biografia do pai natal

3
38 » noticiasmagazine 23.DEZ.2007 H á histórias extraor- dinárias. A do Pai Natal é-o, extraordi- nária em toda a sua lendária caminhada, desde o século IV até aos nossos dias. Chamemos-lhe S. Nicolau, Papai Noel, Papá Noel, Père Noël, Viejito Pascuero (chileno), Santa Claus, Joulupuk- ki (finlandês), Father Christmas, Ded Mo- roz (russo), ou Kris Kringle (um nome que se julga derivar do alemão Christkindl – Meni- no Jesus – apropriado pelo «vernáculo» dos primeiros colonos norte-americanos), é ti- do hoje como verdadeiro que mora longe, muito longe da grande maioria dos benefi- ciários da sua acção benévola. Para lá do cír- culo polar árctico, no sopé de uma misterio- sa montanha chamada Korvatunturi, com os seus duendes ajudantes, as suas renas e, enfim, toda a parafernália de espantosas ex- centricidades a que já nos habituou. Trata- se porventura da mais intricada das fanta- sias demiúrgicas do nosso tempo, pejada de zonas sombrias, contradições e, claro, gran- des cedências ao marketing, constantemente necessitado de renovados ícones. Um concorrente de Jesus Patrono dos marinheiros (sobretudo dos ho- landeses), dos comerciantes (de todas as la- titudes, está bom de ver), dos guardas-noc- turnos arménios, dos meninos de coro ita- lianos, das raparigas solteiras e casadoiras, o multinacional padroeiro Nicolau terá sido antes de mais um protector dos fracos e dos oprimidos, epíteto que se por um lado o tor- nou amado um pouco por todo o mundo cristão, por outro o colocou em franca posi- ção de concorrência com Jesus, o que terá determinado ( juntamente com a Reforma protestante que aboliu o culto dos santos, e com a escassez de documentação sobre a sua vida) a decisão do Papa Paulo VI em re- tirar em 1969 as festividades de São Nicolau do Calendário Oficial Católico. Dispensa que em nada afectou os holan- deses, que prosseguem ainda hoje celebran- do a chegada de Sinterklaas à Holanda (sem- pre acompanhado pelo seu ajudante Zwar- ? Pai Natal Quem é o Toda a verdade sobre o controverso velhote,que se para muitos representa o coração generoso dos homens bons e rectos,e apenas isso em toda a sua imutável grandeza,para outros tantos nada mais é do que um impostor,certo dia revelado na despensa onde os pais escondiam os presentes que compravam às escondidas. BIOGRAFIA TEXTO Sarah Adamopoulos CASA DA IMAGEM

Upload: sarah-adamopoulos

Post on 06-Mar-2016

216 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Biografia do Pai Natal

TRANSCRIPT

Page 1: Biografia do Pai Natal

38»noticiasmagazine 23.DEZ.2007

Há histórias extraor-dinárias. A do PaiNatal é-o, extraordi-nária em toda a sua

lendária caminhada, desde o século IV atéaos nossos dias. Chamemos-lhe S. Nicolau,Papai Noel, Papá Noel, Père Noël, ViejitoPascuero (chileno), Santa Claus, Joulupuk-ki (finlandês), Father Christmas, Ded Mo-roz (russo), ou Kris Kringle (um nome que sejulga derivar do alemão Christkindl – Meni-no Jesus – apropriado pelo «vernáculo» dosprimeiros colonos norte-americanos), é ti-do hoje como verdadeiro que mora longe,muito longe da grande maioria dos benefi-ciários da sua acção benévola. Para lá do cír-culo polar árctico, no sopé de uma misterio-sa montanha chamada Korvatunturi, com

os seus duendes ajudantes, as suas renas e,enfim, toda a parafernália de espantosas ex-centricidades a que já nos habituou. Trata-se porventura da mais intricada das fanta-sias demiúrgicas do nosso tempo, pejada dezonas sombrias, contradições e, claro, gran-des cedências ao marketing, constantementenecessitado de renovados ícones.

Um concorrente de Jesus Patrono dos marinheiros (sobretudo dos ho-landeses), dos comerciantes (de todas as la-titudes, está bom de ver), dos guardas-noc-turnos arménios, dos meninos de coro ita-lianos, das raparigas solteiras e casadoiras, omultinacional padroeiro Nicolau terá sidoantes de mais um protector dos fracos e dosoprimidos, epíteto que se por um lado o tor-

nou amado um pouco por todo o mundocristão, por outro o colocou em franca posi-ção de concorrência com Jesus, o que terádeterminado ( juntamente com a Reformaprotestante que aboliu o culto dos santos, ecom a escassez de documentação sobre asua vida) a decisão do Papa Paulo VI em re-tirar em 1969 as festividades de São Nicolaudo Calendário Oficial Católico.

Dispensa que em nada afectou os holan-deses, que prosseguem ainda hoje celebran-do a chegada de Sinterklaas à Holanda (sem-pre acompanhado pelo seu ajudante Zwar-

?PaiNatal

Quem é o

Toda a verdade sobre o controverso velhote,que se para muitosrepresenta o coração generoso dos homens bons e rectos,e apenasisso em toda a sua imutável grandeza,para outros tantos nadamais é do que um impostor,certo dia revelado na despensa ondeos pais escondiam os presentes que compravam às escondidas.

BIOGRAFIA

TEXTO Sarah Adamopoulos

CASA

DA

IMA

GEM

Page 2: Biografia do Pai Natal

41»noticiasmagazine 23.DEZ.2007

secutivas três justos príncipes, da primeira veztirando-os das mãos do carrasco e denuncian-do uma pérfida cabala e da segunda aparecen-do em sonhos ao imperador Constantino quese preparava para os mandar matar, tendo-oslibertado na manhã seguinte. Consta que trans-formava hóstias em pão e também que tinha opoder de fazer ressuscitar as crianças, milagrepóstumo que se julga ter tido origem em Fran-ça, no século XII, quando três crianças perdidasforam albergadas certa noite na casa de um ta-lhante malvado, que as degolou, cortou em pe-daços e pôs a salgar. Nicolau, que passava porali e insistiu em comer o que estava na salgadei-ra, terá ressuscitado as três crianças. Inexplicá-vel, porém compreensível.

Talvez tudo isto possa explicar que milharesde igrejas por toda a Europa tenham o seu no-me, sessenta das quais em Roma e mais de qua-trocentas em Inglaterra. Em 1087 os seus restosmortais foram transferidos para a cidade de Ba-ri, em Itália, que se converteu num centro deperegrinação em sua homenagem. Veneradopelos povos escravos cristianizados, que adop-taram São Nicolau como patrono, é veneradono mundo inteiro. Na Europa do Norte medie-val, a 6 de Dezembro eram realizadas procis-sões protagonizadas por duas crianças, umavestida de bispo que oferecia presentes aos me-ninos que se portavam bem e outra vestida deajudante que punia os ingratos e os indiscipli-nados. Na Rússia anterior à revolução de 1917, aIgreja Ortodoxa venerava Nicolau, e dois cza-res tiveram o seu nome. Quando emigrarampara a América no século XVII, os holandeses le-varam Sinterklaas com eles. Nos países euro-peus católicos, o culto a São Nicolau perdurapara além dos mandamentos da Santa Sé.

O guardião de Nova IorqueO escritor oitocentista Washington Irving foiquem pela primeira vez escreveu sobre um ve-lhote holandês fumador de cachimbo, que pas-sava pelos céus de Nova Iorque num carro puxa-do por cavalos. Tratava-se de uma importaçãodo Sinterklaas dos colonos de Nova Amesterdão(mais tarde Nova Iorque), que descrevia a chega-da desse velhote holandês ao porto da grande ci-dade. Chegava de calções, anafado e sorridente,e depois de deixar o seu barco sobrevoava a cida-de num trenó puxado por um cavalo voador, ati-rando presentes pelas chaminés. Irving chama-va-lhe «o guardião de Nova Iorque», o que levouà sua popularização também entre os nova-ior-quinos de origem inglesa. Conta-se que Irving,que criara com os amigos uma sociedade literá-ria dedicada a São Nicolau (com sede na sua pró-pria casa), promovia reuniões onde eram obser-vados vários costumes holandeses e durante asquais era obrigatório fumar cachimbo.

Um poema de NatalMas o Pai Natal tal como hoje o conhecemos nas-ceu em 1822 com grande distinção, às mãos deum poema. Assinado por Clement Clark Moore,teólogo e professor de Literatura Grega, o autor

40»noticiasmagazine 23.DEZ.2007

te Piet – Pedro Negro), num navio enorme car-regado de presentes e guloseimas, ao que cons-ta vindo de Espanha. Chegam em meados deNovembro, envoltos em grande aparato televi-sionado em directo, Nicolau vestindo de bispo,e Zwarte Piet pronto para dar com uma varacastigadora nos meninos que não se portarambem, ou para levar para Espanha (dentro do sa-co de Sinterklaas) aqueles que foram desobe-dientes. Após o que São Nicolau monta num ca-valo branco e desfila pelas ruas para ser aclama-do pelas crianças, numa tradição que culminana véspera do Dia de São Nicolau (6 de Dezem-bro), altura em que as crianças deixam um sa-patinho junto à lareira, bem como cenouras efeno para o cavalo (as mais solidárias).

Um santoAmigo dos pobres e das crianças, protector dosescravos e dos presos, São Nicolau terá nascidonos finais do século IIIna cidade grega de Pátara,na antiga Lícia (Sudoeste da Ásia Menor), numaregião que pertence hoje à Turquia. Santo pa-droeiro em países tão diversos como a Rússia, aGrécia ou a Noruega, nasceu filho de cristãos ri-cos, tendo por milagre escapado à morte por afo-gamento no momento do primeiro banho. Pas-sou a infância a jejuar (constando mesmo que sómamava às quartas e às sextas-feiras) e a adoles-cência enfiado nas igrejas a estudar as santas es-crituras. Contam as lendas que a sua generosida-de era infinita (desbaratou a herança familiar ge-nerosamente ajudando os outros), tendo-lheigualmente sido atribuídos vários e portentososmilagres. Senão vejamos.

Uma noite, Nicolau apareceu a uns mari-nheiros apanhados numa impiedosa tempes-tade, ajudando-os a manobrar o barco. Um dia,salvou uma província inteira da fome, entre-gando aos pobres o trigo destinado ao impera-dor e devolvendo por milagre a preciosa cargaaos navios. Uma outra vez, impediu o demóniotravestido de anciã de envenenar um grupo deperegrinos. Noutra ocasião, salvou da prostitui-ção três donzelas, filhas de um homem dema-siado pobre para lhes dar um dote, oferecendoa cada uma delas um saco cheio de ouro. Nico-lau foi ordenado bispo de Mira (antigo nome deDembre, na Turquia) devido ao facto de ser uminveterado madrugador, já que após a morte doseu antecessor, Deus decidira que seria bispoaquele que fosse o primeiro a entrar na igreja.Depois da morte dos pais, Nicolau foi visitar aPalestina e o Egipto, e durante essa viagem umagrande tempestade acalmou por via da sua re-za fervorosa. Morreu em 6 de Dezembro de342, e o santuário onde foi sepultado transfor-mou-se numa nascente de água. São Nicolau foivisto em numerosas aparições, tendo suposta-mente a mais famosa ocorrido em Espanha, em1853, quando, atendendo às orações de umassenhoras fervorosas, salvou do frio e da fomeum grupo de miseráveis desesperados.

Naquele que é considerado o seu mais bri-lhante milagre (palmas para ele), Nicolau sal-vou da condenação à morte por duas vezes con-

Painel do século XIX que representa São Nicolau enquanto patrono dos marinheiros.Em baixo, um Pai Natal da autoria de Thomas Nast, cartoonista norte-americano.

CORBIS/VMI

CORBIS/VMI

105x2901/2 pág alto

Page 3: Biografia do Pai Natal

42»noticiasmagazine 23.DEZ.2007

de A Visit from Saint Nicholas viu o seu poemapublicado em 1823 num jornal nova-iorqui-no. Nele se dava conta que São Nicolau, já ve-lhinho e com feições de gnomo, viajava numtrenó, puxado por oito renas e enfeitado comsonoros sininhos, entrando nas casas das pes-soas pela chaminé. Escrito para os seus filhos,descreve a noite mágica em que o Pai Natalapareceu pela primeira vez como absoluta-mente serena e silenciosa, deitada no sonoprofundo de todos. Eis senão quando surgiuSt. Nick de bochechas rosadas, nariz verme-lho e barriguinha proeminente, acompanha-do pelas renas Dasher, Dancer, Prancer, Vi-xen, Comet, Cupid, Donder e Blitzen. Conta--se que a nona rena, Rudolph, terá sido aposteriori contratada pelo Pai Natal por ter umnariz vermelho e brilhante, muito jeitoso pa-ra ajudar a guiar a trupe de incansáveis duran-te as tempestades.

O primeiro desenho que retrata a figurado Pai Natal data de 1862, e foi feito pelo car-toonista norte-americano de origem alemãThomas Nast, que foi também quem criouvários outros ícones americanos, tais comoo Uncle Sam, o Burro Democrata ou o Ele-fante Republicano. Publicado no semanárionova-iorquino Harpers Weekly, numa ediçãoespecial de Natal, Nast desenhou para a ca-pa e para as páginas centrais um trabalho deilustração que pretendia homenagear os sa-crifícios familiares nortistas decorrentes daguerra civil. Assim se explica que a figura doPai Natal (inspirada no São Nicolau de tradi-ção alemã) surgisse aqui significativamentesolene. Mas Nast viria a desenhar muitasmais vezes o Pai Natal, que se em 1863 apa-recia a distribuir presentes pelos soldados,

em 1866 surgia já bastante menos grave e acores – sobretudo a vermelho –, e em 1890era visto a andar pelos telhados e a entrar pe-las chaminés, após o que regressava à sua re-sidência oficial no pólo norte.

Coca-Cola Em 1931, Haddon Sundblom, um jovem pin-tor e artista gráfico de origem escandinava,desenhou uma série de anúncios para umacampanha da Coca-Cola, protagonizadapor um Pai Natal que personificava o provi-dente avô universal, que Sundblom dese-nhou a partir de Nast. Foi este idoso vestidode vermelho e branco (as cores da marca),tornado mais realista (mais humano, alto,gordo, amável), que trouxe para a Europa abebida mais famosa de sempre – um estimu-lante xarope medicinal cheio de cafeína,criado por um farmacêutico militar a partirda noz de cola, conhecida pelas suas pro-priedades revigorantes e antidiarreicas.Mas aquele que foi de certa forma conside-rado um regresso do filho pródigo às origensseria também marcado por algumas acçõesrevoltosas, que davam conta da indignaçãodos europeus perante a americanizaçãosem freio de um ícone cristão. Nos anos cin-quenta o secretário-geral da ONU, o suecoDag Hammarskjöld, levantou a voz contrao americanismo de um Pai Natal desembar-cado nas malas do Plano Marshall. Em Fran-ça, a Igreja condenou o carácter pagão en-tretanto conferido ao símbolo natalício, cor-rompido pela lógica do negócio multina-cional. Ainda assim, Sundblom desenhariao Pai Natal para a Coca-Cola centenas de ve-zes, entre 1931 e 1976.

Residências oficiais Nos países da Europa do Norte acredita-seque o Pai Natal não vive no pólo norte, mas naLapónia (Finlândia), numa cidade próximado círculo polar árctico chamada Rovaniemi.Aí recebe as mais de 700 mil cartas/ano en-viadas por crianças do mundo inteiro, e daípode ser visto através da internet, em trans-missões em tempo real, regularmente anun-ciadas no seu site oficial. O actual escritóriooficial do Pai Natal abriu em 1992, tendo sofri-do obras de ampliação, absolutamente neces-sárias devido ao número crescente de visitan-tes. Fiquem ainda a saber que o Pai Natal temtambém uma residência de Verão na regiãode Penedo, Itatiaia, no Rio de Janeiro, Brasil– região onde no final dos anos vinte se fixouuma colónia finlandesa. Um parque temáti-co («Pequena Finlândia») e a «Casa de PapaiNoel» constituem um chamariz para os visi-tantes sedentos de compras e ideias que cru-zam culturas e paisagens perfeitamente dis-tintas – basta dizer que a casa de Verão do PaiNatal fica situada junto a cachoeiras tropicais.

Um impostor O Pai Natal divide os homens. Uns há paraquem ele representa o coração generoso doshomens bons e rectos, e apenas isso em todaa sua imutável grandeza. Mas outros há paraquem ele não passa de um impostor, cuja ine-xistência (em toda a sua horrorosa evidência)marca os mais inocentes e crédulos, confron-tando-os com uma encenação de qualidadeafinal duvidosa. Senão vejamos: se um Pai Na-tal de 113 quilos cobrisse 91,8 milhões de habi-tações, trabalhando ao longo de 31 horas (deleste para oeste e de acordo com os diferentesfusos horários), realizando 822,6 visitas/se-gundo, percorrendo um total de 121 milhõesde quilómetros em cima de um trenó seguin-do à estonteante velocidade de 1046 quilóme-tros/segundo (ou seja, três mil vezes a veloci-dade do som), puxado por nove renas sobre-naturais que fazem o trabalho 214.200 renasreais, carregando 321.300 toneladas de pre-sentes, isso significa que as renas aqueceriamcomo um vaivém a entrar na atmosfera ter-restre, sendo que o primeiro par de renas ab-sorveria 14,3 quintilhões de joules de ener-gia/segundo, transformando-se em chamasquase instantaneamente, fazendo com que aequipa inteira fosse vaporizada em 4,26 mi-lionésimos de segundo, e também que o PaiNatal fosse esmagado contra o assento do seutrenó por forças centrífugas corresponden-tes a 1.957.290 quilogramas de força (ou seja,17.500,06 vezes maiores do que a força da gra-vidade). Estamos entendidos?«

Principais fontes consultadas:>L’Usage des Saints, Michel Braudeau,Gallimard 2004. >Santa Claus Office: http://www.santaclausoffice.fi. >Toda a Verdade sobre o Pai Natal, HélderCosta, em engenium.wordpress.com.

PolémicaNos anos trinta o

negócio apropriou--se do ícone cristão

e um amável PaiNatal trouxe para a Europa a bebida

mais famosa de sempre.

CORBIS/VMI