big history, uma renovaÇÃo na tradiÇÃo …...as raízes clássicas da historiografia moderna....

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Departamento de História BIG HISTORY, UMA RENOVAÇÃO NA TRADIÇÃO HISTORIOGRÁFICA DA HISTÓRIA UNIVERSAL Aluno: Sergio Renato Victor Villela Filho (Bolsista PIBIC/CNPq) Orientador: Marcelo Gantus Jasmin Introdução: contextualização da Big History e de alguns de seus autores 1 Antes de partir para o tratamento da Big History e de sua relação com a História Universal, é importante contextualizá-la, evidenciar suas origens e principais autores; em suma, traçar sua história. Para tanto, terei como base as obras Maps of time: an introduction to Big History e Big History and the future of humanity, respectivamente de David Christian e Fred Spier. Esses dois autores, principalmente David Christian, são os proponentes de maior preeminência para o estabelecimento da Big History como teoria histórica e como disciplina acadêmica. Embora a Big History possua raízes mais longínquas como veremos adiante ocupemo-nos, por ora, com a contribuição e com os relatos dos próprios autores no que concerne a Big History e sua história recente. Fred Spier (1952-) possui treinamento nas áreas de Bioquímica (Universidade de Leiden, 1978), Antropologia cultural (Universidade livre de Amsterdam, 1987) e História social (Universidade de Amsterdam, 1992). Correntemente, Spier ministra palestras sobre a Big History na Universidade de Amsterdam e leciona na Universidade Tecnológica de Eindhoven e é vice-presidente da Associação Internacional de Big History (IBHA). Antes de voltar-se para o que viria a ser a Big History, seu olhar tinha como foco um objeto bem específico: a religião, a política e a ecologia nos Andes peruanos. 2 Sua pesquisa antropológica procurava compreender a história e a relação de uma comunidade local com a natureza ao seu redor. Contudo esse olhar estreito não seria suficiente para esse futuro big historian. A guinada em sua vida que evidenciaria o verdadeiro motor de sua trajetória acadêmica e que posteriormente reuniria seus diversos interesses em um só ponto viria de uma contingência de escala global: a missão espacial Apollo 8 de 1968 e a foto Earthrise (reproduzida no final desta introdução). Como o autor deixa transparecer em seu prefácio, a inédita experiência de contemplar a Terra pela primeira vez por uma perspectiva exterior instilou nele e em muitos uma consciência ambiental sem precedentes. A percepção da pequenez de nosso planeta em contraste com a imensidão do Universo causou um espanto coletivo, que somado a relatórios como o que foi produzido pelo Clube de Roma 3 , conduziu intelectuais à toda sorte de questões práticas e teóricas e.g. “o que fazer com nosso planeta” ou “como a humanidade chegou nesta situação”. Fred Spier, cujo destino e carreira entrelaçaram-se ao daqueles astronautas de 1968, dedica-se à esta segunda questão, a qual, segundo ele, é explicada de forma mais satisfatória pela Big History. David Christian (1946-) é historiador especializado na história da Rússia e da União Soviética (Universidade de Oxford, 1968). Atualmente, é professor de História Moderna na Universidade de Macquarie, presidente da IBHA e líder do Big History Project 4 , uma iniciativa que almeja difundir o ensino da Big History no mundo, não somente em nível acadêmico mas também em nível escolar. 1 As traduções presentes nesse texto foram feitas por mim; pelos erros, respondo sozinho. 2 SPIER, Fred. Big History and the future of humanity. Chichester: Wiley-Blackwell Publishing, 2011. 3 Cf.: The limits to Growth: A report for the Club of Rome Project on the predicament of Mankind, 1972. 4 www.bighistoryproject.com/portal

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Page 1: BIG HISTORY, UMA RENOVAÇÃO NA TRADIÇÃO …...As raízes clássicas da historiografia moderna. São Paulo: EDUSC, 2004, p.55. Departamento de História Vejo que a Big History relaciona-se

Departamento de História

BIG HISTORY, UMA RENOVAÇÃO NA TRADIÇÃO

HISTORIOGRÁFICA DA HISTÓRIA UNIVERSAL

Aluno: Sergio Renato Victor Villela Filho (Bolsista PIBIC/CNPq)

Orientador: Marcelo Gantus Jasmin

Introdução: contextualização da Big History e de alguns de seus autores1

Antes de partir para o tratamento da Big History e de sua relação com a História

Universal, é importante contextualizá-la, evidenciar suas origens e principais autores; em

suma, traçar sua história. Para tanto, terei como base as obras Maps of time: an introduction

to Big History e Big History and the future of humanity, respectivamente de David Christian e

Fred Spier.

Esses dois autores, principalmente David Christian, são os proponentes de maior

preeminência para o estabelecimento da Big History como teoria histórica e como disciplina

acadêmica. Embora a Big History possua raízes mais longínquas – como veremos adiante –

ocupemo-nos, por ora, com a contribuição e com os relatos dos próprios autores no que

concerne a Big History e sua história recente.

Fred Spier (1952-) possui treinamento nas áreas de Bioquímica (Universidade de

Leiden, 1978), Antropologia cultural (Universidade livre de Amsterdam, 1987) e História

social (Universidade de Amsterdam, 1992). Correntemente, Spier ministra palestras sobre a

Big History na Universidade de Amsterdam e leciona na Universidade Tecnológica de

Eindhoven e é vice-presidente da Associação Internacional de Big History (IBHA).

Antes de voltar-se para o que viria a ser a Big History, seu olhar tinha como foco um

objeto bem específico: a religião, a política e a ecologia nos Andes peruanos.2 Sua pesquisa

antropológica procurava compreender a história e a relação de uma comunidade local com a

natureza ao seu redor.

Contudo esse olhar estreito não seria suficiente para esse futuro big historian. A

guinada em sua vida que evidenciaria o verdadeiro motor de sua trajetória acadêmica e que

posteriormente reuniria seus diversos interesses em um só ponto viria de uma contingência de

escala global: a missão espacial Apollo 8 de 1968 e a foto Earthrise (reproduzida no final

desta introdução). Como o autor deixa transparecer em seu prefácio, a inédita experiência de

contemplar a Terra pela primeira vez por uma perspectiva exterior instilou nele e em muitos

uma consciência ambiental sem precedentes.

A percepção da pequenez de nosso planeta em contraste com a imensidão do Universo

causou um espanto coletivo, que somado a relatórios como o que foi produzido pelo Clube de

Roma3, conduziu intelectuais à toda sorte de questões práticas e teóricas – e.g. “o que fazer

com nosso planeta” ou “como a humanidade chegou nesta situação”. Fred Spier, cujo destino

e carreira entrelaçaram-se ao daqueles astronautas de 1968, dedica-se à esta segunda questão,

a qual, segundo ele, é explicada de forma mais satisfatória pela Big History.

David Christian (1946-) é historiador especializado na história da Rússia e da União

Soviética (Universidade de Oxford, 1968). Atualmente, é professor de História Moderna na

Universidade de Macquarie, presidente da IBHA e líder do Big History Project4, uma

iniciativa que almeja difundir o ensino da Big History no mundo, não somente em nível

acadêmico mas também em nível escolar. 1 As traduções presentes nesse texto foram feitas por mim; pelos erros, respondo sozinho.

2 SPIER, Fred. Big History and the future of humanity. Chichester: Wiley-Blackwell Publishing, 2011.

3 Cf.: The limits to Growth: A report for the Club of Rome Project on the predicament of Mankind, 1972.

4 www.bighistoryproject.com/portal

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Departamento de História

Antes de tudo, David Christian é o criador da Big History. Conforme William McNeill

relata no prólogo de Maps of Time, a Big History surgiu em 1989 a partir de uma discussão

interna do departamento de História sobre como organizar um curso de introdução à História.

Christian teria proposto “começar do começo.” Esse começo, como veremos, nunca havia

sido posto por um historiador, encontrando maior sucesso entre as ciências naturais. A

propósito, a distinção entre hard sciences e soft sciences, ciências humanas e ciências

naturais, que pode ser verificada mais facilmente na academia norte-americana, por exemplo,

de certa forma atravessa a Big History, pois ela busca conjugar as duas ciências, eliminar a

barreira entre as duas, como será exposto posteriormente.

Nesse sentido, David Christian montou um curso multidisciplinar com a ajuda de

professores de outros departamentos, cujo sucesso imediato estimulou outros – como Fred

Spier – a criar cursos semelhantes em suas instituições. Desde então, a Big History tem se

estabelecido em países como Austrália, Holanda e Estados Unidos. A novidade presente em

sua abordagem foi o grande motor de seu crescimento e sucesso, tendo cooptado como

patrono Bill Gates que, interessado nessa abordagem e apostando na disciplina, lançou,

conjuntamente com David Christian, o supracitado Big History Project.

Espero ter apresentado satisfatoriamente, mesmo que de forma resumida, os interesses e

preocupações desses dois autores de suma importância para a Big History, bem como o

nascimento dessa disciplina. Considero importante tal introdução pois a disciplina e seus

autores ainda não foram explorados no Brasil.

Earthrise: versão comemorativa dos 45 anos da imagem proveniente da transmissão da Apollo 8.

5

Pensamentos sobre História, História Universal e Big History

Nesta parte, começaremos por uma operação aparentemente prosaica, mas que se faz

necessária em qualquer exposição argumentativa: explicitar os conceitos que temos em mente

e que serão utilizados ao falarmos de História, História Universal e Big History. Feitas as

definições, breves histórias desses conceitos serão expostas. Procedendo desta maneiro, creio

que a clareza prevalecerá, e relações entre estes três elementos poderão ser apreciadas de

5 Fonte: svs.gsfc.nasa.gov

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forma mais proveitosa. Outrossim, esta seção é também uma tentativa de pensar a

historiografia da Big History e de como ela se encaixa na evolução do pensamento histórico

como um todo.

Exploremos primeiro “História”, que é palavra-chave e comum aos outros dois; é a

partir dela que esses tornam-se possíveis. Aqui, é valido o alerta de que a palavra “História”,

em nossa língua, possui uma ambivalência semântica, sendo ao mesmo tempo a Geschichte e

Historie alemãs, estudadas profundamente pelo historiador alemão Reinhart Koselleck. Sobre

a Geschichte, ele diz:

“[...] a expressão (Geschichte6) possui sua própria história, a

qual somente ao final do século XVIII lhe permitiu ascender à

condição de conceito mestre, político e social. Abrangendo

tanto passado quanto futuro, “a História” se transformou num

conceito regulador para toda experiência já realizada e ainda a

ser realizada. Desde então, a expressão ultrapassa em muito os

limites de simples narrativa ou de ciência histórica.”7

Temos que o conceito moderno de História (ou Geschichte) surge a partir das

experiências da Neuzeit (a Era Moderna) e que, trazendo muitos significados novos consigo –

como os de processo, progresso, evolução ou necessidade – ele não rompeu, e sim agregou e

absorveu os significados da Historie. Sobre esta, Koselleck afirma:

“[...]a “Historie”, como conhecimento, narrativa e ciência, é

um fenômeno antigo da cultura europeia. Não há dúvida de que

a narração de histórias faz parte da sociabilidade dos homens.

Mais: sem histórias não há memória, não há nada em comum,

não há autodefinição de grupos sociais ou de unidades de ação

políticas, os quais só conseguem se constituir em elementos

agregadores através de memórias comuns.”8

História e Historie, cognatas, têm como raiz comum a istoròh (historíe) de Heródoto,

pai da História, primeiro a deixar o vocábulo em nossas fontes. Originalmente significava

tanto o conhecimento obtido por meio de uma investigação quanto a própria investigação.9

Mais do que isso, como esta última citação de Koselleck deixa claro, a história-historie é

capaz de conferir sentido à realidade. Este talvez seja o principal sentido absorvido pela

Geschichte, e que a Big History também adotará, como veremos adiante. Sobre essa potência

da história, Momigliano cita o relato de um cronista mongol do século XVIII:

"Se o homem comum não conhece as suas origens ele é como

um macaco louco. Ele que não conhece ao certo as relações de

sua grande família é como um dragão descomunal. Ele que não

conhece as circunstâncias e o curso das ações de seu nobre pai

e avô é como um homem que, tendo preparado a dor para seus

filhos, joga-os neste mundo."10

6 Grifo meu.

7 KOSELLECK, Reinhart. O Conceito de História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 37.

8 Idem.

9 Cf. LIDDEL, H. G.; SCOTT, D.D.: An Intermediate Greek-English Lexicon.

10 MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. São Paulo: EDUSC, 2004, p.55.

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Departamento de História

Vejo que a Big History relaciona-se

As investigações de Heródoto, diferentemente das investigações históricas de nossa

época, não possuíam um objeto específico. Sua preocupação, tipicamente grega, era "salvar

do esquecimento "erga (érga) e genéomena (genómena), as obras e os feitos gloriosos dos

homens – gregos ou bárbaros. Como diz Christian Meier sobre o corpus herodoteano:

"Tematicamente [...] abrange uma multiplicidade de objetos que hoje em dia designaríamos

como históricos, geográficos e etnológicos."11

Heródoto afigura-se, pois, como um historiador

de escopo ampliado.

A despeito de seu sucesso contemporâneo em Atenas e de seu póstumo título de pater

historiae, Heródoto será eclipsado por Tucídides, que com sua perspectiva político-militar e

as concepções que a balizavam (como a de natureza humana), deixará a tradição tucidideana

como um "tesouro para sempre". História événementielle, historia magister vitae12

e talvez a

escola metódica são alguns exemplos influenciados por Tucídides. Se Heródoto, por seu

escopo e método, tenha "virado o jogo" sobre Tucídides atualmente, caindo nas graças dos

historiadores modernos por ecoar, há dois mil anos o que conhecemos como "história

cultural" hoje, não podemos negar o papel de Tucídides em engastar a história de política.

Na Big History, como veremos, as conquistas de Roma, a queda de Constantinopla e a

empresa napoleônica, para citar alguns exemplos, recebem apenas breves comentários,

perdendo em parte seu brilho singular como eventos (e objetos) históricos por excelência.

De qualquer modo, "tucidideana, herodoteana" ou ainda sob outras foramas, a história

tratou do homem. De fato, não é preciso recorrer ao passado para percebermos que a História

se revela uma ciência do homem – este é seu objeto. Como escrevia Marc Bloch na década de

1930, "o objeto da história é, por natureza, o homem. [...] o bom historiador se parece com o

ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça."13

Contudo, como já foi observado, a palavra "história" é, por origem, sem conteúdo.

Respeitando sua acepção primordial, a escrita de uma história não exige que o homem seja o

objeto. Sua relação com o homem é no máximo de dependência, no sentido de que é preciso

que exista um homem para escrevê-la. Como aponta Momigliano:

"[...] os homens escrevem a História quando querem registrar

acontecimentos em um quadro cronológico. [...] Acontecimentos

podem ser escolhidos para registro porque tanto explicam uma

mudança ou apontam para uma moral como indicam um padrão

recorrente."

Enquanto uns registravam acontecimentos da esfera humana, outros interessavam-se

pelo registro dos eventos da esfera da Natureza. Tais homens, certamente, não são

considerados historiadores stricto sensu; todavia, para a Big History, são como Heródoto e

Tucídides. Fred Spier, na introdução de sua obra Big History and the future of humanity, fez

uma pequena (e provisória) história da Big History.

O primeiro personagem precursor que encontra para a Big History é Alexander von

Humboldt (1769-1859), geógrafo e naturalista prussiano. Seu tratado de cinco volumes,

Kosmos, buscava sumariar história natural e história humana, numa abordagem que chamou

de "história cósmica do universo." Ela começava a partir das profundezas do espaço e

percorria os demais elementos do universo até chegar ao nosso planeta. Essa perspectiva

11

MEIER, C. Antiguidade. In: KOSELLECK, REINHART. O conceito de História. Belo Horizonte: Autêntica

Editora, 2013, p.42. 12

HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Brasília: UNB, 2003, pp. 55-56. 13

BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2002, p. 54.

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"descendente", de cima para baixo, é basicamente a mesma perspectiva que a Big History

adotará para si. A vantagem dessa maneira de agir é, segundo Spier, a relativa facilidade,

quando comparada com uma abordagem "ascendente", de perceber padrões gerais.14

Essa ótica "ascendente" é a utilizada pela história acadêmica tradicional. Ocupadas com

o nível local/regional, há muito trataram da história de regiões, personagens, povos e eventos,

sempre por meio da lente ajustada para a estreiteza do historiador. Mas como veremos, os

historiadores já estavam calibrando seus óculos para uma maior amplitude.

Um outro precursor suscitado por Spier é Immanuel Kant. De suas numerosas

contribuições ao pensamento humano, Spier sublinha uma que por vezes escapa do olhar e do

interesse imediatos do filósofo ou do historiador: "Em 1755, Kant publicou anonimamente

suas ideias acerca do cosmos, inclusive uma teoria de como o sistema solar emergira que é

aceita hodiernamente."15

Acredito que, embora essa tentativa de Kant de explicar o mundo natural,

principalmente sua parte mais complexa – o princípio – já garanta-lhe um lugar no rol de

"heróis culturais" da Big History, o grande trunfo de Kant é sua Filosofia da História e a

promoção da ideia de uma História Universal. Mais que narrativa e ciência, a Geschichte

anuncia-se sob a forma da Weltgeschichte; a História existe em si mesma, com uma dinâmica

intrínseca independente dos homens. Kant expõe sua História Universal fundamentalmente

em duas obras: "Resposta à pergunta: O que é esclarecimento?" e "Ideia de uma História

Universal de um ponto de vista cosmopolita."

Resumidamente, de acordo com as proposições kantianas há uma doutrina teleológica

da natureza, a História é um processo temporal que envolve toda a humanidade, humanidade

esta que progride para um estágio racional e moral superior. Por sua vez, tal esclarecimento da

espécie levaria à construção de uma sociedade universal que dispensaria universalmente o

direito, e por conseguinte, à paz perpétua.

Kant foi, ao que tudo indica,16

o principal proponente da Weltgeschichte. Não é,

evidentemente, o único. Marx, Hegel, Tocqueville, Condorcet et al operaram com ela. Apesar

das diferenças particulares entre as hipóteses não-empíricas desses autores sobre a

Weltgeschichte, (teleológica, de qual "motor" move a História, etc), de modo geral a História

Universal revela-se eminentemente como uma nova maneira de ver a História: por uma

mirada mais ampla.

O estabelecimento de sentido (como a Historie também realiza) e a detecção de

processos ou tendências de larga escala, que funcionam tomando a humanidade como um

todo (marca da universalidade iluminista; é curioso notar como a Weltgeschichte traduz-se por

vezes como human history17

) só é possível a partir desse afastamento proporcionado pela

História Universal.

Nesse sentido, a Big History surge como a lente complementar à apresentada pela

Weltgeschichte. Da história tradicional, fragmentada e local, ascende-se à uma que trata da

marcha, da aventura humana na Terra. À Big History cabe inscrever a experiência antrópica

na história cósmica, como queria Humboldt.

Este é um momento oportuno para irmos de encontro ao núcleo da Big History. Porém,

antes disso gostaria de levantar uma saudável digressão. Ela vem à luz a partir do

questionamento acerca dos limites e das armadilhas da História Universal.

François Jullien tem algumas palavras a dizer sobre o universal e a sua universalidade.

De acordo com ele, o universal é um conceito da razão, de caráter necessário e prescritivo,

que invoca um dever-ser. Trazendo Kant como um exemplo paradigmático desse universal,

14

SPIER, Fred. Op. cit., p. 19. 15

Idem, p. 13. 16

LEBRUN, Gerard. Uma escatologia para a moral. In: Manuscrito. CLE/Unicamp, vol. 2, nº 2, 1979. 17

SPIER, Fred. Op. cit., p. 8.

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Jullien ressalta a universalidade peculiar da filosofia histórica de Kant, na qual "toda conduta

humana é submetida por princípio à mesma lei, esta concebida a partir da universalidade

característica das leis da natureza."18

Kant, pois, como outros representantes do pensamento iluminista, não se dava conta da

existência de um sujeito cultural. Mais do que isso, Kant não levantou uma questão fulcral

que é, segundo Jullien, se "esse universal não consagraria realmente a supremacia, hoje

vacilante e ainda mais inabordável, da razão ocidental e, sob ela, o imperialismo de uma

civilização?"19

Eis uma armadilha encontrada pela História Universal, qual seja, ao tentar construir uma

narrativa dotada de uma universalidade "forte", baseada numa necessidade de princípio, ela

acaba por representar apenas a consciência europeia, a qual não suspeita que alguns conceitos

e categorias não são universais, não são pensadas por outras culturas.

Subscrevendo-nos ao conceito de História Universal posto pelo Iluminismo, fraco e

eurocêntrico, outras armadilhas vêm à tona. Numa perspectiva progressiva, quintessência do

Iluminismo, como definir e o que fazer com o que não está de acordo com seu telos e com a

razão que faz mover o progresso?

A História (Geschichte) passa a ser, por um lado factível, mas por outro exerce um

superpoder sobre os homens.20

Nas palavras de Marx em sua obra O dezoito Brumário, "Os

homens fazem a sua própria História, mas não a fazem livremente[...]" E ao faze-la, relegam

os elementos recalcitrantes aos silêncios da História.

É a partir da Humanidade – vale dizer, humanidade europeia – que se mede o progresso;

ela é sua pedra de toque. Caso um elemento de algum sujeito cultural que esteja fora ou às

margens da esfera europeia seja visto sob uma luz positiva, será cooptado para a narrativa

europeia. Os elementos negativos, contudo, são calados e seus apreciadores podem muito bem

ser chamados, como Heródoto o foi, de filobarbaros.

A crise já pode ser vislumbrada no horizonte, e a História Universal se configura como

crença dos séculos XVIII e XIX. Em tempo, os limites dessa crença no ídolo do progresso

afloraram no século XX. A crença no conceito de uma História Universal e em sua

exequibilidade, durante o século XX, decaiu; poucos, como Oswald Spengler e Arnold

Toynbee, arriscaram-se nesse campo, e suas visões da história não mais eram impregnadas de

um otimismo como haviam sido as dos pensadores das Luzes. A sua infinitude foi posta em

cheque.

A agenda ecológica e a finitude dos recursos, como manifestada por Spier e muitos

outros, ganha força a cada dia. Ademais, a ciência e a razão, forças motrizes por trás do

progresso, passaram a ser vistas com ambivalência e desconfiança. Por um lado, trazem

remédios e lenitivos para a condição humana; por outro, avanços científicos como a

descoberta do poder do átomo conjuraram o possível fim da espécie.

Contudo, não estou convencido da força dessa desconfiança; de fato, parece-me que

precisamente o oposto acontece, e que a ciência, ou melhor, as hard sciences, recrudescem. É

a ciência o alicerce da Big History, e é a partir do ponto de vista científico que ela tecerá sua

narrativa, como veremos.

Seja como for, voltou a prevalecer nos estudos históricos a abordagem em escala menor,

mais especializada. No âmbito acadêmico, uma escola – a escola dos Annales – marcou a

produção historiográfica do século XX. Marc Bloch, um de seus fundadores, defende que:

18

JULLIEN, François. O diálogo entre as culturas: do universal ao multiculturalismo. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 2009, p. 23. 19

Idem, p. 28. 20

KOSELLECK, Reinhart. Op cit., p. 216.

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"A vida é muito breve, os conhecimentos a adquirir muito

longos para permitir, até para o mais belo gênio, uma

experiência total da humanidade. O mundo atual terá sempre

seus especialistas, como a idade da pedra ou a egiptologia. A

ambos pede-se simplesmente para se lembrarem de que as

investigações históricas não sofrem de autarquia. Isolado,

nenhum deles jamais compreenderá nada senão pela metade,

mesmo em seu próprio campo de estudos; e a única história

verdadeira, que só pode ser feita através da ajuda mútua, é a

história universal."21

Parece-me mais do que fortuito que a Big History seja igualmente apologética dessa

solidariedade entre as disciplinas; David Christian, seu organizador, confirma que começara

sua carreira acadêmica em História inspirado na escola dos Annales. De fato, ele parece

carregar para a Big History muito do que absorveu da escola dos Annales, como a supracitada

exigência de uma interdisciplinaridade. Por outro lado, como também já foi mencionado, o

homem é afastado como objeto central da História. Mas sobretudo, a História parece refulgir

como história- problema, e David Christian volta ao passado com uma grande pergunta em

mente.

A Big History: o que a torna grande

"Quem sou eu? Aonde eu pertenço? Qual é a totalidade da qual

eu sou parte?" De alguma forma, todas as comunidades

humanas perguntaram essas questões. E na maioria das

sociedades humanas, sistemas educacionais, formais e

informais, tentaram responde-las. Frequentemente, as respostas

têm sido engastadas a mitos de criação. Pelo fato de oferecerem

relatos notáveis e de autoridade sobre como tudo começou –

mitos de criação fornecem coordenadas universais com as quais

pessoas podem imaginar sua própria existência e encontrar um

papel no plano mais amplo das coisas."22

De acordo com David Christian, toda sociedade humana que conhecemos contou

histórias sobre como ela e tudo que a circunda veio a ser. Retomando a posição de Koselleck

citada acima, essas histórias – ou mitos de origem – fornecem sentido, orientação, identidades

e objetivos. Com a nossa sociedade não é diferente. A Big History pretende ser o mito de

origem moderno, trazendo uma narrativa unificada das origens do Universo, da Terra e dos

homens, a partir da perspectiva do século XXI. Sua peculiaridade, de certa maneira fruto de

nosso contexto cultural que exorta a ciência, é explicar as origens a partir do conhecimento

científico.

A Big History não recebeu esse nome apenas pelo fato de reanimar as grandes questões

citadas acima, quase atemporais; ela é também "grande" pelo modo como opera, as linhas do

tempo que inaugura e pela massa de conhecimento que move para compreender seus também

numerosos objetos. A pergunta "Quem sou eu", por exemplo, leva o big historian, numa

verdadeira obsessão pelas origens, do indivíduo à espécie, sobre a origem da humanidade e

sua evolução; daqui, deve retroceder à questão da evolução da vida e como ela permitiu o

21

BLOCH, Marc. Op cit., p. 68. 22

CHRISTIAN, David. Maps of time: an introduction to Big History. California: University of California Press,

2005, p. 1.

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surgimento dos homens; mas antes da origem da vida, deve analisar como a Terra formou-se e

que condições possibilitaram a existência de vida; e, finalmente, como o Universo surgiu e

acabou originando galáxias, estrelas, etc.

Fica patente, pois, como a Big History ganhou esse nome; é uma história de como tudo

veio a ser, do começo do Universo aos dias de hoje. Ademais, ela realmente celebra a

vacuidade de conteúdo original da palavra "História"; não hesita em ultrapassar as fronteiras

do humano para ver o mundo natural, como em certa medida fez Heródoto.

Contudo, afastando-se do pai da história, para o qual o estudo do passado era em grande

parte limitado, a Big History alarga a escala temporal da história de uma forma inédita.

Heródoto, com seu método crítico, preocupava-se com a confiabilidade de suas fontes23

(na

oposição ópsis-akoé24

), e a partir dessa crítica o que estava muito recuado no tempo não era

conhecível ou relatável. Em contrapartida, os meios por meio dos quais a Big History pode

conhecer o passado causariam considerável inveja a Heródoto.

A revolução cronométrica25

– a introdução nas ciências de maneiras cada vez mais

confiáveis de datar eventos ou idades, como a datação por Carbono 14 – foi um ponto crucial

para o desenvolvimento da Big History. Com ela, a elaboração de uma "história de todas as

coisas" se desagrilhoaria da necessidade de textos escritos, e a linha do tempo da História

poderia recuar vigorosamente e com credibilidade, para além das "duas ou três gerações" de

Heródoto.

A linha do tempo da Big History

Fonte: bighistoryproject.com

Como podemos ver, a Big History tem como ponto de partida o Big Bang, evento

fundador que ocorreu há aproximadamente 14 bilhões de anos atrás. Por sua vez, narrativas

históricas convencionais, situadas em um regime documental, costumam estabelecer seu

início ca. 10.000a.c., momento em que despontam as sociedades que dominam a escrita. O

período antecedente é, pois, apropriadamente designado como Pré-história (ca. 7.000.000a.c.),

admitido que, para haver História deve haver escrita.

Seja como for, o paradigma (pré)histórico é derrubado pela Big History, na qual dez mil

ou dez milhões de anos mostram-se relativamente insignificantes diante de uma escala

temporal de 14 bilhões de anos. A Big History insere a pequena parte da história que cabe ao

Homem em uma parte maior, que cabe à Natureza. De fato, a Big History é dividida

tipicamente em oito limiares de complexidade crescente, sendo cinco deles voltados para o

mundo natural.

23

MOMIGLIANO, Arnaldo. Op. cit., p. 63. 24

Heródoto, II, 99. 25

Cf.: CHRISTIAN, David. Op. cit., apêndice 1.

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Departamento de História

Como veremos a seguir, a compreensão do funcionamento dessa divisão e de seus

conceitos subjacentes é o sustentáculo para que se possa compreender a Big History como um

todo. Nesse sentido, ela se revela, a um tempo, como uma narrativa histórica que unifica e

utiliza todo conhecimento científico e como uma disciplina na qual podemos, em teoria,

integrar todo esse conhecimento científico. Ela acaba por configurar-se como um ponto de

encontro entre as várias áreas do conhecimento humano, sendo, portanto, maior que a História

acadêmica que conhecemos.

Big History e seus conceitos fundamentais

Sobre a Big History, Fred Spier resume-a da seguinte forma: "A Big History lida com a

emergência e o declínio da complexidade."26

Mas como definir "complexidade"? Segundo

Spier, não há uma definição universalmente válida para o termo, embora definitivamente

operemos com ele, quando por exemplo, afirmamos que um ser humano é mais complexo que

uma bácteria. A ideia de complexidade é, sobretudo, um contínuo, que abrange o que há de

mais simples até o que há de mais complexo. Temos, portanto, alguns índices que auxiliam-

nos a pensar o que é complexidade, a partir da distinção, inerente a este contínuo, entre

simples e complexo.

Primeiro27

, algo pode ser caracterizado como complexo pelo número de "ingredientes"

ou elementos constituintes (Spier usa a expressão building blocks) que possui – conforme

mais "ingredientes", mais complexa pode ser uma estrutura.

Segundo28

, pela precisão e pela variedade de conexões existentes entre os ingredientes;

de maneira análoga, é como o fenômeno biológico da mutação: uma pequena mudança na

sequência genética pode ser um fator limitante em um organismo.

Terceiro: Algo dotado de complexidade apresenta propriedades emergentes que não

existiam até o preciso arranjo dos building blocks ser feito. Essas inovações trazidas pela

criação de complexidade são os motores da Big History. Os limiares ou pontos de virada

(Spier e Christian usam o termo threshold) marcam um ponto na história em que coisas

inteiramente novas surgiram e outras tornam-se possíveis; é como um alargamento do

horizonte de possibilidades. A complexidade configura-se, portanto, como um dos conceitos

fundamentais.

Porém, para que haja a emergência e a manutenção de complexidade, as circunstâncias

devem ser adequadas. Fred Spier denominou essa necessidade de condições ideais de

Goldilocks principle29

, baseado no conto infantil epônimo. Esse princípio tem larga aplicação

na Big History, atravessando todos os thresholds estabelecidos. Ele pode referir-se tanto ao

que é da ordem do mundo natural (e.g. pressão, radiação, temperatura) como ao que é da

ordem do mundo humano (e.g. roupas, ferramentas, leis). De qualquer maneira, é esse

princípio que regula a emergência de complexidades e sua manutenção.

Ademais, Spier afirma que "as circunstâncias para que haja emergência frequentemente

não são as mesmas que possibilitam sua continuidade."30

Por exemplo, as circunstâncias

ideais para a formação das primeiras partículas, pouco depois do Big Bang (1º limiar) não são

as mesmas que regulam sua continuidade.

Embora dizer que "só há emergência (ou manutenção) quando há condições que possam

suportá-las" pareça trivial, o fato da questão é que raramente as condições são ideais, tanto

26

SPIER, Fred. Op. cit., p. 24. 27

Idem. 28

Idem, p. 25. 29

Idem, pp. 36. 30

Idem, p. 37.

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para a emergência quanto para a manutenção. A complexidade é frágil, e o complexo é mais

raro que o simples.

A segunda lei da termodinâmica segundo a qual "em um sistema fechado (como o

Universo parece ser), a quantidade de energia capaz de realizar trabalho tende a se dissipar ao

longo do tempo."31

Esta lei choca-se com outro argumento de Spier, que é: "o fluxo de

energia através da matéria, dentro de certas condições-limite, causa a ascensão e o declínio

de todas as formas de complexidade." Dessa forma, de acordo com a segunda lei da

termodinâmica, a tendência natural do Universo é tornar-se cada vez mais caótico e simples –

com a tendência decrescente na disponibilidade de energia, a emergência e a manutenção de

complexidades também diminui.

Apesar de abstrato, o argumento de Spier pode ser exemplificado de uma forma

simples. Ora, basta pensarmos, bem na perspectiva da foto Earthrise, na propalada crise

energética que a humanidade tem que encarar em comum (bem no sentido que François

Jullien dá para o comum, o de uma responsabilidade compartilhada32

). O fim dos

combustíveis fosseis, por exemplo, parece agourar o fim – ou pelo menos uma grande ameaça

– à nossa complexidade.

Para resumir a posição de Spier, que de certo modo apresenta o método da Big History,

cito-o:

"Em suma, para compreender a ascensão e o declínio de

qualquer tipo de complexidade, nós devemos olhar não só para

o fluxo de energia através da matéria mas também examinar

sistematicamente as circunstancias Goldilocks vigentes. Penso

que combinar os princípios Goldilocks à observação dos fluxos

de energia através da matéria pode fornecer um primeiro

esboço de uma teoria histórica de tudo, inclusive da história

humana. Apesar dessa teoria não explicar tudo que já

aconteceu, ela dá uma explicação para as tendências gerais na

Big History."33

A propósito, ao longo deste trabalho usarei as definições dadas por Fred Spier para

matéria e energia. Ele as define da seguinte forma34

:

Matéria: tudo que os homens em princípio possam tocar, mas nesse sentido

também tudo que o homem pode medir.

Energia: tudo que pode transformar a matéria, seja em sua estrutura, movimento

ou grau de complexidade.

Para melhor esclarecer o funcionamento da Big History, dedicarei as próximas páginas à

demonstração de como a Big History põe seus conceitos fundamentais em ação, o que, espero,

dará ao leitor uma ideia geral da disciplina e de sua narrativa.

31

CHRISTIAN, David. Op. cit., p. 506. 32

JULLIEN, François. Op. cit., p. 42. 33

SPIER, Fred. Op. cit., p. 39. 34

Idem, p. 23.

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Uma narrativa de 14 bilhões de anos: o mito de origem moderno

Fonte: bighistoryproject.com

Esta é a escala temporal da Big History, em sua monumental extensão. Nesta imagem

estão destacados os limiares de complexidade crescente, que são35

:

1. O Big Bang e a origem do Universo; (cosmologia – 14bi. anos)

2. Origem das galáxias e das estrelas; (astronomia – 13.5bi. anos)

3. Origem de novos elementos químicos (química – 13.5bi. anos)

4. Origem da Terra e do sistema solar (geologia – 4.5bi. anos)

5. Origem da vida na Terra (biologia – 3.8bi. anos)

6. Seres humanos e o "aprendizado coletivo" (200.000 anos)

7. A agricultura (10.000 anos)

8. A revolução moderna (200 anos)

9. O futuro

Reiterando, cada limiar desses denota a emergência de uma complexidade maior, que se

desenvolveu a partir de complexidades relativamente menores. De certa forma, é como

apontou Marc Bloch: "a linguagem, essencialmente tradicionalista, conserva o nome de

história para todo o estudo de uma mudança na duração."36

Deveras, cada limiar marca um surgimento, ergo, uma mudança. Spier percebe nessas

"mudanças na duração" que as complexidades podem ser distinguidas em três níveis, do mais

simples ao mais complexo: natureza física inanimada, vida e cultura.37

Por se tratar de um trabalho que pretende tematizar mais a História, a análise de cada

dos thresholds iniciais será breve. O foco incidirá sobre os três últimos thresholds, quando

começa a história humana. Porém, vale lembrar que a abordagem da Big History permite que

a maneira com a qual a História é apresentada seja flexível, pendendo ora para o lado natural

ora para o lado humano, mas sem nunca separá-los de todo.

35

Em destaque, as áreas do saber que dominam cada threshold e aproximadamente há quantos anos distam de

nós. Note que a partir do sexto threshold, já lidamos com a história humana e com as soft sciences. O futuro,

evidentemente, não é um threshold genuíno, já que não temos evidências dele; nele reina a especulação. 36

BLOCH, Marc. Op. cit., p. 53. 37

SPIER, Fred. Op. cit., p. 27.

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O Big Bang

Antes de tudo, um breve comentário se faz necessário, que se aplica à Big History como

um todo mas tem no Big Bang um ótimo exemplo. David Christian diz que "antes do Big

Bang, não podemos dizer nada com segurança sobre o Universo."38

Ora, isto nos diz ao

mesmo tempo duas coisas. Primeiro que, de forma análoga ao silêncio da História Universal,

a Big History também apresenta seus momentos de mutismo.

Esses sigilos são patentemente de natureza diferente, sendo o da Big History menos um

ato volitivo que uma verificação do limite da ciência. Mas esse limite, evidentemente, não é

fronteira instransponível; inovações tecnológicas e científicas poderão, em algum ponto do

futuro, voltar ~14 bilhões de anos no tempo e afirmar com segurança o que (ou se) havia antes

do Big Bang. Nesse sentido, a Big History caracteriza-se por ser um "eterno" work in

progress. Dito isso, retornemos ao início do Universo.

A despeito desses silêncios sobre o momento do Big Bang e seu antecedente, a ciência

hoje já pode construir, tendo a radiação cósmica de fundo (Cosmic Background Radiation39

)

como evidência, uma história fidedigna do que ocorreu imediatamente após.

A descoberta da CBR por Penzias e Wilson em 1964 foi precedida pelas ideias de

Edwin Hubble, que fundam a cosmologia do Big Bang. No fim da década de 1920, Hubble

observara que as galáxias distantes pareciam estar se movendo para longe de nós. A análise da

luz proveniente desses objetos ao atravessar um espectrômetro confirmou a hipótese de

Hubble. Segundo Christian:

As implicações da descoberta de Hubble são espetaculares[...]

temos de supor que outros observadores em qualquer outra

parte do Universo também perceberiam esse distanciamento de

outros objetos em relação a eles. [...]Isto significa que o

Universo como um todo está se expandindo. Se ele está se

expandindo, em algum momento do passado ele deve ter sido

muito menor do que é agora; seguindo este argumento, somos

levados diretamente a teoria moderna do Big Bang: o Universo

fora infinitesimalmente pequeno, mas então se expandiu e

continua a se expandir até hoje40

.

O Big Bang, como marco da emergência de uma complexidade maior, trouxe novos

building blocks que foram (e são) de extrema importância para o surgimento de

complexidades cada vez maiores e para a manutenção de certas condições Goldilocks, como

por exemplo, as que possibilitam a vida. Os building blocks foram: energia e matéria (ambos

se confundiam antes do Big Bang); as forças fundamentais (gravidade, eletromagnetismo e

forças nucleares); elétrons, prótons, nêutrons e suas partículas. Com o curso da expansão o

universo começou a esfriar, o que possibilitou o surgimento de átomos de Hidrogênio e Hélio.

As estrelas: o que nos deram e como surgiram

Nesta seção, que cobre os limiares 2 e 3, poderemos apreciar a construção de

complexidade tendo como referência o quadro evolutivo estelar. Até esse ponto, o Universo é

38

CHRISTIAN, David. Op. cit., p. 37. 39

Idem, pp. 33-34. 40

Idem, p. 31.

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escuro e tem estado em um processo de esfriamento, derivado de sua própria expansão. Com

as estrelas inaugura-se a Era Estelífera (ca. 200 milhões de anos após o Big Bang), e nela

alguns pontos do Univero começam a apresentar luz e temperaturas crescentes – são as

estrelas. Contudo, o Universo caracteriza-se, de modo geral, por ser aparentemente simples.

Nele, as estrelas - posteriormente as galáxias - são verdadeiras ilhas de complexidade.

As estrelas formam-se a partir da interação entre os building blocks criados pelo Big

Bang, mais precisamente, pela atração da gravidade41

sobre concentrações de nuvens de hélio

e hidrogênio.42

Conforme a densidade dessas nuvens aumenta, sua gravidade fica mais forte, o

que atrai a matéria dessa nuvem; o choque incessante entre os átomos de H e He leva a uma

fusão nuclear, até que uma estrela é formada.

Mas a verdadeira inovação deste limiar ainda está por vir, e ela reside no núcleo das

estrelas. As estrelas queimam, em seu regime energético, hidrogênio e hélio. De fato, nenhum

outro elemento existia, de modo que "a maior parte de nosso material planetário ainda esteja

nessa forma (e.g. Júpiter, Saturno)43

. Como então nossa conhecida tabela periódica veio a

conter todos os seus elementos?

A resposta é a nucleossíntese estelar44

, a criação de novos elementos dentro das estrelas.

Após sucessivas fusões nucleares e aumentos de temperatura dentro do núcleo estelar,

estabelecem-se condições Goldilocks que favorecem novos processos de nucleossíntese, do

hélio para o carbono, deste para o neônio, deste para o oxigênio, deste para o silício e

finalmente para o ferro. Já podemos imaginar planetas mais complexos com esses elementos.

Os elementos da água, por exemplo, já passam a existir.

Esse processo pode ocorrer ao longo da vida de uma estrela, tudo depende de sua massa.

As menores queimam seu combustível (hidrogênio ou hélio) e desaparecem, sem realizar

qualquer outra nucleossíntese. Em sua fase final, as estrelas dotadas de grande massa, após

todos as diferentes fusões nucleares, não mais podem sustentar o seu núcleo contra a força da

gravidade. Ela então entra em colapso e explode, no fenômeno conhecido como Supernova.

Essa explosão cria, por sua vez, todos os outros elementos químicos da tabela periódica até o

urânio (Z=92). Em suma, mais building blocks surgiram da vida e da morte das estrelas, que

criaram condições para o aumento de complexidade.

Anteriormente foi exposta a ideia de que a complexidade é frágil, e que o complexo é

mais raro que o simples. De fato, o Universo consiste em sua maior parte de empty space, um

vácuo que na verdade não é exatamente vazio; esse "espaço vazio", ao que tudo indica,

relaciona-se com o estudo da "matéria escura" (dark matter), ainda pouco compreendida.

De qualquer maneira, esse espaço intergaláctico contrasta vertiginosamente com as já

mencionadas ilhas de complexidade que são as galáxias, pontos do Universo ricos em matéria

e energia. Elas se dão a partir da força atrativa da gravidade sobre as estrelas, que as reúne sob

diferentes maneiras. As galáxias não são imunes à gravidade, e também são agrupadas nos

chamados clusters, e estes em superclusters.

Mas não nos afastemos muito; nosso objetivo agora será examinar uma galáxia especial,

na qual complexidades notáveis emergiram de forma inédita. Ela é a Via Láctea.

A Terra e a vida

Desde seu começo, cerca de 98% da matéria atômica do Universo é composta de

hidrogênio e hélio. Graças ao terceiro limiar de complexidade, os outros 2% contêm todos os

outros elementos da tabela periódica. Entretanto, foi essa parte minúscula que permitiu a

41

Fred Spier aponta que, além da gravidade, a matéria escura possa ter influenciado nesse processo (p. 53). 42

CHRISTIAN, David. Op. cit., p.56. 43

SPIER, Fred. Op. cit., p. 60. 44

Idem.

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emergência de novas complexidades, como os planetas. Os planetas são, pois, o resultado

deste quarto limiar de complexidade crescente. Como sabemos, uma complexidade é

construída a partir da complexidade anterior. Nesse limiar, as estrelas formadas no estágio

precedente têm um papel fundamental.

Uma dessas estrelas é a que chamamos Sol. Seu campo gravitacional, combinado ao

processo de acreção, formou a Terra, há aproximadamente 4.5 bilhões de anos. Com a

acreção, os elementos circundantes começaram a se agrupar por meio de colisões e atrações

gravitacionais, formando os planetas45

. Os de composição quimicamente leve, de hélio e

hidrogênio – os gigantes gasosos – localizam-se distantes do Sol, ao passo que os pesados e

rochosos encontram-se mais próximos.

Um desses planetas rochosos é a Terra, onde uma complexidade ainda maior surgirá, a

vida. Isso se deve ao fato de que o nosso planeta está na chamada "zona galáctica habitável",

na qual condições Goldilocks existem para a emergência de vida. Tais condições são:

Presença de uma estrela-mãe

Quantidade suficiente de elementos para formar planetas terrestres

Tempo suficiente para que ocorra uma evolução biológica.

Ambiente livre de supernovas.

A Terra apresenta, em particular, uma distância impressionantemente adequada

em relação ao Sol.

Até aqui, a história estava vazia de vida. Deste thresholds em diante, a Big History terá

sempre a vida como a complexidade emergente mais importante, como diz Spier.

Mas como definir o que é vida? Novamente, como aconteceu com o conceito de

complexidade, uma definição é excessivamente complicada. David Christian opta por delinear

os traços e qualidades comuns a todos os seres vivos. Eles são:

Metabolismo: capacidade de criar ou tirar energia do ambiente (em forte sintonia

com a teoria de Spier sobre energia-matéria-complexidade.)

Homeostase: capacidade de regular suas condições internas

Reprodução: capacidade de criar "cópias" de si mesmo

Adaptação: mutações adaptadas ao ambiente

As condições goldilocks para a formação de vida são, como deve ser na Big History,

derivadas da emergência de complexidades anteriores. Os elementos químicos cruciais, como

o carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e enxofre devem sua existência ao Big

Bang e às estrelas; ademais, como uma constante na Big History, deve haver sempre energia

para que os processos se desenrolem e novas complexidades possam surgir.

Sob essas condições, a vida pôde surgir e evoluir, de acordo com a teoria de Darwin, o

respaldo científico principal desse estágio. Ao longo de um processo de 4 bilhões de anos, que

observou o aparecimento de bactérias, algas e fungos; do primeiro cérebro, do primeiro peixe

e da vida chegando ao solo; dos primeiros insetos e anfíbios; dos dinossauros e de seu fim,

causado pelo impacto de um asteroide; dos mamíferos e dos primeiros hominóideos,

45

SPIER, Fred. Op. cit., p. 57.

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A ascensão da maior complexidade

Então surge o homo sapiens, evoluídos a partir da família dos hominídeos. A principal

característica dessa espécie é, talvez, ter desenvolvido um poderoso cérebro, o que ocasionou

a obtenção da capacidade de criar e utilizar uma linguagem simbólica.

O uso de uma linguagem simbólica amplificou a transmissão de informações através de

indivíduos, grupos e gerações. Esse "aprendizado coletivo" (collective learning) é o grande

marco desse threshold. Penso ser este o principal limiar da Big History, pois vejo no conceito

de "aprendizado coletivo" uma evidente conexão com a ideia histórica de progresso. Ainda,

creio que esse tema já havia aparecido em algumas obras.

Caso em questão, a segunda proposição de Kant:

"[...]Para isso, um homem precisa ter uma vida

desmesuradamente longa a fim de aprender a fazer pleno uso de

todas as suas disposições naturais; ou, se a natureza concedeu-

lhe somente um curto tempo de vida (como efetivamente

aconteceu), ela necessita de uma serie talvez indefinida de

gerações que transmitam umas às outras suas luzes para

finalmente conduzir em nossa espécie, o germe da natureza

àquele grau de desenvolvimento que é adequado ao seu

propósito."46

Ainda nesse sentido, Rousseau em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da

desigualdade entre os homens, logo após sua célebre passagem sobre a origem da propriedade

privada diz:

"Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas já então

tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como

eram, pois essa ideia de propriedade, dependendo de muitas

ideias anteriores que só poderiam ter nascido sucessivamente

não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso

fazer-se muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes,

transmiti-las e aumenta-las de geração para geração, antes de

chegar a esse último termo do estado de natureza."47

Em outro momento da mesma obra, Rousseau também havia apontado e enaltecido a

importância da linguagem e desse processo de transmissão das "luzes".

Agora encontramo-nos dentro do nível cultural de complexidade, e a partir daqui a

construção de complexidades sempre dependerá da intervenção da cultura e do aprendizado

coletivo. É pertinente, porém, ressaltar que apesar de ficarem em segundo plano, as mudanças

biológicas do ser humano não param. Spier inclusive aponta reciprocidades entre a cultura e a

biologia, citando como exemplo a alimentação, que em parte é cultural e em parte é

influenciada pela genética.48

46

KANT. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Ed. Martins Fontes,

2011. 47

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. Ed. Nova Cultural, 1999, p. 87. 48

SPIER, Fred. Op. cit., p. 138. No exemplo de Spier, o consumo de leite animal levou a sociedades com genes

que facilitam a digestão desses produtos animais. Essa vantagem genética, por sua vez, teve consequências

culturais, como por exemplo o crescimento de uma indústria global baseada em laticínios.

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O aprendizado coletivo, difundindo "luzes" para o indivíduo e para a espécie, funciona

como um mecanismo de adaptação e seleção "artificial"49

(ou cultural) próprio dos seres

humanos, por meio do qual as comunidades humanas, em processo de adensamento

demográfico e cultural, sedentarizam-se com a agricultura. Os building blocks – as

comunidades humanas e seu capital cultural – em condições adequadas derivadas do fim da

última era glacial, levaram os seres humanos a essa nova complexidade, o domínio sobre o

solo.

Acerca dos thresholds 6 e 7, Spier propõe uma pergunta, que abre outra chave de

compreensão sobre os humanos. Ele questiona se os humanos são geneticamente configurados

para tirar mais matéria e energia do que nós precisamos para sobreviver e reproduzir. É uma

pergunta razoável, e de fato os seres humanos, via collective learning, têm descoberto e

dominado quantidades cada vez maiores de matéria e energia.

A agricultura, "sustentáculo da civilização", concentrou nas mãos de uma espécie uma

quantia de recursos (matéria e energia) inaudita50

, o que estimulou mais sedentarismo,

aumento demográfico, amplificou os efeitos do aprendizado coletivo e o dinamismo histórico

acelerou-se51

. O valor da agricultura é de tal monta que numerosas sociedades vangloriaram-

se por tê-la possuído. Na Grécia antiga, por exemplo, o binômio bárbaro-civilizado era

informado (mas não somente por esse critério) pela distinção entre agrícolas e silvícolas.

Pródico de Ceos, ciente do esplendor da agricultura, afirmou que:

"[...] a descoberta das technai, as "artes", e, particularmente,

daquela que é a origem de todas as artes, que torna possíveis a

vida do homem e a expansão da sua inteligência, da fantasia e

do próprio sentido social: a agricultura."52

Por volta de 5000a.c., os primeiros estados surgem, graças a sua capacidade de captar

matéria e energia em grandes quantidades. Com esta nova estrutura organizacional, há uma

mudança que David Christian resume muito bem no título de um capítulo, "Do poder sobre a

natureza ao poder sobre as pessoas." Os seres humanos começam a usar outros humanos

como fontes de matéria e energia. Nesse sentido, podemos agora pensar nos estados como

agentes históricos que buscam a manutenção de sua complexidade e de suas condições

goldilocks53

.

Mais do que isso, devemos ter em mente que o estado pode centralizar seus recursos

para fins políticos específicos. Um exemplo que segue a teoria energia-matéria-complexidade

de Spier é a conquista da Gália pelos romanos. Na batalha de Alésia, o cerco à cidade é

interpretado como uma maneira de romper o fluxo de energia e de matéria, e por conseguinte,

a complexidade dos gauleses.54

O processo de formação dos estados, assim como a adoção da agricultura, ocorreu em

diversas partes da Terra. Os estados não eram a única forma de organização social e política

existente, embora fosse, de modo geral, a mais capaz de construir complexidades.

Há 500 anos, foram os estados que, explorando a energia presente nos ventos e nas

correntes marítimas, iniciaram a primeira onda de globalização, unificando o mundo

conhecido em uma rede de relações políticas e econômicas. Uma maneira de pensar a causa

das Grandes Navegações é pensa-la como a busca de matéria e energia para sustentar o

49

CHRISTIAN, David. Op. cit., p. 146. 50

SPIER, Fred. Op. cit., p. 141. 51

CHRISTIAN, David. Op. cit., p. 207. 52

Pródico, apud CASERTANO, Giovanni. Sofista. São Paulo: ed. Paulus, 2010. 53

SPIER, Fred. Op. cit., p. 156. 54

Idem, p. 139.

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ambiente competitivo europeu (tal ponto de vista, imagino, tira muito da ideia do "milagre

europeu", e omite causas tradicionais como a expansão do império otomano). Além disso, as

navegações, cerzindo o mundo nessa teia de conexões, disseminou o aprendizado coletivo por

todo o planeta.

A "descoberta do mundo" representada pelas navegações mudou a configuração global

dos fluxos de energia e matéria (tradicionalmente usaríamos, por exemplo, termos como

comércio, pessoas, etc.) do Oriente para o Ocidente. Mais uma vez, a sempre animada roda do

aprendizado coletivo, aliada ao acúmulo de recursos, criara condições goldilocks para que,

200 anos atrás, o último limiar de complexidade crescente se estabelecesse, cujo epicentro foi

a Europa.

A industrialização traz inovações no modo de produção de complexidades. Ela deixa de

priorizar um regime produtivo e energético eminentemente humano/animal e

solar/eólico/hídrico para um baseado em máquinas e combustíveis fósseis.55

Nesse regime,

formas tradicionais de produção foram tornando-se obsoletas. Os enclosures e o declínio das

manufaturas estudados por Marx, tidos como consequência desse "novo estado de coisas", são

vistos sob a ótica da Big History, como declínios de formas antigas de complexidade. É

interessante notar que isso é aplicável tanto nesse caso local (Inglaterra) quanto

internacionalmente. Mais do que isso, como esse declínio persiste até hoje.

Para o seu desenvolvimento, a industrialização dependia da ciência e da tecnologia. Isso

levou ao fomento de certos saberes de caráter cientifico, geralmente voltados para as ciências

do mundo natural. Isso levou a uma "cientificação" da sociedade, pois certamente apenas o

conhecimento científico poderia assegurar novas complexidades. A construção de

complexidades parece, pois, atrelada a essa explosão energética da revolução industrial, bem

como às inúmeras mudanças culturais aventadas pelo aprendizado coletivo.

O culto à ciência, que persiste até hoje é, criou condições goldilocks para que a

aceleração do século XX ocorresse. Além disso, é a ciência que tornou possível a própria

construção de uma narrativa como a da Big History, é a ciência que domina o mito das

origens da modernidade.

Conclusão – Século XX e além

Chegamos enfim ao século XX, ainda muito próximo de nós. Chamá-lo frenético é uma

atenuação. Sobre isso, imagino que muitos historiadores hão de concordar; nesse sentido cito

Marc Bloch e David Christian, que darão o mote desta conclusão. Primeiro, Bloch nos diz:

"Mas desde Leibniz, desde Michelet, um grande fato se

produziu: as revoluções sucessivas das técnicas ampliaram

desmedidamente o intervalo psicológico entre as gerações. Não

sem alguma razão, talvez o homem da era da eletricidade e do

avião se sinta bem longe de seus ancestrais. De bom grado ele

conclui disso, mais imprudentemente, que deixou de por eles ser

determinado."56

O diagnóstico de Bloch sobre a ligação do presente com o passado parece acurado, no

sentido de que esse sentimento de distanciamento entre os dois parece ser da ordem do senso

comum; nesse sentido, a aceleração do tempo e o subsequente aumento no intervalo

psicológico parece verificar-se. Mas a partir dessa investigação sobre a Big History, parece-

55

SPIER, Fred. Op. cit., p. 174. 56

BLOCH, Marc. Op. cit., p. 62.

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me claro que o homem do presente não só é determinado pelo passado como o é por mais

maneiras que ele imagina.

Primeiramente, a Big History, suprindo as deficiências de outras historiografias, reúne a

história humana, a história natural e a história cósmica, trazendo para o estudo histórico um

ponto de vista mais amplo, capaz de identificar processos e cadeias de causalidade não

exploradas antes na História. Nesse sentido, esse "ancestral" ao qual Bloch faz alusão,

certamente era um homem que vivia em um tempo recuado, talvez durante a Idade Média ou

mesmo no Egito. A Big History escancara essa relação, unindo esse homem do presente –

homo sapiens - ao homem do passado, ao neanderthal, aos primatas, aos dinossauros, aos

elementos, aos astros e ao Big Bang, o grande determinante.

A bird's eye view, visão panorâmica proposta pela Big History, pode por vezes dar a

impressão de que diminui a agência humana, seja por tratar do político de forma breve, seja

por não instilar sentimentos de identidade com povos, Estados ou nações. Contudo, por

conferir ao mundo natural sua devida importância, perceber os building blocks e condições

goldilocks presentes que sustentam nossa complexidade, a Big History busca instilar um

sentimento de cooperação entre os homens em favor da natureza.

O nosso futuro está (ou talvez sempre tenha sido) intimamente ligado à disponibilidade

de matéria e energia. O extraordinário dinamismo da revolução moderna tem acelerado o

ritmo da mudança histórica em nível global. Convivemos, nesta época com o dilema de ter de

conciliar construção de complexidade e sustentabilidade ecológica.

Nessa perspectiva, Christian comenta:

"As mudanças aceleraram tão rápido, e as ramificações das

mudanças foram tão universais, que esse período marca um

estágio completamente novo na história humana, na história da

relação do homem com outras espécies e com a Terra. Pode não

ser um exagero dizer que o século XX marca um momento

decisivo na história de toda a biosfera.57

De certa forma, o drama político e ecológico também parece estar presente nestas

palavras de Koselleck, que resgatam a agência humana:

"Somente a partir do momento em que aceleração e

retardamento conseguem medir diferenças de experiências, cuja

equalização se transforma em Leitmotiv de uma ação politico-

social, e só a partir do momento em que isso se vincula à

expectativa de um futuro planejável, é que existe o conceito de

História."58

A agenda ecológica é premente em nossa modernidade; ela é inextricavelmente ligada

ao político. Disto, evoco o conceito de comum, como exposto por Jullien, mais uma vez. De

natureza política, o comum refere-se à partilha, ao munus, à responsabilidade. Para a Big

History, o futuro de nossa espécie e do nosso planeta compartilhado depende de nossa ação

política responsável. Nossa complexidade é rara e antiga. A verdadeira "aventura humana na

Terra" começou, para a Big History, há 14 bilhões de anos, num longo processo de eventos

maiores inter-relacionados. Nesse sentido, e para concluir:

"Uma série de acontecimentos é chamada uma "História", define Chaldenius em 1752.

Mas a palavra série aqui não significa...apenas uma multiplicidade; mas mostra também as

57

CHRISTIAN, David. Op. cit., p. 440. 58

KOSELLECK, Reinhart. Op. cit., p. 40.

Page 19: BIG HISTORY, UMA RENOVAÇÃO NA TRADIÇÃO …...As raízes clássicas da historiografia moderna. São Paulo: EDUSC, 2004, p.55. Departamento de História Vejo que a Big History relaciona-se

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relações entre eles, e mostra que eles formam um conjunto. Essa visão de conjunto colocou-se

num nível mais elevado que os simples acontecimentos e episódios. É a grande História –

como disse Planck, em 1781 – que, como uma planta trepadeira, perpassa muitas histórias

pequenas."59

59

KOSELLECK, Reinhart. Op. cit., p. 123.

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Referências bibliográficas

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CASERTANO, Giovanni. Sofista. São Paulo: ed. Paulus, 2010.

CHRISTIAN, David. Maps of Time: an introduction to Big History. California: University

of California Press, 2005.

HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Brasília: UNB, 2003.

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de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

KANT. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Ed.

Martins Fontes, 2011.

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LEBRUN, Gerard. Uma escatologia para a moral. In: Manuscrito. CLE/Unicamp, vol. 2, nº

2, 1979.

MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. São Paulo:

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. Ed. Nova Cultural, 1999.

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