boletimdeciÊnciaseconÓmicas - digitalis-dsp.uc.pt · da «riqueza das nações», ou, em...

23
A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. Trabalho e conhecimento no mercado global Autor(es): Murteira, Mário Publicado por: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24851 Accessed : 21-Jan-2019 05:22:20 digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

Upload: builiem

Post on 21-Jan-2019

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis,

UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e

Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de

acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s)

documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença.

Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s)

título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do

respetivo autor ou editor da obra.

Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito

de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste

documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por

este aviso.

Trabalho e conhecimento no mercado global

Autor(es): Murteira, Mário

Publicado por: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24851

Accessed : 21-Jan-2019 05:22:20

digitalis.uc.ptimpactum.uc.pt

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS

COIMBRA

UNIVERSIDADE DE COIMBRAFACULDADE DE DIREITO

VOLUME XLIX 2 0 0 6

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 153

TRABALHO E CONHECIMENTONO MERCADO GLOBAL

Valor e capital

Quais são as «causas» ou fundamentos da «riqueza dasnações», perguntava Adam Smith, já no séc. XVIII, nos pri-meiros tempos da emergente «Ciência» Económica? E da ri-queza dos indivíduos e das empresas, hoje, quando se fala do«capital conhecimento»? Como se processa a acumulação decapital no mercado global? Como se relacionam na econo-mia e na sociedade os que detêm o capital (seja ele o quefor) e os que vivem do trabalho dito por conta de outrem?Os chamados «trabalhadores do conhecimento» (knowledgeworkers) trabalham, ou podem trabalhar, «por conta própria»?Em que sentido e em que condições?

Questões tão simples de formular e de tão complexaresposta como aquelas, estão na tradição e na corrente daHistória da Análise Económica. Foi esta a forma como Schum-peter, além do mais grande cronista dessa história, designouo pensamento económico que se pretendia «científico», queé distinto - embora nem sempre seja fácil a distinção – dopensamento confessadamente «doutrinário», mais carregadode ideologia. E não podemos deixar de admirar a imparciali-dade e largueza de perspectivas desse autor – confessada-mente apologista do capitalismo - quando recordamos queconsiderava Marx e Walras os dois maiores economistas de

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

154 MÁRIO MURTEIRA

sempre, um pela amplitude da sua visão da História, outropor ter sido o grande teórico do «equilíbrio», noção tão carac-terística e essencial do pensamento económico ortodoxo.

Aqueles dois grandes autores são, afinal, notáveis e extre-mos testemunhos da grande diversidade de paradigmas quepodemos encontrar na História do Pensamento Económico.

Contudo, como seria de esperar, as respostas a questõesdaquele tipo têm mudado, não apenas em função das vicis-situdes da história das ideias e das teorias económicas, ou dosparadigmas científicos no sentido de Thomas Khun, mas daprópria transformação da realidade económica.

Mesmo, por hipótese, dotados da mesma armadura teó-rica e conceptual, teríamos de reconhecer «algo» de objec-tivamente muito diverso no capitalismo, digamos, dos finaisdos séculos XVIII, XIX e XX. E isto, mesmo fixando sem-pre o nosso olhar nas economias capitalistas mais avançadas.

Se focamos, nesta longa trajectória histórica, as razõesda «riqueza das nações», ou, em linguagem mais recente, o«modelo» de crescimento económico – isto é, o sistema dasrelações fundamentais que se estabelecem entre as variáveismais relevantes no processo de crescimento da economianacional –, encontramos subjacente ao crescimento um de-terminado mecanismo de acumulação de capital. Este apre-senta-se por seu turno com uma dupla face: por um lado,tem uma expressão monetária e financeira; por outro lado, éuma capacidade produtiva, total ou parcialmente controlada.Neste segundo aspecto, a capacidade produtiva começoupor ser a do chamado sector «primário», englobando agricul-tura, caça e pesca, para ser depois do sector «secundário»,isto é, indústria, em particular indústria transformadora, e final-mente originária do sector «terciário», que é hoje o predo-minante nas economias mais avançadas, como iremos referiradiante, a propósito da chamada economia «baseada no conhe-cimento».

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 155

E nota-se, ainda, mais recentemente, uma tendênciapara o IDE também se concentrar nos serviços. Tudo istosugere, de algum modo, a «desmaterialização» do processode acumulação.

Temos, assim, de tentar perceber por que razão se dizhoje que passámos, nos últimos dois séculos, de um modelode crescimento «baseado na indústria» a outro «baseado noconhecimento» e que implicações daí resultaram para aquiloque chamamos economia do trabalho.

A dupla face da acumulação

Essa «dupla face» da acumulação tem mudado profun-damente, em especial, uma vez mais, desde o último quarteldo século passado. O processo de globalização da economiamundial implicou modificações profundas nos mecanismosde acumulação do capital. Aquelas «duas faces», de váriasformas, seguiram o processo de adaptação do sistema mun-dial às tendências que habitualmente se incluem no termo«globalização». E a ênfase na análise do processo terá neces-sariamente de transferir-se da escala nacional para a globalou transnacional.

Por exemplo, na organização do processo produtivo àescala global, aquilo que por vezes se designa por gestão da«cadeia de valor», ao nível da gestão das organizações. Umadas dimensões desta mudança respeita à «desmaterialização»do capital que, segundo algumas interpretações, seria hojeimaterial ou «intelectual», isto é, conhecimento, e já nãoapenas coisas, como máquinas e outros equipamentos.

Mas a acumulação do capital monetário também seprocessa diferentemente, com novos e engenhosos métodosde «fazer mais dinheiro apenas com dinheiro», como mostra,por exemplo, a experiência até agora bem sucedida de uma

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

156 MÁRIO MURTEIRA

empresa considerada paradigmática no domínio financeiro, aGoldman Sachs (Cf. The Economist, 06, April 25th-May5th). E o empresário-gestor da empresa preocupa-se, neces-sariamente, com as duas vertentes da acumulação, havendoboas razões para afirmar que a vertente financeira predominasobre a vertente produtiva, propriamente dita.

Até porque a própria valorização da empresa no mer-cado depende, em primeira instância, da sua valorizaçãofinanceira. A sua capacidade inovadora, digamos, em matériade «capital conhecimento», só é relevante na economia domercado global na medida em que possa exprimir-se, ou serreconhecida, em termos financeiros. E mesmo o tal empre-sário-gestor apresenta-se hoje com dupla personalidade, nãoisenta de riscos de íntimo conflito: por um lado, deve asse-gurar a sobrevivência e o crescimento da empresa a longoprazo; por outro, tem que assegurar uma valorização a curtoprazo, não só para só seu benefício pessoal – a sua eventualparticipação nos resultados - mas também para satisfação dosoutros detentores de partes do capital.

Sem esquecer as peripécias que podem esconder-se narubrica «fusões e aquisições» dos movimentos de capitais,que incluem possíveis take overs hostis.

Há assim a registar toda uma nova engenharia financeiraque se associa à emergência da chamada economia baseadano conhecimento. Claro que essa engenharia, ela própria, é«baseada no conhecimento». Mas a proposição recíproca –isto é, o conhecimento valorizado pela engenharia financeira- também pode ser fundamentada...

Nos «clássicos» pioneiros do pensamento económicoque convém recordar, é obrigatório referir a visão de DavidRicardo e a sua teoria da renda da terra. Esta renda decorreda propriedade de um recurso produtivo escasso, a terra. As-sim, com a procura crescente do «trigo» cultivado pelo ren-deiro, este encontra-se num contexto de rendimentos decres-

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 157

centes, custo marginal crescente ou produtividade marginaldecrescente (diferentes maneiras para exprimir a mesmaevolução).

A ideia básica a reter é que a acumulação é feita porquem detém a propriedade do recurso escasso: o preço dotrigo vai subindo na proporção da subida do custo (margi-nal) da produção, nas terras que vão sendo menos férteis, àmedida que a produção se expande É o proprietário que fazsubir esta renda diferencial da terra para se apropriar do ex-cedente gerado nas sucessivas terras exploradas.

Repare-se que esta interpretação pode, até certo ponto,aplicar-se ao inovador, que patenteia a sua descoberta, e assimfecha o livre acesso à mesma e é titular de uma renda pagapelos utilizadores do seu produto (por exemplo, um certoprograma informático). Neste sentido, o inovador e proprie-tário da Microsoft, Bill Gates, vive de rendas, tal como oproprietário rural imaginado por Ricardo. Com uma dife-rença fundamental, é certo: o primeiro tira partido da ino-vação que é capaz de gerar, enquanto o segundo apenas temo «mérito» da propriedade da terra, porventura herdada ouespoliada.

Seja como for, temos, assim, no caso da renda da terra,crescimento da produção puramente extensivo – por au-mento da superfície cultivada e do número de rendeiros,claro – sem progresso técnico. Admitindo este, teríamostambém de admitir alguma compensação do efeito dos «ren-dimentos decrescentes» da terra. Nesta hipótese, é evidente,o rendeiro seria de algum modo «inovador».

Mas temos também classes de interesses antagónicos,uma «explorando» a outra, embora ambas «explorando» (nou-tro sentido) a terra. A acumulação decorre dessa relação.

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

158 MÁRIO MURTEIRA

Valor-trabalho em Marx

Contudo, é com a teoria do valor-trabalho de Marxque uma certa «economia do trabalho» adquire a centrali-dade na explicação da acumulação do capital. O essencial dateoria é bem conhecido, embora talvez menos do que háalgumas décadas, e constata-se uma certa analogia formalcom a teoria da renda da terra em Ricardo. O que não sur-preende, sabendo-se que Marx é de algum modo herdeiroespiritual de Ricardo.

Existe também, para Marx, um mecanismo de explora-ção e uma renda diferencial: mas esta provém agora da dife-rença entre as horas de trabalho prestado pelo trabalhadorassalariado e o número, mais reduzido, de horas efectiva-mente pagas, correspondentes ao mínimo de subsistência.

É aqui, na existência de um trabalho não pago, que re-side o fundamento da «mais-valia» e o cerne da acumulaçãocapitalista, em toda a crueza e sugestiva simplicidade dopensamento original de Marx.

Aliás, mesmo admitindo hipóteses menos extremadas,poderá sempre supor-se um princípio de exploração do tra-balhador, reconhecendo-se que o salário que recebe é infe-rior ao valor daquilo que produz. Tudo estará, claro, em defi-nir esse «valor» e sua relação com o salário.

Mas, como, entre outros, mostrou Samuelson, cerca deum século depois da publicação da primeira edição de «OCapital», a teoria do valor de Marx não é logicamente sus-tentável, independentemente dos juízos de valor que pos-samos fazer sobre o capitalismo (SAMUELSON, 1970). O valordas mercadorias não pode exprimir-se na unidade de medidaque Marx procurou definir, ou seja, o número de horas«necessário» à produção da mercadoria; e nem tão pouco édefensável a determinação do salário pelo mínimo de subsis-tência.

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 159

Além do mais, como Piero Sraffa há muito salientou(1960), em livro ao tempo muito citado, o valor de certamercadoria é função, pelo lado dos custos de produção, dovalor das mercadorias que entram na sua composição. Surgeaqui, portanto, o problema típico do cálculo de um índicede preços, que consiste na determinação dos coeficientes deponderação dos «bens intermédios» que entram na sua com-posição. Neste sentido, não há um conceito «absoluto» devalor, como Marx procurou, mas apenas relativo. E o valorda mercadoria pode variar por simples alteração dos coefi-cientes de ponderação dos seus componentes (por exemplo,a maior ou menor intensidade em trabalho). Como também,mantendo esses coeficientes, pela alteração dos valores relati-vos dos componentes

O tão falado problema de «deterioração dos termos detroca», que desfavorece os exportadores de produtos primá-rios em relação aos exportadores de produtos manufactura-dos decorre dessa questão. O preço médio dos primeiros, nocomércio internacional, tende a desvalorizar-se relativamenteaos produtos manufacturados. Os países não industrializadossofreriam assim um crónico desequilíbrio na sua balança comer-cial: necessitariam de exportar cada vez maior quantidade deprodutos primários para pagar a mesma quantidade de pro-dutos manufacturados.

O caso do petróleo é muito particular e não cabe nestainterpretação. Trata-se de um recurso natural esgotável, cujaprocura parece, por ora, insaciável, e cuja oferta é controlada,directa e indirectamente, por grandes potências e grupostransnacionais.

Uma «troca desigual» no mercado mundial

Mas a visão do valor em Marx poderia ser contextuali-zada no comércio internacional, surgindo então uma teoria

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

160 MÁRIO MURTEIRA

de «troca desigual», segundo a qual são explorados os trabalha-dores do Terceiro Mundo pelos países capitalistas desenvol-vidos, mesmo para vantagem dos trabalhadores do «PrimeiroMundo», encontrando-se aqui um possível fundamento deuma «teoria da dependência», muito em voga ainda nos anos70 do século passado. Teoria que, como se compreende, con-duzia a alguma forma, mais ou menos radical, de introversãona estratégia de crescimento económico.

Mas, de passagem, note-se que, ao abandonarmos a estri-ta versão marxiana da teoria do valor-trabalho, temos duasvias metodológicas de análise, que aliás não se excluem, maspodem ser combinadas: podemos desenvolver ou uma teoria«puramente económica» do salário, assumindo certo modelodo mercado de trabalho (por exemplo, concorrência perfeita,concorrência imperfeita, monopólio bilateral) ou uma teoriade outra natureza, situando a determinação do salário emcerto quadro institucional, dando relevo a conceitos comopoder contratual, estratégias de negociação, etc.

A emergência do mercado global abre novas perspecti-vas nesta matéria. Uma importante decorre da maior flexibi-lidade das cadeias produtivas e a possibilidade do seu desdo-bramento, dentro ou fora de uma dada empresa, no contextotransnacional que, como notámos, acompanha o processo deglobalização da economia mundial.

Onde os clássicos falaram de uma «divisão internacionaldo trabalho» – Portugal trocando vinho por têxteis no seucomércio com a Inglaterra, com vantagem para ambas aspartes – pode-se hoje falar antes da «divisão transnacional dotrabalho»: um certo produto final – um automóvel, umatelevisão ou um computador – incorporando componentesproduzidos em diferentes territórios nacionais. A distribuiçãogeográfica da cadeia produtiva condiciona decisivamente o«valor» da mercadoria, e esse condicionamento é, ele próprio,volátil.

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 161

E, não podemos ignorá-lo, a entrada da China no mer-cado global – processo iniciado após a morte de Mao nosfinais dos anos 1970, e acelerado após a admissão na Orga-nização Mundial do Comércio (antigo GATT) – veio intro-duzir novo factor decisivo na globalização da economiamundial. Esta admissão ocorreu finalmente em Setembro de2001, após cerca de quinze anos de negociações, mais umademonstração da «longa paciência» chinesa (PANITCHPAKTDI

e CLIFFORD, 2002)).Importa assinalar este facto: uma economia que corres-

ponde a mais de um quinto da população mundial (cerca demil e trezentos milhões de habitantes), e que cresce a taxasanuais que permitem duplicar a produção em períodos deoito ou nove anos, ainda caracterizada por abundante mão--de-obra (dir-se-ia inesgotável), habituada a elevadas cargasde trabalho e a muito baixos salários, é sem dúvida elementofundamental da criação e repartição de valor na economiado séc. XXI. A globalização da economia mundial, ironica-mente, vem assim permitir a «exploração» capitalista do tra-balho, numa economia que ainda se reclama de marxismo, ea uma escala nunca vista.

Segundo dados publicados pelo Banco Mundial e pelaUNCTAD, o IDE absorvido pela China em 2003 foi poucoinferior ao entrado nos EUA (53 e 56 biliões de dólares res-pectivamente) e a economia chinesa contou para um terçodo crescimento da economia mundial em 2004.Também arecente afirmação da Índia no mercado mundial, acompa-nhando a integração chinesa, é outro facto de grande impor-tância.

Tudo isto sugere, em última análise, uma profundatransformação da economia mundial, em que o valor dopróprio trabalho nas economias desenvolvidas ocidentaissofre a ameaça de um processo de desvalorização, com ten-dência para a redução dos salários reais.

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

162 MÁRIO MURTEIRA

Por esta e por outras razões já evocadas, pode pois afir-mar-se: se a «economia do trabalho» era central na explicaçãoda acumulação do capital no tempo de Marx, o que deno-minámos globalização é central no processo de acumulaçãotípico do começo do séc. XXI. E, neste, são hoje deter-minantes os mecanismos de globalização quer do capital fi-nanceiro, quer do capital conhecimento.

Além do mais, de toda essa evolução decorre um novocontexto de determinação do trabalho e do emprego nomercado global, aquilo a que chamamos «nova economia dotrabalho».

Mas antes de prosseguirmos nesta análise, é altura deencarar de outro ângulo a nossa problemática, isto é, já nãodo lado dos custos de produção, ou da oferta de bens e ser-viços no mercado global, mas antes na perspectiva da pro-cura. Será que podemos considerar uma independente daoutra?

Até agora, discutimos o problema do valor apenas dolado da oferta, ou dos custos de produção; mas é claro quehá que considerar o outro lado da questão, isto é, o lado daprocura.

A filosofia originária da economia de mercado, essen-cialmente, remete para conceitos e imagens muito conheci-dos como a «lei da oferta e da procura», a «soberania doconsumidor» e a «mão invisível» da concorrência, que setornou bem mais visível num mercado dominado em largamedida, directa ou indirectamente, pelas ETN.

O ponto que nesta perspectiva nos interessa salientar éque, em tempo de globalização e de marketing global, podeafirmar-se também aqui que, cada vez mais, «a oferta cria asua própria procura». Em que sentido?

Na realidade, numa perspectiva genérica que considereo funcionamento do mercado global no seu todo, podemosdizer que esse mercado origina a situação paradoxal de gerar

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 163

uma insaciável procura de bens e serviços de algum modo«supérfluos», mesmo «luxuosos», ao mesmo tempo que deixapor satisfazer uma imensa e potencial procura de bens e ser-viços necessários, a que todavia não é possível responderporque não é suportada por um rendimento que permita aaquisição desses bens e serviços de primeira necessidade.

Seria necessário, como em tempos se afirmou numacomissão chefiada por Willy Brandt, um «keynesianismo àescala mundial» para superar este estrutural desequilíbrioentre oferta e procura à escala da economia mundial. Masnão pode afirmar-se que a tendência dominante vá hojenum sentido de redistribuição do rendimento à escala mun-dial, antes se orienta no sentido da acentuação das desigual-dades (ver, por exemplo, Stiglitz, 2002).

Recapitulando tudo isto, já bem conhecido, em quetermos se pode então falar da passagem de um modelo decrescimento «baseado na indústria» a outro «baseado noconhecimento»?

Parece tratar-se, uma vez mais, ao menos em parte, deconfundir desejos com realidades. É o que vamos ver.

Emergência de uma economia «baseada» no conhecimento(EBC)

Numa perspectiva meramente empírica e descritiva,podemos com efeito constatar a emergência de economias«baseadas no conhecimento» no sentido que se expõe a seguir:

As economias de maior desenvolvimento económicosão economias que tendem a concentrar a maior parte doseu emprego e da sua produção no sector dos serviços e,nestes, em serviços mais «intensivos em conhecimento»,como serviços de educação e saúde, Investigação e Desen-volvimento Experimental (I&DE), bancos e seguros e ser-

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

164 MÁRIO MURTEIRA

viços de vária natureza que certas empresas especializadasprestam a outras empresas – como serviços informáticos, deformação profissional, de marketing, consultoria em gestão,auditoria, serviços financeiros, etc. (Murteira, 2005).

Subjacentes a esta evolução estão diferentes factores.Processos de outsourcing, empresas comprando «fora», ou

autonomizando actividades variadas que antes eram realiza-das pela própria empresa.

Um efeito de «deterioração de termos de troca», a favorde certos «novos» serviços, por exemplo, de educação e saúde,consultoria às empresas, I&DE, mais exigentes em conheci-mento, que surgem mais valorizados e em detrimento deprodutos tradicionais, porventura industriais.

Note-se que estes dois processos são, em certo sentido,formais; isto é, trata-se de registar mudanças na organizaçãoda produção e na valorização relativa das actividades econó-micas, mas não parece surgir aqui qualquer transformaçãoreal, substantiva, nos sistemas produtivos.

Mas já não pode afirmar-se o mesmo em outros aspec-tos que referimos seguidamente.

Observam-se tendências na procura dos consumidores,correspondentes a maiores níveis de rendimento e maioresesperanças de vida, traduzidas por exemplo na já referida ex-pansão e qualificação dos serviços de educação e saúde.

Enfim, nota-se uma tendência geral de aumento em«intensidade do conhecimento» nas várias actividades, im-plicando maior instrução/qualificação média da populaçãoactiva, e também a maior sofisticação ou qualificação dospróprios bens e serviços produzidos, decorrente, além deoutros factores, das exigências da competitividade no mer-cado global.

No fim de contas, tudo isto legitima a afirmação de quenos encontramos em nova fase ou etapa do processo secularde desenvolvimento do capitalismo, fase que temos designado

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 165

por capitalismo do mercado global. Mas já pode ser engana-dora a expressão «baseado no conhecimento», por assumirindevidamente o primado de certo «conhecimento», semexplicitar a verdadeira natureza daquele.

Pode dizer-se, é certo, que a ambiguidade de tudo istoé a ambiguidade da própria realidade, que pode ser observa-da de muitos ângulos, e em diferentes visões ideológicas,conscientes ou inconscientes.

Esta constatação elementar conduz-nos necessariamentea uma reflexão sobre a natureza do «conhecimento» ofere-cido e procurado nesse sistema económico que é supostobasear-se nele.

O «mercado» do conhecimento

Se a EBC tem a configuração que acima esboçámos,parece razoável admitir no seu âmbito um muito específico«mercado do conhecimento», em sentido a precisar.

Se existe tal mercado, é porque também existem umaprocura e uma oferta de conhecimento. Claro que já não setrata, como ainda referem os manuais elementares de Eco-nomia, de descrever um processo de ajustamento mútuoque conduza a certa quantidade e a certo preço «de equilí-brio». Mas há que investigar a natureza específica do mútuocondicionamento entre oferta e procura de conhecimento.

Antes do mais, carecemos de uma discussão prévia dopróprio conceito de conhecimento. Não é fácil definir oconhecimento e, ainda menos, quantificá-lo e medi-lo.

A um nível preliminar e simplista, pode afirmar-se queo conhecimento é informação organizada, tendo como focoa resposta a uma pergunta ou a resolução de um certo pro-blema. Assim sendo, a «procura» confunde-se, neste caso,com certo questionamento, ponto de partida para uma ela-

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

166 MÁRIO MURTEIRA

boração analítica. A «oferta», por sua vez, numa forma ounoutra, terá de conter a correspondente solução ou resposta.E é intuitivo que uma e outra deverão avançar, quanto pos-sível, de forma cooperativa: afinal, a «boa» formulação dapergunta só é possível, muitas vezes, quando é conhecidaa resposta. De algum modo, saber interrogar é já saber res-ponder...

Assim entendido, o conhecimento é imaterial ou «inte-lectual» e só é possuído, verdadeiramente, por aquele ouaquela que o detêm como partes inseparáveis de si mesmos.E, como se afirma muitas vezes, «sabemos mais do que jul-gamos saber», pois dispomos de um capital de conhecimentodito «tácito» de que só imperfeitamente temos consciência(num sentido contrário à porventura falsa modéstia de Sócra-tes, que afirmava, segundo consta, que «só sabia que não sa-bia nada»...).

Mas estas definições só podem ser entendidas comoponto de partida para uma reflexão necessariamente maisprofunda e exigente.

E podemos desde já notar que, segundo este conceito, asimples informação – incluindo a recolha de dados e o seutratamento e classificação iniciais – não equivale a «conheci-mento». Mas afirmar isto não implica ignorar a grande com-plexidade dos problemas que se associam à recolha e trata-mento da informação e, além do mais, a importância destaquestão em relação com o processo de aprendizagem, afinal,da aquisição ou transferência de conhecimento. É de notarque a massificação do acesso à Internet não garante corres-pondente generalização do acesso ao conhecimento: apenasgarante uma ilimitada oportunidade de recolha de informa-ção, sobre os mais variados e mais ou menos relevantes te-mas, mesmo de fontes porventura duvidosas. Pode até sus-tentar-se que a superabundância de «informação» contraria,ou pode contrariar, o avanço do conhecimento. Pois este

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 167

implica construção, selecção ou organização da informação enão a caótica e acrítica acumulação daquela.

Podemos então abordar o tema em três diferentes pers-pectivas:

1 – Ao nível pessoal, do próprio indivíduo como sujeitodo conhecimento. A este nível, podem colocar-se algumasquestões fundamentais de vária natureza, epistemológicas,éticas, filosóficas, sobre a construção do conhecimento cien-tífico ou a própria condição humana. Esta, recorde-se, já foiconsiderada como a evolução tornada consciente de si mesma...ou seja, seria a própria Natureza dotada de ilimitada capaci-dade de conhecimento

E a passagem do conhecimento pessoal, tácito, ao explí-cito ou codificado, tem como um exemplo impressionante edecisivo para a historia da Humanidade a construção seculardesse livro único que é a Bíblia, afinal o relato da construçãocolectiva do conhecimento do Deus dos cristãos.

2 – Ao nível micro-económico da empresa, organiza-ção ou unidade de produção. A este nível, surge uma questãoimportante, que remete para a criação e gestão do conheci-mento pela organização. Fala-se, por exemplo, de «organizaçãoaprendente». Coloca-se também aqui a questão do processoinovador no seio da EBC e o aprofundamento da próprianoção de inovação, que não pode ser considerada apenas naperspectiva tecnológica. Criatividade e empreendedorismo,temas tão populares actualmente, estão intimamente relacio-nados com a análise da produção, gestão e difusão do conhe-cimento.

3 – Ao nível da economia nacional e das relações eco-nómicas internacionais. Um tema hoje muito referido, a estepropósito, tem a ver com a «transição» da economia nacionalpara a EBC, e a classificação (e qualificação) dessa economiano seu trajecto para a economia do conhecimento. A cha-mada Estratégia de Lisboa, da UE, inicialmente formulada

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

168 MÁRIO MURTEIRA

em 2000 e «relançada» em 2006, remete para essa problemá-tica (ZORRINHO, 2006).

Neste ensaio estamos interessados em identificar o «mer-cado do conhecimento» e por isso são os dois primeiros ní-veis, sobretudo o segundo, que importa considerar.

Ao nível individual, temos um actor envolvido numprocesso de aprendizagem que, cada vez mais, se prolongapara além da entrada na vida economicamente activa; é lu-gar comum dizer-se que «a aprendizagem é para toda avida». E as motivações económicas tendem a predominar naestratégia pessoal de aprendizagem, isto é, busca-se a apren-dizagem que irá permitir, no juízo do próprio, melhor cor-responder a certa necessidade de conhecimento procuradapelos empregadores.

Claro que reconhecer motivações desta natureza noprocesso pessoal de aprendizagem não equivale a ignorar aexistência de outras motivações, que remetem para as voca-ções e motivações pessoais do ser humano, que nunca foinem será um estrito «homo oeconomicus». Mas parece legí-timo admitir crescente relevância de motivações económicasdesta natureza, até quando se colocam questões agudas deempregabilidade na presente conjuntura do mercado global.

A racionalidade subjacente a tudo isso é, no essencial,muito simples: trata-se de assegurar a cada, real ou potencial,«trabalhador do conhecimento» a auto-gestão do desenvol-vimento de si mesmo, isto é, a gestão de uma contínua apren-dizagem que tenha reciprocidade nas organizações tambémcada vez mais «aprendentes», que constituem o sistema pro-dutivo. Para já, interessa-nos apenas assinalar que, mesmo aeste nível individual, mecanismos de mercado, de oferta eprocura de conhecimento são relevantes. Mas é o segundonível que referimos, o da organização ou empresa, que nosinteressa observar mais de perto.

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 169

Nesta perspectiva, o que temos designado por «mer-cado» do conhecimento está intimamente relacionado como mercado dos produtos ou serviços. A competição no mer-cado global determina uma certa estratégia de marketing que,por seu turno, cria ou esboça uma determinada necessidadede conhecimento adicional, que se espera apoiar a «inova-ção» em sentido amplo – inclui não apenas a criação mas,mais frequentemente, a imitação ou adaptação de produtos eserviços. O conhecimento procurado pode referir-se nãoapenas a produtos e/ou tecnologias, mas também à própriaelaboração de novos modelos organizacionais ou novas es-tratégias competitivas Neste aspecto, por exemplo, pode serrelevante a preparação da passagem da empresa ou daorganização da concorrência por via do comércio internaci-onal ao nível, cada vez mais influente, da competição entreactores transnacionais (ETN).

Tudo isto sugere que o «mercado do conhecimento»pode, em parte, estar contido no seio da própria organiza-ção, onde coexistem e mutuamente se condicionam certa«procura» e certa «oferta» de conhecimento. E estas duas estãode várias formas relacionadas com os mecanismos da oferta eda procura de bens e serviços que se manifestam «à superfí-cie», digamos assim, da economia de mercado.

Pode então afirmar-se que, em geral, numa organização«aprendente», haverá constante interacção entre uma dimen-são interna e outra externa do que chamamos mercado doconhecimento, isto é, o desenvolvimento conjugado daoferta e da procura do conhecimento.

No plano interno, haverá um processo orgânico, emparte, explícito, em parte tácito, de partilha de conhecimento,que poderá obedecer a um projecto bem configurado deinvestigação em torno de determinada problemática, o qualterá sempre em conta os condicionamentos dos mercadosrelevantes de produtos e serviços em questão. O êxito de

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

170 MÁRIO MURTEIRA

um processo desta natureza está largamente dependente daqualidade da liderança da organização, da sua capacidade demotivar, fortalecer a confiança mútua e orientar o processocognitivo da organização. Estes aspectos constituem, assim, aconjugação da dimensão externa e da dimensão interna doprocesso que procuramos definir.

Mas este esboçado relacionamento interno-externopode assumir configurações muito diversas e que não sãoestáveis mas voláteis.

Uma questão remete para a opção entre fazer «dentroou fora» da organização determinada fase do processo de cria-ção ou gestão de conhecimento; outra, para a questão dochamado networking, por exemplo, da eventual organizaçãoem rede de um trabalho de I&DE.

E pressente-se a vastíssima gama de possibilidades quese abrem nesta perspectiva de análise do que chamamos«mercado do conhecimento».

A liberdade individual do conhecimento

Poderemos, como remate de tudo isto, afirmar que aEBC significa insaciável apelo para a mercantilização do conhe-cimento? Seria, afinal, a subordinação ao propósito essencialdo capitalismo, a maximização do lucro, sob formas mais oumenos imaginativas, nos termos próprios da presente fase domercado global. O que chamámos «mercado do conheci-mento» não significará, em última análise, o domínio cadavez mais completo da consciência do indivíduo pelos pa-drões da economia de mercado, a uma escala de proporçõestambém inéditas na História? A versão deste século do«homem económico» não será a do «homem marketing»,isto é, do homem orientado pela busca de uma imagem desi mesmo que lhe permita o sucesso no mercado?

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 171

Se partirmos da constatação de que a procura do conhe-cimento, nas várias direcções em que ele é possível – incluindoo conhecimento de si mesmo –, é própria da condição hu-mana, forçoso é reconhecer que o «espaço» de liberdadeindividual nessa aprendizagem, ao menos em algumas partesdo planeta, é hoje maior do que nunca. No sentido de quequer os poderes religiosos, quer os políticos, quer osfamiliares, quer outros tradicionais, concedem hoje, de bomou mau grado e sobretudo nas sociedades que são proveni-entes da «modernidade» ocidental (Alain TOURAINE, 2005),um amplo campo de possibilidades e direcções ao desenvol-vimento da consciência pessoal.

O «espaço» em questão é assim um vasto campo de alter-nativas oferecidas ao indivíduo na sua trajectória ao longo davida. Mas, naturalmente, esse campo não é igualmente aces-sível, nem sequer visível ou identificável, para todos. E quandoé visível, mas não acessível, a oportunidade perdida podeapenas aumentar a frustração do indivíduo. É pois necessáriojuntar à identificação da oportunidade a convicção do cami-nho, mais ou menos difícil, para conquistá-la.

Nesta perspectiva, é reconfortante pensar no «progresso»efectivamente registado no Ocidente desde a independêncianorte-americana em 1776 e a Revolução Francesa de 1789...A ideologia do Progresso, cuja construção tem essas datascomo referências basilares, parece afinal marcar a crónicahistórica até aos nossos dias.

Se tivéssemos algum «índice de liberdade humana», paraos últimos 250 anos, certamente que o seu crescimento teriasido espectacular, sobretudo nos últimos 50 – tão ou maisdo que o crescimento dito «económico» – ainda que tenhasido aparentemente frágil, sem dúvida incerto e irregular.

Para o bem e/ou para o mal de cada um e de todos, ecertamente nem sempre segundo livres escolhas individuais,mas seguindo percursos com frequente recurso à violência.

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

172 MÁRIO MURTEIRA

Reconhecer isto, reconhecendo também a generaliza-ção de um sistema económico com as características que defi-nimos para a EBC, parece paradoxal. Mas não é: tal como amudança climática em curso na Terra parece permitir tem-peraturas mais extremas, assim a trajectória das culturas e civi-lizações no séc. XXI, em tempo de globalização mundial,permite alargar infinitamente a disparidade entre níveis de«quantidade» e padrões de «qualidade» de conhecimento nosseres humanos. Disparidade que já sabíamos ser enorme emtermos de trajectória histórica da humanidade e que hoje o écada vez mais em cada ponto do tempo.

Donde resulta, entre outras consequências, a necessidadede assegurar condições sociais e políticas de convivência soli-dária entre grupos de tão distintos padrões culturais.

Sem entrar numa discussão do possível sentido do «desen-volvimento humano», que diversos organismos da ONU dili-gentemente referem, incentivam e até quantificam, importadestacar a complexidade da problemática que acima esboçá-mos, e que sugere um surpreendente contraste entre o alar-gamento da liberdade (ao menos potencial) do individuo e omais estreito condicionamento dessa liberdade pelos podero-sos mecanismos da chamada economia de mercado.

BOLETIM DE CIÊNCIAS ECONÓMICAS XLIX (2006), pp. 153-173

TRABALHO E CONHECIMENTO NO MERCADO GLOBAL 173

REFERÊNCIAS

(1) MURTEIRA, Mário (2004) – O que é Economia do conhecimento,Editorial Quimera, Lisboa.

(2) PANITCHPAKDI, Supachai e CLIFFORD, Mark (2002) – Chinaand the WTO, Wiley, Nova Iorque.

(3) SAMUELSON, Paul (1970) – “The transformation from MarxianValues to competitive prices: a process of rejection and repla-cement”, in Proceedings of the National Academy of Sciences, NovaIorque.

(4) SRAFFA, Piero (1960) – Production de marchandises par des mar-chandises, Dunod, Paris.

(5) STIGLITZ, George (2002) – Globalization and its Discontents,Penguin Books, Londres.

(6) TOURAINE, Alain (2006) – Um novo paradigma para compreendero mundo actual, Piaget, Lisboa.

(7) ZORRINHO, Carlos (2006) – “Estratégia de Lisboa relançada:Um novo impulso para o projecto europeu?”, em EconomiaGlobal e Gestão, Vol. XI, Abril, Lisboa.

Mário MurteiraProfessor Catedrático de Economia (jubilado)Ex-Presidente da Escola de Gestão do ISCTE