biometria no brasil e o registro de identidade civil: novos rumos
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
MARTA MOURO KANASHIRO
Biometria no Brasil e o Registro de Identidade Civil:
novos rumos para identificao
SO PAULO
2011
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MARTA MOURO KANASHIRO
Biometria no Brasil: novos rumos para identidade e identificao
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade de So Paulo
para obteno do ttulo de Doutor(a) em Sociologia Orientador: Prof. Dr. Marcos Csar Alvarez
So Paulo 2011
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
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Dados Internacionais de Catalogao
Sistema de Bibliotecas da Universidade de So Paulo
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Kanashiro, Marta Mouro. Biometria no Brasil e o Registro de Identidade Civil: novos rumos para identificao. Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor(a) em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Marcos Csar Alvarez.
Aprovado em
Banca examinadora
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Para minha av Alzira Ribeiro Cassal (In Memorian)
e meu pai Sois Kanashiro
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Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradeo a orientao do Prof. Marcos Csar Alvarez, seu estmulo ao desenvolvimento desta pesquisa, seu companheirismo e pacincia; e agradeo tambm as importantes recomendaes dos professores Luis Antnio Francisco de Souza e Maria Helena Oliva Augusto, e ao incentivo e o afetuoso suporte do Prof. David Lyon, que em momentos difceis lembrou-me de no desistir.
Aos colegas do Laboratrio de Estudos Avanados em Jornalismo da Unicamp, Carlos Alberto Vogt, Germana Fernandes Barata e Rodrigo de Bastos Cunha, agradeo pelo apoio incondicional para a realizao deste trabalho. Em especial, agradeo a Rafael de Almeida Evangelista, Simone Pallone de Figueiredo e Susana de Oliveira Dias pela parceria intelectual e poltica, e pelos inmeros momentos de apoio, por vezes to singelos, mas sempre muito importantes.
Pela colaborao e eficincia no levantamento de dados agradeo a Ana Paula Camelo e pelo incentivo, pelas sugestes e palavras de carinho a Fernanda Bruno e Rodrigo Firmino, parceiros de trabalho que espero poder compartilhar inquietaes e descobertas por muitos anos. Igualmente agradeo aos tambm colegas da Rede Latino Amrica de Estudos sobre Vigilncia: Danilo Doneda, David Murakami Wood, Nelson Arteaga Botello, Roberto Fuentes Rionda e Vanessa Lara Carmona que em nossas muitas trocas sempre trouxeram ideias, questes e comentrios que me auxiliaram. Mathew Smith e Gemma Galdon agradeo o apoio s iniciativas dessa Rede de Estudos, assim como ao IDRC (International Development Research Centre) que indiretamente auxiliou a conduo do trabalho que ora se apresenta.
Alguns amigos queridos, Alberto Hiroshi Kawakami, Josephine Sanchez Hernandez, Teresa Vignolli, Tatiana (e nossos amigos invisveis) tambm foram fundamentais para que este trabalho se realizasse, ensinaram-me novos rumos cuidando com carinho do que se passava comigo. Pela audio paciente, as palavras certas, o afeto, a leveza e o riso, agradeo a Ana Raquel Motta de Sousa, Bianca Fanelli Morganti, Caio Petrnio M. Barreira (e sua famlia que me acolheu), Cristina Soutelo A. Noceda, rica Casado Rodrigues (e sua esperta Lorena), Kleber Roberto, Laura Santonieri, Leni Piacezzi, Liliane Sanjuro, Maria Luisa Scaramella, Marisa Barbosa Arajo, Maristela Gebara, Ndia Vilela, Paula Palamartchuck, Paulo Sakae Tahira, Roberto e Rosa Kanashiro. Deixo ainda meu muito obrigada a Gisele Ribeiro, Janana Campos e Samira El Saif que com uma velinha de nmero zero e um bolo de aniversrio mostraram-me que perdas e fins sinalizam novos incios e, tantas vezes, melhores ciclos. Eliane Alves da Silva agradeo pelas vrias mensagens que me fizeram acreditar de novo nas pessoas. Agradeo ainda a Vicente e Maria ngela Ferraro de Souza da Secretaria de Ps-Graduao em Sociologia (USP) pelas ajudas todas nos ltimos quatro anos. Catarina Sena Barbosa por todo o seu suporte, sem o qual no seria possvel este trabalho.
minha me Sueli Braga Mouro, meu irmo Gustavo M. Kanashiro e minha filha Lusa Kanashiro Gebara reservo meu agradecimento mais caloroso, por partilharem com pacincia e coragem todos os momentos deste trabalho, toda a minha ausncia e todas as reviravoltas em nossas vidas. Ao meu pai Sois Kanashiro agradeo cada sorriso que ele me deu nos ltimos dois anos e meio, talvez ele no tenha conscincia do quanto isso deu foras para que eu continuasse. Persistncia, determinao e amor a melhor legenda para todos esses sorrisos sem palavras com os quais ele me presenteou.
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RESUMO
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O tema geral desta pesquisa so as tecnologias que permitem o controle de acesso,
vigilncia, monitoramento e identificao de pessoas, e que se aliam a construo de bancos
de dados e perfis sobre a populao. Neste amplo universo, a tecnologia biomtrica para
identificao foi focalizada a partir de um estudo de caso sobre o novo documento biomtrico
de identidade brasileiro: o Registro de Identidade Civil.
Retomando o conceito de dispositivo em Michel Foucault, buscou-se trazer a tona os
discursos, as instituies, as leis, o debate legal, as medidas, decises, e enunciados
cientficos que configuram o funcionamento do poder na atualidade. No mbito das cincias, a
biometria hoje distancia-se da antropometria e das formas de identificao do sculo XIX,
vinculando-se a um exerccio do poder que no mais aquele para disciplinar os corpos
(Michel Foucault), mas para gerir os fluxos de dados, um corpo de dados. As novas
tecnologias focalizadas apontam para um exerccio do poder mais prximo do que Gilles
Deleuze chamou de sociedades de controle.
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ABSTRACT
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This research focus on technologies that are enabled to access control, surveillance,
monitoring and identification of persons, connected with databases and profiles construction on
the population. In this vast universe, the biometric technology for identification has been
focused from a case study on the new biometric identity document Brazil: the Civil Identity
Register.
Based on the Foucaults concept of apparatus, this reasearch aimed to bring out the
discourses, institutions, laws, the legal debate, measures, decisions, and scientific statements
that configure the operation of power today. Within the sciences, biometrics today area
distanced itself from anthropometry and forms of identification of the nineteenth century. This is
related with an exercise of power that is no longer that to discipline their bodies (Michel
Foucault), but to manage the data flows, or a "body of data. New technologies are related with
an exercise of power closer to what Gilles Deleuze called societies of control.
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SUMRIO
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Parte I
Introduo 1
Reflexes sobre a hiptese inicial 7
Tecnologia biomtrica no cotidiano 10
O Registro de Identidade Civil 24
A situao da identificao no Brasil 31
Nos bastidores do RIC ou terra sem lei 39
Parte II
Biometria e identificao 52
Dispositivo atual 63
Sociedade de vigilncia 70
Transformao a brasileira 78
Consideraes finais 87
Bibliografia 91
Documentos consultados 94
Anexo I 100
Anexo II 103
Anexo III 105
Anexo IV 107
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Agora o brao no mais o brao erguido num grito de gol. Agora o brao uma linha, um trao, um rastro espelhado e brilhante. E todas as figuras so assim: desenhos de luz, agrupamentos de pontos, de partculas, um quadro de impulsos, um processamento de sinais. E assim - dizem - recontam a vida. Agora retiram de mim a cobertura de carne, escorrem todo o sangue, afinam os ossos em fios luminosos e a estou pelo salo, pelas casas, pelas cidades, parecida comigo. (Elis Regina, disco Trem Azul, 1982, Som Livre).
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PARTE I
INTRODUO Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua poltica geral de verdade: isto , os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as tcnicas e os procedimentos que so valorizados para a obteno da verdade; o estatuto daqueles que tm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Machado, 1979).
Sempre me pareceu que pesquisas iniciam-se com uma espcie de choque, um espanto,
um abalo mesclado com uma enorme curiosidade. De repente, algo, uma informao se
destaca, precipita-se ou salta em meio a tantas outras e transforma-se em uma busca. Havia
uma professora na minha graduao em Cincias Sociais, que aps uma longa explicao
dizia-nos sempre: Por favor, agora fiquem perplexos!. Em suma, era uma forma de retirar-nos
de certa inrcia ou apatia em relao ao conhecimento, uma postura to repetida nos bancos
escolares, que ali deveria ser desconstruda. Deveria ser uma espcie de tremor que abalasse
verdades previamente constitudas. Apontava-nos que necessrio um abalo, um movimento
ativo, curiosidade e dvida, para produzir e obter conhecimento e que aquilo que nos surge
como inquietao serve como um estopim para esse processo.
E foi com espanto e perplexidade que entrei em contato com a ideia de que existem
senhas inscritas no corpo as quais permitem identific-lo, identificar-nos. Alguns poderiam
surpreender-se com esta inquietao, afinal a dactiloscopia, a papiloscopia ou a antropometria
no so nada recentes e j nos remetiam relao entre corpo e identificao. Mas ser que a
ideia que se apresenta hoje pode ser compreendida dentro dos mesmos moldes que os
sistemas de identificao surgidos no sculo XIX?
Na atualidade, essa noo de que os corpos possuem uma senha natural e as novas
conexes que estabelece parece mobilizar uma enormidade de transformaes, sentidos e
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significados caractersticos do contemporneo. A ideia que serviu de estopim para os
questionamentos aqui presentes foi anunciada na imprensa, e em outros espaos, como um
desenvolvimento tecnolgico que traria facilidade e segurana para o cotidiano: os
equipamentos biomtricos de identificao.
Um empresrio do setor de segurana eletrnica disse em uma entrevista Para qu voc
precisa provar quem voc , se voc j tem um dedo que pode fazer isso? Basta um sistema
que reconhea seu dedo. (Entrevista 1, 2005). E uma matria de jornal, no mesmo perodo,
afirmava:
Uma nova tecnologia baseada na biometria deve, em breve, comear a
dispensar a necessidade de memorizao de tantas senhas para cartes
de crdito, banco e computador (...) Uma rpida verificao da ris ou
impresso digital poder, por exemplo, autorizar uma transao bancria.
(Biometria facilita, 2004).
A pesquisa que j havia realizado sobre a insero das cmeras de vigilncia (Kanashiro,
2006) fornecia certa familiaridade com os equipamentos biomtricos, tornados to presentes na
rea de segurana eletrnica. Mas em geral, as pessoas achavam muito estranho pesquisar
aquilo, que sempre lhes parecia to ficcional. H uma associao recorrente entre os
equipamentos biomtricos com filmes e livros de fico cientfica, em especial na mdia. De
certa forma, como se a utilizao da biometria povoasse e estivesse restrita apenas a um
imaginrio fantstico ou ficcional, quando de fato, encontrada na prtica e em rpida
expanso em vrios pases, configurando um fenmeno complexo das sociedades
contemporneas. De outra parte, quando a ideia de pesquisa era apresentada em eventos da
rea de Cincias Sociais, era rapidamente relacionada com a antropometria e a papiloscopia,
como se estivssemos apenas diante de uma tecnologizao dos mesmos processos dos
sculos XIX e XX.
Seria importante, ou ao menos bastante objetivo, situar o leitor a esta altura do texto com
uma definio de biometria ou de equipamentos biomtricos que afastasse a possibilidade
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ficcional ou apenas um melhoramento tecnolgico de processos j existentes. No entanto,
definir biometria ou dispositivo biomtrico j parte do prprio problema sobre o qual este
trabalho de pesquisa se debruou.
Os termos biometria ou equipamento biomtrico carregam consigo uma forma de tenso,
no no sentido de enrijecimento, sobrecarga ou disputa de foras de algo que pode romper-se.
A tenso inclui sim a disputa, mas sem uma necessria ruptura, e pode ser melhor entendida
por sentidos que colocados em relao criam um movimento, uma mudana. Assim, por um
lado, aos termos biometria e biomtrico d-lhe significado a Biologia, e a relao com
processos de identificao anteriores ao sculo XXI. Por outro, atribui-lhe significado, na
atualidade, o setor de segurana eletrnica e as novas conexes que esta tecnologia
estabelece. Num dado momento ou em determinadas condies de possibilidade, esses
sentidos passam a ter maior ou menor dominncia no cenrio e, quando colocados em contato
ou em relao, ocorre uma movimentao, uma mudana, uma produo. Claramente, no se
quer afirmar aqui uma relao de causa e efeito, mas fazer sobressair as ideias de relao,
diferena, contato, movimento, mudana, e produo, sublinhando ainda a palavra dispositivo
em sua definio foucaultiana, a qual retornaremos mais adiante.
Por ora, vale sublinhar que para Michel Foucault (cf. Machado, 1979), um dispositivo
(apparatus) rene discursos, instituies, leis, medidas administrativas, decises, formas
arquitetnicas, enunciados cientficos, filosficos e morais. , portanto, um sistema de relaes
no qual o filsofo busca compreender a ligao desses elementos, sua interao, suas
mudanas de posio ou da funo que exercia at determinado momento.
Assim, situo o leitor num terreno informado por essa noo de dispositivo, por um lado
dizendo que este trabalho voltar definio de biometria e, por outro, ressaltando como foco
desta pesquisa a tecnologia de identificao, monitoramento e controle de acesso que utiliza o
que o setor de segurana eletrnica passou a denominar biometria para reconhecer
caractersticas biolgicas, tais como, as digitais dos dedos das mos.
Para pontuar melhor o foco deste trabalho, faz-se necessrio desvelar a biometria e seus
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equipamentos por meio de alguns de seus usos na atualidade. Tal tecnologia j est presente
no Brasil para uma forma de controle de acesso que pode ser chamada de mais corriqueira, e
est instalada em lugares como academias de ginstica ou universidades e escolas privadas;
para o controle da utilizao de servios, como locao de vdeos e DVDs, em videolocadoras;
para o acesso a computadores pessoais ou a edifcios, residncias e empresas; para consultas
e exames em sistemas privados de sade, como o caso da Unimed Paulistana.
A utilizao da tecnologia biomtrica tambm pode servir para um uso que pode ser
entendido como mais complexo, na identificao de pessoas na multido, no auxlio de buscas
em fichas criminais, na elaborao de retratos falados ou realizao de envelhecimento
computadorizado. O desenvolvimento recente de tecnologia nacional (Lima, 2006; Entrevista
2), tambm exalta a possibilidade de utilizao da biometria no acesso aos servios
financeiros, ou para controle de ponto de funcionrios1. H ainda casos de utilizao ou
tentativas de implantar seu uso em servios pblicos, sistema de votao, ou trnsito, os quais
sero explorados mais adiante.
Em qualquer um desses usos, essa tecnologia pode ser observada como parte de uma
srie de outras que permite o controle de acesso, vigilncia, monitoramento e identificao de
pessoas, e que se aliam construo de bancos de dados e perfis sobre a populao. Smart
cards2, cartes inteligentes ou cartes com chips, etiquetas RFID3; equipamentos de GPS (sigla
1 A portaria 707 de 2006, do Ministrio Pblico da Unio (MPU) que regulamenta, dentre outros, controle de frequncia de seus funcionrios, sugere em seu 3 artigo que O cumprimento da jornada de trabalho ser apurado por meio de ponto eletrnico, preferencialmente por sistema biomtrico, conjugado, sempre que possvel, com controle de acesso fsico. Em 2008, o MPU realizou audincia pblica para colocar em prtica essa portaria. No anexo I, do edital dessa audincia, consta sob o ttulo Programa de Necessidades a especificao tcnica de uma catraca de tipo balco com leitor biomtrico.
2 Smart cards, cartes inteligentes ou cartes com chip podem armazenar informaes (em maior quantidade que cartes com tarjetas magnticas) e tambm podem process-las. Tm capacidade, portanto, para identificar usurios, permitir ou negar acesso, e armazenarem dados. Possuem mltiplos usos, sendo hoje um instrumento muito comum na rede bancria e de crdito ou comercial (lojas, supermercados, programas de fidelidade do consumidor, etc).
3 RFID a sigla em ingls para Identificao por Rdio Frequncia. As etiquetas ou tags RFID respondem a sinais de rdio enviados por uma base transmissora e podem ter diferentes usos, como localizao de animais, implantes humanos (para uso mdico ou hospitalar, existem implantes que contm toda a informao de um paciente que pode ser lida por um mdico), em automveis (para serem localizados), em etiquetas de produtos, medicamentos e livros de bibliotecas para serem administrados, ou em celulares, para check in em avies e hotis, ou para a compra de produtos pelo celular. Existem smart cards que possuem RFID. Neste caso, a leitura de informaes do carto pode
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em ingls para Sistema de Posicionamento Global), redes de sociabilidade na Internet (Orkut e
Facebook), navegao na Internet ou uso de emails (como Gmail), telefones celulares, e
circuitos fechados de televiso (CFTV, CCTV ou cmeras de vigilncia) so alguns exemplos
dessas tecnologias que interrelacionadas trazem tais possibilidades. Independente de cada
uma possuir singularidades, todas elas podem ser analisadas em conjunto.
Apesar de recentes, tais tecnologias tm se tornado foco de pesquisas e debates, em
especial na Europa e na Amrica do Norte. Desde meados da dcada de 1990, trabalhos
tericos e empricos tm sido produzidos nessas regies, que ainda contam com debates sobre
tais tecnologias na imprensa, e alguns grupos e movimentos sociais que questionam sua
presena. Diferente do que vem ocorrendo no ambiente acadmico internacional, pesquisas
brasileiras que versem sobre essas tecnologias ainda so bastante recentes, em especial, nas
Cincias Sociais. Da mesma forma, praticamente inexistente o debate poltico ou atuao de
movimentos sociais no pas em torno deste tema, ou de assuntos como vigilncia eletrnica.
Em suma, possvel notar que no Brasil a intensidade e velocidade de implementao dessas
tecnologias no acompanhada seja por debates, movimentos sociais ou pesquisas que
problematizem e reflitam sobre esse cenrio.
Tendo em vista esse panorama, a pesquisa que aqui se apresenta buscou trazer tona a
necessidade de realizao de estudos e discusses sobre essas tecnologias no Brasil. Para
isso, focalizou a utilizao da tecnologia biomtrica de identificao e o seu uso na
implementao do Registro de Identidade Civil (RIC), documento que substituir a carteira de
identidade (RG ou Registro Geral) que serve a identificao dos brasileiros.
A proposta do trabalho foi mapear e refletir sobre esse universo. Trazer tona os
discursos4, saberes e prticas que envolvem e que so envolvidos por essa tecnologia,
buscando captar parte dos elementos que circulam sobre o tema, e de fazer emergir um campo
ser feita sem contato fsico do carto com a mquina leitora, bastando a aproximao do carto do equipamento.
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importante sublinhar aqui que se entende por discurso uma rede, uma trama de palavras que envolve e
envolvida por pessoas e instituies, reforada e reconduzida por conjuntos de prticas e saberes, que
definem verdadeiro e falso, dentre outras produes. (Foucault, 1999a).
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de transformaes, deslocamentos, e arranjos que produzem a possibilidade do uso da
tecnologia biomtrica e que so produzidos por ela.
Seguindo esse direcionamento, importante esclarecer que esta pesquisa no se props
a investigao da eficcia ou eficincia dos objetivos ou expectativas que sistemas biomtricos
de controle se colocam ou visam realizar, por exemplo, para a rea de segurana. Em outras
palavras, no houve a inteno de verificar ou medir se ocorre um aumento da segurana com
o uso desta tecnologia de monitoramento e controle de acesso, assim como tambm no se
almejou encontrar solues ou propostas prticas para o cenrio da segurana. Neste sentido,
o trabalho no propositivo com relao ao tema geral (tecnologias de monitoramento e
controle de acesso) ou ao objeto da pesquisa (tecnologia biomtrica).
Com o intuito de capturar essa rede de discursos e prticas vinculadas biometria foi
realizado um levantamento do debate legal sobre o tema biometria e equipamentos biomtricos
junto Cmara dos Deputados e Senado. Por debate legal entende-se aqui no apenas leis e
normas, mas projetos de lei e suas justificativas, alm de discursos em sesses plenrias
dessas casas. Vale destacar aqui que o estudo realizado no teve como inteno apreender
exaustivamente tal debate, e esteve limitado pela caracterstica dos prprios bancos de dados,
que no contm tais documentos em sua totalidade. necessrio salientar que os sistemas de
informao online da Cmara dos Deputados e Senado Federal ainda esto sendo
desenvolvidos no Brasil e, portanto, no disponibilizam todo o debate legal existente. Apesar
dessa aparente limitao, o levantamento dos dados mostrou-se adequado na medida em que
no se pretendeu buscar com exatido, nem a totalidade numrica das proposies, nem uma
origem legal (ou imposio do Estado) para a utilizao da biometria no Brasil.
As agncias oficiais de notcias dessa esfera do legislativo brasileiro tambm foram
acompanhadas com o mesmo intuito. Para alguns casos especficos de utilizao da biometria,
tambm foram consultados as agncias de notcias e os websites do Conselho Nacional de
Trnsito, Tribunal Superior Eleitoral, Departamento da Polcia Federal, Ministrio da Justia,
Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, Ministrio da Educao e Instituto
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Nacional de Identificao, dentre outros que sero citados no decorrer do texto.
Outra fonte de dados para esta pesquisa foram artigos acadmicos e estudos que
tematizavam o desenvolvimento de equipamentos biomtricos em reas como engenharia ou
cincia da Computao, assim como textos produzidos por revistas e websites da rea de
segurana eletrnica. A mdia de massa tambm permitiu a coleta de informaes, assim como
a mdia eletrnica (blogs e websites no institucionais). O conjunto de fontes para a pesquisa
tambm incluiu duas verses do projeto de criao e implementao do Registro de Identidade
Civil (RIC) e cinco entrevistas abertas com atores envolvidos com os debates sobre o
documento no governo.
A pesquisa baseada nessas fontes de dados foi influenciada teoricamente pelos trabalhos
de Michel Foucault (1999a, 1999b, 2000, 2001 e 2006) e David Lyon (1995, 2001 e 2009). A
ideia central para utilizao dessas fontes de dados foi analisar a multiplicidade de elementos
discursivos que circulam no Brasil sobre esse tema com intuito de compreender seu fluxo e
capturar a produo de conhecimentos, significados, tenses e prticas relacionadas
tecnologia biomtrica e ao RIC.5
REFLEXES SOBRE A HIPTESE INICIAL
O projeto inicial desta pesquisa tinha como hiptese a ser verificada a suposio de que a
tecnologia biomtrica no Brasil firmava-se na rea de segurana (a partir de seu uso no novo
5 O levantamento de dados para a presente pesquisa foi realizado simultaneamente a um mapeamento sobre o Registro de Identidade Civil visando o projeto de pesquisa Efectos sociales del tratamiento y regulacin de datos personales en Amrica Latina, e contou com o auxlio da assistente de pesquisa Ana Paula Camelo. Com financiamento do IDRC (Internacional Development Research Centre), sediado no Canad, este mapeamento consistiu apenas em identificar os atores envolvidos nesse processo e o discurso legal e miditico que circula no pas. Sem empreender uma reflexo ou anlise, o mapeamento realizado teve como objetivo algo mais descritivo que listasse referncias indicativas do estado do tema no Brasil e que pudesse ser comparado com o que ocorre atualmente no Mxico. O projeto constitudo de trs eixos a serem comparados entre os dois pases: 1) cmeras de vigilncia, 2) Internet e 3) carteiras nacionais de identificao. Tendo em vista a escassez de dados reunidos sobre o tema no Brasil, e a no publicao (at o presente momento) desses dados, disponibilizo em anexo os resultados do mapeamento do eixo 3, que coordenei no Brasil e que pode auxiliar pesquisas futuras. O mapeamento em questo uma primeira etapa de um projeto mais amplo de comparao de dados sobre esses temas que dever envolver em futuro prximo outros pases da Amrica Latina e uma proposta mais analtica e reflexiva.
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passaporte brasileiro e de usos corriqueiros para controle de acesso) para, apenas em seguida,
ampliar-se para outros campos ou esferas, vinculando-se a discursos acerca da cidadania e
democracia (a partir do caso das urnas biomtricas). Tal ideia de expanso est presente em
vrias passagens de textos jornalsticos e de entrevistas com pessoas da rea de segurana
eletrnica. Com esse ponto de partida, props-se um estudo de caso comparativo entre o uso
da biometria no passaporte e nas urnas eleitorais, que estava ancorado na hiptese de
legitimao no campo da segurana.
No entanto, a pesquisa realizada sinalizou que no possvel detectar tal expanso na
medida em que a implementao da tecnologia biomtrica deu-se de forma irregular, no linear,
simultnea em diferentes reas, como o uso mais complexo para o controle da circulao
internacional (via incorporao da biometria ao passaporte), utilizao em Departamentos
Estaduais de Trnsito (Detrans), ou ainda, o uso mais corriqueiro em sistemas de sade
privado, academias de ginstica ou videolocadoras. Essa multiplicidade de usos afasta a
possibilidade de que a biometria no Brasil tenha se firmado, afirmado ou legitimado
primeiramente em seu uso para segurana. O estudo de caso comparativo tornou-se, portanto,
pouco adequado diante dessa constatao.
Alm dessa questo de carter mais emprico, a hiptese inicial da pesquisa acerca de
um ponto central (campo da segurana) de onde se expandia o uso da biometria apresentou-se
como um problema terico na medida em que a ideia resvalava certa busca da origem e uma
concepo de poder diferente daquela que o compreende como relao (Foucault, 2000,
2002). No que de fato a biometria tivesse a surgido, mas havia a ideia de uma espcie de
ponto de concentrao aonde a biometria firmava-se ou legitimava-se perante a sociedade,
para em seguida, aps sua aceitao, expandir-se para outros terrenos. como se, de certa
forma, fosse possvel vislumbrar a origem de sua legitimidade, de sua aceitao.
Nesse aspecto, o problema que se colocava era de aproximar-se de um modo de
pensamento calcado em relaes de causalidade ou na busca de certa essncia, algo que
destoa profundamente da principal ancoragem terica do presente trabalho. Em segundo lugar,
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a hiptese inicial encaixava a biometria numa via linear e estreita, quase num fluxo de mo
nica, que impossibilitava abrir o foco para vislumbrar as multiplicidades envolvidas nesse e por
esse objeto que a biometria. Assim, com Michel Foucault (2000, 2002), em lugar da busca da
essncia, do porqu, do linear e de um foco, persegue-se aqui o operatrio, o como, a
multiplicidade, as capilaridades. As atuais reflexes dessa pesquisa, portanto, procuram dar
conta de uma aproximao da genealogia como mtodo, realizando um mapeamento ou uma
cartografia da questo, assim como de fazer emergir um modo de pensamento vinculado a um
modo funcionamento do poder na atualidade.
A opo por um dos casos anteriormente descritos tambm no se mostrou adequada.
Por um lado, isolado da comparao, o estudo da biometria no passaporte levava a um debate
profundamente ligado a questes relativas migrao, globalizao e soberania, elementos
esses bastante recorrentes na bibliografia internacional, mas que diziam menos respeito s
especificidades brasileiras. Certamente, a adoo do passaporte biomtrico continua sendo um
caso importante da utilizao da tecnologia biomtrica no pas, mas sua vinculao a um
contexto internacional e a exigncias de agncias internacionais de regulao de circulao de
objetos e pessoas afastava o foco da pesquisa para outras questes.
No relacionados ideia de legitimao, esferas ou campos, os casos dos Detrans, das
urnas biomtricas e do passaporte tinham em comum, como veremos, a vinculao da
identificao de pessoas tecnologia biomtrica. A observao e acompanhamento desses
casos sinalizavam ento um projeto muito mais amplo de reestruturao de documentos no
pas, processos de identificao de pessoas e gesto da populao. Nesse sentido, o atual
projeto do governo de alterao das carteiras de identidade para unificao de vrios
documentos (incluindo Ttulo de Eleitor e Carteira Nacional de Habilitao) mostrou-se mais
amplo e pertinente para observao desse processo. Assim, optou-se pelo estudo de caso do
Registro de Identidade Civil (RIC).
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TECNOLOGIA BIOMTRICA NO COTIDIANO
Atualmente, no Brasil, no so incomuns os usos e as propostas de utilizao de
equipamentos biomtricos no cotidiano. Para esta introduo foram eleitos alguns casos, tanto
de implementao propriamente, como de iniciativas no realizadas. Assim, o critrio para a
seleo desses exemplos no foi sua utilizao prtica, mas os espaos aonde encontraram
ressonncia e os elementos com os quais a tecnologia proposta buscava conectar-se e
justificar-se. Os casos a seguir tm como intuito, portanto, no apenas situar o leitor e apontar
um panorama e o contexto da tecnologia biomtrica, mas tambm introduzir tais espaos,
conexes e relaes que os caracterizam e constroem.
O primeiro caso o do Projeto de Lei (PL) 7.307, do Deputado Federal e militar reformado
Jlio Csar Gomes dos Santos, conhecido como Cabo Jlio, que props Cmara dos
Deputados, em 2002, a criao de mecanismos para aumentar a vigilncia sobre os visitantes
de presdios. De acordo com o texto do PL, os estabelecimentos prisionais e cadeias pblicas
que abrigam sentenciados ou presos provisrios devem ser dotados de cmera digital e
dispositivo para armazenamento de imagem ou equipamentos de reconhecimento biomtrico.
A justificativa da proposta responsabilizava a ausncia de mtodos mais modernos e
eficientes de identificao de pessoas por transtornos s autoridades e fuga de presos. O
objetivo era identificar os visitantes em sua entrada e sada da priso, sem que agentes de
segurana e policiais fossem obrigados a memorizar suas fisionomias.
No ano de 2004, a Comisso de Segurana Pblica e Combate ao Crime Organizado
aprovou um substitutivo a esse projeto, o qual acrescentou a identificao de juzes,
promotores, advogados e funcionrios da instituio. Em junho de 2005, o projeto tambm foi
aprovado pela Comisso de Finanas e Tributao e continuou em tramitao at o ano de
2007, sendo arquivado em maro de 2008. Mesmo no tendo sido transformado em lei, o
projeto na Cmara dos Deputados trouxe elementos interessantes: a vinculao com o setor de
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segurana, a associao entre a tecnologia de identificao biomtrica, a modernizao de
seus sistemas, e o aumento da vigilncia e da segurana no momento da mobilidade e do
acesso. Soma-se a isso a automao de parte do servio executado pelos agentes de
segurana ou policiais, a saber, a memorizao da fisionomia dos visitantes do presdio e a
permisso ou negao de entrada ou sada com base nos traos faciais.
Outro caso foi o anunciado pelo Ministrio da Educao (MEC), no incio de agosto de
2004, sobre um projeto em parceria com o Servio Federal de Processamento de Dados
(Serpro) que propunha o controle biomtrico da frequncia de alunos de escolas pblicas por
meio de suas impresses digitais (Jacinto, 2004). Na ocasio, o servio de comunicao do
Serpro disponibilizou notcias sobre o assunto, nas quais o Ministro da Educao afirmava que
o sistema biomtrico visava tambm uma identidade cidad, que dever percorrer o ensino
fundamental e mdio, alm de permitir um planejamento das polticas educacionais com dados
seguros e corretamente distribudos na geografia do pas. (Jacinto, 2004)
A expresso identidade cidad fica mais clara na medida em que se nota que a proposta
era ir alm do simples controle de frequncia e do planejamento na merenda escolar, pois
aliava tal controle a utilizao de um carto a funes para outros programas do governo. Mais
adiante, em 2005, o Ministrio da Educao (MEC) anunciou um projeto-piloto para testar o
controle de frequncia biomtrico em 230 mil alunos de 350 escolas pblicas de ensino
fundamental e mdio, em seis municpios de cinco regies do pas: Rio Verde (GO), So Carlos
(SP), Parnamirim (RN), Boa Vista (RR), Gravata e Capo da Canoa (RS). Integrado ao Projeto
Presena, que visa aperfeioar a coleta de informaes do censo escolar, o projeto que inclua
o controle biomtrico da frequncia dos alunos foi nomeado como Sistema de
Acompanhamento da Frequncia Escolar (Safe). Mais recentemente, em 2011, sistemas de
controle biomtrico foram implementados para controlar a frequncia a partir de outro projeto: o
Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) que assiste financeiramente escolas pblicas das
redes municipais e estaduais ou escolas privadas de educao especial e sem fins lucrativos.
Este caso traz tona alguns dos discursos envolvidos na aproximao e disseminao do
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uso dessa tecnologia em espaos ou servios pblicos. Aqui vale ressaltar a vinculao da
ideia de criao de uma identidade cidad (ou de cidadania) com o uso de uma tecnologia de
identificao e controle como a biometria. Ademais, o projeto coloca em cena a conexo entre
identificao e uma espcie de suporte para programas sociais do governo no qual se justifica
que aquilo sobre o qual se quer obter visibilidade e controle requisito para benefcios sociais.
interessante salientar que, em geral, programas sociais do governo promovem formas
de identificao da populao, tal como Wood e Firmino (2010) descrevem:
Em outras palavras, inegvel que, mesmo sendo um programa social, o PBF
(Programa Bolsa Famlia) no deixa de se caracterizar tambm como uma maneira do Estado
brasileiro adquirir dados pessoais e identificar pessoas normalmente excludas de formas
tradicionais (como Cadastro de Pessoa Fsica) de identificao e classificao social. (Wood e
Firmino, 2010: 260)
Nesse formato, a incluso passa necessariamente pela identificao e pelo controle.
O Programa Bolsa Famlia foi criado em 2003 para unificar programas sociais do Governo
Federal. De forma geral, consiste na transferncia de renda para famlias em situao de
pobreza ou extrema pobreza, que se comprometam a cumprir determinadas condies como a
vacinao de crianas menores de sete anos, realizao de acompanhamento pr-natal
durante as gestaes, matrcula escolar e frequncia mnima de crianas e adolescentes entre
seis e dezessete anos. Para se tornarem beneficirios dos programas sociais, as famlias e
seus membros so cadastrados no Cadastro nico (Cadnico), o principal banco de dados
utilizado pelas trs esferas de governo Unio, estados e municpios para identificar a
populao apta a receber o benefcio. O controle biomtrico da frequncia escolar vincula-se
assim a um banco de dados mais amplo e associado ao cumprimento de exigncias do
governo para poder ser beneficirio de programas sociais. O conjunto das iniciativas sinaliza
assim as tentativas do governo federal de insero da biometria para a identificao de
pessoas vinculada a ideia de incluso social.
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Outros trs projetos mais amplos tambm indicam um esforo brasileiro para identificar
pessoas por meio da tecnologia biomtrica inserida em documentos e a constituio de bancos
de dados sobre a populao, so eles: a Carteira Nacional de Habilitao (CNH), o Ttulo de
Eleitor e o Passaporte.
Com relao CNH, a iniciativa de utilizar a biometria est presente na implantao do
Sistema de Gerenciamento de Formao de Condutores (Gefor), do Departamento Estadual de
Trnsito (Detran) de So Paulo. O sistema do Gefor est destinado ao gerenciamento, controle
e fiscalizao de todo o processo de habilitao, formao e reciclagem de condutores,
mudana de categoria e de renovao ou expedio da Carteira Nacional de Habilitao. Esse
sistema implantou a biometria, via leitura da impresso digital, para todos esses procedimentos
em vrias cidades do estado. Trs comunicados divulgados em agosto de 2005 (Comunicados
Gefor), anunciaram uma nova sistemtica para todos os exames mdicos realizados nas
unidades do Poupatempo6, os quais passaram a conter, a partir do referido ano, a coleta da
impresso digital e respectivo armazenamento junto ao banco de dados do Detran-SP, Gefor e
Companhia de Processamento de Dados do Estado de So Paulo (Prodesp).
Em junho de 2008, uma deliberao (nmero 68) do Conselho Nacional de Trnsito
(Contran) regulamentou a obrigatoriedade da utilizao de tecnologia biomtrica para coleta de
impresses digitais, para todos os estados brasileiros e o Distrito Federal.
J presente em departamentos de trnsito de vrios estados brasileiros, o sistema
biomtrico teve como justificativa inicial a necessidade de combate fraude nos procedimentos
dos Detrans. Apesar de no ser objetivo desse trabalho a avaliao da eficincia desses
sistemas, importante apontar que a persistncia das fraudes parte do debate brasileiro atual
voltado para biometria, mas encontra-se disperso em blogs e fruns na Internet e na mdia7 que
tratam mais diretamente de temas como urna eletrnica e CNH. Independente desse debate, o
6 Os postos de atendimento do Poupatempo, do governo do estado de So Paulo, disponibilizam servios de vrios rgos pblicos, dentre eles, os que provm documentao para os cidados.
7 Cf. Diniz, 2008; Veleda, 2008 e Voto-e
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caso da CNH refora a ideia j presente nas propostas do PL 7.307/2002 e do controle de
frequncia escolar do MEC de aumento da vigilncia pela identificao e pelo reconhecimento
de pessoas em momentos de acesso ou mobilidade e agrega de forma mais explcita a
justificativa para o uso da tecnologia biomtrica de combate fraude.
Outro projeto de adoo da tecnologia biomtrica no Brasil do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE). No dia 09 de junho de 2005, foi aprovado o Plano diretor de atualizao
cadastral e aperfeioamento dos sistemas de votao e identificao do eleitor que prev o
recadastramento de 135 milhes de eleitores no pas. De acordo com o planejamento
elaborado pelo Grupo de Trabalho da Justia Eleitoral, a atualizao dos cadastros iniciou-se
em outubro de 2005. Esse recadastramento para identificao biomtrica continua em
andamento, sendo que no ano de 2011 iniciou-se a segunda fase dos procedimentos,
oficialmente lanados em cidades de estados como Gois, Alagoas, Sergipe e Paran, dentre
outros, visando s eleies municipais de 2012.
Na ocasio do lanamento do recadastramento eleitoral, em Goinia, o presidente do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Ricardo Lewandowski argumentou que dentre as vantagens
do recadastramento estava a prioridade no recebimento da nova carteira de identidade
nacional, o Registro de Identificao Civil (RIC) (Justia Eleitoral, 2001). Lewandowski referia-
se ao convnio firmado entre o TSE e o Ministrio da Justia (MJ) para o fornecimento ao MJ
dos dados biomtricos dos eleitores submetidos reviso eleitoral.
No apenas o recadastramento ajuda a Justia porque agiliza o processo
eleitoral, impede fraudes e enganos, mas tambm do ponto de vista da
segurana pblica muito importante. Porque praticamente todos os
cidados, tirando aqueles mais jovens e mais velhos que no votam,
estaro identificados biometricamente. (Justia eleitoral, 2011)
O projeto prev que os novos ttulos eleitorais sejam confeccionados em papel especial
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contendo os dados biomtricos (impresso digital, fotografia, assinatura)8 e pessoais do eleitor,
dados da Justia Eleitoral e cdigo de barras com o nmero do ttulo. Como j mencionado na
fala de Lewandowski, o argumento para o projeto baseia-se na proposta de aumentar a
segurana do voto, adjetivando-o ainda como algo fundamental para a consolidao da
democracia. Os membros do TSE afirmam que a expectativa com as urnas biomtricas de
impedimento de fraude eleitoral, principalmente de que uma pessoa vote em lugar de outra.
Segundo a Agncia de Notcias do TSE, foi adquirido um lote de 25.538 urnas dotadas de leitor
biomtrico, com intuito de facilitar a transio para a tecnologia da identificao digital do
eleitor. (Votao, 2006; Tribunal Superior Eleitoral - Projeto bsico, 2009)
No segundo semestre de 2008, o Tribunal Superior Eleitoral realizou um teste das novas
urnas em trs municpios brasileiros, Ftima do Sul, no Mato Grosso do Sul; So Joo Batista,
em Santa Catarina; e Colorado DOeste, em Rondnia, todos com cerca de 15 mil habitantes
cada. Nesses locais, foi realizado o cadastramento biomtrico dos eleitores e a votao com
uso de urna biomtrica nas eleies municipais de outubro. A partir desse projeto-piloto, o
governo elaborou o cronograma para o recadastramento nacional de eleitores, num prazo
estimado entre 5 e 10 anos. Giuseppe Janino, na ocasio Secretrio de Tecnologia da
Informao, do TSE afirmou no Programa Eleies 2008, veiculado pela TV Cmara, que ainda
h a inteno de aliar esse sistema biomtrico de eleies ao desenvolvimento tecnolgico da
certificao digital no Brasil, o que permitiria, em tese, a votao pela Internet9. Janino afirma
que tecnologicamente isso pode ser vivel, mas pondera afirmando que a viabilidade desse
8 Fotografia e assinatura tambm podem ser consideradas dados biomtricos para identificao. No caso da assinatura, pode ser tanto um reconhecimento dos padres de letra (desenho), como do comportamento no ato de assinar. Esse o mote de vrias pesquisas atuais para que o sistema biomtrico reconhea, por exemplo, a presso ou o som que o usurio faz, sobre o papel, ao assinar. O reconhecimento de digitao segue lgica parecida. (Bravo, 2006).
9 A certificao digital um procedimento que atesta a identidade de uma pessoa ou instituio na Internet por meio de um arquivo eletrnico assinado digitalmente, motivo, pelo qual, alguns referem-se a isso como identidade eletrnica. O processo que desmaterializa a identificao face a face ou por meio de documentos fsicos visa a) garantir a autenticidade do emissor e do receptor de transaes ou documentos via Internet, a b) integridade dos dados transacionados, c) a confidencialidade das partes, e d) a aceitao de transaes e documentos pelas partes. Vrios rgos pblicos e privados no Brasil adotam a certificao digital, a qual controlada no pas pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informao (ITI), vinculado a Casa Civil da Presidncia da Repblica. (Instituto Nacional, 2009).
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desenvolvimento problemtica, em especial, por causa da coao na hora da votao. (TSE
Avalia, 2008).
Apesar da ponderao, interessante notar que um sistema de votao que justificado
pelo combate fraude no pas, tenha em seu horizonte de desenvolvimento futuro o
acoplamento a uma tecnologia que pode justamente dar margem fraude. A essa altura, vale
mencionar que, neste caso, permanecem elementos j citados (identificao, vigilncia,
reconhecimento e combate fraude), mas so conectados outros, como aumento da
segurana pblica, consolidao da democracia, e transio para tecnologia de identificao
digital.
Por fim, o projeto do novo passaporte brasileiro mais uma novidade que prev a
utilizao da biometria. Diferente dos outros, este possibilita situar, em parte, o tema da
vigilncia no debate acadmico internacional, j que a utilizao de passaportes desse tipo
uma tendncia em muitos pases e tem em sua histria recente embates importantes.
Dentre 20 itens de segurana, o novo passaporte no Brasil j inclui dados biomtricos do
portador, os quais compem um banco de dados nacional que, de acordo com o projeto, serve
para facilitar as consultas em postos de fronteira. Um informativo (Informaes, 2009) da
Polcia Federal brasileira divulgou que essas mudanas seguem as recentes exigncias e as
normas internacionais de segurana estabelecidas pela Organizao de Aviao Civil
Internacional (ICAO, sigla em ingls), agncia ligada s Naes Unidas responsvel por
normatizar assuntos relativos aviao civil e aos vistos e documentos de viagem.
Tais regras e recomendaes esto expressas em especial no DOC 9303: Machine
Readable Travel Documents, um documento publicado pela primeira vez em 1980, intitulado
como A Passport with Machine Readable Capability e que hoje est publicado em trs partes
que detalham recomendaes tcnicas para utilizao da biometria nos passaportes. (DOC
9303).
Outro informativo do Ministrio das Relaes Exteriores ainda afirma que essa
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adequao s normas internacionais ir efetivamente, implementar um documento de viagem
mais seguro, que propicie ao cidado brasileiro maior credibilidade internacional, alm de
modernizar todo o sistema de controle do trfego internacional no pas. E assim apresentado
pelo governo o novo passaporte brasileiro: Seguro e moderno, o novo passaporte brasileiro
proporciona agilidade, praticidade e conforto aos cidados brasileiros. A tecnologia de ponta
utilizada neste projeto oferece excelente proteo contra tentativas de adulterao e/ou
falsificao (Conhea, 2009). Note que as ideias de credibilidade internacional, modernizao,
tecnologia de ponta, e proteo contra falsificao (fraude) compem a justificativa para a
importncia das mudanas no passaporte e sinalizam novos elementos alm dos supracitados.
As medidas para implementao de um novo passaporte brasileiro tambm ecoam a
iniciativa dos pases membros do G-8 (os sete pases mais ricos do mundo mais a Rssia), em
2003, para desenvolver um novo passaporte (conhecido como e-passport ou passaporte
eletrnico), que utilizaria alta tecnologia para auxiliar no combate contra o terrorismo10. Os
Estados Unidos pressionavam, na ocasio, para a adoo do novo sistema pelos pases
membros do Visa Waiver Program, um programa do governo estadunidense para permitir que
cidados de determinadas naes (atualmente so 35, e no inclui o Brasil) possam entrar no
pas para atividades de turismo ou negcios, por 90 dias, sem a necessidade de visto. Esse
programa tambm apresenta regras de como qualificar pases que estejam aptos a requererem
sua participao. Dentre essas regras est a adoo da biometria nos passaportes e a
capacidade nacional de controlar a imigrao e as atividades de contrabando.
Como j havia sido observado na pesquisa sobre cmeras de vigilncia (Kanashiro, 2006)
o governo brasileiro, em consonncia com o cenrio internacional, iniciou em 2004 a
implantao de novos sistemas de segurana nos portos nacionais, exigidos pelo Cdigo de
Segurana para Portos e Embarcaes (ISPS-Code, sigla em ingls) e pela Organizao
10 Um e-passaport incorpora dados relativos identidade de um indivduo; orientaes atuais da ICAO conclamam aos e-passports para incluir dados de reconhecimento facial. Os contornos dos rostos dos indivduos so digitalmente mapeados e armazenados em chip para que possa ser feita a comparao entre os dados faciais do portador e os da pessoa para quem o passaporte foi emitido. (Visa, 2009, traduo minha).
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Martima Internacional (OMI), da qual o Brasil membro. A ao foi baseada na Medida
Provisria (MP) 184 de 2004, depois transformada na Lei 10.935, e tramitou em regime de
urgncia para abrir crdito extraordinrio para que os ministrios da justia, do transporte e da
defesa, implementassem os novos sistemas de segurana A adequao apontou a
transformao da utilizao de equipamentos eletrnicos de vigilncia em uma necessidade e
em requisito bsico para o comrcio internacional e para a mobilidade de mercadorias e
objetos.
O cenrio que inclui os discursos sobre as mudanas nos passaportes, da ICAO, do Visa
Waiver Program, e dos sistemas de segurana nos portos, denota uma focalizao sobre a
mobilidade tanto de mercadorias e objetos, como de pessoas. Alm disso, notam-se tambm
na legislao brasileira os reflexos do discurso norte-americano de segurana e combate ao
terrorismo. As mudanas no passaporte brasileiro conjugam-se ento com o acirramento de
certo iderio mundial de segurana, que ganhou fora extraordinria aps o atentado terrorista
de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. O perodo marcado pelo combate ao
terrorismo apresenta os equipamentos de monitoramento, vigilncia e controle de acesso como
imprescindveis para a sobrevivncia e para o comrcio internacional, multiplicando-os e
popularizando-os na mdia e nas feiras de segurana. Como exposto em artigo e, em parte, na
pesquisa sobre cmeras de vigilncia (Kanashiro, 2006 e 2008), a insero de mecanismos de
vigilncia no Brasil atinge, nesse momento, um argumento mais incisivo11.
Diferente dos outros casos brasileiros de utilizao da tecnologia biomtrica, a mudana
nos passaportes tambm ocorreu fora do pas e, no mbito internacional, teve como respostas
debates de movimentos sociais em defesa da privacidade, assim como de intelectuais que
11 Analisando o conjunto de propostas legais brasileiras sobre cmeras de vigilncia e outros equipamentos eletrnicos para segurana, props-se uma diviso em trs perodos nos quais esses equipamentos eram conectados com diferentes caractersticas. A mudana de perodos marcada pelo recrudescimento da incisividade dos argumentos e justificativas. Entre 1982 e 1995, esses equipamentos (em especial as cmeras de vigilncia), surgem na legislao e nas entrevistas realizadas como uma sugesto dentre outras para aumentar a segurana em estabelecimentos financeiros. Entre 1995 e 2003, os discursos sobre cmeras so reconfigurados e esses apetrechos passam a ser sugeridos como obrigatrios para vrios espaos. Entre 2003 e 2005, equipamentos biomtricos de controle de acesso surgem como complementares s cmeras, que aumentam o nvel de segurana. Os discursos sobre tais equipamentos os classificam como imprescindveis para a sobrevivncia e para o comrcio internacional (Kanashiro, 2008).
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buscavam problematizar a questo. Uma intensa polmica ocorreu nos Estados Unidos (EUA),
nos anos de 2003 e 2004, em funo das tentativas de implementao de um programa para
triagem de passageiros de avio. O programa, que envolvia a nova tecnologia nos passaportes
e o cruzamento de informaes com outros bancos de dados, inclusive comerciais, foi
formulado pela Administrao de Segurana do Transporte (TSA, sigla em ingls) dos Estados
Unidos e ficou conhecido como CAPPS II, sigla em ingls para Sistema Informatizado de Pr-
triagem de Passageiros (CAPPS II, Electronic Frontier Foundation, 2009)
A polmica se deu em torno de seu objetivo de identificar passageiros qualificados como
de maior risco, para procedimentos adicionais de segurana antes que eles embarcassem nos
avies. A avaliao do risco, que determinado passageiro representava, era realizada a partir
do cruzamento de informaes de bancos de dados comerciais e informaes de inteligncia,
ou seja, eram verificados dados contidos nos passaportes junto com os de outros bancos de
dados com intuito de avaliar o risco.
Vrios grupos pronunciaram-se publicamente sobre a questo, dentre eles, a organizao
no governamental Electronic Frontier Foundation, sediada em San Francisco (EUA) desde
1990 e conhecida por atuar em defesa de liberdades civis possivelmente impactadas por novas
tecnologias. Em sua tentativa de dar visibilidade para essa questo, explicou mais
detalhadamente o funcionamento do sistema de triagem:
A Administrao de Segurana do Transporte dos Estados Unidos
anunciou planos para implementar o CAPPS II, um controverso sistema de
perfilizao (profiling) e vigilncia de passageiros que requereria que se
fornecesse a data de nascimento, nmero de telefone e endereo
residenciais antes que se pudesse embarcar num voo para os Estados
Unidos. Sob o CAPPS II, as autoridades checariam esses e outros dados
pessoais frente a informaes coletadas em bancos de dados comerciais e
governamentais, ento rotulariam (tag) com uma pontuao codificada em
cores indicando o nvel de risco para a segurana que a pessoa
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representaria. Baseado na cor indicada, a pessoa poderia ser detida e
interrogada ou estar sujeita a buscas adicionais. Se algum fosse rotulado
com a cor/pontuao errada, poderia ser proibido de voar. (CAPPS II,
2009, traduo minha).
Alm do pronunciamento de movimentos sociais, a questo tambm contou com artigos
cientficos, como de Michael Curry (2004) que afirmava que a construo de sistemas de perfis
para a identificao de viajantes potencialmente perigosos s pode existir dentro de uma ampla
criao de esteretipos e na diviso da populao em grupos, neste caso, no apenas
apoiando-se em atributos definidos, mas visando a propenso de engajar-se em certas
atividades consideradas perigosas. Para Curry (2004), a vigilncia de mobilidades requer
tambm uma explorao de dados mais detalhados para construir narrativas das atividades
das pessoas.
O que ele est fazendo realmente? uma pessoa mentalmente
perturbada, fugindo do pas desesperada para escapar de seus
problemas? um criminoso livre para sequestrar o avio e fazer seus
passageiros refns em troca de um resgate vultuoso? um imigrante
cubano agora com saudades de casa? Ou apenas um homem de
negcios, um tanto esgotado, que comprou uma passagem com dinheiro
no ultimo minuto porque um negcio importante apareceu
repentinamemente e ele perdeu o carto de crdito? Se sim, ele ser, para
usar os termos de Jackson, padro verde (test green) e estar livre para
partir. (Curry: 2004, 485, traduo minha).
Este mesmo autor ainda sinaliza a relao entre tcnicas de pesquisa de mercado e a
construo dos sistemas de perfil, por exemplo, das companhias areas. O autor sustenta a
posio que um sofisticado sistema construdo nessas conexes de dados pessoais e
comerciais a partir de narrativas as quais incorporam opinies sobre uma srie de
comportamentos mveis e padres que so definidos como aceitveis ou suspeitos. Ele
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tambm argumenta que esses perfis so desenhados no para identificar o viajante confivel,
mas ao invs disso, o viajante perigoso.
Peter Adey (2004) destaca por sua vez, tambm focalizando a vigilncia da mobilidade
atravs das tecnologias para monitoramento e controle de acesso, que aeroportos so espaos
onde ocorre a vigilncia e classificao tanto de objetos, como de pessoas; e interpreta os
aeroportos como filtros. Nessa anlise, o autor afirma a ocorrncia tanto da invaso de
privacidade, como de uma discriminao categrica resultando de uma classificao de
passageiros.
De forma mais geral, sem prender-se ao caso especifico CAPPS II, Ceyhan (2006a)
acrescenta uma observao interessante ao analisar a tecnologia envolvida nesse caso. Para
essa cientista poltica o desenvolvimento recente e considervel do mercado dessas
tecnologias intensificou-se com os atentados ao World Trade Center em 2001, e os de Madri
(maro) e Londres (julho), ambos em 2004. Tal desenvolvimento deve ser visto tambm como
um fenmeno global:
Todos os dias so vistos apelos em favor do uso dessas tecnologias como
detectores de raios X, videovigilncia dita inteligente, passaporte com
identificadores biomtricos, crachs biomtricos, cartes inteligentes. Sob
a presso dos EUA, seguida pela Unio Europeia, e G8, os poderes
pblicos se precipitam por adotar as tecnologias em uma velocidade muito
grande. Tecnologias so perseguidas como os instrumentos mais
cientficos de preveno e antecipao de ameaas pelo seu modo de
identificao dos indivduos, a partir do que constituem sua unicidade, a
criao de perfis de comportamentos de risco e sua interconexo com
bases de dados. (Ceyhan, 2006a, traduo minha)
Mesmo abordando a questo mais especfica dos passaportes e do programa CAPPS II,
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tanto Curry (2004) como Adey (2004) permitem exatamente uma reflexo sobre a construo
de bancos de dados, cruzamento de informaes e a utilizao da biometria como exposta nos
outros casos aqui destacados. Todos os autores colocam em cena a maior capacidade de
armazenamento de informaes que essas novas tecnologias possibilitam, incluindo a
biometria e os procedimentos e documentos que a utilizam.
Os projetos brasileiros supracitados mostram um esforo amplo na direo da construo
de grandes bancos de dados sobre a populao, da identificao e classificao de pessoas
por meio da tecnologia biomtrica. Alm disso, os casos mencionados apresentam conexes e
justificativas que pontuam de fato conceitos e noes que vm sendo transformados na
atualidade, e que, portanto, no devem contribuir apenas para a caracterizao do tema em
questo como um fenmeno recorrente nas sociedades contemporneas ocidentais.
possvel notar dois nveis desses elementos. De forma mais geral, como possvel
perceber no caso do passaporte, os elementos em alterao (ou alterados) que emergem so:
as formas de identificao, a noo e a construo de identidade(s) e perfis, a ideia de
reconhecimento, a vigilncia e os mecanismos de vigilncia e controle; o foco sobre o acesso e
mobilidade de pessoas e objetos, e tambm sobre a propenso (portanto visando a
antecipao). Ainda nesse nvel mais geral, - mas de forma menos imediata (nos casos citados)
e mais implicada nas vrias tecnologias atuais que possibilitam monitoramento - esto em cena
e sendo transformados: as noes de indivduo, individualidade, subjetividade, privacidade,
pblico, privado, as formas de classificao, as formas de controle social, as noes de corpo,
memria e arquivo, segurana e risco, e padres de comportamento social.
De forma mais especfica surgem, caracterizando a realidade brasileira, elementos
singulares (e menos presentes no debate internacional) como a vinculao da tecnologia
biomtrica de identificao com a ideia de cidadania ou identidade cidad, programas sociais
do governo, combate fraude, consolidao da democracia, transio tecnolgica (para
tecnologia de identificao digital), necessidade de modernizao e obteno de credibilidade
internacional. Certamente, esse nvel mais especfico de elementos da realidade brasileira
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tambm diz respeito s ideias que so acionadas ou agenciadas no processo de
implementao como forma de sustentar esses projetos. Se o foco fosse, por exemplo, sobre o
panorama internacional, os principais elementos - para muitos projetos de utilizao da
biometria ou de formas de identificao e vigilncia - seriam o combate ao terrorismo e
imigrao ilegal, e o controle de fronteiras.
nesse nvel especfico, portanto, que possvel vislumbrar a singularidade, os
deslocamentos de sentido, seja acerca de cidadania, democracia, ou modernidade e
modernizao. Assim, nesse universo marcado pela proposta de transio tecnolgica ou
desenvolvimento tecnolgico que vo se construindo uma srie de transformaes. Em muitos
momentos, esse universo aciona termos que parecem nos fazer mergulhar na rea de
marketing e que podem estar associados venda dos mais variados produtos. Agilidade,
praticidade e conforto, nos diz o anncio sobre o passaporte brasileiro. nesse nvel tambm
que a questo desloca-se de uma imposio pura do Estado para se transformar muitas vezes
num desejo de cada um, como veremos mais adiante.
Esse nvel mais especfico diferencia-se daquele mais geral no apenas por configurar o
universo de deslocamentos de sentido vinculado ao agenciamento de ideias que so acionadas
para sustentar as tecnologias biomtricas, mas tambm porque o nvel mais geral diz mais
respeito s propostas diretas dos prprios projetos, como reconhecimento e identificao.
nesse nvel que as transformaes passam pela criao de softwares e de mquinas
construdas (e desejadas) na atualidade.
A transformao de vrias dessas noes ou ideias que a tecnologia biomtrica pode
fazer emergir, vem sendo alvo de diversos trabalhos e estudos que se preocupam em
compreender as mudanas contemporneas (dentre muitos exemplos, Beck, Giddens e Lasch,
1997; Giddens, 1991; Bauman, 1998).
Sendo assim, o presente trabalho preocupou-se em expor o caso do RIC para fazer a
transformao de um modo de pensamento e de um funcionamento do poder conectados s
tecnologias que permitem monitoramento e identificao de pessoas na atualidade.
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Assim, a pesquisa aqui apresentada est dividida em duas partes. A primeira inclui esta
introduo, que buscou, a partir de vrios casos de utilizao da tecnologia biomtrica de
identificao no Brasil, situar o leitor sobre a temtica da pesquisa e seu contexto e, ao mesmo
tempo, fornecer elementos e subsdios para a reflexo, no decorrer do trabalho. Esta parte
inclui ainda a exposio do caso do Registro de Identidade Civil, incluindo o contexto atual da
identificao no Brasil e os embates que vm se dando em torno do novo documento de
identidade no pas.
A parte II aborda a definio atual de tecnologia biomtrica e as conexes, tenses e
arranjos que estabelece na atualidade, suas diferenas e/ou relaes com a antropometria e
propostas de identificao vigentes nos sculos XIX e XX. Para tanto, traz a tona a discusso
acadmica internacional sobre o tema buscando ainda relaciona-la com o caso do RIC, com
conceitos tais como sociedade disciplinar (Foucault, 2000) e de controle (Deleuze, 2000), com
o funcionamento do poder na atualidade e com o amlgama entre tecnologia atual, produo
de conhecimento, e capitalismo.
O REGISTRO DE IDENTIFICAO CIVIL - RIC
A Lei Federal 9.454, de 1997, que instituiu o RIC e o primeiro projeto deste documento,
elaborado em 1998, por Marcos Elias de Arajo (diretor do Instituto Nacional de Identificao)
tinham como proposta a criao de um documento nico para agregar vrios outros, como a
carteira de identidade (RG), o cadastro de pessoa fsica (CPF), e o ttulo de eleitor, e que
tivesse possibilidade de substituir, ao longo de sua utilizao tambm a carteira nacional de
habilitao (CNH), a carteira de trabalho (CTPS), a inscrio no Programa de Integrao Social
e de Formao do Patrimnio do Servidor Pblico (PIS / PASEP) e a inscrio na Previdncia
Social (INSS)12.
12 A princpio, as vrias iniciativas de utilizao da tecnologia biomtrica pelos Detrans e pelo TSE parecem se sobrepor. No entanto, o prprio TSE sinalizou que a ideia unificar esses projetos com o do RIC.
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Como veremos adiante, a lentido para regulamentar essa lei fez com que uma srie de
documentos perdessem a validade no pas durante alguns perodos. A Lei 12.058 de 2009
(Anexo III) alterou a lei de criao do RIC de forma que outros documentos de identificao dos
brasileiros pudessem continuar vlidos a despeito do lento processo de implementao do RIC.
Atualmente, a possibilidade de unificao de vrios documentos sob o RIC permanece
aberta, mas sem especificar quais sero esses documentos. O Decreto 7.166, de 5 de maio de
2010 (Anexo IV), que criou o Sistema Nacional de Registro de Identificao Civil, instituiu seu
Comit Gestor, regulamentou disposies da Lei 9.454, e tambm solucionou a questo
quando em seu dcimo artigo afirma que: Os demais cadastros pblicos federais de
identificao do cidado podero adotar o RIC em substituio ao seu prprio nmero,
observadas as peculiaridades de cada rgo ou entidade. Alm disso, este decreto ainda
afirma que a implementao do RIC no comprometer a validade dos demais documentos de
identificao. Assim, ao mesmo tempo em que esse processo deve seguido de forma a
favorecer a unificao dos demais documentos de identificao, tambm deve priorizar a
integrao das bases de dados das carteiras de identidade emitidas por rgos de identificao
dos estados e do Distrito Federal.
Desta forma, o RIC mantm a inteno de unificar as formas de identificao no pas,
mas sem estabelecer a priori exatamente quais documentos sero agregados com ele.
Para a implementao do RIC, foi criado o Sistema Nacional de Identificao Civil
(SINRIC) para coordenar uma base de dados nica e nacional chamada Cadastro Nacional de
Registro de Identificao Civil (CANRIC). O Ministrio da Justia, nesse projeto, tem como
tarefa a coordenao desse sistema, e participar de comits, comisses e conselhos para
implementao, gerenciamento e controle do RIC, e do CANRIC. Esto vinculados para o
cumprimento dessas atribuies rgos como: departamentos de segurana pblica vinculados
Secretaria Nacional de Segurana Pblica; Instituto Nacional de Identificao, do
Departamento da Polcia Federal; outros rgos regionais de identificao dos estados e
rgos locais (cartrios).
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Este cadastro dever conter os dados de cidados brasileiros natos ou naturalizados,
identificados pelo processo datiloscpico automatizado AFIS (sigla em ingls para Sistema
Automatizado de Identificao de Impresses Digitais), que hoje est sob a responsabilidade
do Ministrio da Justia. O AFIS um sistema que possibilita escanear digitais, cadastrar e
arquivar suas informaes em bancos de dados e verificar a correspondncia entre essas
informaes e outros dados.
Neste sistema, o processo de coleta da impresso digital pode ocorrer atravs do
processo de digitalizao da imagem das digitais colhidas pelo processo tradicional por
entintamento, ou coletando-se a digital diretamente em um leitor ptico ou scanner de dedo. O
segundo projeto do RIC13, do ano de 2008, e de responsabilidade da Associao Nacional dos
Diretores de Institutos de Identificao (ANDI) exalta a utilizao do mtodo com scanner.
O escaneamento ou captura da digital feito quando o dedo posicionado sobre uma
placa de vidro e o leitor ptico emite uma luz sobre a digital, a qual fotografada, gerando
uma imagem digital, ou seja, uma sequncia de zeros e uns que representam minsculos
pontos (pixels) que compe a imagem. Realizada a captura, pode ser feito o cadastro dessa
informao associando as digitais a uma pessoa e a um nmero nico e nacional.
Com essas informaes relacionadas possvel que este sistema realize de forma
automtica a verificao da identidade de algum, comparando a impresso digital
apresentada com outras digitais arquivadas no banco de dados. Desta forma, uma pessoa ao
dirigir-se a um rgo de identificao para solicitar seu RIC passaria por um processo de
verificao para saber se a sua impresso digital j no estaria cadastrada no sistema,
impedindo que pudesse ter mais de um documento de identificao, com numeraes
diferentes.
A identificao de uma pessoa nesse sistema ocorre por meio da biometria, ou seja, por
13 O segundo projeto do RIC apresenta modificaes em relao ao primeiro, em especial de cunho poltico e no tcnico. As diferenas entre o primeiro e o segundo projeto apontam para os focos de tenso em torno da implementao do RIC, os quais sero abordados mais adiante.
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seus dados corporais, suas impresses digitais e no por informaes biogrficas, como nome,
filiao, nmero de outra documentao ou senha alfanumrica. O projeto da ANDI e os
defensores da tecnologia biomtrica para identificao de pessoas advogam que esse um
processo de identificao inequvoco, em virtude da unicidade das impresses digitais.
De uma forma geral, os sistemas biomtricos como o AFIS so usados para o que se
convencionou chamar autenticao de pessoas. De acordo com Costa (2006), existem dois
modos de autenticao: a verificao e a identificao. Na primeira, a caracterstica biomtrica
fornecida pela pessoa junto com a alegao de uma identidade, por meio da digitao de
uma forma de identificao, que pode ser um cdigo, senha ou outro ndice. Costa explica que
esta forma de autenticao dita uma busca 1:1, ou busca fechada, em um banco de dados
de perfis biomtricos. A especificao 1:1 indica que o universo a consultar nico e
direcionado dentro do banco de dados. Este princpio de verificao est fundamentado na
resposta questo: O usurio quem alega ser? Na segunda forma de autenticao, a
pessoa apenas apresenta sua caracterstica biomtrica, e o sistema dever por si identific-la,
baseado na questo Quem esta pessoa?. De acordo com o pesquisador, essa abordagem
de autenticao dita uma busca 1:N, ou busca aberta, em um banco de dados de perfis
biomtricos. O sistema busca todos os registros do banco de dados e retorna uma lista de
registros com caractersticas suficientemente similares caracterstica biomtrica apresentada.
A lista retornada pode ser refinada posteriormente por comparao adicional, biometria
adicional ou interveno humana. (Costa, 2006: 3)
No caso da utilizao de impresses digitais, a autenticao feita pela anlise das
mincias ou pontos caractersticos (detalhes ou particularidades das linhas da digital, como
bifurcaes e extremidades) por meio de algoritmos matemticos. Esses detalhes da digital so
medidos por sua posio relativa e so traadas linhas retas entre elas, as quais criam formas
geomtricas ou padres. Para verificar a correspondncia entre um par de digitais, por
exemplo, o sistema busca padres em comum, cuja quantidade varia de acordo com a
programao do sistema.
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Entre o primeiro projeto do RIC (Arajo, 1998) e o segundo (ANDI, 2008) h uma
diferena acerca dos bancos de dados presentes no Sistema Nacional. O primeiro, colocava
como a parte inicial (Cadastro Inicial - CIN) do cadastro e banco de dados CANRIC a
digitalizao de fichas criminais que possuem as digitais arquivadas em papel. No segundo
projeto, o CIN desaparece. Como ser abordado mais adiante, este ponto de partida ativava
dois focos das tenses que existem em torno do RIC, pois por um lado, aproximava a
identificao civil da criminal e, por outro, necessitava de uma srie de articulaes polticas
com os estados e seus rgos de identificao. Mesmo no estando presente no projeto mais
recente, a comparao entre bancos de dados de identificao civil e criminal torna-se
possvel, e no h uma definio de regras, leis ou normas especficas para isso no pas.
Para a execuo do projeto do RIC, os rgos estaduais de identificao, cartrios e
postos de coleta devero ser equipados e estruturados com sistemas para coleta de dados
biomtricos. Os dados coletados, que sero de propriedade dos estados, devero ser
verificados no mbito estadual pelos sistemas AFIS dos respectivos rgos de identificao e
transmitidos online ao CANRIC, que far as verificaes em mbito nacional para que uma
pessoa no possua dois nmeros diferentes de identificao, e ento, gerar o nmero nico.
O protocolo objetiva a confirmao da unicidade das digitais para aquele cidado, antes da
atribuio do nmero RIC.
Aps gerado, este nmero transmitido ao posto de coleta e emitido o RIC. Todo o
processo ser automatizado, desde a coleta dos dados at a emisso do documento, que
dever ser eletrnica. Tanto o projeto mais recente, como a legislao existente sobre o tema
no deixam claro exatamente como ser realizada a troca da atual carteira de identidade (RG)
pelo RIC.
Para a implementao do RIC, os rgos estaduais de identificao esto sendo
informatizados com o sistema AFIS e, para tanto, desenvolvendo processos licitatrios de
forma autnoma para contratar as empresas fornecedoras da tecnologia necessria coleta de
dados e emisso do RIC.
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O novo documento de identificao brasileiro (Figura 1) assemelha-se a um carto de
banco ou de crdito, ou seja, rgido, feito de policarbonato (uma espcie de plstico), com
dimenses (largura, altura e espessura) tambm similares. Sua espessura permite que possua
dois chips de memria para o armazenamento e processamento de dados sobre a pessoa.
De acordo com a resoluo MJ n. 2, de 10 de setembro de 2010, que dispe sobre as
especificaes tcnicas (Anexo V) do documento, os campos para dados biogrficos que
constaro na superfcie do documento so: nome, sexo, nacionalidade, data de nascimento,
filiao, naturalidade. Constam ainda os dados relativos ao prprio documento, como data de
validade, nmero RIC, documento de origem, rgo emissor, local de expedio, data de
expedio, observaes, e numerao de outros documentos como RG / Unidade da
Federao, CPF, NIS, Ttulo de Eleitor. Alm disso e dos recursos de segurana, a superfcie
do documento dever conter: a fotografia do titular; a impresso datiloscpica do indicador
direito do titular; assinatura digitalizada do titular; cdigo da unidade da federao emissora do
documento.
Figura 1: Imagem do Registro de Identificao Civil. Fonte Portal do governo do estado de Rondnia, 2008.
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O Registro de Identificao Civil tambm caracterizado por ser um smart card14 ou
carto inteligente. Ele conter dois chips no seu interior, um funcionar em interfaces sem
contato e outro com contato. Esses chips so capazes de armazenar informaes e processa-
las. Ou seja, no se trata mais de um documento de papel ou plstico, mas de uma pequena
mquina que processa informaes.
Os dados biomtricos, por exemplo, sero armazenados no chip com contato e sero os
da face, das quatro impresses digitais planas e da assinatura. No que concerne ao
processamento, o chip sem contato serve a autenticaes mais simples do cidado e pode ser
usado em situaes como, por exemplo, a passagem em catracas eletrnicas para entrada em
edifcios comerciais, estdios de futebol, ou uso sistemas de transporte. O segundo chip
funciona para autenticaes mais robustas (chamada autenticao forte), relativas a questes
de match-on-card (que a tecnologia que executa a verificao biomtrica dentro de um smart
card). Nesse caso, o RIC pode ser usado para assinaturas de documentos digitais ou contratos
de cmbio regulados pelo Banco Central, dentre muitos outros usos (ITI, 2009). A interface sem
contato seguir o padro da ICAO, expresso no DOC 9303, citado anteriormente, que o
mesmo utilizado nos passaportes e pode ser usado em aplicaes internacionais.
Para todos esses procedimentos do RIC, o carto ter certificao digital e sistema de
criptografia. Como explicado anteriormente, a certificao digital um procedimento que atesta
a identidade de uma pessoa ou instituio na Internet. De acordo com Direito (2011), o
certificado digital, includo no RIC e utilizado, por fora de lei, pelo governo brasileiro, o
emitido na cadeia da Infraestrutura de Chaves Pblicas brasileira ICP-Brasil. O certificado
digital da ICP-Brasil, alm de personificar o cidado na rede mundial de computadores,
garante, por fora da legislao atual, validade jurdica aos atos praticados com seu uso.
nas especificaes tcnicas do RIC que se nota a possibilidade do uso deste
14 Para uma definio de smart card e utilizao de chip sem contato (RFID), veja nota 2, no captulo 1.
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documento para transaes comerciais e bancrias, para mobilidade e acesso fsico das
pessoas, mobilidade de informaes, sinalizando que este carto de policarbonato vai muito
alm do que conhecamos como carteira de identidade ou forma de identificao, e que
ultrapassa a simples tecnologizao de um processo de identificao pr-existente.
A SITUAO DA IDENTIFICAO NO BRASIL
As trajetrias das formas de identificao variam em pocas e lugares diferentes. De
acordo com Wood e Firmino (2010: 248) formas de identificao tm sido usadas com diversos
propsitos que podem variar entre os extremos da incluso at a represso. Assim, se por um
lado a questo da identificao pode estar vinculada administrao burocrtica dos Estados,
a cidadania, e a possibilidade de exercer deveres e direitos, como votar, ou ter acesso a
benefcios sociais; por outro, tambm est vinculada aquilo que os Estados definem como
segurana em diferentes perodos e pases.
Alm disso, existem pases que exigem que seus cidados portem documentos de
identificao e outros que no, e tais documentos tambm podem ter uma representao
diferente para as pessoas, que podem carreg-los com orgulho, indiferena, relutncia ou
medo, dependendo das condies polticas e da histria do uso de tais documentos no pas
(Lyon, 2009).
O Brasil est entre os pases que exige tradicionalmente de seus cidados um documento
de identificao como meio de permitir ou facilitar seu reconhecimento perante os rgos
pblicos ou privados e suas relaes com a sociedade. Vrios documentos so aceitos como
prova da identidade de uma pessoa fsica: o RG (Registro Geral), tambm conhecido como
documento, carteira ou cdula de identidade, para brasileiros, e o Registro Nacional de
Estrangeiro (RNE) para aqueles que no so brasileiros. Atualmente, tambm so aceitos
oficialmente cdulas de identidade emitidas por entidades profissionais e a Carteira Nacional
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de Habilitao, a qual tambm tem validade nacional e de responsabilidade dos estados da
federao, na figura de seus Departamentos Estaduais de Trnsito (Detrans).
O Registro Geral (RG), o principal documento para identificao, foi estabelecido no Brasil
logo aps a Proclamao da Repblica em 1889, quando tambm foram criados os cartrios15.
Desde ento, o documento teve diferentes informaes pessoais e formatos, incluindo dados
como marcas e cicatrizes, fotografia de frente e de perfil, cor da pele, dos cabelos, da aurola
da ris, tipo sanguneo, uso de barba ou bigode, impresso digital, assinatura, filiao, data de
nascimento, estado civil, profisso etc.
Este perodo inicial da identificao no Brasil, em especial o final do sculo XIX e incio do
XX, est marcado pela criao dos institutos de identificao nos estados a partir do Decreto
4.764 de 5 de fevereiro de 1903, que regulamentou a Lei Federal 7.947, a qual visava
reorganizao da Polcia do Distrito Federal (Rio de Janeiro), no governo de Rodrigues Alves
(1902-1906). Nessa poca, determinou-se a tomada de impresses digitais de criminosos com
primazia sobre outros meios de identificao existentes. De acordo com o captulo XVII desta
lei, o qual trata do Gabinete de Identificao e Estatstica, os dados como exame descritivo
(retrato falado), observaes antropomtricas, sinais, cicatrizes e tatuagens, fotografia de frente
e perfil e impresses digitais so dados subordinados classificao dactiloscpica:
Pargrafo nico. Esses dados sero subordinados classificao
dactiloscpica, de acordo com o mtodo institudo por D. Juan Vucetich,
considerando-se para todos os efeitos a impresso digital como prova mais
concludente e positiva da identidade do indivduo e dando-se-lhe a
primazia no conjunto das outras observaes que serviro para corrobor-
la. Art. 58. As medies sero feitas de acordo com o mtodo institudo
pelo Sr. Alphonse de Bertillon, adotando para o exame descritivo e para os
sinais particulares, cicatrizes e tatuagens, o sistema de filiao
15 Cartrios so reparties, em geral privadas, que detm a custdia de diversos tipos de documentos e tambm so responsveis por registros de nascimento e morte, registros civis de pessoas ou empresas, de propriedade, entre muitos outros documentos.
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denominado Provncia de Buenos Aires (Decreto 4.764 de 5 de fevereiro
de 1903).
A presena da impresso digital em documentos de identificao civil no comum nos
diferentes pases. No Brasil, no entanto, uma informao integrante do documento desde
seus primrdios at a atualidade e sinaliza a proximidade do pensamento mdico legal e da
criminologia da poca com a identificao civil16. Assim, fornecer as digitais das mos para
obter um documento civil de identificao algo bastante enraizado e rotineiro no pas, e no
associado exclusivamente com as ideias de suspeita, de um estado repressivo ou regime
totalitrio.
Apesar da validade nacional do documento ocorrer na prtica, isso s foi assegurado por
lei quase cem anos depois de seu surgimento, com a instituio da Lei Federal 7.116 de agosto
de 1983, regulamentada a partir do Decreto 89.250, que entrou em vigor em 27 de dezembro
de 1983. Foi tambm a partir desta lei que os dados contidos no documento foram
padronizados para todos os estados do pas, passando a conter de um lado: nmero do
registro, data de expedio, nome completo, filiao, naturalidade, data de nascimento,
documento de origem; e no verso: fotografia, impresso digital do polegar direito, e assinatura
(Cf. Figura 2 a seguir).
16 Sobre o pensamento jurdico e a criminologia do perodo no Brasil veja Alvarez, 2003.
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Figura 2: Imagem do RG (Registro de Identidade). Fonte Wood e Firmino (2010).
Na maior parte dos estados brasileiros, a responsabilidade da expedio dos documentos
dos rgos de identificao dos estados, vinculados s respectivas secretarias estaduais de
segurana pblica, conferindo um carter policialesco a um documento civil, ou seja, mantendo
ao longo dos anos a proximidade entre a identificao civil e criminal. Mas h excees
recentes, como o caso do estado do Rio de Janeiro, onde a expedio do RG est a cargo do
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Departamento Estadual de Trnsito17 (Detran-RJ), desde o ano de 1997.
Os sistemas de identificao civil tornaram-se mais recentemente foco de ateno em
diferentes Estados, como assinala Lyon (2009): Em muitos pases ao redor do mundo, projetos
esto em andamento para criar novos sistemas de carto de identidade nacional, quer para
substituir documentos no eletrnicos, ou para introduzir uma identificao digital a partir do
zero.
O Brasil no foge a essa transformao no cenrio de identificao, e para tanto, tem sido
dada grande visibilidade, nos ltimos anos, forma como funciona o sistema de identificao
no pas e a observao das falhas desse sistema existentes na atualidade.
Atualmente, cada um dos 26 estados da Federao, mais o Distrito Federal, tem sua
prpria base de dados, em muitos casos pouco informatizada, que no se integra com a de
outros estados, ou seja, no existe um sistema integrado entre os departamentos de
segurana. Desta forma, uma pessoa pode obter mais de um documento de identidade (RG),
em diferentes estados, com validade nacional, mas cada um desses documentos com um
nmero diferente de identificao.
Alm disso, os rgos estaduais de identificao exigem, para emisso da carteira de
identidade, a certido de nascimento ou de casamento do solicitante, sendo a primeira mais
comum que a segunda. Neste procedimento, essas certides so os documentos que
conformam a origem da carteira de identidade, e esto em sua base junto com os cartrios
responsveis por tais certides.
Direito (2011) assinala como uma peculiaridade da identificao no Brasil a situao dos
cartrios no pas, que em sua quase totalidade operam como um sistema privado de prestao
de servio pblico18. A autonomia dos cartrios na emisso de documentos, a ausncia de
17 O decreto 22.930-A, de 21 de janeiro de 1997 transferiu para o Departamento de Trnsito do Estado do Rio de Janeiro (Detran-RJ) a prestao de servios e os bancos de dados referentes identificao civil desse estado, atribuio at ento desempenhada pelo Instituto de Identificao Flix Pacheco (IFP), rgo da Secretaria de Estado de Segurana Pblica. (Ver tambm: Direito, 2011).
18 De acordo com Garcia (2010), os cartrios funcionam como empresas delegatrias de servio pblico e so
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integrao entre seus bancos de dados e o subrregistro so alguns dos pontos elencados por
Direito (2011) para assinalar questes problemticas que esto na origem do documento de
identidade brasileiro.
(...) os cartrios gozam de grande autonomia. At janeiro de 2010, uma
certido de nascimento emitida em um determinado cartrio podia conter
informaes diferentes das fornecidas por outro cartrio da mesma cidade.
Cada cartrio possua o seu registro e, por conseguinte, nmero individual.
Isso significava que, em tese, podia-se registrar uma criana vrias vezes
em diferentes cartrios, visto que no havia padronizao nas informaes
coletadas nem banco de dados nico que permitisse verificar possveis
duplicidades. Outro aspecto importante relacionado certido de
nascimento a do subrregistro, ou seja, a ausncia do registro de
nascimento. (Direito, 2011: s/p)
Outro ponto recorrente a multiplicidade de documentos com a funo de identificao
q