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BOLIVARIANISMO (OU BOVARISMO?) DO SÉCULO XXI Estado, economia e sociedade venezuelanos em face das relações internacionais contemporâneas Dawisson Belém Lopes (IUPERJ) 1. Introdução A motivação deste ensaio, em breves palavras, é a tentativa de dissecar o fenômeno do bolivarianismo do século XXI, definindo-lhe a anatomia e apontando-lhe perspectivas, ou os seus possíveis dilemas e aporias. Ainda, procuraremos comparar – por anacrônico que pareça o exercício – bolivarianismos (o original, do século XIX; e as cópias dos séculos XX e XXI, com ênfase no caso da Venezuela chavista), ao cabo do que se tornará mais razoável uma aproximação entre os construtos, e a identificação de discrepâncias e similitudes entre eles. Também é objetivo do escrito fazer prospecção do futuro do Estado e da sociedade venezuelanos – o epicentro do bolivarianismo –, tendo como farol a breve história do país após a independência; e como pano de fundo, as tendências conjunturais e as configurações estruturais das relações internacionais. Cabe, enfim, especular se há espaço para o projeto político bolivariano no mundo de hoje. Justifica-se este empreendimento por diversas razões. A primeira delas: a enorme repercussão, nos meios de imprensa, das ações de governo do presidente Hugo Chávez Frías, parece convidar a uma inspeção mais criteriosa – porquanto menos impressionista ou normativamente orientada – da cena sociopolítica venezuelana. Ao que se nos afigura, o bolivarianismo do século XXI tem muitos apoiadores e detratores; embora poucos estudiosos. Em segundo lugar, como aspecto impulsionador do interesse pelo tema do bolivarianismo, ressalto o alegado esgotamento dos modelos alternativos ao capitalismo liberal da matriz anglo-saxã. Esse momento das relações internacionais tem sido saudado, desde o início dos anos 1990, por acadêmicos e políticos de diversas vinculações ideológicas, como o advento de uma “nova ordem mundial”. Trata-se da constatação de que, com o fim da Guerra Fria e a implosão do “império soviético”, não existiria outro

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BOLIVARIANISMO (OU BOVARISMO?) DO SÉCULO XXI Estado, economia e sociedade venezuelanos em face das relações internacionais contemporâneas

Dawisson Belém Lopes

(IUPERJ) 1. Introdução

A motivação deste ensaio, em breves palavras, é a tentativa de dissecar o fenômeno

do bolivarianismo do século XXI, definindo-lhe a anatomia e apontando-lhe perspectivas,

ou os seus possíveis dilemas e aporias. Ainda, procuraremos comparar – por anacrônico

que pareça o exercício – bolivarianismos (o original, do século XIX; e as cópias dos séculos

XX e XXI, com ênfase no caso da Venezuela chavista), ao cabo do que se tornará mais

razoável uma aproximação entre os construtos, e a identificação de discrepâncias e

similitudes entre eles. Também é objetivo do escrito fazer prospecção do futuro do Estado e

da sociedade venezuelanos – o epicentro do bolivarianismo –, tendo como farol a breve

história do país após a independência; e como pano de fundo, as tendências conjunturais e

as configurações estruturais das relações internacionais. Cabe, enfim, especular se há

espaço para o projeto político bolivariano no mundo de hoje.

Justifica-se este empreendimento por diversas razões. A primeira delas: a enorme

repercussão, nos meios de imprensa, das ações de governo do presidente Hugo Chávez

Frías, parece convidar a uma inspeção mais criteriosa – porquanto menos impressionista ou

normativamente orientada – da cena sociopolítica venezuelana. Ao que se nos afigura, o

bolivarianismo do século XXI tem muitos apoiadores e detratores; embora poucos

estudiosos. Em segundo lugar, como aspecto impulsionador do interesse pelo tema do

bolivarianismo, ressalto o alegado esgotamento dos modelos alternativos ao capitalismo

liberal da matriz anglo-saxã. Esse momento das relações internacionais tem sido saudado,

desde o início dos anos 1990, por acadêmicos e políticos de diversas vinculações

ideológicas, como o advento de uma “nova ordem mundial”. Trata-se da constatação de

que, com o fim da Guerra Fria e a implosão do “império soviético”, não existiria outro

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caminho a seguir se não abraçar o ideário liberal e democrático, à sombra e semelhança da

experiência estadunidense. Contudo, o bolivarianismo redivivo do século XXI vem

instigando a curiosidade dos observadores da política internacional, justamente por

apresentar-se como o contraponto possível ao capitalismo liberal anglo-saxão, em tempos

de hegemonia do “pensamento único”.1

Uma terceira justificativa para o interesse despertado pelo caso venezuelano

concerne a inovações institucionais. Desde a ascensão de Chávez ao poder, em 1999,

reformas nas instituições políticas e a introdução da nova Constituição da República

Bolivariana da Venezuela conduziram a uma forte mudança no perfil internacional do país,

a qual reverbera domesticamente, tanto social quanto economicamente. Esta Venezuela

bolivariana, pelo que se tem notado, é substantivamente diferente daquela que atravessou

praticamente toda a segunda metade do século XX sem sucumbir aos regimes ditatoriais.

Convém examinar se essas alterações na arquitetura do Estado (e na composição da

sociedade) poderão levar, tendencialmente, a crises que não sejam passíveis de processar-se

pela via legal. A frágil situação do Estado de direito venezuelano é tema digno da atenção

dos estudiosos latino-americanos (vide as reiteradas tentativas de golpe de Estado,

ocorridas desde os anos 1990).

Uma discussão que mobiliza grande parte da comunidade acadêmica preocupada

com questões de representação e de participação popular na América Latina é a

“plebiscitarização” da democracia bolivariana. Isso porque, ora se alega, tal fenômeno não

tem significado, necessariamente, um incremento na qualidade do exercício democrático, e

sim a manipulação de recursos simbólicos e decisórios com o fito da perpetuação do

presidente Chávez no poder. A tendência é batizada por alguns autores de “neopopulismo”.

Conceitualmente, este difere do seu predecessor no que toca ao grau e aos instrumentos

empregados, conservando-se como uma estratégia de governar extra-institucionalmente, em

conexão direta com o “povo”. Resta averiguar se a plebiscitarização da democracia, qual se

vem praticando na Venezuela, conforme o modelo dito bolivariano, é o antídoto ou, antes, o

veneno – em um subcontinente, assim digamos, ainda traumatizado com os anos de

1 A referência óbvia, aqui, é a célebre frase atribuída a Margareth Thatcher, ex-primeira-ministra britânica, segundo quem, supostamente, “não há[veria] alternativa” ao Estado mínimo, em face da crise do Estado de bem-estar europeu.

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repressão militar, superados não há muito. Reavivando um debate recente, pergunta-se: há

democracia de mais ou de menos na Venezuela de hoje?

Há, naturalmente, razões mais imediatas e auto-interessadas, relativas à posição do

Brasil no mundo, que justificam a presente empreitada literária. A vizinhança entre os dois

países – Venezuela e Brasil – incita-nos a pensar estrategicamente formas de cooperação e

de coexistência pacífica. Por exemplo, é relevante entender se os interesses manifestos da

política externa venezuelana não se chocam com os propósitos do Itamaraty; ou se a

política externa de Chávez, assumidamente agressiva em seus meios e formas de expressão,

oferece alguma ameaça efetiva ao Brasil; ou, ainda, quais as reais perspectivas de vir a

configurar-se uma união sul-americana de nações nos moldes preconizados por Hugo

Chávez – fazendo rememorar o sonho pan-americanista de Simón Bolívar. Esses

importantes pontos, pertinentes ao temário das relações bilaterais entre Brasil e Venezuela,

reforçam a necessidade de uma revisão da inserção internacional da Venezuela bolivariana.

A fim de atingir mais plenamente as suas finalidades, este texto estará estruturado

da seguinte maneira: na próxima seção, faremos brevíssimo apanhado das versões do

conceito de bolivarianismo forjadas no decorrer dos séculos XX e XXI; na terceira seção,

resgataremos as origens remotas da indústria petrolífera venezuelana, bem como os seus

antecedentes e as prefigurações; na quarta seção, tentaremos delinear um painel evolutivo

do Estado, da economia e da sociedade venezuelanos entre os anos de 1930 e 1990 –

período de relativa prosperidade para o país; na seção seguinte, identificaremos as

principais mudanças, especialmente as de caráter político e institucional, que incidiram

sobre o Estado venezuelano contemporâneo; na sexta seção, traremos à baila um debate

sobre as conexões – perversas – entre a petropolítica, o desenvolvimento econômico e a

qualidade da democracia; na sétima e penúltima seção, apontaremos algumas das mudanças

ocorridas no perfil diplomático venezuelano após a ascensão de Hugo Chávez à presidência

da República. Avaliaremos, ainda, se há compatibilidade entre os projetos de integração

regional arquitetados por Brasil e Venezuela; por fim, nas conclusões, trataremos de

dimensionar, histórica e politicamente, o fenômeno do bolivarianismo do século XXI. Eis o

nosso plano de trabalho.

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2. Discussão conceitual

O que significa, precisamente, ser “bolivariano” na alvorada do século XXI? A

pergunta resulta da inquietação deste autor diante do alastramento discursivo das alusões –

abertas ou veladas – ao ícone sul-americano Simón Bolívar; e ao caráter supostamente

revolucionário de que se revestem alguns regimes políticos recentemente instaurados, por

meio do voto popular, em nosso subcontinente. A vinculação entre os propósitos libertários

de Bolívar e os métodos empregados por tais governantes contemporâneos – provenientes

de partidos de esquerda, nacionalistas e antiamericanistas – tornou-se moeda corrente nos

noticiários e análises – embora, conforme buscaremos argüir neste ensaio, a pretensa

relação não tenha passado por escrutínio acadêmico cuidadoso até o momento.

Como um conceito socialmente disseminado, o bolivarianismo data do século XX –

tendo sido a expressão cunhada por Eleazar López Contreras, general que presidiu a

Venezuela entre 1936 e 1941. López Contreras, em famoso discurso endereçado à nação,

proferiu que “os ideais bolivarianos constituíam a norma que inspirava todas as suas ações

de governo” (Butto; Irwin, 2006). Desde então, o conceito ganhou adeptos e passou a

povoar o imaginário político da terra onde nasceu Bolívar. Curiosamente, no entanto, as

apropriações do conceito, no curso do tempo, nem sempre significaram uma orientação

política comum. López Contreras, o pai do conceito de bolivarianismo, pretendia, à sua

época, combater o bolchevismo soviético, cujas idéias se infiltravam no continente sul-

americano, nos vários segmentos sociais. O presidente e os seus seguidores eram anti-

socialistas, o que levava a uma versão de bolivarianismo “direitista” – ou, pelo menos,

“anti-esquerdista”. No entendimento do historiador Tomás Straka, o bolivarianismo de

López Contreras estaria bem sintetizado na tese pretoriana de que “aquele que herda o

exército e que fundou a nação (...) também herda o direito de (re)fundar a nação” (Straka,

2003, p. 21).

Hernán Gruber Odremán (2003), por sua vez, emblematiza um gênero de

pensamento recorrente entre os militares da reserva venezuelana, para quem os princípios

de Bolívar deveriam ser mobilizados nas lutas contra a ameaça representada por Estados

Unidos da América, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e a combinação entre

globalização e neoliberalismo. Segundo o autor, o conjunto dessas ameaças provocaria uma

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reação militar criolla de um tipo parecido com aquele originalmente concebido para

combater bolcheviques – ou para aplacar a reação espanhola à independência da Venezuela,

no século XIX. Donde a insistência no linguajar de López Contreras, e a analogia histórica

e conceitual com Simón Bolívar.

Numa outra vertente, está o bolivarianismo defendido por autores como Darwin

Pazmino e Heinz Dieterich Steffan. Pazmino é o articulador de um bolivarianismo centrado

na noção de “pan-andinismo”. Em aparente contradição, ele deixa de lado o plano pan-

americanista de Bolívar – enunciado, primeiramente, na Carta da Jamaica, de 1815; e,

depois, no Congresso Anfictiônico do Panamá, de 1826 (Cepik; Faria, 2003) – para sugerir

a construção de um grande Estado andino, que viesse a abranger de Peru e Bolívia a

Panamá e Venezuela, incluindo a Colômbia, mas excluindo o Chile. Nas suas formulações,

o ativista Pazmino convoca os “verdadeiros” bolivarianos a comerem apenas alimentos

produzidos na Venezuela, a ouvirem apenas a música nacional e a vestiram apenas as

roupas feitas com tecidos nativos. Ou seja: trata-se de um apelo extremo – e, alguém dirá,

pouco eficiente, com parca chance de ser bem-sucedido – ao ideal bolivariano (cf. Pazmino,

2003).

Dieterich Steffan, acadêmico alemão que assessora o presidente Chávez, define o

bolivariano como “um novo cidadão, dotado de uma consciência nacionalista, republicana e

latino-americana... responsável por sustentar o ideal bolivariano por toda a sua vida”

(citado em Butto; Irwin, 2006). Dada a proximidade de Steffan com o poder constituído,

parece razoável supor que o autor encarne a concepção teórica que lastreia o governo

chavista. Na sua obra mais repercutida – O Socialismo do Século XXI –, Steffan defende a

viabilidade de um modelo de gestão política fundamentado na democracia direta, com a

participação plena do corpo político nas decisões governamentais. A sua elaboração remete

a interpretações das idéias de Hegel, Marx e Gramsci – como pode sugerir, por exemplo, a

evocação, ao longo da narrativa, de categorias analíticas tais como “dominação e

emancipação”, “institucionalidade burguesa e valor do trabalho” ou “bloco regional de

poder” (Steffan, 1996).

Em face da diversidade de bolivarianismos que ajudaram a construir a recente

história venezuelana, julgamos útil, em termos heurísticos, o expediente de expor (e discutir

brevemente) neste espaço algumas das concepções políticas de Simón Bolívar, o

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“Libertador”; e traçar, quando possível, paralelos intertemporais entre o seu bolivarianismo

e os advenientes, contrastando versões para um mesmo ideário.

Simón Bolívar, desde muito jovem, assumiu protagonismo nos esforços pela

independência venezuelana, concretizada em 1811 (embora não de maneira inconteste ou

pacífica, como os enfrentamentos com a Espanha mostrariam, na seqüência). Rico

fazendeiro de cacau, Bolívar não acreditava em um projeto espanhol que pudesse conduzir

a Venezuela a superar a condição de colônia de exploração, de provedora de recursos

primários à metrópole. O mesmo raciocínio aplicava-se à hipótese – então, bastante

provável – de Napoleão Bonaparte vencer as guerras que movia pela Europa e colonizar,

por via reflexa, a América espanhola. Inspirado na saga dos federalistas estadunidenses, o

objetivo original bolivariano consistiu na geração de condições sociais propícias ao

autogoverno venezuelano – ou, numa chave contemporânea, a algo muito próximo daquilo

a que se tem chamado, em linguagem pomposa, de “autodeterminação dos povos” latino-

americanos.

Ao contrário do que as novas versões bolivarianas poderiam dar a entender, Bolívar

não era exatamente um antiamericanista. Demonstrava respeito – quando não admiração –

pela trajetória política dos Estados Unidos da América. Tachou os Pais Fundadores de

“visionários benevolentes”, no que esboçou crítica à suposta ingenuidade dos criadores da

nação americana, com seus “experimentos fantásticos”. Bolívar deixaria mais ou menos

clara a sua inclinação por um governo unitário e centralizador, ao rejeitar, para a

Venezuela, o modelo federativo. Isso porque, na sua visão, as forças desagregadoras ainda

atuavam muito fortemente no território, e as províncias grão-colombianas, constitutivas do

novo Estado independente, ainda não haviam se integrado em um projeto político

efetivamente nacional (Bushnell, 2001; Deas, 2001). Para Bolívar, um governo adequado

para a Venezuela seria aquele que

[E]mbora republicano nos aspectos externos, barrasse os instintos desordeiros do povo simples por meio de um sufrágio limitado, de um executivo forte e um senado hereditário, acrescidos de um ‘poder moral’ formado por cidadãos proeminentes com a função especial de promover a educação e os bons costumes. Tratava-se de uma afirmação extremamente conservadora, que resumia características permanentes do pensamento político de Bolívar. (Bushnell, 2001, p. 167, destaque do autor)

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A mescla de um republicanismo liberal oitocentista com o desejo de reprimir as

convulsões domésticas marcava o pensamento bolivariano original. Seria necessário

corrigir excessos em nome da estabilidade e da autoridade instituída. Tanto assim que

Bolívar, redator da Constituição da Bolívia, nela inseriu um dispositivo que previa, para o

presidente, as prerrogativas da vitaliciedade e a capacidade de nomear o próprio sucessor.

Ou seja: o presidente seria praticamente equivalente a um monarca, ainda que não

ostentasse título nobiliárquico. O aspecto de concentração de poderes nas mãos do Poder

Executivo contrariava, frontalmente, o liberalismo de Montesquieu e de Jefferson. No

entanto, da perspectiva do institucionalismo histórico, a hipertrofia da instituição da

Presidência da República, defendida, às escâncaras, por Simón Bolívar, ajuda a explicar

alguns fatos e tendências recentes, os quais se relacionam diretamente com a emergência e

a cristalização do modelo bolivariano do século XXI.

Em referência à organização da sociedade, a historiografia não registra impulso

mais consistente de Simón Bolívar pelo igualitarismo estrito entre os cidadãos, pelo

estabelecimento de uma ordem socialista, comunista ou assemelhado. Após a

independência, o poder seria mantido nas mãos de uma pequena elite letrada, visto que o

critério para participar do sufrágio (universalizado, na Venezuela, para os homens, em

1853) era a alfabetização (precondição das mais exigentes, numa sociedade de base rural).

O escravismo seria abolido lentamente – restando indícios de que, por volta de 1830,

existiam ainda cerca de 45 mil escravos na região. Ilustrativamente, o professor Malcolm

Deas afirma: “seria um grande anacronismo imaginar que algum líder latino-americano da

independência tivesse trabalhado por uma ordem rural igualitária” (Deas, 2001, p. 513). O

movimento de libertações nacionais latino-americanas foi, antes de tudo, um processo

conduzido “pelo alto”, em nada fazendo lembrar as revoluções de massa (sobretudo, a

soviética e a chinesa) do século XX. À luz do que foi exposto, o bolivarianismo do século

XXI parece subverter as concepções que, alegadamente, lhe teriam dado origem.

A ambígua manifestação de idéias políticas bolivarianas tanto à “esquerda” quanto

à “direita” do espectro político venezuelano, nos séculos XX e XXI, desperta dúvidas e

convida-nos a ir além. Ainda que coubesse um exercício de “arbitragem”, para apontarmos

quem seriam os legítimos “herdeiros ideológicos” de Simón Bolívar, se “progressistas” ou

se “conservadores”, enfrentaríamos enorme dificuldade para fazê-lo a contento, com o

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devido rigor acadêmico. Essa patente ambigüidade do pensamento de Simón Bolívar

revela, se nada mais, a não-trivialidade da tentativa de transposição do bolivarianismo

novecentista para os tempos correntes. Entretanto, a bem da manutenção de nosso plano de

trabalho e de uma certa coerência da narrativa, deixaremos a questão momentaneamente, a

fim de retomar a contemplação da evolução histórica venezuelana, com o fito de oferecer

ao leitor, ao fim desta monografia, um painel mais nítido e complexo do Estado, da

economia e da sociedade venezuelanos neste início de século XXI – conforme prometido

no subtítulo do trabalho – e de, quem sabe?, conseguir prover resposta satisfatória para o

enigma do bolivarianismo – a saber: é ele, afinal, compatível com as relações internacionais

contemporâneas?

Reservaremos algum fôlego, nas conclusões, para voltar a tratar do problema, bem

como de seus desdobramentos empíricos.

3. Retrato de um Estado petrolífero quando jovem (1830-1930)

Tão logo cumprida a profecia bolivariana da libertação, o Reino da Grã-Colômbia

desmembrou-se em três unidades político-territoriais: Equador, Nova Granada (Colômbia)

e Venezuela. Três repúblicas que tinham muitas características em comum, mas que

também apresentavam as suas particularidades. Eram pouco povoadas, de população

majoritariamente rural, com grande diversidade racial, pouco integradas internamente

(Deas, 2001). Nisso, Equador, Nova Granada e Venezuela apenas refletiam o padrão de

colonização espanhola. Porém, no que se refere à economia, as diferenças eram mais

sensíveis. A Venezuela mostrar-se-ia, desde muito cedo, a mais dinâmica entre as três

repúblicas. O motor para a atividade econômica era o cacau, de qualidade superior, logo

transformado em produto de exportação para o México e a Europa. Ao cacau somava-se a

cultura do café, desenvolvida a partir do século XVIII, líder na relação dos produtos

venezuelanos exportados, em valor, em meados dos anos 1830. (vide Tabela 1)

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TABELA 1 – Exportações (em milhares de pesos): DATA PAÍS MERCADORIAS VALOR

1837 Venezuela

Café

Cacau

Algodão

____________________

Total

1.660

875

616

________________________

4.944

1836 Nova Granada

Algodão

Fumo

Moedas de ouro

____________________

Total

199

191

1.579 (+ 1.000 clandestinos)

________________________

2.828

1836 Equador

Cacau

Chapéus

____________________

Total

690

100

________________________

1.000 Fonte: Deas (2001, p. 511).

Note-se, contudo, que a Venezuela não conseguiria, por todo o século XIX,

encontrar um produto básico para exportação contínua. Tampouco se tratava de país

atraente para investimentos estrangeiros, dado o seu insulamento do mundo. Mesmo com

todas as dificuldades acarretadas pelas flutuações de preço no mercado internacional, o café

continuou a ser, até o início do século XX, o arrimo da economia de exportação da

Venezuela. Outro aspecto relevante é que esse cultivo do café serviu como impulso para a

libertação efetiva de escravos – que, freqüentemente, se evadiam das fazendas, em busca

dos riscos e das oportunidades do trabalho livre e assalariado. Tudo guiaria, por suposto, a

uma maior dinamização da atividade econômica. No entanto, a dificuldade de auferir

receitas levava os governos da região a desenvolver técnicas mais eficientes de tributação

da população. Além disso, boa parte das receitas provindas da taxação revertia-se para a

“militarização” – sob a sombra de ter de travar uma eventual guerra de reconquista contra a

Espanha.2

2 Não bastasse a pouca diversificação da pauta comercial, a tributação elevada também contribuía para asfixiar, lentamente, perspectivas de uma melhor inserção venezuelana na economia internacional. Donde a

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Embora as informações a respeito da economia venezuelana do século XIX sejam

truncadas e incipientes (Deas, 2002), estima-se que, por volta de 1870, o país contasse com

população de aproximadamente 2 milhões de habitantes (algo como o dobro da população

venezuelana ao tempo da sua independência nacional, em 1811), tendo ingressado no seu

segundo grande ciclo de exportação de café. Eis o momento em que se inicia o processo

que alteraria – de forma drástica – o modelo de inserção da Venezuela na economia

internacional. Faço referência aos primórdios da exploração petrolífera no país.

A gênese da indústria petrolífera venezuelana remete a 1878, ano da fundação da

Compañía de Petróleo del Táchira. A primeira concessão do governo para exploração

estrangeira é feita, em 1883, a uma empresa americana – a New York and Bermúdez

Company. A partir de então, o petróleo torna-se moeda das transações políticas na

Venezuela. Concessões são feitas com base nas relações personalistas mantidas com o

presidente da ocasião. No entanto, é só em 1917 que o petróleo começa a figurar como

produto de exportação com alguma relevância no mercado internacional (Anastasia; Melo;

Santos, 2004, p. 137). Em 1926, o líquido negro já era a principal commodity da pauta de

exportações do país. Logo em 1928, a Venezuela tornara-se a segunda maior produtora

mundial de petróleo, respondendo por 8% da produção mundial – além de sagrar-se a maior

exportadora do mundo, em toneladas do óleo (Deas, 2002, p. 284).

Como é razoável supor, após o advento da indústria do petróleo, os vínculos da

Venezuela com a economia mundial são robustecidos, e as relações bilaterais com os

Estados Unidos da América passam a constituir pedra-de-toque da política externa

venezuelana – sobretudo, no pós-Primeira Guerra. Ao contrário de Equador e Colômbia, a

terra de Bolívar conseguia atrair para si a atenção das potências da época. Com os recursos

auferidos do comércio do petróleo, a Venezuela, na expressão de Deas, “enveredou numa

corrida... espetacular, pelo menos estatisticamente” (2002, p. 316). Em 1928, o somatório

de importações e exportações correspondia a mais de 120% do PIB nacional (Bulmer-

Thomas, 2005, p. 29). De um estágio inicial de insulamento, a economia extroverteu-se por

completo, reorientou-se para o mercado internacional. Há que citar, como externalidades da

“marcha do petróleo”, a urbanização acelerada por que passou o país, o que minou a

alegação de que a Venezuela não alcançara, durante o século XIX, “um lugar legítimo no concerto das nações” (Deas, 2001, p. 538).

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economia agrícola e fez expandir as classes médias e o proletariado. Burocratizou-se o

Estado e modernizou-se a sociedade. Isto é: por volta de 1930, estava, finalmente, pronto o

alicerce da Venezuela moderna.

4. Sonhos de uma noite de verão: emerge (e submerge) a “Grande

Venezuela” (1930-1990)

A “Crise de 1929”, devastadora para a maioria dos países da América Latina, não

surtiu efeitos apreciáveis sobre a Venezuela. A rigor, o petróleo havia se incumbido de

fazer blindagem à economia venezuelana, de tal modo que, no ano de 1932, o volume de

exportações do país era rigorosamente o mesmo registrado em 1928. A queda nos preços

dos commodities, no ciclo de depressão econômica, foi amplamente compensada pelo

rápido crescimento das exportações, ocorrido na segunda metade dos anos 1920. Além

disso, a Venezuela soube aproveitar-se da condição de ser o país produtor de petróleo com

custos unitários mais baixos em todo o continente americano (Bulmer-Thomas, 2005). Na

política, o aspecto notável do período foi a manutenção de Juan Vicente Gómez no poder, a

despeito da turbulência generalizada na política latino-americana. O autocrático presidente

(desde 1908) permaneceria no comando do Estado até 1935 (ano da sua morte).

Contribuíram para tanto a relativa estabilidade propiciada pelo setor petrolífero e as boas

relações cultivadas pelo ditador com investidores estrangeiros – principalmente, ingleses e

estadunidenses.

A década de 1930 significou, para a Venezuela, crescimento na renda nacional da

ordem de 6% ao ano. Aumentou também, de forma considerável, o volume de importações

e de exportações feitas pelo país – por conseguinte, aprofundou-se a inserção venezuelana

na economia internacional. Os dados agregados da economia venezuelana obscureciam,

porém, a falência maciça dos cultores de café e de cacau, bem como dos criadores de gado,

duramente afetados pelas oscilações do mercado internacional após o crack da Bolsa de

Nova Iorque. A tendência seria agravada com a eclosão, em 1939, da Segunda Guerra

Mundial, e a diminuição de demanda internacional que se seguiu. Em 1940, embora a

Venezuela detivesse a sexta maior economia da América Latina, a participação da indústria

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na renda nacional não passava de 14%. A enorme receptividade internacional ao petróleo

venezuelano havia, colateralmente, distorcido a matriz produtiva do país (Thorp, 2005).

Rosemary Thorp nota que, ao contrário de outros casos latino-americanos, a

Venezuela não precisou resolver “tensões no modelo”, com respeito ao papel do capital

estrangeiro ou à relação da burguesia com o Estado, já que “o capital externo recebeu total

acolhida e os grupos nacionais identificavam-se inteiramente com o Estado” (idem, p. 115).

Assim, a concentração de recursos nas mãos do Estado – a um só tempo, empresário do

petróleo e aparelho do fiscalismo – produzia sobre os cidadãos a impressão de que todo

desenvolvimento social passava, necessariamente, por ações governamentais, encetadas de

“cima para baixo”. Apesar de o presidente Rómulo Betancourt ter empreendido políticas

para o desenvolvimento industrial no imediato pós-Guerra, um novo governo ditatorial, de

Marcos Pérez Jiménez, estancaria, em boa medida, o referido processo. A deposição de

Rómulo Gallegos, aos oito meses do exercício presidencial, representou o aborto de uma

experiência de governo democrático até então inédita na Venezuela.3 A próxima década,

sob Pérez Jiménez, não veria traço de democracia no país. Por outro lado, os anos 1940

também simbolizaram, do ponto de vista da política institucional, a consolidação da

centralização administrativa do Estado, ou o “último suspiro” do caudilhismo venezuelano

(Anastasia; Melo; Santos, 2004).

O período de Pérez Jiménez coincide com o auge das exportações de petróleo e das

inversões estrangeiras na Venezuela. Há o fortalecimento de setores comerciais e

industriais, o que mitiga a dependência de classes populares em relação ao Estado. Além do

que, começa a emergir, à época, uma oposição política ao “enclave do petróleo”,

constituída por setores médios, setores populares urbanos e o operariado do petróleo

(Cardoso; Faletto, 2004, p. 107).

A intensa polarização político-partidária de fins dos anos 1940 e início dos anos

1950, contrapondo, de um lado, a Ação Democrática (AD), nacionalista e anticlerical; e, de

outro, o Comitê de Ação Política Eleitoral Independente (COPEI), conservador e católico,

desaguou em uma clássica solução de compromisso, a qual geraria efeitos duradouros para

a política venezuelana: o chamado Pacto de Punto Fijo, formalizado em 1958. De acordo

com o Pacto, os líderes dos três maiores partidos venezuelanos – AD, COPEI e URD

3 Tratava-se do “triênio democrático”, historicamente situado entre outubro de 1945 e novembro de 1948.

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(União Republicana Democrática) – comprometiam-se a aceitar os resultados das eleições,

a formar um governo de unidade nacional e a acionar mecanismos de consulta recíproca

sobre os temas políticos mais palpitantes. Garantias adicionais também foram concedidas à

Igreja, aos militares e à indústria nacional (Anastasia; Melo; Santos, 2004). Cumpre ainda

citar a assinatura, no mesmo ano de 1958, do Programa Mínimo de Governo, o qual lançava

as bases de um modelo de desenvolvimento alicerçado nos capitais estrangeiro e privado,

em subsídios para o setor privado e mecanismos de compensação para uma eventual

reforma agrária na Venezuela (Amorim Neto, 2006).

As décadas compreendidas entre 1950 e 1980 mostraram-se cruciais para a

formação da Venezuela contemporânea. Mais do que isso: projetaram, por um instante, a

sombra de uma “Grande Venezuela” para o futuro. Economicamente, o desempenho do

país foi impressionante. O produto interno bruto expandiu a uma taxa média anual de

4,4%.4 No rastro do que o historiador Eric Hobsbawm (2000) chamou de “os anos

dourados” do século XX, a Venezuela foi, efetivamente, “rebocada” pelo crescimento

econômico dos mercados desenvolvidos – com ênfase para os Estados Unidos, a Europa e o

Japão. A pujança da atividade industrial daqueles países fazia necessário o incremento nas

importações do petróleo, o que alçava a Venezuela a posição muitíssimo privilegiada no

contexto latino-americano. Haja vista que, enquanto a maior parte dos Estados do seu

entorno entrava em profunda recessão, em 1973, diante do primeiro “choque do petróleo”,

o país registrou aumento sem precedente nos ganhos procedentes das exportações – que

subiram de US$ 3,1 bilhões, em 1972, para US$ 11,3 bilhões, em 1974 (Ffrench-Davis;

Muñoz; Palma, 2005).

Politicamente, o Pacto de Punto Fijo funcionou como espécie de marco

constitucional. Inaugurou um regime de cooperação partidária que resistiria por 4 décadas –

mais precisamente, até a ascensão, ao poder, de Hugo Chávez Frías, em 1999.5 Até 1958, a

Venezuela conhecera 25 constituições, alternando ditaduras estáveis e instáveis; e oito anos

de governo civil (dos quais, apenas 3 sob democracia). Doravante, sob o signo da

moderação e o Texto Constitucional de 1961, AD e COPEI fariam alternância no poder,

estabelecendo, a despeito da aparente improbabilidade, um regime democrático

4 Entre 1950 e 1981 (Ffrench-Davis; Muñoz; Palma, 2005, p. 163). 5 O período que vai de 1958 a 1999 ficou conhecido, na Venezuela, como a “Quarta República”. A ela sucede a “Quinta República”, capitaneada por Hugo Chávez.

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competitivo, no coração de uma das regiões menos democráticas do planeta, durante o

período da Guerra Fria (Amorim Neto, 2006; Anastasia; Melo; Santos, 2004).6

Entretanto, o gigante tinha pés de barro. Os anos 1980 significaram, da dupla

perspectiva da economia e da política, duros golpes para a Venezuela. O esgotamento do

keynesianismo econômico, no mundo, e do Estado de bem-estar social, na Europa,

desencadeou uma crise de liqüidez mundial que, não tardou muito, levou os países da

América Latina, um após o outro, à bancarrota – a começar pelo México, em 1982. O

exemplo venezuelano tem um componente dramático: o subdesenvolvimento do seu setor

industrial (que, em 1980, respondia por menos de 19% da renda nacional). A histórica falta

de investimento na indústria não-petrolífera acarretava altos coeficientes de importação

(principalmente, de bens de consumo). De 1981 a 1990, a renda bruta venezuelana cresceu

a 0,6% ao ano – o que denunciava, se nada mais, a falta de dinamismo da sua economia. A

crise de liqüidez, associada à deterioração dos termos de troca no comércio internacional,

conduziu a Venezuela ao endividamento internacional, e à necessidade premente de

reformas institucionais.

Por sua vez, o panorama político dava sinais de instabilidade. A burocracia do

Estado mostrava-se ineficiente; as cortes, corruptas; e os principais atores da cena política,

excessivamente submetidos à dinâmica partidária, o que engessava, de saída, possibilidades

de ação (Coppedge, 2005). Há uma crescente perda na capacidade institucional de

mediação efetiva das relações entre Estado e sociedade – expressa, dentre outros, pelo

aumento da abstenção eleitoral (Sanjuan, 2005). Em fevereiro de 1989, um levante popular

– conhecido como “Caracazo” – terminaria em derramamento de sangue, após o aumento

dos preços das tarifas de transporte público, acordado entre Carlos Andrés Pérez e o Fundo

Monetário Internacional. Críticos venezuelanos, na academia e na imprensa, fazendo eco à

insatisfação popular, passam o tratar o regime democrático ali instalado de “partidocracia”,

sugerindo o insulamento do povo em relação ao processo decisório (Amorim Neto, 2006).

Em suma: o paradigma do Punto Fijo, aparentemente, não se sustentaria no médio prazo.

6 A ressalva de Amorim Neto (2006, p. 155, nota 274) parece importante: os partidos venezuelanos, na tarefa de consolidar a democracia, foram ajudados pelos recursos financeiros que o país passou a receber com a alta do preço internacional do petróleo, em 1973. Tais recursos serviram como combustível para as políticas redistributivas e compensatórias do Estado venezuelano, o que, sem dúvida, reforçou os laços entre os governos democráticos e a população de baixa renda.

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Aspectos demográficos também ajudam a entender o desmoronamento do projeto

“Grande Venezuela”. Entre 1930 e 1990, a população do país cresceu quase 7 vezes

(enquanto a da América Latina, apenas 4 vezes). Isso se explica tanto pelas altas taxas de

fecundidade quanto pelas imigrações – legais e ilegais – que, sob a miragem do eldorado

petrolífero, passaram a acontecer, em grande escala. Acrescente-se a rápida e desordenada

urbanização da sociedade venezuelana. No intervalo de 50 anos (1930-1980), a população

urbana saltou de 14 para 83%, concentrando-se, sobretudo, em Caracas (cf. Merrick,

2005).7 Em face do que se expõe, não surpreende que o PIB per capita venezuelano, no ano

de 1992, tenha regredido ao índice de 1963 (Coppedge, 2005, p. 295). A deterioração

socioeconômica patenteou-se.

TABELA 2 – Percentagem de votos obtidos pelos presidentes venezuelanos (1947-2006):

PRESIDENTE PARTIDO ANO % DE VOTOS

Rómulo Gallegos AD 1947 74,4

Rómulo Betancourt AD 1958 49,2

Raúl Leoni AD 1963 32,8

Rafael Caldera I COPEI 1968 29,1

Carlos Andrés Pérez I AD 1973 48,7

Herrera Campíns COPEI 1978 46,6

Jaime Lusinchi AD 1983 58,4

Carlos Andrés Pérez II AD 1988 52,9

Rafael Caldera II Convergencia 1993 30,5

Hugo Chávez I MVR 1998 56,2

Hugo Chávez II MVR 2000 59,7

Hugo Chávez III MVR 2006 62,9 Fonte: baseado em Amorim Neto (2006, p. 158).

5. Bolivarianismo dos contemporâneos: reviravoltas político-institucionais

no limiar do século XXI (1990-2007)

7 Em 1980, a população urbana venezuelana era menor apenas que a uruguaia, em termos proporcionais, considerada toda a América Latina (Merrick, 2005, p. 263).

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Se os anos 1980 já prenunciavam tempos difíceis, da perspectiva das instituições, os

anos 1990 abrem, de uma vez por todas, a “caixa de Pandora” da política venezuelana. Sob

o pretexto do fracasso da partidocracia em atender satisfatoriamente às demandas

populares, dois golpes de Estado são tentados, em 1992. Em meio ao que significava, para a

América Latina, o advento de uma era de amplas reformas estruturais do Estado, o

presidente Carlos Andrés Pérez falha em implantar a sua agenda reformista (Weyland,

2002). Como decorrência, sofre o impedimento constitucional, tendo de deixar o posto. O

sistema de partidos venezuelano começa a ruir: AD e COPEI, que dominavam

hegemonicamente a cena política desde 1973, perdem a presidência para Rafael Caldera –

candidato independente, nas eleições de 1993. Na seqüência, em 1998, AD e COPEI não

lançam sequer candidatura própria, decidindo apoiar outro candidato independente,

Henrique Salas Römer – derrotado por Hugo Chávez Frías, o líder da primeira tentativa de

golpe de Estado, de 1992. As linhas do bolivarianismo do século XXI haviam sido

tramadas.

Chávez é o responsável pela instauração de um novo regime político no país. Uma

nova Constituição é fabricada, passando a vigorar em 1999. Novas leis eleitorais são

implementadas; oficiais corruptos são julgados e condenados; o sindicalismo nacional é

democratizado. Não obstante, a tradicional matriz democrática liberal – que inspirou, em

certa medida, o libertador Bolívar – é gradativamente substituída por um modelo baseado

na idéia de soberania popular, na vontade das massas. Segundo Michael Coppedge, “se a

democracia liberal é o padrão, então o retrocesso [democrático] tornou-se um fato

consumado por volta do ano 2000. A Venezuela havia deixado de ser uma democracia

adequadamente liberal” (2005, p. 292).

É necessário olhar mais de perto o nosso objeto de estudo para compreender o

conteúdo da afirmação acima. Em primeiro lugar, cumpre notar que Chávez soube

desvencilhar-se de parcela considerável das travas institucionais que constrangiam seu

exercício de poder – mesmo que, para tanto, houvesse de proceder com algumas quebras

constitucionais. Fê-lo em duas etapas: eliminando os velhos atores, em condição de fazer

frente ao presidente; e garantindo a lealdade dos novos atores. Inicialmente, foi convocada

uma Assembléia Nacional Constituinte, o que eliminou, no curto prazo, algumas das

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amarras ao Poder Executivo: extinguiu-se a Corte Suprema de Justiça, criando-se, em

contrapartida, o Tribunal Supremo de Justiça; nomeou-se um novo conselho eleitoral;

apontou-se um novo controlador geral da República – todos propensos a colaborar com o

regime de Chávez. Paralelamente, a Assembléia Nacional Constituinte designou, de modo

não-democrático, um Comitê Legislativo Nacional, que assumiu, provisoriamente, o lugar

dos parlamentares eleitos (a última legislatura), até que novas eleições pudessem ser

realizadas.

Apenas em agosto de 2000, uma nova legislatura, democraticamente eleita, assumiu

os assentos no parlamento (tornado unicameral). Chávez reelegeu-se à presidência, com

cerca de 57% dos votos válidos, contando com o apoio de pelo menos 99 dos 165

parlamentares eleitos. Esse Congresso, de maioria chavista, aprovou, em novembro de

2000, lei que concedia amplos poderes para o presidente expedir decretos sobre um variado

leque de assuntos. Poucos governadores permaneceram na oposição política; e os que

decidiram arcar com os custos, tiveram a sua capacidade de governar minada. O resumo da

ópera: entre dezembro de 1998 e agosto de 2000, Hugo Chávez conseguiu remover ou

enfraquecer todos os freios e contrapesos institucionais ao Poder Executivo. Donde a

alegação do “retrocesso democrático” na Venezuela (Coppedge, 2005; Amorim Neto, 2006;

Anastasia; Melo; Santos, 2004).

Já no fim de 2001, depois do alijamento de determinados setores sociais do processo

decisório nacional, Chávez passa a ser alvo de campanhas de descrédito. Líderes

empresariais declaravam que o presidente havia abusado dos poderes delegados pela

Assembléia Nacional Constituinte – o que incluiu a aprovação de duas leis, uma sobre

reforma agrária e outra sobre hidrocarbonetos, sem a devida consulta democrática. A

imprensa, insatisfeita com as tentativas de cooptação pelo Executivo; e as altas patentes do

Exército, contrárias à inclinação pró-Cuba e à tolerância com as Forças Armadas

Revolucionárias da Colômbia (FARC) do governo, também se mobilizam contra Chávez.

Em meados de 2002, o suporte popular ao presidente despencou, passando de

aproximadamente 2/3 para cerca de 1/3 do eleitorado. Não tardou para acontecer novo

golpe de Estado na Venezuela: em abril daquele mesmo ano, uma conspiração militar-

empresarial-sindical tentaria tomar o poder. A junta, liderada por Pedro Carmona Estanga,

anunciou a dissolução da Assembléia Nacional e da Suprema Corte, o repúdio à

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Constituição de 1999 e a prisão imediata dos governadores chavistas. Só que o contragolpe

veio, em seqüência: incapazes de fazer Chávez renunciar, os conspiradores tiveram de

haver-se com os protestos pró-Chávez que tomaram as ruas da Venezuela. Instâncias

democráticas latino-americanas condenaram com veemência a tentativa de golpe. Passados

alguns dias, os articuladores da deposição do presidente viram-se sem alternativa. Haviam-

se esgotado os seus recursos e argumentos. Saldo do episódio: Chávez retornaria à

presidência, fortalecido, deixando como traço um país ainda mais dividido. A maior ironia

da história, segundo Coppedge (2005), é que foi um dispositivo da dita “democracia

liberal” – o constitucionalismo – o que garantiu a Hugo Chávez a sobrevivência

institucional. Ainda que isso nunca venha a ser abertamente admitido pelo mandatário da

nação.

Em 2006, o presidente venezuelano foi reeleito democraticamente para um novo

termo (de 6 anos de duração, contados a partir de janeiro de 2007). Pelo que dá a saber, “a

transição acabou”. Isso significa assumir uma maior autonomia do chefe do Executivo para

agir de ofício, no cumprimento de suas atribuições. Dentre as medidas já concretizadas até

a data presente, relativas à “nova era” de Chávez no poder, destaca-se a polêmica não-

renovação da concessão para funcionamento da RCTV (a emissora oposicionista de TV,

sediada em Caracas). Entre as promessas do presidente para este mandato, cita-se a de

estatizar as empresas de telecomunicações e de energia elétrica do país – julgadas

demasiado estratégicas para permanecer em mãos privadas. Além disso, existe proposta de

reforma constitucional para derrubar a cláusula que impede a reeleição presidencial por

número indefinido de vezes. Se aprovada, essa mudança constitucional significará, da

perspectiva institucional, novo golpe ao princípio do “império da lei” na Venezuela

contemporânea; por conseguinte, novo golpe à democracia liberal, pois (The Economist,

2007).

6. Revolução Bolivariana rima com globalização? Petropolítica,

desenvolvimento econômico e processo democrático (1970-2007)

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Desde os anos 1970, com a ocorrência dos “choques do petróleo”, a Venezuela tem

passado por um processo que Thomas Friedman classificou, engenhosamente, como

manifestação da “Primeira Lei da Petropolítica”.8 Essa lei assim se enuncia:

O preço do petróleo e os níveis de liberdade individual movem-se sempre em direção oposta nos países ricos em petróleo. Conforme a Primeira Lei da Petropolítica, quanto mais alto for o preço médio do petróleo cru no mercado internacional, menores serão as liberdades de expressão e de imprensa, a democracia eleitoral, a independência do judiciário, o imperativo da lei [rule of law] e a independência dos partidos políticos. Contrariamente, quanto menor for o preço internacional do petróleo, mais os Estados petrolíferos serão forçados a mover-se na direção de um sistema político e de uma sociedade mais transparentes, sensíveis às vozes de oposição e focados na construção de estruturas educacionais e legais que maximizarão as habilidades das pessoas para competir, abrir empresas e atrair investimentos estrangeiros. (Friedman, 2006, tradução livre)

A referida “lei da petropolítica” parece aplicar-se a um amplo conjunto de Estados

da cena internacional contemporânea, dentre os quais, citamos: Angola, Arábia Saudita,

Azerbaijão, Cazaquistão, Chade, Egito, Guiné Equatorial, Irã, Nigéria, Rússia, Uzbequistão

e – Venezuela. A respeito do caso venezuelano, alguns economistas alegam tratar-se de

variante de fenômeno conhecido como “a doença holandesa” [Dutch disease] – uma

referência à descoberta do gás natural no Reino dos Países Baixos, na década de 1960, e ao

subseqüente processo de desindustrialização precoce do país. Seja como for, relevante é

perceber como a dependência da economia venezuelana em relação ao petróleo para

exportação gerou efeitos colaterais tanto sobre a sua matriz industrial quanto sobre a

qualidade de sua democracia (vide Gráfico 1).

A “maldição” da abundância em recursos naturais pode explicar-se através de

mecanismos causais: uma vez que os governos não precisem do dinheiro auferido por via

de taxação à população (já que as rendas são extraídas do monopólio estatal sobre um

determinado produto primário), eles se sentirão menos compelidos a prestar contas à

sociedade. Conseqüentemente, baixa o compromisso governamental com a democracia. Se

o recurso natural abundante supre as carências econômicas imediatas do país, baixa

8 Conquanto se possa catalogar uma série de regularidades a respeito dos países petrolíferos e das relações que neles são estabelecidas entre a economia, o Estado e a sociedade, o autor pondera não se tratar, exatamente, de um experimento laboratorial ou de uma regra infalível. Friedman admite, por suposto, a possibilidade das exceções à “lei” enunciada (nomeadamente: Estados Unidos, Reino Unido e Noruega, países ricos em petróleo e, ao mesmo tempo, considerados, de uma perspectiva institucional, democracias consolidadas).

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também a necessidade de investimentos infra-estruturais na indústria. Donde a distorção da

matriz industrial e os “retrocessos democráticos” na Venezuela contemporânea.9

GRÁFICO 1 – Variação dos níveis de liberdade individual (segundo a organização não-governamental “Freedom House”)

na Venezuela, em função da oscilação do preço internacional do petróleo (1986-2005):

Fonte: Friedman (2006).

A situação será tanto mais grave se nesses países petrolíferos, com instituições

fracas, algum líder autoritário for alçado ao poder. Dado que, no futuro previsível, não são

esperadas quedas drásticas no preço do barril do petróleo, dificilmente acontecerão

incrementos na qualidade da democracia onde tenha havido retrocessos. Pior: registra-se

9 Constatou-se, a partir dos anos 1970, que Caracas vem orientando a sua política comercial em alinhamento com os países membros da OPEP – a Organização dos Países Exportadores de Petróleo. Não por acaso – acredita-se – o conjunto dos países integrantes da OPEP, africanos e árabes em sua maioria, ostenta, no agregado, índices baixos de desenvolvimento econômico, alta concentração de renda nacional e profusão de regimes ditatoriais. Logo, a julgar pelas amostras, a correlação de Friedman mostra-se robusta, em termos empíricos.

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historicamente a tendência de esses líderes autoritários passarem a despender mais e mais

recursos com as forças armadas, com o suborno de oponentes ou com a compra de suporte

público (Friedman, 2006). Estabelece-se um círculo vicioso de difícil solução.

Sintomaticamente, a população passa a perceber o processo de desenvolvimento econômico

do Estado de maneira distorcida e simplória: se existe disparidade na distribuição da renda

nacional, não é porque o governo falhou em promover a educação de qualidade, o senso

empreendedor, o respeito às patentes ou o imperativo da lei (Lange; Rueschemeyer, 2005);

e, sim, porque alguém há de estar “roubando do povo”.

Em tempos como os correntes, de globalização financeira do capital (Gilpin, 2004),

aumento dos fluxos transfronteiriços (Nye; Keohane, 2000) e disseminação do ideário

liberal e democrático (Ruggie, 1998), põem-se sérios obstáculos a uma inserção

internacional mais positiva da Venezuela bolivariana. À medida que a economia

internacional se torna mais competitiva, exigem-se dos Estados estratégias complexas de

desenvolvimento – o que envolverá não apenas uma pauta comercial diversificada e mão-

de-obra qualificada, senão também vantagens institucionais comparativas (Hall; Soskice,

2001). Adicionalmente, como observou o professor David Held (2004), após a Segunda

Guerra Mundial e a criação da Organização das Nações Unidas, uma nova concepção do

direito internacional passou a dar mais legitimidade às formas democráticas de governo, o

que vem acarretando, em termos empíricos, a proliferação das “democracias” (em termos

liberais, procedimentais) no mundo.10 Ou seja: pelo que se depreende desta investigação, o

modelo bolivariano de Chávez corre na contramão das relações internacionais do século

XXI. Poderá ele sustentar-se no longo prazo?

7. Som e fúria: alguns dilemas de uma política externa periférica (1950-

2007)

10 É instigante perceber o apelo ideológico das formas democráticas em um mundo globalizado: travam-se guerras e intervenções militares pela deposição de tiranos, cujos países são agrupados em um arbitrário “eixo do mal”. Associam-se regimes não-democráticos, não raro, à megalomania bonapartista, ao culto ao terrorismo, à ganância nuclear ou à ineficiência econômica. Impõem-se embargos e sanções às nações conduzidas por líderes autoritários. Ante o exposto, como não ser democrata em um mundo regido por “leis morais” liberal-democráticas? Não há de ser tarefa fácil – que o digam os cubanos, para ficarmos em um bom exemplo latino-americano.

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7.1. A questão da integração regional: conflito de versões?

Bolívar alimentou, por algum tempo, a intenção de formar uma Confederação

Andina – proposta que veio a abortar, pela falta de apoios concretos. A partir de 1815, mais

notadamente, desviou o foco para uma possível aliança política a envolver toda a América

espanhola. Com base no princípio das tradições comuns, excluiu o Haiti e os Estados

Unidos de seus planos – e teve dificuldade de imaginar o Brasil, e até mesmo a Argentina

(demasiado autocentrada, na sua opinião), integrados a esse arranjo pan-americanista. Não

pensava, porém, na composição de um grande Estado-nação pan-americano. Conhecia bem

as limitações e as assimetrias do continente – e o insucesso do Congresso do Panamá, de

1826, veio a comprovar a baixa disposição para a integração continental (Bushnell, 2001).

Algumas iniciativas formais, lançadas ao longo do século XX, também falharam em

atingir o objetivo bolivariano da integração continental. Quando, nos anos 1950, o

comércio entre os países latino-americanos começou a cair significativamente (de 11%, em

1953-1955, para 6%, em 1961), iniciaram-se tratativas que resultariam na assinatura, em

Montevidéu, no ano de 1960, do documento constitutivo da Associação Latino-Americana

de Livre Comércio (ALALC). Propunha-se a criação, no prazo de vinte anos, de uma zona

de livre comércio por meio da eliminação gradual de tarifas alfandegárias e das restrições

ao comércio intracontinental, em rodadas anuais de negociação. Apesar do êxito inicial, a

iniciativa não se sustentou no médio prazo. Foi substituída pela ALADI (Associação

Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração), de propósitos mais modestos, mas

que nunca trouxe impacto substantivo ao processo de integração continental. De escopo

regional, o Pacto Andino, assinado em 1969, também buscou, ao seu modo, reavivar o

sonho de Bolívar. Embora, formalmente, ele ainda exista, o Pacto pouco pôde fazer para

avançar a agenda integracionista dos países dos Andes. O ímpeto dos primeiros anos

diminuiu após a queda de Allende, em 1973, e a saída do Chile da organização. Já o

Mercado Comum Centro-Americano (MCCA), criado em 1951, de vocação igualmente

regional, registrou importantes logros na década de 1970, no tocante ao comércio intra-

regional. O avanço registrado no comércio foi muito mais expressivo, comparativamente,

no MCCA do que, por exemplo, na ALALC/ALADI. Houve liberalização ampla do

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comércio centro-americano. Porém, com a crise da dívida, nos anos 1980, e os problemas

políticos vividos na América Central, o MCCA chegou próximo da ruptura. Sobreviveu,

apesar do recrudescimento das barreiras protecionistas e do aumento dos acordos bilaterais

de comércio (Ffrench-Davis; Muñoz; Palma, 2005). Nos anos 1990, a grande inovação, em

termos de integração regional, foi o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul) – acordo

pela redução gradual de barreiras ao comércio entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

Fruto de um acercamento prévio entre os dois maiores países do bloco – Brasil e Argentina

–, o Mercosul tem alternado bons e maus momentos desde a assinatura do Tratado de

Assunção, em 1991. Considerado por especialistas como um exemplar de união aduaneira

incompleta (uma vez que os seus propósitos primários, de liberalização comercial, nunca

vieram a ser implementados na íntegra), este experimento tem passado, na atualidade, por

um momento de retomada, motivado, sobretudo, pelo interesse a ele dispensado pelo atual

presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva.

O auto-intitulado “herdeiro de Bolívar” vem avançando, na primeira década do

século XXI, propostas de um pan-americanismo algo distinto do originário. Denominada de

ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas), a iniciativa chavista é um contraponto à

ALCA (Área de Livre Comércio das Américas, ação capitaneada pelos Estados Unidos,

lançada na década de 1990). A ênfase do projeto bolivariano de integração continental está

na luta contra a pobreza e a exclusão social, na superação das assimetrias entre os países de

América Latina e Caribe. Até o momento, a ALBA não demonstrou grande capacidade de

granjear adesões. Além da Venezuela, integram presentemente seu corpo de membros:

Bolívia, Cuba, Haiti e Nicarágua. A falta de uma agenda propositiva mais clara e

pragmática contribui para a baixa projeção da proposta (Cepik; Faria, 2003)

Diversos autores contemporâneos têm percebido na orientação das políticas

doméstica e externa da Venezuela e de seus aliados imediatos, comparada à de outros

Estados latino-americanos, traços que credenciam a agrupar os países da América Latina

em dois grandes eixos (Castañeda, 2006; Lanzaro, 2006; Panizza, 2006). No primeiro eixo,

estariam os governos ditos “responsáveis” ou “social-democratas”. Dele fariam parte o

Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva e o Chile de Michelle Bachelet. Trata-se de governos

que adotaram uma condução moderada, comprometendo-se, dentre outros, com a

responsabilidade fiscal, a manutenção dos contratos e a estabilidade macroeconômica. O

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segundo eixo é o dos governos de esquerda considerados “radicais” ou “populistas”. A

referência óbvia é a Venezuela de Chávez, secundada pela Bolívia de Evo Morales. Com

retórica antiimperialista e antiamericanista, e uma ostensiva atitude pró-Havana, tais

governos pretendem-se representativos dos “povos oprimidos” da América Latina (Panizza,

2006). Daí se origina o apelo populista.

Em virtude dessa diferenciação nos estilos de governar, Cepik e Faria (2003)

avistam um embate contemporâneo entre dois bolivarianismos – o brasileiro, que remete,

originalmente, aos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, encarnado

nas propostas da ALCSA (Área de Livre Comércio Sul-Americana) e do Mercosul

(Mercado Comum do Cone Sul) ampliado; e o venezuelano, substanciado na figura de

Chávez. Segundo os autores, “o bolivarismo apregoado pelo presidente venezuelano Hugo

Chávez, de viés acentuadamente ideológico e antinorte-americano, permaneceu isolado,

tendo encontrado respaldo apenas em Cuba” (p. 379). O integracionismo redivivo da

América Latina tende, segundo tal avaliação, a seguir a senda do pragmatismo, da

objetividade.

A opinião de que existe incompatibilidade entre os projetos brasileiro e venezuelano

para o futuro das relações regionais merece, porém, ser matizada, e vista com alguma

reserva. Isso porque, nos últimos tempos, tem acontecido a aproximação gradativa e

consistente entre o Mercosul, cujo maior consorte é o Brasil, e a Venezuela, de Hugo

Chávez. A expectativa é de que, até dezembro do ano corrente, a República Bolivariana da

Venezuela passe a fazer parte do Mercosul como membro pleno – o que dependerá,

principalmente, da superação de alguns entraves nos congressos brasileiro e paraguaio. Mas

como o próprio chanceler brasileiro, Celso Amorim, declarou, recentemente, à imprensa

brasileira, “mesmo sem ter bola de cristal”, é bastante provável que a situação se desenrole

favoravelmente ao ingresso venezuelano no bloco (Folha de S. Paulo, 2007). E, a rigor, se

Brasil e Venezuela deverão ser, dentro em breve, parceiros de empreendimento de

integração sul-americana – com nítido empenho dos Executivos brasileiro e venezuelano

para que a ampliação do Mercosul se confirme tão logo possível –, perde força a hipótese

de concorrência leonina entre os países. Ao menos, no futuro próximo.

7.2. A política externa da República (Bolivariana) da Venezuela, ontem e hoje

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A atribuição da pecha de “radical” ao bolivarianismo venezuelano não é gratuita.

Afinal, repetidas têm sido as ocasiões em que o chefe de Estado da Venezuela se excede

verbalmente. A virulência incluiu, por exemplo, mandar o ex-primeiro-ministro britânico,

Tony Blair, e os apoiadores da proposta da ALCA “para o inferno”; pronunciar, em sessão

anual da Assembléia Geral da ONU, que o púlpito “cheirava a enxofre” [numa alusão ao

discurso prévio do presidente dos Estados Unidos da América, George W. Bush]; chamar o

secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, José Miguel Insulza, de

“verdadeiro idiota” e de “vice-rei do império”; ou dizer que o Senado brasileiro, quando

criticava as suas ações de governo, fazia a vez de “maritaca dos Estados Unidos”. Todas as

citações, fartamente documentadas, dão conta do perfil agressivo da diplomacia

presidencial. Acrescente-se aos ataques verbais a relação especial que a Venezuela de

Chávez mantém com países tidos como “párias” do sistema internacional de Estados –

casos de Irã e Cuba.

Essa breve descrição de algumas ações de política externa da República Bolivariana

da Venezuela ilustra um modelo de conduta do Estado um tanto quanto incomum nas

relações internacionais do século XXI. Se, por um longo período desde o fim da II Guerra

Mundial, o país se manteve associado aos Estados Unidos da América e às grandes

potências – compradores preferenciais de seu petróleo –, os anos sob Chávez marcam uma

nova tomada de posição. A postura internacional venezuelana, do fim dos anos 1950 até a

segunda metade dos anos 1990 – o apogeu da “Grande Venezuela” –, trazia ingredientes

daquilo que o professor argentino Carlos Escudé batizou de “realismo periférico”. Em

resumo, este consistia no entendimento de que

A autonomia não é liberdade de ação. A liberdade de ação de quase todos os Estados médios é enorme e chega ao limite da autodestruição, não servindo, portanto, como definição da autonomia. [Esta] mede-se em termos dos custos relativos de fazer uso dessa liberdade de ação... É preciso saber distinguir entre autonomia em si mesma e o uso que é feito dela. Por sua vez, esse uso pode ser conceituado como investimento de autonomia quando se dirige (acertadamente ou não) a alimentar a base de poder e/ou o bem-estar do país, ou como simples consumo de autonomia, quando se constitui numa demonstração exibicionista de que não se está sob a tutela de ninguém. (Escudé apud Soares, 2007)

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O modelo da “política externa dependente” tem sido alvo de investigações

acadêmicas desde há muito. Na América Latina, as primeiras tentativas de formulação

teórica sobre a política externa dos Estados estiveram associadas aos esforços das correntes

cepalinas, adeptas de concepções estruturalistas, à la “centro-periferia”. Bruce Moon assim

definiu tal orientação:

A perspectiva da dependência... conceitua a ligação [entre o Estado forte e o Estado fraco] como uma relação estrutural de longo prazo, em que a oportunidade para o Estado mais fraco e a necessidade do Estado mais forte de fazer barganha no curto prazo são severamente limitadas. Essa escolha constrangida do Estado mais fraco está baseada num histórico de relações que inclui não apenas os comportamentos dignos de recompensa – as quais vão se tornando crescentemente desnecessárias e infreqüentes, à medida que aumente a dependência –, mas também uma variada gama de transações geradoras de mais dependência, que minam a autonomia da unidade tomadora de decisão [do Estado mais fraco]. (Moon, 1983, p. 320, destaque do autor)

Na Venezuela, bem como na maioria dos países latino-americanos, essa inserção

internacional constrangida por vínculos de dependência correspondeu à regra dos anos sob

a Guerra Fria. Embora fosse plausível conceber variações pontuais de postura (a depender

do governante no poder ou do tópico específico da agenda de política exterior), a tendência

era o Estado latino-americano adequar-se à necessidade estadunidense (o que se refletia,

segundo Moon, no próprio padrão de votação desses países na Assembléia Geral da ONU).

Tanto mais para os venezuelanos – uma economia exportadora de produto único na pauta

comercial. A idéia de autonomia como a capacidade de gerar a norma de conduta na cena

internacional (Araújo Castro, 1982) representava uma aspiração distante, se não

megalomaníaca. O máximo que um país “realista de periferia” deveria pretender, como

ensinava Escudé, era a ampliação da base de poder e/ou bem-estar de sua população. E, no

tempo imediato, o recurso ao petróleo despontava como caminho mais eficiente e seguro

para tanto.

E como explicar, à luz desse tipo de arcabouço teórico dependentista/realista

periférico, a guinada na conduta internacional da República Bolivariana da Venezuela,

coetânea à ascensão de Hugo Chávez à presidência do país?

Jeanne Hey (1993), em seu trabalho sobre o Equador, cogita a existência de pelo

menos dois outros tipos de orientação de política externa na América Latina: a

contradependência e a compensação. A primeira é bem exemplificada pela reação popular

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dos jamaicanos aos efeitos econômicos negativos observados, em seu país, após a

implementação de um plano de desenvolvimento nacional, arquitetado pelos Estados

Unidos da América. Como resposta, a população elegeu para a presidência o candidato

Michael Manley, um socialista cuja plataforma eleitoral abrigava a bandeira da

“solidariedade terceiro-mundista” e o rechaço às práticas geradoras de dependência das

potências ocidentais. Uma ilustração para a segunda modalidade seria a política externa

mexicana sob o domínio do PRI (Partido Revolucionário Institucional, hegemônico no

México de 1929 a 2000). Para fabricar coesão social no nível doméstico, e reconhecendo os

laços estruturais, nem sempre favoráveis aos mexicanos, mantidos com os Estados Unidos,

os governantes do PRI encamparam, via de regra, a retórica antiamericanista (como uma

forma de compensação discursiva ao fato da dependência). Tome-se o exemplo jamaicano

ou o mexicano como referencial, o importante é o resultado obtido: uma política externa

que busca afastar-se da influência dos Estados Unidos da América, na direção de maior

autonomia decisória.

As noções de “contradependência” e de “compensação” ajudam, certamente, a

decifrar a nova política externa bolivariana do século XXI. Jogam luz sobre os mecanismos

causais que poderão ter precipitado a guinada na conduta internacional do Estado

venezuelano. Haja vista o fracasso de Carlos Andrés Pérez em implementar a agenda das

reformas neoliberais – preconizadas pelos bancos multilaterais, que têm como maiores

credores as potências capitalistas – na Venezuela da primeira metade dos anos 1990. Como

o ex-presidente declarou:

Quando eu cheguei ao governo, eu já possuía um programa planejado. Antes de ser empossado, eu já havia iniciado conversações com o FMI, com o presidente Bush, com o presidente Mitterrand, com o presidente González [Felipe González, primeiro-ministro da Espanha]. Eu já tinha meu plano formado. Eu estava ciente da nebulosa situação que eu ia enfrentar [uma séria crise econômica]... Eu estava procurando pessoas de acordo com as coisas que eu tinha que fazer. (Andrés Pérez apud Amorim Neto, 2006, p. 168)

Ou seja: aparentemente, a ascensão ao poder de Chávez guarda relação direta –

exatamente como no caso jamaicano – com a associação, feita pelos eleitores, do falhanço

de uma tentativa de reforma do Estado às medidas orquestradas por Estados Unidos da

América e demais países desenvolvidos.

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Contudo, se os referidos conceitos de Hey (1993) apreendem a qualidade do

fenômeno em voga, eles não explicam a sua intensidade – ou, posto em linguagem mais

plana, eles pouco ou nada acrescentam à tarefa de entender a verbosidade (por vezes,

agressiva) de Hugo Chávez, e a compulsão por atacar diretamente os Estados Unidos. Vale

considerar, como hipótese auxiliar de trabalho, que a concepção do “político”, para Chávez

e seus aliados, esteja vinculada ao célebre conceito schmittiano, baseado na dicotomia

amigo/inimigo. Conforme dissertou Carl Schmitt:

A diferenciação especificamente política, com a qual se pode relacionar os atos e as motivações políticas, é a diferenciação entre o amigo e o inimigo. Esta diferenciação oferece uma definição conceitual, entendida no sentido de um critério e não como uma definição exaustiva nem como uma expressão de conteúdos. Na medida em que não é derivada de outros critérios, representa para o político o mesmo critério relativamente autônomo de outras contraposições tais como o bem e o mal na moral; o belo e o feio no estético, etc. (...) A diferenciação entre amigos e inimigos tem o sentido de expressar o máximo grau de intensidade de um vínculo ou de uma separação, uma associação ou uma dissociação. (Schmitt, 2007, ênfase nossa, tradução livre)

Assim, ao construir uma relação – discursiva – de “antagonismo com o status quo”,

alvejando tudo de indesejável quanto possa ser atribuído a Estados Unidos da América e

seus aliados (ou “amigos”), Chávez demonstra conhecer a essência do “político”. No

relativo à alegada presença de populismo na atual conjuntura política latino-americana,

Francisco Panizza (2006, tradução livre) ainda adiciona que:

[A] construção relacional da fronteira política entre o povo excluído e seus opressores é uma operação de natureza política, que pouco tem a ver com categorias sociológicas ou econômicas. Como tal, a identificação populista tem um conteúdo relacional e não substantivo, no que pode ser articulada a elementos ideológicos muito diferentes: pode ser utilizada por grupos de extrema direita européia para trazer a fronteira antagônica entre o povo branco que se vê excluído do mercado de trabalho e privado de sua identidade cultural, e as hordas de imigrantes que ameaçam o seu lugar na sociedade; por Osama bin Laden, para chamar os povos árabes a lutar por sua soberania contra as potências ocidentais, que ocupam seus territórios e buscam destruir sua fé; ou por Evo Morales, para reivindicar a soberania de base étnico-popular do povo boliviano, oprimido por 500 anos.

Apoiando-se na lógica schmittiana e na retórica bolivariana, Chávez tem sido capaz

de exercer um apreciável papel de liderança regional, a um só tempo defendendo a

identidade comum dos povos oprimidos da América e combatendo, na mesma proporção, o

imperialismo dos países desenvolvidos. Amigos e inimigos, pois.

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8. Conclusão – “Vai, Venezuela! Ser gauche na vida”

A Venezuela aparenta ser o caso extremo para as tentativas de generalização sobre a

América Latina, seja o ângulo de observação o político ou o econômico.

Na política, enquanto praticamente todos os Estados do entorno regional viviam os

“anos de chumbo”, de ditaduras militares, no período da Guerra Fria, o país experimentava

a estabilidade democrática, calcada no bipartidarismo, nas eleições regulares e no império

da lei. Nos anos 1980 e 1990, quando a América Latina ingressou numa época de reformas

estruturais do Estado, sob a égide da chamada “terceira onda democrática” (Hagopian;

Mainwaring, 2005), a Venezuela passou a sofrer de instabilidade institucional, num

processo ao cabo do qual autores perceberão danos à democracia (liberal?) praticada

naquele país, desde os anos 1950. Se o século XXI aponta para um horizonte de instituições

democráticas estáveis na América Latina, as perspectivas venezuelanas são incertas

(Anastasia; Melo; Santos, 2004).

Economicamente, uma história assemelhada poderia ser contada: ao passo que a

maioria dos países latino-americanos entrava em depressão, em razão das crises de liqüidez

internacional dos anos 1930 e 1970, e das conseqüentes oscilações de preço no mercado

internacional de commodities, a Venezuela extraía recordes de lucro, provenientes da

exportação do petróleo. Se, nos anos 1940 e 1950, boa parte da América Latina adotou o

modelo de industrialização para substituição de importações, com vistas a romper com a

alegada dependência estrutural centro-periferia (cf. Cardoso; Faletto, 2001), a Venezuela

(acompanhada de outros países) nunca investiria, de fato, em um projeto de construção de

indústria de base, visando à diversificação da atividade exportadora. Antes, incrementaria,

gradualmente, o coeficiente das importações de bens de consumo sobre a renda nacional.

Nos anos 2000, em face da virtual hegemonia do capitalismo de livre mercado no mundo, a

Venezuela bolivariana apresenta-se como laboratório do “socialismo do século XXI”.

Definitivamente, como comentou Michael Coppedge, “de uma perspectiva latino-

americana, a Venezuela tem sido, freqüentemente, um exemplo contraditório” (2005, p.

289, tradução livre).

Essa ambígua trajetória histórica venezuelana talvez tenha atingido, no limiar do

terceiro milênio, o seu momento de paroxismo. Isso porque, em face da globalização

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econômica e dos valores que ela representa – o avanço das estruturas do mercado, o

predomínio das democracias liberais e de uma concepção de direito centrada nas liberdades

individuais, a crescente liberalização do comércio internacional etc. –, a República

Bolivariana da Venezuela vem defender um modelo alternativo de inserção no mundo,

chamado pelos seus artífices de “socialismo do século XXI”. Por isso, à guisa de conclusão

do ensaio, a pergunta que convém resgatar, neste ponto da nossa caminhada, é a seguinte: o

bolivarianismo do século XXI tem trazido resultados satisfatórios para a sociedade

venezuelana? Sustentar-se-á no longo prazo, econômica e politicamente? É compatível com

o rumo tomado pelas relações internacionais dos anos 1990 e 2000?

Não sucumbo à tentação de fazer previsões. Mas devo ponderar que as perspectivas

para a Venezuela contemporânea não são exatamente as mais animadoras, a julgar pela

radiografia momentânea, que acusa: (a) colapso do sistema de partidos e dos mecanismos

tradicionais de representação; (b) participação dos militares na política; (c) papel político

dos meios de imprensa; (d) competição ferrenha, entre as elites, pelo poder estatal; (e)

déficit na capacidade de governar; (f) desrespeito ao “império da lei”; (g) queda

pronunciada da renda per capita nos últimos 20 anos; (h) desigualdade no acesso aos bens

públicos; (i) pobreza; (j) desemprego e subemprego; (l) elevadas taxas de desemprego

juvenil; (m) incompatibilidade entre os projetos de país; (n) polarização da política; e (o)

percepção de exclusão-inclusão social (Sanjuan, 2005; PNUD, 2004).

Finalmente, voltemos à polêmica com que iniciamos esta exploração: cabe uma

aproximação ideológica ou valorativa, guardados os respectivos contextos, entre Simón

Bolívar e Hugo Chávez? A resposta é positiva. Mas somente se os tomarmos como

expoentes – cada qual em seu tempo – de uma tradição antiimperialista latino-americana:

no caso de Bolívar, a evidente referência histórica são as guerras de independência contra a

Espanha; no caso de Chávez, a luta contra um inimigo não tão imediato e concreto – os

Estados Unidos da América. Esse seria o enfoque positivo. Pelo lado negativo, a

aproximação procede se considerarmos os dois heróis venezuelanos como praticantes –

habituais ou esporádicos, a depender do crivo do analista – de um autoritarismo político

que deita raízes profundas no continente americano. De um modo geral, todavia, a tentativa

de transpor o bolivarianismo do século XIX para a atual conjuntura soa como uma típica

idéia fora de lugar.

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