boa companhia - haicais

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Boa companhia: HAICAI Organização: Rodolfo Witzig Gutilla Copyright 2009. Capa: Jeff Fisher Preparação: Maria Cecília Caropreso Revisão: Angela das Neves Ana Maria Barbosa Boa companhia: haicai / organização, seleção e introdução Rodolfo Witzig Gutilla – São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Vários autores. ISBN 978-85-359-1537-2 1. Haicais – Coletâneas 2. Poesia Brasileira I. Gutila, Rodolfo Witzig. Sumário Haicai, haicais (ou como o mais importante poema japonês foi abrasileirado). Rodolfo Witzig Gutilla, 7. Abel Pereira, 23 Afrânio Peixoto, 29 Alice Ruiz, 33 Antonio Fernando de Franceschi, 41 Carlos Drummond de Andrade, 47 Carlos Vogt, 55 Cyro Armando Catta Preta, 61

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Page 1: Boa Companhia - Haicais

Boa companhia: HAICAI

Organização: Rodolfo Witzig Gutilla

Copyright 2009.

Capa: Jeff Fisher

Preparação: Maria Cecília Caropreso

Revisão: Angela das Neves Ana Maria Barbosa

Boa companhia: haicai / organização, seleção e introdução Rodolfo Witzig Gutilla – São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Vários autores. ISBN 978-85-359-1537-2

1. Haicais – Coletâneas 2. Poesia Brasileira I. Gutila, Rodolfo Witzig.

Sumário

Haicai, haicais (ou como o mais importante poema japonês foi abrasileirado). Rodolfo Witzig Gutilla, 7.

Abel Pereira, 23

Afrânio Peixoto, 29

Alice Ruiz, 33

Antonio Fernando de Franceschi, 41

Carlos Drummond de Andrade, 47

Carlos Vogt, 55

Cyro Armando Catta Preta, 61

Décio Pignatari, 67

Érico Veríssimo, 77

Guilherme de Almeida, 83

Page 2: Boa Companhia - Haicais

Haroldo de Campos, 91

Helena Kolody, 91

José Lino Grunewald, 101

José Paulo Paes, 107

Lêdo Ivo, 115

Luís Aranha, 121

Millôr Fernandes, 125

Monteiro Lobato, 135

Oldegar Vieira, 139

Olga Savary, 145

Oswald de Andrade, 153

Paulo Leminski, 159

Pedro Xisto, 169

Waldomiro Siqueira Jr., 177

Agradecimentos, 185

Créditos, 187

Sobre o organizador, 189.

Abel pereira

Page 3: Boa Companhia - Haicais

Norte verdadeiro

Traço o rumo à frenteDe alguém que me segue bemParalelamente.

A moenda

Na dureza insana,Girando, range esmagandoToda a alma da cana.

Bucolismo

Canção matinal.Campinas. Vacas turinas.Cheiro de curral.

25

O acaso

No rio profundoO sol parece outro solA emergir no fundo.

Pelo vão das telhasO dia olha, e se anunciaEm vestes vermelhas.

Um grão bem miúdo...Um nada à margem da estradaUm nada que é tudo.

26

Poucos vaga-lumes,E a costureira não pôdeEnfiar a agulha.

Ai, dos vaga-lumes!Eles são muitos, e minhaHorta é pequena!

Page 4: Boa Companhia - Haicais

27

Afrânio Peixoto

Na poça da lama,Como no divino céuTambém passa a lua.

As cosias humildes,Têm o seu encanto discreto:O capim melado...

Um aeroplanoEm busca de combustível...Oh! É um mosquito

31

Alice Ruiz

Luzes acesasVozes amigasChove melhor

A chuva Nas luzes da casaUma é minha

Sem saudade de vocêSem saudade de mimO passado passou enfim

35

Por uma só frestaEntra toda a vidaQue o sol empresta

Há de vir no ventoAdmirado de si mesmo

Page 5: Boa Companhia - Haicais

Esse advento

Primavera Até a cadeiraOlha pela janela

36

Ouvindo QuintanaMinha almaAssobia e chupa cana

Fim do diaPorta abertaO sapo espia

Minha casaO sapo já sabeEntrar e sair

37

Rede ao ventoSe torce a saudadeSem você dentro

Diante do marTrês poetasE nenhum verso

Cerimônia do cháTrês convidadosE um mosquito

38

Montanhas ao longeMontanhas nos olhosDa libélula

A sala está perfeitaA brisa está perfeita

Page 6: Boa Companhia - Haicais

E ele ainda põe defeito

39

Antonio Fernando de Franceschi

Se o ralo versoTem haloÉ um universo

Águas

Se agitam ao logoNão me saciamMe afogo

Batismal

Numinosa fonteLúmenSeu sol me ressoa

43

Memento

Hora sem véuAberta:Céu dos cinco sentidos

44

Carlos Drummond de Andrade

Num automóvel abertoRiem mascarados.Só minha tristeza não se diverte.

Page 7: Boa Companhia - Haicais

Não tenho dinheiro no banco,Porém.Meu jardim está cheio de rosas.

Na escuridão da salaTom Mix apareceuE meus braços fracos te apertaram.

49

Cota zero

Stop!A vida parouOu foi o automóvel?

Hipótese

E se Deus é canhotoE criou a mão esquerda?Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.

Tudo tem limiteExcetoO amor de Brigite.

50

7 anos de idade.Muro de BerlimÉ eternidade.

Se o Papa ganha a ParadaVocê me garanteQue a Amazônia será povoada?

O pintor ao meu ladoReclama:Quando serei falsificado?

51

Page 8: Boa Companhia - Haicais

Cautela: em agostoNão vire o rostoAo rei da vela.

O censor olhou-seNo espelho e censurou-o:Que horror!

Gosto tanto de ir ao teatroQue por amor ao teatroVê lá se vou ao teatro.

52

A ponte de Mantes (Corot)

Assim quisera eu ser:Ponte árvore canoa água serenaIgnorante de tudo mais bem longe.

Pietá (Miguel Ângelo)

Dor é incomunicável.O mármore comunica-se,Acusa-nos a todos.

A Duquesa de Alba (Goya)

Ser o cachorrinho da DuquesaÉ de certo modoSer uma partícula da Duquesa.

53

Carlos Vogt

Falamos tudo e aindaHá o queSilenciar

Page 9: Boa Companhia - Haicais

Paisagem doméstica

Desavenças de casosSecam avencasNos vasos

Hai-kai (falso) de preguiça

Duro mesmoÉ ouvir o pãoEstalar as manhãs

57

Num guardanapo

O movimento do homemTende infinitamentePara o finito

Dramaturgia

Não me sintoNo papelVivido por você

58

Ultrarrealismo

A vida

Limita

A arte.

Anfitriã

Page 10: Boa Companhia - Haicais

Não se decepcione:

A vida o convidará

Para outros fracassos.

59

Cyro Armando Catta Preta

Instantâneo

Na vidraça fosca,A lagartixa se espichaE abocanha a mosca.

Desolação

Fim de estrada. Só.Sem espaço para os passos.Adiante e atrás: pó.

Reminiscência

A vaca amarelaAbriu os olhos e mugiuPulou a janela.

63

Libertação

A vizinha voou...Avezinha bem velinha,Desengaiolou...

64

Décio Pignatari

Page 11: Boa Companhia - Haicais

VELHALAGOAUMA RÃMERG ULHAUMA RÃ

ÁGUAÁGUA

Meu cachorro velhoOuvindo com interesseO canto do verme.

Da mulher da praia,Sobre a última maré,Espraia-se a noite.

69

Em nosso universo Breve, passa com pressa! EGraça, a borboleta.

Aos pássaros, aosNão pássaros, nossos campos“Ame-o já!” – proclamam.

Vento frio, aondeQuer ir? Instala-se, hirto,Num talo de grama.

70

Pérolas de orvalho!Olho e vejo em cada gota

Page 12: Boa Companhia - Haicais

A minha casa-espelho.

Lago, pingos, tiros:Quá-quá-quá dos patos patosPor enquanto vivos.

Mordidas de pulgasNa moça bonita: atéElas ficam belas!

71

Ok, pulgas, suguemA pele em arquipélago eSumam arquipulgas!

Damas todas, essas,E reis, jogados na caixa:Peças de xadrez.

Surgidos do escuro,Somem na moita, na noite:Amores de um gato.

72

A lua se foiMeu rouxinol se calouAcabou-se a noit-

Já foi feita a escolha?Chegou a minha vez, é isso?Gralha barulhenta!

Quanto inseto canta!Ócio! Formiga silen-Ciosa mostra a bunda.

73

De um banho (bebê)- Tatíbitatepatáqua –

Page 13: Boa Companhia - Haicais

A um banho (defunto).

74

Erico Veríssimo

Primavera

Libélulas? Qual!Flores de cerejeiraAo vento de abril.

Inverno

Na alva neve,A rígida mancha azulDa ave morta.

Serviço consular

Com cartas brancas,O senhor cônsul soltaPombos de papel.

79

Verão

Moscardo verde,Fruta madura no chão...Ó mel da vida!

Gota de orvalhoNa corola dum lírioJóia do tempo.Outono

Page 14: Boa Companhia - Haicais

Bosque de cobre,Borboleta amarela,Esquilo fulvo.

80

Jardineiro Insensato

Passou a vidaA cultivar sem saberA flor da morte.

81

Guilherme de Almeida

O pensamento

O ar. A folha. A fuga.No lago, um círculo vago.No rosto, uma ruga.

Infância

Um gosto de amoraComida com sol. A vidaChamava-se “Agora”.

Cigarra

Diamante. Vidraça.Arisca, áspera asa riscaO ar. E brilha. E passa.

85

Velhice

Page 15: Boa Companhia - Haicais

Uma folha morta.Um galho no céu grisalho.Fecho a minha porta.

Noturno

Na cidade, a lua:A jóia branca que bóiaNa lama da rua.

Os andaimes

Na gaiola cheia(pedreiros e carpinteiros)O dia gorjeia.

86

Pescaria

Cochilo. Na linhaEu ponho a isca de um sonho.Pesco uma estrelinha.

Festa móvel

Nós dois? – Não me lembro.Quando era que a primaveraCaía em setembro.

O Haikai

Lava, escorre, agitaA areia. E enfim, na bateia,Fica uma pepita.

87

Pacaembu

Page 16: Boa Companhia - Haicais

Chuva e sol. ReparaNas giestas atrás das frestasDas persianas claras.

O vento do invernoAssopra. Acendem-se e piscamOs olhos do gato.

Quimonos secandoAo sol! Ah, a manga pequenaDo menino morto.

88

Ah! O antigo açude!E quando uma rã mergulha,O marulho da água.

89

Haroldo de Campos

O vento tanque Rã salt’ Tomba Rumor de água

Manhã branca Peixe branco Uma Polegada branca

Canta o rouxinol Garganta miúda - sol lua – raiando93Camões revisto por bashô

Page 17: Boa Companhia - Haicais

As rãs

Daqui e dali s l a d A t n o

O charco soa = = = =

94

Helena Kolody

Ressonância

Bate breve o congo.Na amplidão do templo ecoaO som lento e longo.

Os tristes

Em seus caramujos,Os tristes sonham silêncios.Que ausência os habita?

Ipês floridos

Festa das lanternas!Os ipês se iluminaramDe globos cor de ouro.

99

José Lino Grunewald

Oh, “paus d’arco em flor”Bashô, 1º de abrilPau-brasil em dorFaunos verde-olivaDesfilam na linha dura

Page 18: Boa Companhia - Haicais

Os phalos falidos

Marcha da famíliaCom deus pela liberdadeMasturbam-se hienas

103

Desemprego em minasPorta-aviões bebe milhõesOh, minas gerais!

Filhas de MariaCardeal contra o monoquíniFilhas de biquíni

Família unidaReza & rouba sempre unidaOh, tempos de paz!

104

Reformas de baseA grama já amareleceBashô, nada muda

Castelo de cartasCastelo ma-assombradoBrasil branco, branco

105

José Paulo Paes

Ocidental

A misaA misO míssilO milagre alemão

Page 19: Boa Companhia - Haicais

VolkswarrenVolkswagnerVolkswagen

Cronologia

A-CD-CW-C

109

A um oportunista

O barco naufraga os ratosFogem soleres (no caisRonda a perfídia dos gatos)

Lar

O espaço que separaO volkswagenDa televisão

110

Teoria da relatividade

Devagar se vai longe

Mais perto de deus o ateuDo que o monge

Ode aos diluidores

InvençãoCoinvençãoConvenção

111

Page 20: Boa Companhia - Haicais

À bengala

Contigo me façoPastor do rebanhoDe meus próprios passos.

Apocalipse

O dia em que cadaHabitante da ChinaTiver o seu Volkswagen

112

Lêdo Ivo

No meio da rua

Exilado na multidãoSou silêncio e segredo e venhoQuando os outros vão.

Sabedoria

Viva o riso!Só sabe rir quem temDente do siso.

Dia a dia

Noite? Manhã? Tarde?O meu dia é eternoSem nenhum alarde.

117

Page 21: Boa Companhia - Haicais

A verdade da noite

No copo d’águaA dentadura postiça:O riso no aquário.

A cama

Amor silencioso!Só a cama gemiaParceira insaciável

Esconderijo

A palavra-chaveSempre se escondeAtrás da porta.

118

Luís Aranha

Pardas gotas de melVoando em torno de uma rosaAbelhas

Jogaste tua ventarola para o céuEla ficou presa no azulConvertida em lua

123

MIllôr Fernandes

Há colcha mais duraQue a lousaDa sepultura?

Page 22: Boa Companhia - Haicais

Podes crer,Com um dia de doençaJá aprendo a morrer.

Socialistas imundos:Querem acabarCom os vagabundos!

127

Quando estamos sós,Devemos nos tratarPor vós.

Eu vim com pão, azeite e aço:Me deram vinho, apreço abraço:O sal eu faço.

Na poça da ruaO vira-lataLambe a lua.

128

(Á maneira de Bashô)

Nem grilo, grito ou galope:No silêncio imensoSó uma rã mergulha – plóóp!

É tudo natural:A galinha – poedeiraO galo – teatral.

Fiquei bom da vista!Depressa,Um oculista!

129

É um confortoDa vida que me tiraram

Page 23: Boa Companhia - Haicais

Morto.

Com que grandezaEle se elevouÀs maiores baixezas!

O pato, menina,É um animalCom buzina.

130

Prova

Olha,Entre um pingo e o outroA chuva não molha.

Poeminha à glória televisiva

Não me contem!Ele era tão famosoAntes de ontem!

Poema glorioso

De mim só uma coisa vai ficar:O busto que eu mesmo fizerNa tumba que eu mesmo cavar.

131

Poeminha com certa prosa dor aqui assim, no exagero

Você não sabem, eu seiComo é duro serMais realista que o rei.

Page 24: Boa Companhia - Haicais

Poeminha sem nexo queixa

Liderar não é nada duro:As perguntas são sempre no presente,As respostas são todas no futuro.

Poema efemérico

Viva o BrasilOnde o ano inteiroÉ primeiro de abril

132

Poeminha fora da estação II – coragem é isso aí, bicho!

Eu sofro de mimfobiaTenho medo de mim mesmoMas me enfrento todo dia.

Mestre, respeito o Senhor,Mas não a Sua Obra;Que Paraíso é esse, que tem cobra?

133

Paulo Leminski

Soprando esse bambuSó tiroO que lhe deu o vento

Duas folhas na sandália

O outonoTambém quer andar

A palmeira estremecePalmas para elaQue ela merece

Page 25: Boa Companhia - Haicais

161

Aqui é alto

Mas não ouçoO c(h)oro dos sapos

A chuva é fracaCresçam com forçaLínguas-de-vaca

Roupas no varal

Deus seja louvadoEntre as coisas lavadas

162

Pelos caminhos que andoUm dia vai serSó não sei quando

Abrindo um antigo cadernoFoi que descobriAntigamente eu era eterno

Cortinas de sedaO vento entraSem pedir licença

163

Essa estrada vai longeMas se forVai fazer muita falta

Noite alta lua baixaPergunte ao sapoO que ele coaxa

Page 26: Boa Companhia - Haicais

Acabou a farraFormigas mascamRestos de cigarra

164

Nadando num mar de genteDeixei lá atrásMeu passo à frente

Minha alma breve breveO elemento mais leveNa tabela de mendeleiev

Jardim de minha amigaTodo mundo felizAté a formiga

165