bernardo pires de lima síria em pedaços “o estado islâmico...

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8 Jornal de Leiria 19 de Novembro de 2015 Entrevista “O Estado Islâmico não precisa de vir em botes, já cá está” Bernardo Pires de Lima O investigador, colunista de política internacional e autor do livro Síria em Pedaços, acredita que os europeus estão preparados para receber refugiados, os políticos é que não Daniela Franco Sousa [email protected] Que tipo de fragilidades revelou a Europa com os últimos atentados em Paris? As mesmas que em cada atentado anterior. Falhas na investigação, quadros penais que não permitem prender suspeitos, pouca atenção à radicalização feita nas redes so- ciais, políticas de integração que fi- zeram das comunidades muçul- manas guetos e onde a versão mo- derada do Islão não consegue atrair todos os que delas fazem parte. De qualquer forma, muita coisa tem melhorado na luta anti-terrorista: para um ter sucesso, dezenas foram certamente neutralizados a tempo. Que consequências terão estes acontecimentos no quadro políti- co europeu? Alterações nos quadros penais, pa- ranóia anti-muçulmana, restrições à liberdade de circulação, cresci- mento dos nacionalismos, intole- rância para com os refugiados. Os portugueses podem continuar a pensar no País como um territó- rio seguro? Nenhum Estado está seguro. Por- tugal tem características diferentes de outros países europeus onde as células jihadistas operam há mui- to tempo, mas isso não faz de nós um local imune. Nem deve levar as nossas autoridades a baixar a guar- da. Escreveu a sua primeira crónica sobre os refugiados do Mediterrâ- neo em 2011, mas o drama só se tornou massivo em 2015. Foi a imagem de Aylan Kurdi que fez a diferença? O que fez a diferença, em primei- ro lugar, foi a força da imagem, onde há uma certa indiferença de outras personagens que também estão na praia. Foi ainda pelo fac- to de se passar na costa europeia. E por tudo ter sido exponenciado através das redes sociais. Os as- suntos internacionais só se tor- nam verdadeiramente nacionais quando nos chegam à porta. Só que até lá já percorreram um caminho. O percurso dos refugiados, o per- curso de uma guerra, seja no Me- diterrâneo, no Norte de África, no Médio Oriente ou no Sudeste Asiá- tico, que não tem impacto imedia- to nas nossas vidas, acaba por ter a médio prazo. A minha luta é ten- tar aproximar todos os assuntos in- ternacionais da agenda nacional, já que, mais cedo ou mais tarde, aca- bam por cá chegar. Ouvimos falar muito mais de aco- lhimento de refugiados do que de medidas a tomar no palco de guer- ra. Porque o resto do mundo não consegue ou não quer agir? Há outros palcos de guerra que também alimentam o fluxo de re- fugiados que vêm para a Europa. Mas o caso da guerra na Síria é mais difícil de resolver. Portanto, age-se mais sobre as consequências da guerra, sobre os refugiados, e me- nos sobre as causas da mesma. E é difícil porque a Síria é um cruza- mento, como poucos ou mais ne- nhum, de vários interesses diver- gentes: interesses internos, étnicos; interesses do círculo regional, com actores estatais e não estatais que aí operam; e, num círculo interna- cional, interesses de grandes po- tências que vão manipulando in- terna e regionalmente todas as cir- cunstâncias. É um imbróglio de aparente irresolução, num en- troncamento brutal de divergên- Criámos um estigma, numa relação muito tensa com o Islão, fazendo de cada muçulmano um potencial terrorista. É um raciocínio absolutamente errado Em destaque cias de interesses. Como tal, pode ser irresolúvel. Acho que nós que- remos resolver todas as situações críticas do mundo, mas algumas podem mesmo não ter solução. Sendo que é mais difícil para paí- ses receptores de refugiados, como os europeus, terem uma força de- cisiva na resolução de uma crise para a qual não têm instrumentos eficazes e rápidos. A Europa corre mais riscos ao aco- lher estes refugiados? O Estado Islâmico não exporta ter- roristas para a Europa. Importa. O Estado Islâmico não precisa de vir em botes, já cá está. Nem precisa de pagar para fazer uma travessia em direcção ao abismo, que é aqui- lo que muitos destes refugiados desgraçadamente fazem. Não pre- cisa destas rotas. Não quer dizer que não haja quem, dentro do pro- cesso de transição, não se possa ra- dicalizar. Mas isso tanto pode acon- tecer por caminho terrestre como através das redes sociais. O Estado Islâmico importa-os, forma-os nas capitais europeias ou noutras re- giões vizinhas do Iraque e da Síria. Não exporta através deste movi- mento de refugiados, de exilados de guerra. E estamos preparados para os re- ceber? Estamos preparadíssimos. Para re- ceber estes e até para receber mais refugiados. Ao nível político é que, lamentavelmente, não. Lem- bro que há mais refugiados sírios em Istambul do que em toda a Eu- ropa. O problema dos refugiados na Europa, vindos da Síria, do Afega- nistão, da Líbia, do Iraque, é por isso uma migalha no fluxo global. Tendemos a dramatizar sobre uma migalha. Se tivéssemos o volume de refugiados que o Líbano, a Tur- quia ou a Jordânia têm, estaríamos provavelmente em guerra civil na Europa. Não quer dizer que não haja já neste momento reflexos de intolerância étnica e religiosa na Europa, para lá do eixo de Leste, na França, na Alemanha e no Reino Unido. E isso é muito preocupan- te. Deixámos de ser um continen- te aberto à diferença, para ser um continente mais propenso à forta- leza, aos muros e às vedações. Criámos um estigma, numa relação muito tensa com o Islão, fazendo de cada muçulmano um potencial terrorista. É um raciocínio absolu- tamente errado. Isto também su- cede porque nos últimos anos não houve uma voz moderada dentro

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8 Jornal de Leiria 19 de Novembro de 2015

Entrevista

“O Estado Islâmico nãoprecisa de vir em botes, já cá está”

Bernardo Pires de Lima O investigador, colunista de política internacional eautor do livro Síria em Pedaços, acredita que os europeus estão preparados parareceber refugiados, os políticos é que não

Daniela Franco [email protected]

Que tipo de fragilidades revelou aEuropa com os últimos atentadosem Paris?As mesmas que em cada atentadoanterior. Falhas na investigação,quadros penais que não permitemprender suspeitos, pouca atençãoà radicalização feita nas redes so-ciais, políticas de integração que fi-zeram das comunidades muçul-manas guetos e onde a versão mo-derada do Islão não consegue atrairtodos os que delas fazem parte. Dequalquer forma, muita coisa temmelhorado na luta anti-terrorista:para um ter sucesso, dezenas foramcertamente neutralizados a tempo. Que consequências terão estesacontecimentos no quadro políti-co europeu?Alterações nos quadros penais, pa-ranóia anti-muçulmana, restriçõesà liberdade de circulação, cresci-mento dos nacionalismos, intole-rância para com os refugiados. Os portugueses podem continuara pensar no País como um territó-rio seguro?Nenhum Estado está seguro. Por-tugal tem características diferentesde outros países europeus onde ascélulas jihadistas operam há mui-to tempo, mas isso não faz de nósum local imune. Nem deve levar asnossas autoridades a baixar a guar-da. Escreveu a sua primeira crónicasobre os refugiados do Mediterrâ-neo em 2011, mas o drama só setornou massivo em 2015. Foi aimagem de Aylan Kurdi que fez adiferença? O que fez a diferença, em primei-ro lugar, foi a força da imagem,

onde há uma certa indiferença deoutras personagens que tambémestão na praia. Foi ainda pelo fac-to de se passar na costa europeia.E por tudo ter sido exponenciadoatravés das redes sociais. Os as-suntos internacionais só se tor-nam verdadeiramente nacionaisquando nos chegam à porta. Só queaté lá já percorreram um caminho.O percurso dos refugiados, o per-curso de uma guerra, seja no Me-diterrâneo, no Norte de África, noMédio Oriente ou no Sudeste Asiá-tico, que não tem impacto imedia-to nas nossas vidas, acaba por tera médio prazo. A minha luta é ten-tar aproximar todos os assuntos in-ternacionais da agenda nacional, jáque, mais cedo ou mais tarde, aca-bam por cá chegar. Ouvimos falar muito mais de aco-lhimento de refugiados do que demedidas a tomar no palco de guer-ra. Porque o resto do mundo nãoconsegue ou não quer agir?Há outros palcos de guerra quetambém alimentam o fluxo de re-fugiados que vêm para a Europa.Mas o caso da guerra na Síria é maisdifícil de resolver. Portanto, age-semais sobre as consequências daguerra, sobre os refugiados, e me-nos sobre as causas da mesma. E édifícil porque a Síria é um cruza-mento, como poucos ou mais ne-nhum, de vários interesses diver-gentes: interesses internos, étnicos;interesses do círculo regional, comactores estatais e não estatais queaí operam; e, num círculo interna-cional, interesses de grandes po-tências que vão manipulando in-terna e regionalmente todas as cir-cunstâncias. É um imbróglio deaparente irresolução, num en-troncamento brutal de divergên-

Criámos umestigma, numarelação muitotensa com o Islão,fazendo de cadamuçulmano umpotencialterrorista. É umraciocínioabsolutamenteerrado

Em destaque

cias de interesses. Como tal, podeser irresolúvel. Acho que nós que-remos resolver todas as situaçõescríticas do mundo, mas algumaspodem mesmo não ter solução.Sendo que é mais difícil para paí-ses receptores de refugiados, comoos europeus, terem uma força de-cisiva na resolução de uma crisepara a qual não têm instrumentoseficazes e rápidos. A Europa corre mais riscos ao aco-lher estes refugiados?O Estado Islâmico não exporta ter-roristas para a Europa. Importa. OEstado Islâmico não precisa de virem botes, já cá está. Nem precisade pagar para fazer uma travessiaem direcção ao abismo, que é aqui-lo que muitos destes refugiados

desgraçadamente fazem. Não pre-cisa destas rotas. Não quer dizerque não haja quem, dentro do pro-cesso de transição, não se possa ra-dicalizar. Mas isso tanto pode acon-tecer por caminho terrestre comoatravés das redes sociais. O EstadoIslâmico importa-os, forma-os nascapitais europeias ou noutras re-giões vizinhas do Iraque e da Síria.Não exporta através deste movi-mento de refugiados, de exiladosde guerra.E estamos preparados para os re-ceber?Estamos preparadíssimos. Para re-ceber estes e até para receber maisrefugiados. Ao nível político éque, lamentavelmente, não. Lem-bro que há mais refugiados síriosem Istambul do que em toda a Eu-ropa. O problema dos refugiados naEuropa, vindos da Síria, do Afega-nistão, da Líbia, do Iraque, é porisso uma migalha no fluxo global.Tendemos a dramatizar sobre umamigalha. Se tivéssemos o volumede refugiados que o Líbano, a Tur-quia ou a Jordânia têm, estaríamosprovavelmente em guerra civil naEuropa. Não quer dizer que nãohaja já neste momento reflexos deintolerância étnica e religiosa naEuropa, para lá do eixo de Leste, naFrança, na Alemanha e no ReinoUnido. E isso é muito preocupan-te. Deixámos de ser um continen-te aberto à diferença, para ser umcontinente mais propenso à forta-leza, aos muros e às vedações.Criámos um estigma, numa relaçãomuito tensa com o Islão, fazendode cada muçulmano um potencialterrorista. É um raciocínio absolu-tamente errado. Isto também su-cede porque nos últimos anos nãohouve uma voz moderada dentro