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0 BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 672 (Ano VIII) (06/8/2016) ISSN - - BRASÍLIA 2016 Boletim Conteúdo Jurídico - ISSN – -

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BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 672

(Ano VIII)

(06/8/2016)

 

ISSN- -  

 

 

 

 

 

 

 

 

BRASÍLIA ‐ 2016 

Boletim

Conteú

doJu

rídico-ISSN

–-

 

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Boletim Conteúdo Jurídico n. 672 de 06/08/2016 (ano VIII) ISSN

 ‐ 1984‐0454 

ConselhoEditorial 

COORDENADOR GERAL (DF/GO/ESP) - VALDINEI CORDEIRO COIMBRA: Fundador do Conteúdo Jurídico. Mestre em Direito Penal Internacional Universidade Granda/Espanha.

Coordenador do Direito Internacional (AM/Montreal/Canadá): SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO - Advogado com mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil Internacional. Professor universitário

Coordenador de Dir. Administrativo: FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em Direito Administrativo pela UFMG.

Coordenador de Direito Tributário e Financeiro - KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.

Coordenador de Direito Penal - RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. Contato: [email protected] WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR

   

BoletimConteudoJurıdico

Publicação

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SUMÁRIO

COLUNISTA DO DIA

 

06/08/2016 Kiyoshi Harada 

» Decadência e prescrição tributária

ARTIGOS  

06/08/2016 Ricardo Facundo Ferreira Filho » Repartição de receita tributária do ICMS na perspectiva do federalismo fiscal: 

abordagem da constitucionalidade do regime de isenção 

06/08/2016 André Romero Calvet Pinto Ferreira 

» A união homoafetiva como entidade familiar: uma nova concepção com o advento do 

Código Civil de 2002 

06/08/2016 Júlio César Alves Figueirôa 

» Lei de Responsabilidade Fiscal e o princípio da intranscendência subjetiva das 

sanções 

06/08/2016 Maria da Conceição Bandeira do Ó 

» Responsabilidade da pessoa jurídica por dano ambiental e a teoria da dupla 

imputaçao 

06/08/2016 Marcos Guilhen Esteves 

» Estado ecológico: conceito, características gerais e compatibilidade com a 

Constituição Federal brasileira 

06/08/2016 Paulo Eduardo Feitosa Brito 

» Dano moral em decorrência do descumprimento contratual no âmbito trabalhista 

06/08/2016 Danillo Vilar Pereira 

» Eutanásia, ortotanásia e distanásia à luz da bioética 

 

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06/08/2016 Rafael Esperidião de Melo 

» Prolegômenos a uma teoria da ratio decidendi como norma 

06/08/2016 Júlia Thiebaut Sacramento 

» Emendas constitucionais e direito adquirido 

06/08/2016 Arthur Cristóvão Prado 

» Uma notícia histórica sobre a boa‐fé no direito privado 

06/08/2016 Rockweel Barbosa Silva 

» O princípio da proporcionalidade aplicado à seara penal 

06/08/2016 Marcella Gomes do Nascimento 

» Análise jurisprudencial acerca do princípio da publicidade 

06/08/2016 Higo Araújo Bezerra 

» Os aspectos da responsabilidade civil estatal referentes aos danos em áreas de risco 

06/08/2016 Edmara de Abreu Leão 

» Migração entre polos na Ação Civil Pública 

06/08/2016 Antonio Braga da Silva Júnior 

» O meio ambiente do trabalho como nova diretriz constitucional de tutela ambiental: 

o contraste entre o ideal constitucional e a realidade brasileira 

06/08/2016 Lenora C Milesi 

» Instituto seguro sob a ótica do consumidor e seus direitos fundamentais. 

 

 

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DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO TRIBUTÁRIA

KIYOSHI HARADA: Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro  do  Instituto  dos  Advogados  de  São  Paulo. Presidente  do  Centro  de  Pesquisas  e  Estudos  Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos da Fiesp. Ex Procurador‐Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Constituição definitiva do crédito tributário não

se confunde com inalterabilidade do crédito

tributário.

À luz do direito positivo a controvertida matéria decadência/prescrição

tributária pode ser aclarada em poucas palavras.

No direito tributário, ambos os institutos jurídicos extinguem o crédito

tributário (art. 156, V do CTN).

O lançamento notificado ao contribuinte constitui definitivamente o

crédito tributário (art. 145 do CTN).

O lançamento é procedimento administrativo a cargo da autoridade

administrativa competente (servidor efetivo integrante de carreira específica)

para constituir o crédito tributário (art. 142 do CTN). Esse procedimento

encerra-se definitivamente com a notificação do lançamento. Havendo

pagamento extingue-se o crédito tributário. Havendo impugnação instaura-

se o processo administrativo tributário ficando ipso facto suspensa a

exigibilidade do crédito até final da decisão administrativa irrecorrível (art.

151, III do CTN). Procedimento administrativo e processo administrativo não

se confundem.

O lançamento é, pois, o marco divisor entre a decadência e a

prescrição. Antes dele, o prazo é de decadência; depois dele, sem hiato, o

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prazo é de prescrição que só se interrompe pelo protesto judicial (inciso III,

do parágrafo único, do art. 174 do CTN). O CTN não cogita da hipótese de

suspensão da prescrição.

Não tem amparo legal a corrente doutrinária ou jurisprudencial que

perfilha a tese da interrupção ou da suspensão da prescrição enquanto não

ultimar o processo administrativo tributário, a pretexto de que o crédito

impugnado não é definitivo, porque ele pode sofrer alteração parcial ou total.

Isso é confundir constituição definitiva do crédito tributário que deflagra a

fluência do prazo prescricional, com a inalterabilidade do crédito tributário.

A constituição definitiva do crédito tributário pelo lançamento notificado,

a ensejar o início do prazo prescricional, nada tem a ver com a

inalterabilidade do crédito tributário. A alteração parcial ou total do crédito

tributário constituído definitivamente poderá ocorrer até mesmo após

encerrado o processo administrativo, por via de processo judicial (ação

anulatória do lançamento, ou ação rescisória de sentença judicial

confirmatória do lançamento).

A fazenda tem o elástico prazo de 5 anos para terminar a discussão

administrativa sendo que o contribuinte só se utiliza de no máximo 75 dias

desse prazo quinquenal: 30 dias para impugnar; 30 dias para recurso

ordinário e eventualmente outros 15 dias, quando couber recurso especial

para CSRF; tudo o mais é da Fazenda.

Se mesmo assim a Fazenda tiver dificuldade em proferir decisão final

antes da consumação do prazo prescricional ela poderá ingressar com

protesto judicial, para sua interrupção, única hipótese de utilização desse

procedimento previsto no CTN.

Realmente, se a exigibilidade não estiver suspensa, cabe a Fazenda

cobrar o crédito, e não protestar. Mas, a Fazenda prefere defender uma tese

contra legem, tornando inútil e ocioso o remédio processual previsto pelo

legislador para contornar os efeitos danosos da morosa atuação de seus

servidores. Assim procedendo, a Fazenda tira proveito da sua própria

ineficiência. Beneficia-se da sua inércia e da pouca produtividade,

afrontando o princípio inserto no art. 37 da CF. Acolher a tese da suspensão

ou da interrupção prescrição, sem protesto judicial, só porque a situação

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de suspensão da exigibilidade do crédito tributário está se prolongado em

demasia por inércia do órgão estatal, é o mesmo que afrontar o

princípio nemo auditur propriam turpitudinem allegans.

Finalmente, como é possível sustentar que o crédito tributário só é

constituído definitivamente com o pronunciamento final do órgão colegiado

(CARF), onde participam até representantes dos contribuintes, se o art. 142

do CTN diz que o crédito tributário somente pode ser constituído por

autoridade administrativa competente? Essa autoridade administrativa

competente, por força do disposto no inciso XXII, do art. 37 da CF, só pode

ser um servidor efetivo, integrante de carreira específica, normalmente,

carreira de auditor fiscal de agente fiscal de rendas.

Função de julgar é absolutamente incompatível com a função de

constituir o crédito tributário. Autoridade administrativa referida no art. 142

do CTN não se confunde com órgão público, singular ou colegiado. Quem

lavra o auto de infração ou promove a sua eventual retificação é sempre uma

pessoa física integrante da Administração Tributária incumbida de fiscalizar

os tributos. Quem julga não pode fiscalizar e vice-versa. É tudo muito

simples, basta seguir o que está na lei que é a fonte primeira do direito.

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REPARTIÇÃO DE RECEITA TRIBUTÁRIA DO ICMS NA PERSPECTIVA DO FEDERALISMO FISCAL: ABORDAGEM DA CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DE ISENÇÃO

RICARDO FACUNDO FERREIRA FILHO: Bacharelando em direito pela Universidade Federal do Ceará.

RESUMO: É sabido que a Constituição de 1988 elegeu o federalismo como modelo de forma de estado para o Brasil, assim como conferiu autonomia política, de forma inovadora, aos Municípios, passando estes a integrarem o Estado Federado como membros autônomos e independentes. Contudo, para garantir sua autonomia, é imprescindível a existência de recursos financeiros para manutenção de suas atividades institucionais, desaguando a discussão em torno do federalismo fiscal. O repasse constitucional de receitas é medida fundamental para essa função, significando para tais entes um maior aporte de recursos em seus cofres. Porém, instalou-se um imbróglio entre Municípios e Estados-membros no tocante à possibilidade destes promoverem incentivos e benefícios fiscais sobre o ICMS, tributo sujeito à partilha com aqueles. Nessa discussão, tenta-se encontrar um ponto ótimo, um meio termo, que harmonize a preservação das autonomias financeiras dos referidos entes políticos, inclusive a competência tributária dos Estados-membros. Busca-se uma solução que não esvazie os comandos constitucionais que preveem a possibilidade de concessão de benefícios fiscais, ao mesmo tempo eem que não se inviabilize a autonomia política dos Municípios. São concentrados os debates ao redor da isenção fiscal, tendo inclusive o Supremo Tribunal Federal já se manifestado acerca da sua inconstitucionalidade. Porém, o debate é bem mais complexo do que parece, demandando uma análise mais atenta e cuidadosa, de modo que falhas serão

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apontadas no posicionamento da Corte Suprema. Em verdade, assinala-se que o Supremo Tribunal Federal baseou seu entendimento, no bojo do recurso extraordinário nº 572.762, em premissa equivocada, favorecendo em demasia os Municípios, porém minando a própria autonomia financeira e política dos Estados-membros. Não se intenta negar o direito subjetivo dos Municípios à quota-parte no produto da arrecadação do ICMS, mas tão somente sugerir uma interpretação consentânea a preservação do modelo federal de estado, na medida em que o termo inicial do citado direito seria a efetiva arrecadação dos tributos.

Palavras-chave: Autonomia financeira. Municípios. Isenção. Receita pública.

ABSTRACT: It is known that the 1988's Constitution has chosen federalism as a state form of model for Brazil, and given political autonomy, in an innovative way, the municipalities, passing these to integrate the federal state as autonomous and independent members. However, to ensure its autonomy, it is essential the existence of financial resources to maintain their institutional activities, flowing into the discussion on fiscal federalism. The constitutional transfer of revenue is a key measure for this function, meaning to such entities increased allocation of funds in its coffers. However, installed a serious issues between municipalities and the Member States regarding the possibility of these promote incentives and tax benefits on VAT, tax subject to sharing with those. In this discussion, it tries to find an optimal point, a happy medium, which harmonize the preservation of financial autonomy of these political entities, including the tax competence of Member States. We seek a solution that does not exhaust the constitutional provisions that provide for the possibility of granting tax benefits, while andin that does not impede the political autonomy of the municipalities. discussions are concentrated around the tax exemption, including having the Supreme Court has spoken out about its unconstitutionality. But the discussion is far more complex than it seems, requiring a more attentive and careful analysis, so that faults will be outlined in the position of the Supreme Court. In fact, it is

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noted that the Supreme Court based their understanding, in the midst of an extraordinary appeal No. 572,762 in erroneous premise, favoring too much the municipalities, but undermining the very financial and political autonomy of the Member States. Not attempts to deny the subjective right of municipalities to share in the proceeds from the collection of VAT, but only to suggest an interpretation consistent preserving the federal model of state, to the extent that the initial term of that right would be the effective collection of taxes.

Keywords: Financial autonomy. Counties. Exemption. public revenue.

1 INTRODUÇÃO

Aborda-se a constitucionalidade da concessão de isenção fiscal sobre as receitas provenientes do Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, tendo em vista o modelo de repartição de receitas tributárias fixado pela ordem constitucional brasileira e a autonomia política conferida aos membros da federação.

Importa anotar que os contornos do modelo da forma de estado adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Estado Federado, é de suma importância para se entender o debate em tela.

Com efeito, especial enfoque deve ser dado ao intitulado federalismo fiscal e suas implicações na autonomia dos entes federados.

Assim, haja vista a disparidade de distribuição de recursos entre os entes políticos, o próprio modelo de repartição constitucional de receitas foi pensada com o intuito de atenuar as diferenças de arrecadação de receitas tributárias fixadas no bojo da Constituição Federal, pois sabe-se que grande parte dos tributos foram atribuídos à União Federal.

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Ciente dessa situação, o constituinte originário fixou que parte dos recursos arrecadados pelos Estados-membros a título de ICMS seriam repartidos com os Municípios, garantindo um maior aporte de recursos a estes entes políticos, na tentativa de equilibrar a distribuição de recursos.

Em verdade, a violação ou não à autonomia política dos municípios é a questão central discutida, premissa essa que será posta em confronto com a competência tributária dos Estados-membros, igualmente componentes da Federação e resultante também da autonomia conferida a tais entes.

Cinge-se arraigada a polêmica em torno do benefício fiscal acima aludido, pois a isenção fiscal tem o condão de diminuir a receita tributária proveniente de determinado tributo, perdas essas que refletiriam no valor das verbas repassadas aos Municípios pelos Estados-membros.

Alegam os Municípios que a adoção de tal prática tributária pelos Estados-membros prejudica a arrecadação de suas receitas, minando economicamente tais entes federados, acarretando prejuízo ao exercício de suas capacidades ante o abalo a sua estrutura financeira.

Sabe-se que a limitação de recursos inviabiliza os entes públicos de atuarem de forma autônoma, na medida em que não são capazes de exercer de forma regular e satisfatória as competências constitucionalmente a eles atribuídas. Isso porque toda atividade administrativa demanda o engendramento de recursos.

De fato, qualquer atividade administrativa demanda gasto de recursos, tendo em vista a necessidade de movimentação de pessoal, aparelhamento da administração pública e atendimento aos trâmites burocráticos inerentes aos serviços públicos.

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Nessa perspectiva, sem autonomia financeira esgota-se a própria autonomia política conferida aos Municípios, inviabilizando o referido ente de cumprir com seus fins institucionais.

Em contrapartida, asseveram os Estados-membros que a concessão de isenção fiscal sobre o ICMS é plenamente compatível com a ordem constitucional, sob o argumento de que há dispositivo na Constituição prevendo a possibilidade de concessão de tal benefício, e de que cabe a ele exercer a competência tributária sobre tal imposto, o que incluiria a faculdade de conceder isenção fiscal.

Nesse sentido, percebe-se que a discussão demanda a análise de poderosos argumentos suscitados por ambos os sujeitos da Federação, Estados-membros e Municípios. Trata-se de tema sensível e que, inclusive, já está em debate no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

A importância do presente trabalho torna-se evidente por estar em jogo a higidez da própria autonomia política dos entes federados, notadamente dos Municípios e dos Estados, e, consequentemente, do princípio federativo, elegido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 um princípio fundamental.

Então, o resguardo a um princípio tão caro ao ordenamento jurídico brasileiro é questão estratégica para manutenção das premissas básicas sobre as quais foi fundada a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Para a realização do presente trabalho científico, serão utilizadas algumas fontes de natureza variada com o intuito de enriquecer a presente pesquisa.

Sendo assim, fazem-se imprescindíveis as leituras de trabalhos de conclusão de curso, de dissertações de mestrado e de teses de doutorado ligados ao federalismo fiscal, à repartição constitucional de receitas tributárias e às isenções fiscais

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concedidas sobre tais receitas, conjunto o qual constitui a metodologia bibliográfica.

Cumpre asseverar que é valorosa a pesquisa por meio de alguns manuais doutrinários de Teoria do Estado, de Direito Constitucional, de Direito Tributário e de Direito Financeiro, além de artigos científicos sobre a temática, sendo esses materiais de metodologia documental de grande auxílio para o desenvolvimento do trabalho.

Por fim, tem-se a pesquisa legislativa, visto que seria inviável o estudo dos objetivos desta obra sem a análise do Código Tributário Nacional - CTN e, principalmente, da Constituição Federal de 1988.

2 ABORDAGEM DA CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DE ISENÇÃO

É sabido que a política de concessão de isenções fiscais é medida bastante comum entre os entes da federação, tendo em vista que o referido instituto possui o escopo de incentivar as atividades empresariais a partir da desoneração tributária.

Não apenas isso, o benefício fiscal de isenção também pode ser utilizado com o intuito de incentivar comportamentos socialmente relevantes do ponto de vista social, tal como ocorre nos casos de isenção de imposto sobre propriedade de veículo automotor para pessoas portadoras de doenças graves.

Com efeito, frente as desonerações tributárias concedidas pelas pessoas políticas, as pessoas privadas poderão atuar em suas atividades econômicas suportando um menor ônus e com custos reduzidos, o que incentiva o desenvolvimento de suas atividades.

O desenvolvimento econômico é de todo interesse não só da pessoa privada, mas também das pessoas políticas e da sociedade, haja vista que o progresso econômico contribui com a

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geração de empregos e renda, aumentando o consumo e a circulação de riquezas.

Cuida-se, na verdade, de um ciclo, em que toda a sociedade se beneficia, seja pelo sucesso de seus empreendimentos, quantos à classe empresária, seja pelas possibilidades de ocupar postos de trabalhos melhores e bem remunerados, quanto às classes trabalhadoras.

Além disso, os entes políticos também se beneficiam diretamente desse desenvolvimento econômico, visto que a maior geração de emprego e renda corrobora com a crescimento da arrecadação de tributos, tendo em vista o crescimento das atividades sujeitas à tributação.

Percebe-se, então, que a política de isenção trata de medida de grande valia utilizada pelos entes políticos para fins de incentivar determinados comportamentos e atividades.

Porém, vale consignar que a concessão de isenção fiscal está inserida no âmbito da discricionariedade da administração, ficando sujeito ao poder político inerente ao respectivo ente político, que julgará qual o momento oportuno e as situações que lhe parecem, considerando o contexto vivido, suscetíveis de serem beneficiadas por benefício fiscal em comento.

Por outro lado, não obstante as possíveis consequências benéficas que podem advir da adoção da isenção fiscal, é certo que o instituto da isenção provoca uma diminuição da arrecadação da receita tributária, pelo menos em um momento inicial.

Conforme já asseverado, a isenção, em razão de impedir o nascimento da obrigação tributária, provoca uma inevitável redução das receitas carreadas aos cofres públicos.

O problema surge quando a diminuição da arrecadação recai sobre a receita de tributos sujeitos ao partilhamento obrigatório, nos moldes definidos pela Constituição de 1988.

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Especificamente no tocante às receitas provenientes da arrecadação de ICMS, os Municípios alegam que a concessão de isenção pelos Estados-membros prejudica os repasses que lhe são devidos. Isso sob o argumento de que a base sobre a qual incide os 25% pertencentes àqueles entes políticos seria diminuída com o referido instituto, o que, consequentemente, acarretaria uma redução do montante a ser repassado.

Pleiteam judicialmente os Municípios o reconhecimento da invalidade das isenções concedidas pelos Estados-membros respectivos sobre as suas receitas de ICMS, requerendo a pagamento dos valores que alegam ter sido indevidamente subtraídos do montante partilhável.

A violação da autonomia financeira dos Municípios é erigido como argumento central de tais entes, que argumentam que as isenções fiscais obstam o repasse de receitas fundamentais para o desempenho de suas atividades institucionais, já que estariam recebendo menos recursos do que o devido.

Defende-se o argumento de que a lei remissiva não pode prejudicar o ente político beneficiado com o partilhamento, tendo tal posição eco nas lições doutrinárias (CARRAZZA, 2008, p. 669-670):

Remarcamos que a cobrança dos tributos é sempre vinculante à lei (cf. art. 150, I, da CF). Logo, a menos que a renúncia de que aqui estamos tratando esteja amparada em lei remissiva, ela absolutamente não pode prejudicar o direito à representação das pessoas políticas, que, por injunção constitucional, ficam com parte (ou com a totalidade) do produto da arrecadação de tributos alheios.

Argumenta-se também que a concessão de isenção sobre a receita proveniente do ICMS implicaria em isenção heterônoma, já que a quota-parte pertencente aos Municípios seriam afetadas

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pelo benefício fiscal concedido pelo Estado-membro, entes político diverso.

Entretanto, o debate é delicado e envolve um conjunto de outros fatores que demandam análise apurada e detida, já havendo, inclusive, posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

2.1 Posição do Supremo Tribunal Federal

No bojo do recurso extraordinário nº 572.762, julgado com repercussão geral reconhecida, o plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu pela inconstitucionalidade da concessão de benefícios fiscais que acarretam a diminuição das receitas tributárias, na medida em que prejudicam a quota-parte dos Municípios sob o montante arrecadado, visto que tais parcelas pertencem de pleno direito a tais entes municipais[1].

De fato, a jurisprudência da referida Corte tem apontado como ilegítima a conduta dos Estados-membros de diminuir a quota-parte pertecente aos Municípios com a concessão de incentivos fiscais a particulares.

Como fundamento, foi apontado que não caberiam aos Estados-membros manipular parcela devidas aos Municípios, reduzindo seu montante com a adoção de políticas de incentivo fiscal, em razão delas pertencerem de pleno direito aos últimos, não possuindo aqueles qualquer tipo de ingerência sobre tais recursos.

Por conseguinte, em virtude de tal parcela pertencer, de pleno direito, aos Municípios, deverá ser-lhes creditada sem qualquer outra restrição que não aquelas a que alude o próprio texto constitucional.

Além disso, utilizou-se também como fundamento do precedente em debate o princípio da pacto federativo, posto que a ingerência dos Estados-membros nas receitas pertencentes aos Municípios implicaria em violação à autonomia política destes, além

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de importar violação à sistemática de repartição de receita tributária fixada no art. 158, IV, da Constituição.

Aliás, vale assinalar que esse entendimento não é recente no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Essa Corte já possuía, desde 1976, enunciado sumular no sentido da impossibilidade dos Estados-membros reduzirem a parcela do ICMS devida aos Municípios.

Trata-se do teor da súmula nº 578: “Não podem os Estados, a título de ressarcimento de despesas, reduzir a parcela de 20% do produto da arrecadação do imposto de circulação de mercadorias, atribuída aos Municípios pelo art. 23, § 8º, da Constituição Federal”.

Atente-se que tal entendimento foi fixado ainda sob a égide da ordem constitucional anterior, tendo ele persistido na jurisprudência da Corte Suprema, com aplicação reiterada em julgados mais recentes[2].

Todavia, cumpre consignar que o precedente acima aludido – recurso extraordinário nº 572.762 – não se refere especificamente ao benefício da isenção fiscal, posto que outras formas de benefícios fiscais estavam tendo sua constitucionalidade discutida em seu âmbito.

Realmente, o citado recurso extraordinário discutia a constitucionalidade do Programa de Desenvolvimento Econômico da Empresa Catarinense (PRODEC), que instituía uma série de incentivos e benefícios fiscais em favor das empresas instaladas em Santa Catarina.

As empresas participantes do referido programa beneficiam-se dos seguintes incentivos fiscais: a) financiamento por meio de instituição financeira oficial; e b) postergação do recolhimento de ICMS.

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Acontece que a discussão travada no precedente em análise diz respeito tão somente ao regime de postergação do recolhimento do ICMS, cuja concessão acarreta o adiamento do repasse, aos Municípios, da parcela deste imposto que lhes pertence.

Melhor dizendo, não se discutia exatamente a constitucionalidade de isenção fiscal enquanto benefício fiscal concedido, acarretando a diminuição ou supressão de repasses.

Tratava-se de recurso extraordinário interposto pelo Estado de Santa Catarina contra acórdão de Tribunal de Justiça local, que deu provimento à apelação do Município de Timbó ao fundamento de que viola a Constituição Federal a retenção de parcela do ICMS pertencente àquele ente federado em razão da concessão de incentivos fiscais.

Alegou , em apertada síntese, o Estado de Santa Catarina que, como o momento do recolhimento do imposto é diferido, não é possível falar-se em arrecadação do tributo e, muito menos, em direito dos Municípios à repartição da receita dele decorrente.

Entretanto, conforme já adiantado, tal argumentação não prevaleceu no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Contudo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem aplicado o referido precedente aos casos de isenção fiscal concedidas pelos Estados-membros também, sob o fundamento de que a concessão de quaisquer benefícios fiscais, de uma forma geral, não poderia obstar o repasse da quota-parte pertencente aos Municípios[3].

Nessa perspectiva, embora a própria Corte suprema reconheça haver uma diferença fática entre a situação tratada no recurso extraordinário tido como paradigmático e a situação referente à isenção fiscal em específico, ela tem aplicado o referido precedente ao último caso.

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Para tanto, a jurisprudência da referida Corte escora-se no fundamento utilizado no paradigma, segundo o qual, à luz dos princípios federativo e da autonomia municipal, bem como do disposto no art. 158, IV, da Constituição Federal, a parcela do ICMS, não obstante arrecada pelo Estado, integra o patrimônio do Município, não podendo o ente maior dela dispor a seu talante, sob pena de grave ofensa ao pacto federativo.

Inclusive, vale a pena transcrever parte do voto do ministro relator do recurso extraordinário nº 572.762, Ricardo Lewandoski:

Ninguém duvida que os Estados possam, mediante lei complementar, conceder incentivos ou benefícios fiscais – quaisquer que sejam eles –, desde que acordados comumente. Não se admite é que instituam benefícios ou se concedam isenções ou estabeleçam programas para auxiliar empresas com a parcela de tributo – conforme Vossa Excelência muito bem disse – pertencem ao Município.

Em contrapartida, acrescente-se que, quando se tratar de isenção fiscal, alegam igualmente os Estados-membros que, como o imposto sequer é lançado, não é possível falar-se em arrecadação do tributo e, muito menos, em direito dos Municípios à repartição da receita dele decorrente. Porém, tal circunstância será melhor explorada na seção seguinte.

2.2 Críticas ao entendimento do Supremo Tribunal Federal

Por óbvio, o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal não está imune a críticas.

Maior prestígio à tese dos Estados-membros deveria ter sido conferida pela Corte Suprema. Isso porque, embora a autonomia política dos membros da federação seja de suma importância para a manutenção do equilíbrio constitucional instituído pela ordem jurídica atual, a competência tributária igualmente deve ser preservada.

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De fato, o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal impossibilita que os membros da federação, que possuem a competência tributária para instituir determinado tributo, aumentá-lo e diminuí-lo, e conceder incentivos fiscais sobre os mesmos, inclusive a isenção fiscal, a exerçam de forma plena e nos seus interesses legítimos.

Indaga-se se é razoável ocorrer essa limitação ao poder de tributar, cujo exercício é essencial para a manutenção das atividades de qualquer ente político, notadamente o Estado-membro.

Deve-se, igualmente, vislumbrar que o impedimento dos Estados-membros de exercer a sua competência tributária sobre os tributos que são objeto de partilha também fragiliza a autonomia financeira de tais entes.

Isso porque a concessão de incentivos e benefícios fiscais é comumente utilizada por eles com o intuito de aumentar a própria arrecadação do Estado, na medida em que promove uma desoneração tributária dos particulares e, consequentemente, os incentivam a produzir mais riquezas, o que poderá acarretar uma maior arrecadação no futuro.

Por isso, entende-se que merece maior prestígio a tese que analisa a concessão de isenção sobre as receitas partilháveis de ICMS sob a ótica do ciclo de receitas públicas, visto que este elege um estágio em que é possível considerar-se arrecadado o referido tributo, fase na qual também surge a própria receita pública.

Dentro do chamado ciclo de receitas públicas, podemos identificar quatro fases sucessivas que conduzem a realização da receita, a saber, nessa ordem: estágio da previsão, estágio do lançamento, estágio da arrecadação e estágio do recolhimento (LEITE, 2014, p. 161).

O primeiro estágio, chamado estágio de previsão, tem a função de prever a quantidade de receita que será carreada aos

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cofres públicos, segundo as expectativas do ente público arrecante. Tal previsão é realizada na própria lei orçamentária respectiva (LEITE, 2014, p. 161).

Após a previsão, passa-se ao segundo estágio, chamado estágio de lançamento, em que a receita prevista é lançada, ou seja, tem o seu montante individualizado (LEITE, 2014, P. 162).

Tratando de receita proveniente de tributo, o lançamento aqui realizado é aquele previsto no art. 142 do Codigo Tributário Nacional, procedimento no qual a autoridade administrativa verifica a ocorrência do fato gerador da obrigação, determina a matéria tributável, calcula o montante do tributo devido, identifica o sujeito ativo e propõem a aplicação da penalidade cabível, sendo o caso.

Conforme se aduziu em seção acima, o lançamento tem por função formar o crédito tributário em si, tornando líquida, certa e exigível a obrigação tributária a ele submetida.

Após procedido o lançamento, passa-se à fase de arrecadação, que corresponde à entrega dos recursos devidos ao Tesouro pelos contribuintes ou devedores, por meio dos agentes arrecadadores ou instituições financeiras autorizadas pelo ente ou até mesmo diretamente a este (LEITE, 2014, p. 163).

Em alguns casos, é possível haver o estágio do recolhimento depois do estágio da arrecadação. Naquela, ocorre a entrega dos valores arrecadados aos cofres do Governo, sendo os valores previstos, lançados e arrecadados depositados em favor do respectivo ente público titular de tal ativo, que, no caso do ICMS, é o Estado-membro (LEITE, 2014, p. 163).

Confrontando-se o conceito de receita pública com o ciclo acima exposto, pode-se afirmar que somente se qualifica como receita pública os créditos efetivamente arrecadados pelo respectivo ente político. Nas palavras de Baleeiro (1998, p. 126):

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Receita pública é a entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo.

Nesse sentido, haja vista que o conceito de receita pública pressupõe a entrada dos créditos nos cofres públicos, somente após as fases de arrecadação e o recolhimento, caso haja esta última, pode-se considerar o seu nascimento.

Resta evidente, portanto, que o crédito tributário deve percorrer todo esse percalço para que seja efetivamente inserido nos cofres do Estado credor, caracterizando-se como receita pública.

Então, as receitas públicas só poderão ser consideradas como tais depois da fase de arrecadação, ou seja, após os recursos terem sido pagos aos agentes arrecadadores, os quais podem inclusive ser o próprio Estado, devendo apenas após esse momento considerar-se efetivamente arrecadadas as receitas tributárias.

Nesse ínterim, esse ciclo de receitas públicas deve ser levado em consideração no momento de interpretar a regra constitucional que disciplina a repartição de receitas tributárias disposta no art. 158, IV, da Constituição. Isso porque a Constituição fala de forma expressa e literal que pertencem aos Municípios vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do ICMS.

Melhor dizendo, somente depois de arrecadado o ICMS que passará o Município a ter direito subjetivo ao seu partilhamento. Antes da arrecadação, o Município possuiria somente a expectativa de direito ao partilhamento.

Isso em razão da repartição ser de receitas públicas, as quais somente assim se caracterizam depois da arrecadação.

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Com efeito, apenas se pode falar em receita arrecadada, para os fins da repartição constitucional prevista no art. 158, IV, da Constituição Federal, quando houver a entrega dos recursos devidos.

Assim, antes de superada a fase de arrecadação, é inarrazoável pretender a repartição com os Municípios de receita inexistente a partir do prescrito na Constituição Federal, até porque no dispositivo em comento se encontra expresso que se repartirá o produto da arrecadação, ou seja, a receita pública. Logo, se a receita não se realizou na íntegra, ela não existe, e se não existe, não há o que ser repassado.

Nessa perspectiva, ante essa constatação, importa salientar que a concessão de isenção fiscal pelo Estado-membro, em razão desse benefício impossibilitar o nascimento da própria obrigação tributária, conforme já foi largamente demonstrado em seção acima, impede que se alcance os estágio do lançamento e da arrecadação.

De fato, tendo a isenção a finalidade de excluir o crédito tributário, impedindo o nascimento da obrigação, não há que se falar em lançamento do tributo, não sendo formado o crédito tributário, sem o qual também não há como ser arrecadada a receita tributária, já que inexiste obrigação líquida, certa e exigível.

Desse modo, tendo em vista que não é possível falar-se em arrecadação do tributo – no caso em questão o ICMS –, também pode-se sustentar que não houve o nascimento do direito subjetivo dos municípios à parcela decorrente da repartição da receita.

Essa interpretação parece ser a mais razoável quando se confronta a autonomia política e financeira dos Municípios com o exercício legítimo da competência tributário pelos Estados-membros, que, da mesma forma, é essencial para a garantia da sua autonomia financeira destes.

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O raciocínio acima explicitado parece ter alcançado um meio termo entre os institutos. Isso porque, ao mesmo tempo em que impede que os Estados-membros interfiram na quota-parte dos Municípios resultante do montante efetivamente arrecadado, preserva-se a autonomia daqueles no exercício de sua competência tributária, restando intacta a sua faculdade de conceder isenções fiscais com o intuito de se alcançar determinada finalidade que considerou relevante.

Frise-se que não se pretende negar a existência de direito subjetivo dos Municípios de receber parte da receita pública proveniente de ICMS, o que se está propondo é um termo inicial razoável para o surgimento de tal direito, considerando não só a autonomia financeira dos referidos entes, mas também dos Estados-membros e a preservação da competência tributária dos últimos.

Além disso, não se deve compreender a autonomia financeira dos Municípios como valor fundamental absoluto e intocável, em uma extensão maior do que aquela conferida efetivamente pelo poder constituinte, sob pena de se inviabilizar o próprio Sistema Tributário Nacional disciplinado na Constituição.

Admitir uma interpretação rígida dos dispositivos constitucionais que tratam da repartição das receitas tributárias no sentido de que a União, em relação aos impostos repartidos com os Estados e Municípios, e os Estados, em relação aos impostos repartidos com o seus Municípios, não poderão interferir de qualquer maneira nos impostos de sua exclusiva competência tributária realmente é um risco para o sistema tributário como um todo.

O entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal induz a crer que, caso venha eventualmente ser reduzido o valor dos repasses da parcela devida aos demais entes, estariam sem quaisquer efeitos os demais dispositivos constitucionais que tratam

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de subsídios, isenções, reduções de base de cálculo e outros favores fiscais (arts. 150, § 6° e 155, § 2°, XII, g da CF).

A partir da lógica adotado pela Corte Suprema, seria forçoso reconhecer que todo e qualquer norma que trate de isenção, não incidência, reduções de base de cálculo, ou até mesma redução de alíquotas, de impostos que sejam objeto de repartição tributária indicados nos artigos 157, 158 e 159 da Carta Magna, importariam em redução do repasse incidente sobre o produto da arrecadação destes impostos e seriam, portanto, ilegítimos.

Se admitirmos que o direito dos entes federados às parcelas dos tributos objeto de repartição tributária, os quais integram a competência tributária de outros entes federados,independem de sua efetiva arrecadação, ou seja, de sua entrega aos agentes arrecadadores ou ao próprio ente tributante, inevitavelmente chegaríamos à conclusão de um pleno e total engessamento do sistema tributário nacional.

O engessamento ocorreria na medida em que qualquer alteração legislativa que tenha por objeto os elementos do tributo (base de cálculo, alíquota, fato gerador, etc.) e que importem em redução do valor do tributo e consequentemente da arrecadação potencial, terá reflexo direto na parcela a ser repassada aos demais entes federados, tornando-se contrárias à Constituição.

Assim, nesses casos, jamais poderiam os entes tributantes promover qualquer alteração nos seus tributos sujeitos à partilha, o que, evidentemente, beira o absurdo. Essa limitação implicaria na supressão parcial da própria competência tributária dos Estados-membros, de forma que somente seriam permitido que esses modificassem os elementos próprios do ICMS caso houvesse aumento na arrecadação.

Nesse sentido, é salutar a transcrição de trecho do voto do Ministro Carlos Brito proferido no julgamento do mesmo recurso extraordinária n° 572.762, no qual o mesmo expõe a mesma preocupação acima mencionada, in verbis:

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Apenas na tentativa de uma reflexão, de um pensar coletivo, fico ainda indeciso nessa adesão ao voto do eminente Relator diante de dois outros dispositivos constitucionais.

Um deles é o § 6° do art. 150, que realmente admite essa possibilidade de subsídio, isenção, redução da base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão relativos a impostos, taxas ou contribuições, desde que qualquer desses favores seja concedido mediante lei específica ou lei monotemática de cada qual das pessoas federadas. Então, há uma previsão constitucional de concessão de favor fiscal.

(...)

Mas não é só. A Constituição também prevê, já no artigo 155, XII, “g” - se os Ministros quiserem acompanhar a leitura -, que cabe á lei Complementar – aqui trata-se da Lei Complementar Federal n° 24, de – creio – 1995.

(…)

Já que estou dividindo uma preocupação com Vossas Excelências, não posso deixar sem função os dois dispositivos constitucionais. O primeiro prevê que, mediante lei monotemática, ou lei específica, haja a concessão de tais favores; o segundo faz a expressa remissão aos órgãos fazendários estaduais e do Distrito Federal para que determinado favor fiscal seja efetivamente concedido.

Embora o Ministro Carlos Britto tenha aderido posteiormente ao voto do relator do citado recurso, Ricardo

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Lewandoski, concordando com a inconstitucionalidade do benefício fiscal em análise, a reflexão lançada para debate com seus pares foi deveras pertinente e legítima.

Em certa medida, como o próprio Ministro Carlos Britto alertou no trecho acima transcrito, caminha-se para uma interpretação que deixará sem função os dispositivos constitucionais que preveem de forma expressa a possibilidade de concessão de incentivos fiscais pelos entes tributantes.

O esvaziamento de tais dispostivos implicaria em interferência direta dos Muncipios na competência tributária dos Estados-membros sobre o ICMS, posto que, sob o argumento de preservação de sua autonomia financeira, aqueles entes políticos tolheriam a autonomia financeira e polítca destes.

Na mesma medida em que não se pode aceitar a ingerência dos Estados-membros na autonomia política e financeira dos Municípios, o inverso também é verdadeiro, devendo ser extraído da Constituição uma solução que preserve o pacto federativo como um todo.

Da maneira como foi interpretado os dispositivos constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário nº 572.762 sobrelevou-se a autonomia financeira dos Municípios em detrimento e definhamento da autonomia financeira dos Estados-membros.

Por isso, acredita-se que o direito subjetivo às parcelas do montante de ICMS somente surge para os Municípios depois de ocorrida a efetiva arrecadação das receitas, momento em nasceria propriamente a receita pública.

Antes de alcançada tal fase, deve ser garantido aos Estados-membros a liberdade de exercer sua competência tributária e, consequentemente, a sua autonomia política e financeira.

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Por outro lado, o Ministro Cezar Peluso, ainda no bojo do recurso extraordinário nº 572.762, consignou que eventuais benefícios fiscais deverão ser concedidos somente sobre a quota-parte pertencente a pessoa política tributante, não devendo haver ingerência na quota-parte do ente federado beneficiado.

Vejamos a literalidade das palavras do citado Ministro: É o produto da arrecadação. Ele diminui o

produto da arrecadação mediante artifício consistente em deixar de atribuir ao Estado uma parcela que lhe pertence pela Constituição, embora isso tenha finalidade fiscal importante. Mas isso deve ser feito com base nos setenta e cinco por cento que pertencem ao Estado. Isto é, o valor dos repasses não podem ser deduzido do montante sobre o qual é calculada a parcela pertencente aos Municípios.

À primeira vista, a explicação acima aduzida da forma que entendeu o Ministro Cezar Peluso ser correta a operacionalização do benefício fiscal em questão parece solucionar o imbróglio. Porém, tal sistemática sugerida não encontra compatibilidade com o instituto da isenção fiscal.

Explica-se. A isenção sequer permite o nascimento da obrigação tributária, não permitindo, portanto, a formação do crédito tributário, o que sinaliza que não se alcança a fase do lançamento da receita. Sem o lançamento, não se pode individualizar o crédito, calcular seu montante e determinar o devedor.

Assim, se não há crédito líquido, certo e exigível, pois não houve lançamento, não é possível separar os montantes pertencentes a cada ente político.

Em outras palavras, a isenção não permite que se calcule o montante do tributo que foi objeto de isenção, não havendo uma base de cálculo determinada e individualizada apta a ser repartida

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em setenta e cinco por cento e vinte e cinco por cento, pertencentes, respectivamente, ao Estado e aos Municípios.

Nesse sentido, a sugestão do Ministro Cezar Peluso falha quando se trata de isenção, razão essa que reforça a interpretação acima sugerida da sistemática de partilhamento de receita instituída no art. 158, IV, da Constituição.

Ademais, mais um argumento pode ser adicionado. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal coloca os Municípios em uma situação confortabilíssima, pois, segundo tal ótica, tais entes jamais seriam prejudicados.

De fato, se a isenção concedida pelos Estados-membros sobre o ICMS, embora provocasse uma diminuição imediata na arrecadação, acarretasse um aumento das atividades empresarias em decorrência do estímulo provocado pela desoneração tributária, os Municípios também seriam beneficiados com a atuação de tal política fiscal. Isso em razão do aumento da arrecadação por parte do Estado-membro, já que as atividades tributadas foram estimuladas.

Contudo, caso tal política não lograsse o êxito aguardado pelo Estado-membro, gerando efetivas perdas na arrecadação do aludido tributo, os Muncipios teriam o direito de reaver as suas eventuais perdas daquele.

Nesse ínterim, tal sistemática somente atribui os bônus aos Municípios, os protegendo de quaisquer ônus que possa advir. Não podem pretender tal forma de benefício esses entes, pois, da mesma forma em que ele correria o risco de aumentar sua receitas, também correria o risco de vê-las diminuída.

Por essa razão, parece sensato concluir que o compartilhamento dos riscos entre os aludidos membros da federação é o melhor caminho a ser seguido.

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Ainda, os Estados-membros arcariam duplamente com a concessão de isenções fiscais, pois, em um primeiro momento, ele sofreria com a queda na arrecadação de tributos, e, em um segundo momento, ele teria de indenizar os Municípios pela diminuição do montante da arrecadação.

Tal solução não parece ser a mais benéfica ao interesse público, pois a coletividade sairia perdendo frente um conflito entre esses entes, tendo em vista que os mesmos dispenderiam tempo e recursos brigando entre si, recursos esses que poderiam ser utilizados em benefício da própria população.

Em contrapartida, outro ponto deve ser considerado. Se os Estados-membros não podem conceder isenção sobre o ICMS, pois haveria reflexo negativo no montante devido aos Municípios, eles poderiam aumentar os elementos pertinentes ao citado imposto, por exemplo, elevando a sua alíquota? A resposta a ser dada parece ser intuitivamente positiva. Porém, não é tão simples como parece.

O aumento de alíquotas também pode refletir de forma negativa no montante arrecadado, posto que a oneração tributária acrescida poderia ensejar um desestímulo nas atividades tributadas, de modo que os particulares praticassem menos os fatos gerados do ICMS com o fito de evitar a tributação.

Nesses casos, mesmo tendo o Estado-membro exercido sua competência tributária em sentido positivo, em tese, visando ao aumento da arrecadação, o efeito pode ser contrário, pois poderá haver o seu decréscimo, também refletindo negativamente no montante partilhável com os Municípios.

Nessa toada, seguindo a lógica adotada pelo Supremo Tribunal Federal, se não é possível o Estado-membro conceder incentivos e benefícios fiscais em favor de particulares, pois os mesmos provocariam a diminuição da quota-parte pertencente aos Municípios, também não poderia o Estado-membro operar modificações que ensejam o aumento do ICMS, pois tal conduta

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poderia acarretar o efeito inverso e acarretar a diminuição da arrecadação e, consequentemente, da própria quota-parte dos Municípios.

Baseia-se essa comparação na premissa que fixou o Supremo Tribunal Federal no sentido de que os Estados-membros não podem adotar políticas fiscais que prejudiquem a quota-parte dos Municípios.

É óbvio que a interpretação acima exposta é absurda, já que exclui por completo a competência tributária dos Estados-membros sobre o ICMS.

Tal observação é importante para se entender que a questão central do problema enfrentado não é a diminuição da quota-parte pertencentes aos Municípios. Deve-se desvendar se há ou não ingerência indevida na autonomia financeira de um ente da federação por parte de outro.

E, conforme assinalado, a conclusão que parece ser mais coerente é a que aponta para o surgimento do direito subjetivo à quota-parte somente após a sua arrecadação, pois evitaria-se a eliminação da competência tributária dos Estados-membros, que estariam livres para exercê-la da melhor forma que os convinher, desde que antes da entrada dos créditos tributários nos cofres públicos.

Dessa forma, em razão de todo o exposto, parece ser mais razoável e consentâneo com a preservação das autonomias dos membros da federação – no caso, Estados e Municípios – a interpretação no sentido da constitucionalidade da concessão de isenção pelos Estados-membros sobre o ICMS, mesmo que tal benefício fiscal, em um momento inicial, acarrete a diminuição do montante do qual será destacado a quota-parte dos Municípios.

Logicamente, em decorrência da conclusão supramencionada, entende-se que a análise do Supremo Tribunal Federal de aplicar o entendimento firmado no recurso extraordinário

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nº 572.762 não pode ser simplesmente aproveitado quando o benefício fiscal analisado for a isenção fiscal.

O referido precedente partiu do pressuposto equivocado de que o direito subjetivo dos Municípios à quota-parte do montante arrecadado de ICMS subsiste antes mesmo de ocorrida a sua efetiva arrecadação, além de ter discutido o benefício fiscal da postergação de tributos, que carrega peculiaridades em relação à isenção.

Por essas razões, o citado paradigma não poderia ter sido utilizado pelo Supremo Tribunal Federal para fundamentar a inconstitucionalidade da isenção sobre as receitas partilháveis de ICMS, posto que sua análise, conforme acima desenvolvido, demanda um debate próprio.

Mais uma razão deve ser acrescentada para impedir a aplicação do precedente citado às isenções.

Na situação sobre a qual se debruçou a Suprema Corte, os recursos referentes ao ICMS do Estado de Santa Catarina já haviam sido arrecadados, de modo que o benefício fiscal concedido incidia sobre o montante arrecadado, sobre a receita pública, portanto.

Então, o benefício fiscal discutido no recurso extraordinário nº 572.762 realmente rompia com o princípio do pacto federativo, posto que já havia o direito subjetivo dos Municípios à quota-parte.

Ao contrário do precedente em questão, a isenção é benefício fiscal que incide antes da própria arrecadação, motivo pelo qual atua antes do nascimento do citado direito subjetivo, diferindo por completo da situação sobre a qual se debruçou o Supremo Tribunal Federal.

Em virtude disso, não poderia a referida Corte Suprema simplesmente ter aplicado o entendimento firmado no recurso

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extaordinário nº 572.762 ao casos que tratam tão somente da isenção fiscal, pois este benefício fiscal, conforme se desenvolveu acima, merece uma análise particular.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alertou-se no início do trabalho que a questão discutida é complexa, demanda, igualmente, uma solução que harmonize valores fundamentais para a nossa ordem constitucional hodierna.

De um lado, encontra-se a autonomia financeira dos Municípios, que tanto dependem dos repasses das receitas tributárias para manuntenção de suas atividades institucionais. Do outro lado, temos a competência tributária dos Estados-membros, também ligado umbilicalmente à autonomia financeira, posto que o seu exercício é fundamental para a preservação desta.

Contudo, conforme asseveramos acima, o Supremo Tribunal Federal não parece solucionado da melhor forma a questão da constitucionalidade dos benefícios fiscais concedidos sobre os tributos sujeitos à repartição de receitas, discutida sob o enfoque do federalismo fiscal.

Não levou em consideração a referida Corte os demais fatores inerentes à própria autonomia financeira dos Estados-membros quando do julgamento do recurso extraordinário nº 572.762, posto que privilegiou-se a autonomia financeira dos Municípios. Tal precedente pecou ao se omitir sobre a necessidade de harmonização das referidas autonomias.

Partiu do pressuposto que o direito subjetivo dos Municípios independeria da arrecadação do tributo.

Entretanto, considerando a redação literal do art. 158, IV, da Constituição – segundo a qual somente seria objeto de partilha o produto da arrecadação do ICMS – e o ciclo de receitas públicas, parece mais correto concluir que o direito subjetivo dos Municípios à quota-parte do montante referente aos ICMS somente surge após

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a fase de arrecadação, ou seja, somente depois da entrada dos recursos nos cofres estaduais.

Tal interpretação parece ser mais favorável à harmonização das autonomias financeiras dos Estados-membros e dos Municípios, pois permitiria que os primeiros manipulasse incentivos e benefícios fiscais de forma legítima, sem prejudiciar os últimos, desde que antes de arrecadado o tributo.

Defender corrente contrária a proposta parece induzir uma demasiada restrição na competência tributária dos Estados-membros, que estariam impedidos de adotar qualquer medida que ocasionasse a perda de receitas públicas.

Porém, permitir tal interpretação esvazia por completo a utilidade dos arts. 150, § 6° e 155, § 2°, XII, g , da Constituição de 1988, pois eles preveem, expressamente, a possibilidade dos entes políticos concederem isenções, reduções de alíquotas, créditos presumidos, e demais outros incentivos e benefícios que também impelem a redução da arrecadação.

Então, com esteira no posicionamento defendido, tem-se que inexistiria inconstitucionalidade na concessão de isenção fiscal pelos Estados-membros aos particulares, em relação ao ICMS, posto que tal benefício fiscal impediria o nascimento da própria obrigação tributária, não permitindo que se alcance a fase de lançamento, muito menos a de arrecadação, já que impossibilita a formação do crédito tributário.

Não alcançada a fase da arrecadação, não há que se falar em direito subjetivo dos Municípios ainda, mas tão somente há expectativa de direito, de modo que os Estados-membros são livres para conceder isenção fiscal.

Além disso, permitir que o entendimento do Supremo Tribunal Federal possa prevalecer induz a concluir que haveria um desequilíbrio na repartição dos riscos decorrentes da política de incentivo fiscal adotada. Isso porque os Municípios estariam livres

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de qualquer ônus eventualmente dela decorrente, ao passo que os Estados-membros seriam duplamente onerados, primeiramente, na diminuição da arrecadação, e, posteriormente, com o dever de indenizar aqueles pela redução da arrecadação.

Ocorre que a adoção de tal política pode acarretar ganhos também para os Municípios, de modo que ele também deve suportar eventual ônus no caso de seu insucesso.

Ademais, não poderia ter o Supremo Tribunal Federal ter utilizado o precedente firmado no recurso extraordinário nº 572.762 como fundamento para reconhecer a inconstitucionalidade da isenção fiscal concedida pelos Estados-membros, pois a situação analisada é diversa daquela discutida no precedente.

Enquanto no paradigma se discute sobre a postergação de tributo, aqui discuti-se a constitucionalidade da isenção fiscal, benefício fiscal diverso daquele e com peculiaridades próprias que demandam uma análise diferenciada.

Além do mais, no precedente citado, ocorrera a arrecadação efetiva da receita, de modo que o benefício fiscal incidiu sobre o montante arrecadado, ao contrário da isenção, que incide em momento anterior.

Enfim, de qualquer forma, entende-se que a singela aplicação do entendimento firmado no recurso extraordinário nº 572.762 não é compatível com a natureza da isenção, que demanda uma solução diferente, razão pela qual reforça a interpretação sugerida.

REFERÊNCIAS

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_______. Lei 5.172 de 25 de outubro 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Portal da Legislação, Brasília, out. 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172Compilado.htm>. Acesso em: 06 jun. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Constitucional. ICMS. Repartição de Rendas Tributárias. PRODEC. Programa de Incentivo Fiscal de Santa Catarina. Retenção, pelo Estado, de parte da parcela pertencente aos municípios. Inconstitucionalidade. Recurso Extraordinário nº 572.762-SC. Estado de Santa Catarina e Município de Timbó. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski.Pesquisa de Jurisprudência, Acórdão, 18 de junho de 2008. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28572762.NUME.%20E%20RE.SCLA.%29&base=baseAcordaos. Acesso em: 06 jun. 2016.

_______. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso extraordinário. Ausência de impugnação a fundamento da decisão gravada. Súmula 284/STF. Estado da Paraíba. Icms. Repartição de receitas tributárias. Concessão de isenções e outros benefícios fiscais. Aplicação à parcela pertencente aos Municípios. Inconstitucionalidade. Entendimento firmado no julgamento do RE 572.762 (Rel. Min. Ricardo Lewandoski, plenário, tema 42) submetido à sistemática da repercussão geral. Precedentes da Segunda Turma em casos idênticos. Agravo regimental parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido. Estado da Paraíba e Município de Nova Olinda. Relator: Ministro Teoria Zavascki. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdão, 08 de setembro de 2015. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=828133&classe=RE-AgR&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em: 26 jul. 2016.

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MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4 Ed rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

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Notas:

[1] CONSTITUCIONAL. ICMS. REPARTIÇÃO DE RENDAS TRIBUTÁRIAS. PRODEC. PROGRAMA DE INCENTIVO FISCAL DE SANTA CATARINA. RETENÇÃO, PELO ESTADO, DE PARTE DA PARCELA PERTENCENTE AOS MUNICÍPIOS. INCONSTITUCIONALIDADE. RE DESPROVIDO. I – A parcela do imposto estadual sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, a que se refere o art. 158, IV, da Carta Magna pertence de pleno direito aos Municípios. II – O repasse da quota constitucionalmente devida aos Municípios não pode sujeitar-se à condição prevista em programa de benefício fiscal de âmbito estaudal. III – Limitação que configura indevida interferência do Estado no sistema constitucional de repartição de receitas tributárias. IV – Recurso extraordinário desprovido.

[2] "(...) a orientação jurisprudencial desta Suprema Corte firmou-se no sentido de que a parcela (25%) concernente ao ICMS, a que se refere o art. 158, inciso IV, da Constituição Federal, pertence, por direito próprio, aos Municípios. Isso significa que essa parcela de receita, pertencente, de pleno direito, aos Municípios, deverá ser-lhes creditada sem qualquer outra restrição que não aquelas a que alude o próprio texto constitucional. (...) Vale lembrar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, já sob o regime constitucional anterior, decidiu, ainda que em perspectiva diversa, que a parcela de receita tributária (federal ou estadual), constitucionalmente devida aos Municípios, a estes pertence, integralmente, por direito próprio, rejeitada, por isso mesmo, por inconstitucional, qualquer redução, supressão ou exclusão de valores pertinentes aos tributos submetidos, pela própria Constituição, ao sistema de partilha. São diversos, a esse respeito, os precedentes que esta Suprema Corte firmou na matéria ora em exame (RTJ 82/200 - RTJ 83/619 - RTJ 85/712 - RTJ 56/722 - RTJ 89/233 - RT 516/223, v.g.), vindo, até mesmo, a sumular a jurisprudência em torno da questão pertinente à distribuição de receitas tributárias aos Municípios (Súmula 578/STF)." (AI 665186 ED, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgamento em 1.2.2011, DJe de 28.2.2011).

[3] TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO A

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FUNDAMENTO DA DECISÃO AGRAVADA, SÚMULA 284/STF. ESTADO DA PARAÍBA. ICMS. REPARTIÇÃO DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS. CONCESSÃO DE ISENÇÕES E OUTROS BENEFÍCIOS FISCAIS. APLICAÇÃO À PARCELA PERTENCENTE AOS MUNICÍPIOS. INCONSTITUCIONALIDADE. ENTENDIMENTO FIRMADO NO JULGAMENTO DO RE 572.762 (REL. MIN. RICARDO LEWANDOWSKI, PLENÁRIO, TEMA 42), SUBMETIDO À SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. PRECEDENTES DA SEGUNDA TURMA EM CASOS. AGRAVO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO.

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A UNIÃO HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR: UMA NOVA CONCEPÇÃO COM O ADVENTO DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

ANDRÉ ROMERO CALVET PINTO FERREIRA: Procurador do Município e Goiânia; advogado desde 2012; pós-graduado em direito administrativo.

RESUMO: O presente artigo científico tem como objetivo discutir a inserção de uma família homoafetiva na entidade familiar, fazendo um breve aparato histórico da evolução da família, enfatizando os seus principais princípios e as discussões sociais a respeito do tema. Observar-se-á, ao longo do trabalho que há uma significativa diferença quanto ao tratamento que a sociedade concede a uma união estável e a uma família homoafetiva, inclusive no que tange aos aspectos morais, sociais e culturais de cada entidade. Neste prisma, este paper visa defender e inserir uma nova denominação de entidade familiar regido pela Constituição Federal de 88 e ratificada pelo Codigo Civil de 2002.

Sumário: Introdução; 1 Considerações Pertinentes a Respeito da Evolução Histórica do Direito de Família, 1.1 A família no direito romano, 1.2 A família no direito canônico, 1.3 A visão do direito de família no Código Civil de 2002 2 Os Princípios Constitucionais e a Pluralidade de Modelos Familiares; 3 A União Homoafetiva Concebida como Entidade Familiar; Conclusão; Referências. Bibliográficas.

PALAVRAS-CHAVE: Evolução Histórica; Princípios; União Homoafetiva, Entidade Familiar.

INTRODUÇÃO

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Na esfera das relações interindividuais reguladas pelo Direito, a sexualidade suscita grandes polêmicas. Especialmente nas últimas décadas, a necessidade de adaptação das soluções para as rupturas enfrentadas nas relações familiares e afetivas exige uma constante adaptação do Direito, na tentativa de compor os conflitos surgidos no cotidiano da vida social e familiar. A reivindicação de efeitos jurídicos e do reconhecimento das relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar vem estimulando reflexões e revisões conceituais, sobretudo no âmbito jurídico. No entanto, no direito brasileiro o tema carece de maior aprofundamento e elaboração teórica.

Neste trabalho científico, iremos tomar como objeto de estudo a união homoafetiva em um contexto contemporâneo, buscando em um primeiro momento estabelecer um reconhecimento de efeitos jurídicos e do reconhecimento das relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar deve ser analisada a partir da previsão constitucional dos objetivos fundamentais da República em construir uma sociedade pluralista, justa e solidária (artigo 3o, inciso I), dos direitos e garantias fundamentais, bem como dos novos contornos atribuídos ao Direito de Família pela concepção constitucional.

Por fim em um segundo momento, tratar-se-á da interpretação do novo Código Civil de 2002 pautando-se na visão plural de entidades familiares, inscrita na ordem constitucional e na doutrina e jurisprudência, recentemente produzidas.

1. Considerações Pertinentes a Respeito da Evolução Histórica no Direito de Família.

Não existe nos antepassados dos povos antigos, assim como na Antiguidade Oriental ou na Antiguidade Clássica, o florescimento de uma sociedade organizada, sem levar em consideração as bases ou fundamentos de uma família ou de sua organização. As organizações familiares brasileiras possuem como base o modelo na origem romana, canônica e da família germânica.

1.1 A Família no Direito Romano

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O sistema severo, que fizeram as famílias se tornarem uma sociedade patriarcal teve sua origem na Antiga Roma. A família romana era organizada no poder e na posição do pai, chefe da comunidade. O pátrio poder tinha caráter unitário exercido pelo pai, designado como sui júris.

Pelo relato de ArnoldoWald:

A família era definida como o conjunto de pessoas que estavam sob a patria potestas do ascendente comum vivo mais velho. O conceito de família independia assim da consanguinidade. O pater familiasexercia a sua autoridade sobre todos os seus descendentes não emancipados, sobre a sua esposa e sobre as mulheres casadas commanus com os seus descendentes. (WALD, 2005, p. 09)

Destarte, a família funcionava simultaneamente como uma unidade econômica, religiosa, política ou jurisdicional, pois, primeiramente o patrimônio pertencente à organização familiar era administrado pelo pater; era religiosa pelo o fato de ter uma própria religião doméstica dos entes falecidos; possuía um caráter político, uma vez que constituía uma espécie de Senado, formado pela reunião dos chefes familiares, os chamados (patres conscripti).

Com a morte do “pater famílias” o poder era transferido ao primogênito e/ou a outros homens pertencentes ao grupo familiar, ficando a mulher impossibilidade de assumir o comando da família em qualquer hipótese. Existiam duas possibilidades para a mulher naquele rigoroso sistema: continuar se submetendo aos poderes da autoridade paterna (casamento sem manus), ou entrar na família marital a partir deste momento conceder obediência ao seu marido (casamento com manus).

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Existiam em Roma duas espécies de parentesco: a agnaçãoe a cognação. A agnação vinculava as pessoas que estavam sujeitas ao mesmo pater, mesmo quando não fosse consanguíneas (filho natural e filho adotivo do mesmopater, por exemplo). A cognação era o parentesco pelo sangue que existia entre pessoas que não deviam necessariamente ser agnadas uma da outra. Assim, por exemplo, a mulher casada commanus era cognada, mas não agnada do seu irmão, o mesmo ocorrendo com o filho emancipado em relação àquele que continuasse sob a patria potestas. (WALD, 2005, p. 10)

Os cognados passaram a ter direitos de sucessão e de alimentos no Império Romano, além de já possuir a figura do magistrado como agente competente para solucionar os conflitos e não mais a do pater. Neste período, a mulher começa a desfrutar de autonomia para exercer os seus direitos, além de fazer correspondência com o início do feminismo.

A doutrina jurídica reconhece que o direito romano forneceu ao Direito brasileiro elementos básicos da estruturação da família como unidade jurídica, econômica e religiosa, fundada na autoridade de um chefe, tendo essa estrutura perdurada até os tempos atuais.

1.2 A Família no Direito Canônico

A partir do século V, com o decorrente desaparecimento de uma ordem estável que se manteve durante séculos, houve um deslocamento do poder de Roma para as mãos do chefe da Igreja Católica Romana que desenvolveu o Direito Canônico estruturado num conjunto normativo dualista (laico e religioso) que irá se manter até o século XX.

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Os canonistas eram totalmente contrários à dissolução do casamento por entenderem que não podiam os homens dissolver a união realizada por Deus e, portanto um sacramento, o chamado “quod Deus conjunxit homo non separet”.

Por esta teoria, se reconhece a indissolubilidade do vínculo e só se discutindo o problema do divórcio em relação aos infiéis, cujo casamento não se reveste de caráter sagrado.

Para Arnoldo Wald existia uma divergência entre a concepção católica do casamento e a concepção medieval; vejamos:

Enquanto para a Igreja, em princípio, o matrimônio depende do simples consenso das partes, a sociedade medieval reconhecia no matrimônio um ato de repercussão econômica e política para o qual devia ser exigido não apenas o consenso dos nubentes, mas também o assentimento das famílias a que pertenciam. (WALD, 2005, p. 13)

Este direito elaborou um quadro de impedimentos para o casamento, abrangendo causas baseadas na incapacidade, quais sejam: idade, casamento anterior, infertilidade, diferença de religião; causas relacionadas com a falta de consentimento, ou decorrente de uma relação anterior (parentesco ou afinidade).

A separação do direito canônico se distingue do divórcio romano ou judaico por não importar na dissolução do vínculo e por ser um ato judiciário da autoridade religiosa, enquanto em Roma e para os hebreus constituía um ato privado contra o qual a parte prejudicada podia recorrer à autoridade judiciária. (WALD, 2005, p. 15)

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A evolução se deu com a elaboração das teorias das nulidades e de como ocorreria a separação de corpos e de patrimônios perante o ordenamento jurídico. Não se pode negar, entretanto, a influência dos conceitos básicos elaborados pelo Direito Canônico, que ainda hoje são encontrados no Direito Brasileiro.

1.3 A visão do direito de família no Código Civil de 2002.

Entre os Códigos Civis de 1916 e 2002, além da natural evolução dos costumes que determinaram o fim da indissolubilidade do casamento e a extensão do poder familiar à mulher, existe um marco histórico temporal que é a carta Magna de 1988 quando se estuda o Direito de Família no Brasil.

A união estável entre o homem e a mulher é reconhecida como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento. É estabelecida a igualdade do homem e da mulher no exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal. O prazo para o divórcio é reduzido. Em caso de separação judicial, será concedido após um ano ou após dois anos de comprovada separação de fato. Aos filhos havidos do casamento, ou por adoção, são concedidos os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (WALD, 2005, p. 24/25).

O legislador constituinte visivelmente pretendeu contornar as distinções, preconceitos e desigualdades existentes no Direito familiar brasileiro, assim como, consolidar as conquistas de forma que introduziu o conceito de união estável, reduziu de cinco para dois anos o tempo exigido para o divórcio direto e impediu qualquer discriminação a respeito da origem dos filhos entre outros temas

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reservados à legislação ordinária agora, tratados pela Constituição Federal.

A família regulada pelo Código Civil de 2002 passa a representar limitada forma de convivência, reconhece-se a existência das famílias monoparentais, identificadas constitucionalmente, o que reflete efetiva conquista nos rumos do reconhecimento de novos núcleos de relações de afeto e proteção, gerando, inclusive, direitos patrimoniais.

O direito de família no Brasil atravessa um período de efervescência. Deixa a família de ser percebida como mera instituição jurídica para assumir feição de instrumento para a promoção da personalidade humana, mais contemporânea e afinada com o tom constitucional da dignidade da pessoa humana. Não mais encerrando a família um fim em si mesma, finalmente, averba-se que ninguém nasce para constituí-la (a velha família cimentada no casamento, não raro, arranjado pelo pai que prometia a mão de sua filha, como se fosse uma simples negociação patrimonial).

Ao revés, trata-se do lugar privilegiado, o ninho afetivo, onde a pessoa nasce inserta e no qual modelará e desenvolverá a sua personalidade, na busca da felicidade, verdadeiro desiderato da pessoa humana. Está é a família da nova era.

2. Os Princípios Constitucionais e a Pluralidade de Modelos Familiares.

Embora estejamos em pleno século XXI, o conceito de família aqui no Brasil ainda está estreitamente ligado à noção de casamento heterossexual. A enorme influência cristã em nossa formação cultural explica tal ligação. Refletindo tal perspectiva, o Código Civil de 1916 adotou um conceito de família estreito, considerando entidades familiares apenas aquelas constituídas pelo casamento. Assim, valorizavam-se muito mais os aspectos formais em detrimento às questões afetivas.

Com o advento da Constituição de 1988, houve uma mudança de paradigma no que toca ao conceito de família, sendo agora

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também considerada como tal a união estável e a família monoparental, não sendo mais necessário o casamento. Foi suprimida a locução “constituída pelo casamento” do art. 175 da CF de 1969, ficando o artigo correspondente com a seguinte redação: art. 226. “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.

A partir de então, os aspectos meramente formais perderam espaço, passando o nosso ordenamento jurídico a dar maior importância ao afeto nas relações familiares. Aqui é possível enxergar o Princípio Jurídico da Afetividade.

Como exemplo, podemos citar os seguintes dispositivos constitucionais: a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, e a união estável têm a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, §§ 3º e 4º); d) o casal é livre para extinguir o casamento ou a união estável, sempre que a afetividade desapareça (art. 226, §§ 3º e 6º).

Dessa forma, o principio da afetividade passa a figurar como o pilar das relações familiares, tornado-se fácil perceber que nosso ordenamento jurídico comporta e protege uma pluralidade de modelos familiares. Em outras palavras, todas as relações afetivas que tenha as características da família devem ser consideradas legalmente como tal, incluindo-se aqui a união homoafetiva. A esse respeito Paulo Lôbo (LÔBO, 1989, p. 77) nos ensina:

Constituindo o afeto a base das relações familiares, é necessário reconhecer efeitos jurídicos a outras uniões, quando se constituem de relações duradouras, estabelecem patrimônio comum por esforço mútuo e criam laços de responsabilidade e assistência, devendo, portanto, ser

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tuteladas pelo Direito. Os interesses a serem protegidos são aqueles que permitem a pessoa realizar-se íntima e afetivamente no pequeno grupo social familiar.

Neste sentido, podemos apontar três características comuns a todas as entidades familiares: afetividade, estabilidade e ostensibilidade. Tais requisitos podem caracterizar não apenas a relação entre indivíduos do mesmo sexo, como também a relação entre pais e filhos adotivos (sejam estes últimos adotados por casais hetero ou homossexuais). A esse tema, fazse pertinente mais uma vez as palavras de Lôbo (LOBO, p. 9):

Se todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem, é porque a Constituição afastou qualquer interesse ou valor que não seja o da comunhão de amor ou do interesse afetivo como fundamento da relação entre pai e filho. A fortiori, se não há qualquer espécie de distinção entre filhos biológicos e filhos adotivos, é porque a Constituição os concebe como filhos do amor, do afeto construído no dia a dia, seja os que a natureza deu seja os que foram livremente escolhidos. Se a Constituição abandonou o casamento como único tipo de família juridicamente tutelada, é porque abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão, passando a privilegiar o fundamento comum a todas a entidades, ou seja, a afetividade, necessário para realização pessoal de seus integrantes. O advento do divórcio direto (ou a livre

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dissolução na união estável) demonstrou que apenas a afetividade, e não a lei, mantém unidas essas entidades familiares.

Afora o principio da afetividade, ainda podemos citar alguns princípios norteadores do direito de família que legitimam a união homoafetiva como entidade familiar, quais sejam: igualdade; estado democrático de direito; liberdade. Façamos a seguir uma breve exposição acerca de cada um deles.

O princípio da igualdade está expresso no caput do art. 5 de nossa Carta Magna e reza que todas as pessoas são iguais perante a lei, “sem distinção de qualquer natureza”. A partir da leitura de tal dispositivo constitucional, não há que se distinguir um ou outro apenas pela opção sexual, ou ainda restringir os direitos da personalidade dos homossexuais. Pelo contrário, estes devem ser tratados de maneira igual e isonômica.

Segundo Joaquim José Gomes Canotilho: (CANOTILHO, 2002, p. 424/426)

A igualdade é um dos princípios estruturantes do regime geral dos direitos fundamentais. É um pressuposto para a uniformização do regime das liberdades individuais a favor de todos os sujeitos de um ordenamento jurídico. Esse princípio traz duas implicações básicas: igualdade na aplicação do direito e igualdade na criação de direitos. E nesse ponto o autor destaca que, diferentemente da estrutura lógica de identidades, a igualdade pressupõe diferenciações e designa uma relação entre pessoas e coisas, caracterizando-se, portanto, numa igualdade relacional.

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Desse modo, impõe-se ao Estado uma atuação política e social de promoção de direitos àqueles que estão desamparados juridicamente, ainda que isso importe um tratamento diferenciado.

Sendo assim, sob a ótica que o casal homossexual é um casal como outro qualquer, não se pode admitir que haja um tratamento diferenciado no que tange aos direitos de família, incluindo-se aqui os direitos à adoção. Qualquer interpretação normativa diversa desta ultima, deve ser rechaçada, porquanto que infringe o principio da igualdade.

Na esteira deste pensamento, é sabido por todos que vivemos sob o manto do Estado Democrático de Direito, que nos assegura uma convivência harmônica ainda que tenhamos culturas e costumes totalmente diversos. Sendo assim, somente teremos verdadeira democracia se for respeitada a pluralidade de idéias, culturas e etnias, bem como se for possível o diálogo e a convivência entre pessoas que tenham opiniões e pensamentos distintos.

Neste prisma, pode-se afirmar que qualquer tipo de discriminação que o indivíduo sofra por conta de suas opiniões ou preferências diverge totalmente de um Estado livre e democrático. A liberdade é também um princípio constitucional, tendo todos os cidadãos livre escolha de religião, credo, “opção sexual”, etc.

3. A União Homoafetiva Concebida como Entidade Familiar.

Ainda nos dias atuais sobrevive a discussão de cunho hermenêutico a respeito da evolução das sociedades e do direito. Há quem diga que o ordenamento jurídico é imutável e inflexível, sendo necessário que a sociedade se amolde a ele. Tal entendimento é por certo totalmente equivocado. Ao passo que surgem novas tecnologias, surgem novas relações sociais e, por conseguinte, a necessidade de o Estado mediá-las. O direito exerce exatamente esta função de mediação de conflitos sociais, devendo, por isso, acompanhar a evolução da sociedade, sob pena de perder sua própria razão de existir.

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Sob esta ótica, o direito de família se aperfeiçoou, buscando se adequar ao novo contexto social. A Constituição atual trouxe mudanças significativas no que toca ao conceito de família, expandindo a abrangência normativa as relações afetivas. No entanto, o legislador constitucional não se lembrou de regulamentar as uniões homoafetivas, como fez com a família monoparental e a união estável.

Contudo, embora não esteja expressa na Constituição Federal a possibilidade da união entre pessoas do mesmo sexo, tal dispositivo deve ser interpretado de forma inclusiva, haja vista não haver qualquer norma que exclua a possibilidade da existência da entidade familiar homossexual.

A própria família monoparental, explícita na CF, §4º, art. 226, dispensa a necessidade de par andrógino (homem e mulher). Ainda nos remetendo a tal parágrafo legal, pode-se concluir que também não merece guarida o argumento levantado por alguns, de que a impossibilidade de filiação seria um empecilho para a caracterização da entidade familiar homoafetiva, tendo em vista que a família sem filhos é tutela por nosso ordenamento jurídico.

Por outro lado, não há que se falar em equiparação da união estável como a união homoafetiva, vez que o §3º do supracitado art. 226 somente admite tal modalidade de entidade familiar quando constituída por homem e mulher. Neste sentido, Maria Berenice (DIAS, 2002, p. 5) nos traz a seguinte redação:

Ainda que tenha vindo a Constituição, com ares de modernidade, outorgar a proteção do Estado à família, independentemente da celebração do casamento, continuou a ignorar a existência de entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Ora, não se diferencia mais a família pela ocorrência do casamento. A existência

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de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento, sendo que a proteção constitucional é outorgada também às famílias monoparentais. Se prole ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabe deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas.

Por conseguinte, se estiverem “presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de despesas, é de se concederem os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características”. (DIAS, 2002, p.5) Neste sentido, não há motivos para haver tratamento diferenciado às relações hetero e homossexuais, devendo ambas serem tratadas como sociedades familiares e, por conseguinte, serem tutelas pelo Direito de Família.

Tal tutela se revela de enorme importância na medida em que a consideração da união homoafetiva como entidade familiar ou não, interferirá na aplicação dos direitos inerentes às relações familiares, tais como: meação, herança, usufruto, alimentos, habitação, entre outros. Mas uma vez, Maria Berenice (DIAS, 2002, P. 5) nos esclarece a esse tema:

De forma cômoda, o Judiciário busca subterfúgios no campo do Direito das Obrigações, identificando como uma sociedade de fato o que nada mais é do que uma sociedade de afeto. A exclusão de tais relacionamentos da órbita do Direito de Família acaba impedindo a concessão dos direitos que defluem das relações familiares, tais como direitos à meação, à herança, ao usufruto, à habitação, a

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alimentos, a benefícios previdenciários, entre tantos outros.

Portanto, considerar a união homoafetiva como entidade familiar é garantir que os princípios constitucionais da igualdade, liberdade, dignidade não sejam feridos, bem como é também, assegurar aos casais homossexuais que constituam família, todos os direitos que lhes são devidos. Nesse passo, vale frisar a importância da jurisprudência no sentido de causar uma mudança a respeito desse tema, haja vista ser o judiciário um agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade.

CONCLUSÃO

Por tudo que foi exposto, vale à pena destacar que a discussão acerca do reconhecimento jurídico das uniões estáveis homoafetivas está aberta e exigirá um maior aprofundamento dos debates e amadurecimento nos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais.

As uniões estáveis homoafetivas lograram receber guarida em nossa jurisprudência e doutrina mais recentes, fato que nos conduz a sustentar que a edição do novo Código Civil em 2002, embora não comporte previsões que reconheçam tais relações como relações familiares, não deverá constituir impedimento para que a interpretação constitucional, aqui referida permita a possibilidade de concretização dos direitos de todas as entidades familiares, independentemente da diferença de sexos. A analogia coma união estável heterossexual parece ser o caminho a ser adotado para reconhecer e tutelar os direitos dos companheiros de mesmo sexo.

Nesse diapasão a contribuição deste artigo científico consiste, em relembrar que constitui direito humano inalienável a vida, a liberdade, à busca do livre desenvolvimento da personalidade que compreende o direito à felicidade afetiva e familiar, livre de preconceitos e discriminações.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 5a edição.2002

DIAS, Maria Berenice. Uniões homoafetivas: uma realidade que o Brasil insiste em não ver. 2002. Disponível em: <www.ibdfam.com.br >. Acesso em 20 de maio de 2010.

LÔBO, Paulo Luiz Neto. A repersonalização das relações de família. In: BITTAR, Carlos Alberto (coord.) O direito de família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.

LÔBO,______________. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus.Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2552>. Acesso em: 21 de maio de 2013.

NOGUEIRA, Mariana Brasil. A Família: Conceito E Evolução Histórica E Sua

Importância.Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/9544/9110> Acesso em: 28 maio. 2013.

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. 16ª. Ed, São Paulo: Saraiva, 2004

 

   

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LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E O PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA SUBJETIVA DAS SANÇÕES

JÚLIO CÉSAR ALVES FIGUEIRÔA: Advogado. Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Resumo: O presente artigo pretende analisar como o princípio da intranscendência subjetiva impede a aplicação das sanções previstas na LRF, segundo o entendimento do STF. Analisa se, em relação aos órgãos do ente, esse entendimento não criaria uma imunidade material absoluta, tornando ineficaz as disposições legais.

Palavras-chave: Lei de Responsabilidade Fiscal – Intranscendência subjetiva das sanções – Supremo Tribunal Federal.

INTRODUÇÃO

A Lei de Responsabilidade Fiscal representa uma importante avanço na proteção do erário. Suas disposições visam garantir que o administrador atue com responsabilidade na gestão do patrimônio público. Seus dispositivos garantem que os órgãos de fiscalização tenham substratos objetivos para analisar as decisões tomadas pelos administradores.

O presente artigo pretende analisar as punições previstas para o administrador que descumpre dispositivos da LRF e o entendimento dos tribunais superiores de que essas sanções não serão aplicas ao próprio ente político, caso o descumprimento tenha ocorrido por atos de entes da administração indireta, poderes do

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próprio ente (Legislativo ou Judiciário) ou por administrações anteriores.

Analisaremos ainda se referidas exceções não atribuiriam ao ente uma carta branca para violar à LRF, algo que tornaria a lei ineficaz. Em tempos de crise econômica, a proteção do erário deve ser ainda mais eficiente, de modo que questões como a da intranscendência subjetiva merecem maior atenção.

A jurisprudência dos Tribunais Superiores aplicaram o referido princípio em duas situações especiais: a impossibilidade de realização de transferências voluntárias e a inscrição do ente nos cadastros de inadimplentes, de modo que teceremos breves comentários sobre essas dois casos específicos.

TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS E CADASTRO FEDERAL DE INADIMPLÊNCIAS

Segundo a LC 101/00 considera-se transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde. (art. 25 da LRF).

Segundo Harrison Leite: “Tratam-se de recursos geralmente utilizados para a implementação de ações constantes do orçamento da União e dos Estados, que não podem ser por eles aplicados diretamente pela falta de estrutura administrativa federal ou estadual no ente beneficiário” (LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5ª Edição. Juspodivm. 2016. p. 341). Assim, também é de interesse da União a transferência de recursos, uma vez que, segundo o autor, tais transferências visam atender as áreas de competência comum aos entes federados (art. 23 da CF).

Ainda sobre o tema, ressalte-se que as transferências voluntárias não se confundem com os repasses de verbas estabelecidos pela lei ou pela Constituição. Como ocorre, por exemplo, com a repartição de receitas tributárias (art. 157 a 162 da

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CF/88). As transferências tidas por voluntárias ocorrem, principalmente, por meio de termos de parceria, contratos de repasse ou convênios (LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5ª Edição. Juspodivm. 2016. p. 341).

A Lei 101/00 estabelece alguns requisitos para que possa existir a transferência voluntárias. Em seu art. 25, §1º, dispõe que será necessário: existência de dotação específica; observância do disposto no inciso X do art. 167 da Constituição e a comprovação, por parte do beneficiário, de: a) que se acha em dia quanto ao pagamento de tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao ente transferidor, bem como quanto à prestação de contas de recursos anteriormente dele recebidos; b) cumprimento dos limites constitucionais relativos à educação e à saúde; c) observância dos limites das dívidas consolidadas e mobiliária, de operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, de inscrição em Restos a Pagar e de despesa total com pessoal; d) previsão orçamentária de contrapartida.

Percebe-se, portanto, que, estando o ente que receberá a transferência em débito quanto ao pagamento de tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao ente transferidor, ele ficará impossibilitado de receber os recursos.

Para um maior controle sobre os entes que estão em débito, criou-se, no âmbito federal, o Cadastro Único de Convênio (CAUC), disponibilizado na internet. Consiste em um banco de dados onde a União poderá obter informações sobre a existência ou não de débitos nos Estados ou Municípios que pretendem receber transferências voluntárias.

Para a inclusão dos entes no referido cadastro, o STF já decidiu sobre a necessidade de se garantir o contraditório e a ampla defesa, bem como o julgamento de tomada de contas especial pelo TCU para fins de inscrição dos entes inadimplentes no CAUC (STF. 1ª Turma. ACO 2.159-MC-REF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 02/06/2014).

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É importante ressaltar que, ainda que estejam inadimplentes, os entes federativos poderão receber recursos oriundos de transferências voluntárias no caso de a transferência for destinada para área de saúde, educação e assistência social (art. 25, §03º da LRF), bem como transferências oriundas de emenda individual impositiva (art. 166, §13º da CF) (LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5ª Edição. Juspodivm. 2016. p. 344).

TEORIA DA INTRANSCENDÊNCIA SUBJETIVA DAS SANÇÕES

O princípio da intranscendência subjetiva das sanções impede que sanções pessoais atinjam pessoas que não participaram do ato ou que não tinham como evitá-lo. Referido princípio já está consagrado na jurisprudência do STF e decorre, em última análise, da previsão do art. 5º, XLV da CF, que dispõe: nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.

O STF reconheceu a aplicação do referido princípio à administração pública em três hipóteses diferentes, quais sejam, no caso de ato praticado por ente da administração pública indireta, por órgãos que constituem poderes do próprio ente (Legislativo e Judiciário) e por gestores anteriores.

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA OU DA PERSONALIDADE DAS SANÇÕES E DAS MEDIDAS RESTRITIVAS DE ORDEM JURÍDICA. ART. 5º, XLV, DA CF. IMPOSSIBILIDADE DE ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE AO ENTE ESTATAL POR ATO PRATICADO POR ENTIDADE DA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA OU PELO

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PODER LEGISLATIVO OU JUDICIÁRIO. TESE ADOTADA EM COGNIÇÃO SUMÁRIA PELO PLENO DO STF. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO IMEDIATO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – O Supremo Tribunal Federal entende que as limitações jurídicas decorrentes do descumprimento de obrigação por entidade da administração indireta não podem ser atribuídas ao ente federal da qual participam e, pelo mesmo motivo, quando o desrespeito for ocasionado pelo Poder Legislativo ou pelo Poder Judiciário, as consequências não podem alcançar o Poder Executivo. II – Situação dos autos diversa daquela em que se afasta a adoção do princípio se a responsabilidade deriva de ato praticado por órgão do próprio Poder Executivo. III – O caráter provisório de orientação adotada pelo Pleno desta Corte, ainda que proferida em cognição sumária, não impede o julgamento imediato de causas que versem sobre idêntica controvérsia, nem dá ensejo a necessário sobrestamento do feito. IV – Agravo regimental a que se nega provimento.” (RE 768.238-AgR/PE, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – grifei)

Em decisão mais recente, o STF reconheceu a aplicação do referido princípio aos casos envolvendo gestões distintas. São essas as informações disponibilizadas pelo informativo 791 de sua jurisprudência:

O princípio da intranscendência subjetiva das sanções, consagrado pelo STF, inibe a aplicação de severas sanções às administrações por ato de gestão anterior à assunção dos

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deveres públicos. Com base nessa orientação e, com ressalva de fundamentação do Ministro Marco Aurélio, a Primeira Turma, em julgamento conjunto, negou provimento a agravos regimentais em ações cautelares ajuizadas com a finalidade de se determinar a suspensão da condição de inadimplente de Estado-Membro, bem como das limitações dela decorrentes, com relação a convênios com a União. Na espécie, em face de decisões que julgaram procedentes os pedidos a favor dos entes federativos, a fim de suspender as inscrições dos requerentes de todo e qualquer sistema de restrição ao crédito utilizado pela União, foram interpostos os presentes recursos. A Turma consignou que, em casos como os presentes, em que os fatos teriam decorrido de administrações anteriores e os novos gestores estivessem tomando providências para sanar as irregularidades verificadas, aplicar-se-ia o princípio da intranscendência subjetiva. O propósito seria neutralizar a ocorrência de risco que pudesse comprometer, de modo grave ou irreversível, a continuidade da execução de políticas públicas ou a prestação de serviços essenciais à coletividade. Nesse sentido, a tomada de contas especial seria medida de rigor com o ensejo de alcançar-se o reconhecimento definitivo de irregularidades, permitindo-se, só então, a inscrição dos entes nos cadastros de restrição aos créditos organizados e mantidos pela União. O Ministro Marco Aurélio asseverou que, por se tratar de governança, preponderaria o princípio contido no art. 37 da CF, ou seja, o da impessoalidade. Precedentes citados: ACO 1.848 AgR/MA (DJe de 21.11.2014) e ACO

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1.612 AgR/MS (DJe de 12.12.2014). AC 2614/PE, rel. Min. Luiz Fux, 23.6.2015. (AC-2614) AC 781/PI, rel. Min. Luiz Fux, 23.6.2015. (AC-2614) AC 2946/PI, rel. Min. Luiz Fux, 23.6.2015. (AC-2614)

É esse, portanto, o cenário atual da matéria no âmbito do STF e do STJ.

No âmbito da administração pública, a própria Advocacia-Geral da União editou súmula de nº 46, com o seguinte teor: " Será liberada da restrição decorrente da inscrição do município no SIAFI ou CADIN a prefeitura administrada pelo prefeito que sucedeu o administrador faltoso, quando tomadas todas as providências objetivando o ressarcimento ao erário."

POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DO ENTENDIMENTO

Em recente precedente, o Ministro Marco Aurélio reconheceu a possibilidade de inscrição do ente público estadual no CAUC, caso esteja em débito com a União. Segundo seu voto, a administração pública rege-se pelo princípio da impessoalidade (art. 37 da CF/88), de modo que a relação jurídica é estabelecida entre a União e Estado e não a União e o governador do referido Estado.

Ressaltou que o governo represente uma realidade passageira, enquanto que o Estado, com ente político, permanente. Nesse sentido, a mudança de gestão não pode servir para exonerar o ente de obrigações assumidas. (STF. 1ª Turma. AC 2614/PE, AC 781/PI e AC 2946/PI, Rel. Min. Luiz Fux, julgados em 23/6/2015).

De fato, tal entendimento parece ser o mais correto. A sanção prevista na LRF possui o escopo de proteger a boa administração e gestão de receitas públicas. Não representa uma sanção específica para determinado gestor, uma vez que visa impedir novas e sucessivas operações que oneram os cofres públicos federais.

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Os Estados-Membros possuem dívidas com a União que comprometem o correto funcionamento da máquina administrativa, a LRF pretende mudar esse cenário e fazer com que as verbas tenham a destinação mais adequada. Relativizar a aplicação de sanções pelo descumprimento de obrigações é tornar a LRF ineficaz.

Com efeito, nos moldes como atualmente ocorre, o descumprimento das obrigações pactuadas não sofre nenhuma sanção, de modo que os valores dificilmente serão adimplidos, o que representa um grave prejuízo aos cofres públicos.

Por fim, ressalte-se que o entendimento que continua prevalecendo é o de aplica-se a intranscendência subjetiva das sanções aos casos envolvendo mudança de gestão, razão pela qual não se pode afirmar que houve superação do anterior precedente.

CONCLUSÃO

O STF entende que o descumprimento de obrigações por parte de Estado-Membro não faz com que a sanção atinja a atual gestão desse Estado, bem como se o descumprimento decorreu de algum dos Poderes não atingirá o Poder Executivo, algo também aplicável ao descumprimento de obrigações por entidades da administração indireta em relação ao ente da administração direta.

Em que pese ser esse o entendimento pacificado no âmbito dos tribunais superiores, é preciso sua modificação para fins de compreender que a relação pactuada será sempre com o Estado -Membro e que o descumprimento deve acarretar as sanções previstas na LRF, bem como a inscrição no cadastro federal de inadimplentes.

Tal superação visa garantir o cumprimento das obrigações, bem como a proteção do erário federal.

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DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 15 ed. Salvador-Bahia: Juspodivn. 2013

FARIA. José Eduardo. O sistema brasileiro de Justiça: experiência recente e futuros desafios. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200006.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, Saraiva, SP, 1992. In: CARVALHO FILHO, J.S. Manual de Direito Administrativo. 24ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

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LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5ª Edição. Juspodivm. 2016.

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RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA POR DANO AMBIENTAL E A TEORIA DA DUPLA IMPUTAÇAO

MARIA DA CONCEIÇÃO BANDEIRA DO Ó: Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa-UNIPÊ. Pós- graduada em Ordem Jurídica, Ministério Público e Cidadania, ministrado pelo Centro Universitário de João Pessoa- UNIPÊ. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Universidade Cândido Mendes - UCAM.

RESUMO: Aborda-se, no âmbito do processo criminal, a necessidade da dupla Imputação, ou seja, da obrigatoriedade ou não do oferecimento da denúncia em face da pessoa física e da pessoa jurídica causadoras do dano ambiental para que seja possível a responsabilização da pessoa jurídica. Diante de tal questionamento, apresentaremos as diversas correntes doutrinárias e jurisprudências, destacando o entendimento prevalecente hodiernamente.

PALAVRAS-CHAVES: Responsabilização da Pessoa Jurídica. Dano Ambiental. Teoria da Dupla Imputaçao. STF. STJ.

INTRODUÇÃO

O presente artigo traça algumas considerações acerca da possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica por dano ambiental. Partiremos, inicialmente, do conceito de meio ambiente e de dano ambiental, analisaremos a previsão constitucional e infraconstitucional do instituto abordando os diversos posicionamentos e críticas da doutrina, apontando qual corrente prevalece, bem como a evolução jurisprudencial do STF e STJ

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acerca da temática, mais especificamente quanto a Teoria da Dupla Imputação.

DESENVOLVIMENTO

1. MEIO AMBIENTE E DANO AMBIENTAL

A Constituição Federal de 1988 dedica um capítulo dentro do Título Da Ordem Social ao Meio Ambiente, e assim estabelece:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

Por sua vez, a Lei n. 6.938/81, Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, no fornece alguns conceitos dentre eles o de meio ambiente, vejamos:

Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;

II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente;

III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:

a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

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b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;

c) afetem desfavoravelmente a biota;

d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;

e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;

IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental;

V - recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 1989)

Grande parte da doutrina costuma apresentar ainda quatro conceitos do meio ambiente, quais sejam: meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente cultural e meio ambiente do trabalho. Vejamos cada um desses conceitos apresentados porTalden Farias, Francisco Seráphico Da Nóbrega Coutinho e Geórgia Karênia, acerca de cada uma dessas espécies de meio ambiente.

" O meio ambiente natural, ou físico, éconstituído pelos recursos naturais, que são invariavelmente encontrados na natureza e que podem ser considerados individualmente ou pela correlação recíproca de cada um destes elementos com os demais. Por essa conceituação se compreende a atmosfera, as

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águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. Os recursos naturais também são classificados em elementos bióticos e abióticos, que são aqueles sem vida, como o solo, o subsolo, os recursos hídricos e o ar, e em elementos bióticos, que são aqueles que têm vida, a exemplo da fauna e da flora.

O meio ambiente artificial é o construído ou alterado pelo ser humano, sendo constituído pelos edifícios urbanos, que são os espaços públicos fechados, e pelos equipamentos comunitários, que são os espaços públicos abertos, como as ruas, as praças e as áreas verdes. Esse aspecto do meio ambiente abrange também a zona rural, referindo-se simplesmente aos espaços habitáveis, visto que nela os espaços naturais também cedem lugar ou se integram às edificações urbanas artificiais.

O meio ambiente cultural é o patrimônio histórico, artístico, paisagístico, ecológico, científico e turístico e se constitui tanto de bens de natureza material, a exemplo de construções, lugares, obras de arte, objetos e documentos de importância para a cultura, quanto imaterial, a exemplo de idiomas, danças, mitos, cultos religiosos e costumes de uma maneira geral.

O meio ambiente do trabalho, considerado também uma extensão do conceito de meio ambiente artificial, é o conjunto de fatores que se relacionam às condições do ambiente laboral, como o local de trabalho, as ferramentas, as máquinas, os agentes químicos, biológicos e

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físicos, as operações, os processos e a relação entre o trabalhador e o meio físico e psicológico. "

No que tange ao dano ambiental, a Carta Magna de forma brilhante demonstrou extremo zelo pelo meio ambiente e previu a responsabilidade do causador de dano ambiental nas três esferas, panal, administrativa e civil, seja ele pessoa física ou jurídica, vejamos:

Art. 225 (...) § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Por sua vez, a Lei n. 9.605/98, regulamentou o supracitado dispositivo da seguinte forma:

Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.

Assim, conforme previsão legal para a responsabilização da pessoa jurídica se faz necessário o preenchimento de dois requisitos: (1) que a infração tenha sido cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado;

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(2) que a infração seja praticada no interesse ou benefício da sua entidade.

2. DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL DA PESSOA JURÍDICA

O reconhecimento da responsabilidade criminal da pessoa jurídica por crime ambiental ainda é matéria bastante controvertida. Vejamos algumas das principais correntes doutrinárias e jurisprudências citadas Marcio André Lopes Calvalcante (2016):

Para uma primeira corrente doutrinária (Miguel Reale Jr., Cézar Roberto Bitencourt, José Cretela Jr.) não é possível a responsabilização da pessoa jurídica pela pratica de crimes ambientais, tal posicionamento é justificado pela ausência de previsão constitucional acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica, uma vez que a CF/88 previu apenas sua responsabilidade administrativa. Para os que se filiam a esse posicionamento a previsão do § 3º do art. 225 da CF/88 deve ser interpretada de forma que os infratores pessoas físicas estão sujeitos a sanções penais e os infratores pessoas jurídicas a sanções administrativas.

Assim, quando o dispositivo constitucional fala em sanções penais ele está apenas se referindo às pessoas físicas. Esse entendimento é minoritário.

Uma segunda corrente (Pierangelli, Zafaroni, René Ariel Dotti, Luiz Regis Prado, Alberto Silva Franco, Fernando da Costa Tourinho Filho, Roberto Delmanto, LFG, entre outros) também entende pela impossibilidade de responsabilidade criminal da pessoa jurídica, no entanto, utilizam outro fundamento, entendem que a responsabilidade da pessoa jurídica é incompatível com a teoria do crime adotada no Brasil. Entendimento prevalecente na doutrina.

Conforme explica Silvio Maciel, citado por Marcio André Lopes Cavalcante (2016), esta segunda corrente baseia-se na Teoria da ficção jurídica, de Savigny, segundo a qual as pessoas jurídicas são

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puras abstrações, desprovidas de consciência e vontade (societas delinquere non potest). Logo, “são desprovidas de consciência, vontade e finalidade e, portanto, não podem praticar condutas tipicamente humanas, como as condutas criminosas.”

Além disso, “é inútil a aplicação de pena às pessoas jurídicas. As penas têm por finalidades prevenir crimes e reeducar o infrator (prevenção geral e especial, positiva e negativa), impossíveis de serem alcançadas em relação às pessoas jurídicas, que são entes fictícios, incapazes de assimilar tais efeitos da sanção penal.” (Meio Ambiente. Lei 9.605, 12.02.1998. In: GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (Coord.). Legislação Criminal Especial. São Paulo: RT, 2009, p. 691e 692).

Complementando tal raciocinio, Márcio André Lopes Cavalcante (2016), conclui: “As pessoas jurídicas não podem ser responsabilizadas criminalmente porque não têm capacidade de conduta (não têm dolo ou culpa) nem agem com culpabilidade (não têm imputabilidade nem potencial consciência da ilicitude)”.

De outra banda, há os que entendem (Édis Milaré, dentre outros) ser possível a responsabilização penal da pessoa jurídica, desde que em conjunto com uma pessoa física, ou seja, reconhecem a aplicação da Teoria da Dupla Imputação. Pela Teoria da Dupla Imputaçao para que houvesse a responsabilização da pessoa jurídica pelo crime ambiental era necessário que a denúncia fosse oferecida simultaneamente e obrigatoriamente em face da pessoa jurídica e da pessoa natural.

Esse era o entendimento adotado pelo STJ e pelo STF nos seus julgados, vejamos:

STJ. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA REJEITADA PELO E. TRIBUNAL A QUO. SISTEMA ou TEORIA DA DUPLA IMPUTAÇÃO. Admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em

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crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que "não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio" cf. REsp. n°. 564960/SC. 5ª Turma, Rei. Ministro Gilson Dipp, DJ de 13/06/2005 (Precedentes). Recurso especial provido (REsp. 889.528/SC, Rei. Min. FELIX FISCHER, DJU 18.06.07).

STF. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. OCORRENCIA. 1. Admitida a responsabilização penal da pessoa jurídica, por força de sua previsão constitucional, requisita a actio poenalis, para a sua possibilidade, a imputação simultânea da pessoa moral e da pessoa física que, mediata ou imediatamente, no exercício de sua qualidade ou atribuição conferida pelo estatuto social, pratique o fato-crime, atendendo-se, assim, ao princípio do nullum crimen sine actio humana. 2. Excluída a imputação aos dirigentes responsáveis pelas condutas incriminadas, o trancamento da ação penal, relativamente à pessoa jurídica, é de rigor. 3. Recurso provido. Ordem de habeas corpus conce-dida de ofício. (RE 548181 PR Relator(a):Min. MENEZES DIREITO. Julgamento: 17/04/2009. Publicação: DJe-081 DIVULG 04/05/2009 PUBLIC 05/05/2009).

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Nesse diapasão, para os que assim entendem o promotor não poderia formular a peça acusatória, sob pena de rejeição, apenas contra o ente modal, devendo, obrigatoriamente, identificar e apontar as pessoas naturais que, atuando em nome e em benefício daquela, praticaram o evento delituoso. Este entendimento tinha por base a redação do art. 3º da Lei n.° 9.605/98.

Veja o que explica Silvio Maciel citado por Márcio André Lopes Cavalcante (2016):

“Pelo referido dispositivo é possível punir apenas a pessoa física, ou a pessoa física e a pessoa jurídica concomitantemente. Não é possível, entretanto, punir apenas a pessoa jurídica, já que o caput do art. 3º somente permite a responsabilização do ente moral se identificado o ato do representante legal ou contratual ou do órgão colegiado que ensejou a decisão da prática infracional. Assim, conforme já expusemos acima, não é possível denunciar, isoladamente, a pessoa jurídica já que sempre haverá uma pessoa física (ou diversas) co-responsável pela infração. Em relação aos entes morais, os crimes ambientais são, portanto, delitos plurissubjetivos ou de concurso necessário (crimes de encontro).” (ob. cit., p. 702-703).

Por fim, há os que defendem ser plenamente possível a responsabilização criminal da pessoa jurídica no caso de crimes ambientais conforme determinação do § 3º do art. 225 da CF/88. Para tais defensores, a pessoa jurídica pode ser punida penalmente por crimes ambientais ainda que não haja responsabilização de pessoas físicas, e afirmam que essa responsabilidade penal da pessoa jurídica encontra guarida expressa na Carta Magna de 88.

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Esta corrente é defendida, dentre outros, por Vladimir e Gilberto Passos de Freitas, que citado por Marcio André Lopes Calvalcante, assim explica:

“(...) a denúncia poderá ser dirigida apenas contra a pessoa jurídica, caso não se descubra a autoria das pessoas naturais, e poderá, também, ser direcionada contra todos. Foi exatamente para isto que elas, as pessoas jurídicas, passaram a ser responsabilizadas. Na maioria absoluta dos casos, não se descobria a autoria do delito. Com isto, a punição findava por ser na pessoa de um empregado, de regra o último elo da hierarquia da corporação. E quanto mais poderosa a pessoa jurídica, mais difícil se tornava identificar os causadores reais do dano. No caso de multinacionais, a dificuldade torna-se maior, e o agente, por vezes, nem reside no Brasil. Pois bem, agora o Ministério Púbico poderá imputar o crime às pessoas naturais e à pessoa jurídica, juntos ou separadamente. A opção dependerá do caso concreto.” (Crimes Contra a Natureza. São Paulo: RT, 2006, p. 70).

O STF e mais recentemente o STJ passaram a adotar esse entendimento, vejamos:

EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por

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crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação. 2. As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta. 3. Condicionar a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental. 4. A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas

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pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual. 5. Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido. (RE 548181, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 06/08/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014)

No mesmo sentido:

CRIME AMBIENTAL: ABSOLVIÇÃO DE PESSOA FÍSICA E RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOA JURÍDICA - 1

É admissível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que absolvidas as pessoas físicas ocupantes de cargo de presidência ou de direção do órgão responsável pela prática criminosa. Com base nesse entendimento, a 1ª Turma, por maioria, conheceu, em parte, de recurso extraordinário e, nessa parte, deu-lhe provimento para cassar o acórdão recorrido. Neste, a imputação aos dirigentes responsáveis pelas condutas incriminadas (Lei 9.605/98, art. 54) teria sido excluída e, por isso, trancada a ação penal relativamente à pessoa jurídica. Em preliminar, a Turma, por maioria, decidiu não apreciar a prescrição da ação penal, porquanto ausentes elementos para sua aferição. Pontuou-se que o presente recurso originara-se de mandado de segurança impetrado para trancar ação penal em face de responsabilização, por crime ambiental, de pessoa jurídica. Enfatizou-se que a problemática da prescrição não estaria em

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debate, e apenas fora aventada em razão da demora no julgamento. Assinalou-se que caberia ao magistrado, nos autos da ação penal, pronunciar-se sobre essa questão. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Luiz Fux, que reconheciam a prescrição. O Min. Marco Aurélio considerava a data do recebimento da denúncia como fator interruptivo da prescrição. Destacava que não poderia interpretar a norma de modo a prejudicar aquele a quem visaria beneficiar. Consignava que a lei não exigiria a publicação da denúncia, apenas o seu recebimento e, quer considerada a data de seu recebimento ou de sua devolução ao cartório, a prescrição já teria incidido.

RE 548181/PR, rel. Min. Rosa Weber, 6.8.2013. (RE-548181)

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. DESNECESSIDADE DE DUPLA IMPUTAÇÃO EM CRIMES AMBIENTAIS. É possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome. Conforme orientação da Primeira Turma do STF, "O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação" (RE 548.181, Primeira Turma, DJe 29/10/2014). Diante dessa interpretação, o STJ modificou sua anterior orientação, de modo a entender que é possível a responsabilização

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penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome. Precedentes citados: RHC 53.208-SP, Sexta Turma, DJe 1º/6/2015; HC 248.073-MT, Quinta Turma, DJe 10/4/2014; e RHC 40.317-SP, Quinta Turma, DJe 29/10/2013. RMS 39.173-BA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 6/8/2015, DJe 13/8/2015.

CONCLUSÃO

Assim, por todo exposto, concluímos que apesar dos argumentos apresentados pela doutrina com a finalidade de negar a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, a corrente doutrinária que nos parece mais acertada é a que pugna pela responsabilização do ente modal. Reconhecida tal responsabilidade o questionamento ficaria apenas quanto a aplicação ao não da Teoria da Dupla Imputação, que conforme entendimentos recentes das Cortes Superiores não deve ser aplicada. Essa mudança de entendimento se mostra um grande avanço, pois tem por objetivo proteger da maneira mais eficaz o meio ambiente sem deixar que os danos causados fiquem impunes diante de situações que não seja possível a responsabilização conjunta da pessoa física e da pessoa jurídica.

REFERENCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/> Acesso em: julho de 2016

________. Lei nº 6.938 de 31 de agosto de 1981. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/> Acesso em: julho de 2016

________. Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/> Acesso em: julho de 2016

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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e STJ comentados 2015. Editora Dizer o Direito. 2016

COUTINHO, F.S.N.; FARIAS, T.; MELO, G.K.R.M.M., Coleção Sinopses para Concuros. Direito Ambiental. Juspodivm. 3ª edição. 2015.

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ESTADO ECOLÓGICO: CONCEITO, CARACTERÍSTICAS GERAIS E COMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA

MARCOS GUILHEN ESTEVES: Mestre em Direito Negocial Pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Graduado pela Universidade Estadual de Londrina

RESUMO[1]:O esgotamento dos recursos naturais vem provocando discussão sobre o papel do Estado como assegurador do bem estar da geração atual e da existência das futuras gerações. É certo que a degradação ambiental afeta toda sociedade, mas é seguro dizer as comunidades marginalizadas e vulneráveis o são de maneira mais direta e imediata. Os principais afetados pela contaminação de um rio, por exemplo, serão os ribeirinhos. Além disso, nos centros urbanos, a falta de mecanismos de recolhimento dos resíduos sólidos é mais alarmante em regiões pobres. A violação do direito dessas populações ao meio ambiente sadio, provoca refrações em outros direitos, como a saúde e o trabalho. Tal situação, de uma só vez, majora a exclusão social desses indivíduos e reduz-lhes a capacidade de autodeterminação na sociedade. Nesse contexto, desponta o modelo ecológico de Estado como possibilidade de correção do grave quadro de desigualdade socioambiental que se vivencia hoje. Como a degradação do meio ambiente não conhece fronteiras nem geográficas nem temporais, os Estados nacionais são os mais indicados para enfrentarem a questão ambiental. Para o modelo ecológico, há inseparável conexão entre o mínimo existencial digno e o meio ambiente sadio, ou seja, ao conteúdo axiológico da dignidade da pessoa humana será atribuída uma dimensão ecológica. O presente artigo objetiva debater o conceito e as características do mencionado paradigma

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estatal e demonstrar sua compatibilidade com a Constituição Federal brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Mínimo Existencial Digno. Estado Ecológico. Ações Positivas Estatais. Sustentabilidade.

Introdução

Segundo WOLKMER (2001, p. 158), a necessidade pode ser considerada como “fator de validade de novos direitos”. Vale dizer, as contradições de vida experimentadas por diversos grupos sociais e movimentos coletivos, sobretudo aquelas condições “negadoras da satisfação de necessidades identificadas como a sobrevivência e a subsistência, produzem reinvindicações que afirmar e exigem direitos”. O crescente quadro de degradação ambiental vem provocando uma necessidade de reavaliação das condutas dos Estados nacionais, dos mercados financeiros e também da sociedade. Ademais, o direito ao meio ambiente sadio se enquadra claramente como uma necessidade de sobrevivência e de subsistência, de modo que ele é dotado de uma força reivindicadora de novos direitos e garantias.

Verifica-se, aliás, que o esgotamento dos recursos naturais e a excessiva emissão de poluentes afeta de maneira mais imediata os grupos tidos como vulneráveis. É certo que a poluição de um rio provoca uma agressão muito maior aos já parcos direitos de comunidades ribeirinhas do que aos de grandes grupos empresariais. Tal situação, por um lado, majora o grau de desigualdade socioeconômica dessas comunidades, na medida em que a violação da garantia ao meio ambiente sadio lhes causa refrações em outros direitos, como a saúde, a alimentação e o trabalho. Por outro, reduz-lhes a capacidade de autodeterminação social.

Assim, ante a imperiosa necessidade de se promover a discussão do papel estatal nesse contexto de ameaça ambiental, os teóricos dos Direitos Constitucional e Ambiental começaram a

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desenvolver e estudar o denominado Estado Ecológico. Importa destacar que esse modelo ainda foi pouco esmiuçado pela doutrina, de modo que há poucos textos sobre o assunto. Não obstante isso, o presente artigo objetiva discutir as características do Estado Socioambiental.

Atentando ao corte metodológico deste trabalho, destaca-se que será enfatizado o aspecto ambiental do mencionado modelo. Todavia, a construção do Estado Ecológico constitui tarefa maior, que abarca também a proteção do patrimônio cultural material e imaterial, bem como a preservação da cultura de populações tradicionais. Nesse último aspecto, importa ressaltar que a doutrina vem trabalhando o conhecimento universal dos direitos humanos, sem contudo consignar-lhes conteúdos rígidos. Vale dizer, trata-se de uma “universalidade sem uniformidade” (HÖFFE, 2008, p. 140), de modo a permitir o respeito aos direitos humanos não implique em esvaziamento cultural dos grupos minoritários.

Por fim, efetuar-se-á análise sobre a compatibilidade entre a Constituição Federal brasileira e o modelo socioambiental, ou seja, se os ditames constitucionais impedem ou estimulam a adoção de um novo paradigma de Estado, voltado para a preservação dos recursos naturais[2].

1.A Qualidade Ambiental e a Dignidade da Pessoa Humana

O art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, prevê como fundamento da República Federativa do Brasil a “dignidade da pessoa humana”. Segundo José Afonso da Silva (2008, p. 412) a dignidade da pessoa humana pode ser considerada um valor supremo. Devido a essa sua característica, possui a capacidade de atrair o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. Sendo assim, a ordem econômica (art. 170 e ss.) tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna, mitigando as desigualdades sociais; a educação (art. 205 e ss.), por sua vez, assegura o desenvolvimento humano, propiciando assim o exercício da cidadania; também a ordem social (art. 193 e ss.)

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objetiva a concretização da justiça social. Todos esses enunciados não estão positivados na Constituição apenas para atender a direitos formais, mas constituem indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.

Ademais, FENSTERSEIFER e SARLET (2012a, p. 50) afirmam que:

A dignidade (da pessoa) humana constitui um conceito submetido a permanente processo de reconstrução, cuidando-se de uma noção histórico cultural em permanente transformação quanto ao seu sentido e alcance, o que implica sua abertura aos desafios postos pela vida social, econômica, política e cultural, ainda mais em virtude do impacto da sociedade tecnológica e da informação.

Com base na lição acima transcrita, é possível perceber assim que o princípio da dignidade da pessoa humana possui não apenas a capacidade de irradiar seu conteúdo normativo para os demais direitos do cidadão, mas também de sofrer alterações em seu conteúdo, de acordo com a evolução da sociedade. Pode-se afirmar, portanto, que tal princípio vem socorrer o ser humano quando as transformações sociais não propiciam o alcance de um mínimo existencial digno. Logo, essa capacidade de sofrer mutações semânticas pode ser considerada um dos maiores benefícios do princípio e uma garantia para a sociedade.

Atualmente, verifica-se que a degradação ambiental vem provocando ameaças à existência humana. A ECO92, o Protocolo de Kyoto de 1997 e, mais recentemente, o COP15 em 2008 e o RIO+20 de 2012, demonstram a preocupação das nações mundiais em se unirem a fim de reduzir a poluição em todas as suas formas e combater o efeito estufa. Outrossim, os meios midiáticos divulgam frequentemente notícias das consequências catastróficas provocadas pela degradação do meio ambiente.

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Esse alarmante quadro afeta o ser humano em dois sentidos. De um lado, ameaça à existência das gerações futuras, motivo pelo qual o Direito Ambiental se pauta na ideia de solidariedade (MACHADO, 2004, p. 51). O princípio da solidariedade constitui um dos pilares dessa seara jurídica, na medida em que a degradação atual ao meio ambiente provocará reflexos futuros preocupantes. Por outro lado, a excessiva poluição ambiental ameaça o mínimo existencial digno das gerações contemporâneas, violando, assim, o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana e, ainda, o princípio da vedação do retrocesso.

Nesse contexto de degradação ambiental, a volatilidade axiológica do princípio da dignidade da pessoa humana constitui uma verdadeira garantia social. A “evolução” da sociedade, gerando situações anteriormente não previstas, obriga o Direito atuar no sentido de se assegurar o bem comum e a justiça. Ainda segundo FENSTERSEIFER e SARLET (2012a, p. 60):

As dimensões dos direitos humanos e fundamentais, na sua essência, materializam as diferentes refrações do princípio da dignidade da pessoa humana, pilar central da arquitetura constitucional contemporânea, portanto, do Estado Socioambiental, reclamando uma compreensão integrada, desde logo incompatível com um sistema de preferência, em tese, de determinados direitos em relação a outros.

Os supramencionados autores se referiram ao Estado Socioambiental. Trata-se de um modelo estatal pautado no respeito ao meio ambiente e ao patrimônio sociocultural nacional. Alguns estados latino-americanos pareceram ter adotado o mencionado modelo em suas constituições. O assunto será tratado em tópicos posteriores.

2 O Conceito de Estado Socioambiental

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A primeira consideração a ser feita é que o dito Estado Socioambiental não objetiva em verdade a desconstrução de modelos anteriores, como o Liberal ou Social. Também não visa a esvaziar os seus objetivos ou declará-los inúteis, de modo a afirmar que a proteção ambiental está acima de qualquer outro direito. Em suma, o Estado Socioambiental não tem como característica a ideia de que o meio ambiente sadio se encontra em uma espécie de hierarquia superior em relação aos demais direitos do ser humano.

Há várias outras designações para o mencionado modelo de estado, destacando-se: Estado Pós-Social, Estado Constitucional Ecológico, Estado de Direito Ambiental, Estado do Ambiente, Estado Ambiental, Estado de Bem-Estar Ambiental e Estado Sustentável (FENSTERSEIFER; SARLET, 2012a, p. 98). Na presente obra, adotar-se-á a terminologia Estado Socioambiental ou Estado Constitucional Ecológico, por serem as mais adotadas pela doutrina.

Segundo ÉDIS MILARÉ (2009, p. 863), o Estado Socioambiental se originou da percepção de que a degradação ambiental causada pelo ser humano seria capaz de comprometer-lhe a própria existência. Afirma o autor que chegamos a uma situação de perigo tão relevante que o Estado foi obrigado a intervir em defesa do meio ambiente sadio, a fim de garantir a existência das futuras gerações e assegurando-lhes um padrão mínimo existencial para sobrevivência. Destaca que a ameaça não se restringe apenas à segurança interna ou à propriedade, atingindo “bem jurídicos tradicionais” como a vida humana atual e a vida das gerações futuras, o que exige do Estado um comportamento diferenciado a respeito, com a introdução de princípios ecológicos fundamentais na Constituição.

A proposta do Estado Socioambiental é chamar a atenção para o fato de que todos os direitos do cidadão possuem uma dimensão ecológica, cuja análise é imprescindível para que se possa afirmar que houve total preenchimento de seu conteúdo normativo.

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Um exemplo, já trabalho pela doutrina (FREITAS, 2012, p. 163 e MATEO, 2003, p. 51), dessa expansão semântica dos direitos assegurados, de modo a albergar uma dimensão socioambiental, é o direito à educação. O processo de formação humanística não deverá se pautar apenas em parâmetros individualistas ou mercadológicos. Vale dizer, a educação não é um direito que se volta tão somente para a inserção do indivíduo no sistema de produção. É preciso incutir-lhe a necessidade de proteção dos recursos naturais, de respeito às diferentes formas de vida e às futuras gerações. Não haveria assim que se falar em educação desprovida de parâmetros solidários e de sustentabilidade.

Além disso, BOSSELMANN (2010, p. 74) trata da compatibilidade entre o desenvolvimento sustentável e o raciocínio econômico dos direitos humanos. Ensina que a racionalidade econômica desses direitos favorece valores individuais e materiais, em detrimento dos valores coletivos e imateriais. Todavia, não seria correto afirmar que uma racionalidade ecológica dos direitos humanos inverteria essa ordem. Em arremate, consigna que “a relação entre os direitos humanos e o meio ambiente é determinada por sua racionalidade prevalecente, e não exatamente por raciocínio jurídico”.

TIAGO FENSTERSEIFER e INGO WOLFGANG SARLET (2012a, p. 18), ao definirem Estado Socioambiental, afirmam que ele representa uma evolução do Estado, considerado em si mesmo, ou seja, sem consignarmos qualquer adjetivação a ele. Trata-se de uma caminhada evolutiva, cujo adjetivo “socioambiental” constitui apenas mais um passo. Portanto, não podemos afirmar que é antagônico aos modelos anteriores, embora possa haver profundas diferenças entre eles:

A edificação do Estado Socioambiental de Direito, é importante consignar, não representa uma espécie de “marco zero" na construção da comunidade político-jurídica estatal, mas apenas mais um passo de uma caminhada contínua, embora marcada por profundas tensões,

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conflitos, avanços e retrocessos, iniciada sob a égide do Estado Liberal, muito embora suas origens sejam, em grande parte mais remotas.

ÉDIS MILARÉ (2009, p. 862/863) concorda que a nova proposta não significa o aniquilamento do Estado Social. Para justificá-lo, o autor parte dos elementos do Estado Constitucional, a saber: segurança, Estado de Direito e Democracia. A evolução do Estado Constitucional fez com que fosse agregado a esses elementos o Estado Social. A próxima etapa, que, ressalte-se, é considerada a última pelo doutrinador, é o Estado Ecológico, o qual surgiu em virtude da combinação de dois fatores: ameaça de destruição do meio ambiente e a necessidade de reação do Estado.

As mencionadas diferenças entre os Estados Liberal/Social e o Estado Socioambiental (sua fase evoluída, conforme afirmado) ocorrem devido a uma divergência nos parâmetros adotados por esses modelos para direcionarem e avaliarem sua própria atuação. Conforme destaca MICHAEL KLOPFER (2010, p. 43), o Estado Socioambiental é um modelo que almeja definir, como prioridade na atuação estatal, a incolumidade do seu meio ambiente, considerando-a não apenas sua tarefa, mas também utilizando-a como critério e meta procedimental de suas decisões.

SARLET e FENSTERSEIFERF (2012a, p. 13) resumem, com absoluta clareza e concisão, os objetivos do Estado Socioambiental:

Trata-se, em verdade, de agregar num mesmo projeto político-jurídico, tanto as conquistas do Estado Liberal e do Estado Social, quanto as exigências de valores que dizem respeito ao assim designado Estado Socioambiental de Direito contemporâneo. A adoção do marco jurídico-constitucional socioambiental resulta [...] da convergência necessária da tutela dos direitos sociais e dos direitos ambientais num mesmo projeto jurídico-

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político para o desenvolvimento humano em padrões sustentáveis, inclusive pela perspectiva da noção ampliada e integrada dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA).

De tudo o que foi exposto, verifica-se que o Estado Socioambiental constitui uma fase evoluída do Estado Social, não lhe sendo, assim, completamente antagônico. Pelo contrário, o modelo ecológico orienta suas ações partindo de diretrizes muito semelhantes àquelas adotadas pelo modelo social. O que os diferencia é o acréscimo, no modelo socioambiental, de uma dimensão ecológica a todos os direitos do ser humano, assegurados, expressa ou implicitamente, pela Constituição. Em decorrência disso, exigir-se-á do Estado uma atitude positiva frente ao quadro de degradação ambiental, pois o meio ambiente sadio constitui pressuposto para o atendimento dos demais direitos.

Não se trata, portanto, de um conflito de normas constitucionais asseguradoras de direitos. Vale dizer, o meio ambiente sadio e os demais direitos do cidadão não devem ser tratamos como se estivessem em antinomia. Aliás, a proposta do Estado Socioambiental é exatamente o oposto disso. Ao invés de travar uma batalha entre o meio ambiente e os demais direitos fundamentais, deve-se entender que o primeiro está incluído em cada um desses últimos.

Um simples exemplo proporcionará uma melhor compreensão do que foi dito. É comum a divulgação pela mídia e, até mesmo pelo próprio governo, da ideia de que a proteção ambiental constitui um entrave para o desenvolvimento social e econômico. Segundo afirmam, obras de infraestrutura, que assegurariam a melhoria na renda, educação, saneamento básico e saúde da população estariam sendo inviabilizadas pelos instrumentos garantidores do meio ambiente sadio, tais como o licenciamento ambiental, o Estudo de Impacto Ambiental, a Reserva Legal, entre outros. No contexto do Estado Socioambiental, essa

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afirmação constituiria um verdadeiro paradoxo, pois, apenas com a observância de que a qualidade ambiental se encontra ínsita em todos os direitos, é que eles estariam, de fato, sendo atendidos.

Para haver comprometimento com o chamado desenvolvimento sustentável, o qual servirá de instrumento para que os problemas ambientais sejam enfrentados, é imprescindível que se opere uma correção no grave quadro de desigualdade quanto ao acesso, por boa parte da população brasileira, a seus direitos básicos. Aliás, essa pode ser considerada, em certa medida, uma das causas do alarmante grau de degradação ambiental que presenciamos hoje (FENSTERSEIFER; SARLET, 2012a, p. 13).

Nota-se, portanto, que, os direitos do ser humano e o meio ambiente sadio possuem uma dependência mútua. Não se auto excluem, como muitos se sentem tentados a afirmar. Pelo contrário, o meio ambiente sadio é um importante instrumento para, efetivamente, fazer com que os direitos do ser humano sejam cumpridos. Isso porque o comprometimento do Estado Socioambiental com o desenvolvimento sustentável não pretende sobrepor a proteção ambiental aos demais direitos. Pretende sim valer-se de todo o complexo de direitos do cidadão para implementar a incolumidade ambiental.

Por fim, cabe ressaltar que o Estado Socioambiental (ou Ecológico) é tema que ainda necessita ser difundido e debatido pela doutrina. É muito raro encontrar compêndio sobre Direito Ambiental ou Constitucional que trate do tema. Salvo por poucos autores, a abordagem do assunto continua a ser insuficiente. Todavia, crê-se que as circunstâncias fáticas atuais farão com o conceito seja difundido e analisado, passando a ser tratado, pela doutrina, com a relevância que demanda.

3 Proteção Ambiental e Ações Positivas do Estado

Outra importante característica do Estado Ecológico é a exigência de ações positivas na proteção ambiental, vale dizer, o

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Estado não deve apenas fiscalizar a atuação dos particulares, evitando que degradem o meio ambiente, mas deve também promover políticas públicas para recuperação de áreas deterioradas, além de campanhas de conscientização ambiental e da otimização dos instrumentos de proteção já existentes.

Trata-se de medida que o Estado Social não é capaz de satisfazer, conforme explica MICHAEL KLOPFER (2010, p. 46):

O princípio do Estado Social igualmente só permite derivar a proteção do meio ambiente como tarefa do Estado dentro de limites bastante estreitos. Porque o princípio do Estado social exige apenas a proteção de um núcleo, sem o qual uma ordem social orientada na ideia de justiça seria pura e simplesmente impensável. Nesses termos, só é possível derivar um dever de proteção do meio ambiente do princípio do Estado social na medida em que se trata da asseguração do „mínimo existencial ecológico.

Ao analisar a Lei Maior alemã, o mencionado jurista afirma que o alcance dos deveres jurídico-objetivos de proteção, ali positivados, referem-se apenas às interferências ilegais de terceiros e, ainda assim, somente àquelas nas quais o dano ambiental gera efeitos consideravelmente graves para a saúde humana. Daí decorre o entendimento de que o Estado Social não possui instrumentos suficientes de proteção.

MORATO LEITE (2003, p. 23) também tece críticas ao modelo social. Segundo o doutrinador, o Estado do Bem-Estar teria priorizado políticas de pleno emprego e de maximização da utilização dos fatores de produção em detrimento da proteção do meio ambiente.

Vê-se assim que, enquanto Klopfer critica o modelo de um ponto de vista bastante técnico, discorrendo sobre as possibilidades de proteção por ele oferecidas no plano jurídicoconstitucional,

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Morato Leite destaca que os Estados Sociais vêm direcionando sua atuação de modo a marginalizar a questão ambiental. Verifica-se, assim, a existência de críticas tanto de ordem jurídica quanto de ordem ideológica ao modelo.

Aliás, interessa ressaltar que, para MORATO LEITE (2003, p. 22), o problema também deve ser observado sob o aspecto dos modelos econômicos. O modelo capitalista, calcado no individualismo, priorizando o acúmulo de riquezas materiais, é agressivo ao meio ambiente. O socialismo, por sua vez, também o é, visto que a doutrina se baseia em uma economia de escala, que, ademais, não permite sequer a participação popular, pela falta de um contexto de liberdade.

Conforme afirmado, a insuficiência dos modelos econômicos e estatais compromete não apenas a qualidade de vida da atual geração, mas também a existência das futuras. O modelo social, ao permitir a proteção ambiental dentro de núcleos demasiadamente estreitos, não é capaz de gerar uma situação de certeza ambiental. Apenas um Estado, cuja Constituição preveja deveres estatais específicos de proteção e que direcione sua atuação de modo a coaduná-la com esses deveres, poderá assegurar a manutenção da vida. A previsão constitucional assume inegável importância nesse contexto em virtude de sua estabilidade.

Uma Constituição é feita para durar por um número imprevisível de gerações. Se o Estado não impedir, hoje, a degradação do meio ambiente, em pouco tempo haverá perda do conteúdo normativo constitucional, visto que será impossível assegurar às futuras gerações o direito ao meio ambiente sadio. Daí decorria o dever estatal de prevenção e recuperação ambiental. Nas palavras de KLOPFER (2010, P. 46/47):

[...] na medida em que existem deveres de proteção deriváveis da Constituição, estes não vigoram somente em relação a pessoas que vivem atualmente, pois as garantias desdobram nesse tocante também em princípio uma

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‘proteção do mundo subsequente’ (Nachweltschutz). É verdade que as gerações futuras não possuem direitos subjetivos de defesa. Porém, independentemente disso, o dever de proteção do Estado subsiste como emanação dos juízos de valor jurídico-objetivos da lei básica. Portanto, na medida em que os efeitos fáticos de ações relevantes ao meio ambiente forem suficientemente prognosticáveis e delas resultarem riscos inadmissíveis para futuras gerações, existe um dever do Estado de se contrapor-se (hoje) a esses riscos

Tem-se, assim, que é dever do Estado adotar medidas que garantam a qualidade de vida das futuras gerações, mesmo que estas, por ainda não existirem, não possuam direitos subjetivos. Aliás, não se pode falar que elas possuam sequer uma pretensão de direito, pois seus indivíduos não são determináveis e atribuir-lhes algum direito só seria concebível por meio de uma excessiva e frágil abstração. Ainda assim, é dever do Estado assegurar-lhes a existência, porque isso constituiu uma ideia que decorre da própria Constituição Socioambiental, a qual prevê os deveres de proteção.

A concepção ecológica de Estado majora as tarefas que lhe competem no que tange à garantia do bem-estar social. Isso porque os “valores da sociedade que se quer proteger estão vinculados agora aos interesses e beneficiários que ainda não participaram da comunidade política” (AYALA, 2012, p. 110), como as futuras gerações. Essa necessidade de preservação ambiental implica numa mudança de atitude estatal perante a degradação dos recursos naturais. Não deve ele mais se limitar a intervir na propriedade privada e na livre iniciativa, mas sim criar verdadeiras políticas públicas de sustentabilidade.

CANOTILHO (2009, p. 177/178) traz ainda a ideia de “sujeito geração”. Diante da percepção de que os comportamentos ecológicos da atual geração comprometem as condições de vida e,

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até mesmo, a existência das futuras, o sujeito relevante da proteção ambiental deixa de ser uma pessoa determinada ou um grupo determinável. Não se deve analisar o direito ao meio ambiente sadio sob uma ótica individualista, mas, sim, considerando seu caráter coletivo e solidário .

Como afirma o jurista alemão Michael Klopfer (2010, p. 47): “O Estado é o patrono decisivo do futuro”. Todas as pessoas que integram a geração atual, um dia, não mais existirão. Todavia, o Estado subsistirá. Por isso, é seu dever, por meio de medidas preventivas, fiscalizadoras, recuperadoras e de proteção, assegurar um meio ambiente sadio para as futuras gerações.

O Estado, em virtude de sua perpetuidade, é o ente mais indicado para assegurar-lhes esse direito. Além disso, para garantir a aludida perpetuidade, o Estado precisa assegurar-lhes esse direito. Em outras palavras, os Estados atuais devem levar em consideração esse dever, visto que eventual desobediência colocaria em risco a existência da população, o que, por conseguinte, comprometeria a subsistência do próprio Estado. Isso porque, de acordo com a doutrina clássica da Teoria do Estado, a população é um dos elementos estatais, ou seja, sem população, não há Estado. Michael Klopfer (2010, p. 40) afirma, inclusive, que a teoria clássica, para subsistir, precisa abranger também o meio ambiente. À teoria tripartite (território, soberania e população), seria incluído o meio ambiente sadio, que não ponha em risco a continuidade da existência do Estado.

Além disso, tal dever de proteção implicará, obrigatoriamente, na necessidade de prestação de contas. O Estado, deve-se frisar, não é proprietário dos recursos naturais. Como ensina FIORILLO (p. 23), a Constituição Federal, ao afirmar que o meio ambiente sadio é bem de uso comum do povo (art. 225, caput), provocou uma inovação revolucionária, pois previu um terceiro gênero de bens, que não se confunde com os bens públicos e menos ainda com os privados. Ao Estado cabe a gestão dos recursos, a fim de garantir tanto a qualidade de vida da população

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atual, quanto a existência das gerações vindouras. Por isso, deve o Estado prestar contas de suas atividades à população:

A inovação está na qualidade e na quantidade de medidas de controle. O Poder Público passa a figurar não como proprietário dos bens ambientais – águas, ar e solo, fauna e florestas, patrimônio histórico –, mas como um gestor ou gerente, que administra bens que não são dele e, por isso, deve explicar convincentemente sua gestão. A aceitação dessa concepção jurídica vai conduzir o Poder Público a ter que prestar constas sobre a utilização dos bens “de uso comum do povo (MACHADO, p. 90/91).

Aliás, entendemos oportuno destacar que diversos tratados e convenções internacionais consagram a necessidade de atuação estatal na proteção do meio ambiente, demonstrando, assim, que a ideia aqui exposta vem ganhando cada vez mais relevância no debate internacional. Transcrevemos, abaixo, alguns dispositivos:

· Os Estados deverão tomar todas as medidas possíveis para impedir a poluição dos mares por substâncias que possam por em perigo a saúde do homem, os recursos vivos e a vida marinha, menosprezar as possibilidades de derramamento ou impedir outras utilizações legítimas do mar (Declaração de Estocolmo de 1972, Princípio 7)[3];

· Os Estados adotarão legislação ambiental eficaz. As normas ambientais, e os objetivos e as prioridades de gerenciamento deverão refletir o contexto ambiental e de meio ambiente a que se aplicam. As normas aplicadas por alguns países poderão ser inadequadas para outros, em particular para os países em desenvolvimento, acarretando custos econômicos e sociais injustificados. (Declaração do Rio de Janeiro de 1992, Princípio 11);

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· Para conseguirmos nossos objetivos de desenvolvimento sustentado temos necessidade deminstituições internacionais e multilaterais mais efetivas, democráticas e que prestem contas (Declaração de Johannesburgo de 2002, item 31).

Ressalte-se que essa última Declaração alude ao dever dos Estados em se unirem, no âmbito internacional, para a proteção do meio ambiente, visto que a degradação ambiental extrapola as fronteiras nacionais. Tem-se aqui a consagração da ideia de que o Estado precisa agir não apenas no âmbito interno, mas também no internacional.

4 Possibilidade/Necessidade de Enquadramento das Diretrizes do Estado Socioambiental na Constituição da República Federativa do Brasil

De tudo o que foi exposto, percebe-se que o Estado Socioambiental tem como diretriz fundamental a inclusão do meio ambiente sadio no conteúdo normativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, propõe-se uma atuação estatal positiva, criando-se tanto instrumentos de proteção, os quais objetivam evitar a degradação ambiental, como instrumentos remediadores, que visam a recuperar o meio ambiente já degradado.

Para ÉDIS MILARÉ (p. 860/861), o Brasil não pode ser considerado um Estado Ecológico ou Socioambiental, senão vejamos:

Com o fato de haver recepcionado a Política Nacional do Meio Ambiente, a Constituição Federal de 1988 não pensou em caracterizar o Brasil como um Estado Ecológico. É laico, pluralista, neoliberal, desenvolvimentista, sempre em consonância com os blocos internacionais a que está aliado no momento.

[...] O Estado brasileiro posicionou-se perante a

questão ambiental como um ente que lhe faz

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concessões, abre-lhe espaço, sem todavia identificar-se com ela: trata-se de um entre muitos outros assuntos relevantes.

É possível aceitar que, ante a realidade nacional, mostra-se difícil qualificar de “ecológico” o Estado brasileiro. Se o fizermos, estar-se-ia analisando a situação apenas do ponto de vista teórico, negligenciando atitudes estatais, frequentemente divulgadas pela mídia, que em nada se coadunam com os preceitos do Estado Socioambiental.

Todavia, entende-se que não há impedimento constitucional para que se considere o Estado brasileiro como Socioambiental, sobretudo se considerarmos que esse modelo não significa, nos dizeres de Sarlet e Fensterseifer (2012a, p. 103), um “„marco zero" na construção da comunidade político-jurídica estatal”, mas apenas mais um passo na evolução do Estado.

Não se quer, com isso, afirmar que o Estado Socioambiental é meramente conceitual e que sua adoção não implicaria em qualquer alteração do texto constitucional. Pelo contrário, após aceito, seria imprescindível a ampliação dos mecanismos de proteção ambiental, bem como a criação de instrumentos recuperadores de áreas degradadas, além de uma possível reformulação de capítulos da Constituição Federal, especialmente aquele que se refere à ordem econômica, dentre outras mudanças.

Objetiva-se chamar a atenção para o fato de que o Estado Socioambiental não se mostra incompatível com os ditames constitucionais brasileiros, de modo que sua adoção não exigiria novo texto constitucional, nem reforma que lhe alterasse substancialmente o conteúdo.

CRISTIANE DERANI (1997, p. 241), em seu livro Direito Ambiental Econômico, afirma que há, na Constituição brasileira, compatibilidade entre os princípios da livre iniciativa e a proteção ambiental. Vale dizer, a Lei Maior veda que disputa de mercado acarrete esgotamento dos recursos naturais, de modo que o

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desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambiente não se excluem mutuamente, mas, pelo contrário, devem dialogar entre si.

A “conversão” do Estado brasileiro em socioambiental implicará mais numa mudança de paradigmas conceituais e culturais do que num processo de alteração legislativa. Isso ocorre sobretudo devido ao fato de que o princípio da dignidade da pessoa humana já está positivado na Lei Maior (art. 1º, III) e, ademais, já existe a previsão de alguns deveres estatais na defesa do meio ambiente, os quais precisarão, apenas, de ampliação e complementação.

Porém, haverá, sim, uma mutação constitucional de diversos dispositivos. Cumpre destacar que, para se afirmar a ocorrência de uma mutação constitucional, parte-se de uma “comparação temporal que conclua pela diversidade de compreensão de um mesmo enunciado normativo” (TAVARES, 2009, p. 85).

Essa mutação decorrerá do efeito irradiante do princípio da dignidade da pessoa humana, que atinge todos os demais direitos do cidadão. A partir do momento em que for percebida a necessidade de observância da qualidade ambiental para fins de preenchimento do conteúdo normativo desse princípio fundamental, todos os demais direitos precisarão considerar essa dimensão ecológica. Essa nova ótica a que deverá ser submetida toda e qualquer consideração sobre os direitos (e também deveres) do ser humano implicará, seguramente, em mutação constitucional, visto que os intérpretes da Constituição, sejam eles doutrinadores ou integrantes do Poder Judiciário, não poderão se esquecer do meio ambiente sadio quando analisarem-na.

Surge, então, o seguinte questionamento: se há substrato constitucional para que se caracterize o Estado brasileiro como Socioambiental de Direito, por que não encontramos, no plano fático, provas de que a qualidade ambiental está sendo tratada como integrante do princípio da dignidade da pessoa humana?

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Nesse momento, é oportuno atentar para o fato de que os textos constitucionais, em regra, não criam instrumentos que garantam o cumprimento de seus dispositivos. Os demais ramos, hierarquicamente inferiores, costumam possuir meios instrumentalizadores (mesmo que autônomos), como é o caso do direito penal, que se vê instrumentalizado pelo processo penal. O Direito Constitucional, todavia, não possui uma garantia de que seus ditames serão respeitados.

O jurista alemão Konrad Hesse (1991, p. 19/20), que dissertou a respeito do tema da força normativa da Constituição, afirma que a Lei Maior logra sair da abstração para ver seus dispositivos serem, efetivamente, cumpridos quando há uma “consciência geral” da “vontade da Constituição”. Isso ocorre porque o Texto Constitucional não possui a capacidade de se tornar eficaz sem o concurso da vontade humana[4]

Assim, com base nessa preciosa lição, pode-se afirmar que, se já há, na Constituição Federal, positivação das principais diretrizes do Estado Socioambiental, a sua implementação, acreditamos, pode depender apenas da “vontade humana” e da “consciência geral da vontade da constituição” a que se refere o autor. Ou seja, o Estado Socioambiental não está longe da realidade constitucional brasileira e, em que pese a eventual necessidade de complementação textual da Lei Maior, as diretrizes desse modelo podem ser aplicadas sem necessidade de reforma constitucional, bastando, para isso, que haja uma consciência geral da verdadeira extensão do conteúdo normativo do princípio da dignidade da pessoa humana, que depende da qualidade ambiental para ver-se preenchido.

Considerações Finais

Conclui-se assim que o modelo socioambiental é compatível com a Constituição Federal brasileira. É preciso que se atente para a “vontade da Constituição”, em virtude da significativa escassez de instrumentos de eficácia que ela possui. Vale dizer, a eficácia da Lei

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Maior depende de atitude social, jurídica e estatal. A previsão expressa da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) já seria, por si só, suficiente para que se argumentasse a compatibilidade do modelo ecológico com o ordenamento constitucional brasileiro.

Isso porque uma das principais características do Estado Socioambiental é a percepção de que o mínimo existencial digno depende diretamente da preservação dos recursos naturais. Não é possível o alcance do bem comum e a fruição de uma existência digna num ambiente carregado de poluentes. A degradação ambiental afeta o direito à saúde, à alimentação, ao trabalho, entre outros. Importa destacar ainda que a violação desses direitos atinge, sobretudo, as populações marginalizadas e vulneráveis, aumentando a exclusão social e mitigando a possibilidade de autodeterminação dessas comunidades.

Se “o Estado é o patrono do futuro” (KLOPFER, 2010, p. 47), cabe a ele garantir a existência das futuras gerações e o bem estar das atuais. Aliás, o Estado é o ente mais indicado para tanto, na medida em que, enquanto as gerações são provisórias, ele é perpétuo.

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NOTAS:

[1] Artigo também publicado nos Anais do XXII Congresso Nacional do CONPEDI – São Paulo

[2] Em virtude das limitações de cunho metodológico deste artigo, não é possível analisar as experiências latino-americanas no Estado Ecológico. Todavia, remete-se o leitor ao texto da Constituição do Equador de 2008, o qual já no preâmbulo celebra a natureza e a pacha mama, afirmando que elas são vitais para o povo equatoriano. Ademais, no art. 1º, dispõe que: “Los recursos naturales no renovables del territorio del Estado pertenecen a su patrimonio inalienable, irrenunciable e imprescriptible”. Ao longo de todo texto constitucional, há referências à proteção ambiental e às comunidades tradicionais. A Constituição se encontra disponível na internet, no sítio transcrito a seguir: <http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf>, Acessado em 30 de Agosto de 2013.

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[3] Para que o leitor possa conhecer a legislação completa, seguem os endereços eletrônicos acessados: <www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/_arquivos/estocolmo.doc>;<http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?id o=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=576>;<www.mma.gov.br/estruturas/ai/_arquivos/decpol.doc >, todos acessados em 29 de agosto de 2013.

[4] Por oportuno, transcreve-se o texto: “[..] a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada dos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa vontade adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade. Essa vontade tem consequência porque a vida do Estado, tal como a vida humana, não está abandonada à ação surda de forças aparentemente inelutáveis. Ao contrário, todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida do Estado, assumindo e resolvendo tarefas por ele colocadas. Não perceber esse aspecto da vida do Estado representaria um perigoso empobrecimento de nosso pensamento. Não abarcaríamos a totalidade desse

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fenômeno e sua integral e singular natureza. Essa natureza apresenta-se não apenas como problema decorrente dessas circunstâncias inelutáveis, mas também como problema de determinado ordenamento, isto é, como problema normativo”.

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DANO MORAL EM DECORRÊNCIA DO DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL NO ÂMBITO TRABALHISTA

PAULO EDUARDO FEITOSA BRITO: Advogado (OAB/CE 29324)/ Servidor Público / Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza / Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de Fortaleza.

Resumo: A condenação em danos morais não está, em regra, atrelada à condenação em danos materiais. Há, no entanto, situações especiais em que isso pode ocorrer. O trabalho traz primeiramente a regra, que é a não ocorrência do dano moral pelo mero descumprimento contratual e, posteriormente passa a analisar questão específica em que surge o dano in re ipsa. É dada ênfase ao descumprimento contratual no que tange a atrasos salariais por esse ser um pleito bastante recorrente nos tribunais trabalhistas. Por fim é apresentada hipótese em que o juiz pode se desvencilhar da regra e até da exceção e utilizar-se do livre convencimento motivado para sentenciar, pois é ele que, diante do caso concreto, tem mais condições para averiguar se, de fato, ocorreu ou não um dano moral.

Palavras-chave: Dano Moral. Descumprimento.contratutal. Direito do trabalho.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa dissertar sobre o dano moral em decorrência de descumprimento contratual. O fato de o empregador desrespeitar suas obrigações seria motivo suficiente para uma condenação em danos morais? Se não, quais seriam os requisitos necessários para que se caracterize o dano de ordem moral?

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Serão analisadas algumas situações e, com base no posicionamento dos tribunais e da doutrina, serão feitas as conclusões consideradas juridicamente mais adequadas, inclusive analisando-se hipótese em que é possível presumir a ocorrência do dano. Por óbvio não há intenção de esgotar o tema ou fazer conclusões absolutas devido ao grande grau de subjetivismo que é inerente ao assunto dano moral.

2. DESENVOLVIMENTO

É válido iniciar a abordagem do assunto tratando da competência para julgar os casos de indenização por dano moral pleiteado por empregado em face do empregador. Esta competência é indiscutivelmente da Justiça do Trabalho, em decorrência da Emenda Constitucional nº 45 do ano de 2004 que alterou, entre outros dispositivos, o art. 114 da Carta Magna. Importante destacarmos especialmente os incisos I e VI do citado artigo, que afirmam ser a Justiça do Trabalho competente para processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, inclusive aquelas de indenizações por dano moral ou patrimonial.

Carmem Feijó (2012, online) tratou do assunto em sua matéria disponibilizada no site do Tribunal Superior do Trabalho, segundo a autora:

As reclamações trabalhistas voltadas para a reparação de dano moral começaram a chegar à Justiça do Trabalho a partir da Emenda Constitucional 45/2004, que, ao ampliar a sua competência, incluiu, no artigo 114 da Constituição da República, a previsão de processar e julgar ‘as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho’.

Superada a questão da competência, cumpre-se a missão de discernir se o descumprimento contratual é suficiente para ensejar uma reparação por danos morais. O assunto é de grande

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importância não só no campo doutrinário como, principalmente, na prática. Um entendimento firmado no sentido de ser cabível ou incabível a reparação por danos morais em razão de descumprimento contratual tem repercussão direta na maioria esmagadora dos processos que tramitam na justiça do trabalho, pois na maioria das vezes que o empregado ingressa na via judicial isso ocorre como consequência do descumprimento de pelo menos um dos deveres do empregador. Como exemplo podemos citar um caso bastante comum de pleito por danos morais por descumprimento contratual, que é aquele em que o empregado pede uma reparação em razão de atrasos no pagamento dos salários, principal obrigação do empregador.

Mas afinal, podemos afirmar que o descumprimento do contrato é conduta suficiente para configurar um dano moral? Ricardo Resende (2014, p. 302) entende que “o simples descumprimento contratual não tem o condão de causar dano moral. Ainda que cause aborrecimentos e contrariedade, a jurisprudência não aceita, neste caso, a configuração de dano moral, até mesmo para não banalizar o instituto”. Para o autor, portanto, o fato do empregador descumprir o mandamento do parágrafo primeiro do art. 459 da CLT, segundo o qual “quando o pagamento houver sido estipuado por mês, deverá ser efetuado, o mais tardar, até o quinto dia útil do mês subsequent ao vencido”, não seria suficiente para configurar um dano de ordem moral. Se assim ocorresse, completa Resende “toda condenação material seria seguida por uma condenação por dano moral”. Contudo, é importante mencionar, que é feita a ressalva na obra de Resende no sentido de ser devida a indenização no caso em que o descumprimento contratual provaca notório constrangimento ao empregado.

A posição adotada pelo doutrinador supracitado nos parece bem coerente. É verdade que nem toda condenação material deve ser suficiente para gerar uma indenização por dano moral. A reparação pelo descumprimento do contrato deve ser, em regra, a reparação material, ou seja, as verbas devidas. Em alguns casos a

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própria legislação prevê o pagamento de multas como forma de desestimular o empregador a reincidir na prática abusiva, podendo a condenação em danos morais resultar em verdadeiro “bis in idem” caso não haja fundamento adequado.

Para que possamos compreender melhor quando seria de fato cabível a condenação por danos morais, trago o conceito de dano moral de Carlos Roberto Gonçalves (2009, p.359), vejamos:

Dano moral é o que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio. É lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, intimidade, a imagem, o bom nome, etc., como se infere dos art. 1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal, e que acarreta ao lesado dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação.

Para que seja configurado o dano moral, portanto, é necessário que o empregado seja atingido em seu íntimo. Precisa ser comprovado o real prejuízo de ordem moral e não apenas o descumprimento contratual. O dano moral é aquela lesão a direito da personalidade capaz de causar verdadeira angústia e mal-estar, não se confunde com o mero dissabor.

Neste sentido o seguinte julgado do Tribunal Superior do Trabalho:

Recurso de revista. Dano moral. Descumprimento de obrigações trabalhistas. Pressupostos. Ausência. 1. Inferindo-se da moldura fática delineada pelo TRT de origem tão somente o descumprimento de obrigações trabalhistas, consistentes no atraso de 2 (dois), 1 (um) e 6 (seis) dias no pagamento dos salários de junho, julho e agosto de 2008, sem que seja consignada situação que, por si só, configure lesão a direitos imateriais do empregado, não se

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vislumbra a presença dos pressupostos ensejadores da indenização por dano moral, decorrente da responsabilidade civil subjetiva do empregador. 2. Recurso de revista de que não se conhece, no aspecto (TST, 4ª Turma, RR- 183-19.2011.5.04.0205, Red. Min. João Oreste Dalazen, j. 18.09.2013, DEJT 19.12.2013).

Por outro lado, não podemos deixar de mencionar que o TST e também parcela da doutrina entendem que quando há atraso reitarado dos salários fica configurado o dano in re ipsa, que é o dano moral presumido, ou seja, aquele que independe da comprovação do grande sofrimento experimentado pela vítima. Isso se dá, em parte, em decorrência do caráter alimentar do salário, pois este é fonte de subsistência do empregado e de sua família. Esclarecedora é a lição de Maurício Godinho Delgado (2013, p. 654):

A principal obrigação do empregador é o pagamento tempestivo dos salários, parcela que constitui a principal vantagem trabalhista do empregado em face de seu contrato laborativo (arts. 457 e 458, caput, da CLT). Os salários, como se sabe, têm natureza alimentícia, exatamente por cumprirem papel basilar no tocante ao cumprimento de necessidades básicas, essenciais mesmo, da pessoa humana e de sua família, quais sejam, alimentação, moradia, educação, saúde, lazer e proteção à maternidade e à infância... Ora, o atraso reiterado, significativo, dos salários do empregado constitui infração muito grave, ensejando repercussões trabalhistas severas (a rescisão indireta, por exemplo: art. 483, “d”, CLT), além de manifestamente afrontar o patrimônio moral do trabalhador, uma vez que, a um só tempo, afronta-lhe diversos direitos

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sociais constitucionais fundamentais (art. 6º, CF/88), além de lhe submeter a inegável e desmesurada pressão psicológica e emocional. Naturalmente que pequenos atrasos, isto é, disfunções menos relevantes, embora possam traduzir ilícito trabalhista, não teriam o condão de provocar a incidência do art. 5º, V e X, da Constituição, e art. 186 do Código Civil. Porém sendo significativos e reiterados esses atrasos, não há dúvida de que incide o dano moral e a correspondente obrigação reparatória.

No mesmo sentido temos decisão do Tribunal Superior do Trabalho:

(...) 4. Indenização por danos morais em decorrência do atraso no pagamento dos salários. Há entendimento nesta Corte de que o simples atraso no pagamento das verbas rescisórias, por si só, não enseja a reparação por dano moral. Somente quando houver grave atraso ou a falta de pontualidade contumaz no pagamento de salários mensais ao trabalhador é que se pode dizer que houve ofensa aos direitos da personalidade, e consequentemente, a reparação por dano moral. Nesse caso, em virtude do caráter aliimentar da verba, esta é absolutamente indispensável para atender neessidades inerentes à própria dignidade da pessoa natural, tais como alimentação, moradia, saúde, educação, bem-estar – todos eles direitos sociais fundamentais na ordem jurídica do País (art. 6º, CF). Recurso de revista conhecido e não provido. Recurso de revista adesivo parcialmente conhecido e provido (TST, 2ª Turma, RR-12900-55.2009.5.04.0004, Rel. Des.

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Convocado: Valdir Florindo, j. 11.12.2013, DEJT 19.12.2013).

Enfatizamos que para que o atraso nos salários possa, por si só, configurar o dano in re ipsa é necessário que os atrasos sejam reiterados e significativos. O pagamento dos salários é, de fato, a principal obrigação do empregador e a incerteza do momento em que o empregado irá receber a contraprestação pelo trabalho prestado realmente pode ocasionar as mais variadas problemáticas para esse empregado. Há casos em que o empregado passa vários meses trabalhando sem receber salário e isso certamente afetará a ele e a sua família.

Obviamente que na prática o discernimento ficará a cargo do julgador, pois é o juiz que, diante do caso concreto, tem melhores condições de avaliar a situação fática. Mas os entendimentos supracitados certamente são um norte a ser seguido para a condenação ou não em danos morais em razão de um descumprimento contratual.

3. CONCLUSÃO

De todo o exposto, extraímos que, como regra, o mero descumprimento contratual não tem o condão de justificar uma condenação em danos morais, uma vez que esta é decorrência de ofensa ao patrimônio imaterial da pessoa humana, o que, geralmente, deve restar comprovado nos autos.

No entanto vislumbramos situações em que o dano moral é presumido. No caso de atrasos salariais podemos dizer que isso ocorre quando os atrasos são reiterados e significativos conforme pudemos constatar em decisões jurisprudenciais e em ensinamentos doutrinários.

Não podemos olvidar que a análise da ocorrência ou não de um dano moral é dotada de extrema subjetividade e que pode acontecer de, em um caso concreto, a situação não se amoldar às diretrizes traçadas no presente trabalho. Neste caso o juiz deve

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decidir da forma mais coerente, ainda que de forma distinta dos tribunais superiores, desde que fundamentadamente. Nosso ordenamento jurídico resguarda situações como essas, e por isso as decisões dos tribunais, em regra, não são vinculantes.

Além disso, vigora em nosso ordenamento o princípio do livre convencimento motivado conforme art. 131 do Código de Processo Civil de 1973 e art. 371 do Código de Processo Civil de 2015, aplicável subsidiariamente ao processo trabalhista por força do disposto no art. 769 da CLT que dá guarida à decisão do magistrado baseado em seu discernimento.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código civil. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

______. Código de processo civil. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

______. Código de processo civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

______. Consolidação das leis do trabalho. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

______. Constituição Federal de 1988. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho.12. ed. São Paulo: LTr, 2013.

FEIJÓ, Carmem. Notícias do TST. Brasília, 22 set. 2012.Disponível em: <http://www.tst.jus.br/ busca-de-noticias?p_p_id=buscanoticia_WAR_buscanoticiasportlet_INSTANCE_xI8Y&p_p_ lifecycle=0&p_p_state=normal&p_p_mode=view&p_p_col_id=column-2&p_p_col_count= 2%20&advanced-search-

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display=yes%20&articleId=2435311%20&version=1.5%20&groupId =10157%20&entryClassPK=2435313>. Acesso em: 12 set. 2013.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009.

RESENDE, Ricardo. Direito do trabalho. 4ª ed. Ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014

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EUTANÁSIA, ORTOTANÁSIA E DISTANÁSIA À LUZ DA BIOÉTICA

DANILLO VILAR PEREIRA: Procurador Municipal. Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba.

RESUMO: O presente artigo teve por objetivo analisar a prática da eutanásia, ortotanásia e distanásia. Inicialmente, serão apresentados os conceitos, distinções e ponderação entre o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. Ao final do artigo, partindo-se dos dados e conceitos apresentados, conclui-se pela vedação da eutanásia ainda que requerido pelo paciente em sã consciência; a ortotanásia é possível quando diagnosticada a morte encefálica, visto que juridicamente não há vida. Por fim, a distanásia, entendida como tratamento penoso e inútil, somente poderá ser praticada com o aval do paciente, sob pena de solapar-se o direito à autonomia

Palavras-chave: Eutanásia. Ortotanásia. Distanásia. Bioética.

1 Introdução

O direito à vida compreende um direito fundamental e supremo a ser tutelado pelo ordenamento jurídico. Pensado em face das questões polêmicas atuais, o direito à vida é analisado sob o viés do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesse ínterim, destaca-se questão ora muito discutida, qual seja, a possibilidade de legalização da abreviação da vida por meio da eutanásia, além da necessidade em submeter o paciente a tratamento penoso, quando, na verdade, este tratamento não irá conduzi-lo à cura, resultando num sofrimento físico e psicológico ao paciente e seus familiares.

Discute-se a legitimidade da prática de eutanásia, distanásia e ortotanásia por meio da análise de questões polêmicas que

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permeiam essas formas de abreviação da vida, tratando-se de sua conceituação e das razões que motivam o paciente ou sua família a optar por antecipar sua morte, sob o enfoque doutrinário e os ensinamentos de grandes pensadores como Genival Veloso e Delton Croce.

Explicitam-se, ainda, os conceitos de morte propostos pelo nosso ordenamento jurídico e pela doutrina, enfatizando a dificuldade em estabelecer um conceito seguro e eficiente da morte, mormente por se tratar de um processo complexo. Destaca-se o conceito de morte encefálica como pressuposto para análise da ortotanásia, sendo imprescindível a precisão do momento da morte, nos termos legais, para que se possa aceitar sua prática.

Finalmente, passa-se à análise do direito à vida enquanto expressão da Bioética, ramo do conhecimento auxiliar às ciências biológicas e médicas, que enfrenta as novas questões postas pela sociedade e pelo direito, buscando soluções ou respostas, sob o enfoque da ética e moral.

2 EUTANÁSIA, ORTOTONÁSIA E DISTANÁSIA: DISTINÇÃO

Inicialmente, necessário que se estabeleça a diferenciação de conceitos entre eutanásia, ortotanásia e distanásia, pois, apesar da correlação entre si, as ciências da saúde vêm distinguindo-os.

Eutanásia é a conduta de abreviar a morte, em virtude de compaixão, ante um paciente incurável, vítima de intensa dor física ou psíquica e com a iminente certeza de morte. (VELOSO, 2007, p. 381)

Ortotanásia é a conduta de suspender o uso de medicamentos ou equipamentos que prolongam a vida de um paciente em coma irreversível e considerado em “morte encefálica”, vítima de grave comprometimento da coordenação da vida vegetativa e privado das relações sociais. (VELOSO, 2007, p. 381)

Por último, distanásia é suspensão do tratamento insistente, desnecessário e prolongado de um paciente em estado terminal, nos dizeres de Genival Veloso: “que não apenas é insalvável, mas também submetido a tratamento fútil.” (VELOSO, 2007, p. 381)

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Observe-se que os elementos dor, paciente terminal e compaixão são comuns a todos os temas ora tratados, de sorte que a discussão de um deverá ocorrer conjuntamente com os demais.

2.1 Eutanásia

A eutanásia corresponde à abreviação da vida do paciente em estado terminal e que sofre de intensa dor física ou psicológica. Note-se que aquele que assiste a sua prática, fornecendo os meios para tanto, ou, ainda, induz ou instiga o paciente é considerado responsável, podendo ser considerado partícipe ou coautor do crime que vier a ser concretizado.

A eutanásia é repudiada pelo nosso ordenamento jurídico, por exemplo, a Resolução CFM nº 1.480, de 8 de agosto de 2007 e o Código de Ética Médica. Outrossim, a própria Constituição Federal e legislação infraconstitucional vedam a prática da eutanásia, elevando a proteção da vida ao patamar de direito fundamental.

Portanto, dúvidas não há quanto à ilegalidade de sua prática, de modo que, somente, resta a discussão do ponto de vista médico, ético e moral de sua viabilidade.

A eutanásia perpassa pela análise de três elementos, a saber: paciente terminal, dor e “compaixão”.

O paciente terminal é aquele que não tem perspectiva de cura, cuja moléstia o levará a óbito em um breve lapso de tempo. Ora, a medicina e demais ciências afetas à área tecnológica vêm demonstrando que, a cada dia, aquilo que era considerado incurável, quase uma barreira intransponível, tem solução.

Com o desenvolvimento da ciência, descobrem-se caminhos que, se não solucionam, pelo menos prolongam o tempo de vida do paciente, por exemplo, os coquetéis antirretrovirais, de modo que se torna insubsistente a fundamentação da prática da eutanásia na impossibilidade de perspectiva de cura.

O segundo elemento a ser analisado é a dor, pois esta implicará no terceiro elemento.

Receio da morte é natural a todo ser humano, entretanto, em certos casos, o intenso sofrimento, quer seja psíquico ou físico, faz

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com que o homem perca esse medo, enxergando na morte uma solução.

Inquestionável que a dor intensa deve ser combatida, todavia, ainda, assim não é justificativa hábil a permitir a prática da eutanásia, pois há outras soluções que não a morte.

Nesse contexto, há o programa governamental federal que visa a implantar unidades de cuidado paliativo. Esse programa é destinado a pacientes em estado terminal e vem sendo gradativamente implantado em diversos estados da federação.

O intuito do programa é amenizar a dor suportada por aqueles que têm de se submeter a tratamentos agressivos como o câncer, sem que isso signifique uma perspectiva de cura, apenas se almeja prolongar o tempo de sobrevida com maior qualidade.

Sem o intuito de adentrar às polêmicas do programa como desestímulo à busca da cura definitiva para a moléstia, deve-se ressaltar que é um caminho viável para amenizar o problema, na medida em que, com a ausência ou diminuição do sofrimento físico ou psicológico, não haveria mais razão que fundamentasse a prática da eutanásia, preservando-se o direito à vida, bem jurídico supremo em nosso ordenamento jurídico.

Nesse sentido, dignas de transcrição as palavras de Genival Veloso (VELOSO, 2007, P. 494):

O sofrimento, por mais que comova, não pode constituir um meio seguro ou num termômetro para medir-se a gravidade de um mal, nem tampouco autoriza a decidir sobre questões de vida ou morte: não pode servir como recurso definitivo para aferir tão delicada questão.

Por último, deve ser analisada a compaixão como combustível que alimenta a discussão quanto à legalização da prática da eutanásia.

Retornando à discussão anterior, combatendo-se a dor, não haverá mais que se falar em sofrimento e, por conseguinte,

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compaixão. Ademais, este sentimento não pode ser elevado a ponto de prevalecer em face do direito à vida.

Observe-se, ainda, que a opção por abreviar a vida não é possível nem ao próprio paciente, visto que a vida é bem inalienável e indisponível. Portanto, se nem ao paciente é dado consentir sobre a prática da eutanásia, quiçá à família deste.

Ressalte-se, ainda, que o ser humano é movido por sentimento e paixões, optando em situações de adversidades por caminhos que em sã consciência não trilharia. Aquele que angustiado com a morte iminente, prefere à morte rápida que viver com esse dilema.

Ora, vive-se numa sociedade de risco, em que a morte é o preço que se paga por estar vivo. A cada instante morrem pessoas por todo o mundo. Esse é um fenômeno natural da vida, o ciclo biológico.

A morte é certa para todos. A dúvida paira, apenas, no que concerne ao tempo. Em certos casos, aquele que sabe o tempo de vida que lhe resta, termina por aproveitar mais seu tempo, em detrimento daquele que se ocupa com seus afazeres do labor e “esquece da vida”.

A questão seria então de tratar o a questão psicológica do paciente, informando-lhe e conscientizando-o do parco tempo que lhe resta, e não incentivar a prática da eutanásia em razão do sofrimento.

2.2 Ortotanásia

2.2.1 Conceito de morte

Antes de adentrar ao tema propriamente dito, necessário que se façam breves comentários sobre o conceito de morte, pois a discussão perpetrada sobre a ortotanásia gira em torno do momento em que é possível afirmar que o sujeito está morto.

Vive-se na era de “crise dos conceitos”, o conceito de morte não foge à regra. Nos dizeres de Delton Croce: “Assim como não se pode definir a vida, é teoricamente impossível conceituar a morte. Por isso, deveria bastar-nos procurar compreender e aceitar essa única e insofismável verdade.” (CROCE, 1998, p. 347)

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Afirma Veloso que a dificuldade em definir a morte é porque ela não é um fato instantâneo, na verdade seria uma sequência de fenômenos gradativamente processados nos vários órgãos e sistemas de manutenção da vida, seria, pois, um processo, caracterizando sofisma definir o momento em que se deu. (VELOSO, 2007, p. 522)

O doutrinador leciona ainda que:

A morte, como elemento definidor do fim da pessoa, não pode ser explicada pela parada de um determinado órgão, por mais hierarquizado e indispensável que seja. É na extinção do complexo pessoal, representado por um conjunto, que não era constituído só de estruturas e funções, mas de uma representação global. O que morre é o conjunto que se associava para a integração de uma personalidade. Daí a necessidade de não se admitir em um só sistema o plano definidor da morte. (VELOSO, 2007, p. 523)

Não obstante a complexidade do tema, a ciência é obrigada a trilhar caminhos em busca de respostas concretas, especialmente com o aumento dos números de transplantes, em que não é possível esperar por todos os sinais da morte como putrefação, maceração, dentre outros. Nesse contexto, há dois critérios utilizados para definir a morte, quais sejam, a circulatória e a cerebral.

No que concerne ao critério circulatório, o intuito é definir a morte quando se verifica parada irreversível da circulação e da respiração – morte cardiorrespiratória. Ressalte-se que esse critério não desconstitui o que foi dito acima, apenas representa uma tentativa, diga-se por passagem, frustrada de definir o momento da morte. (MARANHÃO, 2000, p. 248)

O conceito de morte cardiorrespiratória, por sua imprecisão, não é adotado. De fato, é forte o conceito de morte cerebral, sendo este o adotado no Brasil, a saber Resolução CFM nº 1.480, de 5 de agosto de 1997:

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Art. 9º Constatada e documentada a morte encefálica, deverá o Diretor Clínico da instituição hospitalar, ou quem for delegado, comunicar tal fato aos responsáveis legais do paciente, se houver, e à central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos a que estiver vinculado a unidade hospitalar onde o mesmo se encontrava internado.

Observe-se que o a Resolução utiliza expressão morte encefálica. Genival Veloso afirma que “a tendência é aceitar a “morte encefálica”, traduzida como aquela que compromete seriamente a vida de relação e coordenação da vida vegetativa, diferente, pois, da “morte cerebral” ou “morte cortical”, que compromete apenas a vida de relação.” (VELOSO, 2007, p. 525)

O doutrinador propõe um padrão para definição baseado nos seguintes critérios (VELOSO, 2007, p. 525-6):

1. Ausência total de resposta cerebral, com perda absoluta da consciência. Nos casos de coma irreversível, presença de uma eletroencefalograma plano (tendo cada registro a duração mínima de 30 minutos), separados por um intervalo nunca inferior a 24 horas. Esse dado não deve prevalecer para recém-nascidos ou em situações de hipotermia induzida artificialmente, de administração de drogas depressivas do sistema nervoso central, de encefalites e de distúrbios metabólicos ou endócrinos.

2. Abolição dos reflexos cefálicos, como hipotonia muscular e pupilas fixas e indiferentes ao estímulo luminoso.

3. Ausência da respiração espontânea por 5 minutos, após hiperventilação com oxigênio 100%, seguida da introdução de um caráter na traqueia, com fluxo de 6 litros de O por minuto.

4. Causa do coma conhecida.

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5. Estruturas vitais do encéfalo lesadas irreversivelmente.

Os critérios propostos são de grande valia para a discussão sobre ortotanásia, pois a questão do coma irreversível é o ponto nevrálgico da questão, na medida em que caracterizada morte encefálica para os conceitos atuais, não haveria que se falar em desumanidade ou ilegalidade de sua prática.

2.2.2 Aspectos éticos

A ortotanásia é conceituada como suspensão dos meios artificiais de manutenção da vida. Sua prática vem ganhando credibilidade perante a sociedade, pois com fundamento nos critérios acima expostos não haveria que se falar em abreviação da vida.

Inicialmente, necessário que se diferencie quatro situações críticas que conduzem a dilemas éticos: pacientes em estado vegetativo continuado, pacientes em morte encefálica, pacientes terminais e pacientes em estado vegetativo permanente. (VELOSO, 2007, p. 501)

Nos dizeres de Genival Veloso: “Paciente em estado vegetativo continuado ou persistente é aquele que apresenta lesões recentes do sistema nervoso central, com ou sem diagnóstico definido, mas que deve ter seus cuidados conduzidos nos moldes dos pacientes salváveis.” (VELOSO, 2007, p. 501)

O paciente terminal é aquele cuja evolução de sua doença não responde mais a nenhuma medida terapêutica conhecida e aplicada, sem expectativas de cura ou de prolongamento da vida. (VELOSO, 2007, p. 501)

Por sua vez, paciente em estado vegetativo permanente é aquele que não tem evidência de consciência, não se expressa e não entende os fatos em torno de si, sobrevivendo com respiração autônoma, por um longo tempo, necessitando de cuidados médicos. (VELOSO, 2007, p. 502)

Por último, o paciente em coma aperceptivo apresenta ausência de atividade motora supraespinhal e apneia, além de comprovadamente não possuir atividade elétrica cerebral, ou

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atividade metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral, caracterizando, portanto, morte encefálica. (VELOSO, 2007, p. 501)

Na hipótese do paciente em coma aperceptivo, deve-se definir se o paciente se enquadra no conceito de morte encefálica, pois, em sendo o caso, não há que se falar em abreviação da vida, sendo plenamente válida a prática da ortotanásia por meio do desligamento dos aparelhos que artificialmente mantém as demais funções vitais como a circulatória.

Na situação fática supramencionada, o desligamento dos aparelhos é medida adequada. Não há que se falar em vida de acordo com os critérios legais. Ademais, a situação do paciente é irreversível.

Nos demais casos, o desligamento dos aparelhos deve ser combatido sob o enfoque humanista de valorização da vida. Inclusive, o próprio ordenamento jurídico pátrio não permite tal abreviação da vida, de sorte que aquele que praticar tal conduta incorrerá nos tipos penais previstos.

A propósito, o artigo 66 do Código de Ética Médica veda ao médico “utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal.” Rememore-se, ainda, o juramento de Hipócrates: “a ninguém darei, para agradar, remédio mortal, nem conselho para induzir à perdição”.

Não obstante a impossibilidade da legalização de sua prática nos casos em que não for diagnosticada a morte encefálica, há um certo clamor social que defende a sua prática indiscriminada, sob o argumento de economicidade e dignidade da pessoa humana.

No que concerne ao argumento de economicidade, é necessário que se esclareça que a vida humana é um bem extrapatrimonial e insuscetível de apreciação econômica, portanto, qualquer tentativa nesse sentido afronta o direito fundamental à vida, insculpido na Constituição Federal.

Noutra vertente, o princípio da dignidade da pessoa humana tem de ser analisado sob o enfoque do neoconstitucionalismo em que não há que se falar em direito absoluto. Nesse diapasão,

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esclarecedor o ensinamento de Alexy (ALEXY apud GILMAR, 2010, p. 215):

Por isso, em palavras do próprio Alexy, o princípio da dignidade da pessoa comporta graus de realização, e o fato de que, sob determinadas condições, com um alto grau de certeza, preceda a todos os outros princípios, isso não lhe confere caráter absoluto, significando apenas que quase não existem razões jurídico-constitucionais que não se deixem comover para uma relação de preferência em favor da dignidade da pessoa humana sob determinadas condições.

Dessa forma, não há que se falar em direito absoluto, devendo, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana ser contraposto ao direito à vida.

Observe-se que a vida é pressuposto para a dignidade, sem vida não há que se falar em dignidade. Uadi nos ensina que “sem a proteção incondicional do direito à vida, os fundamentos da república federativa do Brasil não se realizam. Daí a Constituição Federal proteger todas as formas de vida, inclusive a intrauterina.” (UADI, 2008, p. 414)

Em razão disso, pode-se afirmar que o direito à vida é o mais importante de todos os direitos. De igual modo, não há fundamento razoável que permita a legalização da ortotanásia em pessoas que comprovadamente apresentem quadro reversível.

No entanto, não se desconhece a mínima possibilidade de sobrevivência do paciente. Nesse sentido, esclarecedora o preâmbulo da Declaração de Hong Kong – adotada pela 41ª Assembleia Geral da AMM, Hong Kong, setembro de 1989 - sobre estado vegetativo persistente:

Por outro lado, as chances de recuperar a consciência depois de ser vegetativo durante três meses são muito pequenas. São reivindicadas exceções raras, mas alguns destes casos podem estar representados por pacientes que não entraram logo em coma logo

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após o dano causado. Em última instância, todos estão severamente inválidos.

Ante o exposto, a ortotanásia quando praticada em pacientes com morte encefálica, deve ser incentivada, pois sem vida para fins legais, nem possibilidade médica de reversão do quadro do paciente, não há que se falar juridicamente em abreviação da vida.

2.3 Distanásia

A distanásia é o tratamento insistente, desnecessário e prolongado de um paciente terminal, que não é apenas insalvável, como também submetido a tratamento fútil.

É o caso dos pacientes terminais portadores do vírus da AIDS ou que sofrem de câncer sem perspectiva de cura, nos casos em que o quadro clínico do paciente é avançado, situação na qual as opções de tratamento disponíveis já não surtem mais efeitos, nem prolongariam em tempo razoável a vida do indivíduo.

A análise da distanásia versa sobre a suspensão desse tratamento ineficaz, a qual deve ser feita sob o enfoque interno e externo, ou seja, quando a manifestação de vontade em não se submeter a tratamento se origina, respectivamente, do próprio paciente ou de familiares, amigos e até mesmo do Estado. Ressalte-se que ninguém é abrigado a se submeter a tratamento penoso ou que coloque em risco sua vida,nos termos do art. 15 do Código Civil.

Dessa forma, o médico não pode ser responsabilizado caso suspenda o tratamento em atendimento ao pedido do paciente que possua livre capacidade para consentir. Diferentemente, seria a hipótese em que o médico se recusasse a tratar o indivíduo por se encontrar em estado terminal, configurando, inclusive, conduta delituosa, podendo se enquadrar, a depender das circunstâncias do caso concreto, em omissão de socorro.

Em retorno ao ponto anterior, na maioria dos casos, o paciente escolhe suspender o tratamento em virtude da forte depressão que abala sua razão e vontade de viver. É comum o ser humano não saber lhe dar com a morte iminente, pois tem receio do que lhe espera “do outro lado”, se é que podemos falar nisso.

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Portanto, dever-se-ia trabalhar a questão emocional do paciente para que aceite sua condição. Genival Veloso levanta a discussão sobre o direito à verdade ao paciente em estado terminal. Leciona que a verdade deve ser dita ao paciente, pois é do seu interesse saber sobre sua saúde: “o certo é que dizer a verdade, por mais necessária que ela seja, não é sinônimo de relato frio e brutal.” (VELOSO, 2007, p. 505)

Nos casos delicados, em que o médico percebe que a informação poderá causar danos ao paciente, deve comunicar o fato a um familiar seu ou responsável legal, cumprindo o que determina o artigo 59 do Código de Ética Médica.

Dessa forma, tomando os devidos cuidados, o médico está evitando situações em que o indivíduo, dominado pela depressão, opta pela suspensão do tratamento.

Questão totalmente diversa é um terceiro, por exemplo, familiar, o Estado ou o próprio médico decidir por suspender o tratamento, pois a vida é um bem inalienável e indisponível, de forma que o paciente não poderá ter sua vida tolhida por questões econômicas ou qualquer outra que seja.

No caso dos familiares que avocam para si a decisão pela abreviação da vida, essa escolha é motivada por questões de compaixão, por não suportarem presenciar tanto sofrimento de seu ente querido. No entanto, observe que a compaixão não é fundamento razoável perante um bem tão precioso que é a vida.

Por outro lado, o Estado fundamenta o debate por conveniência de redução de gastos públicos. Entretanto, a vida é um bem personalíssimo, fundamental e, por conseguinte, extrapatrimonial. Dessa forma, não há como mensurá-la economicamente e, portanto, quantificar o que vale mais: a vida de uma pessoa ou outro bem como a educação de vários.

Todos aqueles que são a favor da humanidade e lutam pela manutenção da vida são contra qualquer retrocesso no sentido de permitir a prática da distanásia por escolha de terceiros que não o paciente em sã consciência, na medida em que este é o único capaz de mensurar seu real sofrimento em conviver com sua doença e certeza de morte iminente, cabendo-lhe unicamente, portanto, a escolha.

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3 BIOÉTICA

A bioética é um estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e da saúde, objetivando soluções para os novos casos e situações polêmicos que surgem no campo da saúde com base nos valores éticos e morais.

Nos ensinamentos de Hubert Lepargneur (LEPARGNEUR, 1996 apud FERREIRA, 2005, p. 5):

a bioética é a resposta da ética aos novos casos e situações originadas da ciência no campo da saúde. Poder-se-ia definir a bioética como a expressão crítica do nosso interesse em usar convenientemente os poderes da medicina para conseguir um atendimento eficaz dos problemas da vida, saúde e morte do ser humano.

Percebe-se que a bioética é um ramo do conhecimento auxiliar, destacando-se nas áreas da saúde por enfrentar questões polêmicas como as questões da eutanásia, ortotanásia e distanásia.

Pretende-se, pois, analisar as questões de abreviação da vida sob o enfoque dos princípios basilares da bioética: não maleficência, beneficência, respeito à autonomia e justiça.

O princípio da não maleficência se consubstancia no dever do profissional da saúde de não adotar, intencionalmente, condutas que prejudiquem o próximo. Vislumbra-se mais que um dever profissional, configurando um dever ético. (LOCH, 2002, p. 2)

Percebe-se que o princípio da não maleficência é de grande valia, mas o não prejudicar é insuficiente, pois o paciente que procura o médico objetiva uma melhora de seu quadro clínico. Note-se que a inércia do médico seria suficiente para caracterizar uma conduta compatível com esse princípio e poderia justificar atitudes como a de não realizar determinadas intervenções médicas, única e exclusivamente, por medo de errar.

Em razão disso, o princípio da beneficência exerce a função de complementar esse princípio, significando, de forma, singela, fazer o bem. Jussara de Azambuja nos ensina que “a Beneficência requer

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ações positivas, ou seja, é necessário que o profissional atue para beneficiar seu paciente. Além disso, é preciso avaliar a utilidade do ato, pesando benefícios versus riscos e/ou custos”. (LOCH, 2002, p. 3)

A passagem transcrita destaca a necessidade de ações positivas por parte do profissional da saúde a fim de que utilize de todo o seu arcabouço médico para beneficiar o paciente, e enfatiza, ainda, que é necessário avaliar a utilidade do ato, sopesando os benefícios e os riscos das medidas a serem tomadas.

O respeito à autonomia é o dever do profissional da saúde em respeitar as decisões tomadas pelo paciente por livre e espontânea escolha, preservando, pois, o projeto de vida do paciente, bem como suas opiniões e valores. Autonomia pode ser conceituada como a capacidade de uma pessoa para decidir, fazer ou buscar aquilo que ela julga ser o melhor para si. (LOCH, 2002, p. 4)

Não obstante o dever de respeitar a autodeterminação do paciente, imperioso que o indivíduo apresente condições psicológicas de informar sua opinião, o que não ocorre nas hipóteses em que crianças figuram como pacientes, nos casos de patologias neurológicas e psiquiátricas severas e, ainda, situações de urgência.

Por último, o princípio da justiça vela pela distribuição equitativa de bens e recursos, numa tentativa de permitir que todos tenham acesso às oportunidades de tratamento, exames e diagnósticos. O Sistema Único de Saúde é uma expressão desse princípio, permitindo que cidadãos desprovidos de recursos financeiros possam lutar pela sua sobrevivência.

A perspectiva proposta pelo campo da bioética vem, cada vez mais, ganhando força perante a sociedade e a comunidade médica, pois, umbilicalmente, interligada com os valores éticos e morais, representando, assim, os anseios da sociedade.

A propósito, em pesquisa desenvolvida com o objetivo de analisar a percepção sobre distanásia, ortotanásia e eutanásia dos enfermeiros que atuam em unidades de terapia intensiva de um hospital universitário de grande porte na cidade de São Paulo, evidenciou forte respeito à autonomia do paciente em tomar suas

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decisões, conforme conclusões do estudo a seguir transcritas (BIONDO, PAES, SECCO, 2008, p. 7):

Convém ao enfermeiro a reflexão cuidadosa acerca dessas situações vivenciadas em sua prática, para que não ratifique a aplicação de terapêutica inútil. O simples fato de pensar de modo acrítico propicia ao profissional da saúde ajudar "a qualquer custo" a manutenção da vida, sem maiores discussões, incidindo, contraditoriamente, em distanásia

[...]

Também é seu dever respeitar e reconhecer o direito do cliente decidir sobre sua pessoa, seu tratamento e seu bem-estar e respeitar o ser humano na situação de morte e pós-morte. O enfermeiro precisa, então, garantir informações em sua veracidade aos familiares e pacientes, para que possam tomar as decisões cabíveis, livres e conscientemente, exercitando sua autonomia

Os trechos citados reforçam a ideia do respeito à autonomia do indivíduo e sua família em fazer suas escolhas, bem como convida à reflexão crítica sobre o tratamento fútil que não conduzirá à cura do indivíduo.

Por outro lado, é digna de menção passagem que afirma ser dever do profissional da saúde desempenhar seu papel com zelo “para aqueles que lutam pela vida e têm como base para essa luta a bioética é certeza e verdade fundamental que os cuidados não podem acabar diante de um caso de incurabilidade”. (BIONDO, PAES, SECCO, 2008, p. 7)

A perspectiva proposta pela bioética é uma visão humanista das questões complexas postas em discussão pelo campo das ciências médicas. Esse ramo do conhecimento é bastante arraigado aos valores éticos e morais da sociedade, razão pela qual ainda não há um caminho consolidado a ser seguido.

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As soluções propostas pela bioética é no sentido de preservar a vida do ser humano, desde que seja respeitada da dignidade da pessoa humana, de modo que a vida do individuo não seja um prolongamento de sofrimento e desolação, tanto para o paciente como para a sua família.

O respeito à autonomia do paciente ganhou bastante força com a bioética, pois não ninguém melhor para expressar o seu sofrimento que o próprio paciente. Portanto, esse ramo de estudo distingue o “estar vivo” do “ter vida”, visto que prolongar artificialmente a vida de alguém que sofre pode até preservar o “ter vida”, mas nunca o “estar vivo”, a oportunidade de sentir as emoções e prazeres da vida.

Destarte, a sua contribuição é significativa, todavia não se deve perder o foco em respeitar a vida do ser humano como valor supremo, na medida em que é o pressuposto para os demais direitos.

4 CONCLUSÃO

Visto à luz da teoria humanista e dos princípios da Bioética, o direito à vida, pressuposto dos demais direitos, apresenta toda a sua complexidade quando se discute a decisão de sua abreviação em prol de outros princípios como a dignidade da pessoa e de sentimentos de compaixão ou, ainda, para satisfação de interesses meramente econômicos e mercadológicos.

Nesse passo, restou explicitado o confronto social e doutrinário que emerge entre a garantia da vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. De um lado, indivíduos abalados emocionalmente com a certeza de morte iminente, sendo submetidos a tratamentos penosos que castigam seu corpo e sua alma, mas de forma alguma se entregam às adversidades da vida. Noutra vertente, a desistência pela vida de alguns pacientes e a compaixão dos familiares que enxergam uma vida indigna e incompatível com os sonhos e metas traçados pelo seu ente querido.

Se, por uma via, não se pode obrigar o indivíduo a se submeter a tratamento penoso, em desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e a sua autonomia, não se pode tolher os sonhos e a vontade de viver, dando-lhe substância que abrevie

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sua vida ou desligando os parelhos que o mantém vivo quando não lhe é nem sequer perguntado qual a sua vontade.

Nesse ínterim, nada obstante serem veementemente rechaçadas a prática de condutas que restrinjam o direito à vida pelo nosso ordenamento jurídico, a discussão doutrinária alcança importante espaço, enfrentadas as questões postas à luz dos princípios éticos e morais.

De tal forma, resta impraticável a eutanásia, sob qualquer pretexto e ainda que requerido pelo paciente em sã consciência, pois não é dado à medicina fazer o mal ao próximo. A ortotanásia, quando praticado nos moldes propostos por Genival Veloso, é possível, pois diagnosticada a morte encefálica não há que se falar em abreviação da vida. Por fim, a distanásia, entendida como tratamento penoso e inútil, somente poderá ser praticada com o aval do paciente, sob pena de solapar-se o direito à autonomia em se submeter a tratamento médico com risco de vida ou penoso.

REFERÊNCIAS

BIONDO, Chaiane Amorim; Silva, Maria Júlia Paes da; SECCO, Lígia Maria Dal. Distanásia, eutanásia e ortotanásia: percepções dos enfermeiros de unidades de terapia intensiva e implicações na assistência. Disponível em: Distanásia, eutanásia e ortotanásia: percepções dos enfermeiros de unidades de terapia intensiva e implicações na assistência. Acesso em: 03 dez. 2011.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

CROCE, Delton & Jr. CROCE, Delton. Manual de Medicina Legal. 4. ed. rev e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998.

FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Bioética e Biodireito. Disponível em: http://www.josecaubidinizjunior.com.br/sol/imagens_clientes/imagens/4/145.pdf. Acesso em: 03 dez 2011.

FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008.

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PROLEGÔMENOS A UMA TEORIA DA RATIO DECIDENDI COMO NORMA

RAFAEL ESPERIDIÃO DE MELO: Advogado na cidade de Maceió - AL.

RESUMO: O presente trabalho busca abordar o precedente judicial enquanto fonte do direito sob uma perspectiva eminentemente teórica. Partir-se-á, para tal fim, de noções filosóficas relativas à interpretação jurídica, como a diferença entre texto e norma, círculo hermenêutico, conceitos de intepretação e compreensão. Além disso, fundamentar-se-á com base em aspectos atinentes à teoria da norma jurídica como fenômeno comunicativo, bem como em aspectos relativos à estrutura interna da norma, na perspectiva abordada por Hans Kelsen e Tércio Sampaio Ferraz Jr.; bem como sua construção pelo intérprete, pautada pelo texto, âmbito e programa normativo, conforme delineamentos de Friedrich Müller. No mais, alguns conceitos normalmente utilizados pela doutrina com base na tradição doCommon Law, tais como, ratio decidendi e obiter dictum, serão reformulados a fim de adequá-los ao sistema jurídico nacional e aos modernos delineamentos esboçados quanto à interpretação jurídica. Por fim, as concepções abordadas serão utilizadas para argumentar a favor da “obrigatoriedade” de determinadas decisões judiciais proferidas no bojo do sistema decisório brasileiro.

Palavras-chaves: Precedente Judicial. Ratio decidendi. Texto Normativo. Teoria das Fontes do Direito. Teoria Geral do Direito. Filosofia do Direito. Hermenêutica Jurídica.

INTRODUÇÃO

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A problemática em torno da Teoria das Fontes do Direito somente ganhou força com o advento da era moderna, mais especificamente com o movimento intelectual do iluminismo. De fato, em momento anterior, parecia pacífico aos olhos dos juristas que o Direito se encontrava presente na infinita sabedoria divina de Deus. A secularização iluminista, porém, paulatinamente abriu espaço para uma visão cultural do fenômeno jurídico, a qual, mesmo nos dias de hoje, não se encontra plenamente consolidada.

Com certo exagero, Gurvitch entende que o problema das fontes do direito positivo é o ponto “crucial de toda a reflexão jurídica: é o ponto central da Filosofia do Direito e para ele converge toda a complexidade de seus temas”[1]. A despeito de tal exorbitância, parece certo que o tema aqui abordado configura um dos pontos centrais para a construção duma teoria capaz de explicar o fenômeno jurídico na sociedade contemporânea.

Certamente, a questão das fontes do direito é, antes de tudo, um problema que envolve o Direito (= ordenamento jurídico) enquanto sistema. É a necessidade de identificar, separar e expurgar os elementos que não o compõem, que são incompatíveis com as regras do jogo por ele mesmo concebido, ainda que se entenda, conforme máxima do empirismo lógico, que “o sistema não possa fornecer as bases para sua própria consistência”[2].

Todavia, nos dias de hoje, diante do império do direito legislado, a questão das fontes do direito se encontra deixada de lado. Os intelectuais ligados ao saber jurídico repousam tranquilos na confortável posição de reconhecer a legislação como a única fonte, fazendo meras pinceladas no que diz respeito aos costumes, a doutrina e a jurisprudência, sempre entendidas como fontes subsidiárias ou interpretativas.

A aurora do precedente judicial no sistema brasileiro coloca esse conforto em cheque. Dum ponto de vista objetivo, negar a lei e as decisões das cortes superiores acarreta a mesma consequência: a possibilidade de reforma da decisão judicial. Se a

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consequência é idêntica, não parece haver motivos para colocar o “precedente judicial” em patamar inferior ao direito legislado, senão, é claro, o velho medo de atentarmos contra o dogma da separação de poderes.

No mais, ao abordarem o tema, os doutrinadores, normalmente processualistas, costumam firma seus posicionamentos com bases em princípios e outros argumentos metafísicos a priori, tais como, segurança jurídica, isonomia, uniformidade das decisões judiciais e, muito provavelmente, respeito à dignidade humana, sem se importarem em fazer qualquer abordagem teórica sobre o tema.

Noutro norte, a concepção Kelseniana de que somente normas podem ser fontes de outras normas parece cair por terra diante dos delineamentos atinentes à contemporânea hermenêutica jurídica, mormente no que diz respeito à separação entre texto e norma, à noções de interpretação, compreensão, círculo hermenêutico e, por fim, as concepções atinentes à norma como fenômeno comunicativo.

O objetivo deste trabalho, portanto, é fazer uma análise eminentemente teórica dos precedentes judicias como fonte do Direito. Identificar em que consiste, no contexto atual e de acordo com a contemporânea hermenêutica jurídica, saber a “origem do Direito” para, posteriormente, afirmar em que medida e sob que condições uma decisão judicial, uma vez prolatada, pode ser utilizada como fonte para uma decisão futura.

1 NORMA JURÍDICA E SUA INTERPRETAÇÃO

1.1 DOGMÁTICA ANALÍTICA: A ESTRUTURA DA NORMA

JURÍDICA EM HANS KELSEN E TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR.

Quando se menciona norma jurídica e Hans Kelsen, a primeira palavra que surge na mente do operador do direito é: Ciência. Esta, em audaz metáfora, é a vingativa filha da religião tentando lograr êxito onde sua genitora jamais lograra – o encontro da “Verdade”. Para tal fim, a “Scientia” erigiu a rigorosa cognição dos fatos, em

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tese alcançada pelo método científico, ao patamar de objeto primário da investigação; lugar este anteriormente ocupado por Deus, atingido por meio da fé, da evidência através da razão, e do espírito absoluto pela dialética.

Mas seja na episteme Platônica, na metódica análise Cartesiana, no empirismo de Bacon ou, ainda, na “linguagem clara” do Círculo de Viena, o certo é que o encontro da Verdade – objetivo tradicional da scientia – escondia, antes de tudo, uma necessidade: Platão queria combater os tiranos ao afirma-lhes que iam de encontro à natureza humana, Derrida procurava saber como a linguagem se transformou em filosofia primeira, os iluministas queriam libertar a burguesia dos religiosos dogmas cristãos[3] e Kelsen desejava fazer o Direito “entrar na moda”.

Todas essas correntes filosóficas, a despeito de suas divergências, idiossincrasias e contexto histórico que as impulsionaram, possuem o mesmo pano de fundo: a ideia de que “há algo por trás das coisas além daquilo que nós mesmos pusemos”[4], quer dizer, a crença na existência de uma ordem natural cognoscível, inteligível e captável, onde o conhecimento se dissolve em entendimento e a realidade é revelada ao invés de construída.

O fato de estas correntes possuírem o mesmo escopo – repita-se, “encontrar a verdade”, “revelar a realidade” – decorre da adoção das mesmas premissas filosóficas de bases platônicas, as quais foram resgatadas ainda no final da Idade média, mas cujo auge apenas ocorreu com a filosofia de Immanuel Kant e Augusto Comte. O primeiro destacou as categorias a priori necessárias ao entendimento, as quais, presentes no saber científico, permitem, ainda que incognoscível seja a coisa-em-si, a apreensão do fenômeno em sua essência. Comte, por sua vez, inflacionou o conhecimento dos fatos como base do conhecimento verdadeiro, ao mesmo tempo em que elevou o saber científico como o ápice do intelecto humano.

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Estes autores, certamente, foram os responsáveis pela hipostasiação quase religiosa da Ciência e de suas premissas – método, clareza, objetividade etc. – nos Sec. XIX e XX. Após a “Crítica da Razão Pura”, ainda hodiernamente é possível encontrar filósofos desejando “colocar a filosofia no caminho seguro das ciências”. Da mesma forma, após a obra “Curso de Filosofia Positiva”, há quem acredite ser a ciência “o único meio em condições de resolver, ao longo do tempo, todos os problemas humanos e sociais que até então haviam atormentado a sociedade”[5].

Este cientificismo não poderia – e, certamente, não iria – passar despercebido pelos juristas em voga. Tratava-se de uma época otimista, intelectualmente fértil e com premissas bem ajustadas, na qual, como visto anteriormente, palavras como objetividade, clareza, método e, principalmente, verdade, alcançavam o patamar de dogmas religiosos, encontravam-se, pois, hipostasiadas, inflacionadas no seio intelectual.

Neste contexto, Hans Kelsen trouxe a si a sublime cruzada de levar à Ciência do Direito os vícios e virtudes do cientificismo em voga, arcando com os fardos e as glórias de seu pioneirismo. Por um lado, foi acusado tanto de empobrecer o mundo jurídico, ao reduzir o saber científico ao estudo da norma, quanto de distanciá-lo da realidade social subjacente[6]; por outro, é certo que, antes de seu pensamento, a Ciência do Direito sequer tinha um objeto de estudo delimitado, em claro prejuízo ao seu desenvolvimento enquanto tal.

Com efeito, sua obra prima revela, logo em seu título, uma necessidade da Ciência Jurídica de então: a delimitação “precisa” de seu objeto de conhecimento. Ao denominar sua Teoria do Direito de “Pura”, Kelsen desejava distanciar-se do “lugar-comum” das teorias tradicionais e, pari passu, elevar sua obra a categoria de “divisor de águas”, a partir do qual a ciência do direito não mais se esmiuçaria com a sociologia, psicologia ou história, mas lograria plena autonomia científica[7].

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A partir da referida obra, desejava Kelsen – e isso de fato ocorreu – que a ciência jurídica gozasse de soberania, afastando elementos estranhos ao seu estudo por meio da delimitação precisa de seu objeto. Isto resta claro, frise-se, pelas palavras do próprio jurista austríaco, in verbis:

quando a si própria se designa como “pura” a teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos [...] um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe ela está de satisfazer à exigência da pureza. De um mondo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política[8].

A referida pureza de sua teoria é posta em cheque pelos críticos quando Kelsen, na tentativa de fechar o sistema lógico por si criado, condiciona a validade do ordenamento jurídico ao mínimo de efetividade social – elemento sociológico –, ou ainda, quando assevera ser a denominada “norma hipotética fundamental” – elemento filosófico –, enquanto pressuposto teorético-gnosológico, o fundamento primeiro de validade das constituições nacionais e, por conseguinte, de todo o ordenamento.

Embora a pureza de sua teoria desvaneça perante seus desvairos iluministas por completude, o certo é que Kelsen, ao delimitar rigorosamente o objeto de análise da ciência jurídica, logrou êxito em seu objetivo de “cientificizar” o estudo do Direito. Para tanto, Kelsen pôs a “norma jurídica” como centro de

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investigação da Ciência do Direito, fazendo-a ocupar o trono que antes pertencia a “Justiça”, “Razão”, “Lei” “Vontade Divina”, “Espírito do Povo” etc.

Estando tão próximo às marcas do romantismo deixadas nas regiões teutônicas, Kelsen, como bom germânico, infinitizou seu objeto de estudo – a norma jurídica – e esta simples atitude – colocar no pedestal algo que, até então, fora deixado relativamente de lado – mostrou-se suficiente para mudança de paradigma no estudo do Direito. No mais, Kelsen também concebeu uma nova estrutura ao ordenamento jurídico, bem como trouxe as premissas interpretativas da filosofia analítica ao campo da ciência jurídica.

Neste ponto do trabalho, todavia, somente o que nos interessa são as concepções de Kelsen atinentes à estrutura da norma jurídica, a fim de que se possa superar, ao menos no que toca as fontes do direito, a separação entre as tradições Civil Law e doCommon Law, permitindo ir além das barreiras do direito positivo. Da mesma forma, será importante para superar a distinção entre norma jurídica geral e individual, imprescindível para entender precedente judicial como fonte do direito no direito contemporâneo.

O primeiro e fundamental passo para entender a estrutura da norma jurídica em Kelsen diz respeito à distinção, elaborada por Kant, entre “ser” e “dever-se”. Como visto anteriormente, todo o contexto intelectual no qual o jurista austríaco desenvolveu sua obra fundou-se nos desdobramentos do pensamento, dentre outros autores, de Immanuel Kant. Evidentemente, a ciência jurídica e Kelsen não passariam incólume de sua influência.

De fato, não se mostra necessário ir a fundo às obras de Kant para perceber sua influência sobre o jurista austríaco, sendo certo que, logo no prólogo da obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” é possível encontrar traços de sua influência, ipsis litteris:

tanto a filosofia natural quanto a filosofia moral podem cada qual ter a sua parte empírica,

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pois aquela tem de determinar as leis da natureza como objeto da experiência, e esta, as da vontade do homem enquanto é afetada pela natureza; as primeiras, considerando-as como leis segundo as quais tudo acontece, a segunda, como leis segundo as quais tudo deve acontecer, mas ponderando também as condições pelas quais com frequência não acontece o que devia acontecer.[9]

Resta, pois, clara a distinção, salientada por Kant e utilizada por Kelsen, entre o mundo físico – do qual faz parte a natureza –, e o metafísico – onde se encontra a moral –, sendo esta última, conforme acima transcrito, responsável por determinar as leis da vontade humana enquanto afetadas pela natureza, cujo conteúdo, repita-se, consiste em dizer como tudo deve acontecer, mas também as condições pelas quais frequentemente não acontece o que devia acontecer.

Tomando esta distinção como base de sua Teoria, Kelsen delineia a distinção entre: a) causalidade, princípio regente dos fatos da natureza, onde uma causa gera um efeito, o qual constituirá causa de outro efeito posterior; e b) imputação, princípio que rege as condutas humanas, enquanto responsável por ligar um consequente a um antecedente por meio do conectivo “dever-ser”[10]. Assim, entende que o fato regulado pelo direito (fato jurídico) possui dois elementos distintos: a) o ato humano, sensorialmente perceptível, realizado no espaço e no tempo – e pertencente, pois, ao mundo físico, do ser (ôntico), e regido pela causalidade; e b) sua significação jurídica, conferida pela norma posta – sendo esta significação pertencente ao mundo metafísico, do dever-ser (deôntico), e regido pela imputação[11].

A primeira vista, soa um tanto inusitado afirmar que uma norma posta, quer dizer, produzida por instituições jurídico-políticas humanas, resultado de um processo cultural, possa se encontrar em mundo metafísico – não humano, fora da cultura, pois. Todavia, isso

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decorre da concepção de que a norma, por sua essência, expressa algo que deve ser ou acontecer, sendo, inexoravelmente, um comando do “dever-ser”, atinente ao plano dos pensamentos, dirigido ao “ser”[12], presente no plano dos fatos.

Neste ponto, em que se ressalta o ato ou fato, físico, sensorialmente perceptível, e o sentido metafísico, deôntico, que lhe é conferido, exsurge a segunda concepção fundamental para entender a norma jurídica em Kelsen: a norma enquanto esquema de interpretação. De fato, sejam as normas morais, gramaticas, religiosas ou jurídicas, é certo que estas conferem um significado específico à conduta normada. O ato de ajoelhar-se nada quer dizer no mundo natural, mas, em culto católico, regido por normas da respectiva religião, significa reverência a determinada entidade divina.

O processo de produção do direito objetivo presta-se a criação de normas jurídicas, cuja função – seja norma de conduta ou de estrutura –, dentre outras, consiste em conferir significação objetiva – jurídica – a atos humanos ou fatos da natureza que, do contrário, seriam juridicamente irrelevantes[13]. Com efeito, a ausência de norma acarretaria que os atos e fatos da vida possuíssem um significado tão somente subjetivo e, portanto, inapto a qualificar-se como jurídico. Nas palavras de Kelsen: “O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma” [14].

As normas jurídicas são, pois, “esquemas doadores de significado”[15], cujo objetivo consiste em juridicizar, enlaçar, trazer aquele ato ou fato pertencente ao mundo do ser à realidade normativa, conferindo-o um significado jurídico específico – o ato de matar transformar-se em homicídio. O “dever-ser” jurídico, desta forma, dirige-se aquilo que “é” para que o conteúdo daquele “algo” que “é” coincida com o conteúdo daquele “algo” que “deve ser’”[16].

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Embora Kelsen não afirme, categoricamente, expressamente, qual o objetivo das normas jurídicas – regular as condutas intersubjetivas, adaptar o homem à sociedade, incidir infalivelmente sobre os fatos etc. – a ênfase posta na coercibilidade da ordem jurídica torna indubitável que o referido jurista concebe o Direito, precipuamente, como um corpo de normas de conduta, ou seja, como um conjunto de comandos normativos dirigidos a regular as relações humanas.

Diante disso, surge o terceiro e último elemento imanente à norma jurídica: a sanção. Esta seria um pressuposto do Direito moderno, baseado no vergeltung[17] – princípio retributivo – e principal elemento da denominada “norma primária” ou, no termo utilizado por Kelsen, “norma autônoma”. De fato, a estima pela coercitividade do direito é tão acentuada em sua teoria que a sanção não é concebida como elemento para efetivar o ordenamento, tal como ocorre nas teorias tradicionais, mas componente integrante da própria estrutura da norma jurídica[18].

Não quer Kelsen dizer, todavia, que todas as normas previstas no ordenamento são providas de sanção. Absolutamente não. O que se afirma é que as normas destituídas de um comando sancionatório – não autônomas – são ligadas a outra norma – autônoma – devidamente “armada” de uma sanção[19]. Além disso, Kelsen não nega a existência de normas que, além de desguarnecidas de sanção, não se conectam a qualquer outra norma autônoma, essas, entretanto, aproximar-se-iam da moral, sendo desprovida de coercibilidade e, portanto, “ajurídicas”. Neste sentido:

uma norma posta pelo legislador constitucional que prescrevesse uma determinada conduta humana sem ligar à conduta oposta um ato coercitivo – a título de sanção – só poderia ser distinguida de uma norma moral pela sua origem, e uma norma jurídica produzida pela via consuetudinária nem

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sequer poderia ser distinguida de uma norma de moral também produzida consuetudinariamente [...] só muito excepcionalmente se encontram normas que são o sentido subjetivo de atos de legislação e que prescrevem uma determinada conduta sem que a conduta oposta seja tomada como pressuposto de uma ato coercitivo que funcione com sanção.[20]

Neste ponto, é fundamental salientar o alcance amplíssimo conferido por Kelsen ao conceito de sanção, significando não apenas uma consequência do ato ilícito, mas, isto sim, como “todos os atos de coerção estatuídos pela ordem jurídica”[21]. Deste modo, a sanção pode, inclusive, preceder ao ato ilícito, bem como ser uma reação a determinado fato – e não um ato – socialmente indesejado.

A despeito desses fatores, o que mais evidencia a importância dada por Kelsen ao conceito de Sanção é a própria estrutura lógica da norma jurídica por ele esboçada. Com efeito, conforme será visto adiante, o “dever-ser” incide sobre a sanção, de modo que na estrutura da norma jurídica concebida, não há condutas devidas, mas sanções devidas[22]. De fato, as normas apenas são – mundo do “ser” – prescritas na medida em que o ordenamento impõe sanções – na ordem do “dever-ser” – à conduta diametralmente oposta[23].

Estes são os três fundamentos da estrutura da norma jurídica em Kelsen: a) a distinção entre “ser” e “dever-ser”; b) a norma enquanto esquema de interpretação; e c) o elemento da sanção como integrante da norma jurídica. A partir destes, será possível aferir, posteriormente, a existência de elementos essenciais para que a ratio decidendi possa ser considerada – ou equiparada – à norma jurídica no que diz respeito, frise-se, a sua estrutura interna.

Assim, em linhas simples e para resumir o que até então fora dito, quando o conteúdo de determinado fato ou ato – pertencentes, pois, a ordem do “ser” – possui conteúdo assemelhado àquele

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disposto na norma jurídica – ordem do dever-ser –, esta atribuirá um significado objetivo aquele, conferindo uma consequência jurídica específica (sanção) como, por exemplo, uma pena de multa para o descumprimento duma conduta versada como obrigatória.

Diante disso, a estrutura da norma jurídica, nos moldes delineados por Kelsen possui a seguinte fórmula:

Se F, deve ser S.

Onde “F” representa a realização do fato previsto na norma no mundo dos fautos, e “S” a sanção (= efeitos jurídicos) devida. Embora, hodiernamente, outros autores alarguem essa fórmula ao discorrerem sobre Kelsen – por exemplo, Marcos Bernardes de Mello afirma que, em linguagem lógico-formal, a norma, na construção de Kelsen, possui a seguinte estrutura: “Se “F”, então deve ser “P” (norma secundária), se não “P”, então deve ser “S” (norma primária)”[24] – o certo é que o jurista austríaco não vai além daquela fórmula[25].

Isso decorre, como visto, da concepção do Direito como uma ordem coercitiva e, por conseguinte, da integração da sanção como cerne da norma jurídica. Para Kelsen, a norma jurídica desprovida de sanção é “não autônoma”, estando, pois, conexa à outra norma jurídica – desta feita, autônoma – que comine uma Sanção em caso de seu descumprimento. Assim, a estrutura da norma é fundada no descumprimento da conduta prescrita – “F” –, a qual deve ser imputada a sanção – “S”.

Destarte, o não cumprimento de determinada obrigação civil – “F” – acarreta a responsabilidade do devedor por perdas e danos – “S” –, conforme os termos do art. 389 do Código Civil. A conduta prescrita – “CP” –, hermeneuticamente aferida como “a obrigação deve ser paga”[26] decorre da cominação de sanção à conduta contrária e, portanto, proibida – “-CP” –, a qual integra o próprio elemento da ordem do ser “F” de modo negativo. É possível, pois, colocar a norma da seguinte maneira:

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Se F (= -CP), deve ser S.

Hodiernamente, porém, não mais se concebe a sanção como elemento integrante da estrutura da norma jurídica[27]. A doutrina, em sua grande maioria, inclusive os autores “kelseniano”, entendem que o elemento “S” que atua como consequente é, na verdade, qualquer consequência jurídica advinda do preenchimento do comando inserto no corpo do antecedente “F” ou, em outros termos, qualquer efeito jurídico.

Pois bem. Tendo como base a estrutura conferida por Kelsen, vários outros autores também procederam à esquematização lógico-formal da Norma jurídica. De fato, no seio da doutrina brasileira, diversos autores realizam a mesma atividade analítica de reproduzir a norma jurídica em símbolos de lógica formal, dentre eles se destacando Tércio Sampaio Ferraz Jr, o qual considera a norma como um fenômeno comunicativo, complexo, que envolve a vontade que a prescreve, a mensagem prescrita, a qualidade do prescritor, a identificação dos destinatários da norma e suas reações às prescrições normativas[28].

Entende o jurista brasileiro que as normas jurídicas permitem que o operador do direito “compreenda a sociedade normativamente”[29]. Não se trata de reduzir a realidade à norma, mas de utilizar uma lente – normas – para analisá-la[30]. A sociedade, por sua vez, é concebida como um conjunto de interações sociais, expressas por meio de comportamentos – “estar em situação” – transmissores de mensagens[31]. Sob essa perspectiva, portanto, viver em sociedade é transmitir e receber informações, é comunicar-se constantemente.

Sendo uma atividade precipuamente comunicativa, entende o jurista brasileiro que o Direito é uma espécie de veículo de comunicação entre as autoridades responsáveis por emitir normas e seus destinatários. Nesse contexto, a autoridade legislativa ou judiciária atuaria como emissora de mensagens normativas, e os

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jurisdicionados como receptores, com todas as implicações decorrentes do ato de comunicar-se.

Neste ponto, Tércio salienta que a atividade comunicativa vem sempre acompanhada de três características[32]: a) complexidade; b) seletividade e c) contingência. A complexidade decorre do fato de que o número de comportamentos possíveis do receptor é muito maior que o comportamento selecionado – a decisão prescreve a conduta “X”, mas o destinatário pode se comportar de maneira “Xy”. Seletividade, por outro lado, desponta como a escolha realizada pelo emissor, ao emitir determinada mensagem “X”, do comportamento do receptor – ao exarar um comando mandamental, o magistrado seleciona determinado comportamento de seu destinatário: o cumprimento integral da decisão prolatada. Por fim, a contingência é a característica decorrente da possiblidade de o comportamento do receptor não ocorrer nos moldes selecionados pelo emissor – o devedor de alimentos pode não cumprir a ordem exarada pelo magistrado.

Observar-se, neste ponto, que a seletividade é uma consequência natural do ato de comunicar-se, de emitir mensagens. Por outro lado, a contingência decorre da complexidade, haja vista que a possibilidade daquele comportamento específico “x”, selecionado pelo emissor, venha a efetivamente ocorrer é sobremaneira pequena, acaso comparada com a quantidade de comportamentos possíveis por parte do receptor, do que resulta a alta possibilidade das expectativas do emissor serem constantemente frustrada.

Acontece que a alta carga de complexidade e, por conseguinte, a alta contingência da comunicação tornaria a vida em sociedade impossível. Assim, são criados “mecanismos” capazes de fortalecer a seletividade – dupla seletividade[33]. O conjunto de mecanismos, por sua vez, compõe a estrutura[34]. Por exemplo, quando o magistrado determina o cumprimento de determinado despacho à secretaria, o comportamento selecionado – cumpra-se – é reforçado pelo mecanismo hierárquico das regras de organização judiciária,

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bem como pelas sanções administrativas advindas de eventual descumprimento.

Nesse contexto comunicativo inerente à vida em sociedade, as normas jurídicas surgem, exatamente, como mecanismos de controle, cujo objetivo consiste em conter a contingência típica da convivência em sociedade, garantindo a seletividade de certos emissores – órgãos competentes para “dizer o direito” – frente a possibilidades de atuação de certos receptores – os jurisdicionados. Quando relacionadas, dispostas entre si e sistematizadas, as normas jurídicas compõem uma estrutura maior, o ordenamento jurídico.

Por outro lado, observa-se que as mensagens ocorrem em dois níveis[35]: a) o nível do relato e b) o nível do cometimento. O relato constitui na mensagem emanada “pelo” sujeito, ao passo que o cometimento é a mensagem que emana “do” sujeito[36]. A diferença é sutil, o relato constitui no conteúdo da mensagem transmitida, ao passo que o cometimento determina a relação – de subordinação ou coordenação – comunicada[37].

Diante desta visão da norma como ato comunicativo, como mensagem, Tércio concebe a estrutura da norma jurídica em moldes intersubjetivos, onde “A” constitui a autoridade emissora do comando normativo, “S” o destinatário da referida ordem, “F” o cometimento atinente à mensagem, e “R” o relato conteúdo da mensagem emanada. Deste modo, a estrutura da norma jurídica pode ser concebida, além dos moldes kelsenianos – uma não exclui a outra – conforme o seguinte esquema[38]:

Emissor (A) à Cometimento (F) / Relato (R) à Receptor (S)

O grande mérito do jurista brasileiro é “puxar” os utentes da língua para a estrutura da Norma Jurídica. Tradicionalmente, a ciência do direito se divide em analítica, responsável pelo estudo de aspectos sintáticos – relação dos signos entre si –, hermenêutica, cuja tarefar é analisar características semânticas – relação dos signos com o seu significado – e argumentação, a qual possui o

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trabalho de estudar o ângulo pragmático – relação dos signos com seus usuários. Ao trazer os utentes dos signos para a estrutura da norma jurídica, Tércio Sampaio rompe com esta tradição, trazendo aspectos pragmáticos à analítica, sem olvidar as necessidades sintáticas e semânticas atinentes à estrutura da norma.

Feitos esses delineamentos, destaca-se que uma das premissas deste trabalho é a ideia de que a definição de ratiodecidendi pode ser equiparada a norma jurídica, em virtude de possuírem a mesma estrutura interna. Tal constatação aproximar as tradições do Common Law e do Civil Law, permitindo uma análise teórica aprofundada dos precedentes judiciais como fonte do direito, além das barreiras de direito positivo existentes entre a tradição continental e anglo-saxônica.

1.2 A CONTEMPORÂNEA HERMENÊUTICA JURÍDICA. A

DIFERENÇA ENTRE TEXTO E NORMA.

Embora, conforme visto anteriormente, somente a partir de Kelsen o Direito tenha passado a ser visto como uma ordem coercitiva, tendo o jurista, inclusive, concebido a sanção como elemento integrante da estrutura da norma jurídica, é certo que o Estado, em si, já era concebido por Marx Webber com o único e legítimo detentor do “monopólio da força física”[39]. Acontece que, com o alvorecer do normativismo Kelseniano, o Estado passou, também, a ser o único legitimado a dizer o direito de forma vinculante, no esquema concebido por Kelsen como “Interpretação autêntica”.

Diante disso, têm-se um contexto temerário: aquele que realiza a atividade jurisdicional, quer dizer, o ato de dizer o direito é, também, o único legitimado a utilizar-se da violência. Se o Estado detém a força e diz o direito de forma “vinculante”, como garantir que esta atividade não se resumirá em arbítrio? Ou, caso assim aconteça, de que forma legitimá-la? Em outros termos, como conciliar a hipertrofia estatal com legitimidade democrática?

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Nesse contexto, avulta a importância da Teoria da Argumentação Jurídica, enquanto tentativa teórica de legitimar a atividade jurisdicional. Esta, com efeito, sempre teve como escopo a problemática de justificar a atividade jurisdicional, mormente quando os intérpretes-aplicadores do direito positivo não são eleitos de acordo com as regras atinentes ao processo democrático. Inicialmente, a Argumentação Jurídica legitimou a atividade decisória a partir da ideia “montesqueniana” de que o magistrado constitui, tão somente, a “boca da lei” e, portanto, a aplicação do direito restaria legitimada, indiretamente, por meio da atividade legislativa, representada por um órgão representante do povo.

Todavia, logo se percebeu que os magistrados costumavam conferir soluções diversas a casos idênticos, a despeito da suposta “objetividade” conferida pelo texto da Lei. Este anacronismo – pontos de partidas objetivos que desembocam em resultados subjetivos; uma atividade bitolada por um ponto de partida, mas que resulta em infinitos resultados –, denominado por Tércio de “Desafio Kelseniano”[40], foi atribuído à ausência de método por parte dos magistrados.

Neste contexto, exsurge a Hermenêutica Jurídica como um ramo sutilmente diferente da Argumentação. Com efeito, embora ambas se preocupem com a legitimação do discurso jurídico, é certo que a Teoria da Argumentação objetiva conferir racionalidade ao processo de tomada de decisões judiciais, enquanto a Hermenêutica jurídica visa, ao menos incialmente, à construção de um método capaz de eliminar a subjetividade na aplicação da lei, quer dizer, de balizar o intérprete, retirar o caráter volitivo da interpretação.

Com este intento, Savigny elencou os seguintes métodos interpretativos que deveriam ser aplicados conjuntamente para aferir o sentido das normas jurídicas: gramatical, lógico, sistemático, histórico e sociológico. A utilização destes métodos objetivaria, portanto, que o intérprete-aplicador da lei encontrasse a única solução correta, através da extração do verdadeiro sentido dos

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conteúdos normativos. Fazia-se, pois, a distinção entre a lei e o seu espírito, aferível através do método.

Em um segundo momento, todavia, a hermenêutica se aproxima da argumentação jurídica, pois não mais visa conferir um método capaz de encontrar o “verdadeiro sentido da norma”, mas em fornecer um método interpretativo capaz de construir a norma jurídica de forma “otimizada”, em consonância com a ordem constitucional vigente, com a realidade social subjacente e, também, com vistas à manutenção e efetividade do Estado Democrático de Direito.

Isso decorre, contraditoriamente, em virtude da aceitação das concepções Kelsenianas atinentes à intepretação jurídica. Segundo o jurista austríaco, o objeto da hermenêutica são conteúdos normativos essencialmente plurívocos[41] – haja vista sua natureza linguística – e, por conseguinte, a definição do sentido da norma aplicada constituiria um ato volitivo de seu aplicador[42]; diante da várias interpretações, o magistrado aplica a que mais lhe convém. Essa visão sobre a hermenêutica jurídica levou ao que Tércio Sampaio Ferraz denominou Desafio Kelseniano, in verbis:

Não teria, pois, realmente, nenhum valor racional procurar um fundamento teórico para a atividade metódica da doutrina, quando esta busca e atinge o sentido unívoco das palavras da lei? Seria um contrassenso falar em verdade hermenêutica?

Enfrentar essa questão constitui o que chamaríamos, então, de o desafio Kelseniano[43].

A hermenêutica moderna aceita esse desafio. Aceita, pois, a plurivocidade das palavras e o conteúdo volitivo imanente à interpretação, mas discorda que não haja nada que a hermenêutica possa oferecer para racionalizar o processo de aplicação das normas. Tenta-se, portanto, proporcionar um método capaz de fornecer, diante das circunstâncias concernentes ao caso concreto,

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o sentido mais adequado para aquela situação específica[44], de modo a expurgar o arbítrio judicial atinente ao momento da interpretação.

Nesse contexto, surgem diversos métodos hermenêuticos, tais como: tópico-problemático, hermenêutico-concretizador, integrativo ou científico-espiritual, normativo-estruturante etc. Esses métodos, embora sofram críticas na doutrina por alargarem o subjetivismo e ocasionarem “a quebra e decomposição da juridicidade das Constituições”[45], da qual decorreria “uma legitimidade fácil e desimpedida com que amparar todas as soluções possíveis”[46],tiveram como objetivo, na verdade, balizar, conformar, limitar a atividade jurisdicional, diminuindo a discricionariedade decorrente do caráter volitivo da interpretação.

Dentre os métodos hermenêuticos elencados, avulta relevância o método normativo-estruturante esboçado por Friedrich Müller no decorrer de suas obras “Teoria Estruturante do Direito”, “O Novo Paradigma do Direito”, “Metodologia do Direito Constitucional”, “Métodos de Trabalho do Direito Constitucional”etc. Mediante forte crítica aos aspectos metafísicos e “puristas” do positivismo, Müller estrutura suas concepções sobre a norma com base em dois alicerces fundamentais.

O primeiro diz respeito à noção de círculo hermenêutico, retirada da filosofia de Hans-Georg Gadamer, o qual, com base em Heidegger[47], supera a visão judaico-cristã do homem como um ser desconexo da natureza e, por conseguinte, concebe-o como um ser histórico – “ser-no-mundo” (dasein) –, cuja “racionalidade” resulta de fatores sociais, históricos, políticos, morais, entre outros, os quais embasam sua existência e permeiam todas as suas atividades.

Nesta visão de mundo, a compreensão é possibilitada por uma carga subjetiva anterior – Pré-compreensão –, a qual, tradicionalmente, era concebida como algo a ser evitado, pois entendida como empecilho a um conhecimento objetivo e neutro[48].

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Todavia, evitá-la é, antes de tudo, negar historicidade ao homem, endeusá-lo ao ponto torná-lo universal e atemporal. Ademais, a noção de círculo hermenêutico não muda o foco do conhecimento do “polo” objetivo para o subjetivo, mas, isto sim, esvazia e supera tal distinção – subjetivo/objetivo –, pois a união do homem com o mundo no qual vive (“ser-no-mundo”) inutiliza a necessidade de separar o que está “dentro” – a carga valorativa subjetiva – daquilo que está “fora” – a “realidade objetiva”[49].

Diante disso, a interpretação trasmudar-se em um ato eminentemente histórico, situacional, contingente, em que a carga subjetiva representa não um empecilho, mas condição inexorável à compreensão[50]. Quer dizer, o ato de interpretar, enquanto realizado por um ser histórico, por um “ser-no-mundo”, está iminentemente ligado à realidade, ao contexto e, evidentemente, as circunstâncias históricas vivenciadas naquele momento existencial do intérprete.

Esta concepção do ser humano como um ser histórico é, na verdade, decorrente da mudança de pensamento iniciada com os poetas românticos – Goethe, Schiller, Hölderlin – e revolucionários franceses[51] – Marat, Danton, Robespierre. Estes perceberam que as “instituições sociais são forjadas pelo homem e podem ser trocadas quase que da noite para o dia, ao passo que aqueles conceberam a arte não como imitação, mas como criação do artista”[52]. Esta visão alargou-se e, progressivamente, as instituições sociais – tal como o Direito – foram concebidas como eminentemente humanas, forjadas pelo homem, assim como a sua história, na visão moderna, passou a ser vista como um processo feito exclusivamente pela experiência humana[53].

A visão do homem como um ser histórico leva ao segundo ponto chave para entender a teoria da norma estruturada por Müller – o pensamento tópico. A ressureição da tópica operada por Viehweg[54] abriu espaço para que Müller concebesse a atividade de concretização-interpretação da norma de modo eminentemente problemático. Ou seja, possibilita-se que os casos concretos

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trazidos a crivo do poder judiciário sejam, senão o cerne, um dos pontos centrais do processo de concretização.

A ênfase no problema, em contraposição ao primado do pensamento sistemático positivista, permite a flexibilidade da ordem jurídica perante as mudanças sociais, adequando a ordem jurídica a necessidade de seus usuários. Concebe-se, pois, o Direito de forma “alopoietica”, sendo o “problema” a chave para a contínua reconstrução do direito através do chamado “processo de concretização”[55]. Possibilita, portanto, a inserção do texto normativo no contexto situacional no qual se encontra o intérprete, permitindo a maleabilidade necessária às ordens constitucionais, muitas vezes ausente no formalismo positivista.

Ademais, tendo em vista que, conforme será observado adiante, a norma jurídica apenas surge após a concretização, e esta somente ocorre perante um problema específico, uma situação fática a ser decida por meio da atividade jurisdicional, o pensamento tópico surge como uma necessidade da atividade interpretativa e da correta compreensão da ordem normativa. Possibilita, pois, a junção entre o “Direito” e “Realidade”, anteriormente separados pelo positivismo[56]. Nas palavras de Müller, “o afastamento da doutrina aplicacionista do positivismo em benefício do caráter constitutivo da interpretação (ou da concretização) combina o pensamento tópico com o pensamento metodológico”[57].

Trazendo estas noções – círculo hermenêutico, pré-compreensões, o Direito como construção humana, o pensamento tópico – ao campo da teoria da norma jurídica, Friedrich Müller percebe algo, diríamos, lógico: a norma jurídica se dirige a uma realidade específica, existencial, momentânea, e esta mesma realidade integra a própria estrutura da norma aplicada, pois a interpretação do aplicador perante o caso concreto vem acompanhada – querendo ou não – de suas pré-compreensões, das “marcas cegas”, das contingências particulares que fazem de cada ser humano um “eu”[58]. Isto, todavia, não é algo a ser evitado pela ciência do direito, pois permite a “concepção muito mais rica e

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fecunda, muito mais aderente à práxis e às subjacências sociais do que as próprias direções antecedentes do sociologismo jurídico tradicional”[59].

Isto significa que a distinção entre “Direito” e “Realidade”, calcada pela distinção Kantiana entre “ser” e “dever-se”, também se desfaz, abrindo espaço para que a realidade seja concebida de forma normativa e não como um elemento sociológico a ser extirpado pela pureza do positivismo Kelseniano. Neste sentido:

A premissa de um dos erros mais fundamentais do positivismo na ciência jurídica, a compreensão e o tratamento da norma jurídica como algo que repousa em si e preexiste, é a separação da norma e dos fatos, do direito e da realidade. Nesse tocante, não queremos cometer também aqui o erro de generalizar a pletora dos diferentes tipos de prescrições legais na “única” norma jurídica, para depois derivar inferências desseabstractum preconcebido[60].

Diante disso, a Norma Jurídica, para Müller, não é algo “dado”, mas “criado” pelo intérprete no momento de concretização – interpretação – do texto normativo. Entender a Norma Jurídica como algo “dado”, confundindo-a com o texto da lei, implica em abandonar a natureza histórica do homem através de distinções apriorísticas entre “ser” e “dever-ser” e, por conseguinte, ao assim proceder, a Ciência do Direito trasmudar-se, segundo Müller, numa “metafísica mal feita”[61].

Como consequência de suas premissas – pensamento tópico e pré-compreensões, Müller deixa bem claro a distinção entre texto normativo e norma. Essa diferença concebida pelo jurista alemão diverge daquela tradicionalmente formulada entre “Lei” e “Direito”, pois, diferentemente desta, vai além do texto legal, mas não além da normatividade[62] – devendo ser esta compreendida como a aplicação-concretização da norma enquanto processo estruturado,

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concebido nos termos da Teoria Material da constituição lastreada nas obras de Viehweg e Smend, e adotada por Müller[63].

O texto normativo – letra da lei –, portanto, surge como mero ponto de partida – a ponta do Iceberg, em já consagrada expressão doutrinária[64] –, agora conciliado com a realidade positivada e circundante[65]. Todavia, não se escapa da normatividade necessária ao racional processo de interpretação-concretização da norma, pois, embora abarque uma pequena parte da estrutura da norma jurídica, o texto constitui seu núcleo irredutível e imprescindível. Consequentemente, a realidade subjacente, embora integre a maior parte da norma jurídica, é reconhecida por Müller “em moldes jurídicos e presa a esses moldes”[66].

A Norma jurídica, por sua vez, é o produto final, é o resultado do processo de concretização-interpretação, formado tão somente após o intérprete-concretizador analisar os elementos linguísticos dispostos no texto normativo, extraindo o “programa da norma”, e somar a esta “extração” os elementos fáticos circundantes ao caso concreto trazido a juízo, bem como de acordo com o contexto histórico-social relativo ao momento da decisão, correspondentes ao “âmbito da norma”.

De modo mais claro, o “intérprete-concretizador” cria a Norma Jurídica a partir da junção entre o texto, “programa da norma” – obtido através da análise dos elementos linguísticos contidos no texto normativo –, e o “âmbito da norma” – correspondente aos elementos fáticos, históricos e sociais circundantes. Justamente por tal razão, por conceber a norma como criação do intérprete, assevera Müller que “a norma não existe, não e ‘aplicável’. Ela é produzida apenas no processo de concretização”[67].

A concepção exposta por Müller, no sentido de que a norma é criada pelo intérprete a partir do cotejo do texto com a realidade, encontra relativa similitude na doutrina brasileira. Paulo de Barros Carvalho[68] ver o Direito em quatro planos – S1, S2, S3, S4. O primeiro plano – plano da expressão –, assemelha-se ao texto

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normativo aludido por Müller, e diz respeito a literalidade do texto, o segundo – plano das significações – à atividade interpretativa realizada perante os signos linguísticos componentes do texto normativo, o terceiro – plano de criação das normas jurídicas –, por sua vez, diz respeito ao momento de construção da norma jurídica, o quarto e último – metalinguagem – à estrutura das relações das normas entre si, construídas no terceiro plano[69].

Observar-se, portanto, que tal como o Müller, o jurista brasileiro entende pela distinção entre texto e norma. Sendo o “plano da expressão”(S1) um pressuposto inafastável à atividade interpretativa (S2), da qual resulta a norma jurídica (S3), a ser estudada, analisada e sistematizada pela ciência do direito enquanto metalinguagem do direito positivo (S4). Neste sentido “O texto consiste num conjunto de palavras que formam os enunciados prescritivos; já a norma jurídica é o produto da sua interpretação. Finda a interpretação, surge a norma jurídica. Impossível pensar em norma sem prévia atividade interpretativa”[70].

CONCLUSÃO

Pois bem. Se, por um lado, a estrutura da norma jurídica exposta no tópico anterior vai nos permitir considerar/equiparar aratio decidendi à norma jurídica, superando barreiras de direito positivo. A distinção aqui exposta entre texto e norma, bem como algumas considerações relativas à interpretação, possibilitará argumentar a favor das ratio decidendi disposta nos julgados dos tribunais superiores como texto normativo e, por conseguinte, como fonte do Direito. As noções apresentadas são, pois, imprescindíveis a qualquer debate sobre o tema.

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[2] RORTY, Richard. Verdade e Progresso. Trad. Denise R. Sales. Barueri: Manole, 2005, p. 132.

[3] RORTY, Richard. Verdade e Progresso. Trad. Denise R. Sales. Barueri: Manole, 2005, p. 211.

[4] RORTY, Richard. Consequências do pragmatismo.Lisboa: Piaget, 1999, p. 45.

[5] REALE, Giovanni. História da filosofia: Do Romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991, p. 297.

[6] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 73.

[7] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 1.

[8] Idem, ibidem.

[9] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 13 et seq.

[10]KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 86 et seq.

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[11] Idem, ibidem, p. 2.

[12] Idem, ibidem, p. 7.

[13] Idem, ibidem, p. 4.

[14] Idem, ibidem.

[15] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 73.

[16] KELSEN, Hans. Op. Cit., p. 7.

[17] Idem, ibidem, p. 29.

[18] BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi, Edsonbini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006, p. 156.

[19] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 86 et seq.

[20] Idem, ibidem, p.59 et seq.

[21] Idem, ibidem, p. 45.

[22] Idem, ibidem.

[23] Idem, ibidem, p. 46.

[24] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 34.

[25] KELSEN, Hans. Op. Cit., p. 87.

[26] MELLO, Marcos Bernardes de. Op. Cit., p. 34.

[27] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 73.

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[28] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 74.

[29] Idem, ibidem, p. 76.

[30] Idem, ibidem.

[31] Idem, ibidem.

[32] Idem, ibidem, p. 77.

[33] Idem, ibidem, p. 75.

[34] Idem, ibidem.

[35] Idem, ibidem.

[36] Idem, ibidem, p. 76.

[37] Idem, ibidem.

[38] Idem, ibidem, p. 163.

[39] WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 37.

[40] FERRAZ, Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 230.

[41] Idem, ibidem, p. 229.

[42] Idem, ibidem.

[43] Idem, ibidem, p. 230.

[44] CATÃO, Adrualdo de Lima. Decisão jurídica e racionalidade. Maceió: EDUFAL, 2007, p. 40.

[45] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 501.

[46] Idem, ibidem.

[47] CATÃO, Adrualdo de Lima. Op. Cit., p. 52.

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[48] Idem, ibidem.

[49] RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Lisboa: Dom quixote, 1988, p. 266.

[50] CATÃO, Adrualdo de Lima. Op. Cit., p. 52.

[51] RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins, 2007, p. 25.

[52] Idem, ibidem.

[53] ARENDT apud TÉRCIO, Sampaio Ferraz. Op. Cit., p. 53.

[54] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 518.

[55] Idem, ibidem.

[56] Idem, ibidem, p. 6.

[57] MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Trad. Peter Naumann, Euridez Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 81.

[58] RORTY, Richard. Op. Cit., p. 60.

[59] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 513.

[60] MÜLLER, Friedrich. Op. Cit., p. 19.

[61] Idem, ibidem, p. 20.

[62] Idem, ibidem, p. 192.

[63] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 512 et seq.

[64] MÜLLER, Friedrich. Metodologia de direito constitucional. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 54.

[65] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 501.

[66] Idem, ibidem, p. 524.

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[67] MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Trad. Peter Naumann, Euridez Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 80.

[68] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 57 et seq.

[69] IVO, Gabriel. Norma Jurídica: produção e controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. “XXXVI” et seq.

[70] Idem, ibidem, p. “XXXVIII”.

 

   

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EMENDAS CONSTITUCIONAIS E DIREITO ADQUIRIDO

JÚLIA THIEBAUT SACRAMENTO: Advogada. Pós-graduada em Direito Administrativo, pela Universidade Cândido Mendes (2014 - 2015). Pós-graduada em Direito Constitucional, pela Universidade Cândido Mendes (2013 - 2014). Aprovada no concurso de Advogado-Geral da União (2015).

RESUMO: O presente artigo visa tratar da problemática das emendas constitucionais que surgem em contrariedade a direitos já adquiridos pelos cidadãos e incorporados à sua esfera jurídica. Trata-se de tema complexo que envolve, de um lado, o dever de se preservar a segurança jurídica dos cidadãos e, de outro, a necessidade de se permitir que o constituinte derivado seja apto a realizar transformações evolutivas na sociedade.

Palavras-chave: Direito adquirido. Cláusula pétrea. Emendas Constitucionais. Limites ao Poder de Reforma.

1. INTRODUÇÃO

Ainda hoje permanece atual a controvérsia acerca da aplicabilidade ou não da garantia constitucional do direito adquirido em face do advento de nova emenda constitucional. À luz da ordem constitucional anterior, o tema não apresentava maiores divergências e, durante muitos anos, o Supremo Tribunal Federal, em diversos julgados, assentou que a garantia atualmente prevista no art. 5º, inciso XXXVI, da CRFB só protegia o direito adquirido em face de leis infraconstitucionais.

Essa concepção, entretanto, deixou de prevalecer no contexto da atual Constituição da República, de modo que existe, hoje, na doutrina, sensível divergência acerca da real abrangência da

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garantia fundamental do direito adquirido. Isto é, discute-se se os direitos adquiridos encontram proteção mesmo diante de novas normas constitucionais ou se a garantia se aplica apenas diante de novas leis infraconstitucionais.

O presente trabalho visa expor os argumentos a favor e contra à proteção do direito adquirido em face de novas emendas à Constituição, bem como analisar a jurisprudência da Corte Suprema acerca do assunto. Importante compreender que se trata de tema delicado e complexo, demandando, na maior parte das vezes, uma análise casuística para a solução do problema. É como vem atuando o Supremo Tribunal Federal, que ainda não possui uma posição consolidada sobre o tema.

2. O ÂMBITO DE PROTEÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL DO DIREITO ADQUIRIDO

Por muitos anos, prevaleceu no âmbito da Corte Suprema a inoponibilidade do direito adquirido face à nova Constituição ou a emendas constitucionais. Ocorre que, com o advento da Constituição de 1988 e a introdução dos direitos e garantias individuais no rol das cláusulas pétreas, foi se fortalecendo, na doutrina, o entendimento de que não poderia uma emenda constitucional violar um direito adquirido.

Isso porque o poder de emenda à Constituição é subordinado aos limites materiais impostos pelo constituinte originário, que, por sua vez, previu no art. 60, §4º, IV, os direitos e garantias individuais – e, dentre eles, o direito adquirido – como cláusula pétrea.

Dessarte, o direito adquirido, assim como o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CRFB), constituiriam limitações materiais ao poder de reforma[1], de modo que uma emenda constitucional que viesse ferir tais garantias padeceria de vício de inconstitucionalidade.

Vale dizer que, inicialmente, entendeu-se, à luz de uma concepção ortodoxa sobre as cláusulas pétreas, que a

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intangibilidade do direito adquirido conferida pelo art. 60, §4º, IV, da CRFB se limitava a impedir que determinada emenda constitucional viesse a abolir a expressa disposição literal constante do art. 5º, XXXVI, da CRFB (“a lei não prejudicará o direito adquirido”).

Com efeito, a garantia do direito adquirido não estabelecia qualquer óbice a que uma emenda constitucional atingisse direitos subjetivos já adquiridos pelos cidadãos, mas apenas proibiria edição de emendas tendentes a abolir a previsão geral e abstrata do art. 5º, XXXVI, da CRFB.

Essa visão foi sendo paulatinamente abandonada e passou a prevalecer, sob a Constituição Federal de 1988, que a garantia do direito adquirido representa limitação material dirigida às leis e emendas constitucionais, no sentido de impedir que novas normas venham afetar direitos subjetivos já adquiridos pelos cidadãos[2].

Essa concepção tem por base a ideia de que seria absolutamente inócua a previsão do art. 60, §4º, IV, da CRFB, caso tivesse por objetivo proteger o direito adquirido apenas em sua dimensão abstrata. Isso porque, sem se conferir adequada e concreta proteção aos direitos individualmente considerados, o preceito constitucional ficaria totalmente esvaziado e sem qualquer aplicabilidade prática.

Não fosse assim, qual seria a utilidade de uma previsão genérica de proteção ao direito adquirido, se o conteúdo de cada direito adquirido individualmente pudesse ser aleatoriamente suprimido por uma emenda constitucional?

3. O DIREITO ADQUIRIDO NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Embora a doutrina amplamente majoritária entenda ser possível invocar direito adquirido em face de nova emenda constitucional, a questão da vinculação do constituinte derivado aos direitos adquiridos não conta com uma posição consolidada no âmbito da Suprema Corte, tendo em vista que o Supremo Tribunal

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Federal, até o presente momento, nunca se manifestou de forma específica e principal sobre o tema. No entanto, a questão já foi abordada como obter dictum em alguns julgados, tendo o Supremo Tribunal já decidido sobre a existência ou inexistência de direitos adquiridos em face de determinadas emendas constitucionais, que tratam de situações concretas específicas.

Um dos julgados paradigmas que gravita em torno do tema ocorreu na apreciação da ADI 3105-8/DF, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, na qual a CONAMP discutiu a constitucionalidade do dispositivo da Emenda Constitucional nº 41/2003 que determinou a incidência de contribuição previdenciária sobre os proventos dos aposentados. Argumentava a associação que os servidores públicos inativos, bem como aqueles que preencheram os requisitos necessários à aposentadoria, teriam direito adquirido a se aposentar ou permanecer sob o regime jurídico anterior àquele trazido pela EC 41/2003.

Não obstante o caso em tela envolvesse o conflito “emenda constitucional versus direito adquirido”, contava com uma peculiaridade, que acabou por dispensar o enfrentamento da questão da oponibilidade do direito adquirido em face das emendas constitucionais, postergando assim a solução do entrave.

É que no caso da aposentadoria dos inativos, a requerente alegava a existência de direito adquirido à determinada imunidade tributária, isto é, defendia o direito adquirido a não ser tributado, dado o caráter tributário das contribuições previdenciárias. Assim, uma simples premissa construída pelo Supremo Tribunal Federal foi suficiente resolver, de per si, a questão e afastar a discussão da garantia do direito adquirido diante de emendas constitucionais. Trata-se da premissa, consagrada nesse julgado, de que não há direito adquirido a não ser tributado[3].

Ainda na mesma ADI 3105-8, aproveitou a Corte para ratificar a tese – há muito consolidada – de que não há direito adquirido a regime jurídico. Significa que toda e qualquer pretensão concreta no

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sentido da manutenção ou imutabilidade de determinado regime jurídico não prosperará, quando tiver como fundamento o direito adquirido.

Vale destacar, ainda, que no julgado o Ministro Carlos Ayres Brito, tratando especificamente do tema ora debatido, defendeu a impossibilidade de emenda constitucional violar direito adquirido, rebatendo o argumento lógico-gramatical de que apenas leis stricto sensu não poderiam prejudicar o direito adquirido, consoante parece sugerir a literalidade do art. 5º, XXXVI, da CRFB.

Sustentou o referido Ministro que a Constituição não precisaria mencionar expressamente no art. 5º, XXXVI, as emendas constitucionais para que estas devessem respeito ao direito adquirido, pois jamais poderia se exigir que a Constituição indicasse expressamente todas as matérias sobre as quais podem ou não podem recair as emendas. Caso a expressão “leis” tivesse de ser tomada ao pé da letra todas as vezes que fosse mencionada pela Constituição, cairíamos em contradições grotescas. Por exemplo: da previsão constitucional “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II), poderíamos, então, deduzir que ninguém estará obrigado a fazer o que uma emenda constitucional determina, o que não é razoável.

A despeito de o Supremo Tribunal ainda não ter enfrentado a questão de forma direta e precisa, é possível, por meio da análise de alguns de seus julgados, apontar uma diretriz em determinado sentido.

O Ministro Gilmar Mendes[4], em sua obra com Paulo Gustavo Gonet Branco, ressalta que, no julgamento da ADI/MC 2.356 (rel. Min. Ayres Brito, DJe de 19.05.2011), que versava sobre a aplicabilidade do novo regime de precatórios introduzido pela EC nº 30/2000, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a eficácia de diversos dispositivos da emenda, por entendê-los inconstitucionais, tendo em vista que feriam o direito adquirido e a coisa julgada. A mesma conclusão foi alcançada no recente julgamento das ADI

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4357 e 4425, que trataram do regime de precatório introduzido pela EC nº 62/2009.

Já no julgamento do MS 27.565 (rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 22.11.2011), a máxima Corte firmou posição no sentido de que o servidor público não tem direito adquirido a regime anterior de remuneração, mas que a irredutibilidade de vencimentos – modalidade qualificada de direito adquirido – constitui garantia constitucional intangível pelo poder de reforma[5].

Conforme se depreende, a jurisprudência do Supremo Tribunal se apresenta no sentido de proteger determinados direitos adquiridos, bem como alguns outros direitos e garantias individuais, contra certas deliberações do poder constituinte de reforma[6], todavia, não é possível apontar uma posição geral e consolidada da Corte.

4. ARGUMENTOS NO SENTIDO DA INOPONIBILIDADE DO DIREITO ADQUIRIDO ÀS NOVA EMENDAS CONSTITUCIONAIS

Não se poderia deixar de mencionar a existência de respeitável doutrina que apregoa a impossibilidade de se invocar direito adquirido quando do advento de uma emenda constitucional, tese essa que, embora ainda minoritária, conta com expoentes como Joaquim Barbosa, Daniel Sarmento, e outros.

Defendem os referidos juristas que a garantia do direito adquirido não se dirige ao poder constituinte originário ou reformador, mas se trata de direito do cidadão frente ao legislador infraconstitucional, mas o argumento não é literal.

Daniel Sarmento procura analisar a questão sob um enfoque dos propósitos institucionais da Constituição de 1988. Argumenta que a Constituição Federal de 1988 é dirigente, programática e visa assegurar as bases necessárias à construção de uma democracia inclusiva. Isto é, diz respeito a uma Constituição muito mais voltada para transformar do que para conservar, de modo que o princípio democrático, que postula o direito de cada geração de se

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autogovernar, revela-se incompatível com uma interpretação ampliativa das cláusulas pétreas.

No mesmo sentido, o ex-Ministro Joaquim Barbosa, na ADI 3.105-8/DF, outrora mencionada, destacou que, em que pese a importância das cláusulas pétreas – e, entre elas, o direito adquirido – para preservação do núcleo essencial de valores constitucionais, a sua ampliação desmesurada pela via hermenêutica constitui construção intelectual conservadora, antidemocrática, desarrazoada e com propensão oportunista e utilitarista, para fazer abstrair vários outros valores também protegidos pela Constituição.

Sustentou o ex-Ministro que a exegese inflacionária das cláusulas pétreas se mostra antidemocrática porque, em última análise, visa impedir que o povo, por intermédio de seus representantes, promova as reformas desejadas, rumo à eliminação das distorções consagradas em tempos anteriores.

Com efeito, os direitos adquiridos, para tais autores, não representam um limite ao poder constituinte derivado. Tendo-se em conta que a Constituição de 1988 se propõe, essencialmente, a modificar estruturas sociais, não deve o direito adquirido revestir-se de caráter absoluto ou ser posto num pedestal, acima dos demais direitos fundamentais e demais interesses constitucionais, uma vez que o acatamento demasiado de direitos adquiridos consolidados sob a vigência de normas constitucionais ultrapassadas restringe desproporcionalmente o direito de cada geração de construir seu próprio caminho, segundo as necessidades de seu tempo.

5. O DIREITO ADQUIRIDO E O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

Não há como negar, no entanto, a importância que o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada possuem em nosso ordenamento. Tratam-se de interesses constitucionais de relevante valor jurídico cujo fundamento assenta-se na dignidade da pessoa humana.

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Ademais, o direito adquirido nada mais é que manifestação específica do princípio da segurança jurídica, postulado máximo do Estado de Direito. Não foi por outra razão que o constituinte originário fixou limitação material ao poder de reforma, buscando conferir aos direitos adquiridos, juntamente com outros direitos fundamentais, caráter de irrevogabilidade.

Desse modo, parece adequado o entendimento que privilegia o direito adquirido diante das mudanças inseridas por emendas constitucionais. Caso contrário ficariam os cidadãos reféns de alterações promovidas ao bel prazer do constituinte, sujeitando-se a reformas constitucionais precipitadas, ao sabor de conveniências políticas, sem ter qualquer certeza de seus direitos e garantias, vivendo sob forte insegurança jurídica.

Embora haja respeitáveis argumentos a abarcar as duas teses apresentadas, não parece que foi a intenção do constituinte originário permitir que os cidadãos vivessem sob forte insegurança. Ao revés, quando previu no art. 5º, XXXVI, da Constituição a garantia do direito adquirido em face de novas leis – entenda-se:lato sensu – pretendeu afastar qualquer situação de instabilidade jurídica por parte dos jurisdicionados.

6. CONCLUSÃO

A compreensão mais segura sobre a abrangência dos direitos adquiridos é aquela que, ao menos a priori, lhes confere primazia em face das novas emendas constitucionais. No entanto, é preciso ter em mente que, assim como todos direitos fundamentais, os direitos adquiridos não se revestem de caráter absoluto, não podendo, portanto, ser invocados frente a toda e qualquer situação.

Os direitos adquiridos, como valor constitucional que são, devem ser cotejados segundo o critério da ponderação de interesses, de sorte que, em determinadas situações específicas, poderão ser restringidos, desde que isso não aniquile o núcleo essencial da garantia constitucional.

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Haverá sempre que se valorar, no caso concreto, de um lado, o quão intensa é a restrição ao direito adquirido e, de outro lado, o benefício ou a relevância social, política, econômica ou jurídica que aquela modificação trará para a coletividade. É esse o ponto nodal para a solução da questão.

REFERÊNCIAS:

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. ed., rev. São Paulo: Saraiva, 2009

BULOS, Uadi Lammêgo. Cláusulas pétreas e direito adquirido. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/373>. Acesso em: 26 jul. 2016

DANTAS, Ivo. Direito adquirido, emendas constitucionais e controle da constitucionalidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997.

MACHADO, Hugo de Brito. O direito adquirido e a coisa julgada como garantias constitucionais. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 84, n. 714, p. 19-26, abril de 1995

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013

SARMENTO, Daniel. DIREITO ADQUIRIDO, EMENDA CONSTITUCIONAL, DEMOCRACIA E JUSTIÇA SOCIAL. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº12, dezembro/janeiro/fevereiro, 2008. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 29 de julho de 2016.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009

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TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

NOTAS:

[1] Afirma Michel Temer: “sendo a emenda constitucional derivada da atividade constituinte originária, esta lhe impõe limitações” (TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2009).

[2] Neste sentido: José Afonso da Silva (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009) e Ivo Dantas (DANTAS, Ivo. Direito adquirido, emendas constitucionais e controle da constitucionalidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997).

[3] Nesse sentido preleciona Hugo de Brito Machado: “Nada, entretanto, impede que o próprio constituinte, ao fazer a Constituição, ou ao emendá-la, determine que o preceito novo aplica-se a projeções de fatos anteriores, pois a limitação residente no princípio da irretroatividade, mesmo inscrito na Constituição, a ele não se dirige. Nem seria válido o argumento segundo o qual a garantia do direito adquirido constitui um direito fundamental, inatingível por emendas à Constituição, por força de seu art. 60, § 4º, IV. Essa garantia constitucional é uma limitação de poderes do legislador ordinário. O legislador dotado de poder constituinte, mesmo que apenas reformador, ou derivado, a ela não está submetido” (MACHADO, Hugo de Brito. Direito adquirido e coisa julgada como garantias constitucionais. RT 714/19-26).

[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

[5] Em 2013, no segundo AgRg no RE 634.732, julgado em 04.06.2013, o Supremo Tribunal Federal reforçou, novamente, o entendimento de que não existe direito adquirido nem a regime jurídico, nem aos critérios que determinam a composição da remuneração ou dos proventos, desde que assegurada a irredutibilidade dos vencimentos

[6] Registra-se a posição do eminente Ministro Luís Roberto Barroso a fortalecer a posição da Corte no sentido da proteção do direito adquirido em face de emendas constitucionais: “A regra do

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art. 5º, inc. XXXVI, dirige-se, primariamente, ao legislador, e, reflexamente, aos órgãos judiciários e administrativos. Seu alcance atinge, também, o constituinte derivado, haja vista que a não retroação, nas hipóteses constitucionais, configura direito individual, que, como tal, é protegido pelas limitações materiais do art. 60, §4º, IV” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. ed., rev. São Paulo: Saraiva, 2009).

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UMA NOTÍCIA HISTÓRICA SOBRE A BOA-FÉ NO DIREITO PRIVADO

ARTHUR CRISTÓVÃO PRADO: formado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com estágio na Universidade Livre de Berlim. Já fez pesquisa nas áreas de teoria geral do direito privado e filosofia do direito. Atualmente é escrevente técnico judiciário em gabinete de desembargador na Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Resumo: o presente artigo tem o objetivo de traçar um panorama, sem qualquer pretensão de exaurir o assunto, da evolução histórica da boa-fé nos sistemas de direito privado, especialmente aqueles de ordenamentos jurídicos do civil law.

Palavras-chave: história do direito; direito privado; direito civil; boa-fé; direito romano; direito germânico; direito canônico.

INTRODUÇÃO

O presente artigo propõe-se a traçar um panorama histórico da boa-fé no direito privado. Para tanto, porém, julga-se imprescindível precisar a noção de boa-fé. Faremos, primeiramente, uma discussão a respeito da terminologia do conceito e explicaremos as diferenças entre boa-fé objetiva e sua variante subjetiva. Em seguida, exporemos uma investigação histórica a respeito de suas origens e seus usos em diversos ordenamentos jurídicos. Por fim, apresentaremos nossas conclusões quanto às raízes que influenciam-no em nosso país, visto que acreditamos que este estudo histórico pode trazer ferramentas para o intérprete do direito que procurar aplicar melhor o instituto.

DESENVOLVIMENTO

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A primeira precisão terminológica necessária para entender o que é boa-fé consiste em distinguir a boa-fé objetiva de sua variante subjetiva. Trata-se de uma dicotomia clássica que passa por um processo de erosão, como será explicado.

O primeiro desses significados, o da boa-fé subjetiva, refere-se a um estado de consciência do sujeito, caracterizado pela convicção de agir de acordo com o direito[1]. É, em outras palavras, a ignorância da ilicitude do próprio comportamento. Não se pode dizer que a boa-fé subjetiva tenha caráter meramente fático, pois a concepção de certos tipos de ignorância como "justificáveis" pressupõe uma forma de valoração ética e jurídica[2]. Sua utilização primordial se dá em matéria possessória, constituindo um dos requisitos para o usucapião. Sua origem é o direito canônico[3].

A boa-fé objetiva, por outro lado, de origem fundamentalmente germânica, é aquela empregada no §242 do BGB (Bürgerliches Gesetzbuch, o código civil alemão, que entra em vigência em 1900). Ela é geralmente entendida com um modelo de conduta que leva em conta as condições do caso[4]. Nenhuma relação tem a boa-fé objetiva com a intenção do sujeito. Ela é verificada objetivamente, com base na lealdade, probidade e atenção às necessidades de uma parte pela outra em determinada relação jurídica[5]. É aí que toda a complexidade da boa-fé se manifesta, de tal modo que sua riqueza semântica não possa ser expressa de uma única forma. Assim, à noção originária do direito germânico, agregam-se outras. Uma delas é a que liga a boa-fé à função econômico-social do negócio. Nessa acepção, a boa-fé objetiva adota um caráter notadamente vago e impreciso, mas é justamente essa imprecisão que, como se viu, permite ao aplicador preencher a norma de acordo com as necessidades do caso concreto[6].

Uma distinção antiga, de Von Thur, circunscrevia o domínio da boa-fé subjetiva ao campo dos direitos reais (sobretudo a posse) e o da o da objetiva ao dos atos jurídicos e contratos. Essa distinção não procede, já que se verifica a existência de situações em que a

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boa-fé, entendida objetivamente, incide além do campo do direito das obrigações[7].

Trata-se, então, de dois conceitos diferentes, que, em português[8], recebem a mesma denominação. Descontada a coincidência terminológica e alguns pontos de convergência em sua origem, porém, não há que se confundir boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva, muito embora concepções mais modernas tendam a dissolver as fronteiras fixas dessa separação, ora concebendo noções tripartitas de boa-fé, ora unitárias[9], ora, por fim, defendendo intersecções entre elas[10]. BETTI, a título de exemplo, identifica quatro sentidos de "boa-fé" no Código Italiano: (i) como um "posicionamento" (atteggiamento) da consciência, como no caso do casamento putativo (art. 128); (ii) como crença na aparência de uma relação, legitimando a contraparte a acreditar possuir um direito, como no caso do adquirente de boa-fé nos títulos de crédito (arts. 1993 e 1994); (iii) como lealdade na condução das relações jurídicas, como nos arts. 1337 e 1338, que abordam a responsabilidade pré-contratual; e (iv) como critério hermenêutico e de conduta, por meio do qual devem ser cumpridas as obrigações (art. 1366, por exemplo)[11].

A compreensão de um conceito impreciso e multifacetado como a boa-fé depende de uma investigação histórica a respeito de suas origens e seus usos em diversos ordenamentos jurídicos[12].

A boa-fé é conhecida do direito romano pelo menos desde o surgimento da instituição da clientela[13] e figura no âmago da cultura romana[14], mas passou, ao longo de seu desenvolvimento, por um processo de alargamento de seu significado inicial, chegando a compreender institutos muito diversos. Sua definição clássica é a de cumprir a palavra dada: fit quod dicitur[15]. Mais do que um conceito meramente jurídico, ético ou mesmo filosófico, a fides assumia a feição de uma divindade, a deusa Fides, que era invocada quando da celebração de negócios jurídicos[16].

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Na clientela, fides significava o poder do patrão, o dever docliens (fides-poder) e a promessa de proteção deste por aquele (fides-promessa). Este último sentido conheceria desdobramentos diversos, alcançando o significado de proteção à palavra dada. Sua conotação, nesse estágio, ainda não é jurídica, mas moral (ou talvez fosse melhor dizer consuetudinária), por ter origem . É a fides-promessa que vem a ter o maior impacto sobre o direito civil.

Já em matéria contratual, a fides aplica-se, em princípio, aos contratos internacionais, constituindo o núcleo sobre o qual se constroem, em âmbito externo, pactos igualitários. Tal era o caso dos acordos celebrados, por exemplo, entre Cartago e Roma. Esse tipo de contrato não podia ser garantido pela autoridade do Estado, já que suas partes eram, elas próprias, nações independentes, então sua garantia era a boa-fé[17]. Sua função, portanto, é a de garantia à palavra dada. Posteriormente, essa função da fides passa a aplicar-se aos chamados contratos consensuais, cuja natureza era eminentemente avessa ao formalismo[18]. Acrescida do qualificador "bona", ela passa a significar a adstrição ao espírito (e não meramente a letra) daquilo que foi prometido[19]. A boa-féatua, assim, como uma espécie de agente extra-jurídico de vinculação dos particulares, que cumprem o acordado não por conta da possibilidade de coerção estatal, mas pela palavra dada[20]. Em momentos posteriores do desenvolvimento dos acordos internacionais, porém, essa espécie de pacto perde seu caráter de tratado, vindo a ser caracterizado pela completa capitulação do adversário. Também a fides, assim, incorpora esse aspecto impositivo.[21]

A bona fides aparece, ainda, como expediente jurídico, nos bonae fidei iudicia, que eram ações em que o juiz decidiria com base na boa-fé, dando-lhe um maior espaço decisório e uma menor adstrição ao formalismo. Elas tinham número limitado, incluindoiudicia empti venditi, legati conducti, negotiorum gestorum, mandatietc[22]. A intentio (a fundamentação do pedido do litigante) do demandante, nesses casos, poderia basear-se

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na fides, e não nalex[23]. O significado de boa-fé, aqui, é jurídico e preciso, designando um expediente técnico, e não moral. Trata-se, cabe frisar, da boa-fé objetiva.

Não parece acertado dizer que a fórmula do oportet ex bona fide, empregada nos bonae fidei judicia, remeteria o juiz para fatores extra-jurídicos, por pelo menos dois motivos: em primeiro lugar, o direito romano, em geral, era avesso a tais remissões; em segundo, porque é possível identificar concretizações precisas dessa fórmula. Pode-se enumerar algumas: sua aplicabilidade tanto a cidadãos romanos quanto a peregrinos; a admissibilidade da exceptio doli e das exceptiones pacti; a possibilidade de compensação dos débitos e créditos entre autor e réu. Isso implicava a possibilidade de o juiz decidir com base na substancialidade da questão, e não apenas na forma dos atos processuais. De fato, a fórmula do oportet ex bona fide pode ser entendida como uma instrução destinada ao juiz para que leve em conta a materialidade da situação ao decidir[24].

No campo dos direitos reais, a boa-fé aparece, em sua acepção subjetiva, como um requisito do usucapião. Trata-se, aqui, da ignorância, por parte do possuidor, de vício na transmissão do negócio real da coisa a ser usucapida. É importante notar que boa-fé é, aqui, um elemento fático, e não jurídico (nem moral, nemético).

Todas essas correntes evolutivas fazem com que a fides chegue à Roma imperial já como um conceito impreciso e de pouca utilidade prática. MENEZES CORDEIRO identifica três mudanças que ocorrem nesse período: a fides perde força significativa, adquirindo significado dependente do contexto; é usada pragmaticamente, sem significado autônomo ou abstrato; e assume significados muito distintos entre a linguagem comum e a jurídica. Sua carga semântica, antes técnica, converte-se, assim, em axiológica ou afetiva. Por isso, a boa-fé romana chega desfigurada à época de Justiniano, em que é editado o Corpus Iuris Civilis: por um lado, ela passa a designar uma série de outros conceitos, como o estado psicológico de ignorância que era requisito do usucapião (difusão

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horizontal); por outro, passa a traduzir princípios jurídicos, como justiça, honestidade e lealdade[25].

As diferenças do exposto até o momento para o que ocorre com o direito germânico começam com a própria língua. Ao contrário do que sucede com o português e o italiano, por exemplo, o alemão tem termos distintos para designar a boa-fé subjetiva e a objetiva. A primeira é denominada guter Glauben; a segunda, Treu und Glauben. Esta fórmula merece especial atenção, e é ela que concede especificidade à boa-fé germânica, frente à bona fidesromana. Ela é composta pelas noções de lealdade, firmeza ou comportamento autêntico (Treu ou Treue) e confiança ou, em velho-alto-alemão, fé (Glauben ou Glaube). Seu significado, ligado às tradições cavalheirescas, designa um modelo de conduta, e é dele que nasce um dos aspectos[26] da boa-fé objetiva como entendida hoje. O modelo assim descrito é aquele que cria as condições para o estabelecimento da confiança, isto é, o cumprimento dos deveres assumidos e a observância dos interesses da contraparte[27].

O terceiro antecedente histórico da boa-fé atual que seráanalisado é a boa-fé canônica. Na Idade Média, ela aparece contraposta à má-fé. Essa acepção reforça a vinculatividade dos pactos, ainda que informais, pois denota também ausência de pecado. Ora, se a mentira é pecado, o não-cumprimento da própria palavra também o é. O reconhecimento da boa-fé canônica, desse modo, reforça e legitima os nuda pacta, acabando por gerar a categoria geral de contratos[28]. Como fica evidente, o significado primordial do termo tem natureza ética, mas isso não significa que ele não tenha um aspecto jurídico. Ao contrário, a boa-fé canônica atua em âmbito obrigacional com o significado de respeitar fielmente o pactuado, evitando, assim, o pecado. Isso leva ao princípio, contrário à regra geral do direito romano, segundo o qual os acordos, ainda quando meramente consensuais, são vinculantes[29]. Mais do que a mera ignorância da boa-fépossessória romana, a boa-fé canônica exige a consciência de se estar agindo corretamente. Isso acentua seu caráter psicológico e subjetivo,

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e é esse aspecto da boa-fé canônica que projetaria seus efeitos até a atualidade[30].

CONCLUSÃO

A boa-fé possui pelo menos três raízes – a romana, a germânica e a canônica – que convergem para preencher o significado que o instituto adquire no ordenamento jurídico pátrio contemporâneo. É justamente dessa origem histórica vária que decorre a imprecisão terminológica que vem sendo objeto de apontamentos pela doutrina que se debruça sobre a boa-fé. Acredita-se que de sua compreensão histórica possam emergir ferramentas para que o intérprete do direito melhor aplique o instituto.

REFERÊNCIAS

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FERREIRA RUBIO, DELIA MATILDE, La buena fe – el principio general en el derecho civil, trad. esp. Madrid, Montecorvo, 1984.

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MARTINS-COSTA, JUDITH, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, pp. 13-544.

__________, Princípios informadores do contrato de compra e venda internacional na Convenção de Viena de 1980, in Revista de Informação Legislativa, n. 126, Brasília, abr.-jun., ano 1995.

MENEZES CORDEIRO, ANTÓNIO, Da boa fé no direito civil, Coimbra, Almedina, 1984.

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MOREIRA ALVES, JOSÉ CARLOS, Direito romano, 14a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2010.

TOMASEVICIUS FILHO, EDUARDO, Informação assimétrica, custos de transação, princípio da boa-fé, Tese – Universidade de São Paulo – Faculdade de Direito, São Paulo, 2007.

NOTAS:

[1] K. FRITZ NUNES, O princípio da boa-fé objetiva e sua incidência na fase negocial: um estudo comparado com a doutrina alemã, in Revista Forense, n. 395, p. 182. .

[2] A. MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil, Coimbra, Almedina, 1984, p. 24.

[3] J. MARTINS-COSTA, Princípios informadores do contrato de compra e venda internacional na Convenção de Viena de 1980, inRevista de Informação Legislativa, n. 126, Brasília, abr.-jun., ano 1995, p. 120. .

[4] Isso, cabe reforçar, se considerarmos a tradição germânica. Na doutrina francesa clássica, por exemplo, a boa-fé objetiva aparece como mero reforço ao pactuado. Cf. K. FRITZ NUNES, O princípio da boa-fé objetiva e sua incidência na fase negocial: um estudo comparado com a doutrina alemã cit., p. 181.

[5] J. MARTINS-COSTA, Princípios informadores do contrato de compra e venda internacional na Convenção de Viena de 1980 cit., pp. 120-121. Nessa acepção, para BIANCA, o termo é sinônimo decorrettezza, ou seja, "retidão". Esta, por sua vez, funcionaria como uma espécie de "molde" ao qual a relação jurídica obrigacional deveria se adequar. O direito, então, corrige essa relação, verificando sua conformidade ao parâmetro da retidão (M. BIANCA,Diritto civile, Milano, Giuffrè, 1993, pp. 86-88).

[6] J. MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 218.

[7] D. M. FERREIRA RUBIO, La buena fe – el principio general en el derecho civil, trad. esp. Madrid, Montecorvo, 1984, p. 88.

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[8] Mas também em outras línguas latinas, incluindo o italiano.

[9] D. M. FERREIRA RUBIO, La buena fe – el principio general en el derecho civil cit., pp. 87-92.

[10] TOMASEVICIUS aponta, por exemplo, para o fato de que a boa-fé objetiva implica, também, proteção da boa-fé subjetiva, uma vez que dela decorre não ser lícito violar a confiança legítima despertada em alguém. Segue, o mesmo autor, apontando diversas divergências doutrinárias a respeito dos limites dessa bipartição.KLUGER, por outro lado, resgata a dicotomia clássica e prefere falar não em novas categorias da boa-fé, mas em "matizes internos" das categorias existentes, identificados pela doutrina. Cf. E. TOMASEVICIUS FILHO, Informação assimétrica, custos de transação, princípio da boa-fé, Tese – Universidade de São Paulo – Faculdade de Direito, São Paulo, 2007, e V. KLUGER, Una mirada hacia atrás: de Roma ala codificación. El recorrido histórico de la buena fe, in L. M. G. CIRDIBERA and V. KLUGER (coord.), Tratado de la Buena Fe en el Derecho, vol. 1, Buenos Aires, La Ley, 2003. pp. 90..

[11] E. BETTI, Teoria generale delle obbligazioni, vol. 1, Milano, Giuffrè, 1953, pp. 69-93. Esta última, mais importante, diferentemente da boa-fé subjetiva, que é mera justificativa de um comportamento, é caracterizada pela "fidatezza, la fedeltà, l'impegno, la capacità di sacrificio, la prontezza nel socorso della controparte e, in sede di trattativa, di formazione del contratto, la lealtà e la veridicità verso essa controparte".

[12] A. MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil cit., p. 18.

[13] J. MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional cit., p. 111.

[14] M. H. D. ROCHA PEREIRA, Estudos de história da cultura clássica, vol. 2, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 320.

[15] F. SCHULZ, Prinzipien des Römischen Rechts, trad. esp. M. ABELLÁN VELASCO, Principios del derecho romano, Madrid, Editorial Civitas, 1990, p. 243. É esssa a definição que aparece em Cícero,A República, IV.7.7: "fides enim nomem ipsum mihi videtur habere, cum fit, quod dicitur".

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[16] V. KLUGER, Una mirada hacia atrás: de Roma ala codificación. El recorrido histórico de la buena fe cit., p. 92.

[17] J. MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional cit., pp. 112-114.

[18] J. C. MOREIRA ALVES, Direito romano, 14a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2010, . MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA, enfatiza o caráter desse aspecto da boa-fé como reforço àquilo que foi estatuído: "é um juramento que compromete ambas as partes na observância de um pacto 'bem firme'." in M. H. D. ROCHA PEREIRA,Estudos de história da cultura clássica, vol. 2, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 322.

[19] J. MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional cit., p. 115. Mais do que a adstrição à palavra, passa a ser, então, aos costumes das pessoas honradas, ao próprio compromisso em relação aos usos do comércio. Cf. F. SCHULZ, Prinzipien des Römischen Rechts cit., p. 248.

[20] Ilustrativo nesse sentido é o caso narrado por Eródoto, também mencionado por BETTI, do comércio de sal pela tribo Tegazza, que consistia em deixar, próximo à fronteira da tribo vizinha, uma fileira de montes do sal, e aguardar que aquela tribo colocasse ao lado montes de ouro. As tribos conferiam se aquilo que foi oferecido pela outra é suficiente e, em caso positivo, levavam consigo a mercadoria comprada. Tudo isso ocorria sem qualquer coerção estatal. In E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridico cit., p. 40.

[21] A. MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil cit., pp. 64-67 e M. H. D. ROCHA PEREIRA, Estudos de história da cultura clássicacit., p. 323.

[22] J. C. MOREIRA ALVES, Direito romano cit., pp. 244-245.

[23] J. MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional cit., p. 120.

[24] A. MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil cit., pp. 81-88 e 100-101.

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[25] A. MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil cit., pp. 68-70 e 128.

[26] MENEZES CORDEIRO aponta para o equívoco que seria considerar que a boa-fé objetiva atual, entendida como princípio orientador do comportamento das pessoas no tráfego jurídico, é mérito da boa-fé germânica. Isso seria ignorar o contributo da boa-fé romana. Antes, reconhece-se na boa-fé germânica um conjunto novo de valores — cortesia, lealdade, consideração das necessidades alheias — que, esse sim, é a grande influência que ela teve sobre o direito moderno. Cf. A. MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil cit., pp. 175-176.

[27] J. MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional cit., pp. 167, 124-126.

[28] J. MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional cit., pp. 128-129 e V. KLUGER, Una mirada hacia atrás: de Roma ala codificación. El recorrido histórico de la buena fe cit., p. 95.

[29] A. MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil cit., p. 153. De fato, como apontado em R. J. VERNENGO, Los principios de la buena fe, in L. M. G. CIRDIBERA and V. KLUGER (coord.), Tratado de la Buena Fe en el Derecho, vol. 1, Buenos Aires, La Ley, 2003. pp. 27., atuar de boa-fé (bonam fidem agere) não é, à primeira vista, mais do que cumprir as obrigações.

[30] A. MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil cit., p. 161.

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O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE APLICADO À SEARA PENAL

ROCKWEEL BARBOSA SILVA: Advogado. Ex-Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado de Goiás.

RESUMO: A atuação legislativa na seara penal foi marcada, ao longo dos séculos, pela forma demasiadamente desproporcional com qual era desenvolvida. Como decorrência disso, as leis fruto desse período deixavam de atendem às finalidades em função das quais foram criadas. Justamente por isso, o princípio da proporcionalidade, primeiramente direcionado à Administração Pública, ganhou papel de destaque dentro do arcabouço jurídico-penal. Através dele, foram criados outros dois subprincípios, quais sejam, a proibição da defesa insuficiente e a proibição de excessos, reflexos do devido processo legal material em sentido positivo e negativo, respectivamente.

Palavras-chave: Legislador penal. Proporcionalidade. Defesa insuficiente. Proibição de excessos. Devido processo legal.

INTRODUÇÃO

No decorrer dos anos, a história nos contou como a atuação do legislador penal fora improfícua. As leis editadas na antiguidade, assim como em boa parte do período moderno, padeciam de desproporcionalidade em relação ao que se esperava delas.

Em função disso, foi necessário que se criassem princípios e regras a respeito a respeito dessa atuação, no sentido de margeá-la em relação aos anseios sociais.

Nessa ordem de ideias, o princípio da proporcionalidade ganhou papel de destaque, vez impõe, ao legislador penal, uma atuação dentre dos limites aceitáveis, do ponto de vista de leis

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razoáveis, que atendam à sua finalidade sem que ferir direitos constitucionalmente garantidos.

Essa mudança de raciocínio se deu, sobretudo em função dos pensadores iluministas do século XIX, que apontaram para a necessidade de regulação da atividade legiferante, que agora também se achava vinculada não somente à lei, mas também aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Com isso, o devido processo legal ganhou novos contornos, avançando do seu estágio formal para o material, este traduzido na proibição da defesa insuficiente e na proibição de excessos, reflexos maiores do princípio da proporcionalidade.

Nesse sentido, no primeiro capitulo busca-se a compreensão histórica do princípio da proporcionalidade, bem como sua evolução ao longe do desenvolvimento das principais sociedades, o que causou sua própria caracterização.

Especificamente sobre o princípio da proporcionalidade propriamente dito, bem como os elementos que caracterizam sua aplicação, a saber, a proporcionalidade em sentido estrito, a adequação e a necessidade, é que o segundo capítulo do presente trabalho se propõe a analisar, sempre fazendo um cotejo com a evolução histórica da comunidade jurídica.

No terceiro capítulo, já entrando no cerne do trabalho, analisar-se-á qual as conseqüências da aplicação ou não do princípio da proporcionalidade na atuação do legislador, bem como será feita uma análise da evolução do devido processo legal, que deixou de ser meramente formal, o que acarretou a criação de outros dois subprincípios, a proibição de excessos e proibição da proteção insuficiente.

Destarte, sobre essa transição e em relação a essa nova definição do devido processo legal é que o presente trabalho se propõe a analisar em breves linhas

1. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

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1.1.Distinção entre razoabilidade e proporcionalidade

Após a análise histórica e filosófica do princípio da proporcionalidade, busca-se, no presente capítulo, a exata compreensão do princípio em tela, levando-se em consideração os seus elementos constitutivos, como a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Antes, contudo, necessário se faz tecer alguns comentários sobre a concepção de razoabilidade.

Deveras, questão interessante, amplamente debatida nos últimos anos, é aquela relacionada ao emprego do termo razoabilidade, uma vez que este costuma ser empregado com certa relação de fungibilidade com o princípio da proporcionalidade (Barroso, 2004).

Conquanto normalmente confundida com o conceito de proporcionalidade, o origem do princípio da razoabilidade remeta ao sistema jurídico anglo-saxão, como corolário do devido processo legal substancial, com raízes na Magna Carta inglesa. Por outro lado, a ideia de proporcionalidade associa-se ao direito germânico, tendo sido incialmente pensado como uma limitação ao Direito Administro (ROQUE, 2011).

No entanto, conforme leciona Barroso (2004, p. 373):

[...] Para os que sustentam a similitude entre os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, malgrado a diversidade de origem e desenvolvimento, um e outro abrigam os mesmos valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos.

Ainda assim, não faltam autores que advogam a distinção entre proporcionalidade e razoabilidade. Nesta linha, a proporcionalidade pressupõe, conforme será demostrado adiante, a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, do meio empregado em relação ao fim que se almeja. Por seu turno, a

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razoabilidade não pressuporia essa relação entre meio e fim, mas tão somente uma faceta negativa (ROQUE, 2011).

De fato, a razoabilidade é conceito que tem um alcance mais do que se poderia imaginar para a proporcionalidade entre meios e fins. Essa última, aliás, apesar de extremamente importante para as ponderações de princípios, tem sido insuficiente para a criação de exceções a regras jurídicas válidas. Restringir a razoabilidade na moldura rígida da proporcionalidade seria um aprisionamento de nenhuma utilidade para a lide jurídica, um verdadeiro empobrecimento do direito (BUSTAMANTE, 2009).

Nesse ínterim, Paulo César Santos Bezerra (2007, p. 230), para quem:

[...] O critério de solução de conflitos e princípios fundamentais tem sido apontado como decorrência da aplicação do princípio da razoabilidade, que alguns chamam, indevidamente, de proporcionalidade. De fato, há uma confusão terminológica quando se chama de maneira indistinta, o princípio da razoabilidade como princípio da proporcionalidade, até por autores de renome como é o caso de Paulo Bonavides. A razoabilidade comporta três elementos: proporcionalidade, necessidade e nexo de causalidade. Assim, é razoável a escolha de um princípio em detrimento de outro que lhe é inconciliável, se for mais proporcional ao caso qual se aplica, se for mais necessário do que outro e se houver mais nexo de causalidade com o caso. Portanto, a proporcionalidade não é razoabilidade e sim, critério de aferição de razoabilidade e de aplicação do princípio como meio de solução de conflito entre dois princípios.

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Percebe-se, então, que não há consenso doutrinário sobre o tema, de modo que para alguns autores os dois princípios se confundem, ao passo que para outros cada um deles tem contornos próprios. No entanto, calha anotar que o Supremo Tribunal Federal trata os dois princípios como sinônimos, a desempenham o mesmo papel dentro do ordenamento jurídico, seja em relação ao controle do administração pública ou mesmo como parâmetro para o exercício do controle de constitucionalidade.

Por outro lado, é indiscutível a fragmentação do princípio da proporcionalidade em três elementos, quais sejam, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito, que serão especificamente analisados a partir de agora.

1.2. Razoabilidade e a relação entre os critérios de diferenciação e as medidas adotadas pelo legislador

Analisou-se, no item anterior, que existe certa controvérsia sobre a relação entre os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Não obstante, estabeleceu-se que, para os fins a que se propõe o presente trabalho, adotar-se-á, na senda de parte da doutrina, a corrente de pensamento que prega a independência científica de cada um dos princípios.

Nesse sentido, analisa-se, no presente tópico, a relação entre que o princípio da proporcionalidade tem com a atuação do legislador.

Com efeito, a razoabilidade pressupõe uma relação viável entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada pelo legislador (ÁVILA, 2008).

Trata-se da razoabilidade como igualdade, ou, mais precisamente, como modo de diferenciação do tratamento dispensado pela lei a certas situações específicas (ZAGREBESLKY, 2009).

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De fato, o postulado constitucional da isonomia, plasmado no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, estabelece um dever de igualdade no tratamento de todos os cidadãos, ressalvados alguns casos extraordinários. Nesse sentido, a razoabilidade funciona como critério para a aferição da violação à igualdade ou justiça formal, compreendendo a escolha de fatores que devem ser considerados durante esse tratamento jurídico especial (THOMAS, 2009).

Não obstante, a razoabilidade continua sendo com conceito indeterminado, de ordem formal, sem conteúdo, portanto, haja vista que apenas nos mostra quais variáveis deverão ser comparadas.

1.3 Da adequação

Certo é que a ideia que orienta a observância das regras de aferição da proporcionalidade é a observância entre os meios empregados e os fins almejados, tem-se que a melhor forma de se traçar as regras é esta relação entre meio e fim. Assim, um meio será considerado adequado quando for julgado apto a alcançar o resultado pretendido, ou quando a utilização desse meio, se não ensejar o alcance do objetivo, ao mesmo fomente a sua concretização (GOMES, 2003).

No entanto, vale anotar que a ideia de adequação não se identifica apenas com a noção de aptidão para alcançar o fim pretendido, uma vez que este pressupõe não apenas esta aptidão, mas, sobretudo o fomento à realização desde fim (AFONSO, 2002).

Em suma, um meio apenas será considerado inadequado, ou inidôneo, quando a sua utilização não possuir o condão de, sequer, fomentar a realização do fim pretendido (MENDES, 2008).

Conclui-se, porém, que a adequação é a aptidão do meio para alcançar ou fomentar o fim pretendido é insuficiente, haja vista que remanesce um amplo espaço de discricionariedade na apreciação desta aptidão. Com efeito, remeter a discussão à esfera da aptidão do meio em relação ao fim não comporta a observância da mínima

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precisão necessária à identificação desta adequação (ROQUE, 2011).

Em função desta colocação, parte da doutrina entendeu por bem criar alguns critérios que ajudam a concretizar a ideia de adequação quando da aplicação prática do princípio da proporcionalidade.

Nesse sentido, Ávila (2008, p. 153), ressalta que três indagações devem ser apresentadas:

[...] (i) o que significa um meio ser adequado à realização de um fim? (ii) como deve ser analisada a relação de adequação? (iii) qual deve ser a intensidade de controle das decisões eu são adotadas pelo Poder Público. Para concluir que no que se refere à primeira indagação, tem-se que apreciar os aspectos da relação entre meio e fim. Quanto à segunda pergunta, necessário se faz aferir as três dimensões em que é possível se manifestar adequado (abstração, particularidade, posteridade). Por último, a terceira pergunta formulada pressupõe a cisão do controle em forte e fraco.

Da mesma obra, extrai-se um exemplo bastante esclarecedor. A escolha pela administração pública, na compra de vacinas para combater uma epidemia pode envolver a comparação entre uma vacina que acaba com todos os sintomas da doença mas que não possui eficácia comprovada para a maioria da população e outra vacina que, não obstante curar apenas os principais efeitos da doença, já teve sua eficácia comprovada em outras ocasiões (ÁVILA, 2008).

Assim, é fácil constatar que somente através de aplicação e fomentação da noção de adequação entre o meio aplicado e o fim almejado é que se conseguirá os melhores resultados concretos.

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1.4 Da necessidade

Conforme a ideia de necessidade, também conhecida como exigibilidade, o meio a ser empregado deve ser o menos gravoso possível entre aqueles aptos para a realização ou fomento do fim pretendido, Sendo certo que o exame da proporcionalidade objetiva limitar a atuação estatal em prol a tutela de direitos do cidadão, é importante ressaltar que a necessidade implica a adoção da medida que menos limite o direito fundamental em aplicação (ROQUE, 2011).

No entanto, a aferição, em concreto, dos interesses em jogo, nem sempre apresenta uma solução simples. De acordo com Alexy (2006, p. 591):

[...] Existem dois principais motivos para a complexidade na definição da restrição a ser implementada no direito fundamental. O primeiro cinge-se ao fato de que a apreciação da necessidade, como regra geral, diz respeito a uma relação meio-fim, por vezes de difícil prognóstico. Nesta seara, avulta de importância a discricionariedade epistêmica, no exame da adequação e necessidade da medida a ser adotada. Um segundo motivo enseja a complexidade que envolve o tema relaciona-se às situações em que estejam em questão mais de dois princípios importantes.

No exemplo apresentado por Alexy, com vista a conferir primazia a esta discricionariedade, o Tribunal Constitucional alemão apreciou a questão relativa à colisão de interesses na criminalização da comercialização da cannabis. Na apreciação da matéria, o Tribunal decidiu que ante a inexistência de conhecimentos científicos que conduzissem a uma das opções, dever-se-ia atentar para a prerrogativa do legislador de avaliação e adoção de uma das escolhas potencialmente adequadas ao alcance do fim colimado (ROBERT, 2006).

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Destarte, da necessidade retira-se a ideia de utilização do meio menos gravoso proposto para a concretização ou fomentação dos fins desejados, não bastando apenas ser adequado.

1.5 Da proporcionalidade em sentido estrito

O terceiro e último elemento do princípio da proporcionalidade a ser analisado reclama a comparação entre os meios empregados e os fins colimados, de modo que os meios sejam os menos danosos possíveis. O meio a ser utilizado não pode apresentar-se de forma de forma desproporcional ao fim perseguido (ROQUE, 2011).

Há, em verdade, um balanceamento entre o meio a ser empregado e o fim pretendido, de sorte que, conquanto haja a realização ou fomento do fim perseguido, haja a menor restrição possível ao direito fundamental. Em palavras mais simples, pressupõe que as vantagens a serem trazidas pela adoção da medida superem as desvantagens (CUNHA, 2008).

Nesse sentido, Lyrio (1999, p. 201), afirma ser este o entendimento da doutrina majoritária, para quem:

[...] seria possível configurar-se o abuso de poder de legislar quando não existir compatibilidade entre a norma e o fim previsto na constituição. Ainda conforme o autor, este entendimento vem sendo sustentado pela doutrina alemã e por considerável parcela da doutrina nacional, a exemplo de Gilmar Mendes e Celso Antônio Bandeira de Melo, além de ser aplicado pelo Supremo Tribunal Federal, sob o manto do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso.

Assim, pode-se concluir que somente com a análise e compreensão dos três elementos que compõe a estrutura do princípio da proporcionalidade é que se torna possível o efetivo

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controle das políticas públicas e a precisa aplicação dos direito fundamentais.

1.6 Considerações finais sobre a definição do princípio da proporcionalidade

Conforme demostrado no início do presente trabalho, a origem da proporcionalidade está diametralmente ligado à necessidade de limitação do poder estatal, em face dos interesses individuais.

Sendo certo que ao Estado cabe proceder à limitação deste interesses individuais, de sorte a atender ao interesse público, a proporcionalidade aparece como medida de atuação do Estado, de modo que a conduta estatal há de ser proporcional, proporcionalidade esta que há de ser observada entre os meios a serem empregados e os fins a serem alcançados (ROQUE, 2011).

Assim, é certo afirmar que dentre as várias concepções pelas quais se manifesta o princípio da proporcionalidade, tem destaque aquela que o entende como um princípio geral do direito, na medida em que impões ao operar do direito a busca incessante pelo equilíbrio entre os interesses em jogo (BEZERRA, 1990).

Trata-se de uma das mais importantes facetas do princípio em tela, haja vista que dotada de alta carga de abstração, no sentido de reclamar condutas positivas por parte dos administradores da coisa pública ou aplicadores do direito.

Outra vertente importante do princípio da proporcionalidade é a sua função de limitação aos limites dos direitos fundamentais, vale dizer, até que pondo se afigura legítimo o estabelecimento de limites aos direitos fundamentais reciprocamente considerados.

E, por último, o enfoque do princípio como critério estrutural para a determinação do conteúdo dos direitos fundamentais, vinculante para o legislador (ROQUE, 2011).

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Este último ponto especificamente é que constitui o principal objetivo do presente trabalho, que busca analisar o princípio em tela como limite material à atuação do legislador penal.

Levando-se em consideração todas essas acepções do termo proporcionalidade, há de ser aferido, no caso concreto, a pertinência de se limitar excessivamente determinados direitos, com vistas à proteção de outros. À guisa de exemplo, dentro da seara penal, temos a necessidade de proteção da coletividade e a desnecessidade de imposição de penas àqueles que cometem delitos de somenos importância (ROQUE, 2011).

Deveras, aliado à noção de proporcionalidade, são inerentes os ideais relativos à moderação, prudência, equidade e proibição de excesso, dentre outros.Assim, referido princípio consubstancia, em essência, uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideais de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição do excesso, direito justo e valores afins, vez que precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional (CUNHA, 2008).

Não obstante estes abalizados entendimentos, em sentido contrário, Medeiros Bahia (2006, p. 221) leciona que:

[...] Apesar da proximidade conceitual, não devemos confundir o conteúdo da proporcionalidade com o da proibição de excesso ou da razoabilidade, que muitas vezes são empregados como seu sinônimo. A noção de proibição de excesso limita-se à ideia de restrição para a atuação estatal, enquanto que a ideia de proporcionalidade significa, hoje, mais do que isso, servindo também como instrumento contra a omissão ou contra a ação insuficiente dos poderes estatais.

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Para os fins a que se propõe o presente ensaio, adotar-se-á a segunda corrente de pensamento, no sentido de se diferenciar a noção de proibição de excesso do conceito de proporcionalidade.

Como consequência disso, no próximo capítulo passa-se a abordar a proibição de excesso como vertente do princípio da proporcionalidade, que, aliada ao estudo da proibição da defesa insuficiente, este decorrência da vertente material do devido processo legal e intimamente ligado à noção de razoabilidade, constituem o objeto do presente trabalho.

2. APLICAÇÃO DO PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE AO LEGISLADOR PENAL

Vivencia-se, os últimos anos, uma transição do garantismo negativo ao garantismo positivo. Com efeito, durante muito tempo a postura que se espera do Estado era apenas passiva, no sentido de não interferência nas relacionais privadas, de modo a garantir a liberdade do indivíduo, primeira geração dos direitos fundamentais, portanto.

Acontece que essa postura passiva, nos decorrer dos anos, mostrou-se insuficiente, vez que dava margem ao arbítrios individuais, sejam sociais ou mesmo econômicos. Justamente por isso, e levando-se em consideração a transição do estado liberal para o estado social e, mais tarde, para o estado democrático de direito, a postura dos representantes do povo passou a ser mais ativa, atingindo diretamente a todos os particulares, impondo condutas e regulando situações sociais antes desprovidas de proteção do estado.

Trata-se do garantismo penal positivo, fruto desse longe processo de evolução e hoje ramificado, na seara penal, em proibição da proteção insuficiente e proibição de excesso, que serão analisados, separadamente, em breves linhas abaixo transcritas.

2.1 PROIBIÇÂO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE

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Conforme acima explanado, da vertente positiva do garantismo penal é que decorre a proibição da proteção insuficiente, postulado que visa garantir uma postura mais ativo do estado em relação ao particular especificamente na seara penal, objeto do presente ensaio.

Desta forma, esse novo modelo de Estado deverá dar a resposta para as questões de segurança dos direitos (sejam eles direitos econômicos, sociais ouculturais) e também daquela parte de direitos denominados de prestação de proteção, em particular contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas (BARRATA, 110).

No mesmo sentido, leciona o professor Streck:

[...] Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador.

Esta forma, resta evidente que o proibição da proteção insuficiente, como decorrência do princípio da proporcionalidade,

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visa conferir eficácia aos direitos fundamentais, na medida que impõe ao legislador uma postura ativa, no sentido de concretização dos direitos.

No escólio do renomado doutrinador Ingo Sarlet (2007, p. 197), membro do Ministério Público Federal:

[...] De acordo com a clássica concepção de matriz liberal-burguesa, os direitos fundamentais constituem, em primeiro plano, direitos de defesa do indivíduo contra ingerências do Estado em sua liberdade pessoal e propriedade. Esta concepção das funções dos direitos fundamentais – em que pese o reconhecimento de diversas outras no âmbito de sua dimensão subjetiva e objetiva – continua ocupando um lugar de destaque, transcorridos mais de duzentos anos de história dos direitos fundamentais.Na esteira destas considerações, importa consignar, que está "função defensiva" dos direitos fundamentais não implica, na verdade, a exclusão total do Estado, mas, sim, a formalização e limitação de sua intervenção, no sentido de uma vinculação da ingerência por parte dos poderes públicos a determinadas condições e pressupostos de natureza material e procedimental, de tal sorte que a intervenção no âmbito de liberdade pessoal não é vedada de per si, mas, sim, de modo que apenas a ingerência em desconformidade com a Constituição caracteriza uma efetiva agressão.

Da mesma forma, no desempenho da função de fiscalização da (in)constitucionalidade das leis por parte do Supremo Tribuna Federal, o postulado é sempre invocado, como podemos perceber no voto da lavra do Ministro Gilmar Mendes abaixo colacionado:

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[...] Quanto à proibição de proteção deficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção deficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental.

Desta forma, fica evidente que a novo garantismo penal, agora positivo, ganha destaque não só na doutrina, como nos Tribunais Superiores.

Calha anotar, ainda, as lições de Branco, Coelho e Mendes (2009, p. 367):

[...] Ao lado da ideia da proibição do excesso tem a Corte Constitucional alemã apontado a lesão ao princípio da proibição da proteção insuficiente. Schlink observa, porém, que se o Estado nada faz para atingir um dado objetivo para o qual deva envidar esforços, não parece que esteja a ferir o princípio da proibição da insuficiência, mas sim um dever de atuação decorrente de dever de legislar ou de qualquer outro dever de proteção. Se se comparam, contudo, situações do âmbito das medidas protetivas, tendo em vista a análise de sua eventual insuficiência, tem-se uma operação diversa da verificada no âmbito da proibição do excesso, na qual se examinam as medidas

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igualmente eficazes e menos invasivas. Daí concluiu que “a conceituação de uma conduta estatal como insuficiente (untermässig), porque ‘ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz’, nada mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhältnismässigimengeremSinn).”

No entanto, vale registrar que o princípio da proibição da proteção insuficiente, pelo menos na seara penal, deve ser vista com cuidado. Com efeito, dentro da seara penal, em função do princípio da legalidade, o aplicador da lei só pode movimentar-se dentro dos quadros legais. Até mesmo a analogia só pode ser utilizada se não for em prejuízo do réu. Assim, sob o argumento da proibição da defesa insuficiente, não pode o aplicador da lei se valer de meios escusos, não previsto em lei, para fundamentar as suas decisões.

Ainda sobre a definição do postulado em tela, Ingo Sarlet (2005, p. 107) ministra:

[...] A noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que abrange, (...), um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados.

E prossegue o renomado Professor (2005, p. 132):

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A violação da proibição de insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente representada por uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção, mas não se esgota nesta dimensão (o que bem demonstra o exemplo da descriminalização de condutas já tipificadas pela legislação penal e onde não se trata, propriamente, duma omissão no sentido pelo menos habitual do termo).

Na mesma ordem de ideias, vale registrar a dupla dimensão do princípio em foco. Se por um lado o estado deve conter seus próprios abusos frente ao particular, seja no momento da gestão da coisa pública ou durante a confecção das leis, deve, por outro lado, afastar o indivíduo das ingerências dos seus próprios pares.

Assim, pode-se afirmar, com supedâneo na eficácia horizontal dos diretos fundamentais, que a proibição da proteção insuficiente espraia-se, também, para as relações privadas.

De outra monta, cabe ressaltar que a própria Constitucional Federal da República Federativa do Brasil também está alinhada à concepção do garantismo positivo, quando impõe ao legislador ordinário a criminalização de algumas condutas, como no artigo 5º, incisos XLII, XLII e XLIV. É o que se convencionou chama de mandados de criminalização.

Com clareza solar, o já ementa o já citado Streck (2007, p. 102):

[...] Inequivocamente, o Estado assume uma nova função, problemática que pode ser verificada, facilmente, pelo conteúdo do texto constitucional. Essa nova feição afasta o olhar

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de desconfiança para com o Estado, que passa de "tradicional inimigo dos direitos" a "protetor e promovedor da cidadania". Parece razoável afirmar, assim, que o direito penal e o direito processual penal não podem ficar imunes a esses influxos. Altera-se a feição do Estado; consequentemente, altera-se o direito (não mais ordenador e nem simplesmente promovedor; agora é transformador, bastando, para tanto, examinar o texto da Constituição).

É nesse contexto que se apresenta atualmente o princípio da proibição da proteção insuficiente, que, por tudo que se disse, vem redefinir o garantismo penal, agora positivo, e remodelar a forma de atuação do estado em relação ao particular.

Em excelente ensaio sobre o tema, Maria Luiza SchaferStreck (2008, p. 80), afirma:

Portanto, o Estado Democrático de Direito, não exige mais somente uma garantia de defesa dos direitos e liberdades fundamentais contra o Estado, mas também, uma defesa contra qualquer poder social de fato! Estamos falando, então, nas palavras de Dieter Grimm, da proibição de "ir longe demais" (Übermassvebot), em contraponto com a proibição de "fazer muito pouco"(Untermassverbot), ambos mecanismos semelhantes, porém, vistos de ângulos diferentes. Daí que "quando um direito é invocado como direito negativo a questão é saber se o legislador foi longe demais. Quando é invocado como direito positivo ou dever de proteção (Schutzpflicht); a questão é saber se ele fez muito pouco para proteger o direito ameaçado". Assim, só haverá a possibilidade de

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se reconhecer a proibição de proteção deficiente quando se estiver face a um dever de proteção, isto é, para explicar melhor, a Untermassverbottem como condição de possibilidade o Schutzpflicht.

Entretanto, se por um lado a proteção do estado não pode ser deficiente em relação ao que se espera dele por parte do particular, a sua firma de agir não pode ser excessiva em relação aos meios disponíveis para tanto. Trata-se da proibição de excesso, que, aliada ao princípio em tela, encerra a dupla face do aspecto material do devido processo legal e do garantismo penal positivo, todos sob o enfoque do princípio da proporcionalidade.

Justamente sobre esse ponto, a proibição do excesso na consecução dos direitos fundamentais, é que se passa a analisar no próximo capítulo.

2.2. Proibição de excesso

Conforme visto, atualmente a noção de garantismo penal passou a ser analisada sob a ótica positiva, através da proibição da defesa insuficiente, sempre tendo-se em vista a concretização dos direitos fundamentais. Trata-se do devido processo legal material em seu aspecto positivo.

Acontece que o devido processo legal material ainda pode ser analisado sob a sua vertente negativa, que retrata a proibição de excesso do estado nas consecução na busca pela efetividade dos direitos fundamentais. Cuida-se do garantismo penal em seu viés negativo.

Nessa ordem de ideias, o princípio da proibição de excesso surge no século XVIII, como forma de limitação do poder estatal, frente a liberdade do indivíduo. Trata-se da aplicação prática do princípio da proporcionalidade durante o desempenho da sua estatal.

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Especificamente sobre o legislador penal, a proibição de excesso vem traçar os exatos contornos para a definição de condutas e aplicação de penalidades.

Sobre o garantismo penal, Ferrajoli (2006, p.15), logo no início de sua obra, aduz:

[...] Este livro deseja contribuir com a reflexão sobre a crise de legitimidade que assola os hodiernos sistemas penais, e em particular o italiano, com respeito aos seus fundamentos filosóficos, políticos e jurídicos. Em grande parte, tais fundamentos foram construídos – com o nascimento do Estado moderno como um "Estado de direito" – pelo pensamento jurídico iluminista, que os identificou com uma série complexa de vínculos e de garantias estabelecidas para a tutela do cidadão contra o arbítrio punitivo. Ainda que incorporados a todas as constituições evoluídas, estes vínculos são largamente violados pelas leis ordinárias, e mais ainda pelas práticas nada liberais por elas alimentadas.

Como vista, o sistema garantis proposto por ferrajoli é eminentemente negativo, isto é, tem como missão precípua alavancar os direito individuais dos particulares frente ao poder estatal, impondo limites à autuação deste na seara penal. Dito de outra forma, o garantismo penal negativo visa conter os excessos por parte do estado frente aos cidadãos.

Nesse sentido, doutrina Alexandre da Maia (2009, p. 45), definindo o garatismo:

No aspecto jurídico, percebe-se um dado curioso: o de se criar um sistema de proteção aos direitos dos cidadãos que seria imposto ao Estado. Ou seja, o próprio Estado, que pela dogmática tradicional tem o poder pleno de criar o direito e todo o direito, sofre uma limitação garantista ao seu poder. Assim, mesmo com sua

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‘potestade punitiva’, o Estado deve respeitar um elenco sistêmico de garantias que devem por ele ser efetivados. Este é o primeiro passo para a configuração de um verdadeiro Estado Constitucional de direito.

Na história do direito penal é fácil encontrar várias leis que foram editadas sem nenhuma noção de proporcionalidade, tronando-se totalmente excessivas em relação ao fim que buscavam. É nesse sentido quegarantismo penal negativo mostrou-se uma ferramenta hábil para correções desses abusos, na medida que impõe que o estado aja de modo a se coibir esses excessos.

No Brasil, o garantismo penal ganhou papel de destaque na doutrina, juntamente com a constitucionalização do direito penal, que agora deve obediência aos preceitos pilares estabelecidos na Carta Mãe.

Na jurisprudência, vários são os julgados fundamentados na proibição de excesso, como a apelação do TJ-SO abaixa colacionada:

Despesas condominiais ação de cobrança sentença de procedência - apelação da ré em se tratando de loteamento fechado deve o proprietário de lote que o integra contribuir na proporção de sua cota-parte com a manutenção e as benfeitorias realizadas e introduzidas nas áreas comuns por associação constituída a tal fim, independentemente de ser associado, sob pena de ilicitamente enriquecer-se ante a irrespondível evidência de que aquelas o beneficiam - quem adquire lote em loteamento fechado direito não tem ao de não associar-se para se locupletar, que é o objetivo in casu perseguido pela apelante e que deve ser trancado apesar da garantida liberdade de não se associar à conta da aplicação doprincípio da proibição de exc

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esso ou da proporcionalidade, ínsito ao sistema constitucional pátrio - recurso improvido.

Isto posto, pode-se afirmar que a proibição de excesso, como decorrência do garantismo penal negativo, vem conferir proteção ao indivíduo frente às ingerências do estado, que além de se abster de forma desmedida, deve buscar conferir uma proteção eficaz, na busca dos direito fundamentais.

2.3 Disposições legais do arcabouço jurídico-penal em que se verifica possíveis violações aos princípios da vedação da proteção insuficente e da proibição de excesso

Vários são os casos nos quais leis são editas no brasil sem a observância dos princípios analisados no presente ensaio.

A primeira delas é a lei 12.015/2009, que alterou a parte especial do código penal, estabelecendo os agora chamados crimes contra a dignidade sexual.

A polêmica reside uma vez que a nova lei deu azo para alguns doutrinadores pregassem que a ação penal, nos casos de estupro cometidos com violência à pessoas maiores de idade, seria pública condicionada à representação, o que seria um retrocesso em se comparado à legislação anterior, quando a ação penal em todos os casos de violência, independente da idade, seria pública incondicionada.

Desta forma, conforme a doutrina de Greco (2010, p. 35): Desse modo, a interpretação do atual artigo

225 do Código Penal à luz do referido enunciado é a que melhor se coaduna com o princípio da proporcionalidade sob a ótica da proibição de proteção deficiente. Não se pode cogitar que o legislador, visando à proteção da vítima e ao recrudescimento do tratamento dispensado aos autores de crimes contra a dignidade sexual, tenha retrocedido para exigir a representação quando antes não era necessária, isto é, criado um empecilho para a instauração da persecução penal.

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Outra disposição legal que não está em compasso com as vertentes do princípio da proporcionalidade ora analisadas é o artigo 33, §4, da lei de tóxicos.

Com efeito, referida disposição legal estabelece uma causa de diminuição de pena de um sexo a um terço para aqueles que preencham os seus requisitos, caso em que a pena para que é traficante de drogas pode chegar a apenas 2 anos de prisão.

Acontece que, conforme vista anteriormente, a constituição federal, através de mandado de criminalização, impõe a penalização, de maneira eficaz, da prática e tráfico de drogas, o que não foi atendido pelo legislador ordinário de forma eficiente, ferindo, então, a proteção a que se refere o garantismo penal positivo.

De acordo com STRECK (2010, p. 112):

[...] o crime de tráfico de drogas é tão grave e reprovável que a insuficiência da punição, decorrente da aplicação do dispositivo em tela, 23 equivale à impunidade e à não aplicação do comando constitucional de criminalizar. Para o autor, ainda, o legislador banaliza a punição na contramão dos ditames constitucionais, que apontam de forma explícita para uma atuação eficiente do Estado na repressão de tal crime.

Ainda podemos citar a lei 9.099/95, conjugada com o Estatuto do Idoso, na parte dos procedimentos. Com efeito, Macedo (2010, p. 20), leciona que:

É flagrante a violação à proibição de proteção deficiente, na medida em que o dispositivo em comento autoriza a utilização de mecanismos previstos na Lei nº 9.099/95, a exemplo da transação penal, para crimes qualificados pelos resultados morte e lesão corporal grave, como ocorre, respectivamente, com os delitos previstos no parágrafo único do

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artigo 97 e no parágrafo primeiro do artigo 99, ambos da Lei nº 10.741/03.

Assim, resta claro que a atuação desmedida do legislador penal, sem levar em consideração a proporcionalidade e todos os princípios a ela inerentes, como a proibição da proteção insuficiente e a proibição de excesso, acaba caracterizando abusos legislativos, que podem e devem ser corrigidos pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade das leis, como já vem sendo feito.

CONCLUSÃO

De todo o exposto, nota-se que no atual estágio a liberdade de ação do legislador penal foi deveras modificada. Exige-se dele, conforme demonstrado acima, a atuação não somente conforme a lei, mas, sobretudo em concordância com o direito. Direito aqui deve ser entendido como todos os princípios e postulados que foram desenvolvidos ao longo dos anos no sentido de delimitar a atuação do legislador penal.

Nesse sentido, o princípio da proporcionalidade, refletido no devido processo legal material, vem sendo um bom gestor nessa parte. Através dele, leis antes editadas à revelia do direito agora podem declaradas inconstitucionais por ferirem a razoabilidade, ideia essa até então impensada.

Mais do que atuar de forma negativa, proibindo que o legislador atue com excessos, o princípio da proporcionalidade também de forma positiva, de sorte a imiscuir na concepção do legislador a importância da edição de leis que não sejam deficientes em relação ao fim que se propõe, sem ferir direitos fundamentais para tanto.

Assim, o princípio da proporcionalidade redefiniu a atuação do legislador penal, passando a exigir deste não somente condutas negativas, mas também posturas positivas. Mais do que isso, ele ainda serve como parâmetro de medição de constitucionalidade das

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leis, o que aumenta ainda mais a sua eficácia dentro do ordenamento.

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ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE

MARCELLA GOMES DO NASCIMENTO: Advogada. Graduada pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhaguera - Uniderp.

RESUMO: O presente artigo analisa o princípio da publicidade no âmbito jurisprudencial. Inicialmente, busca-se compreender no que consiste a Administração Pública e quais são os princípios que a rege. Nesse sentido, observa-se que a publicidade é de suma importância para a eficácia dos atos administrativos. Contudo, há situações em que poderá ser restringida para garantir a proteção dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente.

Palavras-chave: Administração Pública. Princípios administrativos. Publicidade. Jurisprudência.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO, 2 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, 3 PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS, 4 APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE, 5 CONCLUSÃO, 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

1 INTRODUÇÃO

O princípio da publicidade está consagrado expressamente na Constituição Federal e tem como escopo a transparência dos atos administrativos, permitindo que a sociedade exerça um controle sobre tais condutas, a fim de preservar o interesse público.

A Administração Pública pode ser analisada sob vários aspectos, dentre eles podemos citar o formal e o material. Este se

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refere à própria atividade administrativa desempenhada, aquele está relacionado ao conjunto de bens, órgãos e agentes.

Nesse sentido, o agente público, no exercício de suas funções, deve observar os princípios administrativos, os quais se encontram previstos de forma expressa ou implícita no ordenamento jurídico. Assim, a jurisprudência vem atribuindo um importante papel ao princípio da publicidade, dando legitimidade às condutas do poder público.

2 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Administração Pública é composta por órgãos que desempenham atividades visando ao bem comum. O exercício do poder público deve estar pautado em normas e princípios tidos como diretrizes essenciais para um bom funcionamento da Administração.

Conforme se encontra na doutrina pátria, a Administração Pública pode ser analisada em sentido amplo ou estrito, bem como sob o aspecto material ou formal.

As funções política e unicamente administrativa estão inseridas no conceito de Administração Pública em sentido amplo, correspondendo cada uma, respectivamente, aos órgãos de governo; aos órgãos e pessoas jurídicas.

De acordo com Alexandrino e Paulo (2008, p. 18), as funções política e administrativa podem ser conceituadas da seguinte forma:

Deve-se entender por função política, neste contexto, o estabelecimento das diretrizes e programas de ação governamental, dos planos de atuação do Governo, a fixação das denominadaspolíticas públicas. De outra parte, função meramente administrativa resume-se àexecução das políticas públicas formuladas no exercício da referida atividade política. (grifo do autor).

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Tal definição se enquadra perfeitamente no vocábulo administração, pois a junção das funções política e administrativa faz com que ações desenvolvidas pelo governo sejam colocadas em prática para se atingir as finalidades sociais.

Nota-se que a Administração Pública, apesar de ser vista sob um ângulo mais amplo, não permite que o poder público execute atos ao seu bel prazer. Admite-se a predominância da discricionariedade que, embora possibilite uma margem de escolha, não autoriza a prática de atos que não estejam previstos em lei.

Já a administração pública em sentido estrito é analisada sob outro prisma, referindo-se apenas à função administrativa, excluindo, portanto, a função política.

A Administração Pública em sentido formal, subjetivo ou orgânico engloba os órgãos, as pessoas jurídicas e agentes que atuam na Administração Pública.

Já a Administração Pública em sentido material não diz respeito ao sujeito que exerce a atividade, mas sim à própria atividade desempenhada que pode ser visualizada através do fomento, da polícia administrativa, do serviço público e da intervenção. O fomento estimula a iniciativa privada para que esta desenvolva atividades de utilidade pública. A polícia administrativa é de suma importância para regular o exercício das atividades, pois impõe limites e restrições aos direitos individuais em razão da supremacia do interesse maior, que é o bem comum. O serviço público diz respeito a toda atividade executada no âmbito da Administração Pública, até mesmo que de forma indireta, importando apenas que seja relevante e útil. Por fim, a intervenção caracteriza-se como uma atividade que possui a função de regulamentar a atuação do Estado no setor privado, seja de forma direta ou indireta.

3 PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS

A Constituição Federal de 1988 prevê princípios que auxiliam na atividade desempenhada pela Administração Pública. De acordo com Cretella Júnior (apud DI PIETRO, 2010, p. 62), “princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas

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que condicionam todas as estruturações subsequentes. Princípios, neste sentido, são os alicerces da ciência”. (grifo do autor).

No art. 37 da Constituição Federal estão previstos os seguintes princípios: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

O princípio da legalidade está inserido em todos os ramos do Direito devendo ser observado de maneira minuciosa. No tocante à Administração Pública, a legalidade é essencial para a execução das atividades administrativas, pois estas devem obrigatoriamente seguir o que a lei estabelece.

Tal princípio pode ser visualizado sob duas vertentes: com relação ao particular e à Administração. A legalidade atua entre os particulares baseada na autonomia da vontade, ou seja, é dado o direito a eles de fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Já a Administração não pode agir dessa forma, pois a sua atuação só será possível se houver previsão legal, caso contrário o ato não poderá ser praticado. A Constituição em seu art. 5º, II, trata do princípio da legalidade no âmbito dos particulares quando estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

O princípio da legalidade serve para impor limites aos administradores, regulamentando e fiscalizando a execução de suas funções para que não ocasione a prática de atos ímprobos, ou seja, atos que atentam contra a honradez da Administração.

No que se refere ao princípio da impessoalidade, a doutrina costuma tratá-lo sob dois ângulos. Um deles está diretamente ligado à finalidade e o outro se refere ao fato do administrador não poder fazer promoção pessoal em razão da função exercida.

Conforme a primeira acepção, a impessoalidade é um princípio que busca fazer com que as atividades executadas pela Administração sejam direcionadas à finalidade pública, sem que haja discriminações e favorecimentos. Esse mandamento visa a

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estabelecer uma isonomia, impedindo que ocorra desvio de finalidade. Este pode ser visualizado no seguinte exemplo trazido por Alexandrino e Paulo (2008, p. 199):

Imagine-se que um servidor, um Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil, peça licença para capacitação, prevista no art. 87 da Lei nº 8.112/1990, a fim de participar de um curso de pintura em porcelana. São os seguintes os termos do citado dispositivo legal: “Após cada quinquênio de efetivo exercício, o servidor poderá, no interesse da Administração, afastar-se do exercício do cargo efetivo, com a respectiva remuneração, por até três meses, para participar de curso de capacitação profissional.” Suponhamos que a licença seja concedida. Nesse caso, temos desvio da finalidade geral e da finalidade específica, pois o ato é contrário ao interesse público (o servidor ficará remuneradamente sem trabalhar para fazer um curso que não interessa a suas atribuições) e é contrário à finalidade específica da lei (pintura em porcelana não é, para esse servidor, “capacitação profissional”).

Com relação à proibição de promoção pessoal em razão da atividade exercida, o princípio da impessoalidade combate tal prática, pois o ato administrativo praticado deve ser entendido como ato da Administração e não como ato pessoal de determinado agente público. Essa vertente pode ser apreciada também tomando como parâmetro o previsto no § 1º do artigo 37 da Constituição que se encontra textualmente assim redigido:

A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem

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promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.

O princípio da moralidade exige dos agentes públicos uma conduta ilibada pautada na ética profissional. A moralidade é algo defendido por todos aqueles que lutam contra a existência de desvio de poder e de atos realizados com fins ilícitos.

A moralidade é considerada como um requisito de validade do ato administrativo, pois a sua inobservância acarreta a nulidade do ato. A apreciação dessa legitimidade pode ser feita pela própria Administração, bem como, por meio de provocação, pelo Poder Judiciário.

Vale destacar que o princípio da moralidade possui uma ligação com o princípio da legalidade, uma vez que, a prática de determinados atos contrários aos padrões de boa-fé e probidade poderá representar uma ofensa direta à lei.

A ausência de moralidade acarreta muitos prejuízos para as atividades da Administração, o que interfere no interesse coletivo. Para que haja uma supervisão dos atos administrativos, o poder judiciário pode resguardar o decoro e a ética mediante o meio processual denominado de ação popular, previsto constitucionalmente no art. 5º, LXXIII:

Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo, comprovada má-fé, isentos de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

Sendo assim, observa-se que o controle judicial é essencial para a tutela dos bens jurídicos ressaltados na referida norma. O bom administrador deve ter conhecimento não apenas do que a lei determina como também dos princípios que regem a Administração.

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A obediência a esses elementos impede a configuração de improbidade administrativa.

O princípio da eficiência foi inserido na Constituição Federal de 1988 mediante a Emenda Constitucional nº 19/98. Constatava-se uma grande deficiência nos serviços públicos, o que era flagrantemente observado em razão dos inúmeros prejuízos causados aos administrados.

Surgiu a necessidade de uma atuação administrativa ligada diretamente ao que se chama de economicidade e produtividade. A junção desses elementos é essencial para a organização da Administração, pois, além de evitar desperdícios financeiros, possibilita a execução dos serviços de maneira mais rápida e com qualidade.

Alexandrino e Paulo (2008, p. 202) preceituam em sua obra que: Eficiência tem como corolário a boa

qualidade. A partir da positivação desse princípio como norte da atividade administrativa, a sociedade passa a dispor de base jurídica expressa para exigir a efetividade do exercício de direitos sociais, como a educação e a saúde, os quais têm que ser garantidos pelo Estado com qualidade ao menos satisfatória. Pelo mesmo motivo, o cidadão passa a ter o direito de questionar a qualidade das obras e atividades públicas, exercidas diretamente pelo Estado ou por seus delegatários.

Infere-se da eficiência, portanto, uma atividade desempenhada sob a égide dos preceitos legais, de forma que seja possível garantir o exercício dos direitos da coletividade atingindo, pois, os melhores resultados na prestação do serviço público.

Esses princípios estão previstos expressamente, contudo, há também os princípios implícitos. Dentre eles, encontra-se oprincípio da supremacia do interesse público que, como o próprio nome já

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diz, possui como função principal preservar o bem comum, qual seja, o interesse público. Ele está inserido no âmbito do direito público, embora este possua normas que amparam interesses particulares.

À Administração é dada a prerrogativa, por exemplo, de intervir na propriedade privada para tutelar o interesse geral. Trata-se de um poder-dever do Estado que deve obrigatoriamente ser exercido, não podendo haver omissão quando se estiver diante de um ilícito administrativo.

Sendo assim, ocorrendo conflito entre o interesse público e o interesse privado, o primeiro prevalecerá em decorrência dessa finalidade coletiva que deve estar intrinsecamente ligada à função administrativa.

Outro princípio que regulamenta o serviço público é o da autotutela que consiste na possibilidade da Administração rever seus atos, de maneira que possa anulá-los, quando constatada ilegalidade, e revogá-los, quando se apresentarem inconvenientes ou inoportunos. Esse controle pode ser exercido pela Administração, de ofício, diferenciando-se do controle judicial que só poderá ser realizado mediante provocação. Além disso, não cabe ao Poder Judiciário apreciar a conveniência de um ato, mas sim a sua legalidade.

Encontra-se consagrado na Súmula 346 do Supremo Tribunal Federal que “a Administração Publica pode declarar a nulidade dos seus próprios atos". Nesse sentido a Súmula 473 prevê:

A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

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Já o princípio da continuidade dos serviços públicos como todos os outros, preza pelo interesse coletivo. A prestação de tais serviços não deve sofrer interrupções. Essa proibição se aplica também aos particulares que exercem atividades por meio de delegação. Há casos em que a atividade pode ser temporariamente paralisada. Isso se dá, por exemplo, mediante a realização de ajustes técnicos, o que possibilita a viabilidade da atividade.

Em consonância com o princípio da supremacia do interesse público está o princípio da indisponibilidade do interesse público, pois os bens e interesses coletivos não pertencem aos agentes públicos e tampouco à Administração. Em observância a esse princípio, não é possível a alienação de um bem público que esteja destinado a uma finalidade social específica.

A doutrina costuma classificar o interesse público em primário e secundário. Nesse contexto, Alexandrino e Paulo (2008, p. 191) comentam que “os interesses públicos primários são os interesses diretos do povo, os interesses gerais imediatos. Já os interesses públicos secundários são os interesses imediatos do Estado na qualidade de pessoa jurídica, titular de direitos e obrigações”.

Por fim, vale enfatizar que a indisponibilidade do interesse público está intimamente ligada à legalidade, devendo o administrador agir conforme os limites impostos pela lei.

Ainda tratando dos princípios implícitos, visualiza-se o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade que são diretrizes aplicáveis a todos os ramos do Direito. Na esfera do direito administrativo, o princípio da razoabilidade é identificado como o gênero e a proporcionalidade como uma de suas vertentes conforme entendimento de Alexandrino e Paulo (2008, p. 204):

Na seara do direito administrativo, pensamos ser mais usual a referência a “princípio da razoabilidade” como um gênero, constituindo a noção de proporcionalidade uma de suas vertentes, comumente relacionada a

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situações que envolvam atos administrativos sancionatórios.

Nessa linha de raciocínio, tanto a razoabilidade quanto a proporcionalidade servem de instrumentos de controle da Administração Pública. A razoabilidade abrange a adequação e a necessidade. Esta consiste na análise dos meios utilizados para atingir os objetivos sociais sem que haja prejuízos. Já a adequação exige que o ato seja compatível com a finalidade almejada. A proporcionalidade coíbe o excesso de poder para que não haja danos para a sociedade, impedindo, assim, restrições nos direitos.

A Administração Pública é também regida pelos princípios da segurança jurídica, da proteção à confiança e da boa-fé. A segurança jurídica garante uma estabilidade nas decisões tomadas no âmbito administrativo. Ela impede que mudanças nas normas afetem situações já consolidadas com base em dispositivos anteriores. A Lei nº 9.784/99 traz, expressamente, no art. 2º, caput, o princípio da segurança jurídica, “a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.”.

O princípio da proteção à confiança leva em consideração o princípio da boa-fé, pois parte do pressuposto que os atos praticados pelo agente público são legítimos, éticos e pautados no bem comum. Nas palavras de Di Pietro (2010), a boa-fé possui um aspecto objetivo que está ligado à conduta honesta, e um aspecto subjetivo, que se refere ao fato da pessoa acreditar que está atuando corretamente.

4 APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE

O princípio da publicidade pode ser analisado tomando como base o fato do interesse público ser indisponível. Tal característica

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exige que o administrador atue de forma transparente, de modo que seja possível o controle de legitimidade.

Como regra, os atos administrativos devem ser publicados em órgão oficial para que possam ter eficácia. Além disso, os atos devem ser motivados, ou seja, devem vir acompanhados da exposição de motivos que os originaram.

A Constituição prevê dois instrumentos que exigem a observância do princípio da publicidade: o direito de petição e de certidões que estão presentes no art. 5º, XXXIV, “a” e “b”, respectivamente. Quando houver impedimento ao exercício desses direitos, caberá o mandado de segurança e o habeas data,conforme o caso em concreto.

Nesse contexto, surgiu a Lei nº 12.527/11 que regula o acesso à informação. Subordinam-se ao regime desta lei todos os entes da Administração Direta e Indireta, bem como as entidades particulares que recebam recursos públicos.

Segundo o art. 10 da mencionada lei, “qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a informações aos órgãos e entidades referidos no art. 1o desta Lei, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida”.

Impende frisar que a inobservância ao princípio da publicidade pode caracterizar um ato de improbidade, nos termos do art. 11, IV, da Lei nº 8.429/92.

Embora todos tenham direito a obter informações de cunho pessoal ou coletivo, há situações em que deverá ser resguardado o sigilo em benefício da segurança social conforme estabelecido no art. art. 5º, XXXIII, da CF. Nesse diapasão, a Lei de acesso à informação estabelece as situações nas quais a divulgação será restrita:

Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e,

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portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:

I - pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;

II - prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;

III - pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;

IV - oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;

V - prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;

VI - prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;

VII - pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou

VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

O princípio da publicidade é bastante utilizando no âmbito jurisprudencial, uma vez que permite o controle da sociedade acerca dos atos praticados pelos agentes públicos.

O art. 5º, X e XII, da CF, assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, bem como do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas. A jurisprudência entende que o sigilo bancário é uma

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espécie do direito à intimidade. Em contrapartida, diante de fatos que exijam a apresentação de contas públicas, a proteção a este direito não ocorrerá, prevalecendo o princípio da publicidade. É o que se extrai do julgado abaixo:

Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTROLE LEGISLATIVO FINANCEIRO. CONTROLE EXTERNO. REQUISIÇÃO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO DE INFORMAÇÕES ALUSIVAS A OPERAÇÕES FINANCEIRAS REALIZADAS PELAS IMPETRANTES. RECUSA INJUSTIFICADA. DADOS NÃO ACOBERTADOS PELO SIGILO BANCÁRIO E EMPRESARIAL. 1. O controle financeiro das verbas públicas é essencial e privativo do Parlamento como consectário do Estado de Direito (IPSEN, Jörn. Staatsorganisationsrecht. 9. Auflage. Berlin: Luchterhand, 1997, p. 221). 2. O primado do ordenamento constitucional democrático assentado no Estado de Direito pressupõe uma transparente responsabilidade do Estado e, em especial, do Governo. (BADURA, Peter. Verfassung, Staat und Gesellschaft in der Sicht des Bundesverfassungsgerichts. In: Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz. Festgabe aus Anlass des 25jähringe Bestehens des Bundesverfassungsgerichts.Weiter Band. Tübingen: Mohr, 1976, p. 17.) 3.O sigilo de informações necessárias para a preservação da intimidade é relativizado quando se está diante do interesse da sociedade de se conhecer o destino dos recursos públicos. 4. Operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão abrangidas pelo sigilo bancário a que alude a Lei Complementar nº 105/2001, visto que as

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operações dessa espécie estão submetidas aos princípios da administração pública insculpidos no art. 37 da Constituição Federal. Em tais situações, é prerrogativa constitucional do Tribunal [TCU] o acesso a informações relacionadas a operações financiadas com recursos públicos. 5. O segredo como “alma do negócio” consubstancia a máxima cotidiana inaplicável em casos análogos ao sub judice, tanto mais que, quem contrata com o poder público não pode ter segredos, especialmente se a revelação for necessária para o controle da legitimidade do emprego dos recursos públicos. É que a contratação pública não pode ser feita em esconderijos envernizados por um arcabouço jurídico capaz de impedir o controle social quanto ao emprego das verbas públicas. 6. “O dever administrativo de manter plena transparência em seus comportamentos impõe não haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1º, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida.” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 114). 7. O Tribunal de Contas da União não está autorizado a, manu militari, decretar a quebra de sigilo bancário e empresarial de terceiros, medida cautelar condicionada à prévia anuência do Poder Judiciário, ou, em situações pontuais, do Poder Legislativo. Precedente: MS 22.801, Tribunal Pleno, Rel. Min. Menezes Direito, DJe 14.3.2008. 8. In casu, contudo, o TCU deve ter

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livre acesso às operações financeiras realizadas pelas impetrantes, entidades de direito privado da Administração Indireta submetidas ao seu controle financeiro, mormente porquanto operacionalizadas mediante o emprego de recursos de origem pública. Inoponibilidade de sigilo bancário e empresarial ao TCU quando se está diante de operações fundadas em recursos de origem pública. Conclusão decorrente do dever de atuação transparente dos administradores públicos em um Estado Democrático de Direito. 9. A preservação, in casu, do sigilo das operações realizadas pelo BNDES e BNDESPAR com terceiros não, apenas, impediria a atuação constitucionalmente prevista para o TCU, como, também, representaria uma acanhada, insuficiente, e, por isso mesmo, desproporcional limitação ao direito fundamental de preservação da intimidade. 10. O princípio da conformidade funcional a que se refere Canotilho, também, reforça a conclusão de que os órgãos criados pela Constituição da República, tal como o TCU, devem se manter no quadro normativo de suas competências, sem que tenham autonomia para abrir mão daquilo que o constituinte lhe entregou em termos de competências.(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª edição. Coimbra: Almedina, 2002, p. 541.) 11. A Proteção Deficiente de vedação implícita permite assentar que se a publicidade não pode ir tão longe, de forma a esvaziar, desproporcionalmente, o direito fundamental à privacidade e ao sigilo bancário e empresarial; não menos verdadeiro é que a insuficiente limitação ao direito à privacidade

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revelar-se-ia, por outro ângulo, desproporcional, porquanto lesiva aos interesses da sociedade de exigir do Estado brasileiro uma atuação transparente. 12. No caso sub examine: I) O TCU determinou o fornecimento de dados pela JBS/Friboi, pessoa que celebrou contratos vultosos com o BNDES, a fim de aferir, por exemplo, os critérios utilizados para a escolha da referida sociedade empresária, quais seriam as vantagens sociais advindas das operações analisadas, se houve cumprimento das cláusulas contratuais, se as operações de troca de debêntures por posição acionária na empresa ora indicada originou prejuízo para o BNDES. II) O TCU não agiu de forma imotivada e arbitrária, e nem mesmo criou exigência irrestrita e genérica de informações sigilosas. Sobre o tema, o ato coator aponta a existência de uma operação da Polícia Federal denominada Operação Santa Tereza que apontou a existência de quadrilha intermediando empréstimos junto ao BNDES, inclusive envolvendo o financiamento obtido pelo Frigorífico Friboi. Ademais, a necessidade do controle financeiro mais detido resultou, segundo o decisum atacado, de um “protesto da Associação Brasileira da Indústria Frigorífica (Abrafigo) contra a política do BNDES que estava levanto à concentração econômica do setor”. III) A requisição feita pelo TCU na hipótese destes autos revela plena compatibilidade com as atribuições constitucionais que lhes são dispensadas e permite, de forma idônea, que a sociedade brasileira tenha conhecimento se os recursos públicos repassados pela União ao seu banco de

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fomento estão sendo devidamente empregados. 13. Consequentemente a recusa do fornecimento das informações restou inadmissível, porquanto imprescindíveis para o controle da sociedade quanto à destinação de vultosos recursos públicos. O que revela que o determinado pelo TCU não extrapola a medida do razoável. 14. Merece destacar que in casu: a) Os Impetrantes são bancos de fomento econômico e social, e não instituições financeiras privadas comuns, o que impõe, aos que com eles contratam, a exigência de disclosure e de transparência, valores a serem prestigiados em nossa República contemporânea, de modo a viabilizar o pleno controle de legitimidade e responsividade dos que exercem o poder. b) A utilização de recursos públicos por quem está submetido ao controle financeiro externo inibe a alegação de sigilo de dados e autoriza a divulgação das informações necessárias para o controle dos administradores, sob pena de restar inviabilizada a missão constitucional da Corte de Contas. c) À semelhança do que já ocorre com a CVM e com o BACEN, que recebem regularmente dados dos Impetrantes sobre suas operações financeiras, os Demandantes, também, não podem se negar a fornecer as informações que forem requisitadas pelo TCU. 15. A limitação ao direito fundamental à privacidade que, por se revelar proporcional, é compatível com a teoria das restrições das restrições (Schranken-Schranken). O direito ao sigilo bancário e empresarial, mercê de seu caráter fundamental, comporta uma proporcional limitação destinada a permitir o controle financeiro da Administração

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Publica por órgão constitucionalmente previsto e dotado de capacidade institucional para tanto. 16. É cediço na jurisprudência do E. STF que: “ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – PUBLICIDADE. A transparência decorre do princípio da publicidade. TRIBUNAL DE CONTAS – FISCALIZAÇÃO – DOCUMENTOS. Descabe negar ao Tribunal de Contas o acesso a documentos relativos à Administração Pública e ações implementadas, não prevalecendo a óptica de tratar-se de matérias relevantes cuja divulgação possa importar em danos para o Estado. Inconstitucionalidade de preceito da Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Ceará que implica óbice ao acesso.” (ADI 2.361, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 23/10/2014). 17. Jusfilosoficamente as premissas metodológicas aplicáveis ao caso sub judice revelam que: I - “nuclearmente feito nas pranchetas da Constituição. Foi o legislador de primeiríssimo escalão quem estruturou e funcionalizou todos eles (os Tribunais de Contas), prescindindo das achegas da lei menor. (...) Tão elevado prestígio conferido ao controle externo e a quem dele mais se ocupa, funcionalmente, é reflexo direto do princípio republicano. Pois, numa República, impõe-se responsabilidade jurídica pessoal a todo aquele que tenha por competência (e consequente dever) cuidar de tudo que é de todos”. (BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos Tribunais de Contas. In: Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Volume 8. 2º semestre de 2014. Rio de Janeiro: TCE-RJ, p. 18 e 20) II - “A legitimidade do Estado Democrático de Direito depende do controle da

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legitimidade da sua ordem financeira. Só o controle rápido, eficiente, seguro, transparente e valorativo dos gastos públicos legitima o tributo, que é o preço da liberdade. O aperfeiçoamento d controle é que pode derrotar a moral tributária cínica, que prega a sonegação e a desobediência civil a pretexto da ilegitimidade da despesa pública. (TORRES, Ricardo Lobo. Uma Avaliação das Tendências Contemporâneas do Direito Administrativo. Obra em homenagem a Eduardo García de Enterría. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 645) 18. Denegação da segurança por ausência de direito material de recusa da remessa dos documentos. (MS 33340, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 26/05/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-151 DIVULG 31-07-2015 PUBLIC 03-08-2015). (grifo nosso).

Faz-se mister ressaltar que o princípio da publicidade deve ser analisado em conjunto com outras diretrizes do ordenamento jurídico. O Superior Tribunal de Justiça entendeu que a convocação para determinada fase de um concurso público exclusivamente por diário oficial e pela internet, quando já houver transcorrido considerável lapso temporal entre a homologação e a publicação da nomeação, viola a razoabilidade, sendo necessária a intimação pessoal:

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CONVOCAÇÃO DO CANDIDATO PARA NOVA ETAPA DO CERTAME, POR MEIO DE PUBLICAÇÃO EM DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO, CONFORME PREVISÃO EDITALÍCIA. LONGO LAPSO TEMPORAL ENTRE AS FASES DO CERTAME. NECESSIDADE DE NOTIFICAÇÃO PESSOAL. PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E RAZOABILIDADE.

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1. O STJ firmou o entendimento de que "caracteriza violação ao princípio da razoabilidade a convocação para determinada fase de concurso público, mediante publicação do chamamento em diário oficial e pela Internet, quando passado considerável lapso temporal entre a homologação final do certame e a publicação da nomeação, uma vez que é inviável exigir que o candidato acompanhe, diariamente, durante longo lapso temporal, as publicações no Diário Oficial e na Internet" (MS 15.450/DF, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeiro Seção, julgado em 24/10/2012, DJe 12/11/2012).

2. Destaca-se que os documentos que o ora recorrente instruiu a impetração demonstram a sua alegação de que, desde a homologação do resultado final do certame, em 11 de abril de 2013, as convocações dos candidatos em cadastro reserva se deram somente mediante publicação no Diário Oficial do estado em 12 de junho de 2015, cerca de dois anos após a homologação.

3. Recurso Ordinário provido. (RMS 50.924/BA, Rel. Ministro HERMAN

BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/05/2016, DJe 01/06/2016)

Destarte, observa-se que a publicidade é a regra no ordenamento jurídico brasileiro, sendo considerada, inclusive, como condição de eficácia. Contudo, sua aplicação deverá se dar através da interpretação dos demais princípios administrativos, podendo ser preterida diante das circunstâncias do caso concreto.

5 CONCLUSÃO

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A Carta Magna menciona expressamente os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A observância aos referidos mandamentos é primordial para um bom gerenciamento da Administração Pública.

Para que o Estado consiga alcançar o bem comum, o administrador deve possuir funções impostas como deveres que a doutrina enumera da seguinte forma: dever de probidade, de eficiência, de prestar contas e o poder-dever de agir.

Nesse contexto, destaca-se o princípio da publicidade, o qual permite a fiscalização e a revisão dos atos administrativos. Esse controle combate o chamado abuso de poder, evitando que o interesse público seja prejudicado em detrimento dos interesses particulares.

No entanto, vale ressaltar que há situações que possibilitam a restrição da publicidade. Isso se deve ao fato da Constituição Federal garantir a inviolabilidade de direitos fundamentais, como a vida privada, a honra e a imagem. Assim, a jurisprudência aplica tal entendimento de acordo com o caso concreto, levando-se em consideração todos os princípios que norteiam o ordenamento jurídico.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/> Acesso em: 27 jul. 2016.

______. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/> Acesso em: 27 jul. 2016.

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______. Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/> Acesso em: 27 jul. 2016.

______. Supremo Tribunal Federal. MS. 33340. Relator: Min. LUIZ FUX, Primeira Turma. DJ 31/07/2015. Disponível em: <www.stf.gov.br/> Acesso em: 27 jul. 2016.

______. Superior Tribunal de Justiça. RMS. 50924. Relator: Min. HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma. DJ 01/06/2016. Disponível em: <www.stf.gov.br/> Acesso em: 27 jul. 2016.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2016.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 7. ed. Niterói: Impetus, 2013.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

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OS ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL ESTATAL REFERENTES AOS DANOS EM ÁREAS DE RISCO

HIGO ARAÚJO BEZERRA: Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará.

RESUMO: Este trabalho busca analisar alguns dos aspectos que envolvem a responsabilidade civil do Estado em torno da questão dos desastres que ocorrem em áreas de risco, notadamente os decorrentes de deslizamentos de encostas e cheias em áreas de várzea dos rios, locais que, apesar de não terem as mínimas condições para um habitar saudável, são amplamente ocupados. Este trabalho desenvolve-se a partir da apresentação do problema existente no seio da sociedade brasileira. Discute-se ainda acerca da omissão do Estado no que tange ao seu dever de fiscalização das diversas construções e ocupações urbanas, com o fim de verificar a observância das normas urbanísticas. Examina-se como o Judiciário está encarando o problema das perdas humanas e materiais em áreas de risco.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, o problema da moradia é algo amplamente conhecido. Existem milhares de moradores de rua pelo país. E, juntamente com estes, estão os que conseguiram construir, com muito esforço, uma casinha num local não muito bom: muitas vezes, sem ter água encanada, perto de esgotos a céu aberto, localizados em áreas de encostas de morros ou em áreas de várzea de rios e sem um fácil acesso a transporte público, a postos de saúde, a escolas, enfim, fazendo parte de um contexto social urbano precário, levando à situação degradante de vida e moradia. Porém,

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por não terem condições financeiras de sair dela, permanecem por ser a única alternativa. Ou continuam ali ou vão morar na rua.

Não bastasse isso tudo, muitas dessas famílias têm que enfrentar anualmente o fantasma das chuvas, que, apesar de “esfriar o tempo”, traz, por outro lado, o medo de desastres para esses grupos familiares. Com o período chuvoso, o risco de desmoronamento de moradias precárias – que não possuem a mínima estrutura de segurança, tanto em função da localização, como do não atendimento a regras essenciais de construção –, aumenta drasticamente. O solo encharca, cede e leva consigo o teto, os bens e, não raras as vezes, a vida de muitas pessoas.

E, pensar que esses acontecimentos poderiam ter sido evitados ou, pelo menos, minimizados, se o Poder Público cumprisse com seus deveres, causa revolta. Com efeito, o Estado, muitas vezes, comporta-se de forma omissiva frente a essa situação, o que não decorre de falta de experiência, na medida em que o problema não é novo, como noticiam os veículos de informação brasileiros e, até estrangeiros, em relação à questão das perdas humanas e materiais em decorrência das chuvas ano após ano.

O Poder Público, além de não garantir a todos àqueles que necessitam o acesso ao direito mínimo de se ter uma moradia, onde a pessoa possa se alimentar, descansar, gozar do seu direito à intimidade, enfim, desenvolver os seus mais essenciais direitos de personalidade, permite que milhares de famílias arrisquem suas vidas e os poucos bens que possuem por meio da construção de suas casas de forma manifestamente irregular, com graves desrespeitos às normas urbanísticas.

O fato é que, diante dessa situação, o Judiciário transformou-se no palco, onde muitos dos que foram lesados em decorrência do que foi narrado, buscam ressarcir-se frente às omissões estatais.

Destarte, neste breve trabalho que se inicia, longe de qualquer intuito em exaurir o tema, buscar-se-á traçar alguns

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aspectos dos principais pontos que envolvem a questão outrora mencionada.

2 APRESENTANDO O PROBLEMA

A cada ano, os noticiários expõem mais e mais a triste situação daqueles que perderam bens e entes queridos em razão de deslizamentos de terras ocorridos em áreas de encostas e de enchentes ocasionados pelas fortes chuvas que atingem o País, notadamente no período do verão.

E, em regra, as pessoas que estão envolvidas nessa situação são aquelas de classe social menos favorecida, as quais se encontram morando em favelas, locais caracterizados pela grande ausência da infraestrutura básica para um habitar digno, estando, muitas vezes, em razão de sua localização, inseridas em áreas qualificadas como de risco.

De fato, a falta de condições financeiras, que priva diversas famílias de adquirirem uma moradia adequada (aquela que atenda a todas as condições básicas necessárias para uma vida com dignidade), é o principal fator que leva diversos grupos familiares a realizarem a construção de seus lares em áreas onde o risco de sofrerem danos nos seus mais variados prismas é eminente.

Assim, como decorrência do estado de pobreza, somado à ausência de uma plena concretização do direito fundamental à moradia por parte do Estado, diversos assentamentos familiares são levantados de forma clandestina, sem critérios técnicos e com total desrespeito às normas urbanísticas impostas pelo Governo em locais sem o mínimo de preparo para abrigar aquelas famílias.

Com efeito, antes de serem apresentados alguns fatos e dados estatísticos dessa problemática de desastres que anualmente assola a sociedade brasileira, convém citar um conceito abrangente do que seriam essas áreas de risco. Ana Luísa Soares Carvalho, Procuradora do município de Porto Alegre, cita, em um de seus artigos, o conceito trazido pelo programa Pró-Lar da

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Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano do Estado de São Paulo, o qual qualifica área de risco como sendo uma

área onde existe a possibilidade de ocorrência de perda ou dano, social e econômico, causada por uma condição ou processo geológico de origem natural, que pode ser induzido ou potencializado por intervenções nos terrenos, executadas de maneira errada pelo homem. Ex.: áreas sujeitas a enchentes/inundações, a desmoronamentos/deslizamentos, erosão/assoreamento, áreas contaminadas, etc.[1]

Frente a esse conceito apresentado, não é difícil notar que ele reflete o local onde diversas famílias brasileiras desenvolvem-se como unidade básica de nossa sociedade, sendo sazonalmente, acompanhando o regime das chuvas no Brasil, assoladas por desastres que ilustram os noticiários televisivos e jornalísticos no período do verão brasileiro.

Quase que diariamente, esses noticiários expõem os tristes acontecimentos de mortes, desaparecimento de pessoas, perda de bens e o desabrigo de muitas famílias em decorrência das chuvas. O “site” G1 da TV Globo[2], em 09/01/2012, trouxe o relato desse único dia de chuvas em alguns dos municípios do estado do Rio de Janeiro:

Chega a oito o número de mortos por problemas provocados pela chuva, na madrugada desta segunda-feira (9), no distrito de Jamapará, em Sapucaia, no Centro-Sul Fluminense, segundo informações da Defesa Civil estadual. Sete pessoas morreram em decorrência de um deslizamento de terra, que atingiu pelo menos oito casas. A oitava vítima, segundo a Defesa Civil, morreu numa casa que desabou em outra parte do município. Ao todo,

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são seis adultos e duas crianças, ainda de acordo com a Defesa Civil. A Defesa Civil estadual avalia a possibilidade de haver pelo menos 20 pessoas desaparecidas após o deslizamento. Já segundo o coordenador de Defesa Civil de Sapucaia, Marco Antônio Teixeira Francisco, ao menos 12 pessoas seguem desaparecidas, além dos mortos já encontrados.

No estado do Ceará, anualmente as chuvas também deixam pessoas desabrigadas, além de causar mortes. Dados recentes mostram que um número muito grande de famílias fortalezenses mora em áreas consideradas como inapropriadas para uma habitação segura. A página eletrônica do jornal Diário do Nordeste[3] trouxe no dia 14/01/2012 uma notícia que demonstra o quão grande é o problema que a capital cearense ainda enfrenta:

Apreensão e medo ainda na pré-estação chuvosa. Duas palavras que podem resumir bem os sentimentos das pessoas que vivem nas 91 áreas de risco de Fortaleza. Dentre elas, o Morro Santa Teresinha e a comunidade do Saporé, estabelecida na beira do Riacho Maceió, são as mais preocupantes e em estado considerado crítico. Ambas reúnem 230 famílias e apresentam risco eminente de deslizamento, desabamento e alagamento. Segundo estimativas da Defesa Civil do Município, aproximadamente, 19 mil famílias vivem em encostas de morro, nas margens de lagoas, rios e riachos ou nas faixas de praia, locais impróprios para qualquer tipo de moradia, justamente, por representar sérios riscos.

Destarte, está mais do que claro que a chegada do período de chuvas representa um real perigo da ocorrência de graves danos por milhares de pessoas. E, isso é realidade não

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apenas nos Estados do Ceará e Rio de Janeiro, mas em todas as áreas de risco encontradas nas diversas cidades de nosso país.

Frente a essa grave situação, deveria o Estado mobilizar-se no intuito de evitar que grande parte dos previsíveis danos ocorram àquelas famílias localizadas nas áreas de risco, preservando suas vidas e os poucos bens materiais que possuem, ambos assegurados como direitos fundamentais em nossa Constituição Federal.

O fato é que nem sempre o Governo age no sentido de evitar que esses desastres ocorram. Mesmo prevendo os possíveis e prováveis danos que possam advir com a chegada do período das chuvas, muitas vezes, nada é feito no sentido de evitá-los ou, pelo menos, minimizá-los.

A edição de 18 de janeiro de 2012 da Revista ISTOÉ, por exemplo, trouxe reportagem afirmando que o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ) apontou, em relatório apresentado na semana anterior à publicação daquela edição da revista, que, após uma vistoria realizada nos municípios daquele estado que mais foram atingidos pelas enchentes de 2011, observou-se que “das 170 áreas indicadas como de alto risco de deslizamento na região serrana, somente oito têm obras de recuperação iniciadas.”[4]

Ocorre que essa conduta omissiva levada à cabo pelo Estado vai de encontro às suas responsabilidades decorrentes das normas urbanísticas, havendo também um grave desrespeito ao direito fundamental à moradia, o qual se encontra assegurado tanto em nossa Carta constitucional quanto nos principais documentos consagradores de direitos humanos da sociedade internacional. E, é justamente acerca dessas omissões praticadas pelo Estado que se tratará no tópico seguinte.

3 AS OMISSÕES ESTATAIS

“Urbanismo é o conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na sociedade.”[5] Com essas

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palavras, Hely Lopes Meirelles conceituou um dos temas jurídicos que cada vez mais cresce em importância.

É notório que os agrupamentos urbanos brasileiros continuam a crescer em ritmo acelerado. As cidades estão em expansão, crescendo para os mais diversos lados. E, junto com elas, cresce a importância das normas de natureza urbanística, ou seja, aquelas que, como bem esclarecido pelo eminente doutrinador, visam a ordenar o espaço urbano, com vistas a garantir que as cidades se expandam de forma a sempre assegurar o bem estar de seus habitantes.

Impende destacar que essas normas que se voltam a fixar as políticas de desenvolvimento urbano derivam do poder de polícia do Estado, que, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho, constitui-se na “prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade”.[6]

Assim, as limitações urbanísticas (conjunto de normas de natureza urbanística), visam basicamente à ordenação e controle do uso do solo urbano, ao planejamento do desenvolvimento urbano, e ao regulamento das construções, impondo

normas de salubridade, conforto, segurança, funcionalidade e estética para a cidade e suas adjacências, ordenando desde o traçado urbano, as obras públicas, até as edificações particulares (…) ordena, enfim, a cidade e todas as atividades das quais depende o bem-estar da comunidade. [7]

Tendo isso em vista, o constituinte originário incumbiu a União Federal da tarefa de instituir as diretrizes para o desenvolvimento urbano, devendo ser fixadas por lei, conforme se extrai do caput do artigo 182[8] da Constituição Federal. Entretanto, esse ente federativo deve restringir-se a fixar as normas gerais, pois, como bem estabeleceu o art. 24 de nossa Lei Maior, a

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competência para legislar sobre direito urbanístico é concorrente, devendo aquele ente federado sofrer essa mencionada restrição, segundo está previsto no §1° desse dispositivo.

Aos demais entes federados cabe suplementar a legislação estabelecida, no que couber, tudo em respeito ao princípio da predominância do interesse, o qual regula a distribuição de competências entre os organismos autônomos de nossa federação.

E, em respeito ao mandamento constitucional, a União editou Lei n. 10.257 em 2001, denominada de Estatuto da Cidade, fixando as diretrizes para o desenvolvimento urbano no Brasil, ou seja, os princípios e as bases técnicas do Urbanismo brasileiro.

Aos municípios, a Constituição de 1988 reservou especial tarefa no que tange às questões urbanísticas, pois a eles ficou estabelecido o dever de executar as políticas de desenvolvimento urbano, conforme também se encontra disposto expressamente no caput artigo 182 da Lei Maior.

Essa obrigação dos Poderes Públicos municipais deve ser exercida sempre em observância às diretrizes gerais fixadas no Estatuto da Cidade, às normas editadas pelos poderes estaduais e ao conjunto de normas fixadas pelos próprios Poderes Públicos locais, que, em âmbito municipal, tem o plano diretor como seu principal instrumento de atuação urbanística. O §1° desse dispositivo constitucional supracitado confirma essa nossa afirmação, fixando que “o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.

Dessa forma, nos municípios que apresentem mais de vinte mil habitantes deve ser erigido um plano diretor, onde estarão localizadas as normas básicas orientadoras e reguladoras do desenvolvimento urbano local, envolvendo “aspectos físicos, econômicos, sociais e institucionais, entrelaçados entre si, não

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sendo um fim em si mesmo e tendo por objetivo a melhoria da qualidade de vida da população.”[9]

Ademais, apenas a título de informação, ressalte-se que o Estatuto da Cidade, em seu art. 41, trouxe outras hipóteses de obrigatoriedade de instituição do plano diretor não previstas na Constituição, sendo essas previsões de duvidosa constitucionalidade em face do silêncio constitucional.

Juntamente com esse fundamental instrumento urbanístico que é o plano diretor, outros conjuntos normativos municipais específicos somam-se no intuito de que o bem estar social seja mais eficazmente atendido. Todo esse conjunto de normas forma a chamada regulamentação edilícia, que objetiva, primordialmente, dois aspectos: o ordenamento da cidade no seu conjunto e o controle técnico funcional da construção individualmente considerada.[10]

E, citando ensinamento de Joaquim Castro Aguiar, Loreci Nolasco assim conclui:

a fim de promover o ordenamento territorial, o Município editará, além da lei do plano diretor, (…) a lei de zoneamento, que estabelecerá os usos permitidos, tolerados ou proibidos para determinada área; a lei de parcelamento do solo, que conterá regras sobre loteamentos, desmembramentos e desdobramentos de glebas ou de lotes; o código de obras, com limitações ao direito de construir; o código de posturas visando sobretudo regular a questão sanitária etc., tudo isso com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.[11]

Diante do que outrora foi apresentado, cabe ao Poder Público municipal a responsabilidade de garantir que todo o conjunto normativo que envolve a ordenação do crescimento e desenvolvimento urbano seja respeitado por todos, particulares e

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Estado, já que vivemos em um Estado de Direito. É do município, então, a atribuição de controle das construções urbanas, “não só para assegurar o ordenamento da cidade em seu conjunto, como para se certificar da segurança, da salubridade e da funcionalidade de cada edificação, individualmente considerada.”[12]

O fato é que, muitas vezes, essa força governamental não cumpre com seu dever. Permite que haja o crescimento de inúmeras construções irregulares, de forma clandestina, sem o mínimo de controle e sem respeito algum às normas técnico-funcionais e de ordenamento urbano, como as integrantes, respectivamente, do Código de Obras e Lei de Zoneamento.

Disso, resultam as milhares de construções em áreas de risco existentes, que põem em xeque a vida e a integridade física e patrimonial de uma grande quantidade de famílias. Construções essas que, para ocorrerem, precisariam de um projeto de obra elaborado por engenheiro ou arquiteto regularmente habilitado, com a posterior aprovação do projeto e expedição de alvará de construção pelo órgão municipal técnico responsável.

E, é justamente dessa omissão estatal em permitir a construção e manutenção de habitações que, em total desrespeito às normas de natureza urbanística, não garantem a mínima condição de segurança para seus habitantes e aos demais que se encontram próximos, que surge uma possível responsabilização governamental em caso de dano, como vem ocorrendo.

Por outro viés, muito mais que simples omissão em garantir o respeito às normas urbanísticas, o que se vê também é um grave desrespeito ao direito social fundamental à moradia.

O §1° do artigo 5° da Constituição Federal é claro ao afirmar que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, logo, uma vez que nosso ordenamento reconhecesse determinado direito fundamental, a aplicação de seus efeitos em favor daqueles que o titularizassem não poderia ser recusada.

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Não obstante o dispositivo ora em apreço, isso não é o que se observa. Muitos direitos fundamentais estão inseridos dentro de dispositivos normativos cujo conteúdo seria insuficiente para gerar normalmente seus efeitos de imediato. Segundo a classificação do renomado constitucionalista José Afonso da Silva, a qual é amplamente aceita no meio jurídico, poderíamos qualificar essas normas como sendo de eficácia limitada, cuja uma de suas espécies seria as normas programáticas.

Para uma determinada corrente de pensadores, o retromencionado parágrafo primeiro não se aplicaria às normas programáticas, sustentando que há determinados direitos fundamentais que tem sua eficácia alcançada apenas segundo os termos e medidas previstos em lei. Entretanto, de forma diametralmente oposta, há quem entenda que, ainda que de natureza programática, essas normas podem ensejar a fruição de direito subjetivo individual, independentemente de atuação legislativa.[13]

Com efeito, em vez de posicionamentos extremistas, como os acima expostos, deve-se buscar uma interpretação que adeque a vontade do legislador, que foi a de evitar que normas definidoras de direitos e garantias fundamentais ficassem sem efetividade, com a realidade do ordenamento brasileiro.

De fato, sem uma atuação positiva por parte do legislador, as normas de eficácia limitada não têm condições de gerar todos os seus efeitos esperados. Entretanto, deixar a efetividade de uma série de normas constitucionais ao bel-prazer do legislador, é fazer de grande parte da Constituição um documento de conteúdo vazio.

Buscando solucionar esse impasse, há aqueles que defendem que o que constituinte buscou ao dispor sobre a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais foi atribuir aos órgãos e Poderes estatais o dever de maximizar a eficácia dessa espécie de direitos. Trocando em miúdos, o §1° do artigo 5° de nossa Lei Maior

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(...) cuida de norma de natureza principiológica, que, por esta razão, pode ser considerada como uma espécie de mandado de otimização (maximização), isto é, que estabelece para os órgãos estatais a tarefa de reconhecerem, à luz do caso concreto, a maior eficácia possível a todas as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (...)[14]

Disso, resulta que o dispositivo citado não se aplica uniformemente a todas as normas que envolvem direitos fundamentais, tendo seu alcance firmado, muitas vezes, a partir das especificidades de um caso concreto, ainda mais se tratando de normas com eficácia limitada.

E, sendo o direito à moradia um direito social, consubstanciado, assim como os demais direitos sociais elencados no art. 6°, em norma constitucional de cunho programático, sua eficácia e efetividade dependerão de como se encarará a manifestação desse direito, o qual pode ser visto a partir de duas perspectivas: como direito de defesa (dimensão negativa) e como direito a prestações (dimensão positiva).

No viés de direito de defesa, a moradia, na condição de um bem jurídico fundamental, encontra-se protegida contra injustas agressões de terceiros, devendo tanto o Estado quanto os particulares respeitarem a moradia das pessoas, de sorte que as injustas violações a esse direito fundamental podem ser combatidas em sede judicial, por meio dos instrumentos processuais específicos que a ordem jurídica põe a disposição.[15]

Tendo em vista esse aspecto, em princípio, a regra da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais não encontra empecilho para sua aplicação, na medida em que as normas que consagram direitos de defesa, em regra, não dependem da ação concretizadora do legislativo para surtir seus efeitos que normalmente se espera. Estando voltados a comportamentos de natureza omissiva, o que se exige ao seu respeito são apenas abstenções, não sendo um documento legal algo imprescindível

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para a fruição dessa espécie de direito. Pode-se citar ainda, a título de exemplo, o direito fundamental à vida, que, pressuposto básico para a fruição de quaisquer outros, independe de concretização legislativa para ser plenamente exercido e exigível.

Já a partir de seu outro aspecto, o direito à moradia, visto pelo prisma de direito positivo ou de dimensão prestacional, encontra maiores obstáculos para sua aceitação como direito de aplicabilidade imediata.

De fato, nessa segunda perspectiva, não há como negar que o direito à moradia encontra-se veiculado em norma programática, que, apesar de suas limitações, segundo Canotilho, essas normas, mais que estabelecer simples programas ou orientações desprovidas de qualquer vinculatividade, tem valor jurídico idêntico ao das demais normas constitucionais, impondo ao Estado o dever de atuar no sentido de concretizar o valor ali consagrado. “Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político.”[16]

Porém, ainda assim, sob o âmbito de um direito a prestações materiais, é majoritário o entendimento de que, em regra, não há como extrair direitos subjetivos das normas constitucionais consagradoras de direitos sociais, que são programáticas. Apesar disso, admitir esse posicionamento de maneira absoluta poderá levar a situações de grave injustiça.

Os tratados internacionais que versam acerca do tema, é bem verdade, não estabelecem a obrigação de que os Estados disponibilizem uma moradia digna a todos que necessitem, mas, pelo contrário, apenas determinam que haja o maior empreendimento possível no intuito de garantir que todos tenham uma habitação de qualidade. Não obstante isso, não se pode desconsiderar que eventualmente se possa admitir que seja reconhecido pelo Judiciário um direito subjetivo a prestações fáticas, diretamente a partir do texto constitucional.[17]

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Para Robert Alexy, é possível o reconhecimento de direitos subjetivos originários (extraídos diretamente do texto da Constituição) em determinadas circunstâncias: quando imprescindíveis ao princípio da liberdade fática[18] e quando o princípio da separação dos poderes, bem como outros princípios materiais, incluindo os concernentes a direitos fundamentais de terceiros, forem atingidos de forma diminuta. E, ainda no pensamento do mencionado filósofo do direito, essas circunstâncias estariam atendidas, quando, por exemplo, não estivesse sendo garantido um padrão mínimo no que diz respeito aos direitos sociais.[19]

Os argumentos utilizados por aqueles que negam a possibilidade de serem concedidos direitos subjetivos a prestações materiais por parte do Poder Público, como a violação do princípio da separação dos poderes (o Judiciário estaria invadindo a competência do Legislativo ao determinar o conteúdo de um direito ainda não regulado) e o princípio da reserva do possível (que condiciona a garantia de atendimento de direitos reconhecidos à disponibilidade material do Estado), muitas vezes, de fato, podem ser admitidos, mas isso deve ser analisado, como já demonstrado, à luz do caso concreto, sob pena de ocorrer grave violação à própria dignidade humana.

Pode-se citar como exemplo disso questão que corriqueiramente chega ao Judiciário, que é o caso de demandas que buscam a concretização do direito social à saúde. Frente à precariedade dos hospitais públicos, muitas pessoas não conseguem internação em situações de risco de vida. Assim, buscam no Judiciário decisões que obriguem o Estado a garantir uma vaga para aquele que necessita, determinando-se, inclusive, a obrigação de custear internação em hospital particular à custa do erário.

Destarte, a partir do padrão de mínimo existencial preconizado por Alexy, é possível o reconhecimento de direito subjetivo a prestação material por parte do Estado no que tange a direitos sociais, tendo em vista as peculiaridades do caso concreto,

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quando deve ser realizado um sopesamento dos princípios que se encontrem em embate num determinado caso específico, com o fim de evitar grave violação a direito fundamental.

Com efeito, saliente-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é que deve servir de orientador para a determinação de um padrão mínimo de direitos sociais a ser atendido e reconhecido.

O direito à moradia é essencial à subsistência do Homem, expressão mínima do direito à vida. “Dar ao indivíduo o direito de morar é promover-lhe o mínimo necessário a uma vida decente e humana. É proporcionar-lhe condições mínimas de sobrevivência.”[20]

Dessa forma, ainda que, em regra, o Estado não seja obrigado a dar a todos que precisem uma moradia digna, no mínimo, ele deve empenhar-se para fazer com que o direito à moradia, consagrado expressamente entre os direitos sociais, seja ao máximo concretizado e respeitado. Entretanto, frente à realidade que se nos apresenta, isso ainda está longe de acontecer, em face das condições precárias em que muitas pessoas vivem.

Por fim, diante desse duplo comportamento omissivo por parte do Estado acima apresentado, somado às intempéries naturais que anualmente ocorrem, notadamente as chuvas, as quais ocasionam, como já demonstrado, grandes desastres, muitas pessoas têm se dirigido ao Judiciário com o fim de obter uma reparação dos danos sofridos em face do Poder Público. É sobre essa questão que se fará uma análise no tópico seguinte.

4 O TRATAMENTO NO JUDICIÁRIO EM FACE DOS DANOS SOFRIDOS POR AQUELES QUE HABITAM EM ÁREAS DE RISCO

Como já dissemos, em regra, ninguém vai morar em áreas de risco por que quer, mas sim por não ter condições financeiras de adquirir uma moradia localizada onde as necessidades mais básicas estejam asseguradas, como segurança, saneamento básico, água encanada, enfim, tudo o que é fundamental para uma

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vida digna. Destarte, muitos dos que lá habitam estão ali por não terem para onde mais ir.

Os danos sofridos em razão de habitarem aquelas áreas têm levado muitas pessoas ao Judiciário na busca de cobrar do Estado a reparação das lesões que sofreram, em grande parte, por pura conduta omissiva estatal, que, mesmo prevendo a ocorrência de danos a muitas famílias, pouco fez para evitá-los ou, pelo menos, minimizá-los.

E, os órgãos jurisdicionais vêm caso a caso condenando o Poder Público a indenizar essas pessoas, reconhecendo que sua conduta omissiva em permitir que elas se instalassem naqueles locais e lá permanecessem, mesmo com a forte previsão da provável concretização de eventos danosos, contribuiu de maneira fundamental para a confirmação dos fatos que foram previstos: perda de bens e vida humana em razão de deslizamentos de encostas ocasionados pelas chuvas, por exemplo.

Seguem alguns julgados que confirmam o que se afirma:

EMENTA: Responsabilidade civil. Chuvas. Edificação irregular (favela). Deslizamento. Tragédia anunciada. Ato omissivo da municipalidade. Morte de menor. Danos material e moral. Pensionamento. Sucumbência recíproca. O deslizamento de terra provocado por forte chuva, aliado à inexistência de obra de contenção na encosta, evidencia a omissão da municipalidade em exercer sua atividade de polícia em matéria de construções e uso irregular do solo, assim como, e o que é mais grave, o descumprimento de seu dever de zelar pela segurança de seus munícipes. O deslizamento de terra em encosta, onde se encontra edificada uma favela, fruto da total omissão da autoridade administrativa em não ter promovido a interdição total da área afetada por sucessivos deslizamentos, reflete a culpa do órgão público,

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que, mais do que advertida, deixa de adotar providências eficazes para evitar o acidente, previsível e, portanto, evitável.(...)[21]

EMENTA: Responsabilidade civil - Ação de indenização por morte de filho menor dos autores em decorrência de deslizamento de terra - Omissão do Poder Público na remoção da família da área de risco - Inocorrência de obras suficientes para conter o aludido deslizamento de terra - Sentença de improcedência - Inadmissibilidade -Recurso provido para julgar parcialmente procedente a demanda.[22]

Destarte, uma vez reconhecido que a conduta omissiva estatal em agir no sentido de garantir a integridade física e patrimonial daqueles que vivem em áreas de risco contribuiu para o evento danoso, o Judiciário vem condenando o Estado a reparar os danos ocorridos na exata medida da culpabilidade deste.

Apesar disso, observa-se que há um ponto controverso no que diz respeito a esse tema. Divergência existente no meio doutrinário transborda para a realidade diária do Judiciário, fazendo com que haja decisões diversas em relação a qual teoria da responsabilidade civil se aplica nos casos de condutas omissivas estatais: se a teoria da responsabilidade objetiva ou se a teoria da responsabilidade subjetiva, na modalidade culpa administrativa ou culpa anônima, que tem base na teoria francesa da 'faute de service'. Seguem algumas dessas decisões divergentes para ilustrar a questão:

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANO MORAL -OMISSÃO DO PODER PÚBLICO - DESLIZAMENTO DE TERRAS EM RAZÃO DA CHUVA - SOTERRAMENTO - TRAGÉDIA NA VILA MORRO DAS PEDRAS -

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RESPONSABILIDADE SUBJETIVA - CULPA CARACTERIZADA - 'FAUTE DU SERVICE'.

A responsabilidade da Administração Pública, pela 'faute du service', é subjetiva e está subordinada à prova dos danos, da culpa, e do nexo de causalidade entre a ausência ou má prestação do serviço público e o evento danoso. O Município tem o dever de indenizar a mãe, a título de danos morais, pelo sofrimento advindo da trágica perda dos 06 (seis) filhos, mortos por soterramento, em consequência do deslizamento de terras, restando caracterizada a omissão, em virtude da inexecução de obras ou da adoção de medidas preventivas com o fim de conter os danos provocados pelas chuvas torrenciais que, apesar de registradas no passado, não foram objeto de cautelas técnicas da Prefeitura. V.V.[23] (Grifo Nosso)

EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO - PRESSUPOSTOS PRIMÁRIOS QUE DETERMINAM A RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO - O NEXO DE CAUSALIDADE MATERIAL COMO REQUISITO INDISPENSÁVEL À CONFIGURAÇÃO DO DEVER ESTATAL DE REPARAR O DANO - NÃO-COMPROVAÇÃO, PELA PARTE RECORRENTE, DO VÍNCULO CAUSAL - RECONHECIMENTO DE SUA INEXISTÊNCIA, NA ESPÉCIE, PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS - SOBERANIA DESSE PRONUNCIAMENTO JURISDICIONAL EM MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA - INVIABILIDADE DA DISCUSSÃO, EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA, DA EXISTÊNCIA DO NEXO CAUSAL -

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IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA (SÚMULA 279/STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.

Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem(a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o "eventus damni" e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público que tenha, nessa específica condição, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Precedentes.(...)[24] (Grifo Nosso)

Não fossem as consequências práticas que se revelam pela adoção de uma teoria ou de outra, o fato não teria tanta importância, pois em ambas o Estado é responsável pelos danos decorrentes de sua conduta omissiva. A questão central, e que possui relevância, gira em torno notadamente da prova da culpa, que, como se sabe, não precisa ser comprovada pelo particular em sede de responsabilidade objetiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conduta omissiva do Estado voltada a permitir que diversas pessoas construíssem suas casas em áreas qualificadas como de risco e assim permanecessem tem influência direta e imediata no resultado desastroso que se relatou. Que até prevaleça o entendimento de que o Estado não tem obrigação de dar uma moradia adequada a todos os que necessitem, mas não fazer o mínimo para preservar a vida e os bens daqueles que já não possuem quase nada, os quais estão naqueles locais por premente necessidade, mostra-se abusivo, devendo responder por isso.

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Percebe-se, ainda, o quão é difícil a concretização dos direitos sociais. Embora direitos fundamentais, cuja aplicabilidade seria imediata, encontram-se insculpidos em normas cujo conteúdo é tão vago que o Estado, muitas vezes, utiliza-se disso para não cumpri-los.

O fato é que não se pode admitir que direitos mínimos, sem os quais o ser humano nem é humano, deixem de ser efetivados pelas mais diversas desculpas, sob pena de, embora reconhecidos, serem vazios. Direitos humanos básicos não podem ficar na dependência da reserva do possível. Quando aqueles direitos mínimos não estiverem sendo garantidos, o Judiciário é o caminho. E, este Poder deve, à luz do caso concreto, e com base no princípio da proporcionalidade, sopesar os valores e princípios em confronto, para, de forma coerente, determinar que o Estado garanta aqueles direitos em respeito ao fundamento maior de nossa República: o respeito à dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.

CARVALHO, Ana Luisa Soares. Regularização fundiária em áreas de risco: possibilidades, desafios e responsabilidades.Revista da Procuradoria geral do Município de Porto Alegre.Rio grande do Sul, n. 22, p. 16-26, dezembro de 2008. Disponível emhttp://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/pgm/usu_doc/revistapgm22.pdf#page=16). Acesso em 27 de jul. 2016.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21a Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

___________, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

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NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito Fundamental à Moradia. 1ª ed. São Paulo: Pillares, 2008.

PIVA, Juliana Del. Uma Cidade na Lama. Revista ISTOÉ. 18 jan/2012 – n. 2201 - São Paulo: Editora Três, p. 94/95.

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Revista de Ciências Jurídicas. Rio Grande do Sul, v. 4, n. 2, p. 327-383, segundo semestre de 2003. Disponível em http://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77). Acesso em 05 de dez. 2011.

NOTAS:

[1]CARVALHO, Ana Luísa Soares. Regularização fundiária em áreas de risco: possibilidades, desafios e responsabilidades.Revista da Procuradoria geral do Município de Porto Alegre, Rio grande do Sul, n. 22, p. 16-26, dezembro de 2008. Disponível emhttp://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/pgm/usu_doc/revistapgm22.pdf#page=16). Acesso em 27 de jul. 2016.

[2]NÚMERO de mortos chega a 8 em Sapucaia, diz Defesa Civil do RJ. Portal G1. Conteúdo disponível em <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/01/numero-de-mortos-chega-8-em-sapucaia-diz-defesa-civil-do-rj.html> Acesso em 27/07/2016.

[3]FORTALEZA tem 19 mil famílias em áreas de riscos. Diário do Nordeste. Conteúdo disponível em <http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=917283>Acesso em 27/07/2016.

[4]PIVA, Juliana Del. Uma Cidade na Lama. Revista ISTOÉ de 18 jan/2012 – n. 2201 - São Paulo: Editora Três, p. 94/95.

[5]MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 511.

[6]CARVALHO FILHO, José dos Santos. op. cit., p. 73.

[7]MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit., p. 518

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[8]Art. 182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

[9]NOLASCO, Loreci Gottschalk. op. cit., p. 113.

[10]MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit., p. 518.

[11]NOLASCO, Loreci Gottschalk. op. cit., p. 113.

[12]MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit., p. 561/562.

[13]SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., Disponível emhttp://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77 Acesso em 05 de dez. 2011

[14]Idem Ibidem

[15]Idem Ibidem

[16]CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1176/1177.

[17]SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., Disponível emhttp://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77) Acesso em 05 de dez. 2011

[18]Para que dentro de uma sociedade todos sejam, de fato, livres, é necessário não apenas que o Estado se abstenha de intervir na vida particular do indivíduo, mas também que estejam asseguradas condições materiais mínimas para que as liberdades possam realmente ser exercidas. Muito mais que liberdade formal, deve existir liberdade real ou de fato.

[19]ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: CEC, 1997, p. 494 e seguintes Apud SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., Disponível emhttp://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77) Acesso em 05 de dez. 2011

[20]NOLASCO, Loreci Gottschalk. op. cit., p. 88.

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[21]BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. APL 33377 RJ Proc. 2005.001.33377. Relator: Desembargador Maldonado de Carvalho. Rio de Janeiro, DJe 06/01/2006.

[22]BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. SP – APL. - Proc. 0173703-65.2006.8.26.0000. Relator: Desembargador Ferreira Rodrigues. São Paulo, Dje 25/07/2011

[23]BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. MG – APL. - Proc. 1.0024.03.009941-0/001(1) Relator: Desembargador Fernando Bráulio. Minas Gerais, DJe 04/05/2006

[24]BRASIL. Supremo tribunal Federal - RE-AgR 481110 – Relator: Ministro Celso de Mello. DJu 09/03/2007.

 

   

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MIGRAÇÃO ENTRE POLOS NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

EDMARA DE ABREU LEÃO: Procuradora Municipal do Município de Manaus. Pós-graduação Lato Sensu em Direito Processual pela Universidade da Amazônia e especialização em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas. Atualmente é Procuradora do Município de Manaus.

Resumo: O presente artigo discorre, de maneira sucinta, sobre a possibilidade de migração de polos pelo Poder Público instituída pela Lei de Ação Popular e repetida pela Lei de Ação de Improbidade, dispositivos que se aplicam à Ação Civil Pública estabelecida pela Lei n. 7.347/85, bem como será abordado o procedimento para a “troca” de polos para a efetivação de tal alteração.

Palavras-chave: Migração de polos – Poder Público – Ação Civil Pública – Procedimento.

1. INTRODUÇÃO.

Não raras vezes o Ente Público, réu em uma ação coletiva, tem interesse e legitimidade em “trocar” de posição, para atuar no polo ativo da demanda.

Nesses casos, tanto a Lei da Ação de Popular quanto à Lei de Improbidade Administrativa expressamente possibilitaram a migração de polos desde que útil ao interesse público.

Tais leis, ao integrarem o microssistema da tutela coletiva, podem ser aplicadas à Ação Civil Pública, como será adiante abordado.

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2. DO AJUIZAMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM FACE DO PODER PÚBLICO. DA MIGRAÇÃO DE POLOS NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ARTIGO 6º, PARÁGRAFO 3º, DA LEI DE AÇÃO POPULAR E DO ARTIGO 17, PARÁGRAFO 3º, DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL A RESPEITO DO TEMA.

Em regra, quando do ajuizamento de uma demanda coletiva, seja pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, é o Ente Público que figura no polo passivo seja em razão de uma conduta comissiva ou em decorrência de sua omissão.

No caso das Ações Civis Públicas não é diferente.

Com base na Lei n. 7.347/85, pode ser ajuizada Ação Civil Pública em face do Poder Público para apurar a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, à ordem urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos e ao patrimônio público e social, sem prejuízo da ação popular.

Entretanto, na grande maioria das vezes, o Ente Público, réu na demanda coletiva, tem interesse e legitimidade na proteção do bem jurídico ofendido.

Podem ser destacadas as hipóteses em que há danos morais e patrimoniais causados ao meio-ambiente e à ordem urbanística.

Em tais casos, o Poder Público é obrigado constitucionalmente a proteger os referidos bens.

Nos termos dos artigos 23 e 24 da CF/88, in verbis:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

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(...)

VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

(...)

VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;

VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

Ainda pelo art. 225 da CF/88:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Nessas situações, ao Ente Público deve ser facultada a opção de “troca” do polo passivo para o polo ativo da demanda.

Corretamente, a Lei da Ação Popular, Lei 4.717/65, em seu artigo 6º, parágrafo 3º[1], possibilitou às pessoas jurídica de direito público ou de direito privado, dentre diversas ações, atuar ao lado do autor da ação, desde que haja decisão do representante legal da pessoa jurídica e seja útil ao interesse público.

De acordo com o referido dispositivo, os requisitos para que a pessoa jurídica de direito público possa requerer a alteração no polo subjetivo da lide são: existência do interesse público ejuízo exclusivo do respectivo representante legal ou dirigente.

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Da mesma forma, a Lei de Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429/92, em seu artigo 17, parágrafo 3º, ao fazer referência ao § 3o do art. 6o da Lei no 4.717/1965, possibilitou a chamada migração de polos.

Em que pese a Lei n. 7.347/85 nada ter dito sobre o assunto, é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que tais dispositivos se aplicam ao procedimento da Ação Civil Pública.

A doutrina tem abordado o assunto com diferentes denominações.

Para Rodrigo Mazzei[2], esta opção é chamada de "Intervenção móvel da pessoa jurídica de direito público".

O assunto é destacado por Antônio do Passo Cabral[3], ao tratar da “Despolarização do processo” e “Zonas de interesse”.

Já Alexander dos Santos Macedo[4] se refere à questão como a "Retratabilidade da posição assumida pela pessoa jurídica no processo."

Jurisprudencialmente, destacam-se os seguintes julgados:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MIGRAÇÃO DE ENTE PÚBLICO PARA O PÓLO ATIVO. INTERESSE PÚBLICO. POSSIBILIDADE. 1. Cuidam os autos de Agravo de Instrumento interposto contra decisão proferida em Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal que deferiu o pedido de migração da União e do Estado do Paraná para o pólo ativo da ação. 2. O deslocamento de pessoa jurídica de Direito Público do pólo passivo para o ativo na Ação Civil Pública é possível, quando presente o interesse público, a juízo do representante legal ou do dirigente, nos moldes do art. 6º, § 3º, da Lei 4.717/1965, combinado com o art. 17, § 3º, da

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Lei de Improbidade Administrativa. 3. A suposta ilegalidade do ato administrativo que autorizou o aditamento de contrato de exploração de rodovia, sem licitação, configura tema de inegável utilidade ao interesse público. 4. Agravo Regimental não provido. (STJ - AgRg no REsp: 1012960 PR 2007/0295248-7, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 06/10/2009, T2 - SEGUNDA TURMA, DJe 04/11/2009).

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS. MICROSSISTEMA DE DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE DA UNIÃO PARA FIGURAR NOS POLOS PASSIVO E ATIVO DA AÇÃO. POSSIBILIDADE. DEVER DE FISCALIZAR A ATUAÇÃO DOS DELEGATÁRIOS DO SUS. DIREITO A RECOMPOSIÇÃO DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO DECORRENTE DO REPASSE DE VERBA. 1. As ações de defesa dos interesses transindividuais e que encerram proteção ao patrimônio público, notadamente por forca do objeto mediato do pedido, apresentam regras diversas acerca da legitimação para causa, que as distingue da polarização das ações uti singuli, onde é possível evitar a 'confusão jurídica' identificando-se autor e réu e dando-lhes a alteração das posições na relação processual, por forca do artigo 264 do CPC. 2. A ação civil pública e a ação popular compõem um microssistema de defesa do patrimônio público na acepção mais ampla do termo, por isso que regulam alegitimatio ad causam de forma especialíssima. 3. Nesse seguimento, ao Poder Público, muito embora legitimado passivo para a ação civil pública, nos termos do §2º, do art. 5º, da Lei n. 7.347/85, fica facultado habilitar-se como litisconsorte de qualquer das partes. 4. O art. 6º da Lei da Ação Popular, por seu turno, dispõe que, muito embora a ação possa ser proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, bem como as autoridades,

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funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissão, tiverem dado oportunidade a lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo, ressalva no parágrafo 3º do mesmo dispositivo que, verbis: 3º - A pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente. 5. Essas singularidades no âmbito da legitimação para agir, além de conjurar as soluções ortodoxas, implicam a decomposição dos pedidos formulados, por isso que o poder público pode assumir as posturas acima indicadas em relação a um dos pedidos cumulados e manter-se no polo passivo em relação aos demais. 6. In casu, a União e demandada para cumprir obrigação de fazer consistente na exação do dever de fiscalizar a atuação dos delegatários do SUS e, ao mesmo tempo, beneficiaria do pedido formulado de recomposição de seu patrimônio por forca de repasse de verbas. 7. Revelam-se notórios, o interesse e a legitimidade da União, quanto a esse outro pedido de reparação pecuniária, mercê de no mérito aferir-se se realmente a entidade federativa maior deve ser compelida a fazer o que consta do pedido doparquet. 8. Recurso especial desprovido para manter a União em ambos os polos em relação aos pedidos distintos em face da mesma formulados. (REsp 791.042/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, DJ 09/11/2006).

3. DO PROCEDIMENTO PARA A “MIGRAÇÃO DE POLOS”.

Com o ajuizamento da Ação Civil Pública, em regra pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública[5], forma-se o processo como uma relação jurídica complexa na qual os diversossujeitos processuais (partes, procuradores, juiz, auxiliares

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da justiça e terceiros) são titulares de direitos e deveres, o que permite a um único sujeito assumir mais de uma posição jurídica processual.

No caso do Ente Público, instado como réu na ação coletiva, é a partir da citação que o mesmo toma ciência dos autos e verifica o seu interesse e legitimidade na lide.

De acordo com o Novo Código de Processo Civil, artigo 335, o Poder Público será citado para comparecer a uma audiência de conciliação e mediação.

Ocorrendo a audiência ou havendo o pedido de seu cancelamento, abre-se o prazo de 30 (trinta) dias úteis para o Ente Público oferecer contestação (art. 183 do CPC).

Em que pese o art. 336 do CPC estabelecer que incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, sob pena de preclusão, o posicionamento majoritário do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que ao Ente Público é permitido migrar do polo passivo para o ativo a qualquer tempo, não havendo o que se falar em preclusão do direito.

A fundamentação reside no fato de que a Lei da Ação Civil Pública não trouxe qualquer limitação quanto ao momento em que deve ser realizada a migração.

Além disso, o art. 17 da Lei n. 7.347/85, ao preceituar que a entidade pode, ainda que tenha contestado a ação, proceder à execução da sentença na parte que lhe caiba, evidencia a viabilidade de composição do polo ativo a qualquer tempo.

Nesse sentido, citam-se os seguintes julgados:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POPULAR. MIGRAÇÃO DE ENTE PÚBLICO PARA O PÓLO ATIVO APÓS A CONTESTAÇÃO. PRECLUSÃO. NÃO-OCORRÊNCIA 1. Hipótese em que o Tribunal a quo concluiu que o ente público somente pode migrar para o pólo ativo da

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demanda logo após a citação, sob pena de preclusão, nos termos do art. 183 do Código de Processo Civil. 2. O deslocamento de pessoa jurídica de Direito Público do pólo passivo para o ativo na Ação Popular é possível, desde que útil ao interesse público, a juízo do representante legal ou do dirigente, nos moldes do art. 6º, § 3º, da Lei 4.717/1965. 3. Não há falar em preclusão do direito, pois, além de a mencionada lei não trazer limitação quanto ao momento em que deve ser realizada a migração, o seu art. 17 preceitua que a entidade pode, ainda que tenha contestado a ação, proceder à execução da sentença na parte que lhe caiba, ficando evidente a viabilidade de composição do pólo ativo a qualquer tempo. Precedentes do STJ. 4. Recurso Especial provido. (STJ – REsp 945238 / SP, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, j. 09/12/2008, DJe 20/04/2009).

(...) Cinge-se a controvérsia acerca da possibilidade de o Município, após oferecer contestação à Ação Popular, aliar-se ao autor em litisconsórcio. A insurgência não prospera. O Tribunal local julgou a matéria em consonância com a pacífica jurisprudência desta Corte, no sentido de que, em se tratando de Ação Popular, ao ente público é permitido migrar do polo passivo para o ativo a qualquer tempo, a juízo de seu representante legal, a fim de defender o interesse público. (...) (REsp 1185928/ SP, Ministro CASTRO MEIRA, DJ: 15/06/2010).

Todavia, importa destacar que há julgado do Superior Tribunal de Justiça que se posicionou pela necessidade do Ente Público requerer a migração de polos dentro do prazo da contestação, sob pena de preclusão.

Para tanto, transcreve-se o referido julgado:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO POPULAR –PEDIDO DE CONCESSÃO DE PRAZO EM DOBRO PARA CONTESTAR NOS TERMOS DO ART. 7º,

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IV DA LEI 4717/65 –ULTERIOR REQUERIMENTO DO ENTE PÚBLICO PARA INGRESSAR NO PÓLO ATIVO DA DEMANDA – PRECLUSÃO LÓGICA OU TEMPORAL INEXISTENTE – AUSÊNCIA DE VEDAÇÃO LEGAL – DANO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO E A PRINCÍPIOS BASILARES DO DIREITO ADMINISTRATIVO –PRESENÇA INCONTESTÁVEL DE INTERESSE JURÍDICO. 1. O requerimento para figurar no pólo ativo da relação processual foi exercido dentro do prazo para o oferecimento da contestação, não se havendo falar em preclusão lógica ou temporal em razão da entidade de direio público ter pleiteado - nos termos do art. 7º, IV, da Lei 4.717/65 - o prazo em dobro para a resposta à ação. 2. O fato de o ente público ter pedido prazo em dobro para responder à ação não quer dizer que ele praticou ato incompatível com a faculdade de requerer o ingresso no pólo ativo da relação processual. A incompatibilidade só teria ocorrido se, efetivamente, a municipalidade tivesse apresentado contestação. 3. Ademais, em nenhum momento a lei da ação popular estabeleceu a incompatibilidade entre o pedido de concessão de prazo em dobro para contestar, e a faculdade, estabelecida no art. 6º, § 3º da mesma lei, que permite ao ente público pleitear o ingresso no pólo ativo da demanda. Dessa forma, no silêncio da lei, não cabe fazer interpretações restritivas, mormente quando se está diante de uma garantia constitucional posta à disposição do cidadão para a defesa do patrimônio público. 4. In casu, o interesse jurídico da municipalidade em figurar no pólo ativo da ação popular é palmar, tendo em vista que o objeto da demanda visa a defender o patrimônio público, e, em última análise, também os princípios mestres do sistema de direito administrativo, dentre os quais a legalidade, a moralidade e a isonomia. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 973905/ SP. Ministro HUMBERTO MARTINS. DJ: 04/06/2009).

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Ainda, destaca-se que, em razão da possibilidade da decomposição dos pedidos formulados na demanda coletiva, o Poder Público pode assumir o polo ativo em relação a um dos pedidos cumulados e manter-se no polo passivo em relação aos demais.

Essa situação bifronte foi denominada por Antonio do Passo Cabral de “Migração pendular da pessoa jurídica de direito público”[6], na qual são admitidas migrações sucessivas de um polo ao outro.

A migração pendular já foi analisada e admitida pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 791.042/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, DJ 09/11/2006 p. 261[7].

Vale ressaltar que o pedido de "troca de polos" não é passível de conhecimento ex officio pelo juiz, seja pela ausência de previsão legal (art. 337 do CPC), seja pela necessidade do Poder Público provar a utilidade pública na sua migração do polo ativo para o passivo.

Entende-se que, uma vez alegado pelo Poder Público o seu interesse na alteração do polo, deve ser aplicado o disposto nos artigos 10 e 338 do CPC. Assim, o juiz deve intimar o autor para se manifestar sobre alegação do réu, facultando-lhe promover a alteração da petição inicial no prazo de 15 (quinze) dias. Ao final, o juiz decide sobre o pedido do Poder Público.

E, da decisão que defere ou indefere o pedido de migração de polos cabe o Recurso de Agravo de Instrumento, nos termos do art. 1015, inciso IX, do CPC.

4. CONCLUSÃO

Depreende-se do texto que, a depender do bem jurídico violado, o Poder Público tem interesse e legitimidade na proteção do bem lesado.

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Assim, quando há o dever constitucional na tutela jurídica do bem, o Poder Público instado inicialmente como réu em uma Ação Civil Pública pode manifestar o seu interesse em migrar para o polo ativo da demanda.

Tal opção encontra amparo legal no artigo 6º, parágrafo 3º, da Lei da Ação Popular (Lei 4.717/65) e no artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/92), cujos disposições são aplicáveis ao procedimento da Ação Civil Pública.

Como requisitos para a “troca de polos”, são necessários: a demonstração do interesse público e decisão do representante legal da pessoa jurídica.

No que se refere ao procedimento para análise do pedido de migração de polos, verifica-se que não há momento processual adequado para que essa opção seja realizada. As leis referentes ao assunto nada dispuseram a respeito, havendo julgados do Superior Tribunal de Justiça que, em sua maioria, defendem que o requerimento de migração de polos pode ser feito a qualquer tempo, inclusive, após a apresentação da contestação e não está sujeito à preclusão.

O pedido de alteração de polo ativo não é passível de conhecimento de ofício pelo juiz, uma vez que deve ser demonstrado pelo Poder Público o eventual interesse público em discussão.

E, da decisão que defere ou indefere o pedido de migração de polo, cabe o recurso de Agravo de Instrumento.

Assim, constata-se que a figura da migração de polo pelo Poder Público corresponde a um importante instrumento processual que possibilita a correção no polo ativo da demanda coletiva e, ainda, a defesa do bem jurídico constitucionalmente garantido.

5. REFERÊNCIAS

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BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015.

CABRAL, Antonio do Passo. “Despolarização do processo e “zonas de interesse”: sobre a migração entre polos da demanda”. Reconstruindo a Teoria Geral do Processo. Disponível em <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/25/24> Acesso em: 04 julho 2016.

DIDIER JR., Fredie. Novo Código de Processo Civil de 2015 - Comparativo com o Código de 1973. Salvador: Juspodivm, 2016.

_________________ e WAMBIER, Teresa Arruda Wambier (coord.). Aspectos polêmicos e atuais sobre terceiros no processo civil e assuntos afins. São Paulo: RT, 2007.

GOMES JR., Luiz Manoel. Ação Popular: alteração do polo jurídico da relação processual – considerações. Revista Dialética de Direito Processual, v. 10, jan. 2004.

MAZZEI, Rodrigo. A “intervenção móvel” da pessoa jurídica de direito público na ação popular e ação de improbidade administrativa (art. 6º, § 3º, da LAP e art. 17, § 3º, da LIA). Revista Forense, ano 104, v. 400, nov.- dez. 2008.

MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. São Paulo: RT, 2009.

ZANETI JR. Hermes. A legitimação conglobante nas ações coletivas: a substituição processual decorrente do ordenamento jurídico. In: ASSIS, Araken de et al. (Coord.). Direito Civil e Processo: Estudos em homenagem ao Professor Arruda Alvim. São Paulo: RT, 2008.

NOTAS:

[1] Art. 6º (...) §3º A pessoas jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde

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que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente.

[2] MAZZEI, Rodrigo. A “intervenção móvel” da pessoa jurídica de direito público na ação popular e ação de improbidade administrativa (art. 6º, § 3º, da LAP e art. 17, § 3º, da LIA). Revista Forense, ano 104, v. 400, nov.- dez. 2008.

[3] CABRAL, Antonio do Passo. “Despolarização do processo e “zonas de interesse”: sobre a migração entre polos da demanda”. Reconstruindo a Teoria Geral do Processo. Disponível em <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/25/24> Acesso em: 04 julho 2016.

[4] MACEDO, Alexander dos Santos. Da ação popular - Retratabilidade da posição assumida pela pessoa jurídica no processo - Possibilidade, Revista Forense n. 328, páginas 3.

[5] EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ART. 5º, INC. II, DA LEI N. 7.347/1985, ALTERADO PELO ART. 2º DA LEI N. 11.448/2007). TUTELA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS (COLETIVOS STRITO SENSU E DIFUSOS) E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DEFENSORIA PÚBLICA: INSTITUIÇÃO ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL. ACESSO À JUSTIÇA. NECESSITADO: DEFINIÇÃO SEGUNDO PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS GARANTIDORES DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS: ART. 5º, INCS. XXXV, LXXIV, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE NORMA DE EXCLUSIVIDAD DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELO RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. (ADI 3943, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-154 DIVULG 05-08-2015 PUBLIC 06-08-2015).

[6] CABRAL, Antonio do Passo. “Despolarização do processo e “zonas de interesse”: sobre a migração entre polos da demanda”.

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Reconstruindo a Teoria Geral do Processo. Disponível em <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/25/24> Acesso em: 04 julho 2016.

[7] PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS. MICROSSISTEMA DE DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE DA UNIÃO PARA FIGURAR NOS PÓLOS PASSIVO E ATIVO DA AÇÃO. POSSIBILIDADE. DEVER DE FISCALIZAR A ATUAÇÃO DOS DELEGATÁRIOS DO SUS. DIREITO À RECOMPOSIÇÃO DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO DECORRENTE DO REPASSE DE VERBA. 1. As ações de defesa dos interesses transindividuais e que encerram proteção ao patrimônio público, notadamente por força do objeto mediato do pedido, apresentam regras diversas acerca da legitimação para causa, que as distingue da polarização das ações uti singuli, onde é possível evitar a 'confusão jurídica' identificando-se autor e réu e dando-lhes a alteração das posições na relação processual, por força do artigo 264 do CPC. 2. A ação civil pública e a ação popular compõem um microssistema de defesa do patrimônio público na acepção mais ampla do termo, por isso que regulam a legitimatio ad causam de forma especialíssima. 3. Nesse seguimento, ao Poder Público, muito embora legitimado passivo para a ação civil pública, nos termos do § 2º, do art. 5º, da lei 7347/85, fica facultado habilitar-se como litisconsorte de qualquer das partes. 4. O art. 6º da lei da Ação Popular, por seu turno, dispõe que, muito embora a ação possa ser proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, bem como as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissão, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo, ressalva no parágrafo 3º do mesmo dispositivo que, verbis: § 3º - A pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente. 5. Essas singularidades no âmbito da legitimação para agir, além de conjurar as soluções ortodoxas, implicam a decomposição dos pedidos formulados, por isso que o poder público pode assumir as posturas acima indicadas em relação a um dos pedidos cumulados e manter-se no pólo passivo em relação aos demais. 6. In casu, a União é demandada para cumprir obrigação de fazer consistente na exação do dever de

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fiscalizar a atuação dos delegatários do SUS e, ao mesmo tempo, beneficiária do pedido formulado de recomposição de seu patrimônio por força de repasse de verbas. 7. Revelam-se notórios, o interesse e a legitimidade da União, quanto a esse outro pedido de reparação pecuniária, mercê de no mérito aferir-se se realmente a entidade federativa maior deve ser compelida à fazer o que consta do pedido do parquet. 8. Recurso especial desprovido para manter a União em ambos os pólos em relação aos pedidos distintos em face da mesma formulados. (REsp 791.042/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/10/2006, DJ 09/11/2006, p. 261).

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O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO COMO NOVA DIRETRIZ CONSTITUCIONAL DE TUTELA AMBIENTAL: O CONTRASTE ENTRE O IDEAL CONSTITUCIONAL E A REALIDADE BRASILEIRA

ANTONIO BRAGA DA SILVA JÚNIOR: Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

RESUMO: O presente trabalho discorrerá acerca do meio ambiente laboral como uma das facetas da unidade ambiental tutelada na Lei Maior. Serão apresentados a contextualização do direito ambiental como direito fundamental de terceira dimensão, sua evolução normativa no ordenamento jurídico nacional e os aspectos gerais de seu conceito. Passando ao enfoque no direito ambiental do trabalho, será abordado o surgimento dessa nova disciplina jurídica, a respectiva conceituação doutrinária e as condições para o alcance de um ambiente de trabalho sadio, de modo a tornar possível explorar a aparente contradição existente no fato de a Constituição da República assegurar o direito fundamental a um ambiente laboral equilibrado e saudável e, ao mesmo tempo, estipular adicionais remuneratórios que admitem a “compra” da saúde, da integridade física e da vida social do trabalhador. Malgrado as evidências deletérias dessa abertura constitucional à mercantilização do direito fundamental à sadia qualidade de vida laboral, vislumbrar-se-á uma defensável função dos adicionais legais remuneratórios: o caráter punitivo e pedagógico como mecanismo adicional de tutela do meio ambiente do trabalho, sem prejuízo do propósito principal de eliminação da nocividade ambiental de que depende a efetividade do direito fundamental a um ambiente do trabalho equilibrado e saudável.

PALAVRAS-CHAVE: Direito ambiental. Meio ambiente do trabalho. Monetização do risco ocupacional.

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ABSTRACT: This paper aims to discuss about the work environment as one aspect of the environmental unit protected by the Constitution. It will be presented the context of environmental law as a fundamental right of third dimension, its normative developments in the national legal system and general aspects of its concept. Focusing on the work environment law, the paper will address the emergence of this new legal discipline, its doctrinal concepts and the conditions for achieving a healthy work environment. It will make possible to explore the apparent contradiction between the fundamental right to a balanced and healthy working environment and the legal additional remuneration to "buy" health, physical integrity and the worker's social life, both established by the Constitution. Despite the deleterious evidences of a constitutional possibility of commercialization of the fundamental right to a healthy working, it will be possible to observe a defensible function to the legal additional remuneration: punishment as another protection mechanism of the working environment. Importantly, this extra protection mechanism cannot prejudice the main purpose of elimination of occupational risk, to which depends the effectiveness of the fundamental right to a work environment balanced and healthy.

KEYWORDS: Environmental law. Working environment. Monetization of occupational risk.

Sumário: Introdução. 1. Direito ambiental como novo direito (3ª dimensão). 2. A evolução normativa do direito ambiental. 3. As diversas acepções de meio ambiente. 4. O surgimento do direito ambiental do trabalho. 5. A consolidação do direito ambiental do trabalho. 6. A salubridade no ambiente de trabalho e a monetização do risco ocupacional. Conclusão.

INTRODUÇÃO

O interesse pela proteção do meio ambiente desponta como uma das grandes preocupações da sociedade moderna, marcada

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por evidente crescimento econômico e populacional desordenado e globalizado, em um contexto de sociedade de massa.

Nesse sentido, a tutela do meio ambiente figura atualmente como uma das mais inquietantes preocupações metaindividuais, mormente por tangenciar indiscriminadamente todos os seres humanos, das presentes e futuras gerações, envolvendo desde sua qualidade de vida até sua sobrevivência.

Dentre as diversas acepções desse vasto conceito jurídico denominado "meio ambiente", destaca-se o interesse desse breve artigo em discutir o meio ambiente do trabalho, relacionado direta e imediatamente com a qualidade de vida do ser humano trabalhador, imergido em atividade laboral por cerca de 2/3 (dois terços) de sua vida em proveito econômico de outrem.

Mais especificamente, o objetivo deste trabalho cinge-se à análise do regramento jurídico constitucional que envolve o ambiente laboral, de modo a levantar as inconsistências e contradições surgidas ao se confrontar os nobres ideais constitucionais à realidade trabalhista do país. 1. DIREITO AMBIENTAL COMO NOVO DIREITO (3ª

DIMENSÃO)

Consoante consolidada classificação doutrinária - inspirada nos quatro status do indivíduo perante o Estado, de Georg Jellinek[1] -, os direitos fundamentais podem ser observados em distintas dimensões[2], de acordo com o contexto histórico em que se destacam.[3]

A primeira dimensão identifica-se com o contexto das revoluções liberal-burguesas no século XVIII. Assentam-se esses direitos no liberalismo clássico, encontrando inspiração no racionalismo iluminista. Por exaltar a individualidade humana, oponível à atuação estatal, são chamados de direitos de liberdade, ou, ainda, de direitos “negativos”, dirigidos a uma abstenção do Estado em relação à esfera privada do indivíduo. Os direitos civis e políticos - tais como o direito à vida, à segurança, à propriedade, à

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igualdade formal, à liberdade em seus diversos aspectos (expressão, reunião, religião, locomoção) - constituem os direitos fundamentais de primeira dimensão.

Os direitos fundamentais de segunda dimensão, por outro lado, são decorrentes dos graves problemas sociais que sucederam a Revolução Industrial, bem como das doutrinas socialistas daí advindas. Impõem uma atuação positiva[4] do Estado, uma prestação no sentido de satisfazer as demandas sociais, requerendo, para tanto, políticas públicas convergentes com o ideal de garantir condições materiais aos indivíduos. Conhecidos por direitos de igualdade, são os direitos sociais, econômicos e culturais, onde se inserem o direito à proteção do trabalho, o direito à educação contra o analfabetismo e o direito à saúde, que dominaram o fim do século XIX e o século XX.

A terceira dimensão, por sua vez, decorre da reflexão humanista no tocante a temas de paz mundial, desenvolvimento, meio-ambiente, comunicação. Despidos de conotação diretamente econômica, associam-se às novas facetas de proteção da vida, em um sentido amplo de qualidade de vida, motivados pelos impactos da sociedade industrial e da revolução tecnológica do fim do século XX[5]. Também conhecidos como direitos de solidariedade, não buscam a proteção apenas da individualidade humana, mas do gênero humano, sendo a partir dessa dimensão que surge a concepção humana considerada em sua unidade, e não na fragmentação. Nesse contexto, percebe-se a contribuição dessa dimensão ao surgimento de uma consciência jurídica de grupo, dando ensejo à evidenciação dos direitos coletivos e difusos.[6]

Norberto Bobbio, em sua obra A Era dos Direitos, defende ainda a existência dos direitos de quarta e quinta dimensões. Os de quarta dimensão, segundo citado autor, tratam-se dos direitos relacionados à engenharia genética, referentes a questões relativas à vida. Os direitos de quinta geração, por sua vez, são representados pelos direitos oriundos da realidade virtual, demonstrando a crescente preocupação do sistema constitucional

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como a propagação e desenvolvimento do Direito Eletrônico na atualidade.[7]

A partir dessa breve explanação acerca das diversas dimensões históricas dos direitos fundamentais, é possível notar que o direito ambiental – foco do presente trabalho – é consagrado como terceira dimensão. Ao tutelar a existência humana digna, salubre, livre e igual, com o objetivo de ordenar a qualidade do meio ambiente com vista a uma boa qualidade de vida de todos, o direito ambiental evidencia-se como espécie do gênero de interesses metaindividuais, que se inserem num âmbito global de ordem coletiva em sentido lato.[8] É nítida, portanto, a natureza jurídica de bem de interesse público que se acomete o meio ambiente, resultando vinculado a um fim de interesse coletivo.[9] 2. A EVOLUÇÃO NORMATIVA DO DIREITO AMBIENTAL

A tutela jurídica ambiental sofreu profundas transformações ao longo dos anos na experiência nacional. Em um breve escorço histórico, podemos notar que até o início do século XX o ordenamento jurídico nacional enfrentava a total desregulamentação do direito ambiental, tendo em vista o predomínio de uma concepção privatista do direito de propriedade. Evidenciava-se, então, uma nítida desproteção dos recursos naturais e artificiais que compunham o cenário do convívio social, à exceção de alguns dispositivos esparsos e pontuais, como é o caso do artigo 554 do Código Civil de 1916, que regulava o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha prejudicasse a segurança, o sossego e a saúde da vizinhança, bem como do Regulamento da Saúde Pública - Decreto n.º 16.300/23, que visava impedir que fábricas e oficinas prejudicassem as propriedades próximas.[10]

A partir da década de 30, passam a surgir diplomas legais com o objetivo específico de proteção do meio ambiente, como o Código Florestal – Decreto n.º 23.793/34, o Código de Águas – Decreto n.º 24.643/34, ainda em vigor, e o Código da Pesca – Decreto-Lei n.º 794/38. Contudo, apesar do nobre intuito de proteção ambiental,

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referidas legislações apresentavam-se excessivamente restritivas, porquanto focadas estritamente na proteção de recursos hídricos e florestais.

Somente a partir da Lei n.º 5.318/67 é que se passou a uma visão sistematizada de proteção, com a instituição de políticas públicas para a tutela ambiental. Nesse diploma legal foi instituída a Política Nacional de Saneamento Básico e, já em 1973, foi consolidada a sistematização e ampliação da proteção ambiental com a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente – SEMA (Decreto n.º 73.030/73), orientada para o uso racional e conservação dos recursos naturais.[11]

Malgrado o advento desses diplomas legais, é importante observar que as décadas de 60 e 70 foram marcadas pelo ápice do regime militar, cujo ideal desenvolvimentista impedia avanços no âmbito de proteção ambiental. A propósito, durante a importante Conferência de Estocolmo (1972), marcada por ser a primeira atitude em âmbito mundial para se discutir a relação entre homem e ambiente, o próprio Ministro brasileiro Costa Cavalcante declarou a célebre frase: “Desenvolver primeiro e pagar os custos da poluição mais tarde”.[12]

Todavia, após intensa pressão internacional, o Brasil acaba por acatar as diretrizes discutidas na Conferência de Estocolmo, fazendo surgir no cenário interno a Lei n.º 6.938/81, que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. Maior destaque possui o seu artigo 3º, inciso I, precursor de uma definição de meio ambiente, conceituando-o como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Em que pese seu vanguardismo, nota-se que a citada previsão legal ainda possuía pouca efetividade, uma vez que trazia definição legal demasiadamente ampla, em um conceito jurídico aberto.

Em um passo adiante, na direção da constitucionalização dos valores essenciais à cidadania, a Constituição da República de

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1988 acolhe a conceituação abrangente de meio ambiente. Prevê em seu artigo 225 que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. E, na esteira de utilização da expressão em um sentido abrangente, o texto constitucional define ainda em seu artigo 200 que compete ao sistema único de saúde, além de outras atribuições, “VIII- colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”. 3. AS DIVERSAS ACEPÇÕES DE MEIO AMBIENTE

Tendo em vista uma concepção constitucional propositalmente globalizante de meio ambiente, relacionada à abstrata diretriz “sadia qualidade de vida”, coube à doutrina especificar as diversas acepções do termo.

De acordo com José Afonso da Silva, o conceito de meio ambiente deve ser globalizante, abrangendo a integração não só de elementos naturais (solo, água, fauna, flora), como também elementos artificiais (conjunto de edificações construídas pelo homem) e culturais (patrimônio histórico, turístico, arquitetônico que, embora artificial, é impregnado de valor cultural especial). Segundo o autor:

O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico.

O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção

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unitária do ambiente, compreensiva dos recursos naturais e culturais.

[...] Merece referência em separado o meio

ambiente do trabalho, como o local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente. É um meio que se insere no artificial, mas digno de tratamento especial, tanto que a Constituição o menciona explicitamente no art. 200, VIII. [13]

É possível extrair, portanto, que a Constituição da República se valeu de uma expressão propositalmente globalizante, buscando tutelar não apenas o meio ambiente natural, mas também o artificial, o cultural e, por fim – mas não menos importante – o meio ambiente do trabalho.

Nesse sentido da identificação do meio ambiente do trabalho como parte integrante da ampla proteção ambiental constitucional, leciona Ingo W. Sarlet: “Numa agenda socioambiental, o meio ambiente do trabalho, tanto na perspectiva individual quanto coletiva, deve ser, sim, integrado como norma de direito fundamental à proteção mais ampla da agenda ambiental”.[14]

Imperioso registrar que a identificação doutrinária dessa classificação quadripartite de meio ambiente dá-se por razões didáticas e eminentemente jurídica, na medida em que essas acepções estão sujeitas a regimes jurídicos distintos. Apesar da classificação, há que se ter em mente que os ambientes natural, artificial, cultural e do trabalho não constituem categorias estanques, mas sim integradas em uma unidade ambiental, a serviço da qualidade de vida humana.[15]

Diante do exposto, passemos à análise da nova acepção do direito ambiental, foco deste trabalho: o direito ambiental do trabalho.

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4. O SURGIMENTO DO DIREITO AMBIENTAL DO TRABALHO

Bem se sabe que o Direito não se mostra estático. Pelo contrário, é forçado a se adequar e se reinventar em vista do dinamismo e pluralidade das relações sociais a que visa tutelar, fazendo com que novos ramos surjam continuamente. E esse movimento não foi diferente com o Direito Ambiental. Diante da necessidade de ter como objeto de estudo o local em que o trabalhador desenvolve grande parte da sua vida, relacionado intimamente com sua qualidade de vida, fez-se surgir novo ramo de estudos, ora denominado de Direito Ambiental do Trabalho.

Apesar da recente constituição e denominação desse viés acadêmico e doutrinário, a relação entre Direito Ambiental e Direito do Trabalho não é nova. Desde a Revolução Industrial experimentada na Europa do século XVIII, a humanidade observou uma crescente precarização do ambiente de trabalho, em que homem e máquina coexistiam de forma praticamente simbiótica com vistas ao atendimento das inatingíveis demandas de produtos e serviços.

Em meio à intensificação do ritmo de trabalho, com jornadas exaustivas, muitas vezes executadas em ambiente insalubre e permeado de riscos graves à saúde e à integridade física do trabalhador, a classe proletária se revolta. Surgem, então, as primeiras movimentações sociais em busca não necessariamente da cessação imediata desses riscos, mas sim da compensação financeira dos males à saúde laboral.[16] É nesse sentido que surgem as primeiras discussões que mais tarde ensejaram a criação dos adicionais remuneratórios, atualmente conhecidos por adicional de horas extras, de trabalho noturno, de insalubridade, de periculosidade, dentre outros.

Já entre as décadas de 60 e 70 do século passado, quando se consolidava mundialmente a autonomia do Direito Ambiental, a Organização Internacional do Trabalho – OIT traz as discussões ambientais doutrinárias e acadêmicas para o ramo trabalhista.

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Motivados pelos alarmantes índices de mortes e doenças ocupacionais em todo o mundo industrializado e cientes da necessidade de se prevenir em vez de apenas se compensar os agravos ocupacionais, surgem, em 1976, o Programa Internacional para Melhora das Condições e Meio Ambiente do Trabalho – PIACT[17], e posteriormente, em 1981, a Convenção nº 155 da OIT[18], nomeada Convenção sobre Saúde e Segurança dos Trabalhadores. Esse novo ramo ambiental, portanto, visava à valorização do trabalho humano, mediante a melhoria das condições de trabalho e a proteção da saúde física e mental do trabalhador.

No âmbito do ordenamento jurídico nacional, foi a Constituição Cidadã de 1988 que, como visto acima, primeiro tratou de forma expressa do direito ambiental do trabalho, alçando o direito ambiental do trabalho ao patamar constitucional. Ao elucidar em seu artigo 200, inciso VIII, que o Sistema Único de Saúde deve colaborar na proteção ao meio ambiente, estando nele inserido o meio ambiente do trabalho, a Constituição deixou às claras sua atenção à tutela da saúde do homem trabalhador, que se concretiza mediante um ambiente tendente à minimização dos diversos riscos laborais. 5. A CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL DO

TRABALHO

A partir das já mencionadas referências constitucionais ao meio ambiente de trabalho, erigidas principalmente nos artigos 200, VIII, e 225, doutrinadores nacionais apressaram-se para apresentar estudos que focassem cada uma das categorias que compõem a integridade do direito ambiental. Em meio aos enfoques doutrinários tendentes ao ambiente natural, ao artificial e ao cultural, surge o interesse de estudos jurídicos quanto à tutela do ambiente de trabalho, rumo à concretização da diretriz constitucional relativa ao trabalho salutar e à valorização do trabalho humano.

Problema inicial surge, contudo, quanto ao fato de a Constituição da República, embora tenha evidenciado

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expressamente seu ideal de proteção do meio ambiente do trabalho, não ter conceituado ou especificado essa nova categoria jurídica. Vislumbrava-se, então, verdadeiro conceito jurídico indeterminado[19], cuja responsabilidade pelo esmiuçamento passou a ser assumido pela doutrina.

Na tarefa de conceituar o meio ambiente do trabalho e delimitar constitucionalmente sua esfera de alcance, juristas se dedicam para evidenciar autonomia científica desse ramo ambiental e garantir-lhe aplicabilidade jurídica.

De acordo com importante pesquisador da atualidade, o professor Celso Antônio Pacheco Fiorillo, meio ambiente do trabalho é o local onde o homem exerce suas atividades laborais, remuneradas ou não, cujo equilíbrio baseia-se na salubridade do meio e na ausência de fatores nocivos à incolumidade não apenas física, mas também psíquica dos trabalhadores, independentemente se homens ou mulheres, maiores ou menores, celetistas, autônomos ou servidores públicos.[20]

No mesmo sentido, com observância à integridade física e mental do trabalhador, é a definição do professor Júlio Cesar de Sá da Rocha, para quem o meio ambiente do trabalho é composto por elementos, inter-relações e condições que influenciam o trabalhador em sua saúde física e mental, comportamento e valores presentes no local de seu labor. Para o autor, o homem é afetado diretamente pelo ambiente em que labora, com consequências na prestação e na performance do trabalho.[21]

Em uma visão rica de detalhes fáticos que compõe o cotidiano laboral do trabalhador, Amauri Mascaro Nascimento enxerga o meio ambiente de trabalho como:

o complexo máquina-trabalho; as edificações, do estabelecimento, equipamentos de proteção individual, iluminação, conforto térmico, instalações elétricas, condições de salubridade ou insalubridade, de periculosidade

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ou não, meios de prevenção à fadiga, outras medidas de proteção ao trabalhador, jornadas de trabalho e horas extras, intervalos, descansos, férias, movimentação, armazenagem e manuseio de materiais que formam o conjunto de condições de trabalho.[22]

Importante observar, daí, que a definição de ambiente de trabalho consolidada doutrinariamente é cuidadosamente abrangente. Em um aspecto subjetivo, extrapola as hipóteses de relação empregatícia regida pela CLT, abrangendo todas as formas de trabalho, haja vista a característica da universalidade do direito fundamental ao meio ambiente sadio. E, no aspecto objetivo, é caracterizado não apenas por elementos físicos, químicos e biológicos tal como delineado na já referida Lei n.º 6.938/81, mas também por aspectos sociais, relacionados à qualidade de vida do trabalhador e à sua saúde psíquica[23], com reflexos inclusive em seu convívio social e no direito fundamental ao lazer.

No sentido de amplitude do aspecto objetivo da abrangência do direito ambiental do trabalho, vale citar a lição de Francisco Milton Araújo Júnior acerca da adaptação da CLT às inovações na organização do trabalho, mais especificamente acerca do teletrabalho. Destaca o autor que:

(...) a nova redação do art. 6º da CLT, estabelecida pela Lei n.º 12.551/2011, ao reconhecer o trabalho realizado a distancia mediante a utilização de “meios telemáticos e informatizados de comando”, demonstra que a norma avança para o reconhecimento da concepção dinâmica de meio ambiente do trabalho, ou seja, para o reconhecimento de que o meio ambiente do trabalho, quanto ao aspecto espacial, consiste em todo e qualquer local, natural e/ou artificial (inclusive o ciberespaço), em que o trabalhador desenvolve suas atividades laborais. [24]

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Consoante as definições doutrinárias, portanto, é fundamental ter em mente um pensamento holístico de que o homem, durante a execução do seu trabalho em um ambiente natural ou artificial, físico ou virtual, é parte integrante de um sistema composto também por inter-relações sociais. Assim, observada a necessidade de tutela do bem estar não apenas físico, como também mental e social no ambiente laboral, torna-se possível afastar definitivamente quaisquer resquícios de coisificação e mercantilização do trabalho humano. 6. A SALUBRIDADE NO AMBIENTE DE TRABALHO E A

MONETIZAÇÃO DO RISCO OCUPACIONAL

A qualidade do meio ambiente do trabalho é condicionada à inexistência ou minimização de diversos riscos ocupacionais. É dizer, para a efetividade do direito fundamental ao meio ambiente de trabalho equilibrado e saudável, mostra-se essencial o esforço para eliminação de fatores ameaçadores da plena saúde do trabalhador. A título de exemplo, podemos citar como riscos ocupacionais três tradicionais grupos[25]: riscos físicos, dentre os quais se encontram os riscos em maquinários (ruído, temperatura, radiações), explosivos, trabalho em altura, trânsito urbano; riscos químicos, referentes a inflamáveis, solventes, gases tóxicos; riscos biológicos, relativos à contaminação, animais peçonhentos. Existe, ainda, um grupo de risco associado à fatores psicossociais, do qual fazem parte a jornada exaustiva, o assédio moral e sexual e até mesmo a violência urbana.

Ocorre, contudo, que para desestimular a manutenção de ambientes de trabalho danosos à saúde e integridade física e psíquica do trabalhador, o legislador antes mesmo da Constituição de 1988 cuidava em estipular apenas verbas compensatórias de danos ao trabalhador, sem enfocar a eliminação ou minimização dos riscos. É o caso, por exemplo, do adicional de periculosidade[26], do adicional de insalubridade[27], do adicional de horas extras, adicional noturno.

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E, após o advento da Constituição Cidadã de 1988, mesmo com a avançada e precursora previsão do direito a um meio ambiente de trabalho equilibrado e saudável, consoante os já referidos artigos 200, VIII, e 225, o constituinte manteve a previsão dos adicionais que compensem financeiramente o trabalhador exposto a riscos ocupacionais, como uma forma de desestimular a exploração de mão-de-obra em ambientes danosos. Vide, nesse sentido, o artigo 7º, incisos IX, XVI e XXIII[28].

Não seria, então, contraditório o fato de a Constituição da República assegurar o direito fundamental a um meio ambiente do trabalho equilibrado e saudável e, ao mesmo tempo, estipular adicionais que admitem a “compra” da saúde, da integridade física e da vida social do trabalhador, sem qualquer compromisso com a busca por eliminação dos riscos ocupacionais?

A previsão de mencionados adicionais remuneratórios no ordenamento jurídico nacional reflete a cultura arraigada no Brasil, de monetização do risco ocupacional. E essa cultura é decorrente tanto do comportamento da classe empresarial quanto da classe trabalhadora.

Quanto ao empregador, em vez de envidar esforços no planejamento e organização empresarial para eliminação ou minimização do risco no ambiente de trabalho, via de regra define deliberadamente como mais vantajoso ao negócio o pagamento dos adicionais legais (adicional de insalubridade, de periculosidade, de horas extras, noturno), haja vista o baixo custo destes em relação ao alto dispêndio de tempo e de recursos humanos e materiais na atividade preventiva. Como se não bastasse, o empregador se vale ainda da ineficiência fiscal estatal e da morosidade e não universalidade da Justiça do Trabalho para a cobrança dos adicionais legais, fato que evidencia ainda mais a vantagem econômica da monetização do risco.

E, quanto ao trabalhador, nota-se das denúncias à Inspeção do Trabalho e ao Ministério Público e das reclamatórias à Justiça do

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Trabalho que a grande queixa obreira cinge-se ao fato de não terem recebido o devido adicional compensatório quando inseridos em ambiente gravoso, deixando de lado as reclamações quanto à melhoria das condições do ambiente laboral. É nítida, portanto, uma cultura materialista que visa na tutela laboral apenas resultados financeiros imediatos, como uma forma paliativa para a superação dos parcos salários, sem qualquer preocupação com a própria saúde e a integridade física.

Nesse sentido é a desabafadora explicação de Evanna Soares: Chega-se ao absurdo de trocar a

utilização de um equipamento de proteção individual por um acréscimo de 40%, 20% ou 10% sobre o salário mínimo, decorrente do adicional de insalubridade [...] Quando os trabalhadores vão a juízo reclamar contra as empresas descumpridoras das normas de saúde e segurança no trabalho, não costuma pedir a condenação do empregador à obrigação de fazer (fornecimento desse equipamento, ou uma providência que elimine o perigo de acidente grave nos serviços de eletricidade, por exemplo), mas, sim, o pagamento do adicional de insalubridade [...] Falta uma consciência acerca dos valores envolvidos – vida, saúde, integridade física e segurança do trabalhador – que não podem ser compensados por um adicional sobre o salário, ainda que fosse em montante expressivo, o que não é na realidade.[29]

Dessa forma, percebe-se no cotidiano do mundo laboral a manutenção dos ambientes insalubres, perigosos, exaustivos ao trabalhador. Bastam algumas visitas a setores econômicos de atividades com risco inerente, como construções civis, atividades de carvoejamento, frigoríficos, ou mesmo visita a setores de atividade

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tipicamente urbana adeptas a jornadas de trabalho extenuante, como confecções têxteis, serviços de telemarketing e instituições financeiras, para se presenciar a triste realidade nacional, de nítida compra – a baixíssimo preço – da integridade física e mental e da vida social do obreiro.

Contudo, em busca de uma visão abertamente otimista e em defesa do texto constitucional, é possível inferir que a admitida monetização constitucional do risco no ambiente laboral não exclui o nobre ideal de eliminação da nocividade ambiental. Ao contrário, o constituinte originário preocupou-se com a realidade brasileira, onde a erradicação do trabalho danoso à saúde ou a redução dos riscos deste trabalho constitui uma tarefa ainda distante de ser alcançada. E, para que haja a devida reparação em casos já consumados, tal como ocorre em regra com os litígios judiciais trabalhistas, necessária a manutenção dos adicionais compensatórios que, ao menos em tese, terão as funções punitivas e pedagógicas a favor da proteção da qualidade de vida em um equilibrado ambiente de trabalho.

Nesse sentido, pois, cabe à atividade política e jurídica do Estado e inclusive às relações particulares a interpretação constitucional dos adicionais remuneratórios não como uma opção alternativa ao direito fundamental a um ambiente do trabalho equilibrado e saudável, mas sim como um mero meio de tutela adicional para cobertura indenizatória das hipóteses de dano já consumadas. Afinal, a tutela ambiental trabalhista corresponde a direito humano fundamental, norma de ordem pública, que, por estar diretamente atrelada à dignidade da pessoa humana, não admite sua precificação.

CONCLUSÃO

Tal como expressamente consignado no texto constitucional, o ambiente do trabalho, ao lado dos recursos naturais, artificiais e culturais, constitui um bem de interesse metaindividual relacionado

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à existência humana digna, saudável, com o objetivo primordial de resguardo da qualidade de vida.

Definido de modo cuidadosamente abrangente pela doutrina, o conceito de meio ambiente de trabalho, em um aspecto subjetivo, abrange todas as formas de trabalho, haja vista a característica da universalidade do direito fundamental ao meio ambiente sadio, e, em um aspecto objetivo, é caracterizado não apenas por elementos físicos, químicos e biológicos que compõem materialmente o cenário de trabalho, mas também por aspectos sociais, relacionados à qualidade de vida do trabalhador e à sua saúde psíquica, com reflexos inclusive em seu convívio social e no direito fundamental ao lazer.

Para a efetividade do direito fundamental ao meio ambiente de trabalho equilibrado e saudável, em que se dê voz ao mote constitucional de qualidade de vida, evidencia-se a necessidade de eliminação – ou ao menos o intuito de minimização – de fatores ameaçadores do bem-estar bem estar físico, mental e social do trabalhador.

Ocorre, contudo, que, malgrado a vanguardista previsão constitucional de um direito fundamental a um meio ambiente de trabalho equilibrado e saudável, manteve-se no mundo do trabalho a cultura de monetização do risco ocupacional, em que o empregador propõe o pagamento de adicionais legais compensatórios (adicional de insalubridade, de periculosidade, de horas extras, noturno) em troca da manutenção do ambiente hostil aos obreiros e estes, por sua vez, vangloriam o acréscimo salarial como oportunidade para superação das parcas remunerações contratuais.

Apesar das evidências deletérias dessa situação de mercantilização do direito fundamental à “sadia qualidade de vida” do trabalhador, preferimos acreditar que a recepção constitucional da monetização do risco no ambiente laboral deve-se à visão pragmatista do constituinte originário em relação à realidade

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trabalhista do país, que nitidamente se encontra a longos passos de alcançar o dispendioso ideal de eliminação dos riscos ocupacionais. Se assim for, com pensamento positivo – em um exercício mental que beira a meditação motivacional – podemos vislumbrar uma defensável função dos adicionais legais remuneratórios: o caráter punitivo e pedagógico como mecanismo adicional de tutela do meio ambiente do trabalho, sem prejuízo do propósito de eliminação da nocividade ambiental de que depende a efetividade do direito fundamental a um ambiente do trabalho equilibrado e saudável.

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS:

[1] A denominada “Teoria dos quatro status” de Jellinek pode ser resumida pela idealização de quatro estágios que o indivíduo trava perante o Estado ao longo da história. A primeira relação que o indivíduo se encontra perante o Estado é o status passivo, de subordinação com relação aos poderes públicos. O status negativo, por sua vez, representa o espaço de ação individual livre da atuação do Estado, podendo o indivíduo autodeterminar-se sem ingerência estatal. A terceira relação, status positivo, refere-se à atividade estatal realizada no interesse do cidadão, de modo que o indivíduo possa exigir atuações positivas do Estado em seu favor. Por fim, o status ativo representa o poder do indivíduo de interferir na formação da vontade do Estado.

[2] Na esteira de Antônio A. Cansado Trindade e Ingo W. Sarlet, cabe ressaltar a preferência pela expressão “dimensão” a “geração”, pois, enquanto esta induz à ideia de sucessão entre momentos históricos estanques, aquela melhor permite compreender as características base dos direitos fundamentais, que são, frise-se, a complementaridade e a interdependência recíproca.

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[3] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 55

[4] Ingo W. Sarlet acrescenta que os direitos de segunda dimensão não englobam apenas direitos de cunho positivo, mas também as denominadas “liberdades sociais”, como, por exemplo, a liberdade de associação e sindicalização, bem como o direito de greve. Nesse sentido, vide: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 50.

[5] FARIAS, Paulo José Leite. Água: bem jurídico econômico ou ecológico? Brasília: Brasília jurídica, 2005. p. 80-82.

[6] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1997. p. 523

[7] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 06.

[8] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7ª ed. Malheiros: São Paulo. 2009. p. 84.

[9] Importante destacar que a Constituição da República de 1988 consagrou o meio ambiente como um bem de interesse público, bem de interesse comum. Apesar da similaridade das expressões, convém frisar que os valores ambientais tutelados constitucionalmente não se confundem com as características de bem público referidas no artigo 99 do Código Civil, haja vista a concepção constitucional ser desvinculada dos institutos da posse e da propriedade referidas no dispositivo civilista.

[10] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7ª ed. Malheiros: São Paulo. 2009. p. 35.

[11] Idem. Ibidem. p. 37.

[12] ROCHA, Jefferson Marçal da. Política internacional para o meio ambiente: avanços e entraves pós-conferência de Estocolmo. In: Direito ambiental: um olhar para a cidadania e sustentabilidade planetária. Caxias do Sul: Educs, 2006. p. 135.

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[13] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7ª ed. Malheiros: São Paulo. 2009. p. 20.

[14] SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental ao meio ambiente do trabalho saudável. Revista TST, Brasília, vol. 80, n. 01, jan/mar 2014. p. 28.

[15] Idem. Ibidem. p. 21-23.

[16] ROCHA, Júlio César de Sá da. Direito Ambiental e Meio Ambiente do Trabalho: dano, prevenção e proteção jurídica. São Paulo : Ltr, 1997. p. 140.

[17] O Objetivo do PIACT cinge-se à promoção e apoio a iniciativas de estados membros de estipular e alcançar o “trabalho mais humano”, em busca da melhoria da qualidade de vida, prevenção de acidentes e doenças, limitação do horário de trabalho. Disponível em < http://www.oit.org.br/node/367>. Acesso em 09/09/2015.

[18] A Convenção n.º 155 da OIT busca promover nos países membros uma Política Nacional de Saúde, Segurança e Meio Ambiente do Trabalho. Apesar de editada no plano internacional em 1981, a Convenção nº 155 da OIT foi ratificada pelo Brasil apenas em maio de 1992. Disponível em < http://www.ilo.org/brasilia/lang--pt/index.htm >. Acesso em 09/09/2015.

[19] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 29.

[20] FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003. p. 22-23.

[21] ROCHA, Júlio César Sá da. Direito ambiental do trabalho: dano, prevenção e proteção jurídica. São Paulo: LTr, 1997. p. 127.

[22] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. A defesa processual do meio ambiente do trabalho. Revista LTr, São Paulo, vol. 63, n. 05, p. 583-587, Maio 1999. p. 584.

[23] Vale registrar que, conforme definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), saúde “é o completo bem estar físico,

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mental e social, e não só a ausência de doenças”. Disponível em <http://www.paho.org/bra/>. Acesso em 09/09/2015.

[24] In: ARAUJO JUNIOR, Francisco Milton. Parâmetros para a delimitação do meio ambiente do trabalho na volatilidade da sociedade contemporânea (ciberespaço). Revista TRT 8ª Região. Belém, vol. 47, n. 92, p. 81-90, jan/jun 2014. p. 86.

[25] A Norma Regulamentadora - NR 9 do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, editada com base no artigo 200 da CLT, dispõe em seu item 9.1.5 que “consideram-se riscos ambientais os agentes físicos, químicos e biológicos existentes nos ambientes de trabalho que, em função de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador”.

[26] De acordo com o artigo 193 da CLT, inserido pela Lei 6.514/77, o adicional de periculosidade é atualmente previsto para exposição a inflamáveis, explosivos, energia elétrica e inclusive para exposição a roubos em atividades de segurança pessoal ou patrimonial e para exposição a riscos em atividade de motocicleta.

[27] De acordo com o artigo 192 da CLT, igualmente inserido pela Lei 6.514/77, o adicional de insalubridade é atualmente previsto para exposição a agentes insalubres definidos na NR-15 do MTE, a depender da nocividade do agente, grau de concentração no ambiente e tempo de exposição do trabalhador.

[28] CF, art. 7º:

IX – remuneração do trabalho noturno superior à do diurno;

XVI - remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal;

XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei;

[29] SOARES, Evanna. Ação ambiental trabalhista: uma proposta de defesa judicial do direito humano ao meio ambiente do trabalho no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2004. p. 120.

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INSTITUTO SEGURO SOB A ÓTICA DO CONSUMIDOR E SEUS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

LENORA C MILESI: advogada OAB/RJ 153.424, Técnica de Seguros, Funenseg, IV CAS, RJ,1977 -Corretora de Seguros.RJ/1978- Graduada pela UERJ, Bacharela de Filosofia.1979- Diplomada no Curso de Política e Estratégia- Adesg-1987- 1°Ciclo de Duque de Caxias/RJ, Graduada em Direito pela Estácio de Sá/RJ/2008- Especialista na Defesa do Consumidor de Seguros - Pós Graduada Máster de Seguros. PUC. RJ. 1995-Presidente da Ascind/Nacional- Associação dos Corretores de Seguros Independentes, D.Caxias.RJ.1996. Arbitragem em Seguros pela ACRJ, 12/2000, Facilitadora pela Parceiros do Brasil 02/2010. Mediadora Judicial do TJRJ(10/2011). Pós-graduação em RC e Consumidor pela Emerj(10/2012). Mestranda em Sistemas de Soluções de Conflitos, Universidade Nacional de Lomas de Zamora, AR.

RESUMO: O direito do consumidor de seguros e aindadesconhecido;seguradores,comcontratodemuitaspaginas,letrasmiudasesemformasclarasdepreci icaçaoaorecusaremosinistro,semmotivo relevante para isso, deveriam gerar DanosMorais aoconsumidor, por perda de uma chance, que os obrigaria a umareparaçao como papel fundamental dePrevençao Geral,visandoin luenciarosdemaisacorrigirseuatendimento,visandoevitarasensaçaodeimpunidade,incentivadoradoDescumprimentodaLei,queapostanaaltamargemdetoleranciadosconsumidoresacomodados; e quando o Segurado vai ao Judiciario, mesmo suavitoria ja e uma perda para o INSTITUTO SEGURO, por violarprincıpiosfundamentaisderespeitoadignidadeeaopatrimoniodosegurado.

1. INTRODUÇÃO

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Este artigo pretende apresentar, demonstrar e examinar a importância do Instituto Seguro, como produto comprado pelo consumidor, que compõe uma importante fatia do PIB Nacional (de 5%), quando este representa a esperança de reposição do patrimônio dos brasileiros 100% avessos ao risco.

Quando o acidente se realiza, e se o Mercado Segurador não responde na forma prometida, fere a dignidade do cidadão e causando dano ao seu patrimônio pessoal, e, ainda que proponha ação e ganhe no Judiciário, pela obviedade da cobertura negada pelo Segurador, esta vitória já é uma perda nos princípios fundamentais do consumidor de seguros e para o instituto Seguro.

Com o advento das novas tecnologias disponíveis para o setor,os seguradores há muito abandonaram o risco do negócio, a boa técnica de analise do risco a precificação de forma clara e por via de conseqüência o respeito ao consumidor de seguros; no passado este era o maior patrimônio da empresa, atividade praticada por famílias tradicionais, como Seguradores.

Hoje os conglomerados financeiros passaram a atuar visando apenas o resultado no risco financeiro, inclusive algumas vezes usando a seu favor o tempo de um processo judicial, ao negar uma cobertura que a posteriori o Judiciário vai conceder, pois o risco financeiro é quem manda nos contratos de seguros hoje, seja na contratação ou na liquidação. Trazendo assim um visível desserviço para o Instituto Seguro.

Há dificuldade de se projetar as expectativas do consumidor quando da compra e efetivação deste contrato em contraprestação à hora do acidente. Daí a necessidade do estudo sobre a relevância na dinâmica dos fatos para liquidação do evento (ou risco) versus a simples ocorrência do risco contratado, registrado de forma estática no papel . E o método a ser aplicado na pesquisa é o documental exploratório.

Quanto ao direito do Consumidor, o Ministro Antonio Herman V.Benjamim, em palestra no Seminário do MP/CON, em

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março/2007, defende pela Teoria da qualidade com base na necessidade de se respeitar ao consumidor. E sobre o “SEGURO NO DIREITO BRASILEIRO”, o livro, do professor, escritor, consultor do Ministério da Justiça, Dr.Voltaire Marensi, vem elucidar questões relativas ao ramo de seguro, visando criar parâmetros na solução dos conflitos securitários.

Desta forma, este trabalho visa provocar a reflexão sobre a influência da relevância na dinâmica do evento, coberto ou não pelo contrato de seguro e sobre a demora nas decisões das Seguradoras, que ficam pedindo documento ao invés de se posicionar de forma clara e fundamentada, se tem ou não tem cobertura, parecendo querer vencer pelo cansaço o consumidor, sem informação das possibilidades de soluções administrativas, que de forma mais rápida, o obriga a ir ao Judiciário por desrespeito ao seu direito, talvez por possuir previsão de penalidade para as seguradoras, perdendo o Mercado de Seguros o momento de uma atitude pro-ativa para o Instituto Seguro.

E, analisar a influência, responsabilidade e a luta do representante legal do segurado (decreto-lei.73/65 combinado com art.114 CF/88), o corretor de seguros, que fala em nome do segurado junto a Seguradora escolhida, quando até o STF, em decisão de março 2008, confessa não saber a diferença entre agente (representante da seguradora) e corretor de seguros(representante legal do segurado), aos principais operadores do Instituto Seguro, cabe então a questão de qual é a posição dos tribunais nas questões que envolvem o consumidor de seguros; e, o que pode ser feito para se resgatar o respeito ao direito do consumidor de seguros nas normas vigente.

Estas são as linhas deste trabalho, que não visa agradar o Mercado Segurador, visa apenas mostrar o outro lado de quem espera uma indenização se ocorrer o evento garantido e pelo qual pagou, num contrato de SEGURO.

2. DESENVOLVIMENTO

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Este trabalho considera como marco teórico o disposto em nossa Carta Magna, quanto ao instituto Seguro que participa diretamente da ordem econômica de nosso país e que está fundamentado no art. 170,V da CF/88, e no direito do consumidor de seguro, quando ao respeito a dignidade do cidadão e ao seu patrimônio pessoal quanto ao seu direito de receber indenização pelo dirigismo contratual e a função social do contrato e direito a informação adequada disposto principalmente nos art.5 incisos V (da negativa irrelevante da seguradora), X (garantia da inviolabilidade da vida privada), XIV(informação) e XXXII(garantia estatal do direito do consumidor), todos do mesmo diploma.

Quem contrata, não contrata somente com quem contrata, mas também com quem não contrata, esta é o principio da função social do contrato. E pelo art. 2035 §único CCB- nenhuma convenção prevalece se contrariar preceito de ordem publica, para assegurar função social do contrato mesmo entre particulares.

Observa-se isso quando um segurador dá um preço no seu produto, recebe um valor em dinheiro, em “segurês” chama-se prêmio do seguro, prometendo garantir um risco no caso da efetivação de um evento futuro e incerto; ao acontecer o evento garantido, este garantidor vai ao dito contrato, com seu clausulado estático, de ainda “letras miúdas” quanto à compreensão do consumidor, como quem procura “pêlo em ovo”, para não pagar o risco do qual recebeu o premio; hoje se este garantidor não cumpre o contrato, não atende ao principio da função social do contrato, deve ser punido de todas as formas cabíveis.

Principalmente considerando que o Segurador ao receber o premio, teve várias etapas prévias de analise e aceitação do risco; como fazer ou não vistoria ao seu critério de emissor, analisar o risco, taxá-lo e ao final aceitá-lo, emitindo uma apólice, certificando a cobertura, tendo o dever fundamental de informação, devendo dizer o que cobre e o que não cobre de forma clara e simples para o consumidor, ao invés disto ele cria um manual do segurado com

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180 paginas, onde entre estas 180 paginas há uma linha que diz que o evento ocorrido não teria cobertura.

Desta forma a agressão aos direitos do consumidor de seguros se confunde com a agressão os direitos fundamentais do cidadão, pois atinge a sua dignidade pessoal, muitas vezes a sua estrutura familiar e a credibilidade deste Instituto Seguro sobre a ordem econômica nacional, porque o instituto Seguro participa de quase 5% do PIB brasileiro.

A boa fé objetiva está positivada na parte geral do CCB, como o oposto de má-fé, o vício de vontade, está incluso de forma clara nos crimes de dolo, e é o princípio mais importante que direciona os destinos das relações jurídicas em geral, podendo ser “definida como o dever atribuído às partes que compõe uma relação jurídica, de comportarem-se, tomando por fundamento a confiança que deve existir, de maneira correta e leal; mais especificamente caracteriza-se como retidão e honradez dos sujeitos de direito que participam de uma relação jurídica, pressupondo o fiel cumprimento do estabelecido”.[i]

Vale destacar a importante lição do saudoso Mestre Dr.Miguel Reale para quem a boa-fé é necessária, “como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, em que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa fé e da probidade.”[ii]

A respeito do tema, é valioso recordar que o princípio da boa fé autoriza a parte que venha a sentir-se lesada, a buscar junto ao judiciário a desconstituição do contrato, visando à inoculação do instrumento contra “um vírus que rapidamente se alastrou pelo conteúdo do contrato pactuado, transmudando sua essência, vacinando-o de modo eficaz contra o mal causado”[iii], cura esta que pode se dar por inúmeras formas de solução de conflitos, desde a alteração ou supressão do negócio originalmente pactuado até sua

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total desconstituição, respeitando-se o grau de comprometimento do contrato.

Assim os princípios mais importantes passam do campo da autonomia privada a relatividade dos efeitos dos contratos e principalmente o principio da função social e da boa-fé objetiva,normas de operacionalidade da Constituição do Cidadão, como o Mestre Miguel Reale gostava de chamar o diploma que coordenou a elaboração.

E sobre estes princípios, destaca o Dr. Voltaire Marensi, que a base fundamental à vida dos contratos de seguros é o resultado da aplicação do principio do mutualismo, onde a boa fé se sustenta insuflando a prevalência do que só acontece na estatística projetada nos cálculos atuariais. Tendo na aplicação das leis dos grandes números a base para seleção dos riscos, por isso não se pode segurar todos os riscos indiscriminadamente, pois poderiam levar que os maus riscos superassem os bons na composição da carteira do Segurador, que o levaria a quebra inevitável, não sendo este interessante para nenhuma das partes envolvidas no instituto Seguro, e sua representação econômica nacional.

Por isso não se pode esquecer a importância dos princípios que estão presentes no estado social moderno, entre eles, o da equivalência contratual, o da igualdade material, o da transparência e em especial o princípio da função social, “macro princípio estabelecido no artigo 170 da Constituição”, não estando ali por acaso, merece destaque o fato de que “nenhuma atividade negocial pode ser realizada” contrariando o mesmo, que está recheado de conceitos indeterminados, e haverão de ser preenchidos “em cada momento pela mediação concretizadora do julgador, que seja capaz de captar os valores de uma sociedade.”[iv]

Tudo mudou por que a forma de contratar no mundo inteiro mudou, e ninguém mais contrata como no século passado; hoje há o contrato virtual, contrato inimaginável naquele tempo, e querer

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aplicar “pacta sun servanda”, transforma-se numa verdadeira aberração jurídica.

Os juízes estão mudando e a semente começa dar resultado, enfoque conteúdo, o estado pode e deve analisar o conteúdo de um contrato, tem de saber se está equilibrada considerando a função social do contrato como fiel desta balança e a relevância da dinâmica no evento ocorrido e vulnerabilidade do consumidor e diante da propulsão de ofertas sem conteúdo claro, são os pesos de adequação do contrato.

Hoje se vive em pleno hiperconsumo, pois o contratante, nos tempos da internet, está mais exigente, fazendo pesquisa qualidade, mas acaba sendo pressionado a consumir, comprando o supérfluo, pela propulsão de ofertas. É pressionado a comprar moda, o celular, e como consumista compulsivo de livro ou CD. A mídia joga com a vaidade feminina cada vez que uma mulher é o alvo da compra, havendo até o seguro só para as mulheres, tornando a relação entre desiguais, em matéria de consumo.

Por isso o STJ, pacificamente, protege o aderente, nos contratos de adesão, pelo principio da confiança, da aparência e da boa fé objetiva, pois o consumidor compra mais pelo folder, confiando mais no visual do que do contrato, ficando o fornecedor OBRIGADO a entregar a expectativa criada pela compra, sob contrato.

Tudo visando proteger esta relação de consumo, em defesa da vulnerabilidade do consumidor, pois tratando-se de matéria de ordem publica de direito constitucional; principalmente quando odano reclamado é oriundo da negligência do dever de informaradequadamente as garantias contratadas no seu produto e pelo principio da aparência oriundo desta, fere a dignidade da pessoa humana e o patrimônio pessoal protegidos pelo art. 5 da nossa carta magna.

Conforme o Ministro Antonio Hermam Benjamim orientou no Seminário de RC e CPDC (Cepad/IDC), em 24/26 Maio 2007, RJ,

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que “no direito a reparação tem o papel fundamental de“Prevenção Geral”, para que os demais fornecedores de serviços repensem e corrijam os seus defeitos sem abusar da sensação de impunidade que incentiva o descumprimento da Lei” apostando na alta margem de tolerância dos cidadãos brasileiros.

Dano moral não é injusto, injusto é não indenizar alguém que sofreu um dano. E, também a condenação deve adotar o caráter de “Prevenção Especial” onde os infratores negligentes são obrigados a corrigir a estrutura organizacional que trata com descaso a reclamação dos consumidores.

Vê-se isso quando as ouvidorias não respondem de forma hábil a evitar um conflito maior e por seus atos e danos causados aos segurados, e pela demora no atendimento devem pagar uma indenização compensatória a esta.

Se considerarmos que para o Segurado tudo é obrigação com data certa a ser cumprida para ter sua apólice válida, há o pagamento antecipado na maioria dos ramos de seguros, a vistoria no tempo certo, a colocação do rastreador (que só beneficia a recuperação do bem em prol do segurador, e coloca em risco a vida do segurado, segundo a marginalidade atual) e ainda tem de aguardar os 15 dias para aceitação do seguro segundo a lei.

Entretanto para os Seguradores efetivarem a indenização não há prazo certo, pois é a partir do recebimento dos documentos pedido pela matriz, quando esta se dá não se define, e se não pedirem mais documentos vai para o regulador, depois para o liquidador, depois fica em analise com a Matriz, depois para programação de pagamento, depois para tesouraria, depois ... depois.... e depois.... E se o Segurador entrar em insolvência neste tempo de espera, ninguém sabe quando terminará, no site da Susep há segurado esperando há 40 anos por sua indenização. (Decretação: Decreto 57648, de 18.01.1966 - DOU de 19.01.1966 no

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http://www.susep.gov.br/menuatendimento/regimes_especiais.asp#extrajudicial)

Assim não há um prazo certo e determinado, enquanto a vida do segurado fica parada, esperando a reposição do seu patrimônio garantido pelo contrato, e quando for, e se for paga, pode ser em 30 ou 60 ou até 180 dias depois, sem qualquer correção ou compensação do valor, acarretando ao Instituto Seguro uma carga negativa ao seu fundamento.

2.2 DISCUSSÃO TÉCNICO-JURÍDICA DO TEMA

O direito do consumidor previsto na Constituição/88, ART.5, XXXII cc 170,V DA CF, e regulado pelo CPDC, desde 1991, até hoje é basicamente desrespeitado pelos seguradores que ainda insistem em elaborar contratos longos com muitas paginas, que confundem o consumidor, chegando a manuais de 180 paginas, em puro “segurês”, isto quando imprimem e entregam as condições gerais do contrato, pois na atualidade, pode-se constatar que jogam este encargo de impressão das inúmeras paginas das condições gerais do seguro, para os corretores de seguros, na vã tentativa de transferir a estes a responsabilidade do não cumprimento da regra referente aoseu produto.

Em regra os corretores só imprimem um texto, não tendo qualquer responsabilidade por seu conteúdo; e a referida entrega, quem tem a obrigação é o DONO DO PRODUTO, neste item é apenas um favor que fazem aos seguradores, sem qualquer recebimento por isso, pois que continua sendo integral a responsabilidade dos Seguradores quanto a entrega e do conteúdo das condições do SEU PRODUTO = contrato de seguro.

Não se pode ignorar que o produto Seguro é da seguradora, e por mais que tentem desviar a atenção de sua responsabilidade objetiva, diz a regra que quem recebe o bônus fica com o ônus. E o valor do seguro é pago ao segurador por seu produto, e o profissional corretor de seguros não tem qualquer inferência nas regras e criação deste; até por que este não é consultado na

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hora da elaboração de um novo produto a ser oferecido pelo mercado. São técnicos dos seguradores, fechados nos seus gabinetes, presos a números e resultados, e totalmente alheios as necessidades e as experiências de quem as vivi diuturnamente, e virá comprar ou oferecer o seu produto.

Sob a ótica do consumidor de seguros alguns manuais impõem regras absurdas e abusivas, visando dar amparo no futuro, a negativa de sinistros, sem qualquer coerência ou relevância para isso, apostando na aventura jurídica de um judiciário sobrecarregado e comprometido com a urgência dos resultados.

Assim são violadas as regras de respeito a dignidade e ao patrimônio do cidadão, pois ainda hoje o consumidor tem dúvidas sobre seus direitos no contrato de seguros, que não é grafado de forma clara, e sim num verdadeiro “segurês”. Não raro encontramos sentenças e acórdãos que esclarecem “que sob a análise do Código de Defesa do Consumidor, as cláusulas contratuais que geram dúvida devem ser interpretadas da maneira mais favorável ao consumidor”[v].

Com quase 20 anos de CPDC, não se destaca só arbitrariedades no mercado segurador, como agentes financeiros usando do abuso de poder, empurrando um “segurinho”, numa verdadeira venda casada impunemente, ou seguradores de tradição cancelando os contratos de vida unilateralmente, como nos eventos dos seguros de vida dos velhinhos que tiveram de ir à Justiça, para os fazerem rever tal postura, ou ainda quando agem como se o segurado fosse culpado até que se prove o contrário, ou como se segurado exalasse o “bacilum fraudis”, como um mal endêmico[vi], estas são generalizações impróprias e indevidas.

Entretanto algumas destas práxis, vêm prejudicar a imagem do Instituto Seguro, e fundado na teoria da aparência é que permite ao consumidor, ao ter frustrada as suas expectativas, vir a expressar sua insegurança, num desabafo como “na hora de pagar os seguros são flores, na hora de receber o seguro são dores”.

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Entretanto com as contínuas tentativas de revisão e melhoramento no setor de atendimento ao segurado, pode-se afirmar que nenhuma das posturas citadas está correta na atualidade, ou são regras na INDÚSTRIA DE SEGUROS, mas sempre podem ser melhoradas em prol do consumidor de seguros.

E, a titulo de ilustração, o Dr. Miguel Reale, logo após da publicação do novo código civil(CCB), em suas palestras de divulgação pelo país, defendia que temos de visualizar o cidadão correto digno pelo Código das Regras da “Constituição do Cidadão”, o CCB, pois para os que não assim age, há o código das Exceções, o Penal, porém ao observar a práxis comercial das Seguradoras, estas indevidamente visam mais a imagem publica da empresa “sem arranhões ou ruídos” como preferem dizer, e raras vezes denunciam as fraudes devidamente comprovadas, no máximo se contentam em não pagar a indenização e encerrar o assunto o mais rápido possível, sem levar a lição a publico, para inibir a sensação de impunidade, mostrando que há punição, e trata-se de um instituto sério.

2.2.1 OPÇÕES DE SOLUÇÃO PARA UMA RECUSA INDEVIDA

Apesar não ser informado destas regras, o consumidor de seguros ao receber uma negativa injusta de indenização por parte da seguradora, tem como opções de solução de conflito:

1° Ir à ouvidoria da Seguradora, e não sendo atendido, (resposta prazo 5 a 10 dias)

2° Ainda há o recurso à Susep- Agencia Reguladora para o Mercado Segurador, com resposta prazo máximo 90 dias, onde tem 02 instâncias de atendimento ao consumidor de seguros.

E na forma da RESOLUÇÃO CNSP Nº 60, DE 2001, a agencia reguladora=SUSEP fica acessível às reclamações dos segurados, com altas penalidades para Seguradora infratora do direito do consumidor, que inicia em R$9.000,00 por infringir qualquer

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disposição legal ou infralegal (art.5,II, letra n); até R$13.000,00 (treze mil reais) “...expedir correspondência ou promover qualquer outra veiculação de caráter publicitário sobre contrato de seguro, que contenha afirmação total ou parcialmente falsa, omissa ou contrária a norma legal ou infralegal, ou, ainda, que possa induzir alguém a erro sobre a natureza do contrato oferecido ou os direitos do contratante”.

Entretanto esta tem pouca divulgação e ainda é desconhecida pelos operadores de direito, que poderiam pedir em juízo a comunicação a Susep para que aplique a multa prevista na resolução, em caso de condenação da Seguradora sobre qualquer valor a favor do segurado.

O que, numa projeção ideológica, ainda de forma administrativa, obrigaria as OUVIDORIAS, a considerarem de forma mais criteriosas as recusas infundadas que possibilitasse indenização em juízo, e colocasse a seguradora em situação difícil junto a agencia reguladora, provocando multas progressivas pelo volume de reclamações.

Este seria um ótimo combustível para que se tratasse o consumidor de seguros de forma mais criteriosa, com menor conseqüência para todos.

3° Não sendo atendido pela Agencia Reguladora, Susep, no prazo legal de 30 dias, o consumidor deve procurar o Judiciário, solicitando no pleito a comunicação à Susep visando combinar a indenização reparadora com a penalidade administrativa corretiva pela agencia responsável.

Em regra o recurso administrativo não impede o acesso a Justiça do consumidor de seguros, porém estas etapas administrativas, (se fossem amplamente divulgadas) se utilizada pelo menos uma delas, poderia ser condição de admissibilidade ao judiciário, como já acontece nas questões de recurso de multa de transito no RJ.

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Isso praticado num tempo progressivo, poderia solucionar muitas questões de forma mais rápida para o consumidor de seguros, permitindo que as Seguradoras se retratassem antes deles irem à Justiça, pois teoricamente só chegariam ao Judiciário, casos já avaliados de forma fundamentado de forma clara e com os pareceres técnicos das Ouvidorias que seriam entregues ao consumidor e até poderiam apresentar o outro lado para os juízes, que chegando o caso para eles iriam aplicar o CDC e pronto, acrescido das penalidades administrativas previstas na resolução citada, oficiando a agencia reguladora, para aplicar a penalidade prevista, dano prazo para seu cumprimento.

Esta seria o razoável combate da sensação de impunidade e contribuiria para melhor atendimento ao consumidor de seguros, pois evitaria a incoerente carta de recusa, dizendo que na forma do art. 34, alínea y e z, das condições gerais da apólice fica recusada a cobertura do evento supostamente coberto pelo segurado.

Isso considerando um mundo onde as Ouvidorias são compostas de pessoas técnicas-comerciais, com visão e com poder para solução previa de conflito; estas muito constrangimento evitaria para o consumidor de seguros, e o Instituto Seguro ganharia muito por esta atitude pro-ativa.

Não se vê divulgação de forma clara e aberta ao publico, dos termos dos direitos do consumidor, falam o óbvio apenas, e os seguradores em nome da reserva comercial do seu produto, pouco divulgam sobre os resultados alcançados por ramo de seguro; não há transparência no mercado, de forma que há uma verdadeira caixa preta em cada seguradora, sobre a forma de precificação dos seguros realizados, chegando a reajustar o produto com base no “feeling” do diretor de operação...

Incrível, mas acontece.

2.2.2. O Instituto Seguro, quem contrata seguro e o que espera dele.

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* Os tipos de consumidores de seguros e suas expectativas:

O Instituto Seguro é o produto comprado pelo consumidor, que compõe uma importante fatia do PIB Nacional e representa a esperança de reposição do patrimônio de brasileiros 100% avessos ao risco; pois esta é a característica pessoal dos consumidores que fazem seguro. Eles almejam a reposição rápida no caso de algum evento futuro e incerto, venha atingir seu patrimônio, e com isso desestabilizar sua vida ou emocional.

Ou seja, no mundo das incertezas e inseguranças, o instituto seguro representa o investimento na possibilidade de continuar a Ser Feliz, mesmo sob situações adversas.

Na prática, a generalidade dos agentes econômicos posiciona-se como avesso ao risco. Tal é visível nos jogos e, sobretudo, nos seguros, cujos prêmios ultrapassam o valor esperado da perda.[vii]

Entretanto, se o evento coberto pela apólice se realizar, e o Mercado Segurador não responder da forma prometida, isto vem ferir o patrimônio pessoal e a dignidade do cidadão, quanto a promessa de proteção de seu patrimônio, por transferência de risco para seguradora sacramentado no contrato de seguro: e, mesmo ao buscar o judiciário para fazer valer seu direito, ainda que ganhe, pela obviedade da cobertura negada pelo Segurador, esta vitória já uma perda para o Instituto Seguro, dano emergente de efeito negativo sobre o segurado, e a seguradora em seus comitês e suas ouvidorias não consideram, pois o investimento financeiro é quem comanda o contrato, apostando na demora do judiciário.

2.2.3 Os direitos do consumidor de seguros na legislação nacional.

O mercado de seguros passou a ser amplamente regulamentado pelo Estado, pelo Decreto 73/66, que foi recepcionado pela nossa CONSTITUIÇÃO FEDERAL 88, como lei complementar, e seus princípios basilares ampliados pelo Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, permitindo a

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interpretação de que rege qualquer garantia pecuniária sobre determinado bem, pela proteção de uma evento futuro e incerto.

Certo é que, o fundamento desta regulamentação é a proteção efetiva dos consumidores, juntamente com a garantia da manutenção e solvabilidade da Companhia Seguradora para a continuidade da prestação do serviço. Por isso, prevê a existência de uma Superintendência específica, ligada ao Ministério da Fazenda (SUSEP), que realiza auditorias periódicas, prevê penalidades pelo descumprimento das regras, além de zelar pela manutenção de reservas técnicas suficientes para garantir a cobertura securitária, baseando-se em cálculos atuariais, fiscalizando, ainda, as cláusulas contratuais ofertadas (Art. 36, caput, do Decreto 73/66).

Sem conseguir evitar a ocorrência dos sinistros, procura garantir que a sua ocorrência não venha impactar de forma significativa o patrimônio pessoal do segurado ou seus beneficiários e, consequentemente, a economia e a sociedade, gerando a característica de um fundo comunitário, com base no mutualismo, onde muitos contribuem para se houver um evento danoso, exercendo uma atividade de interesse para economia nacional.[viii]

2.2.4 Direito do consumidor: Ser atendido por um corretor de seguros.

O legislador ao redigir o decreto lei 73 e a lei 4.594, em seu artigo 17, proíbe o corretor aceitar ou exercer emprego de pessoa jurídica de direito público, inclusive de entidades paraestatal; proíbe o corretor de ser sócio, administrador, procurador, despachante ou empregado de empresa de seguros. O espírito deste artigo, reside na manutenção da total independência do corretor de seguros, para que ele possa exercer sua principal missão, que é defender os interesses do segurado. Nos cinco primeiros artigos dispõe sobre as condições

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para obtenção do título de habilitação corretor de seguros. Nos artigos seguintes impõe condições o exercício da profissão.

Portanto, não interessa se é diretor, gerente, funcionário de seguradora, bancos ou outra qualquer pessoa, não estando conforme a lei, pode ser enquadrado como contraventor, passível de penalidades legais, até que se revogue o código penal brasileiro, seu decreto-lei 3.688 de 03/10/1941, artigo 47, que dispõe como crime: exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício: pena: prisão simples, de 15 dias a 3 meses ou multa. [ix]

Quanto a venda de seguros direto pela seguradora, nenhuma norma a proíbe de comercializar diretamente, porém todas as vendas realizadas diretamente por seguradoras, na prática o que se vê, são apólices intermediadas por agentes cativos, a serviços da Seguradora, sem previsão legal.

Na prática há gerente de banco, ocupando o espaço profissional do corretor de seguros, mas este não tem como defender os interesses do segurado, se não há independência, e sabendo que a seguradora por ele indicada, pertence ao grupo financeiro que paga os seus salários, há dificuldade de contrariar suas metas, que influencia diretamente seu salário e as vontades do seu empregador.

Assim fica difícil até mesmo para um securitário tomar decisão em defesa do consumidor de seguros, na conjuntura econômica atual, numa possibilidade de desemprego fácil, não é motivador agir em prol do cliente, e sim em prol de suas metas financeiras.

O instituto Seguro possui muitas particularidades técnicase individuais, que não pode e não deve ser nivelado por um programa.

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Cada segurado tem que ser analisado separadamente com seus riscos e necessidades de cobertura. E, na maioria das vezes os produtos=seguros são engessados não atendendo as necessidades do segurado, pela situação de contrato de massa, muitas vezes é o que se tem para trabalhar na pratica, e dentro destes produtos engessados o corretor tem de estudar e apresentar para escolha do segurado o que mais lhe convém.

Ao adquirir um seguro diretamente na seguradora, ou até por um seu agente, sem a intermediação de um corretor de seguros, o segurado fica passivo de contratar um seguro que atenda mais os interesses da seguradora que o dele próprio, o produto já foi elaborado visando mais o resultado financeiro da seguradora do que a necessidade do segurado.

Ao ser atendido por um profissional corretor de seguros a decisão será sempre do segurado, mas pelo menos serão duas cabeças pensando em seus interesses, ao invés de só uma, pois o maior patrimônio de um corretor de seguros é a felicidade de seus clientes, que só se cria/confirma após anos de bom serviço e dignamente sendo tratado.

E, a quantidade de vendedores de papeis e profissionais habilitados no mercado segurador confunde o Judiciário, devido a pouca doutrina esclarecedora sobre o direito do consumidor de seguros onde até Ministros do STJ afirmam que é necessário diferenciar corretor de seguros, de agente de seguros e venda direta quando diz “A própria doutrina de direito de seguro tem se deparado com a dificuldade conceitual dessas duas categorias e a adequação das suas funções. O agente trabalha em prol do interesse da seguradora, enquanto o corretor em prol do segurado. Este é o conceito básico, que entendemos”[x], e incentiva o debate para esclarecer o papel de cada uma das partes da dita indústria do seguros, com seus representantes comerciais, os agentes, e os

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consultores dos segurados que é o corretor de seguros, devidamente habilitado.

Neste ponto insta questionar o momento em que ocorre um evento que deveria estar coberto e a seguradora nega sem qualquer fundamento lógico ou racional, e quando claramente se vê que no judiciário vão perder, mas eles insistem em manter a negativa, possibilitando pensar que, para este segurador (não todos), o setor de sinistro da seguradora se transfere para o jurídico da mesma, tendo o financeiro na porta ao lado deste, trazendo um imensurável dano ao Instituto Seguro, e é justamente por isso que no processo judicial, tem de ser oficiado pelo juízo à agencia reguladora, com prazo para aplicação das penalidades, pois a reincidência pode causar a cassação até de sua licença de operação. E só esta possibilidade fará um melhoria substancial no atendimento do consumidor de seguros honesto.

2.2.5. Relevância da dinâmica do risco versus risco estático contratado.

Há dificuldade de se projetar as expectativas do consumidor quando da compra e efetivação deste contrato em contraprestação à hora do acidente. Daí a necessidade do estudo sobre a relevância na dinâmica dos fatos para liquidação do evento (ou risco) versus a simples ocorrência do risco contratado

Entretanto até as decisões judiciais tem suas conseqüências no contrato de seguro, pois a correção da importância contratada não é no mesmo parâmetro da correção judiciáriado dano inicial arbitrado pelo juiz, podendo ocorrer que mesmo obtendo vitória, o segurado possa vir a perder ao quererem que ele arque com a diferença oriunda do tempo do processo na justiça.

Causando aberrações como o valor da causa na propositura inicial corresponder a 10% da importância segurada garantida, e no final do processo, na sentença e suas correções, por que o segurador não quis pagar no tempo próprio, e não foi aceito a denunciação a lide pelo juiz, a condenação do segurado pode ser

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de 3 vezes o valor da importância segurada corrigida. E o instituto SEGURO como fica?

Em pesquisa a legislação, insta questionar se é mais importante para ser indenizado, acontecer o evento coberto (risco) pago e garantido pelo contrato ou a dinâmica de como aconteceu o risco. Sob esta visão a pessoa é recolocada como valor, fonte de todos os direitos do contrato como um processo evolutivo.

O sistema do consumidor são de clausulas abertas, para atender os princípios do sistema, a constituição federal está apostando nos juízes, na sua competência através de um sistema aberto para chegar no que é justo conforme o caso concreto, hoje o juiz é o braço da lei, deve interpretá-la, aplicá-la e com ela fazer justiça.

As normas têm de ser interpretada numa dogmática renovada e um bom uso das clausulas gerais com sabedoria.

Não há uma abordagem estanque, deve ser analisada toda a relação que envolveu o contrato. Ao contrário seria uma decisão injusta, se não considerarem as mudanças de estados para os idosos no plano de saúde contratado há 20 anos, agora quando ele mais precisa; e precisa considerar o porquê ele contratou, ainda saudável, sem restrições na aceitação no risco; contratou um plano para transferir os riscos de sua doença, não querendo assumir estes riscos quando fosse precisar, neste período a seguradora que recebeu o premio anos seguidos, agora quando ele pode vir a precisar, ela diz que não quer mais este risco; isso não é justo. Por não querer se preocupar com a velhice, quando pudesse precisar de uma assistência, o segurado procurou transferir os riscos do seguro de vida, mas quando fica velho a seguradora, diz que não quer mais o risco, isso não é correto.

No tribunal as seguradoras dizem que não tem mais interesse na renovação do seu contrato, que não estão excluindo a cobertura, apenas usam seu direito de selecionar seus riscos, e o estado, em respeito ao livre empresário, não pode o obrigar a renovar o contrato

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que não querem. Invocando o equilíbrio dos contratos, a livre iniciativa etc...

O mesmo acontece quando a seguradora deve analisar o quanto a relevância da dinâmica do risco se contrapõe ao risco estático expresso no contrato, diante das decisões judiciais presentes.

Para exemplificar há o caso de uma seguradora que alegando o rigor estático do clausulado contratual, nega uma indenização para uma concessionária de veiculo, por causa da dinâmica do risco de ROUBO, se ocorrido na Baixada Fluminense, onde é cobrada a taxa mais cara do país, para o risco comercial de guarda de veiculo em serviços de oficina, a taxa alta justamente por este risco de roubo; e se ocorrido o evento com o veiculo em teste, nas mãos de um especialista contratado e permitido contratualmente, a seguradora nega por que o funcionário do segurado estava ao lado do especialista conforme BO e não no volante do veiculo.

Pelo principio da boa fé e da razoabilidade, tratando-se de um roubo na baixada fluminense, onde foi pago por este risco, naturalmente qualquer pessoa no percurso previsto poderia estar no volante, pois que se ocorresse o roubo, os marginais botariam a arma na cabeça dos ocupantes, e fosse quem fosse iria entregar o veiculo que deveria estar coberto, mas a seguradora nega a cobertura por que o funcionário da empresa não estava no volante e sim do lado do motorista/especialista que precisava testar o veiculo para atender/entender a reclamação da sua cliente, este é um caso concreto que ocorreu com a Bradesco Seguros, não é uma Cia de pequeno porte, no ano de 2007.

Este exemplo visa demonstrar o quanto os seguradores ainda têm de amadurecer, a sua relação com o consumidor, antevendo situações que na certa vão desembocar no judiciário, que por uma questão de justiça deve obrigá-los a rever suas negativas.

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Nestas questões de direito material equivocam-se por não perceberem a mudança dinâmica do contrato, que protege a confiança depositada no segurador no momento da contratação, há 20 anos passados, como no caso dos velhinhos. O segurado apostou que no dia que ele fosse precisar teria cobertura, a garantia é pelo principio da confiança, tudo hoje passa por isso, mas algumas vezes ele se vê surpreendido pela alinea z, da clausula z, na pagina 144, do manual do segurado.

Como o Sr. não leu e diz que não sabia? é o que usam para negar o evento.

A nova crise passa por esta tese, deve-se de interpretar e aplicar neste o principio da confiança por anos contratando o mesmo risco, base da boa-fé objetiva ampliado pela função social do contrato. Esta é a célula mãe do principio da boa fé, antes da boa fé vem a confiança. Não é um seguro de saúde que garante a doença, é um seguro que só funciona quando há doença.

A segurança do contrato de seguro, base do INSTITUTO SEGURO, está baseada na confiança vendida pela parte Seguradora para a parte consumidora.

2.2.6 Jurisprudências pró-consumidor. Os tribunais decidem:

Nossos tribunais já pacificaram alguns temas como nos processos:

2007 001 14275/TJ/RJ – maior rigor nas clausula abusiva para o idoso deve ter mais cuidado, esta. Proíbe por majorar 100% reduziu para 30%%. percentual diferentedupla vulnerabilidade consumidor e idoso.

2006 001 41 435/TJ/RJ- Desemb Fernando Foch – toda sociedade deve proteger o idoso art. 230 da constituição federal 88. Abusividade da clausula. Irrelevante aumento da susep. Principio

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da legalidade deve ser respeitado. Se aparente conflito das normas, deve preponderar à regra mais benéfica ao consumidor.

Proc. nº 2007.039489-8/TJ-SC - Se há limitações no contrato de seguro, é incorreto a Seguradora firmá-lo, receber os pagamentos e depois negar uma posterior indenização, com base em tais restrições."Não é esse o tratamento que merece um cidadão que, mesmo com humildes rendimentos, cumpre suas obrigações e paga o prêmio, nem é correto negar que alguém assim tratado suporte abalo moral indenizável", finalizou a magistrada.A decisão foi unânime.

REsp 952144/STJ/ 3ª Turma- Segundo o relator, ministro Humberto Gomes de Barros,"as normas do Código de Defesa do Consumidor se sobrepõem às cláusulas contratuais limitativas ou excludentes dos riscos que configuram abuso", para ele, tal incidência afronta qualquer dispositivo legal ou constitucional, ainda mais quando se cuidou de cirurgia de urgência em que não houve opção para a paciente por sua não-realização ou pelo não-emprego do material.

REsp 888.083/STJ - A ministra Nancy Andrighi ponderou que a data da correspondência enviada pela seguradora com a recusa do pagamento é absolutamente irrelevante para se determinar a data da ciência inequívoca do segurado a respeito de tal negativa, porque a única data válida para tanto é a data em que o segurado assinou o comprovante de recebimento de tal comunicação, seja ela o aviso de recebimento, o recibo da notificação do cartório de títulos e documentos ou o mandado expedido no processo da notificação judicial. Entendimento diverso, assinalou a ministra, premiaria a seguradora desleal, que poderia simplesmente colocar qualquer data na correspondência enviada ao segurado para, com isso, induzir o Poder Judiciário a reconhecer a ocorrência da prescrição da pretensão do segurado.

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Proc. nº 70010325637/ TJ/ RS/ Novo Hamburgo/ 5° Camara - relatora, desembargadora Ana Maria Scalzilli, avaliou que "o fato de subir na torre para ver o sol, ato praticado por inúmeros moradores da localidade sem alerta do município ou aviso de perigo, - e não impugnado -, não quer dizer que se deva o interpretar como ‘agravamento de risco’ até porque hoje em dia, o simples fato de sobreviver, no dia-a-dia, constituiu um ‘eterno agravamento, seja pelo risco de assalto, de seqüestro, de acidente involuntário no trânsito e de tantos comprometimentos inclusive com a própria saúde, de todo desconhecidos do eventual portador".

REsp 593196/STJ- O relator do recurso, ministro Hélio Quaglia Barbosa, verificou que, em julgamentos anteriores, o STJ já decidiu serem devidos lucros cessantes quando a seguradora descumpre o contrato, causando danos adicionais ao segurado, que fica impossibilitado de retomar suas atividades normais. Nesse caso, os lucros cessantes caracterizam-se como elementos integrantes das perdas e danos experimentados pelo segurado.

Sobre o perfil do seguro auto considera a 25ª Câmara Cível do TJ/SP quando seu relator, desembargador Rogério Danna Chaib, decidiu "aceitar a cláusula que estabelece que o contratante não deve receber indenização caso o carro não esteja guardado na garagem, mas estacionado na rua em que mora, seria tolher a própria finalidade do contrato”. Ele amplia o pensamento afirmando que "se houvesse todas as garantias de que o carro não seria roubado, não seria necessária a contratação de um seguro".A sentença de primeiro grau já tinha sido de procedência da ação, acolhendo o pedido do segurado.

Caso Roubo- Seguradora de automóvel é obrigada a pagar indenização em caso de roubo, independentemente de quem esteja dirigindo o carro no momento do assalto. O entendimento é do juiz Maurício Pinto Ferreira da 7ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de Belo Horizonte, que mandou uma seguradora indenizar um cliente

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que teve seu carro roubado. Para a Justiça, a conduta da seguradora é“abusiva, reprovável e absurda, tendo em vista que se coloca em confronto com os objetivos do contrato”. RevistaConsultor Jurídico, 30 de novembro de 2007.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No corpo do presente artigo conclui-se que a expectativa criada no consumidor de seguros, passa pelo o que o próprio nome diz, há de ser SEGURO.

Há o fato irrefutável, de que o consumidor brasileiro não tem habito de ler contrato, assim como não lê todo dia o Diário Oficial, da União, Estados e Municípios, apesar da lei expressamente dizer que não lhe cabe alegar desconhecimento destes.

Observou-se no transcorrer das linhas transcritas que se deve deixar o estático termo expresso no meio de diversas paginas de um manual do segurado que vira uma “hipocrisia legal” diante do cidadão mediano, devendo-se ampliar os parâmetros e passando a considerar, a aparência de segurança vendida por cada contrato de seguro, com a prevalência do principio da confiança, na mesma forma que o segurador espera e confia que vai receber o premio a ser pago pelo segurado; e considerar com base na teoria do mestre Dr.Miguel Reale: o fato social, na falta hábito do consumidor, em ler clausulado de inúmeras paginas criada pelos seguradores, e o segurador passar a dizer em uma só pagina dizer o que não cobre. Os direitos e obrigações do consumidor o resto é detalhe que só será lido quando e se houver um evento futuro e incerto seja quanto a data(morte) seja quanto ao evento /fato.

Do valor sob a ótica dos seguradores, há um clausulado de inúmeras paginas, já desrespeitando o consumidor, desde a proposta de seguro, pois o seu “segurês” só visa lhe garantir a possibilidade de negativa de cobertura, pois para se dar cobertura, honrando o contrato, não se precisa de tantas Clausulas, precisa-se apenas de um cheque; e o valor sob a ótica dos consumidores diante da sua intensa atividade laborial do dia-a-dia,

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se ainda tiver de parar para ler todo o clausulado de todos os contratos que assinam, as vezes com 180 paginas, eles não vão conseguir trabalhar para auferir recursos para honrar seus compromissos e os seguros serão cancelados por falta de pagamento, na certa.

Resultando na norma protetiva, seja constitucional ou do CPDC[xi], ou nas resoluções da Agencia Reguladora/Susep ou de forma consuetudinária, com base na práxis comercial, pois tudo é bom enquanto vai bem; e o consumidor de seguros só entende a extensão do clausulado de seu Seguro, quando acontece o evento futuro e incerto com o bem segurado.

Então há de se procurar as formas de resolução de conflito viáveis, que devem começar quando for recusada a cobertura da Seguradora, de forma escrita, verbal ou tácita pela demora por mais de 05(cinco) dias do recebimento dos documentos exigidos sem resposta, deve-se ir a Ouvidoria da Seguradora, que tem o prazo habitual de 5 dias para responder.

E, não obtendo ainda solução satisfatória, vai-se a agencia reguladora/Susep registrar uma reclamação pelo não pagamento, já invocando a RESOLUÇÃO CNSP Nº 60/2001, art.5,II, letra n, que em no máximo 60 dias terá uma resposta, conforme a apuração a seguradora pode ir acumulando a multa inicial de R$9.000,00(nove mil reais) mais as que podem ser apuradas no curso do processo, podendo chegar até a R$60.000,00(sessenta mil reais) só de multa administrativa por esta recusa irregular, o que já será altamente desestimulante para uma negativa arbitrária; sem prejuízo de uma cobrança judicial que além do dano material poderá ser cumulada de dano moral, pois o consumidor ao ser obrigado a recorrer a justiça diante de tantos recursos administrativos, deixa de ter um mero aborrecimento e incorre em um constrangimento aviltante da expectativa de SEGURO, do patrimônio pessoal e dignidade do cidadão consumidor de seguros.

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Aliás, observou-se também que o acidente coberto, ou não, é o momento que exige dos operadores do mercado de seguro a mostra de seu valor, pois a expectativa da contratação está diretamente ligada a este momento.

Não se afirma que todo e qualquer risco deve e pode ser aceito ou que todo e qualquer acidente deve ser aceito e pago pelas seguradoras, em nome do contrato mal formulado, pois é sabido que o fator emocional, de perda no consumidor, no momento da ocorrência de um fato futuro e incerto, pesa muito mais do que a racionalidade ou a lembrança de ter comprado ou não a cobertura para este risco; porém a negativa deste tem de ser rápida, e muito bem fundamentada e objetiva, se houver algum engano a sua ouvidoria poderá rever, ainda sem custo negativo para o Segurador.

A GRANDE EMPRESA NÃO SE MEDE PELA FALTA DE POSSIBILIDADE DE ERROS, UMA VEZ QUE SÃO PESSOAS HUMANAS QUE DECIDEM, E SIM PELA RAPIDEZ E EFICIÊNCIA COM QUE CORRIGE E PREVINE OS POSSÍVEIS ERROS IDENTIFICADOS.

É inaceitável, a premissa generalizadora, de existirem segurados fraudadores para desculpar o mau atendimento, até por que as seguradoras incluem na taxa do risco, quase 40% por conta das possibilidades de fraude, e todos os consumidores pagam, por ignorarem a composição da taxa de risco.

E ainda, não há divulgação das fraudes apuradas pelos seguradores para não arranharem a imagem da empresa, e assim transferem o custo destas supostas fraudes para o valor do seguro.

Desta forma os seguradores pactuam indiretamente, por omissão, com estas atitudes lesivas ao instituto Seguro. Há de se mostrar publicamente que há tentativas de fraudes, mas para estas há punições, pois caso contrário estaria se estimulando, o descumprimento da lei e dos bons costumes.

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É absolutamente profícuo o estudo dos princípios da boa-fé objetiva, confiança, transparência, função social do contrato e razoabilidade que nunca possuíram tanta relevância dentro do sistema jurídico, destacando-se sua importância enquanto nova roupagem de diversas regras positivadas no novo código civil, na forma de cláusulas gerais que conferem poder de decisão dos magistrados.

Obviamente a análise das teorias acerca da vontade e aparência da oferta é de imperiosa importância para a aferição dos contratos, entre eles a existência da cobertura, a validade e a relevância da dinâmica do risco versus o risco contratado, para apreciação dos seus efeitos, o que se denomina eficácia da cobertura esperada no instituto Seguro.

Além da vontade, hão de ser considerados elementos, requisitos e fatores, entre eles a forma em que esta vontade é exteriorizada, compreensão das condições gerais do contrato, não passando de uma pagina, bastando dizer os riscos excluídos, demais estão cobertos; considerar-se a idoneidade, licitude e possibilidade do objeto, a capacidade e legitimação das partes para a aferição da perfeição do ato para a produção de efeitos jurígenos.

Encerrando o presente trabalho, obviamente sem a pretensão de ter esgotado tão fascinante tema, frise-se que a maior contribuição do Instituto Seguro está em sua expressiva participação e representatividade no plano de desenvolvimento da economia nacional.

Um país com um Instituto Seguro forte e bem respeitado e com alto índice de CONFIANÇA, sob a ótica do consumidor, geraria uma poupança nacional sólida, representando diretamente o quanto os seus cidadãos, consumidores diretos e indiretos dos serviços nacionais, acreditam nas condições de governabilidade, pois tem na seriedade da independência dos Poderes da República, a base de suas crenças e orgulho de ser cidadãos, com seus direitos fundamentais dispostos e protegidos pela Carta Constitucional.

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4. REFERÊNCIAS

*CONSTITUIÇÃO FEDERAL, COD CIVIL.

*COD.BR.de Def.Consumidor:comentado pelos autores do anteprojeto/ Ada Pellegrine Grinover (ed.alt)- 8.ed- RJ:Forense Universitária, 2004

*V fórum Jurídico do Seguro Privado, Anais/diversos autores:Jose Américo Peon e outros- Foz de Iguaçu,PR:Funenseg, 1995.

* AMARAL. Francisco. Direito ... Op. cit., p. 351.

* CAVALCANTI, Bruno. O princípio da boa-fé e os contratos de seguro. Recife: Nossa Livraria, 2000.

*Dicionário de seguros:vocabulário conceituado de Seguros/Técnicos de seguros:Antonio Lober Ferreira de Souza...-Tecnico documentação Teresinha Castello Ribeiro.- RJ:Funenseg, 1996.

*O CDC e sua interpretação jurisprudencial/ Rizzato Nunes – 3.ed., ver. E ampl.- SP:Saraiva, 2007.

*O contrato de seguros:comentado conf.as disposições do novo CCB.../João Marcos Brito Martins – RJ:Forense Universitária, 2003.

*O seguro no direito brasileiro/Voltaire Giavarina Marensi,-7° ed.-Porto Alegre:Síntese, 2003.

*O corretor de seguros à luz do novo CC/Gumercindo Rocha Filho, coordenador.-RJ:Sincor/Fenacor/Funenseg,2003.

* CATALAN, Marcos Jorge. Princípios aplicáveis à formação e adimplemento dos contratos no Código de Defesa do Consumidor.In: Revista de Ciências Jurídicas / Universidade Estadual de Maringá. Maringá: UEM / Curso de Mestrado em Direito, 2000, vol. 6, pp. 145/146.

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*Contratos no CDC:o novo regime das Relações contratuais.5° ed.rev.atual.e ampl. Claudia Lima Marques.SP;RT,2006.

* Justiça e Democracia:entre o universalismo e o comunitarismo/; a contribuição de Rawls,Dworkin,Ackerman, Raz e Habermas para moderna teoria da Justiça/Cecília Caballero Lois, organização; Roberto Basilone leite, colaboração.Sp:Landy ed., 2005.

* LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito contratual e constituição. In:Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, n.º 36, 2000, p. 245.

*Manual de Direito do consumidor/Antonio Herman V.Benjamim, Claudia M.Marques.-SP:Ed.Revista dos Tribunais, 2007

*REALE, Miguel. O projeto de código civil. São Paulo: Saraiva. 1986, p. 94

*Teoria da argumentação no direito e na moral:justificação e aplicação/ Klaus Günther; tradução Cláudio Molz; int.à ed.Br Luiz Moreira-SP:Landy Ed.2004.

Diversos artigos da internet:

Disponível em: nos site do STJ e TJ estaduais com comentários do

http://www.espacovital.com.br:80/noticia_ler.php?idnoticia=11294

Disponível em: http://www.bibl.ita.br/xencita/Artigos/55.pdf Estudo da relação entre gerenciamento de risco e análise de decisão. Tatiana Alfredo da Silva

Disponível em: artigoshttp://www.cqcs.com.br/home.asp?pagina=/body_noti

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http://www.seguros.inf.br, II Congresso Brasileiro de Direito de Seguros e Previdência da Associação Internacional de Direito de Seguros – AIDA-BR

NOTAS:

[i] CAVALCANTI, Bruno. O princípio da boa-fé e os contratos de seguro. Recife: Nossa Livraria, 2000, apud, NEMEZIO Auta França de Oliveira.; ACCIOLY.; FERRO Mirya Tavares Pinto Cardoso Celyrio Adamastor Tenório. O princípio da boa-fé e sua abrangência. Artigo capturado na internet: http://www.bpdir.adv.br/, em 12.06.2002. Cf: COSTA, Judith Hofmeister Martins. O Direito Privado como um "sistema em construção":as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. In: Jus Navigandi, n. 41. [Internet]

http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=513 [Capturado 29.Jun.2002]. Hoje em dia se afirma que o parágrafo 242 veio a constituir o elemento fundamental para uma compreensão "absolutamente nova" da relação obrigacional, transformando o conceito de sistema e a própria teoria tradicional das fontes dos direitos subjetivos e dos deveres, na medida em que limitou extraordinariamente a importância da autonomia da vontade. Aceita-se, por igual, que a boa-fé possui "um valor autônomo, não relacionado com a vontade", razão pela qual "a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se mede com base somente nela, e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até ao controle das partes.

[ii] REALE, Miguel. O projeto de código civil. São Paulo: Saraiva. 1986, p. 94.

[iii] CATALAN, Marcos Jorge. Princípios aplicáveis à formação e adimplemento dos contratos no Código de Defesa do Consumidor. In: Revista de Ciências Jurídicas / Universidade

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Estadual de Maringá. Maringá: UEM / Curso de Mestrado em Direito, 2000, vol. 6, pp. 145/146.

[iv] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito contratual e constituição.In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, n.º 36, 2000, p. 245.

[v] Proc. nº 2008.007202-9 3ª Câmara Civil do TJ-SC- Cláusulas confusas em contrato de saúde devem privilegiar consumidor,O acórdão esclareceu que sob a análise do Código de Defesa do Consumidor, as cláusulas contratuais que geram dúvida devem ser interpretadas da maneira mais favorável ao consumidor. A desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta, relatora, afirmou que "foi mesmo infundada a recusa à tomografia computadorizada de crânio, indicada como excluída de período de carência pelo documento, cabendo à ré arcar com os custos que foram necessários à sua realização".http://www.espacovital.com.br:80/noticia_ler.php?idnoticia=11294

[vi] V FÓRUM JURÍDICO DO SEGURO PRIVADO- FOZ DE IGUAÇU- PR- PAG.241 – “É inescondível que as seguradoras, na sua lida diária com o seguro, e com o risco por conseguinte, pagam vultosíssimas importâncias na garantia dos riscos que suportam. Porém, são contidianamente vitimas de artimanhas , do ardil, do estelionato, de segurados inescrupulosos, que se aproveitam justamente do elemento boa-fé que caracteriza o contrato de Seguro, não raro de difícil comprovação, tal o requinte com que agem contra a seguradoras. É, pois, imprescindível, nesse contexto, não banalizar os indícios.”

[vii] Atitudes perante o risco Risco Neutral O agente econômico valoriza a possibilidade de forma equivalente ao seu valor esperado; A ordenação de preferências pode efetuar-se inteiramente com base nos valores esperados das possibilidades;Valor esperado mais elevado é sempre preferível a valor esperado mais baixo. Aversão ao Risco: O agente econômico valoriza a possibilidade de forma inferior ao seu valor esperado; A ordenação de preferências não pode efetuar-se com base nos valores esperados das possibilidades, na medida em que o valor esperado sobrevaloriza o valor das possibilidades; Valor esperado mais elevado é sempre preferível a valor esperado mais baixo. Atração pelo Risco: O agente econômico valoriza a

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possibilidade de forma superior ao seu valor esperado; A ordenação de preferências não pode efetuar-se com base nos valores esperados, na medida em que estes sub-valorizam a utilidade que os agentes econômicos retiram do consumo. http://www.bibl.ita.br/xencita/Artigos/55.pdf Estudo da relação entre gerenciamento de risco e análise de decisão. Tatiana Alfredo da Silva

[viii] http://www.cqcs.com.br/home.asp?pagina=/body_noticias_detalhe.asp*cdArea=1**cdNoticia=37854**filtro=0**pag=0,37859,37858,37857,37856,37855,37854,37853,37852,37851,37850**lk=0

[ix] Decreto-lei n° 3.688, de 3 de novembro de 1941

[x] 17.03.2008 - Ministro do STJ afirma que é necessário diferenciar corretor de agente de seguros Fonte: www.Seguros.inf.br, II Congresso Brasileiro de Direito de Seguros e Previdência da Associação Internacional de Direito de Seguros – AIDA-BR,realizado na EMERJ, foi ministrada pelo Ministro Massami Uyeda, do Superior Tribunal de Justiça. Sob o tema “O Canal de Distribuição de Seguros e a Responsabilidade Civil do Corretor e do Agente de Seguros”, o magistrado iniciou sua preleção afirmando que o primeiro passo para analisar o tema é diferenciar corretor de agente de seguros. “Há uma indefinição conceitual de um e de outro. Na prática, se vê agente atuar como corretor e corretor como agente. E seguradoras fazendo o papel dos dois.”, disse. “A própria doutrina de direito de seguro tem se deparado com a dificuldade conceitual dessas duas categorias e a adequação das suas funções. O agente trabalha em prol do interesse da seguradora, enquanto o corretor em prol do segurado. Este é o conceito básico, que temos entendemos”, explicou. Uyeda expressou urgência na necessidade destas definições, já que, são estes personagens – corretor e agente – que movimentam o mercado. “De acordo com o vice-presidente da AIDA, Luis Felipe Pellon, o mercado de seguros brasileiro movimenta cerca de 3% do PIB. Tendo em vista esta grande movimentação de valores, é imprescindível que se defina os aspectos que envolvem os canais de distribuição do setor”. Por conta desta indefinição, o ministro afirmou que o Judiciário atua segundo a Teoria da Aparência. “Como não há limites definidores, nós, da Justiça, acabamos usando a Teoria da Aparência, para julgar as causas que são levadas a Justiça.”. O magistrado citou casos em que a Justiça, por conta desta teoria,

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considerou o corretor como representante da seguradora, e não do segurado, o que segundo ele, “confunde ainda mais os conceitos”. O magistrado encerrou sua palestra pedindo ao mercado de seguros que realize debates e reflexões sobre essas atividades, já que, “essa distorção causa problemas sérios para as seguradoras, corretores e para o mercado”.

[xi] Código de Proteção de Defesa do Consumidor