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TV digital: um debateque precisa de audiência*

A TV está passando por uma grande transforma-ção. Há grandes investimentos em pesquisas parapromover a migração do padrão analógico para o digi-tal. Isso implicará mudanças profundas neste que jáse consolidou como o meio de comunicação mais in-fluente da nossa sociedade.

Nas poucas reportagens em que aborda o tema, amídia brasileira trata desta mudança de maneira limi-tada, como se ela representasse apenas uma melho-ria da qualidade da imagem (a chamada alta defini-ção). A mesma imprensa também procura reduzir otema a uma escolha entre três padrões já existentes:o norte-americano (ATSC), o europeu (DVB) e o japo-nês (ISDB) – o que, na realidade, oculta o debate po-lítico em torno desta mudança.

A chegada da TV digital é muito mais do que aescolha de um dos padrões já implementados no mun-do: é um debate que precisa ser acompanhado de pertopela sociedade brasileira, pois se as decisões toma-das num futuro próximo produzirão forte impacto nomodo como assistimos à televisão e nas formas de soci-abilidade mediadas pelas tecnologias, podem tambémalterar o cenário de concentração dos meios, contribuirpara as políticas de inclusão digital e permitir uma apro-priação do público sobre o privado (...).

Importar um padrão oudesenvolver o sistema nacionalO debate sobre o desenvolvimento da TV digital

no Brasil tem sido reduzido a duas possibilidades extre-mas: ou se importa o sistema completo (padrão japonês,europeu ou norte-americano), ou se produz tudo localmente.Na verdade, as pesquisas em andamento no país reve-lam que o sistema brasileiro ideal deveria reunir ele-mentos já “consagrados” em outros países e outrosque precisam ser desenvolvidos nacionalmente (...).

As perguntas que devemos fazer são: quais sãoas vantagens de produzir nacionalmente elementosdo sistema de TV digital a ser adotado no Brasil? Emprimeiro lugar, a produção local tem o objetivo de for-talecer a pesquisa brasileira (estimulando nossas uni-versidades e centros de pesquisa e gerando empre-gos qualificados), diminuir nossa dependência exter-

na de produtos de alta tecnologia e criar uma indústrianacional, iniciativas fundamentais para que o país nãoperpetue sua dependência tecnológica e industrial emrelação aos países desenvolvidos.

Em segundo lugar, somente um modelo desen-volvido a partir das realidades do país pode responderao desafio de ser um instrumento que impulsione nos-so desenvolvimento social, cultural, político e econô-mico. Basta dizer, neste caso, que uma TV digital bra-sileira pode ser um importante instrumento de inclu-são digital, o que não é uma necessidade para umpaís como os Estados Unidos, cujo padrão prioriza aalta definição ao invés da interatividade. No Brasil,menos de 20% da população usa computador eInternet em casa, mas mais de 90% têm TV (...).

Interatividade a serviçoda sociedadeAs “maravilhas” da TV digital apresentadas pela

imprensa são novidades vinculadas à criação de ser-viços comerciais, como venda interativa, jogos, con-sultas personalizadas (previsão do tempo, resultadode jogos), pay-per-view, etc. Ou seja, novidades quecertamente incrementariam os lucros dos detentoresdas emissoras de televisão.

A TV digital, entretanto, pode cumprir um impor-tante papel na afirmação da cidadania. Com o uso dainteratividade, por exemplo, a TV pode disponibilizarnas casas dos brasileiros serviços interativos de edu-cação (que respondem às demandas específicas decada usuário), de governo eletrônico (declaração deimposto de renda, pagamento de taxas, extrato defundo de garantia, boletim escolar dos filhos, etc.), usode correio eletrônico (cada brasileiro com uma contade e-mail) e, no limite, acesso a toda a Internet.

Outro grande impacto da TV digital que deve serurgentemente discutido pela sociedade é a possibilida-de de inserção de mais canais de TV, a chamada multi-programação. No mesmo espaço onde hoje se transmi-te um único canal, a TV digital permite a recepção dequatro novas programações (desde que não seja ado-tada a alta definição). Se levarmos em conta que a TVdigital irá ocupar (ao final do período de transição) o

As decisões tomadas

num futuro próximo

produzirão forte

impacto no modo

como assistimos

à televisão.

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Trechos da Carta Aberta, assinada pelas entidades listadas acima (que representam mais de 450

organizações) enviada em outubro ao Congresso Nacional e à Presidência da República. Os demais

textos desta publicação não refletem necessariamente a posição dessas entidades.

É preciso afirmar com

convicção que só um

sistema desenvolvido

nacionalmente será

capaz de dar respostas

satisfatórias às

necessidades do país.

*

◆◆◆◆◆ ABCCOM – Associação Brasileira de Canais Comunitários

◆◆◆◆◆ ABONG – Associação Brasileiras de ONGs

◆◆◆◆◆ ABTU – Associação Brasileira de TVs Universitárias

◆◆◆◆◆ Campanha Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania

◆◆◆◆◆ CBC – Congresso Brasileiro de Cinema

◆◆◆◆◆ Cris Brasil – Articulação Nacional pelo Direito à Comunicação

◆◆◆◆◆ FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

◆◆◆◆◆ FORCINE - Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual

INFORMATIVO TV DIGITAL é uma publicação especial do INTERVOZES - Coletivo Brasil de Comunicação Social(www.intervozes.org.br). Equipe de redação: Bia Barbosa, Carolina Ribeiro, Diogo Moyses, Gustavo Gindre, JonasValente, Márcio Kameoka, Michelle Prazeres, Tatiana Lotierzo. Edição de Arte: Beto Borges (www.betoborges.net).

espaço que vai do canal 7 do VHF ao 69 do UHF, vere-mos que se torna perfeitamente possível a ampliaçãodos emissores de programação e, assim, a ampliaçãosignificativa dos produtores de conteúdo televisivo. As-sim, além dos operadores privados e estatais, tambémsindicatos, associações, ONGs, movimentos sociais eemissoras geridas coletivamente poderiam ter seus ca-nais (...).

Hélio Costa: representantedos interesses privadosO governo FHC previa a escolha entre os três sis-

temas existentes. No governo Lula, o debate avançoupara a possibilidade de se criar um Sistema Brasileirode TV Digital (SBTVD). Ainda em 2003, foi criado umfórum governamental (Grupo Gestor) para definir aspolíticas da TV digital, assessorado por um Comitê Con-sultivo com representantes da sociedade civil. Em para-lelo, o governo divulgou 22 editais de pesquisa para queconsórcios formados por universidades, centros de pes-quisa e empresas pudessem desenvolver as peças que,juntas, formariam o SBTVD.

Apesar destes avanços que apontavam para odesenvolvimento de tecnologia nacional para umSBTVD, o atual ministro das Comunicações, Hélio Cos-ta (PMDB-MG), ignorou todo este acúmulo e anunciouque o desenvolvimento de uma pesquisa nacional erasecundário diante da necessidade de se começar logoas transmissões digitais, praticamente descartando quais-quer mudanças no cenário atual (...).

Segundo tem declarado publicamente, o ministrodefende que os parceiros fundamentais nas decisõessobre o SBTVD são as redes de televisão e, por isso,é delas que devem partir as diretrizes para a digitaliza-ção da televisão brasileira. Ou seja, ao invés de defen-der os interesses do país, Hélio Costa atua como umtípico representante de interesses particulares (...).

É importante lembrar que, ao todo, foram previstosR$ 80 milhões para o desenvolvimento do SBTVD. Des-tes, somente R$ 38 milhões foram liberados. Mesmocom poucos recursos, os pesquisadores já demonstra-ram que a inteligência nacional é perfeitamente capazde construir um sistema bastante complexo e satisfatório

do ponto de vista técnico. Por isso, não é possível tole-rar argumentos vindos do próprio governo que defen-dem que o país não possui condições de desenvolver oSBTVD.

Sociedade civil pelademocracia nas comunicaçõesDiante da postura do titular da pasta das Comuni-

cações, que coloca em xeque o desenvolvimento doSistema Brasileiro de TV Digital, é preciso reafirmarcom convicção que somente um sistema desenvolvi-do nacionalmente será capaz de dar respostassatisfatórias às necessidades do país. Mais do quedesenvolver um sistema, porém, é fundamental queas decisões sobre a TV digital – que são políticas, nãotécnicas – sejam fruto de um amplo debate público,não exclusivo do Executivo federal e dos empresáriosdo setor (...).

Por isso – e por acreditar que a TV digital é umagrande chance para que o país caminhe rumo à de-mocratização das comunicações, além de uma opor-tunidade de elevar para um patamar político o debatesobre o direito humano à comunicação no Brasil –convocamos toda a sociedade a se engajar na lutapara que o país faça uma opção por um sistema detelevisão digital nacional, que atenda aos reais inte-resses da Nação.

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Uma das principais opções que devem ser feitaspelo governo brasileiro nas definições acerca do Siste-ma Brasileiro de TV Digital (SBTVD) é em relação àampliação, ou não, do número de canais a seremdisponibilizados na televisão aberta. Dependendo doque acontecer até fevereiro, a TV digital pode alterarradicalmente o atual cenário de concentração dos mei-os de comunicação. Se o Brasil optar pelo padrão co-nhecido como HDTV (High Definition Television), ou “altadefinição”, a TV passará a contar com uma imagemmelhor, mas a mídia brasileira continuará a ser exatamentecomo hoje, com poucas emissoras exercendo a sua liber-dade de expressão, enquanto a maioria das pessoas éexcluída do processo de produção de informação.

Se o país seguir outro caminho – o mesmo escolhi-do pela maioria dos europeus – e optar pelo que seconvencionou chamar de “multicanal”, no mesmo es-paço onde hoje se transmite um único sinal será pos-sível a recepção de até quatro novas programações.Por conseqüência, a ampliação dos produtores deconteúdo televisivo pode ser enorme. Além das emis-soras privadas e estatais, que hoje controlam tudo oque se assiste no principal veículo de informação eentretenimento da maioria da população, também sin-dicatos, associações, movimentos sociais e emissoraspúblicas poderão ter seus canais. Em um cenário emque o Estado garanta o direito à comunicação, podemainda receber financiamento para a produção.

TV digital dá a chance ao país de decidir entre aumentar radicalmenteo número de programações - democratizando o principal meio decomunicação do país - e adotar a “alta definição”, que manterá asemissoras de televisão sob o controle de uma minoria.

“A digitalização é,

de fato, uma

possibilidade do

espectro ser ampliado

para outras vozes”,

afirma Murilo

César Ramos,

da Universidade

de Brasília.

Chance histórica parademocratizar a mídia

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Outra possibilidade trazida pela TV digital é a separação entre os provedores deprogramação e os operadores de rede de transporte, responsáveis pela transmis-são e recepção do sinal. No atual modelo brasileiro, as duas funções são desempe-nhas pelas mesmas empresas. No modelo digital, a transmissão pode ser exploradaindependentemente da produção do conteúdo. Isso colaboraria para a digitalizaçãodas emissoras pequenas, que poderiam produzir conteúdo digital e transmiti-lo emuma rede alheia, se livrando dos altos custos de transmissão.

“Um dos três cenários possíveis do SBTVD era exatamente este, de desagre-gação de redes. Você cria um operador, que pode ser uma empresa pública, equem fornece a programação contrata os canais desse provedor. Mas as grandesempresas ficaram indignadas quando isso foi proposto, porque querem manter opoder centralizado de prover e produzir conteúdo”, conta Murilo César Ramos.

“A digitalização é, de fato, uma possibilidade do es-pectro ser ampliado para outras vozes. Hoje temos qua-tro, cinco redes abertas com cobertura nacional. Pode-ríamos ter muito mais, com diferentes perfis de progra-mação”, explica o professor Murilo César Ramos, daUniversidade da Brasília. “Equivocadamente, o debatesobre a TV digital foi durante muito tempo tratado comoexclusivamente técnico. Mas trata-se de uma questãopolítica”, aponta.

Na opinião do secretário-executivo do Fórum Na-cional pela Democratização da Comunicação (FNDC),Celso Schröder, a mudança do patamar tecnológico éuma chance histórica para se reverter a concentraçãodos meios favorecida pela nossa legislação. “Agorahá uma chance de democratizarmos o rádio e a TVporque a tecnologia potencializa o acesso. E a entra-da de outros players em ação rompe de alguma manei-ra com o cartel que existe hoje”, afirma Schröder, umdos representantes da sociedade civil no Comitê Con-sultivo da TV digital criado pelo governo.

Grandes emissorasX interesse públicoOs empresários da radiodifusão, por outro lado,

se recusam a discutir a possibilidade de outros sujei-tos ocuparem novos canais em um espaço que histo-ricamente foi monopolizado por eles. Para defenderessa opção, destacam a qualidade de imagem da altadefinição, apesar de esconderem que a maioria da po-pulação não terá acesso à tecnologia. Se a opção dogoverno brasileiro for pela alta definição, esta imagemsó será desfrutada pelo usuário que possuir um televi-sor de alta resolução, ou seja, a parcela mais rica dapopulação. Os próprios equipamentos de produção deTV ficarão cerca de quatro vezes mais caros, o queinviabilizará as TV públicas, comunitárias e universitári-as de transmitirem com a qualidade das grandes emis-soras. Por outro lado, é importente dizer que a opçãopelo aumento do número de canais não fará com que atelevisão estacione tecnicamente. A simples digitalizaçãodará mais nitidez à imagem, eliminando possíveis chu-viscos, “fantasmas” e borrões de cor.

A defender’ a alta definição na transmissão digital,as grandes emissoras pretendem impedir o surgimentode novas programações – portanto, de novos “concor-rentes”, comerciais ou não – e assim reproduzir com aTV digital a concentração dos meios de comunicação’.“Se não imprimirmos um caráter público e uma legisla-ção democrática para a televisão no Brasil, a concentra-

Ao defender a alta

definição na

transmissão digital,

as grandes emissoras

pretendem impedir

o surgimento de

novas programações

e, assim, manter

a concentração

dos meios.

ção será ainda maior. Os mesmos ‘colocarão as mãosna nova TV”, diz o representante do Fórum Nacionalpela Democratização da Comunicação.

Na opinião de Gilmar Mauro, membro da Coorde-nação Nacional do MST, democratizar a comunicaçãopermitiria revelar a verdadeira identidade cultural dopaís. “Há uma riqueza do povo brasileiro que não sereflete nos grandes meios de comunicação. Hoje aindústria cultural utiliza esses veículos para a manu-tenção da ideologia dominante”, afirma. Além disso,ao se manter o acesso como exclusividade da elitenacional, a mídia se transforma num veículo de per-petuação dos preconceitos. “Os negros, assim comooutros segmentos da sociedade, não estão represen-tados na televisão, especialmente no que concerne àprodução de conteúdo. Isso fere princípios básicos dosdireitos humanos previstos na Constituição, como orespeito à diversidade cultural e a tolerância étnica ereligiosa”, acredita Regina dos Santos, presidente daSociedade Cultural Dombali.

O aumento do número de canais na TV digital pode,portanto, reconfigurar o cenário da mídia no Brasil, vol-tado exclusivamente para os interesses comerciais epara o mercado de bens e serviços, ao qual mais dametade da população sequer tem acesso. A outorga denovos canais a organizações da sociedade civil e a ges-tão coletiva dos meios de comunicação – modelos fre-qüentes nos países da Europa – podem assim constituiruma forma concreta de efetivação do direito à comuni-cação, condição fundamental para a plena realizaçãoda democracia. Mas para isso acontecer o governo pre-cisa ter disposição para enfrentar grandes interesses.

Operador de rede fortalecepequenas emissoras

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No Brasil, assim como em praticamente todo o mun-do, as emissoras de rádio e TV são concessões públi-cas, ou seja, são uma autorização do Estado que, emnome do povo brasileiro, diz quem pode e quem nãopode explorar os serviços de radiodifusão. Durante muitotempo, as concessões foram dadas pelo governo fede-ral sem que houvesse qualquer tipo de controle, o queacabou por tornar as outorgas uma forte moeda detroca política. Isso significa que as concessões eramdistribuídas aos amigos e simpatizantes do governo.Após a Constituição de 1988, além do Executivo, a outor-ga passou a precisar também da aprovação do Con-gresso, o que teoricamente garantiria um controle maiorsobre as novas concessões.

No debate sobre TV digital, a questão da concessãoganha novos contornos, já que um canal que ocupauma faixa de 6MHz no espectro eletromagnético podepassar a transmitir até quatro programações diferen-tes. Para manter o controle da mídia, as emissoras ale-gam que a outorga a elas concedidas é a do canal físicoe não a de uma programação. Com isso, pretendemmanter inalterado o quadro da mídia, com poucas emis-soras ocupando todo o espectro.

A tese dos radiodifusores encontra abrigo no Minis-tério das Comunicações. O próprio ministro tem

De quem é, afinal, a concessão?Enquanto emissoras defendem o “direito adquirido” de utilizar os6MHz atualmente necessários para a transmissão, jurista afirmaque argumento dos radiodifusores não é legalmente sustentável.

reiteradamente defendido que uma das coisas funda-mentais no processo de digitalização é “não mexer nasconcessões”.

O argumento das emissoras, no entanto, é contes-tado não só pelas organizações que defendem a demo-cratização dos meios de comunicação, mas tambémpor juristas. Márcio Aranha, professor de Direito da Uni-versidade de Brasília (UnB), especializado em teleco-municações, afirma que o Estado tem a obrigação dedar a melhor utilização possível ao espectro eletromag-nético. “A outorga é aquela necessária para a prestaçãodo serviço para o qual se propôs, no caso o da transmis-são de uma programação. A emissora não pode utilizaro argumento de que ela deve continuar com aquelafaixa pelo simples fato de já possuí-la. Esse argumentonão é juridicamente sustentável”, afirma.

No caso em questão, Aranha aponta que, se o Esta-do detectar que aqueles 6MHz, por uma evoluçãotecnológica, serão suficientes para abrigar mais conteú-dos, ou mais emissoras, a orientação deve ser a de dara melhor utilidade possível para o espectro. “É umaordem normativa, não é uma opção do administradornem do governante. É uma regra vigente, que é a deque o Estado deve dar a melhor utilização possível paraum bem público”, conclui.

As concessões são

públicas e, portanto,

pertencem ao povo

brasileiro, não às

empresas.

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“O Estado deve dar

a melhor utilização

possível para o

espectro, que é um

bem público”,

afirma jurista.

Bases do poder econômicoe político das redes privadasde televisão no Brasil.Dominando o mercado de TV de US$ 3 bilhões,seis redes privadas nacionais, através de 138 gru-pos afiliados, controlam 668 veículos (TVs, rádios ejornais), instrumentos de poder regional e nacional.

A TV e o rádio são as maiores eúnicas fontes de informação paraa maioria dos brasileiros.

◆◆◆◆◆ A TV está presente em 87,7%dos domicílios

◆◆◆◆◆ 88% dos brasileiros ouvemrádio todos os dias

◆◆◆◆◆ 39% não lêem revistas ou sótêm acesso a elas menos de umavez por trimestre

◆◆◆◆◆ 48% não lêem jornal ou só têmacesso ao veículo menos de umavez por semana

Fonte: Epcom – Instituto de Estudos e Pes-quisas em Comunicação (2002)

Os Donos da Mídia

3,5horas

É a media diária detempo que o brasileiropassa vendo TV.

81% Da população assisteà TV todos os dias.

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Alternativas técnicaspara uma escolha política

Uma das características da TV digital é a possibili-dade do acréscimo de dados à produção audiovisual daTV analógica. Com isso, devem ocorrer tanto mudan-ças qualitativas (novos serviços) quanto quantitativas(melhor definição no som e na imagem) no conteúdodisponibilizado aos telespectadores.

Segundo os pesquisadores Nelson Pretto e Simo-ne Lucena, da Universidade Federal da Bahia, a TVdigital não pode manter a característica de um meio demassa onde vigora o fluxo unilateral de transmissão deconteúdos, devendo explorar a comunicação“multidirecional” que gera possibilidades de construçãocoletiva do conhecimento. Para que este potencial sejaexplorado, os pesquisadores do Centro de Pesquisa eDesenvolvimento em Telecomunicações(CPqD), MarcusManhães e Pei Jen Shieh defendem como elementofundamental o canal de interatividade (ou “de retorno”),que permitiria “a cada usuário, individualmente, enca-minhar e receber informações e solicitações”.

InteratividadeAs pesquisas já possibilitam pensar diversos ní-

veis de interatividade. No mais básico, o telespectadorpoderia escolher, por exemplo, diferentes câmeras emum jogo de futebol ou definir da programação de formapersonalizada, como se fosse uma lista de músicas cri-ada em um computador. Um salto importante para umnível intermediário é a existência de um canal de retor-no, o que possibilita que o telespectador envie informa-ções (para a emissora, por exemplo). Neste segundonível, pode-se pensar em serviços como votações, e-mail, governo eletrônico, transações bancárias e comér-cio. Em um nível mais elevado de interatividade, os espec-tadores, sozinhos ou organizados em comunidades, nãosó responder pontualmente como produzem conteúdo econseguem enviá-lo tanto à emissora quanto diretamenteà outra pessoa.

No Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), a uti-lização destes serviços, e seu papel na inclusão digitaldos cidadãos, é citada logo nos dois primeiros objetivosdo Decreto Presidencial 4901: “I - promover a inclusãosocial, a diversidade cultural do País e a língua pátriapor meio do acesso à tecnologia digital, visando à de-mocratização da informação; e II - propiciar a criaçãode rede universal de educação à distância”.

O canal de retornoHoje se cogita uma série de tecnologias para o ca-

nal de retorno. Por conta da variedade de situaçõesencontradas no Brasil, crescem as vozes em defesa deum sistema adequeado ás diferentes realidades. Se-gundo Ricardo Benneton, do CPqD, o canal de interaçãodeve ser heterogêneo, com cada lugar ou usuário po-dendo escolher a tecnologia que mais se adapte àssuas necessidades. Ele cita como possibilidades de ca-nal de retorno o telefone (fixo ou celular) para grandescentros urbanos, o satélite para locais afastados e aprópria radiodifusão para cidades menores, onde háespaço no espectro para ser utilizado.

Adaptar as

possibilidades que

melhor respondem às

demandas brasileiras é

o principal desafio

para pesquisadores,

políticos,

radiodifusores e

militantes do tema.

As “maravilhas” da TV digital apresentadas pela imprensa sãonovidades vinculadas à criação de serviços comerciais, mas a novatecnologia pode cumprir um importante papel na afirmaçãoda cidadania.

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De acordo com o engenheiro Takashi Tome, tam-bém do CPqD, estão sendo estudadas duas possibilida-des para o problema do canal de retorno. A primeiraseria usar radiofreqüência, o que implicaria a comprade um novo aparelho, mas solucionaria o problemade contas mensais altas caso fosse usado o telefone.A segunda possibilidade é desenvolver serviços semo canal de retorno, onde o indivíduo apenas recebe asinformações e pode realizar uma série reduzida de es-colhas, como passeios em museus virtuais e conteúdosinterativos na área de saúde.

Um outro aspecto que preocupa os pesquisado-res é o custo do uso deste canal de retorno e do apa-relho que permitirá a interatividade (set top box). ParaThiago Novaes, do Ministério da Cultura, o baixo custoé fundamental, mas é preciso ter cuidado para que issonão acabe justificando o discurso dos grupos aos quaisnão interessa o uso de serviços interativos que demo-cratizem a TV.

A especificidade brasileiraAdaptar todas estas possibilidades à realidade

brasileira é o principal desafio para pesquisadores,políticos, radiodifusores e ativistas do tema. Quais delaspodem ser adotadas no SBTVD e respondem às de-mandas do Brasil, com viabilidade técnica, econômica,cultural e social?

Nesta polêmica, de um lado estão as empresasde mídia, apoiadas pelo atual Ministério das Comuni-cações, que defendem prioridade para a produção emalta definição, considerando a interatividade algo inte-ressante apenas se conseguir incorporar serviços lu-crativos como o comércio eletrônico. De outro lado, vá-rios pesquisadores e entidades da sociedade civil quedefendem que a TV digital é a oportunidade de umarevolução democrática deste meio e não deve ser usa-da com fins estritamente comerciais.

Conteúdo interativoOutro desafio diz respeito a pensar os conteúdos

para a interatividade e fugir da concepção de que aTV digital será apenas televisão com melhor imageme som. “A televisão interativa é aquela que permitecom que o espectador possa não só dar uma respos-ta, mas exercer algumas atribuições que antes nãolhe eram permitidas. A novidade é a possibilidade deinteragir, mas a qualidade da interação é que fará adiferença”, argumenta Nelson Hoineff, do Instituto deEstudos da Televisão (IETV). Para a pesquisadora

Cosette Castro, da Unisinos, este novo modelo digitaldeve motivar uma participação ativa dos sujeitos, e nãouma posição passiva que os caracteriza apenas comoconsumidores. “Cidadãos de diferentes classes sociaispodem descobrir na TV digital e na interatividade umespaço de construção cidadã, inclusive propondo con-teúdos”, sugere.

Os educadores Nelson Pretto e Simone Lucenaendossam a proposta, afirmando que a TV digital podeser um elemento fundamental na educação das pesso-as, a partir da sua transformação num processo dialógicode construção de conhecimento.

“Cidadãos de

diferentes classes

sociais podem

descobrir na TV digital

e na interatividade um

espaço de construção

cidadã, inclusive

propondo conteúdos”,

diz Nelson Hoineff.

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Se a TV digital vai, com certeza, alterar algumacoisa no Brasil, essa coisa será o aparelho de TV.Quaisquer que sejam as escolhas feitas em termosde tecnologia ou soluções, o televisor que todos te-mos em casa não servirá para assistir aos canais digi-tais. Na melhor das hipóteses, teremos a opção decomprar uma caixinha, ou terminal de acesso, apeli-dada de set top box, que será ligada à TV para captaros sinais digitais (como funcionam hoje as “caixinhas”usadas pelas operadoras de TV por assinatura). Emmédio prazo, esse decodificador já virá embutido nosnovos televisores.

Portanto, muita coisa vai mudar para os fabrican-tes de televisão e, por conseqüência, para a indústriabrasileira de eletrônicos como um todo. Se essa mu-dança será para melhor ou para pior, isso depende dasdefinições acerca da TV digital.

Pontos de vista conflitantesO desenvolvimento da indústria nacional não tem a

simpatia das empresas estrangeiras, que já fabricamaparelhos nos sistemas digitais em uso em outros paí-ses e, muito provavelmente, não teriam que desenvolvernovas tecnologias se o país adotasse um padrão estran-geiro. Vale lembrar que as duas entidades nacionais deempresas do setor, Associação Brasileira da Indústria Elé-trica e Eletrônica; e Associação Nacional de Fabricantesde Produtos Eletroeletrônicos presentes no Comitê Con-sultivo do SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital) sãocompostas majoritariamente por empresas estrangeiras.

Transnacionais como LG, Philips ou Sony têm fábri-cas na Zona Franca de Manaus, mas importammassivamente componentes de outros países, além depagar royalties para as suas matrizes pelo uso datecnologia importada.

Implantar a TV digital no Brasil requer uma políticaindustrial que auxilie o país a se preparar para fabricartelevisores, set top boxes, etc, na escala necessária para

Nova tecnologia podedesenvolver indústria nacional

um dos maiores mercados de televisores do mundo ecom um custo acessível à maioria pobre da população.

Mas, principalmente, é uma valiosa oportunidadepara que o Brasil desenvolva tecnologia própria, oupelo menos estabeleça acordos de transferência detecnologia com outros parceiros para estimular o de-senvolvimento nacional. Também não se pode des-prezar o fato de que uma política industrial que privilegieo desenvolvimento do país contribui para a geração deempregos no segmento de eletrônicos.

Janela de oportunidadesO governo Lula definiu quatro eixos centrais para a

sua política industrial, levando em consideração os prin-cipais setores das economias mais desenvolvidas. Doisdestes eixos podem ser fortalecidos pela implantaçãoda TV digital no Brasil.

Os set top boxes farão largo uso de micro-processadores (os chips) e o Brasil já possui conheci-mento e pessoal qualificado para fazer o desenho des-tes componentes.

Por outro lado, tanto os set top boxes quanto asemissoras terão que utilizar novos e sofisticadossoftwares, especialmente para os recursos interativos.Hoje, o Brasil já é um exportador de softwares.

Balança comercial desfavorávelCuriosamente, o ministro das Comunicações, Hé-

lio Costa, parece ter esquecido a política industrialproposta pelo seu próprio governo e declarou à im-prensa que já negociou, junto ao Ministério da Fa-zenda, um período de isenção fiscal de seis a oitomeses para que as emissoras adquiram equipamen-tos de TV digital. Tal isenção não chegará ao consu-midor final, pois não incluirá aparelhos de TV e os settop boxes, e deve beneficiar única e exclusivamenteas grandes emissoras de TV, já que as pequenas emédias emissoras não possuem recursos para ad-

O desenvolvimento

da indústria

nacional não tem

a simpatia das

empresas

estrangeiras, que já

fabricam aparelhos

nos sistemas

digitais em uso em

outros países.

Sistema Brasileiro de TV Digital deve ter forte impacto na economia dopaís. Geração de empregos, diminuição do déficit da balança comerciale independência tecnológica são as principais questões em jogo.

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quirir estes equipamentos imediatamente, mesmocom a isenção fiscal.

É importante lembrar que não se trata apenas deimportar equipamentos, mas também de adquirir pro-gramas adequados para o controle e formatação daprogramação. Toda a tecnologia hoje existente é pro-prietária e, caso o Brasil comece a utilizá-la, terá depagar royalties por isso.

Frente a tudo isso, pareceria lógico que o Brasilao menos buscasse acordos de transferência detecnologia que fossem vantajosos para o país. Essatecnologia poderia ser, inclusive, definida em con-junto com os demais países da América Latina, so-bre os quais uma decisão brasileira certamente teráum peso enorme.

Hoje, em termos de equipamentos eletrônicos, abalança comercial brasileira apresenta um déficit de cercade US$ 8 bilhões por ano. O desenvolvimento ou atransferência de tecnologia para o Brasil permitiria re-verter esse quadro, equilibrando-o ou mesmo tornandoo país um exportador de equipamentos para a TV digi-tal. Segundo Marcelo Zuffo, do Laboratório de Siste-mas Integrados da USP, responsável no SBTVD pelodesenvolvimento do set top box, a TV digital traz umagrande chance para o país impulsionar sua indústria.“Se fizermos uma escolha apressada e errada, todosvão perder. Vamos cometer um retrocesso, inclusive naquestão industrial”, diz.

A produção de conteúdo para a TV é, também, uma indústria. No caso brasi-leiro, ouve-se nos quatro cantos elogios à “nossa” indústria cultural, cujos filmessão indicados a prêmios, novelas são exportadas e as músicas fazem sucesso noexterior. Tal reconhecimento, entretanto, não bastou para que a cultura brasileirafosse contemplada no planejamento do SBTVD. A produção de programas audio-visuais - e a indústria cultural como um todo - é vista como estratégica em muitospaíses. Basta ver a importância que os EUA atribuem à sua produção cultural.

A indústria cultural brasileira é muito concentrada, especialmente nas mãos dasgrandes empresas de comunicação do eixo Rio-São Paulo. Vários projetos de lei quepropõem a regionalização da produção para TV tramitam no Congresso Nacional háanos, mas têm poucas esperanças de avançar.

Luiz Alberto César, da Associação Brasileira de Produtores Independentes deTV (ABPI-TV), lembra que as empresas independentes exportaram cerca de US$9 milhões em conteúdo em 2004, com documentários, novelas, animações, para16 países diferentes. “Mas é um conteúdo que não chega à TV aberta brasileira,que não tem obrigações nem de regionalizar a produção, nem de dar espaços aprodutores independentes” diz.

Incentivo à produção de conteúdo

Em termos de

equipamentos

eletrônicos, a

balança comercial

brasileira apresenta

um déficit de cerca

de US$ 8 bilhões

por ano.

A adoção apressada de uma tecnologia importada,portanto, pode abortar o desenvolvimento de soluçõesnacionais e de alta qualidade. Os consórcios de pesqui-sa contratados pelo SBTVD, inclusive, já têm realizadodemonstrações e testes de tecnologia, com grande su-cesso – tecnologias brasileiras, inclusive, que vêm sen-do estudadas em outros países, que podem adotá-las.

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O processo de digitalização não se aplica apenas àtelevisão. O rádio, que durante muito tempo dominou a“comunicação de massa”, também está passando porum processo de mudança tecnológica. Tal como na te-levisão, ele pode sofrer, ou não, uma transformaçãoradical, tanto em suas aplicações como na ampliação donúmero de emissoras.

Uma das características do rádio digital é a melhoriada qualidade do som. Com a digitalização, abre-se ain-da a possibilidade de transmissão de diferentes dadospelo rádio – textos, gráficos, mapas da cidade ou ima-gens associadas a uma música – e de economia expres-siva de energia elétrica, já que a transmissão digitalrequer uma potência bem menor para atingir a mesmaárea de cobertura.

A polêmica do rádio digital, no entanto, é pratica-mente a mesma da televisão: a digitalização impulsiona-rá sua democratização e garantirá sua função públicacom o aumento do número de programações ou ampli-ará o poder dos atuais detentores das concessões?

Mais espaço no “dial”Um dos grandes argumentos da Anatel (Agência

Nacional de Telecomunicações), por exemplo, para nãodisponibilizar mais canais para as rádios comunitáriasnas grandes cidades é justamente a de que falta espaçono “dial”. Se os atuais detentores das concessões derádio (que são públicas assim como as de TV) se apro-priarem dos novos espaços que podem surgir com aimplantação do padrão digital, o país manterá inalteradoo quadro de concentração deste meio de comunicação.

Além de não permitir o ingresso de novos atoreshistoricamente excluídos, a perpetuação do monopóliodificulta inclusive o surgimento de emissoras públicas.Hoje o espectro de rádio é hegemonizado pelas emis-soras comerciais. São poucos os canais públicos, comu-

Rádio Digital: testes do padrãoamericano são liberadossem debate público

nitários e educativos. Ou seja, enquanto poucos explo-ram os sinais de rádio – e ganham dinheiro com isso – amaioria da população permanece excluída do espaçoradiofônico.

Censura à cultura nacionalO problema se torna ainda mais complexo quando

analisada a programação das emissoras FM (principal-mente nos grandes centros urbanos), onde as grava-doras estrangeiras compram espaço nos veículos deradiodifusão para a inserção dos artistas cujos direitos

“Fomos pegos de

surpresa por essa

decisão totalmente

arbitrária. Queremos

que este debate seja

feito com a sociedade”

afirma Associação

Brasileira Rádios

Comunitárias.

Ao contrário da TV digital, governo brasileiro nem sequer cogitoudesenvolver um sistema de rádio digital, autorizando testes em sistemaque não permite a entrada de novos atores no espectro radiofônico.

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de exploração das obras foram a ela cedidos. Tal práti-ca, criminosa, impede que o público tenha acesso àmaior parcela do se produz musicalmente no país. Maisdo que um meio imoral e ilegal de promover as vendas,o uso cotidiano de jabás nas emissoras comerciais éuma forma intolerável de censura à cultural nacional.Na prática, os empresários ocupam um espaço público,ganham dinheiro com isso, censuram a cultura nacionale, muitas vezes, violam dos direitos humanos, incenti-vando a violência, o racismo, o machismo, a homofobiae outras formas de preconceito. Agora, querem ocupartambém o “novo” espaço criado com a otimização doespectro radiofônico, ampliando seu número de pro-gramações e aumentando o poder de geração de lucrodas emissoras com o oferecimento de “serviços” pelosquais pretendem cobrar.

Mas a nova tecnologia digital, com a possibilidadedo aumento do número de programações, pode apon-tar para um horizonte onde movimentos sociais, associ-ações comunitárias, organizações não-governamentaise grupos historicamente excluídos do processo de pro-dução de informação – mulheres, indígenas, negros e apopulação pobre em geral – terão a possibilidade deobter outorgas para a exploração, sem fins lucrativos,dos serviços de rádio. Além disso, é possível dedicar

parte das novas programações e serviços para fins pú-blicos específicos, como a promoção da cultura, da saú-de e da educação.

O padrão norte-americanoAo contrário do que aconteceu com o processo de

debate sobre a TV digital, o país nem sequer cogitou apossibilidade de desenvolver um padrão brasileiro parao rádio digital ou estudar os diversos padrões já existen-tes. Em setembro, emissoras de todo o país receberamsinal verde da Anatel e do ministro Hélio Costa parainiciar os testes de transmissões digitais. Emissoras gran-des como a RBS, Eldorado, Bandeirantes e as do Siste-ma Globo de Rádio foram as primeiras autorizadas aexperimentar a tecnologia IBOC (In-Band-On-Channel),o padrão norte-americano de rádio digital. “Fomos pe-gos de surpresa por essa decisão totalmente arbitrária.Queremos que este debate seja feito com a sociedadepara vermos a melhor forma de proceder com esta mu-dança”, afirma Clementino Lopes, da Associação Brasi-leira de Radiodifusão Comunitária (Abraço).

Inversamente aos demais sistemas em funciona-mento no mundo, o IBOC foi concebido para possibilitara transmissão simultânea dos sinais digitais dentro damesma banda atualmente alocada para o sinal analógi-co da emissora. Isto significa que o sinal digital é trans-mitido no canal adjacente. Ao ocupar os canais adjacen-tes e aumentar a largura do canal ocupado por umaestação, o IBOC reduz, desde o princípio, a disponibili-dade de espectro para novos atores.

Numa etapa posterior, quando o sinal analógico se-ria desativado, a transmissão totalmente digital ocupa-ria todo o canal. A freqüência que “sobraria” com adesativação do sistema analógico não seria “devolvida”ao Estado para uso em novas concessões.

Além disso, o fato do padrão ter sido desenvolvidopor uma empresa norte-americana, a iBiquity , fará comque o país tenha que transferir milhões de dólares parao exterior sob a forma de royalties. Neste caso, valeuma comparação apropriada: se mantida a linha dese-jada por Hélio Costa, a iBiquity se tornará para o rádiodigital o mesmo que a Microsoft é para o software: umrio por onde deságua parte da riqueza nacional.

Nem nos Estados Unidos o padrão IBOC da iBiquityfoi uma escolha imediata. O processo de decisão levoucerca de 15 anos e ainda hoje há dúvidas quanto à suaqualidade. Para fazer a opção, foram realizadas diver-sas consultas populares. Ao contrário do Brasil, os Esta-dos Unidos desenvolveram um padrão próprio, voltadopara as características particulares do país.

A nova tecnologia

poderia apontar para

um horizonte onde os

grupos historicamente

excluídos teriam a

possibilidade de

participar do processo

de produção de

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Assim que assumiu a pasta do Ministério das Co-municações, em julho deste ano, Hélio Costa fez di-versas declarações que revelaram sua grande habili-dade em atropelar discussões e projetos em desen-volvimento. A primeira delas, dias após o início de suagestão, foi anunciar que o país não investiria emtecnologia para o desenvolvimento de um Sistema Bra-sileiro de TV Digital (SBTVD). Ignorou os R$ 80 milhõesjá previstos no orçamento do governo para grupos depesquisa e assim praticamente descartou a possibilida-de do Brasil ter um sistema próprio.

A declaração deu início a uma avalanche de rea-ções na sociedade. A primeira veio dos atores envolvi-dos mais diretamente no desenvolvimento do siste-ma. Num encontro realizado em Campinas, no dia 19de julho, dezenas de pesquisadores entregaram a HélioCosta uma carta que esclareceu ao ministro o anda-

Hélio Costa: o homem dosempresários de rádio e TVMinistro das Comunicações do governo Lula age explicitamentecomo representante de interesses particulares, privilegiando debatescom as emissoras e menosprezando o acúmulo da sociedade civilno debate sobre o Sistema Brasileiro de TV Digital.

mento das pesquisas e alertou para a importância degarantir os investimentos previstos até dezembro.

Costurando justificativas para convencer a opiniãopública que suas declarações não eram o que pareci-am ser, o ministro deu o passo seguinte. Colocou nocentro das decisões aqueles que, historicamente, sem-pre defendeu: as emissoras de TV. Reuniões privadascom os diretores das principais empresas de TV fo-ram realizadas, desqualificando o Comitê Consultivo doSBTVD, órgão oficial de debates da sociedade civil, ondeas emissoras também possuem assento. Depois disso,autorizou a formação de um grupo de trabalho que reúneapenas alguns dos consórcios de pesquisas do SBTVD erepresentantes das emissoras.

O ministro também pareceu ignorar o que está es-tabelecido no Decreto 4.901, de 26 de novembro de2003, que cria o Sistema Brasileiro de TV Digital. Deacordo com o documento, os principais objetivos dosistema são usar a transição do analógico para o digi-tal para gerar inclusão digital, criar uma rede universalde ensino à distância, democratizar as comunicações edesenvolver a indústria nacional. Esse último aspecto foiespecialmente prejudicado com a declaração pública deCosta de que já teria negociado com o Ministério daFazenda a concessão de um período de isenção totalde impostos para a importação de equipamentos digi-tais para as emissoras de TV – beneficiando as indústri-as já instaladas em outros países e dificultando a produ-ção nacional de equipamentos.

A reação da sociedade civilNuma resistência quase invisível, alguns atores da

sociedade civil tentam barrar o rolo compressor aciona-do pelo Ministério das Comunicações. Seus represen-tantes no Comitê Consultivo teceram fortes críticas aocontínuo descaso do Ministério com o órgão no proces-

❋❋❋❋❋ “Há a necessidade de preservar os direitos já adquiridos e não mexer nasfreqüências e nos canais já estabelecidos”

❋❋❋❋❋ “Alguém virou para as TVs e perguntou: ‘esse negócio é bom para você? Ouesse negócio vai te dar um baita prejuízo no ano que vem? Sua empresa estápreparada para investir milhões?’ Ninguém perguntou. Este foi o objetivo da minhaconversa.”

❋❋❋❋❋ “A Globo vai ter que sentar com a Bandeirantes e o SBT. É uma decisão maisempresarial do que política.”

❋❋❋❋❋ “Quem é que vai colocar a TV digital no ar? São as empresas. São elas quevão realmente fazer o trabalho. Se elas não quiserem, não vai haver TV digital.”

❋❋❋❋❋ “Não tinha (consenso) até aqui. Passa a ter porque quando eu assumi aqui, eujá fiz duas reuniões com os dirigentes das empresas de televisão, já fiz ver a elesque é importantíssima a participação deles.”

As frases do ministro

O ministro parece

ignorar o que está

estabelecido no

Decreto 4.901,

de 26 de novembro

de 2003, que cria

o Sistema Brasileiro

de TV Digital.

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so de elaboração do modelo brasileiro de TV digital. “Háuma clara ligação do ministro com os interesses dosgrandes grupos da radiodifusão. Ele chega ao governo,boicota e inibe o Comitê Consultivo e cria outros espa-ços de interlocução que apontam para um cenário deconcentração ainda maior”, diz Celso Schröder, secre-tário-executivo do Fórum Nacional pela Democratiza-ção da Comunicação (FNDC), que tem assento noComitê. Segundo Schröder, houve uma transferênciado debate para espaços privados e informais. Docu-mentos importantes e estudos já realizados, encami-nhados pela Câmara de Conteúdo do Comitê, não vol-taram mais aos debates.

Numa outra frente de protestos, oito entidades querepresentam mais de 450 organizações civis enviaramuma carta ao Ministério das Comunicações, ao Con-gresso e ao Presidente da República exigindo transpa-rência, participação nas discussões, valorização do de-senvolvimento de tecnologia nacional e utilização da te-levisão digital como instrumento da inclusão social e dointeresse público.

No documento (veja trechos nas páginas 2 e 3),as entidades afirmam ser “fundamental que as deci-sões sobre a TV digital – que são políticas, não técni-cas – sejam fruto de um amplo debate público, nãoexclusivo do Executivo federal e dos empresários dosetor”. Defendem ainda a valorização de espaços comoo Comitê Consultivo e a criação de novos mecanismosde participação da sociedade em relação à digitalizaçãoda televisão brasileira. Elas acreditam que a “TV digitalé uma grande chance para que o país caminhe rumo àdemocratização das comunicações, além de uma opor-tunidade de elevar para um patamar político o debatesobre o direito humano à comunicação no Brasil”.

Hélio Costa foi repórter da TV Globo e apoiador de primeira hora do governoCollor. É dono de emissoras de rádio comerciais - o que por si só já se configura emimpedimento ético para o cargo de Ministro de Estado, que tem como função fiscali-zar a radiodifusão. Foi um dos principais representantes do lobby da AssociaçãoBrasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) no Congresso Nacional. Entreoutras questões, defendeu os interesses das emissoras no debate sobre a EmendaConstitucional que permitiu a entrada de 30% de capital estrangeiro na radiodifusãoe no “enterro” da Ancinav (Agência Nacional de Cinema e Audiovisual). Ele mesmodefendeu, em sessões da Comissão de Educação do Senado, a concessão deempréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)para quitar dívidas de grandes conglomerados de mídia, em especial das Organiza-ções Globo (a mais endividada).

Os laços com o quarto poder

Os membros da

sociedade civil no

Comitê Consultivo

tecem fortes críticas ao

contínuo descaso

do Ministério.

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A televisão vai passar por uma grande transformação.

Até fevereiro de 2006, o governo brasileiro

deve definir o padrão de

TV digital que será

implementado

no país.

A partir daí,

muita coisa

pode mudar.

Participe

desse debate.

Realização:

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guef

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