biocombustíveis: solução ou problema? · tipo de uso, ainda muito ... abastecer veículos...

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37.551 CAPÍTULO 12 Biocombustíveis: solução ou problema? 12.1 Os vegetais como fonte de energia De modo similar às energias solar e eólica, a energia da biomassa é gerada diretamente pelo Sol. Essa energia se torna disponível através da sua captação e armazenamento em forma química nos carboidratos – ou seja, biomassa, conceito que inclui os açúcares, amidos, óleos vegetais e celulose – graças à fotossíntese das plantas. Na história da humanidade, a biomassa constitui a grande fonte de energia para o fornecimento de calor e para a cocção dos alimentos, por meio da lenha e da queima dos excrementos de animais. Esse tipo de uso, ainda muito praticado em comunidades rurais da Ásia, África e América Latina, provocou a destruição da maior parte da cobertura florestal do planeta. A partir da década de 1970, em resposta aos altos preços do petróleo, certas espécies vegetais passaram a ser processadas industrialmente para obtenção de energia. Assim surgiram os biocombustíveis 1 , que se dividem em dois grupos: 1 O uso do termo “biocombustível” é contestado por ambientalistas e movimentos sociais, que chamam o mesmo produto de “agrocombustível”. A escolha por uma palavra ou outra não é neutra e, no contexto da controvérsia que envolve essa modalidade de energia, expressa uma perspectiva distinta de entendimento da questão. “Biocombustível” se utiliza do prefixo “bio” (vida, em latim) para ressaltar a ideia de um produto “limpo”. Assim, esconde as contradições implícitas na sua produção e enfatiza a ideia de algo “novo”, que supera os antigos meios de gerar energia. É o termo usado pelos governantes e pelas transnacionais. “Agrocombustível” reforça a ideia de que o combustível é obtido por meio do cultivo de vegetais que ingressam no mercado como produtos agrícolas inseridos em uma lógica capitalista. Ou seja, está sujeito às contradições e às disputas do campo, como, por exemplo, a que opõe os modelos do agronegócio e da agricultura camponesa ou familiar. Neste livro, a opção pela palavra “biocombustível” se deve apenas ao fato de que essa é a designação utilizada nos meios acadêmicos e em quase toda a bibliografia disponível sobre o assunto.

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Page 1: Biocombustíveis: solução ou problema? · tipo de uso, ainda muito ... abastecer veículos automotivos, seja misturado à gasolina ... respectivamente, a gasolina e o óleo diesel

37.551

CAPÍTULO 12

Biocombustíveis: solução ou problema?

12. 1 Os vegetais como fonte de energia

De modo similar às energias solar e eólica, a energia da biomassa

é gerada diretamente pelo Sol. Essa energia se torna disponível

através da sua captação e armazenamento em forma química nos

carboidratos – ou seja, biomassa, conceito que inclui os açúcares,

amidos, óleos vegetais e celulose – graças à fotossíntese das plantas.

Na história da humanidade, a biomassa constitui a grande fonte de

energia para o fornecimento de calor e para a cocção dos alimentos,

por meio da lenha e da queima dos excrementos de animais. Esse

tipo de uso, ainda muito praticado em comunidades rurais da Ásia,

África e América Latina, provocou a destruição da maior parte da

cobertura florestal do planeta. A partir da década de 1970, em

resposta aos altos preços do petróleo, certas espécies vegetais

passaram a ser processadas industrialmente para obtenção de

energia. Assim surgiram os biocombustíveis1, que se dividem em

dois grupos:

1 O uso do termo “biocombustível” é contestado por ambientalistas e movimentos sociais, que chamam

o mesmo produto de “agrocombustível”. A escolha por uma palavra ou outra não é neutra e, no contexto da controvérsia que envolve essa modalidade de energia, expressa uma perspectiva distinta de entendimento da questão. “Biocombustível” se utiliza do prefixo “bio” (vida, em latim) para ressaltar a ideia de um produto “limpo”. Assim, esconde as contradições implícitas na sua produção e enfatiza a ideia de algo “novo”, que supera os antigos meios de gerar energia. É o termo usado pelos governantes e pelas transnacionais. “Agrocombustível” reforça a ideia de que o combustível é obtido por meio do cultivo de vegetais que ingressam no mercado como produtos agrícolas inseridos em uma lógica capitalista. Ou seja, está sujeito às contradições e às disputas do campo, como, por exemplo, a que opõe os modelos do agronegócio e da agricultura camponesa ou familiar. Neste livro, a opção pela palavra “biocombustível” se deve apenas ao fato de que essa é a designação utilizada nos meios acadêmicos e em quase toda a bibliografia disponível sobre o assunto.

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a) Etanol – É o álcool combustível, utilizado diretamente para

abastecer veículos automotivos, seja misturado à gasolina

(álcool anidro), seja como substituto da gasolina (álcool

hidratado). O etanol, obtido na sua quase totalidade da

destilação da cana-de-açúcar e do milho, representa

atualmente mais de 90% dos biocombustíveis líquidos.

b) Biodiesel – É um combustível obtido por meio da mistura de

um óleo vegetal com etanol ou metanol (álcool derivado de

petróleo) e a adição de um catalisador, o qual provoca a uma

reação química que provoca separa a glicerina do biodiesel.

Sua comercialização é feita em mistura com o diesel mineral

(um derivado do petróleo) em proporções variáveis. Na

produção do biodiesel, utiliza-se uma ampla variedade de

plantas oleaginosas, entre as quais a soja, o dendê (também

conhecido como palma), a canola, a colza (cultivada no

Hemisfério Norte), o algodão, o pinhão manso, a mamona e o

girassol.

Os biocombustíveis ganharam importância na matriz energética

mundial a partir da dupla preocupação com os riscos de escassez de

petróleo e com a busca de fontes energéticas capazes de substituir os

combustíveis fósseis com uma redução expressiva da emissão de

gases causadores do efeito estufa. O etanol e o biodiesel, como

produtos derivados de plantas, são combustíveis renováveis, por

definição, e podem ser cultivados em boa parte de globo,

especialmente nas regiões tropicais. Sua produção tem crescido em

escala exponencial desde o início da década de 2000, estimulada por

fortes subsídios estatais – sobretudo, nos Estados Unidos e Europa

Ocidental – e pela adoção de planos governamentais que

estabelecem prazos e metas para a mistura de etanol e biodiesel nos

combustíveis convencionais oferecidos no mercado,

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respectivamente, a gasolina e o óleo diesel. Nos EUA, os

distribuidores de combustível têm um prazo até 2017 para incluir

uma mistura de 20% de etanol na gasolina que abastece os veículos.

Nos países da União Europeia e no Japão, essa meta é de 10% até

2020. O Brasil é o único país do mundo a passar pela experiência de

utilizar veículos movidos exclusivamente a álcool. Esses carros, que

chegaram a constituir a quase totalidade de frota brasileira, deram

lugar, na atualidade, aos automóveis flex fuel, projetados para se

abastecerem igualmente por etanol e por gasolina, misturados ou

não.

Já o biodiesel foi desenvolvido originalmente na Europa. Por volta

de 1990, pesquisadores austríacos começaram a sementes de plantas

de clima temperado, como o girassol e a colza, para produzir

combustível em escala semi-industrial. Hoje, o maior fabricante de

biodiesel do mundo é a Alemanha, que obtém quase toda a sua

produção a partir da colza. O Brasil, diferentemente dos países

europeus, que dependem de apenas uma ou duas oleaginosas para

produzir biodiesel, podem utilizar pelo menos 18 espécies diferentes

com a mesma finalidade. Ainda assim, 81% do biediesel brasileiro é

obtido com uma única matéria-prima, a soja, que é cultivada por

grandes empresas, entre as quais a gigantesca transnacional ADM

(Archer Daniel Midland), que domina o mercado dos

biocombustíveis nos EUA2.

Em grande medida, a explosão do interesse internacional pelos

biocombustíveis se deve ao fato de que eles são apresentados pelos

empresários do setor, assim como pelos governos, jornalistas e

acadêmicos favoráveis à expansão dos negócios no terreno da

biomassa, como uma fonte de energia ecologicamente correta, capaz

de compensar, ainda que em escala parcial, a escassez de petróleo,

sem agravar o problema do aquecimento global. O etanol, assim

2 “O sonho acabou?”, Retrato do Brasil, Lia Imanishi, São Paulo, maio de 2008.

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como o biodiesel, é considerado um combustível de “emissão zero”,

pois o carbono que libera na sua combustão é equivalente ao que as

plantas usadas como matéria-prima acumulam no seu crescimento

natural. De fato, sua combustão emite volumes de CO2

significativamente menores que a do petróleo ou a do carvão: 60%

menos, no caso do biodiesel, e 70% menos, no do etanol. Mas

quando se leva em consideração o processo produtivo completo dos

biocombustíveis – desde o desmatamento até o consumo

automotivo –, a moderada economia de emissões se desfaz em vista

de mais emissões causadas pelo desmatamento, queimadas,

drenagem de fossas, cultivos e perdas de carbono do solo. Cada

tonelada de óleo de palma produzida resulta em 33 toneladas de

emissões de dióxido de carbono – dez vezes mais que o petróleo3.

..........................................

SAIBA MAIS

Os biocombustíveis de “segunda geração”

Além do etanol e do biodiesel, existem pesquisas para a produção

dos chamados “biocombustíveis de segunda geração”, obtidos a

partir da celulose dos vegetais (palha, grama, madeira, resíduos de

colheitas) e de microalgas existentes no mar. Os defensores dessa

nova fonte de energia a apresentam como uma opção vantajosa em

comparação com os produtos da “primeira geração”. O

biocombustível celulósico, afirmam, não compete com a produção

de alimentos e consome um volume menor de energia de origem

fóssil. Mas esse argumento omite que os resíduos orgânicos são

fertilizantes naturais que servem para nutrir e proteger o solo. Na

realidade, desconhece-se o que ocorreria com o cultivo em larga

escala desses vegetais com fins energéticos e, de qualquer modo,

3 HOLT-GIMENEZ, Eric. “Mitos de la transición de los agrocombustibles”. Revista virtual Redesma, março de 2008,

Madri.

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após duas décadas de pesquisas, os cientistas ainda não descobriram

um meio de quebrar as moléculas da celulose para produzir energia

de um modo economicamente viável.

...........................................................................

12.2 A agroindústria brasileira do etanol

O Brasil é o pioneiro na produção de etanol a partir da cana-de-

açúcar, tanto na forma de álcool hidratado quanto na de álcool

anidro, e disputa com os EUA a liderança mundial na fabricação,

exportação e consumo desse tipo de combustível. A produção

brasileira de etanol em 2010 foi de 28,2 bilhões de litros (a segunda

no ranking mundial), dos quais 1,9 bilhões foram exportados4. Cerca

de 45% do etanol produzido em âmbito mundial provem dos

canaviais brasileiros. Das 435 usinas instaladas no país, a Raízen,

formada a partir da fusão entre a Cosan e a filial brasileira da Shell,

é a maior produtora, com 2,2 bilhões de litros de etanol.

A história dos biocombustíveis no Brasil tem como marco

inicial o ano de 1975, quando o governo federal tomou uma série de

medidas para enfrentar os problemas causados pela dependência do

petróleo, importado em mais de 80%. Uma das iniciativas foi a

criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), que procurava

associar o potencial de expansão da agroindústria da cana-de-açúcar

– uma cultura comercial explorada no Brasil desde o tempo colonial

– com a oportunidade gerada pela crise. O objetivo do programa era

substituir uma parcela significativa do consumo interno de gasolina

pelo álcool derivado da biomassa. Para incentivar sua produção, o

governo financiou, com empréstimos subsidiados, a instalação, nas

4 SECCO, Alexandre (editor). Análise Energia – Anuário 2012, p.58. São Paulo: Análise Editorial.

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usinas de açúcar, de unidades anexas para destilação de álcool. A

produção cresceu rapidamente nos anos seguintes, atingindo 664

mil metros cúbicos na safra 1976/1977 e, apenas quatro depois, na

safra 1980/1981, um volume cinco vezes maior, de 3,7 milhões de

metros cúbicos. A quantidade de álcool anidro obtida no país era

suficiente para misturá-lo à gasolina na proporção de 15% a 20%5.

A segunda etapa do Proálcool foi lançada em 1980, em resposta ao

segundo Choque do Petróleo, deflagrado pela Revolução Iraniana,

que triplicou o preço desse combustível e elevou a 46% sua

participação na pauta brasileira de importações. O objetivo, dessa

vez, era substituir diretamente a gasolina pelo álcool hidratado. A

indústria automobilística foi chamada a introduzir no mercado

veículos movidos exclusivamente a álcool. Por determinação do

governo, a Petrobras e as distribuidoras privadas criaram um

sistema de armazenamento, transporte e distribuição desse

combustível. A produção alcooleira atingiu um pico de 12,3 bilhões

de litros em 1986-87, superando em 15% a meta inicial do governo

de 10,7 bilhões de litros anuais. A proporção de carros a álcool no

total de automóveis produzidos no país aumentou de 0,46% em

1979 para 26,8% em 1980, atingindo seu ponto máximo em 1987,

com 95%. No conjunto, o programa proporcionou uma economia de

US$ 28,7 bilhões em importações de petróleo, com um investimento

equivalente a US$ 11,7 bilhões.

Embora tenha alcançado seu objetivo de oferecer uma alternativa

ao petróleo importado, o Proálcool apresentou uma série de

problemas. O programa, ao se sustentar sobre a produção de um

número relativamente pequeno de enormes usinas, contribuiu para

concentrar ainda mais as terras e a riqueza nas áreas rurais, com

destaque para o Estado de São Paulo, que recebeu a maior parte dos

5 FURTADO, André T.; SCANDIFFIO, Mirna I. G. “Álcool no Brasil – Uma longa história”. Scientific

American Brasil, outubro 2006, p. 67.

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investimentos. Em sua maioria, os canaviais implantados para a

produção de álcool foram feitos sem cuidados com a preservação

ambiental, provocando o assoreamento de rios, para a diminuição

da biodiversidade e para a redução dos volumes disponíveis de

água. Como assinala o professor Célio Berman, do Instituto de

Eletrotécnica e Energia da Escola Politécnica da USP, os empregos

gerados por esses cultivos, embora numerosos, eram sazonais, com

a utilização da mão-de-obra infantil e feminina em tarefas penosas e

insalubres, durante jornadas prolongadas e com uma grande parcela

contratada por “gatos”, o que dificulta a aplicação da legislação

trabalhista e a melhoria dos salários6. Muitos pequenos produtores

rurais se tornaram nômades bóias-frias após terem as suas terras

absorvidas pelos grandes canaviais.

O receio atual é que, onde quer que se instale, a monocultura do

açúcar venha reproduzir o modelo predatório de exploração que

implementou no estado de São Paulo, o grande polo da expansão do

etanol. O agrônomo Manoel Eduardo Tavares Ferreira, presidente

da Associação Cultural e Ecológica Pau Brasil, de Ribeiro Preto (SP),

explica que, até a década de 1970, a região possuía 22% de cobertura

vegetal nativa. A partir de 1975, quando os usineiros passaram a

receber os generosos benefícios do Proálcool, com financiamentos

estatais a juros negativos e longos prazos de carência, essa área se

reduziu para menos de 3% na atualidade. O eixo da produção

brasileira de cana-de-açúcar se transferiu do Nordeste para São

Paulo, deslocou outros cultivos, como o gado, o tomate e as frutas, e

a concentração da propriedade se acentuou. “A cultura canavieira –

escreve Ferreira – avançou com voracidade sobre os campos de

outras culturas rurais, e, em semelhante intensidade, o domínio das

6 BERMAN, Célio. Energia no Brasil: Para quê? Para quem? São Paulo: Livraria da Física, FASE, 2001, p. 115-

116.

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terras destinadas ao plantio da cana passou para as usinas, por força

de aquisição ou de arrendamento”.7

Ele relata que, nos arredores da cidade de Ribeiro Preto, “os

canaviais ocupam mais de 1 milhão de hectares de forma contínua,

com fortes impactos sobre as matas ciliares, a biodiversidade e a

produção de alimentos”. No vizinho município de Bebedouro,

outrora a “capital brasileira da laranja”, o cultivo de cítricos caiu de

80% para 25% em menos de dez anos, substituído gradualmente

pela cana-de-açúcar. Um relatório da Companhia Nacional de

Abastecimento (Conab) constatou uma queda da plantação de

alimentos em 2,6% em Minas Gerais, 4,1% no Espírito Santo e e 7,6%

em São Paulo – declínio atribuído ao crescimento da cana-de-açúcar

no Sudeste do país. Essas cifras indicam que, ao contrário do que

afirma a agroindústria do etanol, a expansão da cana tem um efeito

direto sobre os cultivos alimentares.

O Proálcool entrou em declínio na segunda metade da década de

1980, pela soma de dois fatores. De um lado, a crise econômica, que

teve como elemento mais saliente o aumento descontrolado da

dívida externa, esgotou a capacidade do Estado de realizar as

elevadas transferências de dinheiro para o setor sucroalcooleiro, na

forma de subsídios. Do outro lado, o chamado “Contra-choque do

Petróleo”, em 1986, que derrubou os preços internacionais dos

combustíveis, também provocou uma queda drástica no preço do

álcool, eliminando os incentivos para a sua produção. O resultado

foi a falta de álcool nos postos no final da década de 1980, o que

comprometeu a credibilidade do programa e chegou a obrigar o

Brasil a importar esse combustível, no início dos anos 908. Nesse

contexto, a produção de carros a álcool no Brasil despencou até

próximo de zero e as usinas de açúcar passaram a buscar o mercado

7 “A queimada da cana e seu impacto socioambiental”, Manoel Eduardo Tavares Ferreira, 22/9/2006,

Adital – Agência de Informação Frei Tito para a América Latina. 8 FURTADO; SACANDIFFIO; 2006, p.68.

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externo como alternativa. Em 1990, no governo de Fernando Collor,

o Proálcool foi extinto.

O mercado de álcool combustível no Brasil só voltou a crescer na

década de 2000, impulsionado por uma nova tendência de alta nos

preços dos derivados de petróleo, ao mesmo tempo em que a

desvalorização do real elevou os preços da gasolina. Mas o retorno

do álcool como opção para os transportes enfrentava a desconfiança

dos consumidores, receosos de voltar a adquirir veículos novos a

álcool devido à incerteza de que o preço desse combustível

(estimado em cerca de 70% do preço da gasolina) seria mantido.

Como solução, a indústria automobilística introduziu no Brasil os

carros flex, que podem rodar com álcool ou gasolina em qualquer

proporção.

A produção de carros flex disparou e, no final da década, a quase

totalidade dos veículos novos lançados no Brasil portavam essa

tecnologia. A garantia de um mercado potencial em expansão fez

com que, entre 2002/2003 e 2008/2009, a produção brasileira de

etanol crescesse 110%. Em 2008, o Brasil foi o primeiro país do

mundo a usar mais etanol do que gasolina para alimentar a frota de

automóveis9. Para alimentar essa demanda, o setor sucroalcooleiro

expandiu enormemente o cultivo da cana-de-açúcar, que chegou a

representar mais de um quarto do produto agrícola brasileiro. Ao

mesmo tempo, ocorre um notável crescimento na produção de

etanol destinado à exportação, atendendo a demanda crescente por

combustíveis com baixas emissões de carbono.

As autoridades e empresários brasileiros alimentam planos

extremamente ambiciosos para a exportação de etanol. Um estudo

9 SCHUTTE, Giorgio Romano; BARROS, Pedro Silva. “A Geopolítica do Etanol”. Boletim de Economia e

Política Internacional, nº1, janeiro/março 2010, p. 33-44. Brasília: Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas

(IPEA).

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elaborado em 2007 pelo Núcleo de Estudos Estratégicos da

Presidência da República (NAE) vislumbrava a possibilidade de o

etanol brasileiro substituir, até 2025, cerca de 5% de toda a gasolina

consumida no planeta. Para alcançar essa meta, a produção nacional

atingiria 85 bilhões de litros, cinco vezes o volume obtido naquele

ano (18,8 bilhões).10 Dirigentes da União da Agroindústria

Canavieira de São Paulo (Única), principal entidade empresarial do

setor, calculam que a produção brasileira poderá atingir, no mesmo

período, o dobro desse cifra, ou seja, 170 bilhões de litros, o que

significa quase seis vezes o volume produzido em 201011.

A expectativa de lucros milionários no negócio do etanol provoca

dois fenômenos econômicos de grandes dimensões, associados entre

si. O primeiro é a expansão dos territórios brasileiros destinados ao

cultivo da cana-de-açúcar para a produção do etanol. Dados da

Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) revelam que, entre

2000 e 2011, a área ocupada pelos canaviais saltou de 4,8 para 8,1

milhões de hectares. Para alcançar a meta do agronegócio brasileiro

de atender a metade da demanda mundial de etanol até 2025, a

produção de cana-de-açúcar no país terá de passar dos 380 milhões

de toneladas colhidas em 2007 para 1,7 bilhão de toneladas. Esse

salto produtivo implicaria em uma expansão da cultura da cana em

uma área adicional de mais de 21,5 milhões de hectares, segundo os

pesquisadores André Tosi Furtado e Mirna Scandiffio, da

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Tal expansão, que

abarcaria inclusive terras que atualmente servem como reserva

ambiental, ocorreria fora do Estado de São Paulo, que é responsável

por cerca de 58% da produção brasileira de cana. Com o

esgotamento do espaço disponível para novos canaviais em São

Paulo, a produção de etanol brasileira tem se deslocado para a 10

“Etanol do Brasil pode substituir 5% da gasolina até 2025, diz governo”. BBCBrasil.com, 22/3/2007. Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/03. 11

FUSER, Igor. “O Verde Enganador”, Le Monde Diplomatique Brasil, nº 5, dezembro 2007, São Paulo.

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região central do país (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,

Minas Gerais) e para o Norte-Nordeste (Bahia, Maranhão, Piauí,

Tocantins)12.

O outro fenômeno associada à expansão do etanol no Brasil é o

ingresso maciço de empresas transnacionais no setor

sucroalcooleiro, seja por meio da compra de usinas brasileiras, seja

pela instalação de novos negócios13. A participação de empresas

estrangeiras na agroindústria da cana no Brasil cresceu de 1% em

2000 para cerca de 30% em 2010. Entre muitas outras, operam

atualmente em território brasileiro a Shell (anglo-holandesa), a BP

(britânica), a Louis Dreyfus (francesa), a Bunge (EUA) e a Cargill

(EUA). Juntas essas transnacionais são proprietárias de mais de 100

usinas. A Petrobras também está presente no setor, e com muita

força. A empresa semi-estatal anunciou planos de construir a maior

usina de etanol do mundo, com capacidade de produção de 700

milhões de litros e investimentos de R$ 521 milhões, em parceria

com o grupo brasileiro São Martinho14. “Uma nova característica da

indústria do etanol, se comparada ao Proálcool da década de 1970, é

a aliança do agronegócio com empresas petroleiras, automotivas, de

biotecnologia, mineração, infra-estrutura e fundos de

investimento15”, analisa a especialista Maria Luisa Mendonça.

“Nesse cen{rio, não existe nenhuma contradição desses setores com

12

FURTADO, André T.; SCANDIFFIO, Mirna I. G. “A Promessa do Etanol no Brasil”. Visages d’Amérique

Latine, nº 5, setembro 2007, Poitiers (França), p.109. 13

O caso mais expressivo da desnacionalização do setor foi a fusão, em 2011, da empresa brasileira Cosan, até então a maior usina do país, com a subsidiária brasileira da Shell, formando a Raízen. Essa companhia, com um valor de mercado estimado em US$ 20 bilhões, é uma das cinco maiores empresas no Brasil e está voltada essencialmente para a produção de etanol com a finalidade de exportação. Seu objetivo, anunciado na ocasião da fusão, era elevar o etanol à condição de commodity internacional. Ao divulgar a operação, a Shell afirmou que pretendia criar “um rio de etanol correndo desde as plantações no Brasil até a América do Norte e a Europa”. 14

SECCO, A.; 2012, p.57. 15

MENDONÇA, Maria Luisa. Monopólio da terra e produção de agrocombustíveis. IN: MERLINO, T.; MENDONÇA, M.L. (orgs.), Direitos Humanos no Brasil 2010 – Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, p. 58. São Paulo: 2010.

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a oligarquia latifundiária, que se beneficia da expansão do capital no

campo e do abandono de um projeto de reforma agrária.”

12. 3 O Brasil e a geopolítica do etanol

Dotado de imensas extensões de terras férteis e de um clima

tropical propício para o cultivo da cana-de-açúcar, o Brasil desfruta

de uma posição privilegiada no mercado global de biocombustíveis.

Na comparação com os EUA, a grande vantagem brasileira reside na

opção pelo etanol da cana-de-açúcar, que apresenta um rendimento

energético cinco vezes maior do que o do etanol de milho, cultivado

nas grandes fazendas do Meio-Oeste estadunidense. No processo

produtivo de etanol, o consumo de 1 litro de petróleo em energia

obtém como resultado um volume de etanol a apenas 1,4 litro. No

etanol da cana-de-açúcar, a proporção entre a energia dispendida e a

energia obtida é sete vezes maior: 1 para 10,216. Esse altíssimo

rendimento energético se deve ao elevado teor de sacarose da cana,

bem superior ao existente no milho, e também a uma inovação

tecnológica desenvolvida nas usinas paulistas, que consiste na

utilização dos resíduos sólidos do processo produtivo – a palha e o

bagaço da cana-de-açúcar – para abastecer as caldeiras onde se

fabrica o etanol. Dessa maneira, as usinas atingem um patamar

próximo ao da autonomia energética, poupando eletricidade e

derivados de petróleo. Outra vantagem brasileira em relação aos

EUA diz respeito aos índices mais altos de produtividade agrícola.

Enquanto os milharais estadunidenses geram 3.037 litros de etanol

por hectare cultivado, nos canaviais brasileiros essa proporção é de

6.879 litros por hectare (América Economia 2.4.2006).

16

GOLDEMBERG, José. ”Os limites do etanol de primeira geração”. In: Revista Opiniões. Julho-Setembro 2009, citado por SCHUTTE; BARROS, 2010.

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A existência de uma poderosa agroindústria sucroalcooleira e de

um vasto mercado interno – reativado a partir do inicio do século 21

com a introdução dos veículos flex – favoreceram a produção de

excedentes exportáveis de etanol, que tornaram o Brasil o líder

mundial nesse mercado durante a maior parte da década de 2000.

Estima-se que o etanol brasileiro é competitivo no mercado

internacional a partir da cotação de US$ 40 por barril de petróleo

(em 2008, antes da crise econômica global, esse preço atingiu US$

143, e em 4 de maio de 2012 o petróleo estava cotado em US$ 98,5).

As exportações brasileiras de etanol subiram de 606 mil toneladas,

em 2003, para 4 milhões de toneladas, em 2008. Em valores

monetários, isso significa um salto de US$ 158 milhões para US$ 2,4

bilhões, graças ao aumento dos preços17. Essa expansão, no entanto,

se interrompeu a partir de 2009, em consequência da crise

econômica mundial deflagrada no ano anterior. Em 2011, a venda de

etanol brasileiro ao exterior foi de apenas 1,9 milhão de toneladas,

menos de 25% do volume comercializado três anos antes18. E os

EUA voltaram a ser o maior exportador, deixando o Brasil na

segunda posição no ranking. Nas palavras do vice-presidente da

Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Luiz Carlos Correia

de Carvalho:

“Vivemos hoje a soma de todos os males. Houve

problemas de clima, de falta de investimento nas

plantações e de falta de planejamento. A crise de 2008

não foi uma marola, mas uma onda gigante para

surfistas profissionais, que surte até agora seus efeitos.

17

INSTITUTO INTERAMERICANO DE COOPERAÇÃO PARA AGRICULTURA (IICA).

Caderno de Estatísticas do Agronegócio Brasileiro, 2008, citado em SHUTTE; BARROS, 2010. 18

SECCO; 2012; p.56.

Page 14: Biocombustíveis: solução ou problema? · tipo de uso, ainda muito ... abastecer veículos automotivos, seja misturado à gasolina ... respectivamente, a gasolina e o óleo diesel

Com a crise, os produtores e a indústria ficaram sem

recursos para financiar a renovação do canavial.”19

O agronegócio sucroalcooleiro espera superar esse período crítico

com o retorno dos investimentos estrangeiros e, sobretudo, o forte

apoio estatal. Em maio de 2011, a presidenta Dilma Rousseff decidiu

oficialmente que o etanol deixa ser encarado pelas autoridades como

um simples derivado da produção agrícola para se tornar um

“combustível estratégico” para o país, a ser fiscalizado e controlado

pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis

(ANP)20. No mesmo ano, uma série de medidas foi anunciada para

reduzir os juros e impostos que incidem sobre o setor.

O principal foco de interesse dos exportadores brasileiros de

etanol (assim como das empresas estrangeiras instaladas no setor)

sempre foi o mercado estadunidense. Em 2006, os EUA importaram

2,7 bilhões de litros de etanol, dos quais 64% vieram diretamente do

Brasil e 12% correspondem ao etanol de origem brasileira que é

reprocessado em El Salvador e exportado de lá para os EUA a fim

de se beneficiar das vantagens alfandegárias concedidas aos países-

membros da Área de Livre Comércio Centro-Americana (Cafta, na

sigla em inglês). Outro alvo importante na estratégia exportadora

brasileira é a União Europeia, cujos integrantes adotaram um

conjunto de metas para a substituição do petróleo por combustíveis

renováveis como um dos meios de atingir seus objetivos ambientais.

Apesar das políticas protecionistas vigentes no mercado europeu, as

importações de etanol pela União Europeia quintuplicaram entre

2004 e 2008. O etanol brasileiro responde por 70% dessas

importações.

19

“Produção do etanol tem pior momento em 11 anos”, O Estado de S.Paulo, Chico Siqueira, 28 de agosto de 2011, p. B7. 20

SECCO; 2012; p.58.

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Na busca de consolidar sua posição como exportador de etanol, o

Brasil enfrenta dois grandes desafios geopolíticos, na avaliação dos

pesquisadores Giorgio Romano Shutte e Pedro Silva Barros. O

primeiro desafio, segundo eles, é diminuir as restrições à entrada do

produto nos países ricos, potenciais consumidores21. “Os países

desenvolvidos, que já ocupam grande parte das áreas

agriculturáveis, precisam diminuir a emissão de dióxido de carbono,

mas adotam políticas protecionistas para o setor agrícola por

motivos de segurança energética e defesa dos interesses dos seus

agricultores”, escrevem. O segundo desafio envolve a garantia da

existência de um número significativo de países produtores

dispostos e em condições de abastecer o mercado internacional de

etanol com suas exportações. Trata-se de países que, devido às suas

condições naturais e estratégias de desenvolvimento, tendem a se

concentrar na África e na América Central – além do Brasil, é claro.

Isso significa que, do ponto de vista do governo e do agronegócio

brasileiros, a disseminação do cultivo do etanol em outros países –

especialmente, países pobres, dotados de mão-de-obra barata e de

terras onde podem ser instalados canaviais –, longe de significar a

criação de competidores para o biocombustível made in Brazil,

responde à necessidade estratégica de ampliar uma oferta estável de

etanol capaz de garantir o abastecimento dos países capitalistas mais

avançados. Na avaliação de Schutte e Barros,

“os países em desenvolvimento têm interesse em

produzir para exportação, mas isso não pode

comprometer a produção de alimentos e há um déficit de

capital e tecnologia para tal. O Brasil, que representa o

terceiro grupo, é o maior produtor mundial, detém

tecnologia e tem enorme capacidade para expandir a

21

SCHUTTE, Giorgio Romano; BARROS, Pedro Silva. “A geopolítica do etanol”. Boletim de Economia e Política Internacional, nº 1, ano 1, janeiro/março 2010, p. 33-44. Instituto de Política Econômica Aplicada (IPEA), Brasília.

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produção sem comprometer a segurança alimentar, mas

os países consumidores não querem ficar dependentes

de um único ou de poucos produtores.”22

Durante mais de uma década, as exportações brasileiras de etanol

para os EUA esbarraram na política protecionista adotada naquele

país como um meio de favorecer os produtores estadunidenses de

milho perante os riscos da concorrência com o biocombustível

brasileiro, produzido com maior eficiência. As autoridades

alfandegárias dos EUA aplicavam uma tarifa de US$0,54 sobre cada

galão de etanol exportado para aquele país23. A essa barreira se

somava o subsídio que os distribuidores recebiam do governo de

Washington para garantir a competitividade do etanol do milho

(US$ 0,45 por galão misturado à gasolina). As medidas

protecionistas que restringiam o acesso brasileiro ao mercado

estadunidense foram revogadas, finalmente, em dezembro de 2011,

quando o Congresso dos EUA entrou em recesso sem renovar a

tarifa de importação e o subsídio ao milho24. Os analistas atribuem

essa mudança ao alto custo do protecionismo, que obrigava o

orçamento público a destinar cerca de US$ 6 bilhões de dólares por

ano em benefício do agronegócio do milho. Para o agronegócio

brasileiro, o importante é que, a partir de 1º de janeiro de 2012, o

biocombustível do Brasil já tem acesso livre aos EUA, pela primeira

vez. O então presidente da Única, Marcos Jank, avaliou que, com a

queda das barreiras, as exportações para os EUA podem subir, em

alguns anos, de 1,5 bilhão para 13,5 bilhões de litros, o que

representa 10% do consumo de combustíveis naquele país.

O fim do protecionismo estadunidense no campo da energia abre

caminho para a plena implementação do programa de cooperação

22

SCHUTTE.; BARROS; 2010. 23

Um galão equivale a 3,7 litros. 24

“Queda de subsídios abre mercado para o etanol brasileiro nos EUA”, O Estado de S.Paulo, Renée Pereira e Denise Chrispim Marin, 24 de dezembro de 2011, p.B1.

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energética certado entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e

George W. Bush em março de 2007 no sentido de estimular a

produção de biocombustíveis em países da América Central e do

Caribe com a finalidade de exportá-los paro o mercado

estadunidense. Nesse projeto, os EUA entrariam com o

financiamento da instalação de canaviais e de usinas produtoras de

etanol, enquanto o Brasil forneceria a tecnologia, por meio da

Petrobras e da Embrapa25. Essa parceria, formalizada em um

Memorando de Entendimento entre os dois países, tem como base

uma convergência de interesses no sentido de criar um mercado

internacional estável para o etanol26. Mais tarde, em outubro de

2008, durante a Conferência Internacional de Biocombustíveis

realizada em São Paulo, Brasil e EUA assinaram um segundo

Memorando de Entendimento, ampliando a cooperação para outros

países, incluindo alguns do continente africano. Em uma iniciativa

paralela, Brasil, EUA e União Europeia criaram uma força tarefa

voltada, entre outros objetivos, para o estabelecimento de normas

comuns para o etanol da cana, do milho e da celulosa, com vistas à

criação de um mercado de futuros no negócio dos biocombustíveis,

a exemplo do que já existe para o petróleo.

Em resposta aos esforços conjuntos do Brasil e dos EUA em

difundir os biocombustíveis na América Central, destilarias voltadas

para a produção de etanol foram instaladas em vários países da

região, com destaque para a Guatemala, Honduras e El Salvador.

Especialistas e movimentos sociais criticam essa política,

argumentando que a substituição de cultivos tradicionais pela cana-

de-açúcar representa um risco para a produção de alimentos e a

25

ALEMÁN BENÍTEZ, P{vel. “Los agrocombustibles y su impacto en la relación de los Estados Unidos

con América Latina y el Caribe”. Cuadernos de Nuestra América, nº 43-44, Vol. XXII, janeiro-dezembro 2009,

Centro de Estudios sobre América (CEA), La Habana. 26

SCHUTTE; BARROS, 2011.

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própria sobrevivência de comunidades rurais27. Um relatório da

organização humanitária ActionAid sobre a expansão dos canaviais

e das plantações de dendê para a produção de biodiesel na

Guatemala aponta um agravamento dos conflitos agrários e da

concentração da propriedade fundiária, na medida em que os

pequenos agricultores são convencidos a vender suas terras aos

investidores.

12.4 O impacto socioambiental dos biocombustíveis

A compreensão do papel dos biocombustíveis no mundo

contemporâneo deve ir além das considerações econômicas para

focalizar também os efeitos sociais e ambientais da sua produção e o

modelo de desenvolvimento em que se insere a opção por esse tipo

de cultivo, adotado em larga escala por muitos países latino-

americanos, asiáticos e africanos. No plano ambiental, as grandes

plantações destinadas à produção de insumos energéticos

reproduzem os impactos negativos que costumam acompanhar em

todos os lugares a agricultura praticada com base no monocultivo,

com a utilização de fertilizantes e agrotóxicos nocivos à

biodiversidade, à qualidade dos solos e da água e à saúde dos seres

humanos28.

No Brasil, os porta-vozes do agronegócio sucroalcooleiro afirmam

que os problemas ambientais ocorridos na época do Proálcool já

foram superados. Um deles, por exemplo, diz respeito ao vinhoto –

27

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA; REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS.

Agroenergia – Mitos e Impactos na América Latina. São Paulo, Recife, 2007. 28 HOUTART, François. El escándalo de los agrocombustibles para el Sur. Quito, Panamá: Ediciones La Tierra,

Ruth Casa Editorial, 2011, p.114.

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líquido mal-cheiroso, altamente poluente, que resta como

subproduto da destilação da cana-de-açúcar. Para cada litro de

álcool, são produzidos cerca de 12 litros de vinhoto. Por muito

tempo, esse resíduo foi jogado nos rios e nos córregos, destruindo a

maior parte da sua flora e fauna. A situação mudou na década de 70,

ao se descobrir nele um excelente fertilizante, desde então usado nos

próprios canaviais. Mas o vinhoto, conduzido por dutos aos

enormes tanques onde é armazenado, deve ser submetido a

cuidados extremos – o menor acidente pode causar uma

contaminação com sérias consequências para os cursos de água. Há

ainda um limite para a sua absorção pela lavoura de cana, como

lembrou o engenheiro Francisco Alves, professor na Universidade

Federal de São Carlos, em entrevista à edição brasileira do Le Monde

Diplomatique. “Os excessos do vinhoto penetram na terra, afetando o

lençol fre{tico, ou são levados pela chuva até rede hidrogr{fica”,

explica. “Em grande quantidade, trazem um risco ainda mais grave,

pois os canaviais se concentram na zona onde se forma o Aquífero

Guarani, a bacia que abastece todo o Cone Sul29.”

Também persistem graves problemas sociais na produção da

cana-de-açúcar. As condições de trabalho nos canaviais são

extenuantes. Os trabalhadores são remunerados por quantidade de

cana cortada e não por horas trabalhadas. Para receber pouco mais

de um salário mínimo por mês, é necessário cortar mais de 10

toneladas por dia. Para isso, são necessários 30 golpes de facão por

minuto, durante oito horas de trabalho por dia. A extrema

exploração do trabalho nos canaviais causa sérios problemas de

saúde e até a morte de trabalhadores, por exaustão30. Todos os anos,

são registrados casos de trabalho quase escravo. A substituição do

corte manual da cana pela mecanização da colheita tem melhorado

as condições de trabalho em muitas usinas, mas também provoca a

29

FUSER; 2007. 30

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA; REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS; 2007.

Page 20: Biocombustíveis: solução ou problema? · tipo de uso, ainda muito ... abastecer veículos automotivos, seja misturado à gasolina ... respectivamente, a gasolina e o óleo diesel

demissão de milhares de trabalhadores pouco qualificados, que

ficam sem alternativa de emprego.

Outro ponto polêmico envolve a destruição das florestas tropicais

brasileiras: o cultivo de vegetais destinados à produção de energia

teria alguma culpa pela devastação da Amazônia e de outras áreas

importantes de biodiversidade¿ Para os defensores do etanol como

um biocombustível “limpo” (isto é, inofensivo do ponto de vista

ambiental), a resposta é negativa, uma vez que a produção de etanol

na Amazônia está proibida por lei e a superfície ocupada pelos

canaviais é relativamente pequena diante da gigantesca extensão

territorial do país. De acordo com o Ministério da Agricultura

Pecuária e Abastecimento, a lavoura utiliza 63 milhões hectares, dos

quais 7 milhões para cana. Cerca da metade é usada na produção de

açúcar, a outra (3,6 milhões de hectare) para etanol (31). Ocorre que,

com os projetos para ampliar em até dez vezes a produção atual a

fim de dar conta das possibilidades exportadoras, as superfícies

cultivadas devem crescer em uma escala colossal.

Nesse contexto, é válido duvidar da versão, difundida pelo

governo e pelos empresários do etanol, de que os novos canaviais se

limitam |s {reas previamente ocupadas por “pastagens

degradadas”. Na realidade, a expansão dos canaviais, impulsionada

por investimentos externos milionários, exige terra de boa

qualidade, com acesso fácil às fontes de água e nas imediações de

rodovias. A recuperação de áreas deterioradas, a fim de torná-las

produtivas, requer muito tempo e gastos elevados, enquanto a

lógica do agronegócio, em qualquer lugar do planeta, está voltada

para o retorno rápido do capital, com um mínimo de riscos. Como já

ocorreu com a soja, nas décadas de 1980 e 1990, o atual crescimento

do etanol se dá pela incorporação de novos territórios, e não pela

31

Dados citados em SCHUTTE e BARROS, 2010.

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recuperação de áreas improdutivas. O impacto socioambiental vai

além do uso da terra, envolvendo também o acesso à água – um

recurso que se torna cada vez mais escasso, no mundo inteiro. Cada

litro de etanol produzido dentro da usina, em circuito fechado,

consome 12 litros de água, em média. Esse volume não inclui a água

utilizada no cultivo que, no caso das monoculturas irrigadas,

consomem muito mais32.

Quanto à Amazônia, o aumento dos cultivos de biocombustíveis

representa um fator de devastação, embora de forma indireta. A

floresta amazônica, de fato, não é uma região açucareira. O efeito

sobre o desmatamento acontece por meio da instalação de fazendas

de criação de gado, que avançam, destruindo florestas na

Amazônia, na medida em que são deslocadas do Centro-Oeste

brasileiro a partir da expansão dos canaviais e das plantações de soja

– o principal cultivo utilizado na produção do biodiesel –, muito

mais lucrativas. “O setor do {lcool diz que só planta em terras já

devastadas, mas h{ um desmate indireto na Amazônia”, afirmou o

biólogo Ricardo Machado, da Universidade de Brasília, em

entrevista33. A destruição da pequena agricultura pela concentração

das terras também provoca impacto ambientais, já que uma parcela

significativa dos camponeses deslocados pelo avanço do

agronegócio se converte em posseiros que se instalam ilegalmente

na Amazônia, enquanto outros se incorporam às favelas urbanas.

Sem dúvida, o dano ambiental mais direto da expansão dos

biocombustíveis se manifesta no Cerrado, que já perdeu mais de

50% do seu bioma original, segundo dados do Ministério do Meio

Ambiente. Por sua paisagem ressequida, menos exuberante que a

das florestas tropicais, o maior ecossistema do Centro-Oeste

costuma ser encarado com certo desprezo, o que facilita que seja 32

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA; REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS; 2007. 33

“Plantações de eucalipto e cana-de-açúcar no Cerrado empurram gado para a Amazônia”, O Estado de S.Paulo, Leonencio Nossa, 5 de maio de 2012, p.A20.

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destruído impunemente. No entanto, trata-se de uma região que

abriga mais de 10 mil espécies de plantas (das quais 4.400 são

endêmicas, ou seja, só ocorrem lá), 847 espécies de pássaros e quase

trezentas de mamíferos. Ali se situam importantes mananciais de

água. O Cerrado está desaparecendo mais depressa do que a

Amazônia, em um processo de destruição impulsionado pelas

plantações de soja, nas décadas de 1980 e 1990, e que se intensificou

desde 2000, com a introdução dos canaviais e das plantações de

eucalipto para a produção de celulose.

O problema está longe de se restringir ao Brasil. Em outras partes

do mundo, como o Sudeste Asiático, as plantações de dendê

(também chamado de palma) para o biodiesel são a causa

primordial de perda de florestas. Na Indonésia, um país com um

dos maiores índices de desmatamento do mundo, o governo está

levando adiante um plano para expandir a produção do dendê em

16,5 milhões de hectares, o que põe em risco praticamente toda a

área de florestas. Na Malásia, o maior produtor mundial de óleo de

dendê, 87% das florestas já foram devastadas. De acordo com um

relatório publicado em 2008 pelo Banco Mundial, as mudanças no

uso dos solos, tais como o desmatamento para produzir

biocombustíveis, representam um risco muito maior para o

aquecimento global do que a redução das emissões de carbono com

o consumo do biodiesel obtido dessa forma34.

Uma dimensão muito preocupante do recurso aos biocombustíveis

como alternativa ao petróleo é o seu impacto negativo sobre a

produção de alimentos. No mundo inteiro, essa nova modalidade de

uso da terra incentiva os proprietários rurais – pequenos, médios e,

principalmente, grandes – a substituir os cultivos tradicionais pelas

plantas que constituem a matéria-prima do etanol e do biodiesel.

Essa disputa é responsável, entre outros problemas, pelo aumento

34

BANCO MUNDIAL, Informe sobre el Desarrollo Mundial. Washington: Banco Mundial, 2008.

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dos preços da água e da terra, que encarece ainda mais os alimentos

e favorece a concentração das propriedades rurais nas mãos dos

fazendeiros mais ricos. Nos EUA, o maior produtor mundial de

milho, parcelas cada vez maiores da colheita dos milharais estão

sendo destinadas às usinas de etanol, em prejuízo do consumo

humano e das granjas de criação de aves e suínos. O resultado é a

alta dos preços dos alimentos, que ocorre em escala mundial –

impulsionado, também, por outros fatores, como a ação dos

especuladores nos mercados futuros de commodities. O México

sentiu fortemente esse problema em 2006, quando o aumento das

exportações de milho para abastecer o mercado de etanol nos EUA

causou um aumento de 100% no preço das tortillas, que representam

o principal alimento da população.

Na opinião na maioria das entidades ambientalistas e de grande

parte dos cientistas dedicados ao estudo das fontes renováveis de

energia, a aposta em uma corrida desenfreada para a produção

mundial de biocombustíveis como substituto do petróleo e do

carvão é um erro que pode conduzir a consequências catastróficas.

A verdadeira solução para o atual impasse energético, nessa linha

de raciocínio, passa por reconhecer que a melhoria das condições de

vida e o aumento do uso de energia não são, necessariamente,

sinônimos – e, o mais importante, por mudar os padrões de

consumo da sociedade contemporânea, que se mostram cada vez

mais incompatíveis com o bem-estar da humanidade e, no longo

prazo, com a própria sobrevivência do planeta tal como nós

conhecemos.