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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros MABTUM, MM., and MARCHETTO, PB. Concepções teóricas sobre bioética, biodireito e dignidade humana. In: O debate bioético e jurídico sobre as diretivas antecipadas de vontade [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 17-51. ISBN 978-85-7983-660-2. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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1 - Concepções teóricas sobre bioética, biodireito e dignidade humana
Matheus Massaro Mabtum Patrícia Borba Marchetto
1 CONCEPÇÕES TEÓRICAS SOBRE BIOÉTICA,
BIODIREITO E DIGNIDADE HUMANA
Ética, bioética e dignidade humana são termos que se comple-
tam. A ética é um campo do conhecimento humano que apresenta as
dimensões territorial e espacial e se modifica de acordo com a socie-
dade objeto da análise. A bioética é uma ciência inter e multidiscipli-
nar, que aplica os fundamentos éticos às biociências. A dignidade
humana remete à aplicação de conceitos éticos e morais visando sa-
tisfazer as necessidades elementares do indivíduo. Veremos a seguir,
de modo mais extenso, cada um desses conceitos.
Bioética e sua interface com o direito e o biodireito
A bioética derivou da ética filosófica. Pode ser interpretada
como uma espécie de ética aplicada. Seu objeto de estudo e suas
reflexões foram sendo ampliados à medida que a tecnologia e a
biotecnologia foram se desenvolvendo, em especial a partir de 1970.
Assim, a bioética surge como uma ciência, e em razão da complexi-
dade da matéria abordada apresenta características interdisciplina-
res (Fernandes, 2012).
O avanço tecnológico transformou as relações humanas e an-
tigos conceitos éticos, em razão das novas realidades existentes, o
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que permitiu ao ser humano interferir diretamente na natureza e no
próprio indivíduo. Grupos que detêm o conhecimento determinam
o modo de agir e intervir na vida dos demais, com consequências
para toda a sociedade.
O primeiro estudioso a utilizar o termo “bioética” foi Fritz Jahr,
em 1927, na Alemanha, no título de um artigo de sua autoria pu-
blicado na revista Kosmos. Jahr desenvolveu a ideia de “imperativo
bioético: respeita cada ser vivo em princípio como uma finalidade
em si e trata-o como tal na medida do possível” (Fernandes, 2012).
Contudo, quem primeiro referiu-se à bioética como campo de
estudo foi o oncologista Van Rensselaer Potter, em 1970, em artigo
publicado na revista Perspectives in Biology and Medicine, que rece-
beu o nome de “Bioethics: the science of survival”. No ano que se
seguiu, esse artigo transformou-se no primeiro capítulo de seu livro
Bioethics: bridge to the future.
Potter justifica a escolha do termo, pela justaposição do radical
“bio”, que se refere aos seres vivos e às ciências biológicas, e de
“ética”, que se refere ao conjunto de valores humanos.
A complexidade é inerente à proposta bioética, uma vez que
envolve questões éticas presentes em uma coletividade heterogênea
social e culturalmente. O objetivo da bioética é analisar os dilemas
humanos no ambiente em que estão inseridos (Fernandes, 2012).
Além de ter criado o termo “bioética”, outra grande contribui-
ção de Potter foi ter percebido que o avanço das biociências, devido
ao crescente número de pesquisas que já havia naquele momento,
poderia levar a inovações prejudiciais à sobrevivência humana. Ao
mesmo tempo, eram grandes as perspectivas de suas relevantes con-
tribuições para a qualidade de vida humana, porém existia o risco
de consequências imensuráveis para os indivíduos e o ecossistema.
Outra importante contribuição para a solidificação do termo e,
principalmente, da ciência foi oferecida por André Hellegers, mé-
dico obstetra holandês, fundador do Kennedy Institute of Ethics,
que percebeu que a evolução da bioética, enquanto ciência, estava
no constante diálogo e confronto entre a ética, a filosofia e a medi-
cina, confirmando que os aspectos éticos devem ser analisados na
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prática médica. Hellegers também notou que a bioética necessitava
de uma metodologia própria, interdisciplinar, capaz de associar os
diversos ramos do conhecimento humano, com vistas a promover a
prática das pesquisas e dos procedimentos biomédicos, obedecendo
a preceitos éticos e valores morais (Sgreccia, 2009).
Desse modo, seguindo a linha de Potter, de início a bioética foi
considerada a “ciência da sobrevivência” em um sentido ecológico,
que disciplinaria a relação do ser humano com a natureza, intera-
gindo de forma harmoniosa, visando a melhoria das condições de
vida, por meio das ciências biológicas, garantindo a sobrevivência
no planeta de modo equilibrado, com o fim de preservar os ecossis-
temas existentes.
Em momento posterior, o termo passou a ser empregado para
designar a ética biomédica, a ética das ciências da vida.
Na Encyclopedia of bioethics, Reich (1978) conceitua bioética
como “[...] o estudo sistemático das dimensões morais das ciências
da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de meto-
dologias éticas num contexto multidisciplinar”.
O diretor do centro de bioética da Universidade de Montreal,
David J. Roy (1979), definiu-a como um estudo interdisciplinar
de todas as condições para que a vida humana seja administrada de
modo responsável, em razão da celeridade e da complexidade do
conhecimento e da tecnologia biomédica.
A complexidade dos temas abordados pela bioética, inseridos
em uma sociedade heterogênea, associada ao seu objetivo de solu-
cionar os dilemas humanos, fez surgir a necessidade de aglutinar
diversas disciplinas, como ética, filosofia, medicina, sociologia,
biologia, direito, economia, antropologia, para que seu fim seja
alcançado (Fernandes, 2012).
Por essa razão, a bioética e a sua conexão com o direito exigem
a utilização do método interdisciplinar, de modo a promover a
interação entre conceitos e experiências de diversas disciplinas,
estabelecer uma conjunção das diversas formas de conhecimento,
desenvolver um consenso geral entre os ramos do conhecimento
humano, ampliar os conceitos preexistentes por meio de um ca-
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minho racional, almejando retomar o pensamento humanista e
universal (Fernandes, 2012).
Atualmente, o termo bioética se refere à ética existente nas rela-
ções médicas, nas ciências da vida, na biotecnologia, na engenharia
genética, na embriologia, na ecologia e nas tecnociências. É respon-
sável por estabelecer controles éticos em temas polêmicos, como o
aborto, a eutanásia, a clonagem, a reprodução assistida, a eugenia,
técnicas de biologia molecular com utilização de DNA (como a
transgenia), entre outros.
Segundo Clotet (2003), “bioética é uma ética aplicada, que se
ocupa do uso correto das novas tecnologias na área das ciências
médicas e da solução adequada dos dilemas morais por elas apre-
sentados”, ou ainda, de acordo com Potter (1988), “bioética é uma
nova ciência ética que combina humildade, responsabilidade e uma
competência interdisciplinar, intercultural e que potencializa o
senso de humanidade”.
Para Marchetto (2010), é muito importante identificar o objeto
de análise da bioética, pois o estudo bioético é desenvolvido para
tutelar a vida e o modo de viver. Este, inclusive, para a bioética é
superior à própria vida, merecendo especial atenção. A qualidade
de vida deve ser preservada e defendida, pois esta é a determinação
constitucional expressa no princípio da dignidade humana, razão
pela qual o constante progresso atingido pelas ciências biológicas
deve estar sob vigilância. Afinal, proporciona melhora substancial
da qualidade de vida da população, promovendo a dignidade hu-
mana. Contudo, as preocupações não se restringem ao modo de
viver, influenciando, inclusive, o modo e a qualidade da morte.
A ética é um dos ramos da filosofia, que tem a bioética como
uma de suas derivações. Estuda as questões atreladas à vida huma-
na, e seu principal objeto de estudo é a vida, bem como a morte, por
ser esta uma consequência obrigatória da primeira (Segre, 2002).
O conhecimento jurídico e a tecnologia evoluem em modo e ve-
locidade distintos, cada qual respeitando suas características.
Acredita-se que a ética contemporânea tenha seu marco inicial na
metade do século XIX. Atualmente, algumas dicotomias estão pre-
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sentes nela, tais como o antigo formalismo e universalismo, substituí-
dos pelo indivíduo concreto, real; o racionalismo absoluto, substituído
pelo comportamento humano irracional; e a origem do ser humano,
antigamente ligada de modo direto ao transcendental, ao metafísico,
substituída pela origem própria, biológica, evolutiva (D’Assumpção,
1998).
Jean Paul Sartre (2008), principal expoente do existencialismo,
considerava que é a existência do ser a responsável pela sua essência.
O ser humano é definido pelos seus objetivos, porque assim determi-
na a natureza humana. A vontade é determinante da conduta huma-
na, e também o seu limite. A autonomia permite que a pessoa escolha
sua conduta, sem qualquer forma de submissão. Sendo assim, os
objetivos de um indivíduo vão caracterizar o que ele realmente é.
A ética e o direito se relacionam ao longo do tempo, complemen-
tam-se, e é essa relação, aliada às ciências biológicas, que conduz à
bioética da responsabilidade, decorrente de sua aplicação prática.
Ciência e tecnologia evoluem constantemente e em ritmo muito
acelerado na época atual. Esses são dois campos do conhecimento
humano que estabelecem relações um com o outro e também com
a realidade da população, influenciando seu cotidiano. A ciência se
identifica com a necessidade do ser humano de saber, compreen-
der, analisar, explicar, prever ou evitar os fenômenos da natureza,
enquanto a tecnologia surge de outra necessidade: a de buscar ou-
tros modos de satisfazer as necessidades humanas, para o que se faz
necessária a utilização de ferramentas, de conhecimentos prévios,
de recursos naturais e até mesmo de energia (Sarlet, 2007).
O avanço da ciência, em especial da biotecnologia, influencia a
vida das pessoas e gera polêmicas. Mostra-se necessário, pois, um
regramento específico, que delimite a atuação dos profissionais e
proporcione ao sujeito da pesquisa ou da intervenção informações
a respeito do procedimento a que será exposto, de suas consequên-
cias, de seus riscos e benefícios. Mais do que isso, após a análise cri-
teriosa dos dados, ele deve concordar em se submeter à intervenção,
para superar injustiças e proteger o bem jurídico mais importante:
a vida humana digna.
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É imperioso ressaltar que a bioética não tem o papel de dificul-
tar o avanço e o desenvolvimento da ciência. Ao contrário, deve
demonstrar as mínimas exigências para assegurar que esse desen-
volvimento biotecnológico, que rompe com paradigmas e valores
assegurados e reconhecidos pela humanidade, seja compatibilizado
com essa nova realidade e com os novos conhecimentos e procedi-
mentos científicos (Hironaka, 2003).
Desse modo, pode-se afirmar que a bioética nada mais é do que
a associação das reflexões morais e filosóficas a respeito da vida
como um todo e, em particular, a respeito das práticas médicas.
Aí devem ser incluídas também as pesquisas de caráter multidis-
ciplinar que envolvam as áreas da filosofia, antropologia, psico-
logia, sociologia, teologia, medicina, genética, farmácia, biologia,
ecologia, política, direito e todas as demais que busquem oferecer
soluções para problemas individuais ou metaindividuais relativos à
genética, biotecnologia, biologia molecular, medicina, embriologia,
bem como aos demais temas que envolvam o ser humano, como
objeto ou destinatário do estudo que verse sobre a saúde, a vida, a
qualidade de vida, a morte, a qualidade de morte, a personalidade,
a identidade e a integridade psicofísica, por meio de uma análise e
tutela ética. O direito é a ciência responsável por estabelecer limites
aos avanços biotecnológicos, impondo barreiras capazes de salva-
guardar os direitos fundamentais dos indivíduos, preservando-os,
inclusive, para as gerações futuras. A bioética pode ser considerada
o estudo da moral, inserida na conduta humana, na área das ciên-
cias biológicas, analisando a licitude das condutas e a possibilidade
técnica e científica dos procedimentos (Diniz, 2002).
A bioética é a uma arma importantíssima na luta pela valori-
zação da vida humana, da sua dignidade, da liberdade, frente ao
biopoder, impedindo a eugenização e a coisificação do ser humano.
São inevitáveis os debates científicos, políticos e jurídicos que a
envolvem, uma vez que se encontra em constante transformação,
especialmente nos dias atuais, com temas que envolvem ideologias,
com valores e identificação cultural (Lucrezi, 2010).
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As suas preocupações principais são: a prudência no agir hu-
mano; a postura ética como base para a conduta de usuários e pro-
fissionais biomédicos; os critérios jurídicos que salvaguardem a
liberdade humana, a dignidade, a segurança e o bem-estar social.
Os direitos humanos são direitos históricos, que originalmen-
te a doutrina dividiu em três dimensões. A primeira dimensão
é caracterizada por direitos que fundamentam a liberdade; a se-
gunda, por direitos que fundamentam a igualdade; a terceira, por
direitos que fundamentam o ideal de solidariedade ou fraternidade
(Bobbio, 1997).
Anteriormente, os direitos humanos eram conhecidos como di-
reitos do homem, pois são inerentes à natureza humana, referentes
a qualquer representante da espécie, não constituindo privilégio de
um indivíduo ou grupo determinado (Comparato, 2010).
O avanço do conhecimento humano fez surgir práticas e pro-
dutos que alteraram a vida humana e não estão contemplados em
nenhuma das tradicionais dimensões mencionadas.
A sociedade passou a evoluir em um ritmo acelerado, com alte-
ração de paradigmas e de práticas científicas e tecnológicas. Nesse
contexto, surgiram os direitos humanos de quarta dimensão, que
fundamentam especificamente a evolução biotecnológica e a regu-
larização das modificações derivadas dessa nova realidade.
Os direitos de quarta dimensão são o direito à informação, à
democracia e ao pluralismo, e depende deles a consolidação de uma
sociedade próspera, futurista e universal (Bonavides, 2007).
Atualmente, as discussões sobre o início e a terminalidade da
vida, além de manipulação genética e biotecnologia, inserem-se no
rol dos direitos humanos de quarta dimensão, uma vez que impli-
cam o respeito aos preceitos éticos e jurídicos.
Os problemas decorrentes da evolução biotecnológica devem ser
tutelados pela ordem jurídica, e para isso é imperioso estabelecer li-
mites às novas práticas médico-hospitalares, para o desenvolvimen-
to de pesquisas e a utilização dos dados obtidos (Lima Neto, 1998).
A liberdade do avanço científico é relativa, já que pode colidir
com outros valores extremamente relevantes, tais como a dignidade
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humana, a integridade física e psíquica ou a própria vida. Todos
esses bens jurídicos são protegidos juridicamente, o que denota
um conflito de valores. Daí a necessidade de regulamentar práticas
dessa natureza, por meio de um regramento próprio, que reconheça
as características especiais que envolvem o conflito entre avanço
biotecnológico e direitos fundamentais.
Sempre se busca a regulamentação da lei, porque ela é instru-
mento pelo qual os valores são preservados. A ciência jurídica é res-
ponsável por organizar a conduta de cada indivíduo, desse modo o
direito desempenha a função de organizar as liberdades e promover
a educação a valores relevantes (Leite, 1998).
Diante de tais necessidades, surgiu o biodireito, conceituado
por Jussara Suzi de Assis Borges Nasser Ferreira (1998-1999) como
o conjunto de normas esparsas que visa regular as práticas e intera-
ções entre as biociências e as biotecnologias, objetivando preservar
a dignidade humana e a integridade física e moral expostas ao pro-
gresso, o qual promove conquistas científicas que podem beneficiar
ou não a vida humana.
Para que a ordem jurídica consiga promover essa tutela, é impe-
rioso que seus preceitos sejam associados aos princípios bioéticos
e aos direitos fundamentais, estabelecendo assim o regramento do
biodireito.
A transição da bioética, que já foi efetivada, para um novo
ramo da ciência jurídica, conhecido como biodireito, não é tarefa
fácil, exige grande reflexão e ponderação dos valores envolvidos.
O biodireito não pode ser reduzido apenas à função instrumental.
Deve-se dar a ele maior amplitude, sem deixar de tutelar interesses
específicos (Barboza, 2000).
A bioética é precedente, pois permitiu o desenvolvimento do
biodireito e simultaneamente auxilia o desenvolvimento de sua
práxis, ao estabelecer parâmetros concernentes à realidade. Bioética
e biodireito visam a tutela dos direitos humanos fundamentais,
porém por meio de abordagens distintas, mas que se complemen-
tam axiológica e socialmente (Sá, 2009).
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Acredita-se que o biodireito tenha surgido no ano de 1969, por
meio da atuação do filósofo Daniel Callahan e do psiquiatra Wilard
Gaylin, que receberam denúncias de abusos em pesquisas envol-
vendo seres humanos. Após tomarem ciência das violações, leva-
ram os fatos ao conhecimento da comunidade acadêmica, surgindo
então as primeiras reflexões nesse sentido.
Inegavelmente, o desenvolvimento biotecnológico e da ciência
médica fez surgir inúmeros fatos e práticas até então inimagináveis,
que passaram a ser fruto de questionamentos de natureza ética
e jurídica. O biodireito derivou da preocupação dos operadores
das ciências biológicas com as consequências éticas e jurídicas de
suas condutas (Sá, 2009). Trata-se de uma disciplina que apresenta
diversas faces, como a preocupação com a vida, o nascimento, o
desenvolvimento e a transformação do ser humanno, as relações in-
tersubjetivas e a relação entre saúde e doença, bem como as relações
entre o indivíduo e o meio ambiente (Parise, 2003).
Há normas com conteúdo afeito ao biodireito na Constituição
Federal, responsável por reconhecer e efetivar as garantias e os di-
reitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a priva-
cidade, a saúde e a própria vida humana. Isso também ocorre com o
Código Civil, ao dispor sobre os direitos de personalidade, com nor-
mas que regulam desde o nascimento com vida, disposições sobre
o próprio organismo, o nome, a condição sexual e todas as outras
condições referentes ao ser humano que se estendem ao longo da sua
vida e continuam após a morte. As normas penais, responsáveis por
aplicar sanções no caso de infrações como a violação à integridade
física, psíquica e moral de outrem, ou em casos mais extremos, em
que é dado fim à vida humana, também não podem ser esquecidas.
O biodireito percorre, portanto, um caminho estreito que baliza
o confronto entre o respeito às liberdades individuais e a proibição
de abusos contra o indivíduo ou de toda a espécie humana (Sauwen,
1997).
Maria Cristina Couto Scofano (2006) esclarece que o biodireito
é um dos ramos do direito mais afeito a mudanças, além de estabe-
lecer relações diretas com outros ramos do conhecimento humano,
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contudo não deve basear-se em fundamentos antigos, mas buscar
novos horizontes, por meio de uma visão ampla e complexa da
realidade. Deve ter características pluralistas, promovendo a justiça
real ante o impacto das mudanças. A evolução biotecnológica gera
modificações, e o direito é o responsável por estabelecer o equilíbrio
nas relações humanas.
André-Jean Arnaud (1999) define biodireito como um ramo
do direito que se ocupa da teoria, do conjunto de leis e da jurispru-
dência referentes à relação entre a conduta humana e as normas
que a regulam frente aos avanços da ciência médica, biológica e
biotecnológica.
Maria Helena Diniz (2002) conceitua biodireito como o estudo
jurídico que tem como fontes imediatas a bioética e a biogenética,
cujo objeto principal é a vida. Estabelece que o avanço científico
não pode superar os princípios éticos e jurídicos, nem permitir
violações à dignidade humana, ou mesmo modificar o futuro da
humanidade, sem obedecer aos limites jurídicos.
A bioética e o biodireito são institutos distintos e complemen-
tares. O biodireito auxilia nas discussões sobre bioética e biomedi-
cina, cabendo à comunidade jurídica, à comunidade acadêmica e à
sociedade cumprir as determinações legais, os princípios normati-
vos, os direitos e as liberdades fundamentais e os direitos humanos,
que são a pedra angular do Estado democrático de direito.
A bioética principialista inspirada pelo Belmont Report
A evolução da bioética recebeu grande contribuição da família
Kennedy, que percebeu a necessidade de financiar pesquisas com
pessoas portadoras de necessidades especiais, em razão de doença
mental congênita. Essa pesquisa serviu de estímulo para a criação de
um instituto voltado para a fisiologia da reprodução e para a bioética,
dando origem, em 1971, ao The Joseph and Rose Kennedy Institute
for the Study of Human Reproduction and Bioethics. Posteriormen-
te, em 1979, a instituição foi anexada à Georgetown University e pas-
sou a ser denominada Kennedy Institute of Ethics (Sgreccia, 2009).
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O Kennedy Institute of Ethics, por meio de suas pesquisas,
aproximou a bioética das condutas médicas, contribuindo de modo
determinante para o desenvolvimento dessa nova ciência.
Importantes pesquisadores tiveram produção associada ao Ken-
nedy Institute of Ethics, em especial a obra de T. L. Beuchamp e J.
F. Childress, autores de Principle of biomedical ethics, fundamental
para o principialismo bioético, como será demonstrado.
O desenvolvimento da bioética como ciência fez surgir a neces-
sidade de elencar os princípios fundantes desse novo ramo do co-
nhecimento humano. Preocupado com essa questão, entre os anos
de 1974 e 1978, o Congresso norte-americano instituiu a National
Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical
and Behavioural Research com o objetivo de superar conflitos éti-
cos e descrever quais princípios norteariam as pesquisas e os proce-
dimentos envolvendo seres humanos. Como resultado do trabalho
dessa comissão, foi apresentado o relatório denominado Belmont
Report, que estabeleceu que a bioética deve se pautar em três prin-
cípios fundamentais que valorizam a pessoa humana, surgidos com
base nas necessidades individuais e na natureza humana: justiça,
beneficência e autonomia (Sgreccia, 2003).
O princípio da autonomia estabelece que a vontade do paciente
deve ser respeitada pelo profissional da saúde, assim como as suas
convicções existenciais, como religião e valores morais. Também
deve ser respeitada sua intimidade, devendo-se levar em conta suas
intenções com o tratamento, sem fazer uso de meios que lhe provo-
quem constrangimentos.
A autonomia consiste na capacidade do indivíduo de atuar de
modo independente, com conhecimento, sem influência ou coação
externa. Em razão desse princípio, surge a obrigatoriedade da ma-
nifestação do consentimento livre e informado (Diniz, 2002).
Pode-se afirmar que o respeito à pessoa, a suas convicções, seus
valores morais e suas crenças é parte integrante da autonomia, que
só pode ser exercida em um ambiente livre de intromissão. Deve-se
agir de modo consciente, sem sofrer qualquer espécie de constrição.
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A autonomia pode ser considerada mais do que um princípio,
mas um verdadeiro estatuto bioético, pois na sua ausência todos os
demais princípios estariam mitigados, visto que a liberdade é o ele-
mento mínimo para qualquer conduta lícita. Baseia-se no primado
da moralidade e do respeito mútuo.
O princípio da beneficência consiste na busca pelo bem-estar
sem causar danos à saúde física e mental do paciente. Baseado nos
ensinamento de Hipócrates, estabelece que todos os tratamentos
devem ser usados para a cura da enfermidade, nunca para causar-
-lhe outro mal ou dano. A beneficência é uma ação feita para o
benefício de outrem, para proporcionar-lhe o maior bem possível,
sem causar-lhe mal.
O benefício deve ser o objetivo de toda pesquisa e de todo pro-
cedimento que envolva seres humanos. Não há razão para dispor
de recursos técnicos, científicos ou monetários a não ser para pro-
porcionar benefícios ao indivíduo. Não praticar um malefício não
é suficiente. Deve-se promover algum ganho na qualidade de vida.
Todavia, prevenir ou evitar um mal futuro é sinal de respeito ao
princípio da beneficência.
O benefício implica a consecução do seu fim, que é alcançar
efetivamente um bem. No caso da benevolência, basta o desejo
ou a intenção de obter um resultado favorável (Sgreccia, 2009).
Por isso, o termo “benefício” é considerado mais adequado do que
“benevolência”, também comumente usado.
O princípio da justiça consiste na máxima aristotélica de tratar
igualmente os iguais, com imparcialidade, com proporcionalidade
na distribuição dos tratamentos. Deve existir uma relação equâni-
me nos riscos, nos encargos e nos benefícios no tratamento da saúde
do paciente.
Tratamento igualitário significa disponibilizar a prática dos
resultados das pesquisas em favor da sociedade, distribuir as ver-
bas disponíveis para pesquisa de modo justo, a fim de assegurar
sua realização e o aprimoramento do conhecimento científico. A
evolução biotecnológica possibilita que novos procedimentos sejam
desenvolvidos, o que amplia as perspectivas de melhoria das con-
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dições de vida da população. Assim, esses procedimentos devem
estar ao alcance daqueles que deles necessitam.
O princípio da justiça não defende que todos sejam tratados de
modo idêntico, mas aqueles que possuem as mesmas necessidades
devem receber as mesmas oportunidades. A ciência evolui com o
fim de promover a melhoria da qualidade de vida da população,
e não é correto eleger um grupo para ser o destinatário único dos
melhoramentos conquistados.
Os benefícios devem ser distribuídos de modo equânime, sem
que haja qualquer espécie de discriminação ou favorecimento, e as
melhorias devem ser promovidas de modo impessoal.
Posteriormente, esse rol de princípios foi ampliado. Em 1979,
Tom L. Beauchamp e James F. Childress (2009) publicaram a obra
Principles of biomedical ethics, na qual foi incluído um novo princí-
pio, denominado de não maleficência. Este princípio consiste em
não cometer um dano intencional e sempre levar em conta a ética
médica, podendo ser considerado complementar ao princípio da
beneficência. Impõe ao agente o dever de se abster de causar ou
agravar intencionalmente a condição do sujeito da pesquisa ou do
procedimento que envolva seres humanos, afinal essa conduta lesi-
va é uma afronta à ética, à moral e à dignidade humana.
Esse conjunto de princípios, de origem norte-americana, rece-
beu o nome de principialismo e teve grande importância para os
estudiosos da bioética, servindo inclusive como paradigma ético
para todos que trabalham na área da saúde. É considerado refe-
rência prático-profissional que auxilia e justifica decisões a serem
tomadas (Sgreccia, 2009).
O avanço da bioética mostrou que essa visão principialista ne-
cessita sofrer modificações, porque há outros valores a tutelar e por
ser muito simplista e restringir uma ciência multifacetada, como a
bioética, a um diminuto grupo de princípios.
Nesse contexto, a bioética evoluiu, novas modalidades de tu-
tela passaram a ser debatidas e conquistaram espaço nessa ciência
multidisciplinar.
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30 MATHEUS MASSARO MABTUM • PATRÍCIA BORBA MARCHETTO
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos: um modo mais humano de interpretação
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (Unesco) percebeu a necessidade de elaborar um docu-
mento para normatizar as condutas sobre bioética e direitos huma-
nos em âmbito universal.
A ideia foi apresentada na Mesa Redonda de Ministros da Ciên-
cia sobre Bioética, em outubro de 2001. Na mesma oportunidade,
foi ratificada, e o diretor-geral da Unesco foi convidado a elaborar
um estudo técnico que demonstrasse a viabilidade de uma normati-
va universal sobre bioética.
O International Bioethics Committee (IBC) foi incumbido de
realizar o estudo, e no período de dois anos ocupou-se da tarefa que
lhe foi confiada. Em 2003, apresentou o relatório final, concluin-
do ser viável a elaboração do documento universal sobre bioética,
conclusão que em seguida foi confirmada pelo Intergovernmental
Bioethics Committee (IGBC) (Unesco, 2005).
Posteriormente, o IBC elaborou uma versão preliminar do
texto, estruturada em três fases: consulta ampla acerca dos objetivos
e da estrutura da normativa aos principais atores (estados, comitês
nacionais de bioética, organismos intergovernamentais, organiza-
ções não governamentais e especialistas nacionais); elaboração de
um documento preliminar, baseado nas consultas; elaboração do
texto definitivo, com o auxílio de peritos governamentais.
Outras agências das Nações Unidas também auxiliaram na ela-
boração das consultas. A Unesco ainda organizou conferências com
diversos especialistas em muitos países, como Argentina, Coreia do
Sul, Holanda, Indonésia, Portugal, Rússia e Turquia, entre outros.
Com o término das consultas e a elaboração do documento pré-
vio da normativa, após diversos encontros e consultas internas,
nacionais e internacionais, o instrumento preliminar da Declaração
foi elaborado.
A Unesco determinou a realização de duas reuniões, com pe-
ritos indicados pelos países membros. Elas aconteceram em 2005,
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O DEBATE BIOÉTICO E JURÍDICO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DA VONTADE 31
sendo que a segunda contou com a participação de especialistas
de noventa países, o que culminou com a adoção da Declaração
Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) (Unesco,
2005).
A Universal Declaration on Bioethics and Human Rights teve
sua elaboração marcada por um exaustivo debate. Seu texto con-
tém vinte e oito artigos, estruturados em seis partes, divididas em:
Preâmbulo, Disposições gerais, Princípios, Aplicação dos princí-
pios, Promoção da declaração e Disposições finais.
A Declaração é um documento de conteúdo principiológico que
estabeleceu as linhas mestras dentro das quais será lícito aos países
definir normas que versem sobre questões bioéticas.
O texto apresenta cláusulas gerais, que conferem ao intérprete
a missão de adequar a norma à realidade, e ao aplicador, a de de-
limitar seu verdadeiro alcance e sentido, contudo a interpretação
respeitará os limites estabelecidos pelos direitos humanos e por
valores éticos.
Para efetivação do conteúdo desses princípios, é fundamental
que o intérprete seja dotado de valores humanísticos, pois desem-
penha função essencial para o sucesso da Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos.
Os princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos e sua relação com a Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde
O respeito ao ser humano é a essência da Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos e se manifesta nestes quinze
princípios que a compõem: dignidade humana e direitos huma-
nos; benefícios e danos; autonomia e responsabilidade individual;
consentimento; pessoas incapazes de consentir; respeito pela vul-
nerabilidade humana e sua integridade pessoal; vida privada e con-
fidencialidade; igualdade, justiça e equidade; não discriminação e
não estigmatização; respeito pela diversidade cultural e pelo plura-
lismo; solidariedade e cooperação; responsabilidade social e saúde;
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32 MATHEUS MASSARO MABTUM • PATRÍCIA BORBA MARCHETTO
compartilhamento dos benefícios; proteção das gerações futuras;
proteção do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade (Unes-
co, 2006).
No Brasil, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), em sua 240a
Reunião Ordinária, realizada no mês de dezembro de 2012, apro-
vou a Resolução n. 466/2012, que foi publicada em 13 de junho de
2013 no Diário Oficial da União. A resolução versa sobre pesquisas
e testes em seres vivos e substituiu a Resolução n. 196/1996, a pri-
meira a tratar o tema.
A resolução estabelece diretrizes éticas e científicas semelhan-
tes àquelas abordadas na Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos, incorporando referenciais bioéticos relevantes,
como a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a equidade,
dentre outros, cujo escopo é assegurar os direitos dos sujeitos da
pesquisa (Conselho Nacional de Saúde, 2014).
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos foi
determinante para a elaboração da Resolução n. 466/2012, que
aborda no item III os aspectos éticos da pesquisa, enquanto o di-
ploma internacional faz referência à dignidade humana e aos direi-
tos humanos, o que demonstra a preocupação desse instrumento
normativo com relação às garantias e às liberdades fundamentais,
em sua totalidade. Mais que isso, visa assegurar que os interesses
do indivíduo e o seu bem-estar tenham prioridade em relação ao
interesse exclusivo da ciência ou da sociedade.
A Declaração também busca assegurar que os benefícios dire-
tos e indiretos devem ser maximizados. Este princípio é uma níti-
da herança dos ensinamentos conquistados por meio do Belmont
Report, em clara alusão ao princípio da beneficência, igualmente
reconhecido no item V da Resolução n. 466/2012. Contudo, não
basta a existência de benefícios. É fundamental a minimização de
qualquer dano possível, em especial quando advém da aplicação
e do avanço do conhecimento científico, ou mesmo de práticas
médico-hospitalares, bem como de tecnologias associadas, outra
evidente referência ao principialismo bioético e ao princípio da não
maleficência.
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O DEBATE BIOÉTICO E JURÍDICO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DA VONTADE 33
O indivíduo é o principal ator nas relações bioéticas e jurídicas
e, por essa razão, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos impõe que a autonomia deve ser respeitada. A pessoa
será livre para decidir sempre que sua responsabilidade individual
puder ser considerada e sua conduta individual respeitar a autono-
mia dos demais. Aqueles que não são capazes de exercer sua auto-
nomia devem receber proteção, por meio de medidas especiais, para
garantir seus direitos e interesses.
A autonomia do indivíduo só pode ser respeitada quando qual-
quer procedimento médico preventivo, diagnóstico ou terapêutico
é antecedido por uma manifestação de vontade, por um consenti-
mento livre e esclarecido dele. Para que o consentimento seja váli-
do, é fundamental que a informação seja adequada, pois só assim o
sujeito será capaz de consentir.
O indivíduo pode manifestar seu consentimento ou retirá-lo
a qualquer momento, independentemente de justificativas, sem
sofrer qualquer prejuízo ou preconceito em razão de sua atitude.
Esse princípio comporta exceções apenas quando os fatos con-
cretos exigem sua relativização. A conduta deve seguir os padrões
legais e éticos impostos pela sociedade local e estar em comunhão
com as disposições da Declaração e com os direitos humanos.
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos
dispôs sobre os indivíduos incapazes para consentir, hipótese em
que deve haver especial proteção à autorização, que deve ser ob-
tida vislumbrando o real e melhor interesse do sujeito, respeitan-
do a legislação nacional. Dentro dos limites de sua capacidade, o
indivíduo que será exposto à prática médica ou à pesquisa deverá
participar do processo de decisão sobre consentimento, bem como
de sua retirada.
A autonomia também recebeu atenção especial na Resolução
n. 466/2012, que dedicou o item IV ao termo de consentimento
livre e esclarecido, com todas as suas particularidades, inclusive
com referência aos indivíduos incapazes para consentir, inovando
ao reconhecer, no item c.2, a diretiva antecipada de vontade como
modalidade de consentimento livre e esclarecido.
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34 MATHEUS MASSARO MABTUM • PATRÍCIA BORBA MARCHETTO
O respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade indi-
vidual também mereceu especial atenção do diploma internacional,
que prescreveu que a vulnerabilidade humana será considerada na
aplicação do conhecimento científico, das práticas médicas e de
tecnologias associadas, bem como no seu desenvolvimento.
Pessoas ou grupos de vulnerabilidade específica são merecedo-
res de proteção, referente à integridade individual, ou às necessida-
des específicas de cada grupo.
Todo sujeito exposto à prática médica ou à pesquisa deve ter sua
privacidade e a confidencialidade das informações respeitadas. As
informações não devem ser utilizadas para fins diversos daqueles
para os quais foram coletadas de modo consentido, nem reveladas
para terceiros que não participam do processo, com respeito à legis-
lação e aos direitos humanos.
Outra evidente homenagem da Declaração Universal ao Bel-
mont Report é a preocupação em defender a igualdade, a justiça e
a equidade.
Não existe dignidade ou ordem jurídica sem a prescrição e a
busca pela efetivação da igualdade fundamental entre as pessoas.
Todos merecem ser tratados de forma justa e equitativa.
O diploma internacional prevê a não discriminação e a não estig-
matização, pois nenhuma razão é capaz de ensejar a discriminação
ou a estigmatização de uma pessoa ou de um grupo. Essa conduta
é uma evidente afronta à ordem jurídica, aos direitos humanos, às
liberdades fundamentais e à dignidade humana.
O respeito pela diversidade cultural e pelo pluralismo recebeu
da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos a neces-
sária consideração. Contudo, a diversidade cultural e o pluralismo
não podem ser instrumento de violação de liberdades fundamentais,
da dignidade humana e dos direitos humanos.
O diploma universal estabeleceu que a solidariedade humana e
a cooperação internacional devem ser estimuladas e seu desenvolvi-
mento deve ser incentivado.
A responsabilidade social e a promoção da saúde são defendidas
pela Declaração por acreditar-se que esses elementos devem ser o
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O DEBATE BIOÉTICO E JURÍDICO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DA VONTADE 35
fim do Estado, em comunhão com o desejo da sociedade, pois são
direitos fundamentais de todo ser humano, independentemente de
etnia, inclinação política, credo ou condição socioeconômica.
O desenvolvimento biotecnológico deve promover a acessi-
bilidade aos cuidados de saúde de modo integral, pois a saúde é
essencial à vida. Constitui um bem social, além de ser considerada
um direito fundamental.
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos
se preocupa com o compartilhamento de benefícios, o que pode
ser considerado uma extensão dos princípios da beneficência e da
justiça, previstos no principialismo bioético. Esse princípio prevê
que os benefícios adquiridos por meio de pesquisas sejam compar-
tilhados com a toda a sociedade, promovendo o acesso aos cuidados
de saúde, novas modalidades diagnósticas e terapêuticas ou de pro-
dutos, de serviços de saúde.
A proteção às gerações futuras é outra importante preocupação
da Declaração Universal. Afinal, o desenvolvimento das biociên-
cias produz impacto sobre a vida das futuras gerações, influen-
ciando inclusive sua constituição genética, razão pela qual merece
proteção.
O último princípio elencado na Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos é a proteção do meio ambiente, da
biosfera e da biodiversidade. Esta proteção diz respeito à íntima
relação que existe entre o ser humano e as demais formas de vida.
O indivíduo não existe isoladamente. É imprescindível à vida hu-
mana a utilização dos recursos biológicos, e para isso a biosfera e a
biodiversidade obrigatoriamente precisam ser preservadas.
Princípio da dignidade da pessoa humana
O respeito à dignidade da pessoa humana é tema de grande im-
portância para o direito e a bioética, bem como para a própria vida e,
por que não?, para a morte digna. Vamos analisar a validade do em-
prego de técnicas científicas para o prolongamento artificial da vida,
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fornecendo uma contribuição jurídica e uma reflexão sobre a impor-
tância dessa valiosa garantia constitucional.
O termo “pessoa” possui diferentes acepções, nas diferentes
áreas do conhecimento. No sentido técnico-jurídico, refere-se a
todo ser capaz de contrair obrigações, sujeito de direitos e deve-
res, diferenciando-se de coisa, que é o objeto da relação jurídica.
O indivíduo apenas se torna pessoa por meio da investidura da
personalidade (Silva, 1991). A Magna Carta, ao definir o princípio
da dignidade da pessoa humana, atribuiu o valor semântico de ser
humano ao vocábulo “pessoa”, não o sentido previsto na lei civil,
restrito apenas aos indivíduos capazes de contrair obrigações. O
art. 2o afirma que a personalidade tem início com o nascimento com
vida, e o ordenamento jurídico garante os direitos do nascituro. O
exercício desses direitos está subordinado a uma condição: o nasci-
mento com vida (Monteiro, 2001).
A Constituição Federal é ainda mais abrangente: ao tutelar a
dignidade da pessoa humana, estende sua proteção a toda a huma-
nidade, tenha o indivíduo personalidade, adquirida pelo nascimen-
to com vida, seja o nascituro, cujos direitos apenas serão exercidos
após o seu nascimento com vida.
A fonte ética dos direitos, das liberdades e das garantias pessoais,
sociais, culturais e econômicas é a dignidade de todas as pessoas. O
ser humano está inserido em um mundo plural, que sofre constan-
tes mutações e conflitos, cujos interesses e desafios são antagônicos.
Sendo assim, somente por meio da dignidade da pessoa humana é
possível estabelecer as ponderações necessárias ao equilíbrio dos
diferentes interesses (Miranda, 2003).
O princípio da dignidade da pessoa humana não possui um con-
ceito fixo e definitivo, uma vez que pode ser considerado uma ca-
tegoria axiológica aberta a diversas interpretações e conceituações
(Sarlet, 1998).
A impossibilidade de fixar esse conceito decorre do fato de que a
dignidade da pessoa humana não constitui somente um direito sub-
jetivo, mas trata-se de uma qualidade inerente ao ser humano e uni-
versal, que independe de fatores externos, sociais ou geográficos,
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O DEBATE BIOÉTICO E JURÍDICO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DA VONTADE 37
tais como etnia, condição socioeconômica, condição sexual, idade
ou qualquer outro. A dignidade não surge em razão da ordem jurí-
dica, esta apenas a reconhece e protege contra violações de qualquer
natureza (Novelino, 2008).
O princípio da dignidade da pessoa humana pode ser conside-
rado o núcleo axiológico constitucional. Influenciou todo o ordena-
mento jurídico, com seus valores e efeitos. Segundo esse princípio,
o ser humano deve ser respeitado, acima de todos os outros interes-
ses. Protegê-lo é a razão primordial do Estado e do direito (Sarmen-
to, 2002).
Desse modo, a dignidade da pessoa humana deve ser conside-
rada como o principal valor humano e deve contagiar todas as de-
mais normas do ordenamento jurídico, sem distinção de qualquer
natureza entre os indivíduos. Como é a mesma em todos os lugares
e para todas as pessoas, cabe ao ordenamento jurídico promovê-la,
tutelá-la e garantir sua efetivação por meio de normas jurídicas
infraconstitucionais (Novelino, 2008).
A dignidade humana, valor essencial da pessoa no plano jurídi-
co, pode ser considerada a razão de diversos direitos fundamentais,
como o próprio direito à vida, assim como o direito à liberdade,
à igualdade, à integridade física e psíquica. Para que o ser huma-
no exerça sua cidadania, é preciso que suas necessidades mínimas
sejam satisfeitas. As condições elementares para o equilíbrio físi-
co, mental e social devem ser garantidas. Esse direito ao mínimo
existencial não constará expressamente na ordem jurídica cons-
titucional, mas deve ser reconhecido e tutelado, porque é o cerne
dos direitos fundamentais e seu conteúdo diz respeito às condições
mínimas para a vida humana. A dignidade humana não pode ser
conceituada ou mesmo elencada em um rol de direitos, em razão de
sua mutabilidade temporal e geográfica (Barroso, 2010).
Flávia Piovesan (1999) assevera que toda Constituição deve
ser interpretada como um conjunto unitário que traz consigo um
sistema normativo no qual determinados valores devem receber
tratamento diferenciado. Assim acontece com relação à dignidade
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humana, pois se trata de um valor supremo e fundamental, capaz de
conferir uma feição particular à ordem constitucional e conteúdo
axiológico ao sistema jurídico.
Ingo Sarlet (2007) define a dignidade da pessoa humana como
uma qualidade inerente e diferenciadora dos seres humanos, a razão
pela qual o indivíduo se torna merecedor de respeito e consideração
da comunidade em que está inserido e do Estado. Essa condição
especial tem como consequência o surgimento de um complexo de
direitos fundamentais, decorrentes de suas necessidades básicas
e seus deveres, capaz de tutelar o indivíduo contra condutas de-
gradantes, tratamentos e situações desumanas, garantindo-lhe as
necessidades mínimas para uma vida saudável.
Barroso (2003) conceitua a dignidade da pessoa humana como
um conjunto de valores que auxiliam no processo de civilização e
humanização. A dignidade tem seu conteúdo jurídico conectado
aos direitos fundamentais e caracterizado por elementos indivi-
duais, políticos e sociais. Seu componente essencial é representado
pelo mínimo existencial, correspondente às necessidades elemen-
tares, em referência às condições de subsistência física e material
indispensáveis ao exercício da liberdade e da vida, distinta da mera
sobrevivência.
Flávia Piovesan (2003) salienta que a dignidade da pessoa hu-
mana é um valor que constitui o elemento nuclear básico do orde-
namento jurídico e auxilia na hermenêutica constitucional. Pode ser
considerado um superprincípio constitucional, uma regra anterior
e superior ao próprio ordenamento contemporâneo, proporcionan-
do-lhe um sentido especial, unitário e racional.
A dignidade da pessoa humana pode ser considerada o auge
axiológico da Constituição Federal, que é o âmago da tutela jurí-
dica, o que demonstra a importância da efetividade desse princípio
(Alvarenga, 2012).
Sem essas garantias, a pessoa perderia a condição de ser humano
e se tornaria um animal como outro qualquer, à mercê da natureza.
Por possuí-las, torna-se responsável pela promoção da participação
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ativa nos destinos da existência humana e da vida com os demais
seres humanos com os quais se relaciona, sendo ainda corresponsá-
vel por essa participação e pela promoção social.
Nas lições de Kant, quando se analisam as finalidades, qualquer
atuação apresenta um custo, mas também uma dignidade. Se al-
guma coisa tem um valor, pode ser substituída por qualquer outra
coisa que apresente um valor similar. Todavia, quando uma coisa
é valorada em parâmetros superiores a todas as outras que lhe são
semelhantes, acima de qualquer preço, não existe a possibilidade
de encontrar um equivalente para ela. Nessa situação, é possível
afirmar que possui dignidade. É isso que ocorre quando o objeto
de análise é o direito à vida, à integridade física e psíquica, à honra,
à privacidade e a tantos outros direitos considerados essenciais.
Na ausência de reconhecimento desses direitos mínimos, não há a
concretização da dignidade humana. Eles são tão importantes que
não é permitido ao indivíduo dispor deles. Se isso acontece, a con-
sequência lógica é a redução de sua condição humana (Kant, 1986).
A dignidade humana percorre integralmente o ordenamento ju-
rídico e impõe à hermenêutica critérios de valoração. É considerada
prioridade absoluta em relação aos demais valores, ainda que neces-
site de ponderação, pois não há valor absoluto. Sempre são possíveis
limitações quando um valor fundamental se contrapõe a outro valor
também fundamental de ordem constitucional (Mendes, 2010).
O respeito à dignidade humana, posto na Constituição Federal
(Brasil, 1988) como um dos fundamentos do Estado democrático
de direito, é o âmago de todo o ordenamento jurídico pátrio.
O ser humano deve ser plenamente respeitado enquanto pessoa,
assim como sua personalidade e sua dignidade. Seu valor é superior
a qualquer outra garantia, mesmo constitucional, como o direito à
pesquisa científica ou tecnológica.
Esse é o motivo pelo qual a bioética e o biodireito combatem
condutas conflitantes com essa garantia. Se permitido, talvez o
homem fosse reduzido à condição de coisa, o que é inadmissível,
pois isso seria a negação da sua dignidade e da sua personalidade.
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Também não se devem proibir totalmente as pesquisas. A es-
tagnação tecnológica e do conhecimento geraria consequências
maléficas. O que é preciso é equilibrar e normatizar os estudos e
as pesquisas feitos no tempo presente e futuros, para evitar o des-
respeito à condição humana. O que se combate é o avanço a todo e
qualquer custo, sem um estudo prévio de suas consequências.
A dignidade não é apenas um valor moral, mas também espi-
ritual, inerente aos seres humanos. Sua manifestação está presente
sobretudo em sua autonomia, na autodeterminação consciente e
responsável no dia a dia, como imposição da vida. Todas as pessoas
devem respeitar esses valores, tidos como superiores, que consti-
tuem as condições mínimas que o sistema jurídico deve assegurar.
Esses valores superiores, essenciais, são portanto invioláveis.
Caso surja a necessidade de alguma limitação ao exercício de di-
reitos fundamentais, deve ser feita só em caso excepcional, preser-
vando o respeito a que todo indivíduo tem direito em razão de sua
condição de ser humano (Moraes, 1998).
A dignidade humana constitui o maior valor do ordenamento
jurídico. Por essa razão, atrai para si o conteúdo dos demais di-
reitos fundamentais, inclusive o direito à vida. Esse princípio foi
criado para ser “[...] referência constitucional unificadora de todos
os demais direitos fundamentais” (Canotilho; Moreira, apud Silva,
2003). Ao conceituar a dignidade da pessoa humana, deve-se inten-
sificar a valoração normativo-constitucional. Não basta limitá-la à
defesa de direitos pessoais, pois ela é muito mais ampla, abarcando
também direitos metaindividuais, como os direitos sociais.
A dignidade humana é a verdadeira garantia das condições mí-
nimas de existência humana. É o direito do ser humano de ser tra-
tado como tal, e não como um bem qualquer, como uma coisa. É o
reconhecimento da proteção superior da vida humana sobre todas
as demais.
Desse modo, mais do que uma dotação natural ou mesmo um
valor, a dignidade da pessoa humana deriva de uma formação e
desenvolvimento pessoal que tiveram êxito (Schotsmans, 2002).
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Breves comentários sobre direitos da personalidade
Os direitos da personalidade podem ser considerados cláusulas
gerais de proteção à pessoa. Não se preocupam em descrever con-
dutas, mas em estabelecer diretrizes, valores e parâmetros para
interpretação (Tepedino, 2002). O intérprete terá discricionarie-
dade quanto à interpretação, que será mais ampla quanto maior
for a imprecisão conceitual da norma a ser interpretada (Cappel-
leti, 1993). A proteção à pessoa está alicerçada em três princípios
constitucionais fundamentais: dignidade da pessoa humana, soli-
dariedade social e isonomia, ou igualdade em sentido amplo (Tar-
tuce, 2005).
O direito da personalidade não tem por objeto o sujeito que é seu
titular, ou mesmo a coletividade que integra o polo passivo de uma
obrigação passiva erga omnes, mas os bens que, em razão da valora-
ção de seus atributos e de suas qualidades, que podem ser físicas ou
morais, o tornam merecedor de individualização e proteção especial
(Tobeñas, 1952).
A pessoa merece receber prioridade de tutela, porque possui o
bem mais valioso e razão principal de proteção do ordenamento ju-
rídico. Sua posição é basilar. Está exposta a inúmeras situações exis-
tenciais, que necessitam constantemente de guarida, em especial no
caso de situações novas e inesperadas (Perlingeri, 1997).
Os direitos da personalidade têm por escopo proteger a pessoa,
em relação a qualquer outro bem material ou imaterial, ou servir
como tutela de conflitos de valores.
São direitos que se confundem com a pessoa que os possui, com
o direito ao corpo, à privacidade, à imagem, entre outros (Nunes,
2011). O corpo, embora externo, compõe o sujeito e suas particu-
laridades, portando integra a sua personalidade (Ferraz Jr., 1997).
Há um vínculo estreito entre os direitos da personalidade, os di-
reitos humanos e os direitos fundamentais, embora não sejam sinô-
nimos. Atribui-se a origem dos direitos associados à personalidade
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42 MATHEUS MASSARO MABTUM • PATRÍCIA BORBA MARCHETTO
ao início do constitucionalismo, com a promulgação das primeiras
constituições no século XIII (Amaral, 2002).
Os direitos da personalidade foram pela primeira vez positiva-
dos, de modo específico, pela Lei Romena, no ano de 1895 (França,
1968), pelo Código alemão em 1900 (Mallet, 2003) e pelo Código
Civil suíço em 1907 (Fonseca, 2006), todos com a preocupação
de tutelar o nome. O Código Civil italiano de 1942 (Cupis, 1961)
ampliou a abrangência normativa dos direitos da personalidade,
passando a tutelar o direito ao nome, ao pseudônimo, ao próprio
corpo e à imagem.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em
1948, foi outro documento essencial para a sistematização dos direi-
tos da personalidade, pois consagrou direitos fundamentais, como o
direito à vida, à saúde e ao bem-estar, à igualdade, liberdade, honra,
justiça, propriedade, liberdade de manifestação de pensamento,
liberdade religiosa, propriedade, ao sigilo, asilo, desenvolvimento
da personalidade, entre tantos outros que não foram expressamente
definidos (Nunes, 2011).
Nem todos os direitos apresentados na declaração, embora
sejam fundamentais, são direitos da personalidade. Alguns têm
conteúdo patrimonial, como é o caso da propriedade, mas a maioria
dos direitos fundamentais também são direitos da personalidade,
como o direito à vida, à saúde e ao bem-estar, à honra, à liberdade
religiosa e demais direitos inerentes à condição humana.
O respeito à dignidade da pessoa humana é condição basilar
para os direitos da personalidade. Ascensão (2006) esclarece que as
feições da dignidade são a essência dos direitos da personalidade.
Alguns direitos da personalidade apresentam características de
direito público, como os direitos da liberdade civil. Outros têm ca-
racterísticas de direito privado, porque satisfazem interesses diretos
dos sujeitos, como o direito à vida, honra, liberdade e integridade
física (Cupis, 1961).
O Código Civil brasileiro também dedicou atenção especial
aos direitos da personalidade, atribuindo onze artigos à tutela da
personalidade.
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O diploma civil afirma, inicialmente, que os direitos da per-
sonalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis.1 Eles não podem
ser afastados exclusivamente por atos da vontade (Tartuce, 2005),
mas podem ser relativizados, conforme estabelece o enunciado n.
4 da Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal.2
O direito à integridade física é garantia de proteção à vida huma-
na. Uma conduta pode atingir diretamente a unidade biológica que
compõe uma pessoa, ou atacar os aspectos que orbitam a unidade
biológica, visto que ela é um ser biopsicossocial (Cordeiro, 2007).
O Código Civil resolveu tutelar, além da integridade física, o
direito do paciente, visto como um dos direitos da personalidade, ao
estabelecer que ninguém deve ser constrangido a submeter-se, com
risco de vida, a procedimento médico-hospitalar.3
É evidente o interesse do legislador em respeitar a liberdade e a
autonomia do paciente, reconhecendo-as como direitos da perso-
nalidade. Para Carlos Alberto da Mota Pinto (2005), a liberdade é
manifestação da identidade, o reconhecimento de que um indiví-
duo é um ser humano.
A pessoa é responsável por si mesma, goza de liberdade e vonta-
de. Por meio da autodeterminação, conduz a própria vida, elegendo
os valores que lhe são mais caros e que irão nortear suas condutas
e sua escolhas, segundo uma escala de valores pessoal. Suas opções
são determinantes para a configuração da personalidade, que deve
estar em harmonia com os valores sociais e jurídicos (Sousa, 1995).
A integridade psíquica pode ser considerada o valor mais abran-
gente da personalidade. O indivíduo não pode dispor de nenhuma
1 Brasil. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. “Art. 11 – Com exceção dos
casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e
irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.”
2 Enunciado n. 4 da Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estu-
dos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “O exercício dos direitos da
personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja perma-
nente nem geral.”
3 Lei n. 10.406. “Art. 15 – Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com
risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”
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delas, salvo quando a ponderação de valores e motivos de saúde,
associados aos seus interesses, levem a conclusão contrária, permi-
tindo sua relativização, por meio de manifestação livre e consenti-
da, com o fim único de tutelar os seus interesses (Perlingieri, 1997).
Assim, o consentimento, que é manifestação autônoma da von-
tade, está vinculado aos direitos da personalidade, sendo lícita sua
relativização desde que sejam obedecidas as imposições referentes à
ponderação de valores (Nunes, 2004).
Essa é a razão pela qual o ordenamento jurídico permite a práti-
ca de intervenções médicas em pacientes. Tal prática macula a sua
integridade física e, algumas vezes, a sua integridade psíquica, to-
davia a submissão de uma pessoa à obstinação terapêutica constitui
uma afronta aos direitos da personalidade.
Não é sem propósito afirmar que a recusa a práticas médicas
fúteis seja um meio de assegurar o respeito à dignidade da humana,
que é o princípio cardeal dos direitos da personalidade.
Deliberação moral
Entende-se por deliberação de conflitos éticos a ponderação
entre valores e deveres presentes no fato concreto. Seu objetivo é
dirimir o conflito moral, por meio da dialética entre os envolvidos,
alcançando uma solução ponderada e prudente. Para tanto, não
se pretende uma solução ideal, mas razoável, distanciada da visão
idealista ou utilitarista, mas sim crítica (Zoboli, 2013).
A deliberação não é afeita à abstração. Faz a análise do problema
prático, valora com prudência as condutas, mas não trata os confli-
tos éticos como dilemas, a serem analisados em termos estatísticos,
verificando matematicamente os prós e contras de cada argumento
(Gracia, 2001).
Os profissionais devem estabelecer diálogos interpessoais, para
que ocorra o aperfeiçoamento do pensamento e seja obtida uma de-
cisão. As diferentes realidades colocadas à prova auxiliam no apri-
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moramento moral, pois o choque entre as diversas experiências de
cada envolvido possibilita uma conduta mais ampla (Pose, 2009).
Ocorre um problema ético quando dois valores morais entram
em conflito, quando dois deveres colidem, e o profissional precisa
encontrar uma solução para a situação, porém nem sempre é possí-
vel saber qual a solução mais adequada (Zoboli, 2013).
Soluções morais são uma maneira de dirimir problemas éticos,
porém a resposta não é única. Existem diversas possibilidades de
solução, de teores variados, algumas mais radicais, outras menos.
Com exceção das soluções extremas, todas as outras são conside-
radas prudentes, portanto adequadas sob o prisma da deliberação
(Pose, 2009).
A deliberação é o caminho mais sensato quando o profissional
da saúde vê-se diante de um conflito e não é possível encontrar res-
postas teóricas para o problema ético prático que enfrenta. Nessa
situação, a deliberação auxilia na busca de uma solução que, mesmo
que não seja ideal, será prudente e ponderada e, por isso, adequada
(Zoboli, 2013).
Esse procedimento pode ser utilizado com sucesso tanto no mo-
mento de comunicar uma terapia a um paciente, de informar sobre
um procedimento ou uma terapia médico-hospitalar, bem como
na tomada de decisão, em relação ao enfermo, independente de ele
aceitar ou recusar o tratamento, em relação ao médico, de modo a
respeitar a autodeterminação do paciente e adotar práticas alterna-
tivas, permeadas de valores éticos e morais.
Evolução histórica da bioética e da tutela da autonomia do paciente
A bioética tem sua origem muito ligada aos direitos dos pacien-
tes e dos sujeitos de pesquisas, os quais, por muito tempo, foram
expostos a práticas lesivas, degradantes e prejudiciais, sem que
houvesse qualquer preocupação com a sua proteção ou a garantia
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de receberem informações a respeito das práticas biomédicas a que
eram submetidos.
Apesar dessa prática, a preocupação em resguardar os direitos
fundamentais dos pacientes não é recente. Entre eles, destaca-se o
direito à informação sobre os riscos a que se expõe e sobre os pos-
síveis benefícios para só assim aceitar ou recusar um procedimento
médico-hospitalar. Mais do que esclarecer o sujeito, é necessário
que ele manifeste, de modo livre e voluntário, sua concordância,
aceitando submeter-se a uma prática médica.
Alguns dos episódios mais atrozes da história recente da huma-
nidade ocorreram entre os anos de 1939 e 1945, durante a Segunda
Guerra Mundial. Nesse período, os prisioneiros de guerra foram
recolhidos em campos de concentração e submetidos a experiências
desumanas, permeadas por sofrimento, angústia, dor, que provoca-
ram problemas mentais e físicos e, na maioria das vezes, morte, em
uma verdadeira afronta aos direitos fundamentais.
Com o término da guerra e a comoção internacional, foi criado
um Tribunal Militar Internacional, sediado em Nuremberg, para
apurar e julgar os crimes contra a humanidade perpetrados no de-
correr do evento bélico, e foi promulgado o Código de Nuremberg.
Este diploma também continha diretivas internacionais sobre a ética
em pesquisa, pois alguns médicos norte-americanos que participa-
ram da Segunda Guerra Mundial também ajudaram a elaborá-lo,
com o fim de auxiliar nos julgamentos dos crimes contra a humani-
dade pelo Tribunal Militar Internacional de Nuremberg.
Alguns direitos do paciente reconhecidos atualmente, tais como
autonomia, consentimento livre e esclarecido, constavam no di-
ploma. Contudo, os procedimentos éticos expressos no código não
foram obedecidos de imediato, pois os profissionais da saúde acre-
ditavam que as disposições nele contidas se referiam exclusivamen-
te aos crimes de guerra.
Contagiada pelos ideais éticos, em 1948 surgiu a Declaração de
Genebra, que enumerava os deveres éticos do médico quando seres
humanos fossem expostos a experimentação. Contudo, o consenti-
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mento esclarecido do paciente era facultado aos casos em que fosse
possível obtê-lo.
Foi no final da década de 1940 que a humanidade despertou
para a necessidade de estabelecer limites éticos à ciência. No mês
de dezembro de 1948, a Organização das Nações Unidas, ainda
preocupada com os malefícios causados aos cidadãos pela guerra,
elaborou um documento, a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos, cujo escopo era preservar os direitos humanos, portanto,
direitos fundamentais do indivíduo, independentemente de gêne-
ro, etnia ou origem geográfica. Esse documento tem grande reper-
cussão até os dias atuais, pois reafirmou a supremacia da defesa da
autonomia do paciente como direito inerente à condição humana.
Na década seguinte, a expressão “informed consent” (consen-
timento informado) foi empregada pela primeira vez nos Estados
Unidos. No início, foi utilizada nas pesquisas biomédicas, posterior-
mente passou a ser usada também no contexto da atuação médica.
Em 1964, a cidade de Helsinque, Finlândia, sediou um impor-
tante evento promovido pela Associação Médica Mundial, no qual
foram amplamente discutidas as diretrizes éticas internacionais
para pesquisas biomédicas envolvendo seres humanos. A deno-
minada Declaração de Helsinque foi decisiva, ao reconhecer que
o consentimento do paciente é fator preponderante na escolha da
conduta a ser adotada e dos procedimentos a serem realizados. Ao
longo dos anos, esse documento sofreu seis revisões, a mais recente
em evento sediado na cidade sul-coreana de Seul, no ano de 2008.
Com o fortalecimento da autonomia do paciente, passou-se a
analisar a autodeterminação do indivíduo, que consiste na sua ade-
são ou recusa antecipada a determinados tratamentos. Essa ideia
surgiu nos Estados Unidos, no ano de 1967, quando a Sociedade
Humana para Eutanásia discutiu a possibilidade de um termo de
consentimento prévio, denominado “living will” (testamento vital).
Nesse documento são enumeradas as condutas a que o paciente
aceita submeter-se futuramente, caso seja acometido por uma en-
fermidade terminal e incurável, irreversível, que o impossibilite de
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manifestar sua vontade. Surgiam assim as diretivas antecipadas de
vontade.
Louis Kutner, advogado e ativista dos direitos humanos, no ano
de 1969 propôs que se adotasse um documento que possibilitasse
ao paciente expressar sua vontade na hipótese de, no futuro, pade-
cer de alguma enfermidade que reduzisse a sua capacidade de ma-
nifestação da vontade, encontrando-se em estado vegetativo, sem
a possibilidade de reversão de seu quadro clínico e a retomada da
sua capacidade física e mental, caso em que se estabeleceria quais
tratamentos médicos seriam mantidos e quais seriam suspensos
(Ribeiro, 2005). Recomendou que o documento fosse utilizado
como instrumento processual de defesa, diferenciando o homicídio
privilegiado, baseado na compaixão, considerado um valor moral
relevante, e o homicídio qualificado, considerado motivo torpe.
Esse documento, além de possibilitar ao seu subscritor o direito
à autonomia e à autodeterminação, escolhendo o momento de sua
morte, permite que manifeste previamente o seu desejo de não mais
viver ao encontrar-se na situação mencionada, de modo a assegurar
que sua vontade seria cumprida.
Posteriormente, no ano de 1973, foi redigida a Carta de Direitos
do Paciente pela Associação Americana dos Hospitais. Esse docu-
mento impunha a essas instituições de saúde, bem como a outras,
que reconhecessem os direitos dos pacientes e, principalmente,
informassem a eles os direitos dos quais eram titulares.
Ainda na década de 1970, a Comissão Nacional para a Proteção
de Sujeitos Humanos em Pesquisas Biomédicas e Comportamen-
tais dos Estados Unidos começou a elaborar o Belmont Report, que
começou a valer em 12 de julho de 1974, estendendo-se até 1978,
com sua divulgação. Esse documento possibilitou a consolidação
acadêmica da bioética, assegurou ao paciente o poder de autodeter-
minação, de decisão em relação aos procedimentos a que aceitaria
submeter-se. Nele estão elencados princípios éticos fundamentais
e diretrizes que auxiliam a dirimir problemas éticos referentes à
realização de pesquisas com seres humanos, além dos princípios da
autonomia, da justiça e da beneficência.
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Os Estados Unidos, que possuem um sistema legal próprio,
permitem a cada estado editar suas próprias leis, que coexistem
com as leis federais, aplicadas a todos os estados da federação. O
estado da Califórnia, em 1976, elaborou uma lei versando sobre a
morte natural, a Natural Death Act, com vigência até 1991, ano em
que a lei federal de autodeterminação do paciente, Patient Self De-
termination Act, foi promulgada e a substituiu. Essa lei federal de
autodeterminação do paciente constitui um dos principais marcos
legislativos para o reconhecimento e a regulamentação das direti-
vas antecipadas de vontade. Sua positivação repercutiu nos meios
acadêmicos, fazendo surgir a necessidade de uma criteriosa análise
bioética acerca do instituto.
Na Europa, a Holanda se mostrou vanguardista, ao elaborar
a Declaração sobre a Promoção dos Direitos do Paciente, no ano
de 1994. Esse documento reconheceu, entre outros direitos fun-
damentais, aqueles que se referem ao consentimento da prática
de certos procedimentos médico-hospitalares, à informação e ao
esclarecimento prévios ao sujeito sobre a prática que está sendo
apresentada.
No ano de 1997, foi redigida a Carta de Oviedo, em evento rea-
lizado na cidade espanhola de mesmo nome. Também conhecido
como Convênio sobre Direitos Humanos e Biomedicina, mais uma
vez mostrou-se evidente a imperiosidade de garantir ao usuário
dos serviços médico-hospitalares o direito de aceitar ou recusar, de
consentir, de modo livre, espontâneo e esclarecido, um tratamento
ou procedimento médico-hospitalar.
O estado de São Paulo foi pioneiro no Brasil, ao promulgar uma
norma que reconhece e regulamenta os direitos de usuários dos
serviços de saúde. Ela recebeu o nome de Lei Covas (São Paulo,
1999), em homenagem ao governador acometido por uma neo-
plasia. O documento confere ao sujeito o direito de consentir ou
recusar procedimentos de modo livre, voluntário e esclarecido,
após receber informações adequadas e ser esclarecido sobre os seus
riscos e benefícios.
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No ano de 2002, a Espanha promulgou a Lei 41/2002 (España,
2002), que legalizou e regulamentou, naquele país, as diretivas
antecipadas de vontade do paciente, denominadas “instrucciones
prévias” ou “voluntades anticipadas”. A mesma lei reconhece a
necessidade de o paciente aceitar os procedimentos que ofereçam
risco potencial, manifestando sua concordância de modo livre, es-
clarecido e voluntário.
A Carta Europeia de Direitos dos Pacientes, outro importante
documento, foi elaborada também no ano de 2002, na capital ita-
liana, que sediou o evento, e, como a Declaração de Amsterdam,
reconheceu vários direitos fundamentais aos pacientes, em especial
aqueles referentes ao seu consentimento, ao seu acesso à informa-
ção, ao seu esclarecimento, à livre escolha do profissional da saúde
que auxiliará no tratamento, e concernentes ao procedimento a ser
adotado, que não deverá expor o paciente a riscos desnecessários,
nem a angústias, dores ou sofrimentos inúteis provocados pela prá-
tica médico-hospitalar.
A Unesco, no ano de 2005, divulgou o documento que recebeu o
nome de Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos,
que tem como um de seus objetivos destacar a importância da dig-
nidade da pessoa, da vida humana e das liberdades fundamentais,
promovendo-as e protegendo-as (Pessini, 2005).
O Ministério da Saúde do Brasil, no ano de 2009, editou a Porta-
ria n. 1.820/2009, instrumento que reconhece o direito do paciente
de receber informação sobre o tratamento ao qual será submetido.
Somente após devidamente esclarecido ele poderá aderir ou recu-
sar, livre e voluntariamente, a terapia proposta.
No mesmo ano, o Conselho Federal de Medicina editou a Reso-
lução n. 1.931/2009, que deu origem ao Código de Ética Médica.
Esse importante diploma, que estabelece as diretrizes éticas da
profissão, considera infração a prática da distanásia (prorrogação
do sofrimento do paciente terminal), bem como da eutanásia (an-
tecipação da morte). Aconselha que se pratique a ortotanásia, ofe-
recendo ao paciente todos os procedimentos paliativos disponíveis,
capazes de aliviar seu sofrimento.
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O Uruguai, ainda em 2009, foi outro país que legalizou as “vo-
luntades anticipadas” (diretivas antecipadas de vontade), por meio
da Lei n. 18.473/2009, como já haviam feito outros países, como
Grã-Bretanha, Portugal, Alemanha, Holanda, França, Espanha,
Bélgica e Estados Unidos. As “instrucciones previas” (testamento
vital), denominação que o instituto recebeu no país latino-america-
no, reconhecem ao paciente o direito de recusar ou aceitar a terapia
proposta pela equipe de saúde à qual poderá ser submetido no fu-
turo caso venha a contrair uma doença, esteja em estágio terminal,
inconsciente e, portanto, impedido de manifestar sua vontade.
No Brasil, houve uma tentativa de regulamentação do tema,
também no ano de 2009, quando o senador Gerson Camata apre-
sentou o Projeto de Lei n. 524/2009.
O Conselho Federal de Medicina, em meados de 2012, por meio
da Resolução n. 1.995/2012, regulamentou, segundo sua compe-
tência, as diretivas antecipadas de vontade do paciente, reconheceu
sua existência e sua importância, ao descrever seu conteúdo e seu
alcance, contudo ainda não existe no país, até a presente data, qual-
quer legislação que as regulamente.
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