gua em Cochabamba. Corporao Mineira da Bolvia (Comibol) Estatal criada pela Revoluo de 1952 para controlar as minas de estanho nacionalizadas. Privatizada nos anos 80.53

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Etnodesenvolvimento Programas de cooperao social e econmica conduzidos por agncias de financiamento, rgos multilaterais e ONGs, com nfase nas comunidades indgenas como atores centrais do desenvolvimento. Guerra Champa Conflito entre sindicalistas ligados ao MNR e populaes indgenas, que ocorreu na regio de Ucurea entre 1959 e 1964. Guerra da gua Conflitos ocorridos em 2000, em que movimentos sociais lutaram contra a privatizao da gua na cidade de Cochabamba, conseguindo reverter a situao. Guerra do Chaco Conflito entre Bolvia e Paraguai, de 1932 a 1935, pelo controle da regio do Chaco Boreal, que se acreditava rica em petrleo. A derrota boliviana na guerra foi determinante para o processo que culminou na Revoluo de 1952. Guerra do Gs Conflitos ocorridos entre 2003 e 2006, que opuseram governo, empresas transnacionais e movimentos sociais pelo controle dos hidrocarbonetos, culminando com a nacionalizao do setor em 2006. Katarismo Movimento surgido nos anos 1970, que combina demandas sociais de camponeses com a valorizao da identidade indgena e o combate discriminao racial. Lei de Participao Popular Legislao adotada em 1995, que descentralizou o poder poltico na Bolvia, abrindo espao para os ayllus. Marcha pela Vida Protesto organizado pela COB em 1985, contra a privatizao das minas de estanho. Tinha como objetivo ocupar a capital, mas foi disperso pela polcia.54

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Movimento ao Socialismo (MAS) Partido poltico fundado em 1987, a partir da reunio de organizaes populares e movimentos sociais. Movimento da Esquerda Revolucionrio (MIR) Fundado em 1971, com reunio de grupos socialistas e marxistas. Chegou ao poder nos anos 90, aliado com a direita, implementando reformas neoliberais. Movimento ndio Pachakutik (MIP) Partido poltico liderado for Felipe Quispe, que prega a criao de um Estado aymara. Quispe liderou uma fracassada tentativa de guerrilha nos anos 1990, ao lado do intelectual marxista lvaro Garca Linera, vice-presidente no governo Evo Morales. Movimento Nacionalista Revolucionrio (MNR) Fundado em 1941, com base na classe mdia, liderou a Revoluo de 1952 e ocupou o poder por diversas vezes aps a redemocratizao em 1982. Passou de modelo econmico nacional-desenvolvimentista para neoliberal. Notas Reversais de Robor Acordo assinado entre Brasil e Bolvia em 1958, rejeitado pelo Congresso brasileiro por suspeitas de que beneficiava empresas estrangeiras e desrespeitava prerrogativas parlamentares. Nova Poltica Econmica Reformas neoliberais adotadas a partir de 1985, em substituio ao modelo econmico centrado no Estado que prevalecera desde a Revoluo de 1952. Pacto Militar-Campons Aliana poltica construda pelo governo do general Ren Barrientos (1964 1969) para se contrapor COB. Naufragou durante o governo Banzer (1971 1978) devido a massacres e ascenso do Katarismo.55

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Pongueaje Forma de trabalho servil indgena, no qual eram prestados servios gratuitos aos proprietrios rurais. Abolido pela Revoluo de 1952. Povos Originrios Termo pelo qual os povos indgenas da Bolvia preferem chamar a si prprios. Yacimientos Petrolferos Fiscales Bolivianos (YPFB) Estatal do setor de hidrocarbonetos fundada em 1936. Wiphala Bandeira do movimento indgena.

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Referncias Bibliogrficas

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Bolvia: de 1952 ao Sculo XXI Processos Sociais, Transformaes Polticas

Bolvia: de 1952 ao Sculo XXI Processos Sociais, Transformaes PolticasMarcelo Argenta Cmara*

Introduo El triunfo del 18 de diciembre no es el triunfo de Evo Morales, es el triunfo de todos los bolivianos, de la democracia, de una revolucin democrtica y cultural en Bolivia. Pero tambin quiero decirles: muchos hermanos profesionales, intelectuales, clase media, se incorporaron al instrumento poltico de la liberacin, hoy instrumento poltico del pueblo. (Evo Morales Ayma, presidente eleito da Bolvia, 21 de janeiro de 2006, durante cerimnia indgena de investidura nas runas de Tiahuanaco.)

A eleio de Evo Morales para a presidncia da Bolvia, em 18 de dezembro de 2005, um fato histrico. J o seria se considerssemos apenas sua relevncia estatstica: com 53,74% dos votos vlidos (1.489.866 votos), na eleio que contou com a maior participao em toda a histria eleitoral do pas (84,51% dos eleitores habilitados)1, Morales tornou-se o primeiro Presidente eleito em primeiro turno desde o retorno da democracia na dcada de 1980.*

Marcelo Argenta Cmara, licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrando em Geografia pela UFRGS. Atua como professor no Ensino Mdio, Pr-Vestibular e Universitrio. Autor de artigos em temas de Geografia e Histria para publicaes no Brasil e Amrica Latina. Informe da Corte Nacional Eleitoral, publicado no peridico La Razn. La Paz, Bolvia, 22 de janeiro de 2006.

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Mais do que a inegvel relevncia estatstica dessa vitria eleitoral, porm, o seu significado que nos importa neste momento. Descendente de aymaras2, Evo Morales o primeiro Presidente indgena eleito em 180 anos de vida republicana do pas que possui o maior percentual de indgenas em sua populao (62,2%, segundo o Censo de 2001). A chegada de Evo Morales ao Palcio Quemado simboliza a ruptura efetiva com uma tradio j praticamente naturalizada na vida poltica do pas, a da excluso dos indgenas (e, conseqentemente, excluso da grande maioria da populao) dos mais altos cargos institucionais do Estado boliviano. Analisando os dados referentes s eleies realizadas desde 1978 at 2002, vemos que, at o incio deste sculo, o maior percentual de votos obtidos em eleies nacionais por partidos ligados a candidatos ou causa indgena (soma dos votos obtidos pelos diferentes partidos indianistas) foi de 4,6% dos votos vlidos na eleio de 1997. As eleies presidenciais de 2002 marcaram a guinada no processo: com 27,0% dos votos, os partidos indgenas conquistaram oito cadeiras no Senado (de um total de 27) e 33 cadeiras na Assemblia de Deputados (de um total de 130), alm de colocarem o ento candidato Evo Morales como postulante presidncia no segundo turno, que na Bolvia conduzido por eleio parlamentar3 (Van Cott: 2003). Se for verdade que as mudanas no cenrio eleitoral so a face mais visvel a sugerir uma transformao na vida poltica boliviana, tambm verdade que esta mudana (eleitoral) nada mais do que o reflexo, em contexto determinado, de um processo de transformao mais amplo, a abranger toda a sociedade do pas. Voltemos aos dados anteriormente expostos: de resultados em que no ultrapassavam os2

Os aymaras so, junto com os quchuas, os dois maiores grupos tnicos originrios do Altiplano andino, que, segundo o Censo de 2001, representam 56% da populao boliviana. No esto computados, para o perodo analisado, os votos obtidos por partidos indgenas em coligaes encabeadas por partidos tradicionais no ligados causa. Nos dados apresentados, foram levados em conta apenas os votos obtidos por candidatos prprios de partidos indgenas.

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5% dos votos vlidos4, os partidos indgenas elevaram seus ndices para 27,0% e 53,74%, consecutivamente, nas duas eleies presidenciais ocorridas neste sculo (2002 e 2005), ou seja, a partir de dado momento, o indgena votou no indgena. Ainda que a anlise poltico-eleitoral no seja o foco de nosso trabalho, importante que se coloquem algumas reflexes sobre esse fato, pois ele leva a concluses de inegvel significncia. Em primeiro lugar, mostra-nos que a conduo da vida poltica, social e econmica do Estado boliviano esteve, ao longo de sua vida independente, nas mos do grupo estatisticamente minoritrio na populao do pas. O parlamento, instituio que na democracia representativa deveria representar a populao do pas, no tinha a cara do pas que deveria representar. No que isso, em si, represente algo de negativo: a diferenciao tnica no implica necessariamente diviso social. Mas no deixa de ser inquietante que, ao longo de 180 anos de vida republicana (apesar de permeada de interldios ditatoriais, golpes de estado, guerras regionais)5, a populao indgena, que possua o direito ao voto universal desde 1952, no se tenha feito representar de forma expressiva no parlamento boliviano, quanto mais na presidncia e/ou ministrios. como se, por algum motivo, os indgenas no se vissem como preparados para a conduo institucional do pas, ou vissem os demais grupos como mais bem preparados para a tarefa, uma vez que as instituies do Estado boliviano so, de certa maneira, instituies importadas com base em um referencial europeu que no necessariamente comum a estas populaes.O que levou o indgena, ento, a votar no indgena?

Ao focarmos nossa observao sobre o perodo a que nos referimos nos dados eleitorais (1997 a 2005), veremos que um4

A mdia de votos obtida a cada eleio pelos partidos indgenas em sete eleies nacionais, de 1978 ao ano 2000, foi de 2,1% dos votos vlidos (Van Cott: 2003). Temas que sero analisados neste trabalho.

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perodo de fortalecimento de intenso processo de transformaes, que tem no aspecto poltico eleitoral apenas um de seus reflexos sobre a sociedade boliviana (talvez o mais significativo, mas, provavelmente, no o mais importante). Neste perodo, a crescente politizao da sociedade boliviana refletiu em tomada de conscincia, em maior reflexo, no fortalecimento de demandas, na exigncia por uma Bolvia boliviana: pas de diversidade e riqueza ambiental, ecolgica, humana. Esse processo iniciou-se longe da institucionalidade do Estado, espao antes restrito elite minoritria. Cresceu longe: nas pequenas comunidades, nas associaes de bairro, nas ligas camponesas. Politizou espaos no-tradicionais, levando o debate s praas, s ruas, para, por fim, chegar ao mais alto posto da institucionalidade republicana: a Presidncia. , pois, sobre esse processo que estaremos discorrendo no trabalho. Analis-lo em seus antecedentes histricos, interpretar seus elementos constituintes para, assim, compreend-lo em suas possibilidades, significao e amplitude e, a partir de tal compreenso, lanar nosso olhar sobre as perspectivas que o processo lana sobre o continente latino-americano, estes so os objetivos a que aqui nos propomos.O Pas e o Perodo No cabe duda que Bolivia es un pas de grandes riquezas: diversidad cultural, biodiversidad, recursos energticos, recursos forestales, minera, tierras frtiles, etc., pero lamentablemente sufre un mal que socava los cimientos desde su nacimiento como nacin: la mala distribucin de la riqueza, donde el rico es cada vez ms rico y el pobre es cada vez ms pobre. CEDIB. Serie Informativa: Datos sobre la gestin de los recursos naturales, n. 3 Tierra y Territorio. Cochabamba, Bolivia: Cedib, 2005. Desde a independncia a Bolvia desenvolveu-se