bioÉtica aplicada À assistÊncia de enfermagem1 · no de si e ao governo dos outros (foucault,...

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BIOÉTICA APLICADA À ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM1 APLlCATED 810ETHI C TO THE NURING AIANCE 810ÉTICA APLICAD A A LA AIENClA DE ENFERMERíA Valéria Lerch LunardF RESUMO: A partirdo conceito de governabili da de de Foucaultcomo um tema ligado à ética, ao exercício da liber dade e da autonomia, discute o enfrentamento de situações de conflito ético , presentes no cotidiano da enfermagem, e em especial da enfermagem nefrológica. Defende a necessidade da enfermeira, na sua prática , optar por advogar a favor dos direitos do cliente. PALAVRAS CHAVE: governabilidade, bioética, conflito ético, transplante ABSTRACT: From the Foucault governability conc ept as a theme articulated to the concepts of authonomy, freedom and ethic , in this text, the author discusses the ethic conflictsituations confrontation, which are pr esents in the nursing quotidian and specially in the nefrology nursing. The author defends the need of the nurse, in her practi ce, to de cide to advocate in favor of the client rights KEY WORDS: governability, bioethic , ethic conflict , transplant RESUMEN: A partir de i concepto de gobernab ilidad de Foucault como un tema liga do a la ética, a i ejercicio de la liberd ad y de l a autonomía, se discute el enfrentamiento de situaciones de conflicto ético presentes en el cotidiano de la enfermería y en especial de la enfermería nefrologica. Se defien de la necesidad de que la enfermera en su práctica, opte por abogar en favor de los derechos de los clientes. PALABRAS CLAVE: gobernabilida d, bioética, c onflicto é tico, transplante Falar em bioética como uma parte da ét ica, sign ifica focal izar questões que se referem à vida humana. De acordo com a Encyclopedia of B ioeth ics, bioética pode ser conceituada como "o estudo sistemát ico do comportamento humano na área das ciências da vida e dos cu idados da saúde, quando se examina esse comportamento à luz dos valores e dos princí pios mora is". (Beno, 1997, p.21). Então, a bioética se preocupa com as questões r ef erentes à vida humana, desde o seu início até o seu final, à pesquisa com ser es humanos, à engenharia genética, métodos de fecundação, tra nspl a nt e de órgãos, manutenção da vida , pacientes terminais, den tre ou tros temas. Neste sentido, falar em bioét ica pode s ign if icar falar do nosso coti diano profissional, das re lações que estabe lecemos com nossos colegas, com nossos clientes, com a institu ição empregadora, quando este relacionamento torna-se objeto do nosso pensamento reflexivo, i ndag ador, problematizador. 1 Conferência apresentada no IX Congresso Brasileiro de Enfermagem em Nefrologia, Porto A legre, 1 998. ' 2 Mestre em Educação/UFRGS. Doutora em Enfermagem/UFSC. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem da FL'ndação Universidade do Rio Grande - FURG/RS. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Saúde - NEPES FURG. R. Bras . Enferm . Brasíli a, v. 51 , '1 . 4, p . 655-664 out ./dez. 1 998 655

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Page 1: BIOÉTICA APLICADA À ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM1 · no de si e ao governo dos outros (Foucault, 1990) no exercício da enfermagem e em especial, no exercício da enfermagem nefrológica,

BIOÉTI CA APL I CADA À ASS ISTÊNC IA DE ENFERMAGEM 1 APLlCATED 8 10ETH IC TO THE NUR)"I NG A)")"I)"TANCE

8 10ÉTICA APLICADA A LA A)"I)"TENClA DE ENFERMERíA Valéria Lerch LunardF

R E S U M O : A part i r do conceito de governab i l idade de Foucaul t como u m tema l igado à ét ica, ao exercíc io da l i be rdade e da autonomia , d iscute o enf rentamento de s i tuações de conf l i to ét ico , presentes no cot id iano da enfermagem, e em especia l da enfermagem nefro lóg ica . D efende a necess idade da enferme i ra , na sua prát ica, optar por advogar a favor dos d i reitos do c l iente .

PALAVRAS CHAVE: governab i l idade , b ioét ica , conf l i to ét ico , t ransp lante

ABSTRACT: From the Foucau l t governab i l ity concept as a theme art i cu lated to the concepts of authonomy, f reedom and eth ic , in th is text, the author d iscusses the eth ic conf l ict s i tuat ions confrontat ion , wh ich are p resents i n the n u rs i ng quot id ian and spec ia l l y i n the nefro logy n u rs i ng . The author defends the need of the n u rse , i n he r p ractice , to dec ide to advocate i n favor of the c l i ent r ights

KEY W O R D S : govern abi l ity , b i oeth i c , ethic conf l ic t , t ransplant

R E S U M E N : A part i r de i concepto de gobernab i l idad de Foucau l t como u n tema l igado a l a ét ica, a i eje rc ic io de la l i be rdad y de la autonom ía, se d iscute e l enfrentam iento de s i tuac iones de conf l icto ético p resentes en e l cot id iano de la enferme ría y en espec ia l de l a e nfermería nefro log ica . Se def iende la necesidad de que la enfermera en su p ráct ica , opte por abogar en favor de los derechos de los c l i entes .

PALAB RAS C LAV E : gobernab i l i dad , b ioét ica , conf l i cto ét ico , t ransp lante

Fa lar em b i oét ica como u m a parte da ét ica , s i g n i f i ca foca l i za r questões que se refe rem à v ida h u mana . De acordo com a Encyc loped ia o f B i oeth i cs , b i oét ica pode ser conce i tuada como "o estudo s istemát i co do comportamento h u mano na á rea das c iênc ias da vida e dos cu idados da saúde , quando se exa m i n a esse comportamento à luz dos va lo res e dos p r i nc íp ios m o ra is " . ( Bellino, 1 997 , p . 2 1 ) . En tão , a b ioét ica s e p reocupa com as q uestões re.fe rentes à v ida h u mana , desde o seu i n íc io até o seu f i na l , à pesqu isa com se res h u manos , à engen har ia genét ica , métodos de fecundação , t ransp lante de ó rgãos , m a n utenção da v ida , pac ientes term i na i s , dentre out ros temas .

N este sent ido , fa la r e m b ioét ica pode s i g n if icar fa l a r do nosso cot id iano p rof iss iona l , das re lações q u e estabe lecemos com nossos co legas , com nossos c l i en tes , com a i n st i tu i ção e m p regadora , quando este re lac ionamento torna-se objeto do nosso pensamento ref lex ivo , i ndagador , p rob lemat izador .

1 Conferência apresenta da n o IX Congresso Brasileiro de Enfermagem em Nefrologia, Porto

A legre, 1 998. '

2 Mestre em Educação/UFRGS. Doutora em Enfermagem/UFSC. Professora A djunto do

Departamento de Enfermagem da FL'nda ção Universidade do Rio Grande - FURG/RS. Membro do Núcleo de Estudos e Pes quisas em Sa úde - NEPES FURG.

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L UNA ROI, Valéria Lerch.

Por out ro lado , mesmo que não ten hamos consc iênc ia , estamos , cont i nu ­amente , tomando dec isões mo ra is , como ao p r io ri za rmos o nosso faze r , o uso q ua l i tat ivo do nosso tempo , ao de legarmos ta refas a d ife rentes membros da nossa equ i pe , ao se lec ionarmos e/ou ace i tarmos dete rm inados mate r ia is pa ra ass ist i r nossos c l i entes , ao p rescreve rmos cu i dados , ao nos re lac ionarmos com os outros , c l i entes , fam i l i a res , p rofi ss iona is , a i nst i tu i ção de saúde como u m todo .

A pa lavra mora l , então , pode se r com p reend ida como um cód igo mora l , deco rrente de um s istema de va lo res , ou seja , "um conj u n to de va lo res e reg ras de ação p ropostos aos i nd iv íduos e aos g rupos por i nte rméd io de apare l hos d ive rsos" . ( Foucault, 1 984 , p . 26) . No entanto , há as normas de comportamento e os modos pelos q ua is os i nd i v íduos dec idem conduz i r-se e const i tu i r-se a s i mesmos como suje itos mo ra is das s uas ações f ren te aos cód igos p rescr i t ivos e as no rmas mora is , de modo a que não atuem apenas como agentes e objetos , mas como suje i tos mora is do seu ag i r . Pa ra ser suj e ito mora l das nossas ações , não é compat íve l apenas obedece r a uma moral i mposta , o q u e , m u itas vezes , é rea l izado de u m modo automát ico , mecân i co e, quem sabe, roti ne i ro ; para ser suj e ito mora l nas re l ações com o out ro , é p rec iso se r um s uje i to autônomo e ag i r , vo l u ntar iamente , f ren te a ce rtos va lo res . É p rec iso pensar , deci d i r , refl et i r e quest ionar o nosso faze r , a nossa s i tuação no m u ndo , enf i m , é p rec iso p rob lemat izar as nossas p rát i cas e pe rg u ntar­nos se o que é , o que ex iste e se o que se faz, necessa r iamente , deve cont i n uar acontecendo e se fazendo deste modo .

Para se fa la r em ét ica , é p rec iso que rese rvemos e p r io r izemos u m espaço de te m po das nOssas v idas para ( re)vermos e ( re )pensarmos o nosso coti d iano pessoal e p rof i ss ional e nos pergu ntarmos o que devemos faze r , como devemos ag i r , porque ag imos ass i m , se o que fazemos é o que deve mos cont i nua r fazendo e , fundamenta l ­mente , quem tem se benef ic iado com o nosso faze r , com a nossa p ráti ca , com o nosso modo de ser . É i m portante acrescentar que nós não nasce mos ét i cos , nossa estrutu ração ét ica vai se dando com o nosso p rópr io desenvo lv i mento ( Cohen; Segre, 1 995) .

N este texto , então , p retendo pontuar a lgumas questões refe rentes ao gove r­no de si e ao gove rno dos out ros ( Foucault, 1 990) no exercíc io da e nfe rmagem e em espec ia l , no exercíc io da e nfe rmagem nefro lóg ica , entendendo a gove rnab i l i dade como um tema d i retamente l i gado à ét ica , já que se refe re , permanentemente , à poss i b i l idade de se rmos ou não suje i tos mora is das nossas ações , de favo rece rmos ou d i f i cu l tarmos que os out ros , tam bém , sejam suje i tos mora is das s uas ações . Em nossa p rát ica p rof iss iona l , q uando nos p ropomos a reconhecer-nos como suje i tos mora is das nossas ações , ref let i ndo o nosso faze r , quest ionando a nossa atuação , d uv idando , ta lvez , das nossas ce rtezas e da j ust i f icat iva mora l de a l gumas pecu l i ­a ri dades do nosso faze r , podem ser m u itos os conf l i tos ou d i lemas ét icos , em que do i s va lo res mora is podem encontrar-se em conf l i to , de modo que cada u m de les pode ser respe itado somente às custas do outro . (Luna; Salles, 1 995) . Neste sent ido , poder ia d ize r que somos l ivres para mantermos ou não os c l i entes que ass ist i mos e que se encont ram em estado de i gno rânc ia e de descon hec i mento em relação aos seus d i re i tos , podendo advogar contra ou a seu favo r , cont ra ou a favo r dos seus d i re i tos , cont ra ou a favo r da sua poss i b i l idade de se r su je i to , ou de se r mais

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s uje i to o u , p redom i nantemente , objeto da s u a v ida e da s u a saúde .

No nosso d i a a d i a p rof i ss iona l , podem ser m u itas as v ivê nc ias em que o c l i ente não tem sua cond i ção de pessoa recon hec ida , j á que a e l e não é dado o d i re i to , m u i tas vezes , de dec id i r , de optar , de consent i r o u recusar u m t ratamento en tend ido pe la equ ipe méd ica e/ou de saúde como o me l ho r t ratamento . É poss ível q u e , em a lgu mas s i tuações , seja respe i tado e buscado o consent i m e nto l ivre e escla rec ido , e m q u e , n u m a l i n g uagem s i m p les e com p ree n s íve l , os c l i entes sejam esc larec idos e i nformados sobre as d iferentes poss i b i l idades de t ratamento ex isten ­tes e d i spon íve is naque l e se rv iço e/ou e m out ros serv iços , seus d i fere ntes benef í­c ios te rapêut icos , seus r iscos , vantagens e desvantagens , i mp l i cações , envolvimentos e responsab i l i dades , de modo a que como s uje itos , como pessoas , l iv remente , possam pensar , reflet i r , pondera r e , autonomamente , s e m p ressões ou coação , dec id i r o que desejam para s i , reconhecendo e m s i sua cond i ção h u mana , sua cond i ção de gente , responsável e part i c i pante d i reto nas q uestões q u e , acred ita-se , m a i s do q u e para q u a l q u e r out ra pessoa , a s i d izem respe i to .

N o entanto , poder ia se pe rgu ntar : q uantos c l i entes , antes de i n i c ia re m uma dete rm i nada te rap ia rena l s ubst i tut iva, t ive ram con hec i m e nto das a l te rnat ivas te ra­pêut icas , da poss i b i l i dade de aderi r a outros d iferentes tratamentos d i a l ít icos? A este desaf io o ra ap resentado , poder ia se contrapor o a rg u m ento de q u e os c l i entes , ao chegarem a um serv iço de hemod iá l i se , por exemp lo , j á possam vir com seu acesso venoso e f ístu la p rontos , não cabendo à enferm e i ra i n terfe r i r nesta decisão já tomada pe lo méd ico e/ou pe la equ ipe méd ica com d ife rentes poss i b i l i dades ou não de part ic i pação dos c l i entes envo lv idos .

Por outro lado , a part i r da nossa cond ição de seres raciona is que só podem pensar sua cond i ção de s uje i tos dotados de u m a vontade fruto da razão , a part i r do uso da sua l i be rdade , poder ia pergu nta r ace rca do l iv re uso das nossas poss i b i l i da­des de d i fe ren tes movi mentos e ações no sent ido de advoga r a favo r do c l i ente , do seu esc larec imento e da redução da sua des i nformação no que d iz respei to a s i , às d iversas poss i b i l i dades ex istentes de como cu ida r de s i , de se gove rnar , enf i m , da sua dec isão de com o v iver . Quantas vezes nossas opções podem se faze r ma is no sent ido de advogar contra o c l i ente , m ante ndo-nos con i ven tes e o m issos ao estabe lec ido e dado em re lação a e l e , refo rçando e favorecendo q u e se mantenha n u m a s i tuação de desconhec imento , de i gno rânc ia , de escu r idão e i mpotênc ia q uanto ao que d i z respe ito a s i , à sua saúde e à sua v ida , ao m odo de se cu idar , sem amp l ia r s u as poss i b i l i dades de deci d i r o q u e desej a e p rete n d e , rac iona l e autono­

mamente , para s i e para a sua v ida? 3

3 Ao falar em advogar a fa vor do cliente, refiro-me à possibilidade do seu esclarecimento, de fa vorecer e estimular que esta pessoa, como todos nós, neste processo, sejamos mais, a vancemos e fortaleçamos a nossa condição de pessoas que participam da construção da história, como sujeitos no mundo e que, portanto, fazem diferença, pois ultrapassam uma

possível situação de objeto e de coisa, destituída de vontade própria, já que apenas deve

obedecer, acata r, fazer obedecer e fazer cumprir. Parece interessante destacar que ao se

aponta r a enfermeira como uma profissional que possa advogar a fa vor dos direitos do cliente

que o fato de assumir este papel não se caracterize como uma atitude paternalista ou de

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L UNA ROI, Valéria Lerch.

Foca l i zar a autonom ia , seja como u m dos p r i nc íp ios da b ioét i ca , seja como o s u p remo p r i nc íp i o da m o ra l i dade ( Kant, 1 995) , leva-nos a pergu ntar-nos como desej a r e espera r que o c l i ente aja , pergu nte , q uest ione , d i scuta e res i sta frente ao que lhe é ap resentado como dec id ido e i nquest ionável se, f req üentemente , desco­n hece q u e o que l he é apresentado como uma ve rdade e uma ce rteza pode , no e ntanto , se r apenas uma das verdades e somente uma poss i b i l i dade de ce rteza? Como espera r que os c l i entes part ic i pem e se envolvam nas dec isões que , fundamenta lm ente , l hes d izem respe i to , tendo que enfrentar , como f req üênc ia , quem rep resenta o poder nas i n st i tu i ções de saúde , q uando ta i s re l ações se encontram tão pe rmeadas por des i gua ldades , p rovave lmente , desnecessárias e i nad m i s s íve is de saber? U m sabe r que se refe re não apenas à doença em s i , mas , antes , sabe r como cu i da r de s i , como ser c idadão numa soc iedade com tamanhas des igua ldades ; con hecer seus d i re i tos , con hece r que tem d i re i tos , sabe r que pode pergu ntar , desconf iar , não saber , recusar ou ace ita r .

U m a out ra q uestão a ser abordada, ao foca l i za r-se a ass istênc ia ao ser com uma doença c rôn ica , refe re-se à adesão ou não dos c l i entes ao t ratame nto p roposto . Comu mente , seus i nsucessos nesta adesão são entend idos , recon h ec idos e va lo r i zados como i nsucessos da equ ipe de saúde e/ou de enfe rmage m . É poss ível ass i m pensar . No entanto , estabe lecer laços mora is e ntre o p rof i ss iona l que cu ida e quem é cu idado , de modo a que êx itos e "pecados" possam se r i n te rcamb iados entre q uem or ienta como se cu ida r e quem se encontra no pape l de ap rend iz ( Foucault, 1 990) , pode s i gn i f icar ret i ra r e negar , de quem é ens i nado e or ie ntado , o seu espaço de l i berdade que o capacita a opta r e dec i d i r por ag i r , também , d i ferentemente do que l he fo i apresentado como recomendáve l . I ns ucesso do se rv iço e da equ ipe de saúde? I nsucesso da enferm e i ra que o or ie ntou? Depende dos obj et ivos a que nos p ropomos a lcançar .

Reconhece r a enfe rmagem como uma p rof issão da saúde s i g n i f ica , a meu ve r , o reconheci mento do com p rom isso das p rof i ss iona is , que a exerce m , com o c l i ente no sent ido de l hes ofe recer , ap resentar , co locar à sua d ispos ição , para ser ut i l i zado , o seu saber e a sua competênc ia , tendo em v ista a ass istênc ia a l he ser p restada , res ponsa b i l i zando -se , e n tão , por esta ass i stê n c i a p restada e i m p lementada . Ta l reconhec imento , e nt retanto , não s i gn if i ca que estas p rof iss iona is se e ntendam como responsáve is pe lo c l i e nte e pe las suas opções e dec isões , q uando este tem cond ições de responsab i l izar-se por s i e de dec id i r , autonomamen­te , o que deseja para s i , como p retende se cu idar , os r iscos que p retende co rre r, as poss íve i s conseq üênc ias , pos i t ivas e negat ivas , destas esco l has . Reconhecer a nossa responsab i l i dade em se rmos competentes no nosso fazer p rofi ss iona l , na

infantilização do cliente, já que não se entende tal função como o ocupar o lugar da sua voz, da sua pala vra, do seu direito (e de ver?) de se manifestar, mas, antes, este papel de advogado do cliente significa oportunizar que ele tome conhecimento, seja informado, e compreenda que é possível, mais, que usar sua voz e sua pala vra é um direito seu como cidadão. Parece grotesco, em uma sociedade, a necessidade de se afirmar que o uso da pala vra, do diálogo, do

questionamento, constituem-se em um direito do cliente como cidadão e, mais ainda, tal

informação ser reconhecida como um movimento no sentido de advogar a fa vor dos clientes.

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ass i stênc ia p restada , e m s uas m ú l t ip las d i m ensões , n ã o s i gn i f ica recon hece r-se como responsável pe las dec isões dos c l i entes , mas a com p reensão dos nossos l i m ites de atuação frente ao c l i ente como um out ro , q u e está fora de nós e que tem o d i re i to de faze r esco lhas d i fe re ntes das que recon hecemos , ta lvez, como as me l ho res e ma is adeq uadas .

N u m a l i n h a seme l hante , parece se r com u m ao se or ientar os c l i entes em re lação ao seu auto-cu idado , l hes serem apresentadas p ro i b i ções q uanto ao que não devem faze r e recomendações e m re lação ao que devem seg u i r numa re lação p redom i nantemente p rescri t iva e pasto ra l ( Foucault, 1 990) , em q u e se espera a sua obed iênc ia e a sua ace i tação das verdades apresentadas . En t retanto , q uando se p retende uma re lação p rof i ss iona l que recon heça o c l i ente como uma pessoa com capacidade de pensar e de deci d i r , ap resentar u m a l i sta de p ro i b i ções , de deve res e obr igações a se re m segu idas pode s i g n i f icar negar a sua cond i ção de suje ito . D ife ren tem ente , ap resentar , n u m a l i nguagem acess íve l , s i m p les e com p reens íve l , com espaço para expressar as s uas i n co m p reensões , os seus q u est ionamentos e medos , o q u e s i g n if ica dete rm i nada pato log ia , com o os seus háb itos de v ida podem ou não ag ravá- I a , como dete rm i n ados cu i dados podem ou não a u me nta r sua sobrevida , os r iscos de comp l i cações p resentes e as poss íve i s conseqüênc ias decorrentes das suas opções de v ida , pode rep resentar uma ma ior i nstrumental ização do c l i ente para não apenas cu idar de s i , mas , tam bé m , recon h ece r-se como responsável pe lo cu idado de s i .

Neste sent ido , a i nda , podemos defrontar-nos com conf l i tos ét icos em q ue os c l i entes desejem opta r , vol u ntari amente , por abandonar o seu t ratamento , por exemp lo , d ia l ít i co , frente às com p l i cações e ao com p romet i m ento genera l i zado de d i ferentes funções e dom ín ios , da sua capacidade de se cu ida r , da sua q ua l idade de v ida . Este desejo rep resentar ia , necessar iamente , um estado dep ress ivo ou pode ser uma poss i b i l i dade de esco l ha consc iente e autônoma frente à sua s i tuação pessoa l , fam i l i a r , não só p resente , mas , tam bé m , futu ra? Estamos p reparados para com p reender e respe i tar uma dec isão q u e pode se r a exp ressão do exercíc io de autonom ia de um c l i ente? Como e nfre ntar ta l d i l ema ét ico?

A inda , podem ser ap l i cadas med idas en tend idas como extraord i nár ias , como a d iá l i se , em pac ientes recon hec idos como term i na i s . Os p rofi ss iona is , as vezes , dec idem pe los c l i entes o que entendem se r para e les o me l hor . Para Cu/ver ( 1 995 , p . 1 48) , po ré m , "d i ferentes pac ientes , em s i tuações méd icas idênt i cas , farão esco l has d i fe re ntes : os va lo res pessoa is os d i rec ionam a e leger d i fe rentes cam i ­n hos ent re a qua l i dade e a d u ração de s uas v idas . Os seus méd icos não podem saber , me l ho r do que e les , o que e les p rópr ios p refe re m . À medida que o púb l i co se to rna cada vez ma is c iente de que as esco l has de cu idados méd icos estão re l ac ionadas a va lo res pessoa is , e l e ex ige obter ma is i nformação e te r um voto de peso na tomada de dec isões" .

A part i c ipação do c l i ente ou de seus fam i l i a res e rep resentantes , nestas dec isões , deve se r e ntend ida com o u m d i re i to , po is apesar de dete rm inadas dec isões poderem ser en tend idas como um ato de benef icênc ia enq uanto u m p ri nc íp io da b i oét ica - fazer o bem ao out ro - , podem rep resentar o desrespe ito ao p ri nc íp io da não-ma lef icênc ia - não faze r o mal - pe lo caráte r de ad iamento de uma

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L UNA ROI. Valéria Lerch.

m o rte i n ev i táve l , n u m p rocesso q u e pode estar pe rmeado p o r d i f e ren tes sofr i mentos : f ís icos , emoc iona i s , ex istenc ia i s .

N estas s i tuações , freq üentemente , as enfe rm e i ras refe re m ang úst ia mora l , segundo Starzomski ( 1 998) , d iante do d i l ema ét ico que vivenc iam , j á q u e podem d iscordar o u , no m ín i mo , te r dúv idas q uanto à va l idade da te rapêut ica adotada e do poss íve l sofr i men to (des necessár io? ) v iv ido pelo c l i e nte .

E ntão , d iante de u m d i l ema ét ico como o desejo exp l íc ito de u m c l i ente de abandonar um t ratamento d ia l ít i co , por vezes , um c l i ente jove m , mas com s ign if i ca­t ivo e i mportante compromet i mento da sua q ua l i dade de v ida pe las com p l i cações e l i m itações assoc iadas , ou de u m conf l i to ét ico f rente a u m c l i en te reconhec ido como te rm i na l , em que há q uest ionamentos sobre a val idade ou não de p rossegu i r um tratamento , Starzomski ( 1 998) , a part i r de Me Donald ( 1 994) , ap resenta um gu ia estratég ico (não uma rece i ta) para aux i l i a r a construção de uma dec isão ét ica , p ropondo : a) - a ide nt i f i cação do p rob lema , dos fatos pe rt i nentes e c i rcu nstanc ia i s , d a s dec isões e d o s s e u s part i c ipantes , pautando-se em mode los de co laboração e não ve rti ca i s , com amp l i ação da equ ipe de traba l ho ( i nse ri ndo-se , a í , o c l i ente e sua fam íl i a) ; os c írcu los de ét i ca ; as consu ltas ét icas aos com i tês de ét ica e aos consu l to res de ét ica; b) - a espec i f i cação das alte rnat ivas poss íve i s , dec larando as opções cab íve i s ; c) - o uso de recu rsos ét i cos para ava l i a r as a l ternat ivas : - os p ri n c íp i os de b ioét ica ; - as normas p rofi ss iona is , l e i s e cód igos , a po l ít i ca da i nst i tu ição ; - a v isão contextua l i zada do c l i en te ; - os m ú l t i p l os j u l gamentos pessoai s ; - o s p roced ime ntos organ izados para consu lta ét ica ; d ) - a p roposta e testagem de poss íve i s reso luções : - a se l eção da me lho r a l ternat iva ou reso lução ; - uma aná l i se sens íve l e c r ít ica da dec isão , num amb iente de cu idado ; fazer a esco l ha como uma reg ra ge ra l ; - por ú l t i m o , responder se sente-se confo rtáve l com a dec isão tomada , e e m caso contrár i o , ana l i sar o q u e p rovoca desconforto e repet i r o p rocesso até esta r convenc ido de ter tomado a me l ho r dec isão . O objet ivo não é rea l izar a esco lha pe rfe ita , mas uma boa escol ha .

A i m portânc ia do traba lho em equ ipe , pe rmeado pe la com u n i cação , é bastante enfat izada como re levante tanto para red uz i r a ang úst ia mora l das enfe r­m e i ras , como para assegura r o me l ho r cu idado poss íve l aos c l i entes portadores de doenças crôn i cas . U ma equ ipe de traba lho , como a de nefro log ia , que func ione bem pode se r comparada , confo rme Starzomski ( 1 998) , a uma banda de jazz e m que não haja u m l íde r def i n i do , mas que , em d ife rentes mome ntos , d ife rentes i nstru mentos pode rão ser ouv idos , a l guns com ma io r ev idênc ia do q u e outros . Cons ide ra i nace i táve l que q ua lque r u m que atue na eq u i pe de cu idado de saúde não tenha voz , já que o ca lar-se a respe ito de q uestões mora is poderá não assegu ra r uma boa qua l idade de cu idado aos c l i entes .

Da í , q u e nas i n ú m e ras re lações soc ia is e de poder q u e part ic i pamos , o d i l ema pessoal e p rof iss iona l , o d i l ema éti co , de ca lar-se ou de usar a pa lavra , de om i t i r -se ou de man ifesta r-se , de, m u itas vezes , romper com o i n st i tu ído e recon hec ido como o norma l e o esperado, pode ser a opção pessoal e p rof iss iona l de se reconhecer como u m suje ito ét ico , podendo se com p reender , também , que a re lação de res istênc ia , de contra-poder , ou no m ín i m o , a sua poss i b i l i dade , i n d icam o exe rc íc io da l i be rdade dos s uje i tos , med iante a re lação do eu cons igo

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mesmo , perm i t i ndo-se , e ntão , que se fa le e m ét ica . ( Foucault, 1 996) . O u s o da pa lavra , a expressão das nossas percepções , dúv idas , quest ionamentos , pode s i g n if icar o e nfrentamento de um conf l i to e a ruptu ra de uma s i tuação de harmon ia . Nego e a n u l o m i n h a cond i ção de s uje i to , ca lando-me e m antendo-me n u m a s i tuação de pass iv idade? E ntretanto , q u e m pode ser benef ic iado ou p rej u d i cado com m i n h a dec isão? Q u a i s a s i m p l i cações p rof i ss iona is , para out ros : c l i en tes , equ ipe d e ass i stênc ia , i nst i tu i ção , da m i nha dec isão pessoal de ace i tar q u e m e anu le como pessoa , que rechace m i nha cond ição de s uj e i to? A i nda , ass i m como podemos negar nossa cond i ção h u mana , podemos , tam bém , as vezes , rechaçar a cond i ção h u mana dos c l i entes , ao l hes negar o saber , a poss i b i l i dade do e ntend i mento , da pa lavra e da a rg u m entação .

Conf l i tos ét icos , tam bé m , podem se r v ivenc iados pe las e nfe rm e i ras re lac i ­onados à s i tuações de t ransp lante rena l . Sabe-se que toda U n i dade de D iá l i se deve estar v i ncu lada a u m a U n idade deTransp lante Rena l com os seus c l i e ntes em tratame nto d ia l ít ico i nscr itos em l i sta de espera , mant idos c l ín i ca e laborato r ia l mente p reparados para o t ransp lante , excetuando-se aque les q u e se man i festare m contrá­r ios a este t ipo de t ratamento ou que apresentem contra- i nd i cações méd icas forma l i zadas .

U m p rob lema que poder ia se r apontado refe re-se às i nformações necessá­r ias para q u e o poss íve l receptor do r im não apenas tenha con hec i mento dos r iscos i n e rentes ao p roced imento , mas possa , a part i r destas i nformações , pensar e dec id i r se deseja ou não submete r-se ao transp lante e às poss íve i s i m p l i cações decorre ntes : os r iscos c i rú rg icos , as poss i b i l idades de s u cesso , o tempo do t ransp lante , os med icamentos i m u no-s u p ressores com seus efe itos co laterai s . Pode r ia se q u est ionar como t e m se rea l i zado este p rocesso de esc larec imento? Em que mom ento tem s ido rea l i zado? Com q uanto tempo de antecedênc ia do p roced i ­mento e m s i ? Qua l o tempo asseg u rado para os c l i entes pensare m ? Qua l o espaço , p refe rente mente pe rmeado de hor izonta l i dade , de com u n i cação e abertu ra p revisto e asse g u rado p a ra q u e os c l i e ntes possam s e r ouv idos , a p resenta r seus q uest ionamentos , suas d úv idas e temores? Qua is os cu idados q u e têm s i do tomados para q u e este p rocesso de esc la rec i mento se const i t ua , real mente , num i n stru mento de aj uda para u m a dec isão consc iente de consent i mento ou não para o receb imento de u m r i m ?

O s i m p l es p reench imento do Termo de Consent i m ento do Receptor de R i m , como u m a ex igênc ia lega l , pode ca racte r iza r-s e , ape nas , com o o cu m p ri m e nto de u m a fo rma l i dade q u e p reserve a eq u i pe e a i nst i tu i ção hosp i ta la r de poss íve is q u est ionamentos lega is e deve rep resentar , no e ntanto , um espaço para o fo rnec i me nto de esc la rec i mentos , i nfo rmações e q u e favo reça o p rocesso de uma tom ada de dec isão autônoma do doente rena l (pe rmeada pe lo sabe r , pe la l i be rdade , pe lo tem po para pensar e expressar a vontade raciona l ) .

Contrad i to ri amente , apesar dos poss íve i s r i scos re lac ionados ao t ransp lan ­te re na l e à necess idade da dec is?o e consent i mento l iv re e i nfo rmado do c l i en te para sua efet ivação, poder ia pontuar-se , tam bé m , a l guns e lementos referentes ao custo f i nance i ro cobe rto pe lo Estado - por todos nós - da manutenção de um c l i ente em t ratamento d ia l ít ico frente ao custo f i nance i ro da rea l i zação de u m t ransp lante rena l .

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L UNA RDI, Valéria Lerch.

Este p rob lema ét ico re lac iona-se à j ust iça como p ri nc íp io da b i oét ica .

Parece re levante , então , destacar os p r i nc íp ios da Teor ia da J ust iça de Ra w/s ( 1 990 , p . 33) , ou seja "toda pessoa tem igua l d i re i to a u m reg ime p lenamente suf ic iente de l i be rdades bás icas i gua is , q ue seja compatível com um reg i m e s i m i la r de l i be rdade para todos" e "as des igua ldades soc ia is e econôm icas p rec isam sat i sfaze r duas cond ições . P ri m e i ro , devem estar associadas a cargos e posições abertos a todos em cond i ções de uma eqü i tativa i gua ldade de oportu n idades e , segundo, devem p rocu rar o máxi mo benef íc io dos membros menos avantajados da soc iedade" . Não basta , po rtanto , q uando se trata da j ust iça na d i str i bu i ção de bens e benef íc ios soc ia is que e la se faça eqü itat ivamente , já que são m u i tas as nossas des i g ua ldades soc ia is e econôm icas , não sendo eqü i tativas , também , a igua ldade de oportun idades . Será justo t rata r i gua lmente os des igua is? Será j usto que o d i n h e i ro púb l ico seja ap l i cado eqü itat ivamente para pessoas em s i tuação tão des igua l social e econom icamente? Contrad i to riamente, quem são as pessoas - os c l ientes - , na nossa sociedade , que têm ma is fác i l acesso aos se rv iços de saúde , especia lmente , aque les se rv iços reconhe­c idos como ma is escassos e com ma io res d i f icu ldades de acesso e ofe rta? Será j usto benef ic ia r i gua lmente os membros da soc iedade que pode m se encont ra r tão d i ferentemente na esca la soc ia l e com poss ib i l i dades tão d ifere nc iadas de acesso aos se rv iços e cu idados de saúde?

A inda , as i n st i tu i ções de saúde e os p rof i ss iona is devem garant i r a p r ivac i ­dade e o s ig i l o do doador e do receptor . Em t ransp lantes fe i tos por doação cadavé r ica , por vezes , há a man i festação do desejo do receptor con hecer a fam í l i a do doador . Nesta s i tuação , que rep resenta u m d i l ema ét ico , novamente , estão p resentes no rmas , p roced imentos lega is e i n st i tuc iona is , há o e nvo lv i mento de pessoas , com d iferentes va lo res , h i stór ias de v ida , ass i m como a ident idade de um c l i ente m o rto , o que req uer , então, não uma s i mp les resposta ou dec isão , mas faz­se necessár ia a construção de uma dec isão ét ica .

E m relação à doação i n te rvivos , de modo seme l hante ao do receptor , cabe à e q u i pe de saúde buscar o consent imento do doador , de m odo a que autor ize à eq u i pe méd ica e à i n st i tu i ção a rea l izarem os p roced i mentos necessár ios para a doação g ratu ita e conf i rme sua i nfo rmação ace rca do desconfo rto e dos r iscos deco rrentes dos p roced i mentos de ava l iação e c i r ú rg i cos . Por out ro lado , faz-se necessár io q u e , como poss íve is advogados dos d i re i tos dos c l i entes , tanto dos poss íve i s recepto res como dos poss íve is doadores , estes sejam i nformados do poss íve l s i g n i f icado da doação de um r i m . Esta questão faz-se mais p re m ente no caso de fam i l i a res de doentes rena is cuja doença bás ica é desconhec ida e que , po rtanto , apesar de ora h íg i dos , podem correr u m r isco a i nda ma io r de vi rem a te r , no futuro , sua função rena l compromet ida .

N ovame nte , deve have r a p reocupação com a construção de u m espaço s i g i loso para que estes poss íve i s doadores sejam ouv idos , expressem suas dúvidas , desejo ou não de doar , temores , poss íve is p ressões e coações que ven ham sofrendo no seu espaço p r ivado , i nstru menta l i zando-se para a sua dec isão . Da í , a necess idade do s i g i l o e da conf idênc ia da recusa de u m doador , dos mot ivos por e le apontados , da detecção do seu desejo de não se r doador , já que o poss ível

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recepto r pode n ã o te r a capacidade e a magn i tude de compreender e acei tar u m a negat iva p o r parte d e quem l he poder ia cede r o ó rgão que necess i ta . Há q u e cons ide ra r q u e , a l é m da doação de u m r i m n ã o se poder faze r de m odo compu lsóri o , o doente rena l d i spõe do t ratamento d ia l ít i co , a lém de estar i nscr i to e m uma l i sta d e espera .

Para f i na l izar , tendo reconhec ido que a l gumas das ponderações fe i tas v i ncu lam-se , de modo exp l íc ito ou não , às d ife re ntes forças p rese ntes nas relações soc ia is em que estamos , permanentemente , i m e rsos , é i m portante refo rçar , como já refe r ido ante r io rmente , q u e a poss i b i l idade do exe rc íc io da res is tênc ia i nd i ca a p rát ica da l i be rdade dos s uje itos , med ian te a re lação q u e , po r p r i m e i ro , estabe lece cons igo mesmo , o q u e perm i te , e ntão , q u e se fa le em ét ica ( Foucault, 1 996) . A l iado a is to , parece re l evante destacar q u e , neste jogo de forças e de poder , as no rmas , as p rescr ições lega i s , as determ i n ações com força lega l podem , ou me l hor , devem ser ut i l i zadas por nós, enfe rme i ras , com o i nstru mento de fo rça a rg u mentat iva de modo a asse g u ra r a qua l i dade de ass istênc ia q u e , d i scu rs ivamente , temos af i rmado e reaf i rmado que p retendemos a lcançar .

Destaco , en tão , o que dete rm inam a Le i 7498/86 e o Decreto 94406/87 que d i spõem sobre o exerc íc io da enfe rmagem , e m re lação à ass i stênc ia aos pac ientes g raves somente poder ser rea l i zada por enferme i ros e técn i cos de e nfe rmagem . Sabe-se q u e e m m u itos dos se rv iços d e hemod iá l i se , a ass is tê n cia não vem sendo p restada por técn i cos de e nfe rmagem e , ta lvez , e m a l guns loca i s , nem por aux i l ia res de enfermagem . Qual tem s i do , então , a nossa pos ição frente às adm i n i strações das i nst i tu i ções de saúde como enfe rme i ras responsáve i s pe lo se rv iço? Se há d e n ú nc ia de q u e ex iste um efet ivo de técn i cos de e nfe rmagem d i spon íve is para se re m contratados , os qua i s não vêm recebendo o espaço necessár io na equ ipe de e nfe rmagem ( I nfo rmativo COR E N , 1 998) , até que ponto não podem os estar sendo dup lamente om i ssos frente a esta s i tuação, q u e , po rven tu ra , podemos estar enfrentando? Como temos nos a rt i cu lado , como s uje i tos ét i cos das nossas ações , para e nfrenta rmos as d i fe rentes s i tuações que v ivenc iamos de aparente descaso com a segu rança dos cl i entes? Como temos nos a l iado aos nossos ó rgãos de classe na tentat iva de m udança de u m a rea l i dade em b usca da me l hor ia da qua l i dade e da seg u rança da ass istênc ia p restada aos nossos c l i entes? Qua is os pe rcu rsos que temos tentado constru i r no sent ido de concret izar os n ossos desejos e assegu ra r uma ass istênc ia q u e , tam bé m , gostar íamos de receber , mas q u e , antes de tudo , p rec isamos , tem os o deve r de ofe rece r como p rof i ss iona is com p romet idos com os c l i en tes e com a ass istênc ia que nos responsab i l i zamos em ofe recer?

Por ú l t imo e na mesma l i n h a de raciocín i o , aponto a porta r ia 2042/96 do M i n i stér io da Saúde que se refe re ao regu lamento técn i co para o func ionamento dos se rv iços de te rap ia s u bst i tut iva . Quantos dos enfe rme i ros q u e atuam n estes se rv iços têm con hec i mento do seu teor? Quantos dos e nferme i ros a têm ut i l izado c o m o recu rs o p a ra a n e g o c i ação de m e l h o res c o n d i ções de t ra b a l h o e o rgan izac iona is dos seus loca is de t raba lho?

Conc l uo , afi rmando que como s uje i tos da h istór ia , a todo momento , somos i nst i gados a pensar , pondera r e dec id i r a me l ho r forma de ag i r . Acred i to q u e ,

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L UNA ROI, Valéria Lerch.

p refe re nte mente , ta is dec isões dever iam decorrer de p rocessos colet ivos em que , pe la força do d iá logo e da argumentação, se encontre o me lho r cam i n h o para pe rcorre r . Frente aos conf l i tos ét i cos , do mesmo modo , a construção de uma dec isão ét ica que emerja do traba lho em eq u ipe , certamente , é aque la que será a me lho r , po is , poss ive l mente , esteja envo lvendo não apenas a uma pessoa mas o g rupo como u m todo . A inda , gostar ia de reforçar q u e respe i tar o out ro e a sua l i be rdade de concordar ou de d iverg i r das pos ições do p rof iss iona l não deve ser entend ido como uma d i m i n u ição do comprom isso de quem exe rce a enfermagem com a soc iedade. Antes , reconhecer os l i m ites da atuação p rofi ss iona l f rente às poss i b i l i dades de cu idado de s i dos su je i tos , antes de s i gn i f icar uma man ifestação de conform ismo com o que aí está, rep resenta o reconhec imento dos c l i e nte como um suje i to da h i stór ia e da sua h i stó ri a pessoa l .

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