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BIODIREITO E CONSTITUIÇÃO Jussara Maria Leal de Meirelles * RESUMO Bioética e Biodireito são ramos do conhecimento que se complementam. Das primeiras noções da Bioética como “ética do conhecimento biológico”, quando do surgimento do termo, passou-se à abrangência da sua significação multi e transdisciplinar, a conter os mais diversos ramos do conhecimento, para significar o amplo conjunto de pesquisas e práticas tendentes a solucionar questões éticas que o avanço da biotecnologia tem provocado. Reconhece-se, no entanto, a limitação das respostas provenientes da Bioética, porquanto ainda que orientem posturas e comportamentos, não têm o condão de, efetivamente, coibi-los ou autorizá-los; essa tarefa é destinada ao Direito, pois somente as normas jurídicas têm caráter coercitivo. Pautado o Direito Brasileiro pelo personalismo ético estabelecido na Constituição da República, ao determinar como princípio o respeito à dignidade da pessoa humana, verifica-se, por certo, a aproximação entre os princípios éticos que norteiam a Bioética e o conteúdo essencial do Direito Brasileiro, estabelecido pela Constituição. Por sua vez, busca a Bioética, no Biodireito, as respostas coercitivas que somente as normas jurídicas podem conter. Palavras-chave: Biodireito. Bioética. Dignidade da pessoa humana. ABSTRACT Bioethics and BioLaw are fields of knowledge that complement themselves. From the first concepts of Bioethics like “ethics of the biological knowledge” to nowadays, Bioethics extended across its multidisciplinary and transdisciplinary meaning, which contain several fields of knowledge intended to imply a broad set of researches and practices inclined to solve ethical issues that biotechnology advancement has been creating. Nevertheless, the limitations of the answers given by Bioethics are recognized, considering that even tough Bioethics guide attitudes and behaviors, those limitations do not have the power of restrain or empower them; this task is meant to Law because only juristic rules have coercitive power. Brazilian Law is ruled by ethical personalism established in the Republican Constitution and fix as a principle, the respect of human dignity. Because of this, it is possible to notice an approach between ethical principles that guide Bioethics and the kernel of Brazilian Law, established by the Constitution. On the other hand, Bioethics seeks, in Biolaw, coercitive answers that only juristic rules can hold. Keywords: Biolaw. Bioethics. Human dignity. * Professora Titular de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestra e Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Procuradora Federal. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 1 – www.uel.br/revistas/direitoprivado

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BIODIREITO E CONSTITUIÇÃO

Jussara Maria Leal de Meirelles*

RESUMO

Bioética e Biodireito são ramos do conhecimento que se complementam. Das primeiras noções da Bioética como “ética do conhecimento biológico”, quando do surgimento do termo, passou-se à abrangência da sua significação multi e transdisciplinar, a conter os mais diversos ramos do conhecimento, para significar o amplo conjunto de pesquisas e práticas tendentes a solucionar questões éticas que o avanço da biotecnologia tem provocado. Reconhece-se, no entanto, a limitação das respostas provenientes da Bioética, porquanto ainda que orientem posturas e comportamentos, não têm o condão de, efetivamente, coibi-los ou autorizá-los; essa tarefa é destinada ao Direito, pois somente as normas jurídicas têm caráter coercitivo. Pautado o Direito Brasileiro pelo personalismo ético estabelecido na Constituição da República, ao determinar como princípio o respeito à dignidade da pessoa humana, verifica-se, por certo, a aproximação entre os princípios éticos que norteiam a Bioética e o conteúdo essencial do Direito Brasileiro, estabelecido pela Constituição. Por sua vez, busca a Bioética, no Biodireito, as respostas coercitivas que somente as normas jurídicas podem conter.

Palavras-chave: Biodireito. Bioética. Dignidade da pessoa humana.

ABSTRACT

Bioethics and BioLaw are fields of knowledge that complement themselves. From the first concepts of Bioethics like “ethics of the biological knowledge” to nowadays, Bioethics extended across its multidisciplinary and transdisciplinary meaning, which contain several fields of knowledge intended to imply a broad set of researches and practices inclined to solve ethical issues that biotechnology advancement has been creating. Nevertheless, the limitations of the answers given by Bioethics are recognized, considering that even tough Bioethics guide attitudes and behaviors, those limitations do not have the power of restrain or empower them; this task is meant to Law because only juristic rules have coercitive power. Brazilian Law is ruled by ethical personalism established in the Republican Constitution and fix as a principle, the respect of human dignity. Because of this, it is possible to notice an approach between ethical principles that guide Bioethics and the kernel of Brazilian Law, established by the Constitution. On the other hand, Bioethics seeks, in Biolaw, coercitive answers that only juristic rules can hold.

Keywords: Biolaw. Bioethics. Human dignity.

*Professora Titular de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestra e Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Procuradora Federal.

Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 1 – www.uel.br/revistas/direitoprivado

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1 DA BIOÉTICA AO BIODIREITO: DADOS HISTÓRICOS E EVOLUÇÃO DOS TERMOS

Em 09 de novembro de 1962, a revista Life publicava um artigo intitulado “Eles

decidem quem vive e quem morre”, reportando a história de um comitê em Seattle cuja

finalidade era selecionar pacientes para o programa de hemodiálise crônica, recentemente

instituído na cidade. Como havia muito mais pacientes necessitando de diálise do que a

capacidade do programa poderia alcançar, a solução teria sido compor um comitê, em sua

maioria de profissionais não médicos, para determinar critérios de escolha dos pacientes que

receberiam a tecnologia salvadora (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 1996, p. 16).

Pouco depois, em 1967, o Dr. Christian Barnard transplantou um coração humano de

uma pessoa falecida para um paciente cardiopata em fase terminal. Iniciou-se, então, o

questionamento acerca das justificativas sobre os avanços científicos. Indagava o mundo se os

estudos e práticas que a ciência vinha desenvolvendo estariam legitimados tão-somente pelo

progresso que representavam ou se deveriam estar igualmente protegidos os direitos e o bem-

estar das pessoas (LEITE apud PEREIRA, 1999, p. 145).

Esses fatos marcaram a preocupação em torno dos valores humanos a partir do

desenfreado desenvolvimento científico; representam, portanto, o surgimento da Bioética.

Em verdade, o neologismo Bioética, derivado das palavras gregas bios (vida) e

ethike (ética) apareceu inicialmente no título da obra de Van Rensselaer Potter (Bioethics:

bridge to the future), em 1971, muito embora o sentido do termo tenha sido outro, distante do

que hoje pretende significar. Potter, pesquisador na área de oncologia, utilizou o vocábulo

para designar uma participação racional, mas cautelosa, da humanidade, no processo da

evolução biológica e cultural. Segundo tal acepção, bio vem representar o conhecimento

biológico, enquanto ética representa o conhecimento dos sistemas de valores humanos

(PESSINI;BARCHIFONTAINE, 1996, p. 14).

Em definição sucinta, “bioética é o estudo sistemático da conduta humana no âmbito

das ciências da vida e da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz de valores e

princípios morais [...]” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 1996, p. 30).No entanto, tendo em vista as constantes inovações da moderna ciência biomédica, o

campo de atuação da bioética vem constantemente evoluindo e ampliando, abrangendo áreas

das mais diversas, tais como: relacionamento profissional-paciente, saúde pública, reprodução

humana, pesquisa biomédica e comportamental, saúde mental, sexualidade e gênero, morte e

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morrer, genética, ética da população, doação e transplante de órgãos, bem-estar e tratamento

de animais, meio ambiente etc (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 1996, p. 31). O vocábulo Bioética passa a indicar, portanto, um conjunto de pesquisas e práticas

pluridisciplinares tendentes a solucionar questões éticas que o avanço das tecnociências

biomédicas tem provocado. Em tal sentido, o estudo da Bioética ultrapassa a área da

Medicina, abrangendo a Psicologia, a Biologia, a Antropologia, a Sociologia, a Ecologia, a

Teologia, a Filosofia, dentre tantos outros ramos do conhecimento humano (VIEIRA, 1999, p.

15-16).

No que concerne ao Direito, especificamente, algumas reflexões merecem ser

expostas, para dirimir, desde logo, eventuais enganos.

2 ÉTICA E DIREITO: VINCULAÇÃO E LIMITES

Não há dúvida que os estudos bioéticos alcançam, também, questões jurídicas. De

igual modo, indubitável que o amplo leque de princípios que rege o ordenamento jurídico

brasileiro tem base ética, eis que o Direito existe para o homem e o homem é valor. Na

observação de Francisco Muniz e José Lamartine Corrêa de Oliveira, “[...] no caso do ser

humano, o dado pré-existente à ordem legislada não é um dado apenas ontológico, que

radique no plano do ser; ele é também axiológico. [...] O homem vale, tem a excepcional e

primacial dignidade de que estamos a falar, porque é. E é inconcebível que um ser humano

seja sem valer” (MUNIZ; OLIVEIRA, 1980, p. 16).

Nem por isso é correto concluir que, no tocante aos problemas trazidos pela

biotecnologia, deva-se buscar solução apenas e tão-somente na Bioética vista já como ponto

de referência basilar (eis que extremamente abrangente) para o exame da conduta humana no

campo das ciências biológicas.

Como o próprio termo indica, a Bioética está vinculada à Ética que, “em sentido

estrito é a ciência do dever moral” (SANTOS, 1993, p. 93). Todas as suas regras, os seus

dogmas, identificam-se com a idéia de consciência, delineando os valores fundamentais que

devem reger as ciências biológicas, tendo em vista conciliar o desenvolvimento da

tecnociência com as exigências morais da sociedade. Nessa acepção é que se deve tomar a

abrangência da Bioética em relação aos demais ramos do conhecimento.

Os princípios norteadores da Bioética, que fornecem a orientação necessária às

situações concretas são: beneficência, autonomia e justiça. Tais orientações são vistas de

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acordo com uma conexão hierárquica, que lhes dá sentido e validade (SGRECCIA, 1996, p.

167).

Assim, o princípio da beneficência seria colocado no vértice, correspondendo ao fim

primário da Medicina que, numa visão naturalista, é o de promover o bem, em relação ao

paciente ou à sociedade, evitando o mal.

O princípio da autonomia refere-se ao respeito que se impõe à autodeterminação

humana, fundamentando a aliança terapêutica entre médico e paciente e o consentimento aos

diversos tipos de tratamentos colocados a seu serviço.

O princípio de justiça relaciona-se à justa distribuição dos benefícios dos serviços de

saúde, resumindo-se na obrigação de igualdade de tratamento, respeitadas as diferenças de

situações clínicas, evidentemente, bem como a proporcionalidade das intervenções.

Forçoso observar a proximidade entre tais princípios e a base ética que norteia a

ordem jurídica. Forçoso, igualmente, reconhecer a necessária visão transdisciplinar para

solucionar as complexas questões oriundas do rápido desenvolvimento da ciência médica,

porquanto o saber compartimentado já se mostrou insuficiente (SÁ, 1999, p. 16).

Mas é preciso lembrar a necessidade de se adotar posturas coativas em relação a

determinados comportamentos. Tais posturas, indubitavelmente, encontram-se no Direito. Daí

a afirmação “o chamado biodireito é prioritário sobre a bioética” (SANTOS, 1993, p. 93).

Se, com efeito, é o paradigma bioético, fundado nos princípios da beneficência, da

autonomia e da justiça, que deve orientar a ciência jurídica na busca de soluções sobre temas

relativos à biotecnologia (LIMA NETO, 1997, p. 120), nem por isso é possível esquecer que

toda orientação ética resume-se, essencialmente, em um compromisso de consciência, tão-

somente.

A função de “normatizar os efeitos da revolução biotecnológica sobre a sociedade

em geral” (SAUWEN; HRYNIEWICZ, 1997, p. 56) é do Direito. Cabe ao Direito a análise e

a resposta final às múltiplas indagações produzidas pelas atividades biomédicas.

A Bioética propõe limites à biotecnologia e à experimentação, com a finalidade de

ver protegidas a dignidade e a vida da pessoa humana como prius sobre qualquer valor.

Porém, a norma moral é insuficiente porque, ainda que alcance a dimensão social da pessoa

humana, opera apenas no plano interno da consciência, impondo-se, portanto, um novo ramo

do dever ser, mediante o qual se regulem as relações intersubjetivas à luz dos princípios da

Bioética. Necessário, por isso, que as normas sejam jurídicas, e não somente éticas, pois

somente o caráter coercitivo daquelas impedirá ao científico sucumbir à tentação

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experimentalista e à pressão de interesses econômicos (VILA-CORO, 1995, p. 21-22).

3 QUESTÕES BIOJURÍDICAS: O BIODIREITO COMO CIÊNCIA

Quando se faz menção a reprodução artificial, manipulação de gens, transplante de

órgãos, clonagem, aborto, eutanásia, esterilização, experimentação em seres humanos,

psicocirurgia, órgãos artificiais, pré-seleção e troca de sexo, e tantos outras novidades

biotecnológicas, logo vêm à lembrança o valor do ser humano e o respeito que lhe é devido.

Essa reflexão de consciência, que delineia limites morais às investigações e práticas

biocientíficas, sem dúvida é influente na informação e na formação do Direito. Existem, no

entanto, questões essencialmente jurídicas, cuja solução não é possível limitar ao âmbito da

consciência moral de cada um.

Tomando-se por base a exemplificação já referida, problemas como determinação da

maternidade e da paternidade ante as técnicas de reprodução humana medicamente assistida,

ou sobre a proteção do patrimônio genético, ou a respeito da caracterização (ou não) dos

embriões humanos como sujeitos de direitos, somente encontrarão resposta satisfatória no

Direito, eis que ultrapassam a esfera individual, dizendo respeito a relações intersubjetivas e à

coletividade.

De igual forma, a tipificação do aborto; a eutanásia; o problema da identidade

pessoal na troca de sexo; a responsabilidade civil, penal e administrativa concernentes às

empresas de engenharia genética; e tantos outros assuntos conexos.

Ainda segundo esse ponto de vista, merece destaque o consentimento livre e

esclarecido, necessário a legitimar as mais diversas intervenções e experimentações em seres

humanos. Sob que bases ele será ou não considerado livre? Quem poderá consentir em nome

do paciente inconsciente ou incapaz? Como será efetivado tal consentimento? Quais as

conseqüências de se realizar determinada prática sem o consentimento do paciente ou de

alguém por ele?

Todas essas questões necessitam de um traço jurídico nítido, porquanto dizem

respeito às inquietudes sociais ante o crescente poder do científico sobre a vida, a identidade e

o destino das pessoas. Tais preocupações assumem caráter muito grave e sério para serem

solucionadas tão-somente a nível da consciência de cada um.

4 O BIODIREITO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

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Ideal seria que, nas relações biotecnológicas, a vontade do profissional se

convertesse na mesma vontade daquele que busca salvar-se ou curar-se. Hipoteticamente,

haveria uma vontade única sem nem mesmo a necessidade de expressá-la, mediante a qual, de

um lado, o profissional faria todo o possível para conseguir êxito, e, por outro, o paciente

daria seu consentimento orgânico, medido pela vontade inconsciente de viver (FROSINI,

1997, p. 102).

Fatos freqüentes e desastrosos mostram que a realidade se afasta desse idealismo.

Existem situações, como aquela da hemodiálise em Seattle, nas quais é possível vislumbrar

um verdadeiro conflito de vontades e de valores. Por essa razão, um problema de caráter

clínico e ético adquire, também, um caráter jurídico. Emerge, daí, a finalidade do denominado

Biodireito, qual seja a de fixar normas coercitivas que delimitem as atuações biotecnológicas,

no sentido de ver respeitada a dignidade, a identidade e a vida do ser humano. Todos esses

elementos essenciais aos seres humanos vêm claramente assegurados na Constituição da

República do Brasil.

De fato, esse respeito ao ser humano traduz o fundamento ético que requer toda

norma jurídica própria de um Estado de Direito. A Constituição de 1988 destaca-o já no seu

artigo 1º, inciso III, ao estabelecer, in verbis:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:I - a soberania;II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana;IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V - o pluralismo político.

Tendo em vista a supremacia constitucional sobre todas as demais normas jurídicas,

é de se ressaltar que todo o tecido normativo constitucional, no mesmo plano hierárquico, e

infraconstitucional, deve conformar-se e condicionar-se aos ditames da Constituição

(TEPEDINO, 1999. P 67), cujos princípios constituem o suporte axiológico a harmonizar

todo o sistema.

Interpretar o dado científico a partir de uma perspectiva integral do ser humano não

é, portanto, uma tarefa a realizar somente segundo a consciência individual daquele que

decidirá sobre o conflito existente. A dignidade da pessoa humana, como elemento fundante

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do Estado Democrático de Direito, impõe reconhecer que “a interpretação das normas

jurídicas, ainda que importe sempre na sua recriação pelo Juiz, não resta submetida ao livre-

arbítrio do magistrado ou dependente de sua exclusiva bagagem ético-cultural, encontrando-se

definitivamente vinculada aos valores primordiais do ordenamento jurídico” (TEPEDINO,

1993, p. 29).

E com a finalidade de apontar normas disciplinadoras da biotecnologia, cabe

igualmente indagar “a que” e “a quem” ela serve. “Isso tudo para que no corpo do direito não

ingresse tão simplesmente um novo estatuto do corpo humano a título de artefatos da

mercantilização, objetos de mercancia suscetível de trânsito na arena jurídica” (FACHIN,

1999, p. 232). Faz-se necessária, para tanto, uma análise cuidadosa, que possibilite delimitar

em que medida a biotecnologia é voltada ao atingimento do bem comum.

A congruência entre propósitos, meios e fins da biotecnologia com o bem comum

objetiva evitar, por exemplo, que vidas humanas sadias e vidas humanas do Terceiro Mundo

sejam ceifadas frente a vidas humanas enfermas ou vidas humanas do Primeiro Mundo1.

Busca-se evitar, coercitivamente, toda forma de instrumentalização de alguns seres humanos

em favor do interesse de outros. Esse o território do Biodireito; essa a sua preocupação; esse o

seu objeto.

Limites existem aos avanços da tecnologia biomédica. Se não circunscrita pelas

dificuldades da própria inventividade científica, suas restrições podem ser de caráter

econômico ou político. Mas o querer social, o conjunto de concepções que animam o grupo

social, impõe-lhe também limites de natureza diversa. Assim, as restrições de ordem moral,

ética e religiosa que, se por um lado impulsionam a elaboração do jurídico, por outro fazem

surgir uma espécie de resistência ao novo.

Nessa perspectiva, o Biodireito assume um posicionamento peculiar, porquanto

aquilo que ingressar no ordenamento jurídico poderá ser resultado do aceitável, do legitimado

pelo conjunto dos valores sociais (FACHIN, 1999, p. 236).

É certo que o termo Biodireito tem sido alvo de críticas, em virtude de poder ensejar

significado ambíguo. O vocábulo traria em si a noção limitada do Direito voltado à vida

(bios), dando a noção errônea de que existe Direito que não o seja. À evidência, o Direito é

sempre voltado à vida humana, porquanto sua razão de ser é o homem. Logo, Biodireito não

seria o melhor termo a exprimir a idéia que nele se deve conter. Talvez, Jusbiologia traduzisse

1Nesse sentido pronunciou-se a Professora Doutora Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira, da Universidade Estadual de Londrina-PR, no VI Seminário Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, realizado no Rio de Janeiro, em 1997.

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melhor, ou também Direito Biomédico... Fato é que o neologismo Biodireito consagrou-se. E

mais importante do que a questão terminológica é reconhecer-lhe o devido espaço como

ciência.

Tal reconhecimento implica admitir seu objeto bem definido, que é a fundamentação

e pertinência das normas jurídicas, de maneira a adequá-las aos princípios e valores relativos à

vida e à dignidade humanas trazidos pela Ética (VILA-CORO, 1995, p. 22). Isso equivale

afirmar, uma vez mais, a existência do Biodireito como novo ramo do conhecimento e sua

adequação com a Bioética.

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REFERÊNCIAS

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LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais: bioética e biodireito. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

LIMA NETO, Francisco Vieira. Responsabilidade Civil das Empresas de Engenharia Genética: em busca de um paradigma bioético para o Direito Civil. Leme: Editora de Direito, 1997.

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PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Loyola, 1996.

SÁ, Elida. Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.

SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Imaculada Concepção: nascendo in vitro e morrendo in machina. São Paulo:Acadêmica, 1993.

SAUWEN, Regina; HRYNIEWICZ, Severo. O Direito “in vitro”: da Bioética ao Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997.

SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. São Paulo: Loyola, 1996. v. 1.

TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações jurídicas privadas. In: ______. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

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VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e Direito. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1999.

VILA-CORO, Maria Dolores. Introducción a la Biojurídica. Madrid: Servicio de publicaciones facultad derecho Univerdidad Complutense Madrid, 1995.

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