benzeduras em portugal

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Panacéia Textos sobre plantas medicinais; rezas; benzeduras; simpatias; crenças; superstições; amuletos; orações; devoções; magia e feitiçaria... Benzeduras em Portugal Elisa Vilares Cepeda O povo aldeão, a par da fé cristã em que é educado, conserva um subtrato de crendices e práticas supersticiosas, em que o cristianismo e o paganismo permanecem entrelaçados, cuja origem se perde na noite dos tempos, e que se vai transmitindo intacto através de gerações. E tão arraigadas estão essas práticas que pessoas há, de certo entendimento e luzes de instrução, que as tomam como verdades infalível, e não raro a elas recorrem com manifesto desprezo pelos ensinamentos da medicina. Essa confiança cega em mezinhas caseiras, defumadoiros e outras artes de curandeirismo, leva ainda muitos, nos tempos que correm, a preferilas a qualquer terapêutica séria, o que conduz, por vezes, a desenlaces fatais. O receio das pragas, por exemplo, é ainda vivaz entre as gentes campesinas: Elas não caem nas pedras. A praga anda a roda e cai em que na roga. A praga, sem razão, anda ao redor, e cai sobre o praguejador. Pragas com razão, nem ao meu cão. A consulta às bruxas, bruxos e cartomantes, continua a ser um processo corrente, para casos particularmente difíceis, mesmo nas cidades, como se lê a cada passo no noticiário dos jornais, quando apanhados em flagrante, é a clientela das ciganas que lêem o destino na palma da mão, essa é inesgotável. O sistema das benzeduras esta tão entranhado em certas aldeias, que por mais argumentos que se aduzam a favor de certos fatores que podem ter intervindo na cura, não se consegue extirparlhes a convicção de que só ela, a benzedura, foi eficaz. A variedade das fórmulas é grande, cada uma adaptada à natureza de seu mal, mas é preciso que se saiba que nem toda a gente está apta a aplicálas, pois Cristo disse: "Eu cá deixo ervas boas e as mãos de algumas pessoas" para significar que a arte, o jeito, o poder de sarar, é privilégio de "raros apenas". Seguem algumas fórmulas com todo o seu pitoresco: Benzedura do coxo Douro e Tejo e Minho passei. Toda a qualidade de bicho coxoso, venenoso, que encontrei, matei. Seja cobra, seja cobrão, seja lagarto, seja lagartão, seja rato, seja ratão, seja sapo, seja sapão, seja sapo gandarez, víbora,

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Elisa Vilares Cepeda

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Page 1: Benzeduras em Portugal

04/05/2015 Jangada Brasil | Panacéia | Benzeduras em Portugal

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Panacéia

Textos sobre plantas medicinais; rezas; benzeduras; simpatias;

crenças; superstições; amuletos; orações; devoções; magia e

feitiçaria...

Benzeduras em PortugalElisa Vilares Cepeda

O povo aldeão, a par da fé cristã em que é educado, conserva um subtrato de crendices e práticassupersticiosas, em que o cristianismo e o paganismo permanecem entrelaçados, cuja origem se perde na noitedos tempos, e que se vai transmitindo intacto através de gerações.

E tão arraigadas estão essas práticas que pessoas há, de certo entendimento e luzes de instrução, que astomam como verdades infalível, e não raro a elas recorrem com manifesto desprezo pelos ensinamentos damedicina.

Essa confiança cega em mezinhas caseiras, defumadoiros e outras artes de curandeirismo, leva ainda muitos,nos tempos que correm, a preferi­las a qualquer terapêutica séria, o que conduz, por vezes, a desenlacesfatais.

O receio das pragas, por exemplo, é ainda vivaz entre as gentes campesinas:

Elas não caem nas pedras.A praga anda a roda e cai em que na roga.A praga, sem razão, anda ao redor, e cai sobre o praguejador.Pragas com razão, nem ao meu cão.

A consulta às bruxas, bruxos e cartomantes, continua a ser um processo corrente, para casos particularmentedifíceis, mesmo nas cidades, como se lê a cada passo no noticiário dos jornais, quando apanhados emflagrante, é a clientela das ciganas que lêem o destino na palma da mão, essa é inesgotável.

O sistema das benzeduras esta tão entranhado em certas aldeias, que por mais argumentos que se aduzam afavor de certos fatores que podem ter intervindo na cura, não se consegue extirpar­lhes a convicção de que sóela, a benzedura, foi eficaz.

A variedade das fórmulas é grande, cada uma adaptada à natureza de seu mal, mas é preciso que se saibaque nem toda a gente está apta a aplicá­las, pois Cristo disse:

"Eu cá deixo ervas boase as mãos de algumas pessoas"

para significar que a arte, o jeito, o poder de sarar, é privilégio de "raros apenas".

Seguem algumas fórmulas com todo o seu pitoresco:

Benzedura do coxo

Douro e Tejo e Minho passei. Toda a qualidade de bicho coxoso, venenoso, que encontrei, matei. Seja cobra,seja cobrão, seja lagarto, seja lagartão, seja rato, seja ratão, seja sapo, seja sapão, seja sapo gandarez, víbora,

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04/05/2015 Jangada Brasil | Panacéia | Benzeduras em Portugal

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viborão, ladra, ladrejão, aranha, aranhão, salamanca, salamancão, toda a qualidade de bicho coxoso,venenoso, que encontrei, com a faca do pão, arranquei­lhe a vida e o coração. Coxo maldito, vai­te daqui, queanda o aço da faca atrás de ti. Em louvor de Deus e de Santa Maria. Padre Nosso e Ave Maria.

A benzedura é realizada com uma faca, cuja lâmina vai passando em cruz sobre o coxo.

Benzedura da ciática

Eu te benzo, dor ciática e dor do reumatismo, para que saias deste corpo para fora, por Deus e Santa Maria epelas três Pessoas Distintas e um só Deus verdadeiro, em louvor de São Pedro e São Paulo, e São Tiago, e SãoSilvestre, e Santo Hipólito, e Santo Amador, e pelas cincos chagas de Nosso Senhor, que daqui saia esta dor.

Benzedura da erisipela

Pedro Paulo vem de Roma.Jesus Cristo o encontrou:­ Donde vens, Pedro Paulo?­ Senhor, venho de Roma.­ O que e que há lá?­ Morre muita gente.­ De que?­ De erisipela e erisipelão bravo.­ Pedro Paulo, volta para lá e cura­me essa gente toda.­ Com o que, Senhor?­ Com ramo de oliveira e três pingadas de azeite.­ Volta para trás (nomeia­se o paciente), que te hei de queimar e te hei de abrasar.­ Nem me hás de queimar, nem me hás de abrasar, mas hás de me curar.Em honra de Pedro Paulo e da Virgem Maria, Padre Nosso e Ave Maria.

Esta benzedura faz­se com cada uma das noves folhas de oliveira de que há de cortar o ramo, as quais se vãoatirando sucessivamente para trás das costas, acompanhadas do seguinte exorcismo:

Em louvor de Deus e de Santa MariaPadre Nosso e Ave Maria

Benze­se em cruz com a aguilhada de picar os bois.

Benzedura contra o zagre dos bois

O zagre e o fogo ardente vão os dois por um caminho. Vão dizendo um para o outro:­ Com que te hei­de apagar?­ Com azeite da candeia e cinza do lar.Em louvor de Deus e de Santa MariaPadre Nosso e Ave Maria

Esta benzedura faz­se com os materiais acima indicados: azeite e cinza da lareira.

Benzedura contra as belidas

Senhora Santana, Senhora Santa Luzia, três novelos de ouro tinha: um tapava, outro urdia, outro feria,carnagões e unheiros.Em louvor de Deus, de Santana e de Santa Luzia, Padre Nosso e Ave Maria.

A benzedura, neste caso, faz­se em cruz, como nas anteriores, mas com nove grãos de trigo, os quais se vão

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lançando numa malga com água, como para significar que as belidas e carnagões se vão afogando edesaparecendo.

Benzedura contra o engaranho dos meninos

Quando se coze o pão, os padrinhos do menino engaranhado colocam­se em frente da boca do forno, com apá de enfornar o pão ao centro. O padrinho, com a criança nos braços, diz para a madrinha:

­ Que me das aí?

A madrinha responde:

­ Dou­te um menino engaranhado.

O padrinho replica:

­ Eu te dou são e salvo ­ e passa­o para as mãos da madrinha.

Mete­se depois um pão ao forno e vão­se repetindo as mesmas palavras e executando os mesmos gestos,nove vezes, intervalados pela colocação da pá, sem nada, ao centro dos dois, mas apoiada na boca do forno.

"Em louvor de Deus e de Santa MariaPadre Nosso e Ave Maria"

Para benzer a madre

Madre, tem­te em ti, assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve em si.Madre, tem­te nas tuas veias, assim como Nosso Jesus Cristo se teve nas suas enleias.Madre, as ondas do mar crescem e mingam, e tornam a mingar. Assim como elas crescem e mingam, vai tumadre para o teu lugar.Em louvor de Deus e de Santa Maria, Padre Nosso e Ave Maria.

* * *

O povo designa por "coxo" qualquer erupção cutânea de origem indeterminada.

"Ladra" ou "ladrejão" é o nome que em certas aldeias se dá ao salta­rosto ou osga.

O povo designa "enrelhado" qualquer ferimento produzido pelo arado nas patas dos bovídeos.

"Zagre" é o mesmo que usagre, erupção cutânea, de natureza herpética, em crianças e animais.

"Belidas": Névoas nos olhos.

"Engaranho": Atrofiamento ou raquitismo das crianças.

(Cepeda, Elisa Vilares. "Benzeduras". Mensário da Casa do Povo, ano 21, outubro de 1966)