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15 Cadernos de Pesquisa, n. 120, p. 15-49, novembro/ 2003 BERNSTEIN E O CAMPO EDUCACIONAL: RELEVÂNCIA, INFLUÊNCIAS E INCOMPREENSÕES LUCÍOLA LICÍNIO DE C. P. SANTOS Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]; [email protected] RESUMO O objetivo deste artigo é dar uma visão geral do trabalho de Bernstein e de sua importante contribuição para a teoria e a pesquisa no campo da sociologia da educação. Busca-se também explicar as razões de algumas incompreensões de seus conceitos e de sua orienta- ção teórica. Para isso, o artigo está dividido em três partes. A primeira, procura mostrar como o trabalho de Bernstein é analisado no interior do campo acadêmico. A segunda, explora como o autor desenvolveu sua teoria, de acordo com a meta de avaliação que faz de seu trabalho. A terceira, volta-se para a análise de sua obra, baseada na extensa literatura educacional. BERNSTEIN, BASIL – SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO – TEORIA DA EDUCAÇÃO ABSTRACT BERNSTEIN AND THE EDUCATIONAL FIELD: RELEVANCE, INFLUENCES AND MISUNDERSTANDINGS. The objective of this paper is to provide a general view of Bernstein work and his outstanding contribution to theory and research in the field of Sociology of Education. It is also highlighted some misunderstandings of his concepts and theoretical orientation. In this way the article is divided in three different sections. The first one tries to show how Bernstein’s work is analysed in the academic field. The second part explores how this author developed his theories according to his own perspective. The third part turns to the analysis of his work, based on an extensive literature that has been produced about his contributions to the field of education. BERNSTEIN, BASIL – SOCIOLO GY OF EDUCATION – EDUCATIONAL THEORIES

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  • 15Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003Cadernos de Pesquisa, n. 120, p. 15-49, novembro/ 2003

    BERNSTEIN E O CAMPO EDUCACIONAL:RELEVNCIA, INFLUNCIAS E

    INCOMPREENSES

    LUCOLA LICNIO DE C. P. SANTOSFaculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais

    [email protected]; [email protected]

    RESUMO

    O objetivo deste artigo dar uma viso geral do trabalho de Bernstein e de sua importantecontribuio para a teoria e a pesquisa no campo da sociologia da educao. Busca-setambm explicar as razes de algumas incompreenses de seus conceitos e de sua orienta-o terica. Para isso, o artigo est dividido em trs partes. A primeira, procura mostrarcomo o trabalho de Bernstein analisado no interior do campo acadmico. A segunda,explora como o autor desenvolveu sua teoria, de acordo com a meta de avaliao que fazde seu trabalho. A terceira, volta-se para a anlise de sua obra, baseada na extensaliteratura educacional.BERNSTEIN, BASIL SOCIOLOGIA DA EDUCAO TEORIA DA EDUCAO

    ABSTRACT

    BERNSTEIN AND THE EDUCATIONAL FIELD: RELEVANCE, INFLUENCES ANDMISUNDERSTANDINGS. The objective of this paper is to provide a general view of Bernsteinwork and his outstanding contribution to theory and research in the field of Sociology ofEducation. It is also highlighted some misunderstandings of his concepts and theoreticalorientation. In this way the article is divided in three different sections. The first one tries toshow how Bernsteins work is analysed in the academic field. The second part explores howthis author developed his theories according to his own perspective. The third part turns to theanalysis of his work, based on an extensive literature that has been produced about hiscontributions to the field of education.BERNSTEIN, BASIL SOCIOLO GY OF EDUCATION EDUCATIONAL THEORIES

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    Decidi fazer o doutorado em Londres por diversas razes. A razo maisforte que me levou a escolher o, ento, Departamento de Sociologia da Educaodo Instituto de Educao da Universidade de Londres, foi identificar que neletrabalhava o professor Basil Bernstein. que havia lido, h algum tempo, um artigode sua autoria, sobre Cdigos restritos e elaborados, publicado em livro orga-nizado pela professora Zaia Brando, que me impressionou fortemente, poisversava sobre as diferenas de linguagem entre as pessoas das camadas popularese as provenientes das classes mdias e suas relaes com o sucesso e fracassoescolar. Apesar de este artigo ter sido, posteriormente, muito criticado e, sobre-tudo, porque naquele perodo predominavam no campo educacional brasileiro asidias de autores franceses, como Bourdieu e Passeron, Snyders, Baudelot eEstablet, e de autores americanos como Bowles e Gintis, neste cenrio as idiasde Bernstein me pareciam inovadoras e desafiantes.

    Na primeira metade da dcada de 80, quando iniciei o doutorado no Insti-tuto de Educao da Universidade de Londres, Basil Bernstein ocupava a ctedraKarl Mannheim e era o intelectual de maior prestgio dentro e fora da instituio.Dessa forma, logo no incio do curso comecei a ler o volume 3 de Class, codesand control (Classe, cdigos e controle). O livro tambm me causou uma forteimpresso, aspecto este enfatizado por diferentes intelectuais que escrevem so-bre o autor. Os conceito de classificao e estrutura ofereciam grande potencialpara entender melhor o campo do currculo, sua forma de organizao, suasdisputas e a prtica pedaggica, o que era um dos objetos centrais de meu interes-se. Da mesma forma o texto, que est no captulo 6 do livro, com o ttulo deClass and pedagogies: visible and invisible (Classe e pedagogias: visveis e invis-veis) teve grande importncia na minha compreenso sobre as prticas escolares.Era um texto que punha por terra minha viso otimista sobre as pedagogias cha-madas progressistas, alternativas ou inovadoras. O desafio de ver por um novongulo algo bastante familiar, de poder pensar e de interpretar por uma novaperspectiva alguns discursos bem enraizados na tradio pedaggica me estimula-va intelectualmente.

    A seguir, vi-me diante do desafio de ler uma primeira verso do Discursopedaggico, tarefa que, realmente, tomou-me muito tempo, pois considerei otexto difcil e instigante. Era a primeira vez que lia um trabalho de discusso do proces-so de produo do conhecimento escolar dentro de uma abordagem completa-mente nova. O texto provocava-me certa inquietao porque era difcil aceitar queo conhecimento escolar no seu processo de constituio fosse deslocado de seu

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    campo de produo e, por meio de recontextualizaes sucessivas, passasse aser relocado no interior da escola, afastando-se completamente, neste processo,do conhecimento cientfico e mantendo com este, nas palavras do autor, umarelao apenas virtual. No entanto, apesar das dificuldades que o texto apresenta-va, pude perceber que estava diante de um autor que modificava minha visosobre a escola e o currculo.

    Neste artigo, em primeiro lugar busco traar um perfil do autor e de suaobra, lanando mo das inmeras publicaes sobre seu trabalho e da influnciapessoal e intelectual que teve na trajetria de acadmicos de diferentes pases efiliaes tericas. A seguir, busco apresentar as principais idias do autor para,finalmente, avaliar a importncia de seu trabalho e suas contribuies para o cam-po educacional. claro que neste processo fao escolhas, realo determinadosaspectos e, assim, termino por recontextualizar a obra de Bernstein, a partir deminha compreenso, de minha interpretao e de meu julgamento sobre o queconsidero mais significativo em seu trabalho.

    Quero, todavia, deixar claro que em cada leitura que fao de um texto deBernstein, entendo melhor um conceito que pensava ter apreendido. Isto ocorrepor dois motivos. Por um lado, o trabalho do autor, por ser muito denso, a cadaleitura, abre possibilidade de nos defrontarmos com um aspecto que nos haviapassado despercebido. Por outro lado, Bernstein um autor fiel a si mesmo, cujaobra consiste em um refinamento cada vez maior e mais elaborado, do ponto devista terico, de conceitos com alto nvel de abstrao que vo se tornando cadavez mais complexos. Na verdade, sua obra est centrada na relao entre lingua-gem e educao, de forma explcita, quando escreveu trabalhos no campo dasociolingstica e, de forma mais ampla e profunda, em trabalhos posteriores. Apartir do conceito de cdigo, baseado nos cdigos lingsticos e estabelecendoanalogias entre este e os processos educacionais, constri sua teoria sobre oprocesso de constituio dos conhecimentos escolares. Este enraizamento nalingstica continua presente em seus ltimos trabalhos, como em um de seusltimos artigos em que analisa os diferentes tipos de conhecimento e suas intra einter-relaes, publicado no British Journal of Sociology of Education (1999), inti-tulado Conhecimento horizontal e vertical.

    Por ltimo, gostaria de ressaltar que este artigo pode parecer possuir umcarter laudatrio. Contudo, quero esclarecer que considero que todas as teoriasou conceitos tericos podem ter falhas e esto e devem estar sujeitos crtica. Ocaso de Bernstein, neste sentido e neste momento, um pouco diferente, por-

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    que existem crticas procedentes quanto preciso de determinados conceitoselaborados pelo autor, discordncias consistentes quanto a determinados aspec-tos de sua abordagem terica. Todavia, grande parte da crtica que feita aos seustrabalhos decorre de m interpretao, de incompreenses sobre o que ele quisdizer, o que at pode ser imputado a sua escrita densa e muitas vezes de difcilleitura. Em razo disto, um dos objetivos deste trabalho resgatar a relevncia desua obra, prejudicada por incompreenses e crticas, em muitos casos, inadequa-das e injustificadas.

    BERNSTEIN SEGUNDO SEUS PARES

    Com o afastamento de Bernstein da universidade, com o agravamento deseus problemas de sade e, finalmente, com sua morte, cresceu o interesse peloseu trabalho e uma srie de publicaes foi produzida. O Instituto de Educao deLondres lanou um trabalho A Tribute to Basil Bernstein: 1924-2000 (Um tribu-to a Basil: 1924-2000), em que colegas, colaboradores e acadmicos de diferen-tes pases lhe prestam uma homenagem. Nesta obra, os autores expressam aimportncia, em suas carreiras, de Bernstein, suas contribuies para o campoeducacional. Relatam tambm suas relaes pessoais com este intelectual, emque a amizade e o apoio se manifestavam ora por gestos generosos, ora porfrases e conversas cheias de ironia e at mesmo sarcasmo, ora por uma atituderelaxada, em um ch ou almoo, em um restaurante ou em sua residncia. Nassuas conversas, alm de temas acadmicos, discutia sobre msica, pintura, arteem geral e, at mesmo culinria, o que mostra a grande versatilidade deste intelec-tual, evidenciada na sua capacidade de transitar e de ter conhecimentos sobre osmais variados temas e prticas do mundo contemporneo.

    Mas o que dizem amigos e intelectuais sobre Bernstein? Diferentemente denossa tradio, na qual, em uma homenagem a um morto, ningum expe suasdiferenas ou seus aspectos menos nobres, neste livro os autores apresentamproblemas que tiveram com o autor, discordncias, mas tambm ajudas, contribui-es e gestos de amizade. Assim, tem-se um retrato de Bernstein, muito prximodo que ele foi como pessoa e de sua importncia para o campo educacional.

    Basil Bernstein nasceu em 1924 e morreu em 2000, tendo iniciado suacarreira acadmica na Universidade de Londres na dcada de 60. Ocupou a cte-dra Karl Mannheim, foi chefe do Departamento de Sociologia da Educao e,quando se aposentou, recebeu o ttulo de professor emrito. Dentre seus traba-lhos encontram-se artigos em diferentes peridicos ingleses e de diversos pases,

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    e destacam-se cinco livros, traduzidos em diferentes lnguas. Os trs primeiros,sob o ttulo de Classe, cdigos e controle, foram publicados em trs volumes, naprimeira metade da dcada de 1970. O primeiro deles, publicado em 1971, como subttulo Theoretical studies towards a sociology of language(Estudos teri-cos da sociologia da linguagem). O segundo, com o subttulo Applied studiestowards a sociology of language (Estudos aplicados sociologia da linguagem),foi publicado em 1973. O terceiro, publicado em 1975, intitulado Towards atheory of educational transmissions (Em direo a uma teoria das transmisseseducacionais). Em 1990, Bernstein publica The structuring of pedagogic discourse,como o volume 4, de Classe, cdigos e controle, que foi traduzido para o portu-gus em 1996, com o ttulo A estruturao do discurso pedaggico : classe,cdigos e controle. O ltimo livro, Pedagogy, simbolic control and identity : theory,research, critique (Pedagogia, controle simblico e identidade: teoria, pesquisa,crtica) foi publicado em 1996. Observe-se que Bernstein continuou a publicar atpraticamente o final da dcada de 90.

    De acordo com Halsey (2001), emrito professor da cadeira de Sociolo-gia de Oxford, Bernstein pode ser considerado o cientista social mais inventivo esrio que saiu da London School of Economics depois da Segunda Guerra Mun-dial. Da mesma maneira, Sadovnik considera que por quatro dcadas seu trabalhono campo da sociologia, apesar de gerar muitas controvrsias, teve um papelcentral na formao de socilogos e lingistas. A importncia do trabalho deBernstein fica bem expressa, quando na ocasio de sua morte, Sadovnik (2001)afirmou que o mundo da sociologia perdeu um gigante.

    Douglas, professora de antropologia do University College, da Universida-de de Londres, diz que nos anos de 1960 teve um forte impacto diante da leiturade um artigo de Bernstein, cujo ttulo era A socio-linguistic approach to sociallearnig (Uma abordagem sociolingstica da aprendizagem social). Em suas pala-vras eu me senti eletrificada. Ela explica que, apesar de no ter entendido bem oartigo, teve um forte sentimento, pois percebeu que realmente estava ali umapessoa definitivamente envolvida com os problemas culturais. Naquele tempo aantropologia, segundo Douglas, j estava preocupada em buscar entender a cultu-ra inglesa, mas fazia isso estudando culturas de outros grupos, vivendo em locaisdistantes e diferentes desta sociedade. Para a autora, a preocupao central deBernstein era a transmisso da cultura e ela se expressa sobre isto afirmando:

    Sua temtica era na verdade a relao das palavras com as coisas, traduo,interpretao/incompreenso, todas estas questes postas em uma grande

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    perspectiva, a pr-seleo de significados. Era axiomtico para os antroplo-gos daqueles tempos que a compreenso sempre filtrada por meio de umacortina de preconceitos e de vieses sociais. (2001, p.109)

    Tambm para Cicourel (2001), professor de sociologia da Universidadeda Califrnia, Bernstein deu grande importncia s interaes sociais e tratou aesfera cultural como objeto de anlise com caractersticas prprias e no comoum mero apndice da economia.

    Ainda mostrando a relevncia do trabalho de Bernstein, Douglas se voltapara a incompreenso das crticas levantadas ao seu trabalho sobre os cdigosrestritos e elaborados, apontando que injustamente ele foi visto por alguns comodeterminista. Ela rebate estas interpretaes argumentando:

    Sua teoria pe em relevo um crculo da interaes dinmicas entre os atosdiscursivos permitidos, que regulam o que pode ser pensado e realizado, e ocomportamento permitido o que reage sobre o discurso e por sua vez otransforma. (2001, p.112)

    De acordo com Atkinson, professor da Universidade de Cardiff, a sociolo-gia est sempre reinventando a roda, pela ausncia de uma memria coletiva nestarea. Para ele, muitas idias que aparecem como novas se devem ao fato de aspessoas no conhecerem a produo e as realizaes do passado. Grande partedas idias que acolhida com entusiasmo ao ser divulgada por conter abordagense conceitos novos, s conquista prestgio porque um grande segmento do mundoacadmico desconhece as teorias e a produo do passado. Segundo o autor asociologia contempornea recapitula o passado sob o disfarce do novo (Poweret al., 2001, p.36). Considerando este aspecto, o autor ressalta que o trabalho deBernstein no pode ser vtima desta amnsia sociolgica, uma vez que os temaspor ele trabalhados como linguagem, identidade, cultura so agora redescobertospelos cientistas sociais. Para Atkinson, Bernstein, que tinha um grande conheci-mento dos clssicos e que se inspirou em trabalhos de socilogos, antroplogose lingistas, conseguiu produzir uma obra intelectual original e com identidadeprpria, que no se confunde com as dos demais intelectuais. Para este autor,Bernstein trabalhou, ao longo de sua carreira, sem abandonar suas preocupaescentrais, reelaborando e redefinindo suas idias, buscando desenvolv-las, crian-do novas formas de abord-las. Dessa maneira, ele conquistou por si mesmouma biografia intelectual que se destaca das vulgaridades da moda (2001, p.37).

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    As formas e a estrutura da educao foram sua matria-prima e elas continuamcomo temticas relevantes no campo da anlise sociolgica e antropolgica pois:

    ...a transformao de idias em mercadorias, do campo intelectual em merca-do, do artesanato intelectual em produtividade, a incorporao do conheci-mento em desempenhos mensurveis. Estes (temas) permanecem como umaagenda contnua de pesquisa central para a imaginao sociolgica. (2001, p.37)

    Para Whitty (2001), que o sucedeu na ctedra Karl Mannheim e hoje odiretor do Instituto de Educao, Bernstein teve um papel de grande destaque nainstituio, pois influenciou toda uma gerao. A prpria deciso de Whitty detrabalhar com a sociologia do currculo foi decorrente do fato de ter sido seualuno. Para ele, Bernstein foi sempre uma fonte de inspirao que perpassou todaa sua vida acadmica.

    Segundo Stephen Ball, que ocupa atualmente a ctedra Karl Mannheim, aleitura do texto de Bernstein sobre classificao e enquadramento teve umgrande impacto em sua formao. Para este autor, a maneira como Bernsteinanalisa as hierarquias no sistema educacional constitui-se em uma forma radical-mente nova, com brilhantes insigths, o que para ele faz deste artigo o melhorartigo escrito no campo da sociologia da educao (2001, p.41).

    Young, considerado um dos lderes do movimento intitulado Nova Socio-logia da Educao e aluno de Bernstein, afirma que duas das sugestes de Bernstein,durante o curso de mestrado, influenciaram toda a sua vida profissional. Relataque Bernstein mostrava, em suas aulas, como a sociologia da educao no seconstitui na aplicao de teorias sociolgicas ao campo educacional. Para Bernstein,o papel da sociologia da educao era explicitar as formas como as instituieseducacionais expressam caractersticas da sociedade da qual fazem parte. Consi-derando um privilgio ter sido aluno e colega de Bernstein, Young afirma:

    Eu me lembro de sua contnua habilidade de levantar importantes questeseducacionais, seu ceticismo sobre qualquer coisa que parecesse um modis-mo intelectual e sua determinao em levar seriamente as idias dos outros.(2001, p.170)

    Apple (2001), professor da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Es-tados Unidos, afirma que a produo de Bernstein teve grande influncia em seutrabalho e no de seus estudantes. Apesar das constantes discusses e de algumasdiscordncias que se manifestavam em conversas pessoais e por correspondn-

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    cia, Apple diz que o conhecimento do seu trabalho transformou-o, sendo isto acoisa mais importante que um professor pode fazer.

    Hasan (2001), emrito professor de lingstica na Universidade Macquarie,da Austrlia, afirma que Bernstein, tendo comeado com um trabalho mais concretoe local na dcada de 1950, com crianas que mostravam uma determinada formade comportamento, produziu uma teoria mais abstrata e ampla capaz de explicarno apenas aquele tipo de comportamento, mas tambm suas potenciais variaes.

    Kudomi (Power et al., 2001), professor de sociologia da educao daUniversidade de Hitotsubashi, em Tquio, traduziu com seu grupo de trabalho olivro Pedagogia, controle simblico e identidade para a lngua japonesa. Para estepesquisador, o legado de Bernstein para os intelectuais japoneses, sua teoriapedaggica, tem um valor inigualvel, do ponto de vista terico e metodolgico,uma vez que se constituem em instrumental valioso para enfrentar os problemasque a educao apresenta na atualidade.

    Para Brannen (Power et al., 2001), professor do Instituto de Educao daUniversidade de Londres, Bernstein, que advogava o rigor da investigao social,via com preocupao a mercantilizao da pesquisa. Percebendo a crescente pressoe demanda sobre a produo de pesquisadores e de estudantes-pesquisadores,Bernstein problematizou as principais questes vivenciadas hoje no campo dainvestigao. Por um lado, coloca a perspectiva da pesquisa entendida como umacultura, um artesanato em que os estudantes aprendem por imerso e sob adireo de um professor experiente. Por outro lado, mostra o crescimento deum outro tipo de pesquisa, produzida em razo da demanda e da produtividade,em que a exigidade do tempo elimina a inovao terica e provoca o apareci-mento de problemas de ordem metodolgica.

    Morais (2001), professora da Universidade de Lisboa, sua ex-aluna de dou-torado que trabalha com o ensino de cincias, cuja pesquisa vrias vezes citadapelo autor, afirma que o interesse pela sociologia tem crescido entre os acadmi-cos no campo do ensino de cincias, principalmente entre os adeptos de Vygotsky.

    BERNSTEIN SEGUNDO BERNSTEINEducao e democracia

    Como foi visto, os estudos de Bernstein esto escritos em uma linguagemdensa, com um alto nvel de abstrao. Resumi-los, portanto, se torna uma tarefacomplexa. Nesse sentido, esta seo do artigo busca apresentar alguns dos maisdestacados aspectos de sua teoria, apontando seus principais conceitos e as ba-

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    ses sobre as quais foram construdos. O objetivo realar algumas de suas con-tribuies para a compreenso dos processos educacionais1.

    Esta parte do trabalho baseia-se no ltimo livro publicado pelo autor (Bernstein,1996a), no qual faz uma reflexo sobre o desenvolvimento de sua obra. Ele iniciao livro (p.6-13) enfatizando a importncia da educao para a construo de umasociedade democrtica. Ele afirma que a educao, como a sade, sendo bempblico, tem um papel central na produo e reproduo das injustias sociais. Emrazo disso, para o autor, torna-se necessrio examinar os vieses ou desviosenraizados na prpria estrutura do processo de ensino-aprendizagem dos siste-mas de ensino e de seus pressupostos sociais. Bernstein mostra que a escola,para cumprir seu papel, dever garantir trs direitos. O primeiro deles se refere aodesenvolvimento pessoal, formao dos sujeitos e opera no nvel individual. Osegundo, que opera no nvel social, diz respeito ao direito de ser includo, que diferente de ser absorvido, pois inclui a idia de autonomia. O terceiro, que operano nvel poltico, o direito participao, que inclui a possibilidade de participarna construo, manuteno ou mudana da ordem social.

    No entanto, para ao autor, a escola em sentido metafrico como umespelho que reflete imagens positivas e negativas. A escola reflete imagens queso a projeo da hierarquia de valores, de valores de classe (1996a, p.7). Doponto de vista acstico, tambm a escola apresenta grandes diferenas na produ-o e na recepo de sons. Em seu interior, apenas algumas vozes so ouvidas ousoam familiares, outras vozes so silenciadas e os sons ali produzidos no tmsignificado para grande parte dos estudantes. As distores presentes no sistemaescolar so, para o autor, decorrentes da forma como este sistema opera nadistribuio de conhecimento, de recursos, de acesso e nas condies necess-rias para que a aprendizagem ocorra. As desigualdades na distribuio desteselementos afetam os direitos ao desenvolvimento pessoal, incluso e partici-pao. O autor acrescenta que altamente provvel que os estudantes que norecebem estes direitos na escola tenham origem em grupos sociais que norecebem estes direitos na sociedade (1996a, p.8).

    Bernstein avana a discusso mostrando como a escola lida com as hierar-quias externas a ela e com as questes de ordem social, justia e conflito. A formacomo a escola desconecta as hierarquias de sucesso internas a ela das hierarquias

    1. Para melhor compreenso do trabalho de Bernstein, ver a obra traduzida para oportugus (Bernstein, 1996).

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    provenientes das diferenas entre as classes sociais externas a ela pode ser explicadapela elaborao de um discurso mitolgico que incorpora interesses sociais epolticos que permeiam a vida social. Este discurso constitudo por dois pares deelementos que se combinam e se reforam.

    Um par celebra e tenta, aparentemente, produzir uma conscincia nacionalcomum, unida e integrada; o outro par trabalha junto para desconectar ashierarquias interiores escola de sua relao causal com as hierarquias sociaisexternas escola. (1996a, p.9)

    Em primeiro lugar, estaria o mito da conscincia nacional, construdo pelaescola como algo distinto do mito de origem, sucesso e destino. A cultura escolarinclui celebraes, rituais e discursos presentes em sua linguagem e no ensino dedisciplinas, como histria e literatura, que so os instrumentos para a constituioe preservao desse mito. O outro mito que se relaciona a este o mito dasociedade como um organismo em que todas as atividades tm funes impor-tantes e equivalentes. Este mito implicitamente justifica e mantm as diferenas degnero, mas no de uma maneira aberta, uma vez que as relaes de gnero somostradas como resultado de diferenas de ordem biolgica.

    O segundo par de mitos se relaciona com a maneira como a escola tentaconstruir uma estratificao distinta da estratificao social. A escola estratifica osalunos a partir do critrio de idade que se apresenta como um critrio no arbitr-rio, diferentemente das relaes arbitrrias existentes nos grupos sociais comoclasse, religio e etnia. A escola precisa legitimar suas hierarquias, relacionadas aodesempenho escolar fracasso e sucesso a partir de outros critrios, diferen-tes das hierarquias nas relaes de poder existentes entre os grupos sociais.Neste sentido, a escola justifica o fracasso, por meio de caractersticas inatas e dodficit cultural das famlias das crianas. Ao lado deste mito, o autor apresenta omito dos grupos culturais com identidade e interesses comuns. No entanto, comomostra o autor, apesar da melhoria nas oportunidades educacionais em relao agnero, raa e classe, a classe social permanece como maior regulador na distri-buio dos estudantes no que diz respeito ao sucesso e fracasso escolar. Finali-zando, o autor afirma que a cultura de classe age para transformar microdiferenasem macrodesigualdades e estas desigualdades levantam questes cruciais para arelao entre democracia e educao (1996a, p.12).

    Seria importante pois, para Bernstein, entender as caractersticas intrnse-cas ao processo de estratificao dos sistemas educacionais, bem como que

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    grupos sociais estariam mais provavelmente includos nos diferentes segmentosproduzidos por este processo de estratificao. Em decorrncia, elabora seusestudos dando centralidade s questes relacionadas ao processo de comunica-o pedaggica que se constitui no mais importante meio de controle simblico.Seu objetivo descrever as prticas organizacionais, discursivas e de transmissopresentes nas agncias pedaggicas e o processo por meio do qual a aprendiza-gem se faz de forma seletiva.

    Nessa introduo, Bernstein manifesta seu interesse de trabalhar com aproduo de uma teoria que explique como funciona o aparelho escolar, analisan-do, como internamente, pela prpria forma como constitudo, ele produz asdiferenas de desempenho. J estava posto, na poca em que iniciou seu trabalho,que a escola reproduzia desigualdades sociais. O objetivo do autor, nesse caso, explicar como, na prpria constituio do aparelho escolar, estas desigualdades seinscrevem por meio de mecanismos intrnsecos escola e a forma como esta seorganiza para socializar conhecimentos. Ao buscar criar uma teoria explicativadesse processo, Bernstein reafirma sua preocupao com os direitos educao.

    Ao descrever os processos de comunicao pedaggica, ele mostra comoa escola trabalha e, dessa forma, explicita como as diferenas que ocorrem nodesempenho dos alunos no esto apenas relacionadas estrutura social, mastambm com a prpria forma como estas hierarquias se inscrevem ou so ele-mentos constituintes do aparelho pedaggico. Sua teoria no contm uma pro-posta de mudana ou alternativas para a transformao da educao. Contudo, aobuscar desvendar elementos intrnsecos ao aparelho escolar, que condicionam aproduo e recepo diferenciada de mensagens ou de discursos, o autor abrecaminho para o entendimento mais profundo de como as desigualdades educa-cionais so produzidas e justificadas.

    A partir desse entendimento, abre-se a possibilidade de se repensar a edu-cao. Isso significa compreend-la realmente como direito social, que inclui oaperfeioamento pessoal, a incluso social e a participao poltica. Uma educaopara a cidadania, que s poder ser alcanada com mudanas na estrutura verte-bral da escola, naquilo que lhe central, nas formas como o aparelho escolarfunciona na distribuio de conhecimentos de vrias ordens. Em conseqnciadisso que talvez as modas e medidas reformistas que invadem a escola emtodas as partes do globo sejam to incuas, porque atingem aspectos perifricosda estrutura escolar, deixando intactos os elementos estruturais por meio dosquais a escola produz o sucesso e o fracasso escolar.

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    Relaes de poder e controle social

    Para Bernstein, as teorias da reproduo cultural, incluindo o trabalho deBourdieu, vem a educao como um transportador de relaes de poder exter-nas educao. Para tais teorias, as relaes de poder existentes na sociedade,no tocante a raa, gnero e classe, so transportadas para o interior da escola ereproduzidas por esta. O que o autor argumenta que no tm sido objeto deanlise a constituio e o funcionamento da estrutura que permite que tais rela-es sejam transportadas pelos sistemas de ensino e no seu interior. Para Bernstein, fundamental explicar como so transmitidos estes aspectos de dominao refe-rentes classe, patriarcalismo e etnia no interior do aparelho escolar. O que estausente, segundo Bernstein, das teorias da reproduo uma anlise interna daestrutura do discurso pedaggico, ou seja, o que est faltando uma teoria sobrea estrutura do discurso, a lgica do discurso, que fornece os meios pelos quaisas relaes externas de poder possam ser transportadas por ele (1996a, p.18).A partir desta questo o autor mostra que sua preocupao entender como ostextos educacionais so organizados e como so construdos, postos em circula-o, contextualizados, apreendidos e tambm como sofrem mudanas. Eviden-ciando sua preocupao central, Bernstein interroga:

    Sumarizando, como poder e controle so traduzidos em princpios de comu-nicao, e como estes princpios de comunicao diferencialmente regulamformas de conscincia no que se refere a sua produo e suas possibilidadesde mudana? (1996a, p.18)

    Para responder a esta questo, o autor se volta para a anlise do poder e docontrole social. Do ponto de vista terico e do ponto de vista analtico, o autorafirma que poder e controle so considerados elementos distintos, apesar deestarem mutuamente inter-relacionados nos estudos empricos. Por meio dasrelaes de poder, de acordo com sua perspectiva, estabelecem-se, legitimam-see reproduzem-se fronteiras entre diferentes categorias de grupos, como, porexemplo, classe e gnero, assim como entre diferentes categorias de discursos ede agentes. O poder est, portanto, relacionado ao espao, delimitando frontei-ras e colocando pessoas, discursos e objetos em diferentes posies. Por suavez, o controle estabelece formas de comunicao apropriadas para as diferentescategorias, ou seja, o controle estabelece a comunicao legtima para cada grupo,de acordo com as fronteiras estabelecidas pelas relaes de poder, buscandosocializar as pessoas no interior destas relaes. Neste sentido, ...o poder cons-

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    tri relaes entre e o controle de relaes dentro de dadas formas de intera-o (1996a, p.19).

    Com esses dois elementos, poder e controle, Bernstein construiu os ins-trumentos para compreenso do processo de controle simblico que regulamdiferentes modalidades do discurso pedaggico. O autor usa o conceito de clas-sificao para analisar as relaes entre as categorias, sejam elas sujeitos, discur-sos ou prticas. A expresso classificao geralmente usada para distinguir umatributo ou um critrio que constitui uma categoria. Bernstein enfatiza que estusando a expresso classificao em um sentido diferente do usual, uma vez queela no se refere a um atributo, nem mesmo a uma categoria, mas s relaesentre as categorias.

    Considerando, por exemplo, uma srie de categorias de discursos escola-res, como o discurso da fsica, da histria, da geografia, o autor argumenta que oespao que cria a especializao destes discursos no interno a eles, mas umespao entre estes discursos e entre os outros que a escola veicula. As fronteirasentre estes discursos so elementos essenciais na especializao de cada umdeles, pois se seu isolamento quebrado, a categoria fica ameaada de perder suaidentidade. Assim, o sentido de um discurso s pode ser entendido no interiordas relaes com outras categorias do grupo. o isolamento entre as categoriasdo discurso que mantm os princpios relacionados diviso social do trabalho.Segundo Bernstein, em outras palavras, o silncio que transporta a mensagemde poder (1996a, p.21).

    O autor distingue ainda entre classificaes fortes e fracas. Quando existeum grande isolamento entre as categorias, pode-se dizer que a classificao forte. Quando uma classificao forte, cada categoria tem uma nica identidadee voz, assim tambm como suas prprias regras de relaes internas. De formaoposta, quando a classificao fraca os discursos, as identidades e as vozes somenos especializados. No entanto, tanto as classificaes fortes como as fracastransportam relaes de poder. O princpio de classificao tem uma funo ex-terna que regula as relaes entre os indivduos e uma outra funo que regularelaes no interior do indivduo. A classificao cria ordem, contradies, clivagense dilemas que so reprimidos pelo isolamento. No indivduo, o isolamento setorna uma defesa psicolgica e, na medida em que for suprimido, ir revelar ascontradies, os dilemas e as clivagens. Como exemplo de forte classificao, oautor apresenta o isolamento que existia no perodo medieval entre as prticasmanuais e as prticas intelectuais. Para dar outro exemplo relacionado com areestruturao do conhecimento no sculo XX, Bernstein faz uma distino en-

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    tre discursos como singular e discursos como regies. Como exemplo dediscursos singulares, h os discursos produzidos, sobretudo a partir do sculoXIX, como a fsica, a qumica e a sociologia. Estes discursos so criados nocampo da produo do conhecimento e so discursos especficos, sobre umdeterminado objeto, ou seja, so discursos sobre eles mesmos. Para o autor, nasltimas dcadas do sculo XX, intensifica-se uma recontextualizao dos singula-res, criando-se uma regionalizao do conhecimento, de que so exemplos aArquitetura, a Engenharia e as Cincias da informao. A regionalizao seria umndice do grau de tecnologizao do conhecimento, pois a regionalizao repre-senta uma interface do campo da produo de conhecimento e do campo daprtica (1996a, p.21-23).

    Analisando a classificao do conhecimento no interior da escola, Bernsteinfocaliza dois tipos de currculo. No primeiro tipo esto aqueles em que h umaforte classificao, denominados coleo, em que as fronteiras entre as discipli-nas so bem ntidas. O segundo tipo so os currculos em que a classificao fraca e so denominados integrados, sendo que nestes as fronteiras entre asdisciplinas so pouco ntidas. Nos currculos de forte classificao, o progressonas disciplinas se desenvolve gradativamente, partindo de um conhecimento locale concreto, com o domnio de operaes simples, at princpios gerais maisabstratos que sero adquiridos em nveis mais avanados da trajetria dos estu-dantes no processo de escolarizao. Quando as crianas falham ou se evademda escola, elas provavelmente foram posicionadas dentro de um conhecimentomais fatual e de operaes mais simples. Somente aqueles que tm sucesso ealcanam nveis mais elevados de escolarizao tornam-se, geralmente, conscien-tes dos mistrios do conhecimento, percebendo que o que prevalece no discur-so de cada disciplina no a ordem, mas a desordem, assim como a possibilidadede pensar o impensvel (1996a, p.25-26). O autor, ao discutir este aspecto,indaga quais seriam as razes e os interesses que levam organizao dos conhe-cimentos de forma isolada, com forte classificao, e quais seriam os interessesque levam integrao de conhecimentos, colocando-os de forma mais relacio-nada de modo que as fronteiras entre eles sejam pouco ntidas. Este aspecto sermais desenvolvido quando for discutida a distino entre diferentes pedagogias.

    Voltando-se para a prtica pedaggica, Bernstein passa a explicar as formasde controle que regulam e legitimam a comunicao nas relaes pedaggicas. Eleusa o conceito de enquadramento para analisar as comunicaes que so legiti-madas na prtica pedaggica. Enquadramento refere-se ao controle nas intera-

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    es comunicativas presentes na prticas pedaggicas, que podem ocorrer tantoentre pais e filhos, professores e alunos, assim como entre mdico e paciente,dentre outras. que, para Bernstein, o conceito de prtica pedaggica maisamplo do que a prtica que ocorre no interior das escolas, pois abrange, porexemplo, outras relaes que envolvem processos de produo e reproduocultural, como as relaes existentes entre mdicos e pacientes, psiquiatras echamados doentes mentais, arquitetos e planejadores. Enquanto o princpio daclassificao est relacionado com o nosso posicionamento em um determinadolugar, definindo por meio do reconhecimento desta posio a possibilidade devoz e de silncio, o princpio de estrutura se constitui em um meio para a aquisi-o da mensagem considerada legtima. Assim, classificao estabelece vozes eenquadramento estabelece a mensagem (1996a, p.27). Enquadramento diz res-peito realizao do discurso, uma vez que se relaciona com a forma pela qual ossignificados so encadeados e se tornam pblicos. Nesse sentido, enquadramen-to se refere natureza do controle sobre seleo e comunicao, seqncia, aoritmo esperado para a aquisio e a base social na qual a transmisso ocorre.

    Quando o enquadramento forte, o transmissor tem um controle explci-to sobre a seleo, seqncia e ritmos da prtica pedaggica. No caso de oenquadramento ser fraco, o aprendiz tem um controle mais aparente no proces-so de comunicao. Quando o enquadramento forte, os alunos so rotuladosem termos de ateno, interesse, cuidado e esforo, enquanto no caso de umfraco enquadramento, os aprendizes so vistos a partir de seu interesse em sercriativos, interativos e autnomos (1996a, p.27-28). As regras de ordem socialque esto presentes no enquadramento so chamadas pelo autor de discursoregulativo e as regras de ordem discursiva so denominadas discurso instrucional2.Nos tipos de prtica pedaggica denominados pedagogias visveis, o enquadra-mento forte e as regras do discurso instrucional e do discurso regulativo soexplcitas. J nas denominadas pedagogias invisveis, em que o enquadramento fraco, as regras dos dois discursos so implcitas.

    No contexto da relao ensino-aprendizagem, Bernstein mostra que a classi-ficao, como foi visto, est relacionada s regras de reconhecimento, uma vezque o indivduo pode reconhecer a especificidade do contexto em que se encontra.Os princpios de classificao so como uma chave para distinguir caractersticas do

    2. Estes aspectos sero mais aprofundados quando for apresentada a anlise do autorsobre o discurso pedaggico.

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    contexto, orientando o falante/estudante para compreender aquilo que espera-do dele e que comportamentos e discursos so considerados legtimos. O en-quadramento est relacionado com as regras de realizao. Diferentes formas deenquadramento agem seletivamente sobre as regras de realizao permitindo aproduo de textos diferentes. A regra de realizao necessria para produzir otexto legtimo (1996a, p.32). Muitas crianas das camadas populares podem terdomnio das regras de reconhecimento, ao perceberem as relaes de poder nasquais esto envolvidas e sua posio nestas relaes. Contudo, podem no do-minar as regras de realizao, pois no conseguem produzir o que consideradotexto legtimo. Dessa forma, so as regras de reconhecimento que permitem aoestudante identificar que significados so relevantes e as regras de realizao per-mitem saber como utilizar esses significados para produzir o texto legtimo.

    O dispositivo pedaggico

    Bernstein argumenta que, por um lado, existe uma crescente compreen-so das relaes entre o sistema educacional e os sistemas polticos, econmicose culturais nacionais e internacionais. Por outro lado, afirma que a sala de aula temsido objeto de numerosos estudos. Entretanto, o autor mostra que existemimportantes questes que esses estudos deixam de levantar. O autor explica quemuitos deles voltaram-se para a discusso sobre o que transmitido ou transpor-tado para o interior da escola, sem discutir ou aprofundar aspectos relacionadosao prprio processo de transmisso. Com seu trabalho, Bernstein quer preen-cher esta lacuna sobre as prticas pedaggicas, procurando identificar os princ-pios subjacentes pedagogizao do conhecimento, que tornam possvel a co-municao pedaggica. Segundo o autor, se existem trabalhos que analisam asmensagens pedaggicas e suas bases institucionais e ideolgicas, no h muitosestudos sobre a gramtica social, sem a qual no possvel a produo dasmensagens pedaggicas (1996a, p.38).

    O autor inicia sua anlise sobre o discurso pedaggico, mostrando que huma clara distino entre o dispositivo transmissor e aquilo que transmitido.Partindo da conceituao do dispositivo lingstico como um dispositivo de regrasformais que governam as vrias combinaes realizadas na fala e na escrita, oautor indaga se o dispositivo lingstico seria em si mesmo neutro. Baseando-seem Halliday, afirma que as regras do dispositivo lingstico no so ideologicamen-te neutras, mas refletem nfases nos significados potenciais criados pelos gruposdominantes. O dispositivo da transmisso, o transportador, constitudo por

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    regras relativamente estveis, enquanto o transmitido, a mensagem, se funda-menta em regras contextuais. Fazendo uma analogia com o dispositivo lingstico,o autor introduz seu conceito de dispositivo pedaggico. Este dispositivo temregras internas que regulam a comunicao pedaggica e que integram este dispo-sitivo. Dessa forma, a comunicao pedaggica age seletivamente em relao aossignificados potenciais. O autor identifica como significados potenciais, que fazemparte do processo de comunicao pedaggica, os discursos potenciais que estodisponveis para ser pedagogizados. Apesar das diferenas, o dispositivo pedag-gico tem muitas similaridades com o dispositivo lingstico, pois ele tambm tornapossvel uma srie de comunicaes potenciais. No entanto, existe uma grandediferena entre os dois, no que diz respeito a um aspecto: enquanto no disposi-tivo pedaggico uma determinada forma de comunicao pode subverter as re-gras do dispositivo, o mesmo no ocorre em relao ao dispositivo lingstico(Bernstein,1996a, p. 41-42).

    De acordo com Bernstein, o dispositivo pedaggico fornece a gramticaintrnseca do discurso pedaggico. A gramtica do discurso pedaggico consti-tuda por trs tipos de regra: as regras distributivas, as recontextualizadoras e asavaliativas.

    Para explicar o que so regras distributivas, o autor argumenta que emtodas as sociedades existem duas formas de conhecimento, o esotrico e omundano, em outras palavras, o impensvel e o pensvel. As variaes entre osdois ocorrem de acordo com a cultura e no decorrer da histria. O que esotricoem uma sociedade ou em um perodo do tempo pode vir a ser mundano emoutra poca. O autor prossegue mostrando que, essencialmente, mas no ne-cessariamente, nas sociedades modernas, o controle do pensvel e do impensvel realizado pelo sistemas educacionais. De forma simplificada, segundo Bernstein,enquanto o pensvel trabalhado na educao bsica, o impensvel est, sobre-tudo, circunscrito s agncias de ensino superior. Assim, para o autor:

    Sociologicamente falando, as regras distributivas criam um campo especializa-do para a produo do discurso com regras especializadas de acesso e formasde controle do poder tambm especializadas. (1996a, p. 46)

    As regras de recontextualizao que criam o discurso pedaggico. Bernsteindefine o discurso pedaggico como uma regra que embute dois discursos: umdiscurso de habilidades de vrios tipos e suas relaes mtuas e um discurso deordem social. Geralmente, para o autor, no campo educacional se faz uma distin-

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    o entre habilidades e valores, uma vez que muitos pesquisadores trabalhamcomo se na educao habilidades e valores fossem coisas distintas. Contudo, naviso de Bernstein, existe apenas um discurso, pois o discurso pedaggico nopode ser identificado com aquilo que ele transmite, como a fsica, a matemticaetc. Afirma ainda que o discurso pedaggico no um discurso, mas um princpio.Um princpio por meio do qual outros discursos so apropriados e colocados emuma relao especial uns com os outros, com o propsito de uma transmisso eaquisio seletiva. um princpio para deslocar, relocar e focalizar um discurso, deacordo com seu prprio princpio. Desta forma, o discurso pedaggico se cons-titui em um princpio de recontextualizao, que, seletivamente, se apropria, reloca,refocaliza e relaciona outros discursos, para constituir sua prpria ordem (1996a,p.46).

    O princpio de recontextualizao cria os campos recontextualizadores eseus agentes. O autor distingue entre o campo da recontextualizao oficial, cria-do e dominado pelo Estado e seus agentes e o campo da recontextualizaopedaggica, constitudo pelos educadores, departamentos de educao nas uni-versidades, pelos peridicos especializados e pelas fundaes de pesquisa. Para oautor, o aspecto dominante do discurso pedaggico o regulativo, de cunhomoral, capaz de modelar o carter, as maneiras, as condutas e as posturas. Bernsteinafirma que o discurso regulativo que produz a ordem do discurso instrucional,pois no h discurso instrucional que no seja dominado pelo discurso regulativo.Qualquer disciplina escolar recontextualizada ao ser deslocada de seu campo deproduo. H uma seleo de contedos, da seqncia e do ritmo em que serotrabalhados na escola. O processo no derivado da lgica existente no campoda produo desses conhecimentos. O processo de ensino-aprendizagem umfato social e nele o discurso regulativo fornece as regras da ordem interna dodiscurso instrucional. Logo as teorias da instruo fazem parte do discurso regulativo,uma vez que em seu interior existe um modelo de aluno, de professor e de suasrelaes (1996a, p.47).

    Partindo dessas idias, Bernstein mostra que o discurso pedaggico espe-cializa o tempo, o texto e o espao, colocando-os em uma relao especial.Nesse sentido, o tempo transformado em idade, o texto em contedo e oespao em contexto. No interior das relaes da prtica pedaggica, a idade(muitas vezes pensada em termos de estgios) transforma-se em aprendizagem,o contedo, em avaliao e o contexto, em transmisso.

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    Discurso pedaggico e identidades

    Segundo Bernstein, nos anos de 1960, houve uma certa convergncia nointerior das cincias humanas e isso teve conseqncias para o campo pedaggi-co. Vrios autores, de diferentes reas, passaram a usar o conceito de competn-cia. Bernstein exemplifica tal processo, apontando as reas e seus tericos: com-petncia lingstica (Chomsky), competncia cognitiva (Piaget), competncia cultural(Lvi-Strauss), competncia prtica (Garfinkle) e competncia sociolingstica (DellHymes). Seus trabalhos demonstram que as competncias so criativas e tacita-mente adquiridas em interaes informais (1996a, p.54-55).

    O campo pedaggico passa tambm a ser influenciado pelo conceito decompetncia. Bernstein faz uma distino entre competncia e desempenho. Oconceito de competncia, para o autor, est relacionado, no campo educacional,a um significado emancipatrio, associado idia de que no existe dficit cultural;de que o sujeito ativo na criao de significados e prticas sociais; de que aaprendizagem um processo interno, tcito e invisvel e que no pode ser regu-lado externamente. De forma diferente, o conceito de desempenho pe nfaseno produto final, isto , diz respeito a um texto especfico que o estudante deveriaproduzir e s habilidades necessrias para a realizao desta produo. Para Bernstein,as orientaes e finalidades da educao variam tanto no modelo de desempenhocomo no de competncia (1996a, p.56-67).

    Bernstein passa, ento, a relacionar as duas modalidades de prtica pedag-gica, ligadas ao conceito de competncia e de desempenho, com o processo deconstruo de identidades. Ele relaciona a idia da estrutura do conhecimentosingular e regionalizado com dois tipos diferentes de prticas pedaggicas e deconstruo de identidades. Da mesma forma, ele identifica trs modelos de com-petncia e de construo de identidades, derivados de diferentes modalidades deprticas pedaggicas que estabelecem formas diferenciadas nas relaes entresujeito, conhecimento e sociedade.

    Nesse processo, ele aponta o papel exercido na construo desses discur-sos pelo campo de recontextualizao oficial, dominado pelo Estado, e o campode recontextualizao pedaggica, dominado pelos educadores. O autor mostracomo, na atualidade, o Estado, de forma centralizada, monitora o currculo, aomesmo tempo em que estimula a descentralizao da administrao escolar. Estadescentralizao, no entanto, tem-se tornado um fator importante na criao deuma cultura empresarial competitiva no interior do sistema de ensino. Bernsteinanalisa, em sntese, as estratgias adotadas em razo das exigncias do mercado

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    e das novas formas de reorganizao do capitalismo e suas relaes com asestratgias educacionais dos diferentes segmentos sociais de origem dos alunos,ou seja, com as aspiraes diferenciadas de educao dos diferentes grupos so-ciais. Todas estas variveis que interferem no campo educacional repercutem naprtica pedaggica, levando formao de modelos hbridos e, conseqentemen-te, possibilitando uma grande diversidade de processos relacionados constru-o de identidades sociais.

    Finalmente, o autor observa como a prpria diversidade e as oposiesintrnsecas a esse processo de formao de identidades terminam por criar basepara resistncias. Nesse sentido, para Bernstein:

    Tais diversidades podem ser menos um ndice de fragmentao cultural, comosupem os ps-modernistas, e mais um ressurgimento cultural geral de rituaisde interiorizao em novas formas sociais. (1996a, p. 80)

    Teoria e pesquisa

    Bernstein diz que os trs volumes de Class, codes and control representamum primeiro estgio no desenvolvimento de sua teoria sobre o discurso pedag-gico e as modalidades de controle social. Seu trabalho teve origem nos anos 50,partindo de problemas empricos sobre a razo do sucesso escolar e de suasrelaes com os processos de socializao. Segundo o autor, ele no estavasatisfeito com as teorias sobre o processo de socializao que o explicavamcomo um processo mstico de internalizao de valores, papis e disposies .Naquele momento, ele se sentia atrado pelo interacionismo simblico de Meade com os primeiros trabalhos da Escola de Chicago, em que a comunicao tinhaum papel central e em que as culturas marginalizadas eram estudadas por meio deestudos detalhados de orientao etnogrfica. Durkheim e Cassirer forneciamuma perspectiva kantiana que, de formas diferentes, chamavam-lhe a ateno paraa base social das formas simblicas. Marx despertou seu interesse ao relacionar aquesto de classe com formas de conscincia e suas relaes com a diviso socialdo trabalho e as relaes de produo. Com esses elementos, Bernstein afirmaque teve condies de pensar no impensvel, ligando a anlise de Durkheimsobre solidariedade mecnica e orgnica com relaes de poderes diferenciadas(1996a, p.91).

    O autor comea, ento, a estudar como diferentes posies de podercriam diferentes modalidades de comunicao, que so valorizadas tambm de

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    formas diferentes pela escola. Iniciando seu trabalho sobre modalidades de co-municao e suas relaes com a educao, em cdigos restritos e elaborados,a partir do final dos anos de 1970 e incio dos 1980, ele constri uma explicaosobre o processo de estruturao do discurso pedaggico.

    Bernstein explica como, no decorrer de sua produo, teoria e pesquisa debase emprica foram se inter-relacionando, de forma que ele pudesse desenvol-ver um trabalho que se aprofundava e ia superando problemas com os quais sedefrontava no decorrer do processo. As pesquisas foram realizadas por estudan-tes de doutorado e ps-doutorado e outros colaboradores. Por exemplo, Bernsteinesclarece que a formulao de conceitos para a descrio das modalidades decdigos elaborados institucionalizados pelo sistema escolar nasceu da conceitua-lizao das modalidades de sistemas familiares e de seus princpios de controle.Este foco, de acordo com o autor, foi definido pelas pesquisas realizadas por umgrupo a partir da segunda metade dos anos de 1960 at a segunda metade dosanos de 1970. As investigaes estavam voltadas para o estudo da origem doscdigos sociais na famlia e suas manifestaes/realizaes sociolingsticas emcrianas de 5 a 7 anos, buscando estabelecer relaes com sua influncia nodesempenho escolar, na escola primria, de crianas das camadas populares.Apesar da formulao terica dos tipos de famlias j estar pronta desde 1963, sfoi publicada no incio da dcada de 1970, depois da realizao de vrios trabalhosempricos que buscavam descrever formas de controle.

    Ainda nos anos de 1960, o autor diz que comea a analisar dois sistemasque se inter-relacionam na escola. Um de natureza instrumental, relacionado coma transmisso de competncias ou habilidades especficas e outro, de ordemexpressiva, voltado para a transmisso de condutas, maneiras e para a formaodo carter. Baseado nos conceitos de Durkheim sobre solidariedade mecnica eorgnica, Bernstein trabalha com a idia de que as escolas estavam mudando,saindo da solidariedade mecnica para a solidariedade orgnica. Essas idias soutilizadas e exploradas em trabalhos empricos. O autor, no entanto, percebialimitaes tericas em seu trabalho. Os conceitos usados para analisar as moda-lidades de cdigos elaborados utilizados pela escola no estavam ainda conectadoscom os conceitos formulados para explicar os cdigos. Havia uma dificuldade detransitar do nvel macro para o nvel micro, pois os modelos de explicao dosistema de transmisso que ocorre na escola no forneciam os princpios bsicosque explicassem formas de ensino-aprendizagem no nvel micro da prtica peda-ggica. nesse contexto que Bernstein afirma que, a partir de Durkheim, formulao conceito de classificao e, a partir do interacionismo simblico, ele chega ao

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    conceito de enquadramento, embora ele os defina de forma diferente daquelaque tais conceitos tm nas formulaes tericas em que se originaram (1996a,p.91). Mais uma vez, por meio de pesquisa, Bernstein pode avaliar e perceber acomplexidade das relaes existentes entre o cdigo pedaggico da famlia, obackground cultural da famlia, o nvel de desenvolvimento dos estudantes e amodalidade do cdigo elaborado utilizado na prtica pedaggica assim como osdiferentes nveis de desempenho e conduta dos alunos em sala de aula.

    Permanecia, no entanto, um problema: a separao entre habilidades denatureza instrumental, o conhecimento dos contedos escolares e a aprendiza-gem de formas de comportamento e atitudes de ordem expressiva. Por meio depesquisas realizadas em escolas, ele pode rever seu conceito de enquadramento.Passou, desse modo, a definir enquadramento como controle presente em doisdiscursos, sendo que um est embutido no outro: o discurso instrucional, voltadopara a transmisso de diferentes habilidades, e o discurso regulativo, por meio doqual so transmitidas regras de ordem social. Foi tambm por meio de pesquisaque o autor diz que pode ser evidenciada a relao entre as modalidades de prticapedaggica em termos de sua classificao e enquadramento e a atuao das regrasde reconhecimento e de realizao para a construo do texto considerado legti-mo pela escola. Nesse contexto, Bernstein explicita o seu conceito de cdigo, cujadefinio mais aprimorada foi elaborada em 1981. Segundo o autor: cdigo umprincpio, tacitamente adquirido, que seleciona e integra significados relevantes, aforma de suas realizaes e dos contextos que evoca (1996a, p.110).

    Segundo Bernstein, nos diferentes artigos que escreveu, desde a dcada de1970 at o incio dos anos de 1990, tinha como foco central a distino entreformas de prtica pedaggica, em que se procurava verificar sua localizao emtermos de classe social, e a ideologia subjacente a tais prticas. A partir do concei-to de enquadramento, o autor busca distinguir entre as prticas em que as regrashierrquicas e discursivas estavam implcitas e aquelas em que estas regras esta-vam explcitas. Baseando-se nisso, o autor afirma ter sido possvel identificar doisprincpios de prtica pedaggica: as visveis e as invisveis. Uma prtica pedaggica denominada visvel, quando as relaes hierrquicas entre estudantes e docen-tes e as regras de organizao, relacionadas com a seqncia e o ritmo do ensino-aprendizagem so explcitas e conhecidas pelos estudantes. No caso das pedago-gias invisveis, as relaes e regras so implcitas e no so conhecidas pelo aluno. que, neste ltimo caso, a prtica pedaggica, suas regras e critrios so deriva-dos de teorias complexas sobre o desenvolvimento da criana e do adolescente,

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    teorias da lingstica e da gestalt, em alguns casos, teorias psicanalticas. O argu-mento central sobre a instituio e a escolha das famlias por escolas onde predo-minem um desses tipos de prticas constitui-se em um conflito de natureza ideo-lgica, entre fraes da classe mdia, sobre formas de controle. Para o autor, huma distino entre os interesses de segmentos da classe mdia que trabalhamno campo da produo e os de segmentos que trabalham no campo do controlesimblico. Essas diferenas na diviso do trabalho, no setor da produo e nocampo do controle simblico, so complexas, muitas vezes se inter-relacionam eterminam por oferecer as condies para o desenvolvimento de formas de prti-ca pedaggica distintas que se dirigem formao de tipos de conscincia ou deformas de conduta tambm distintas. O autor mostra que foram realizadas trspesquisas de base emprica, cujo objetivo era trabalhar com o desenvolvimentoda teoria em nvel macro. Nesse sentido, buscava-se uma articulao entre for-mas de diviso do trabalho e sua conexo com o sistema escolar, em termos daconstruo e instituio de prticas pedaggicas compatveis com os interesses dediferentes fraes das classes mdias (1996a, p.112-113).

    Finalmente, o autor amplia sua teoria, incluindo a construo do discursopedaggico como uma gramtica subjacente ao campo de produo, recontex-tualizao e prtica pedaggica (1996a, p.118). Bernstein utiliza-se muito degrficos e diagramas, e seu modelo sintetizado em um diagrama, no qual dispeos grupos sociais e suas relaes com o poder, o conhecimento e a conscinciae suas conexes com o dispositivo pedaggico; a seguir, dispe as regras: distributivas,recontextualizadoras e de avaliao; ao lado destas esto os campos de produ-o, recontextualizao e reproduo dos discursos, seguidos dos processo decriao, transmisso e aquisio. O diagrama sinaliza com setas as origens e inter-relaes entre estes elementos (1996a, p.118)3. Com base nesse modelo fo-ram realizadas algumas pesquisas sobre a estrutura e as relaes que esto nelerepresentadas.

    Finalizando as explicaes que fornece sobre seu prprio processo deproduo, Bernstein afirma que partes de sua teoria sempre precederam a pes-

    3. Um diagrama que representa um modelo s pode ser bem entendido quando visualizado.Contudo, esto sendo apenas citados os elementos que fazem parte do diagrama paraajudar na compreenso dos conceitos utilizados na construo do discurso pedaggi-co como uma gramtica subjacente ao campo da produo, recontextualizao eprtica pedaggica (1996a, p.118).

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    quisa. Seus alunos de ps-graduao utilizaram-se das formulaes tericas pro-duzidas pelo autor e estas formulaes, por sua vez, geraram mais questes paraa teoria, exigindo maior refinamento. Foi este o processo de produo terica,por meio do qual Bernstein desenvolveu seu trabalho. Buscou, ao longo dele,estabelecer uma relao entre os insights no campo da teoria e a pesquisa de baseemprica, sem a qual ele afirma que no poderia ter elaborado os princpios dedescrio. importante salientar que, para Bernstein, a teoria deve fornecer umadescrio explcita e no ambgua sobre os objetos que analisa.

    Orientao terica

    Bernstein busca tambm explicar a metodologia na qual se fundamentaramos projetos de pesquisa realizados a partir de suas elaboraes tericas. Ele ob-serva que se tem indagado sobre o fato de seu trabalho fundamentar-se emdicotomias, em que cada plo, de certa forma, funciona como tipo ideal: elabora-do/restrito, posicional/pessoal, aberto/fechado, visvel/invisvel, coleo/integra-do, dentre outros. O autor concorda que trabalha com conceitos que se opem,mas no que se constituam tipos ideais, no sentido weberiano, como apontamalguns de seus crticos. Para ele, um tipo ideal construdo com base em ummodelo que rena um nmero de caractersticas abstradas do fenmeno, demodo a fornecer recursos para identificar a presena ou a ausncia destas carac-tersticas e um meio de analisar o fenmeno pelo conjunto de suas caractersticas.No seu caso, estes conceitos so princpios que geram um grupo de relaes,nas quais qualquer forma em que eles se apresentem pode ser apenas uma dasformas reguladas por tais princpios. Nesse sentido, Bernstein enfatiza que asdicotomias com as quais trabalha esto relacionadas com as fronteiras, ou seja,sua preocupao identificar a razo pela qual determinadas coisas so colocadasjuntas e outras separadas. A partir da, possivel interrogar: Quais so os interes-ses que fazem com que sejam colocadas juntas? Quais so os interesses quefazem com que se mantenham separadas? Estas questes levantam o problemadas relaes de poder e da forma como estas relaes se estruturam, construin-do fronteiras que possibilitam a manuteno e a circulao de poder em seuinterior (1996, p.126-127).

    Reafirmando a influncia de Durkheim em seu trabalho, Bernstein justificaque o trabalho de Durkheim foi considerado conservador, funcionalista ou posi-tivista, pela forma como foi recontextualizado, sobretudo nos Estados Unidos,com base nos estudos de Parsons. Bernstein afirma que , no entanto, a ligao

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    de Durkheim com o estruturalismo que fez com que vrios autores classificas-sem o trabalho dele prprio, Bernstein, como estruturalista. Entretanto, conside-ra que essa identificao do seu trabalho no o excluiria de outras influncias.

    Se o autor, por um lado, busca definir a estrutura do sistema, por outro,tambm est preocupado com as possibilidades de mudana, o que demonstraque seu trabalho est influenciado por outras tendncias diferentes do estrutura-lismo. Para ele, no entanto, as interaes relacionadas ao princpio de enquadra-mento tm um potencial para mudar a classificao, ou seja, mudanas nas formasde controle podem resultar em mudanas nas relaes de poder. Como as for-mas de controle se relacionam com as interaes dos sujeitos, estes podemmudar por negociaes/resistncias o tipo de enquadramento, o que pode vir aalterar as relaes de poder que estabelecem as fronteiras entre os grupos sociaise entre as formas de conhecimento, por exemplo.

    Finalmente, Bernstein reala que existem trabalhos que buscam estabele-cer relaes entre sua teoria e as teorizaes produzidas por Foucault. Em snte-se, o autor quer salientar que seu trabalho influenciado por diferentes fontes e,conseqentemente, no pode ser classificado em uma nica tendncia dentro docampo sociolgico. Esta singularidade ressaltada em vrios textos, de diferentesautores, voltados para uma anlise da produo de Bernstein.

    AS GRANDES CONTRIBUIES DO AUTOR

    Pde-se ver que vrias pesquisas e estudos foram realizados a partir deconceitos tericos e de modelos conceituais elaborados por Bernstein, mas,alm disso, muitos artigos e livros foram e tm sido publicados em torno da obrado autor. Esta parte do artigo se fundamenta nestes trabalhos, sobretudo em trsimportantes publicaes sobre sua obra.

    Em 1995, Alan Sadovnik organizou uma coletnea, intitulada Knowledge &pedagogy : the sociology of Basil Bernstein (Conhecimento e pedagogia: a socio-logia de Basil Bernstein), em que diferentes intelectuais de diversos pases domundo escrevem artigos sobre e/ou baseados em Bernstein.

    A edio est organizada em seis partes e na primeira, em sesso introdutria,o prprio editor, Sadovnik, faz uma apresentao crtica da produo de Bernstein,ressaltando que a obra buscou apresentar uma viso geral do trabalho do autor,analisando alguns de seus conceitos-chave, bem como examinar, com base nasociologia, as controvrsias levantadas pelo seu trabalho. Da segunda at a quintaparte, esto agrupados vrios artigos de diferentes autores sobre diferentes as-

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    pectos tericos, prticos e de pesquisa relacionados s teorias e aos conceitosdesenvolvidos pelo terico. Na ltima parte, Bernstein faz comentrios sobre osdiferentes artigos, focalizando interpretaes e usos e comenta tambm as crti-cas postas em relevo nos escritos de diferentes autores.

    Outra obra tambm de 1995, intitulada Discourse and reproduction : essaysin honor of Basil Bernstein (Discurso e reproduo: ensaios em honra de BasilBernstein), foi editada por Paul Atkinson, Brian Davies e Sara Delamont. Os edi-tores afirmam, na introduo, que o livro no busca fazer uma exegese da produ-o de Bernstein nem uma reviso de seu trabalho. A despeito da grande contri-buio do autor para a sociologia e de sua reputao internacional, os editoresconsideram que o livro procura celebrar as contribuies de Bernstein, sem sedeter contudo apenas nos artigos sobre ele. A obra contm artigos de acadmi-cos experientes que expem suas idias, algumas relacionadas ao trabalho doautor e outras, que constituem contribuies prprias desses autores para ocampo da sociologia da educao.

    O peridico ingls intitulado British Journal of Sociology of Education, nonmero 4, do volume 23, editado em dezembro de 2002, publicou uma edioespecial, intitulada Basil Bernsteins: theory of social class, educational codes andsocial control (A teoria de classe social, cdigos educacionais e controle social deBasil Bernstein). O editorial deste nmero destaca que foi pedido a cada um doscolaboradores que explorasse de forma didtica um aspecto particular do traba-lho de Bernstein relevante para a sociologia da educao e para a pesquisa social.

    Com base nessa literatura, o artigo passar a apresentar os principais as-pectos focalizados por alguns trabalhos que podem contribuir para a compreen-so tanto terica quanto para aplicaes de seus conceitos em diferentes reas dapesquisa sociolgica.

    Os trabalhos de Bernstein no campo da sociolingstica

    Diferentes autores (Atkinson, 1995; Hasan, 2001) ) ) ) ) analisam os primeirostrabalhos de Bernstein no campo da sociolingstica, as crticas que produziram ea explicao para incompreenses e interpretaes pouco acuradas do trabalhodo autor. O fato de ter discutido as diferenas entre a linguagem das crianas dascamadas populares e das camadas mdias, identificando dois tipos de cdigos,que ele chama de restritos e elaborados, fez com que se tornasse alvo de vriascrticas, sobretudo a partir dos trabalhos de Labov, passando esses primeirosestudos de Bernstein a serem associados com teorias do dficit cultural. O pr-

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    prio termo restrito pode ter influenciado as interpretaes desses trabalhos eparece que a melhor explicao sobre as questes suscitadas foi realizada porHalliday, como se constatar a seguir.

    Segundo Halliday (1995), quando Bernstein lecionava no ensino bsico,no final dos anos de 1950, buscando entender o fracasso escolar das crianas decamadas populares, ele comeou a explicar a razo do problema em termos dediferena nas formas de percepo. Enquanto as crianas das camadas popularesaprendem a ser sensveis aos contedos e a perceber os fenmenos em termosdas fronteiras existentes entre eles, as crianas das camadas mdias aprendem aser sensveis estrutura e a perceber os fenmenos em termos de suas mtuasrelaes. Bernstein, logo no incio de seus estudos, segundo Halliday, viu que taisdiferenas eram semiticas. Halliday mostra como, a partir da, Bernstein estabe-leceu uma diferena entre a linguagem formal e a linguagem pblica. Por um lado,a linguagem pblica, dentre outras caractersticas, apresenta frases curtas, gram-tica simples, sentenas inacabadas, uso de conjunes, uso limitado de adjetivose advrbios, afirmaes formuladas com questes implcitas, enfim, uma lingua-gem de significados implcitos. Halliday cita Bernstein, o qual afirma que umalinguagem pblica contm sua prpria esttica, uma forma de expresso simplese direta, emocionalmente vigorosa, substancial e poderosa, e uma gama de met-foras de considervel fora e adequao (Bernstein, 1971, p.54). Na linguagempblica, est tambm mais presente a conexo ou as relaes mais inclusivas. Demaneira diferente, os cdigos formais ou elaborados so explcitos, apresentan-do um alto grau de planejamento em que a ateno do ouvinte no consideradacomo certa. Dessa forma, os cdigos elaborados constroem seus significadospor meio de princpios mais gerais, que so acessveis apenas a certos grupos.Segundo Halliday, Bernstein fez com que esta diferena parecesse paradoxa, usandoas expresses universalista e particularista4.

    Halliday salienta o fato de Bernstein demonstrar que nas formas de apren-der e usar um discurso, a criana aprende um cdigo que regula suas aesverbais e o que necessrio para atuar na estrutura social em que est inserida.

    4. Sendo acessveis apenas a certos grupos, tem-se a impresso que esses tipos de cdigosno deveriam receber a denominao de universalista. Contudo, Bernstein usa o termoparticularista para indicar um cdigo que tem significados bem especficos e maioracesso, enquanto o cdigo universalista tem um significado mais geral e um acesso maislimitado. Assim, o paradoxo apenas aparente (Halliday, 1995, p.129-130).

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    Citando literalmente Bernstein, Halliday mostra que para o autor o discurso oprocesso pelo qual a criana vem a adquirir uma identidade social especfica.Halliday ainda ressalta que Bernstein deixava bem claro que um cdigo no eramelhor que o outro, uma vez que cada um possui sua prpria esttica e possibi-lidades.

    Quando Bernstein publicou seus estudos no campo da lingstica estavatornando-se polmico o conceito de dficit, o qual vinha embutido em determina-das concepes. Desta forma, segundo Halliday, referindo-se ao conceito decdigos elaborados e restritos:

    Seu conceito de cdigo restrito foi denunciado como se considerasse asclasses operrias como tendo inteligncia inferior e toda uma mitologia foiconstruda ao redor da questo do dficit versus diferena, na qual foi destina-do a Bernstein o papel de bode expiatrio. (p.133)

    Em tom indignado, Halliday afirma que, convivendo com Bernstein, con-versando com ele ou lendo seus trabalhos, a associao destes com a teoria dodficit to bizarra que fica at difcil dar uma resposta a essa ordem de acusao.Vai alm, mencionando que Mary Douglas j havia tornado claro que era bvia asolidariedade de Bernstein para com as crianas das classes operrias. Hallidayargumenta que Bernstein mostrou os mecanismos pelos quais o acesso ao cdi-go elaborado estava associado questo de classe social. Como nos EstadosUnidos, onde o problema de classe social est mascarado pela questo tnica,existe um tabu sobre a discusso que envolve classes sociais. Assim, de acordocom Halliday, ao abrir esta discusso, os ataques de que foi alvo se constiturambasicamente em uma resposta de pnico.

    Halliday afirma que Bernstein percebeu claramente que a linguagem noreflete de forma passiva nem a construo conceitual da realidade material, nemde um determinado modelo de relaes sociais. Parte da idia de que as formasdo discurso tambm no so neutras, so, ao contrrio, partes integrantes dadinmica social com suas desigualdades e assimetrias de acesso ao poder e aoconhecimento. Nesse sentido, segundo ainda o autor, estas desigualdades de-vem estar presentes nas atividades semiticas pelas quais poder e conhecimentoso construdos (Halliday, 1995, p.138).

    Finalizando, Halliday salienta a contribuio de Bernstein no campo da lin-gstica afirmando:

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    ...Bernstein constitui, como Bhler e Malinowski, uma das figuras principais,que no pertencendo ao campo da lingustica influenciou criticamente nossaforma de pensar sobre a linguagem. [...] Os linguistas, atualmente, tm umaviso mais rica dos processos de significao em decorrncia do trabalho deBernstein. (p.141)

    Tendncias e orientaes tericas no trabalho de Bernstein

    Diferentes autores atribuem a Bernstein as mais diferentes orientaestericas, assim como apontam influncias de diferentes correntes na sua produ-o. A afirmao de que seu trabalho original e representa uma sntese pessoalde diferentes tradies mostra que realmente difcil tentar enquadrar o trabalhode Bernstein em determinada filiao ou corrente de pensamento no campo dascincias sociais. Alguns autores tentam demonstrar, por exemplo, as afinidadesentre Bernstein e o estruturalismo, enquanto outros classificam sua produocomo inspirada em autores clssicos da sociologia, havendo ainda os que asso-ciam alguns de seus trabalhos s correntes ps-estruturalistas.

    Entre os que discutem a viso estruturalista nos trabalhos de Bernstein,encontra-se Atkinson (1995). Este autor inicia um artigo dizendo que escreversobre o estruturalismo presente nos trabalhos de Bernstein no o mesmo quedizer simplesmente que ele um estruturalista5, uma vez que o trabalho de Bernsteinconstitui uma sntese com origem em diferentes tradies tericas6.

    Indicando diferentes tendncias dentro do estruturalismo, Atkinson afirmaque na noo de cdigo, entretanto, que o estruturalismo de Bernstein estformulado em sua maneira mais potente (e mal interpretada). O autor argumentaque cdigo para Bernstein um princpio regulador ou um mecanismo subjacentes manifestaes de superfcie do discurso, da percepo e da ordem do sentido,

    5. Atkinson afirma que, com base em Saussure, o estruturalismo desenvolve-se conside-rando a idia de que a vida social poderia ser discutida e analisada de forma homloga da linguagem. Neste sentido, a vida social no pode ser entendida a partir daregularidade de suas manifestaes superficiais, mas das estruturas subjacentes aossistemas de relaes que tornam possvel a compreenso dos fenmenos culturais.

    6. Atkinson ressalta, ainda, que no tem inteno de dizer que o trabalho de Bernstein seencerra dentro de uma sociologia determinista ou de uma estreita viso terica, o quepoderia ser sugerido pelo fato de associ-lo ao estruturalismo sem maiores explica-es.

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    isto , para Bernstein o cdigo regula a seleo e organizao dos discursos.Atkinson, fundamentando-se em afirmaes de Bernstein7, mostra que nas anli-ses deste ltimo h uma distino entre a estrutura invisvel e mais profunda doscdigos e de seus princpios gerativos e as estruturas visveis e de superfcie dassuas realizaes na prtica social (1995, p.92).

    Outro autor que relaciona o trabalho de Bernstein ao estruturalismo Sadovnik (1995). Ele enfatiza que Bernstein nunca abandonou uma posio es-truturalista inspirada em Durkheim, tendo tambm incorporado uma viso neomarxistae categorias weberianas no conjunto de sua produo. Todavia, diz que precisoremover algumas idias sobre o funcionalismo que so associadas ao estrutural-funcionalismo, para se entender a sociologia de Bernstein. Sadovnik argumentaque o trabalho mais recente de Bernstein converge para a tradio europia doestruturalismo em razo de sua nfase em sistemas classificatrios, manutenode fronteiras e uso do conceito de cdigos. Para este autor, no entanto, a socio-logia de Bernstein busca incorporar ao estruturalismo a teoria do conflito. Emresumo, como outros autores, Sadovnik termina por afirmar:

    Mais do que trabalhando a partir de uma teoria sociolgica, ou tentandosintetizar um nmero de teorias, Bernstein tem tentado desenvolver e refi-nar um modelo que seja capaz de descrever as complexas relaes entrediferentes aspectos da sociedade. (p.30)

    A originalidade do trabalho de Bernstein se encontra na possibilidade deconjug-lo com diferentes tendncias do pensamento social. As afinidades entrealgumas de suas idias e as de Foucault tm sido realadas por diferentes autores,como afirma Tyler (1995). Como Foucault8, Bernstein est interessado nas rela-

    7. Atkinson cita especificamente uma afirmao de Bernstein, que funciona como tesegeral, com a qual responde a questo de como a distribuio de poder e princpios decontrole so transformados posicionando os sujeitos e criando a possibilidade demudana em tal posicionamento. Segundo Bernstein as relaes de classe geram,distribuem, reproduzem e legitimam formas distintas de comunicao, que transmitemcdigos dominantes e dominados, e que os sujeitos so posicionados diferentementepor estes cdigos no processo de adquiri-los (Bernstein, 1990, p.13).

    8. Segundo Moore (2001), irnico que os intelectuais franceses permaneam incons-cientes da influncia do trabalho de Durkheim no campo intelectual, em que pensado-res como Foucault mostram as marcas desta influncia. A crtica de Dukheim aohumanismo que anuncia a morte do sujeito, apresentando-se como um dos cami-nhos para que se desenvolvesse o niilismo de Nietzsche.

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    es entre poder, conhecimento e discurso, mas critica Foucault, afirmando queno trabalho deste no h uma anlise substantiva das relaes entre agncias,sujeitos e das relaes sociais por meio das quais poder, conhecimento e discur-so agem como dispositivos reguladores (Bernstein, 1990, p.134). Baseando-seem Diaz, Tyler afirma que, enquanto Bernstein trabalha no nvel macro, buscandocompreender as relaes entre o discurso pedaggico e as classes sociais, Foucault,por meio de estudos de natureza microanaltica, busca detectar o poder reguladordo discurso. A similaridade entre ambos que os dois esto preocupados emdemonstrar como hierarquias e diferenas so constitudas por meio de tcnicas,procedimentos e regras que classificam, normalizam e constroem os diferentesgrupos sociais.

    Assim como alguns acadmicos que baseiam seus trabalhos em anlises deteorias ps-estruturalistas, intelectuais que estudam a questo de gnero encon-tram na produo de Bernstein idias e conceitos para desenvolver seu trabalho.Arnot, por exemplo, escreve um artigo em que expe as influncias dos estudosde Bernstein acerca dos cdigos educacionais sobre a teoria feminista. A autoraconsidera que os conceitos de classificao e enquadramento podem ser utiliza-dos para explicar como a cultura escolar marcada pelas relaes de gnero(1995, p.309). Da mesma maneira, Delamont (1995) afirma que apesar deBernstein no ter escrito sobre gnero especificamente, seu trabalho contmorientaes tericas e dados empricos para os estudos e pesquisas voltadas paraa questo.

    Por ltimo, no se pode deixar de destacar que o trabalho de Bernsteintem sido utilizado em cruzamento com o de outros autores, como, por exemplo,Vygotsky (Morais, 2002; Daniels, 2001), alm de servir como uma das refern-cias importantes para os que trabalham com os processos de escolarizao daselites e classes mdias (Cookson, Persell, 1995; Power, Whitty, 2002) e, princi-palmente, para os pesquisadores que se voltam para a investigao das interaese prticas da sala de aula, incluindo desde a educao infantil at o ensino superior(Jenks, 1995; Davies, 1995; Tyler, 1995; Moss, 2002).

    CONCLUSO

    interessante observar como as fortes crticas ao trabalho de Bernsteinsobre cdigos restritos e elaborados tiveram um papel definitivo na sua produointelectual. Ao invs de causarem inibio ou barreiras, atuaram como desafiospara que ele aprofundasse a produo dos conceitos, tornando-os mais precisos

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    e abrangentes, refinasse sua produo terica, muitas vezes explicitando o impl-cito. Foi a crtica que tambm o levou a explicar seu prprio processo de produ-o intelectual, mostrando suas conexes com a pesquisa de base emprica. Almdisso, em seus textos e intertextos, o autor est sempre dialogando e respon-dendo s criticas potenciais ou j elaboradas ao seu trabalho. De forma explcitah, alm de afirmaes feitas nos prprios estudos, uma seo em que respondea cada uma das interpretaes ou crticas de seu trabalho, em livros por eleescritos ou por outros intelectuais comentando o seu trabalho (Bernstein, 1996;Sadovnik, 1995).

    Na minha vida acadmica, tenho por diversas vezes usado conceitos eidias de Bernstein, uma vez que sua obra possibilita a incurso em vrios camposda prtica pedaggica, que um objeto central no meu trabalho como professorae pesquisadora. Como diversos autores enfatizam, seus conceitos de classifica-o e enquadramento mostram-se como ferramentas importantes para entendero campo do currculo, as disputas em torno das disciplinas, assim como as diver-sas formas de construo da prtica pedaggica, em funo e como resultado dosdiferentes interesses das classes sociais. O texto sobre Pedagogias visveis einvisveis, publicado em Cadernos de Pesquisa (Bernstein, 1984), uma leituraimprescindvel para o entendimento de diferentes propostas pedaggicas, sobre-tudo hoje, quando os sistemas educacionais passam por processos de mudanade diferentes nveis.

    Considero, no entanto, o texto sobre o discurso pedaggico o que maiscontribuiu para que eu compreendesse o processo de produo do conhecimen-to escolar sua construo e circulao. Nele, alm da sntese de conceitospreviamente elaborados, Bernstein oferece uma anlise profunda e consistentesobre um campo pouco explorado. O processo de constituio dos saberesescolares, a sua distino das outras formas de conhecimento e seu processo deproduo introduzem um debate de fundamental importncia para quem discute aprtica pedaggica em geral ou a que ocorre no interior de uma determinadadisciplina.

    A originalidade, contemporaneidade e relevncia dos problemas aborda-dos por Bernstein constituem um legado inestimvel para quem est preocupadocom a escola, sua organizao, seus processos de trabalho, de socializao dosconhecimentos e valores, suas relaes com a comunidade na qual ela se insere.Sem oferecer solues para os problemas com os quais a educao se defronta,Bernstein constri conceitos e teorias que possibilitam iluminar a compreenso

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    da complexa teia de relaes entre escola e sociedade. Se a compreenso de umfenmeno por si mesma no produz mudanas , no entanto, condio necess-ria para que estas ocorram.

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    Recebido em: agosto 2003Aprovado para publicao em: agosto 2003