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BEM VINDA AO “CLUBE VAN GOGH”: ARTE E LOUCURA NA AUTOBIOGRAFIA EM QUADRINHOS PARAFUSOS Diego Luiz dos Santos Universidade Estadual do Oeste do Paraná O objetivo desta comunicação é apresentar a pesquisa de mestrado intitulada “Eu era oficialmente uma Artista Louca”: Uma Análise da Autobiografia em Quadrinhos de Ellen Forney (Estados Unidos, 1990-2000), ainda em fase de desenvolvimento. A pesquisa integra o campo historiográfico conhecido como História da Loucura e da Psiquiatria e visa problematizar a autobiografia em quadrinhos Parafusos: Mania, Depressão, Michelângelo e Eu. Na obra, a quadrinista estadunidense Ellen Forney narra suas experiências a partir do momento em que foi diagnosticada como bipolar, em 1998, pouco antes de completar 30 anos de idade. A partir deste diagnóstico, a autora assume voluntariamente a alcunha de “Artista Louca”, em referência a diversos pintores, poetas, músicos e escritores que foram, psiquiatricamente, considerados “loucos. Este estudo se baseia nas considerações de Michel Foucault em A História da Loucura na Idade Clássica, de que a “loucura” não se trata de algo natural e a-histórico, mas de um objeto construído socialmente. Neste sentido, o presente trabalho lança um olhar em direção à maneira como a quadrinista utiliza-se da condição psiquiátrica que lhe fora conferida a fim de construir-se e reinventar-se numa prática de Subjetivação, buscando em artistas do passado como Van Gogh ou Edvard Munch, um modelo a ser seguido e assim constituir-se como uma “Artista Louca”. Palavras-Chave: História da loucura e da Psiquiatria; Quadrinhos; Autobiografia; Arte; Loucura. Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) Este trabalho faz parte da pesquisa de mestrado intitulada Eu era Oficialmente uma Artista Louca: Uma análise da Autobiografia em Quadrinhos de Ellen Forney que problematiza a autobiografia em quadrinhos Parafusos: Mania, Depressão, Michelângelo e Eu. No livro, a quadrinista estadunidense Ellen Forney narra sua vida a partir do momento em que foi diagnosticada como bipolar, em 1998, pouco antes de completar 30 anos de idade. No enredo, devido ao seu trabalho como quadrinista e o seu recente diagnóstico, Ellen Forney assume voluntariamente a alcunha de “Artista Louca” em referência a conhecidos artistas que foram, psiquiatricamente, considerados loucos como Van Gogh, Virginia Woolf, Edvard Munch, e outros. No entanto, a autora

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BEM VINDA AO “CLUBE VAN GOGH”: ARTE E LOUCURA NA AUTOBIOGRAFIA EM QUADRINHOS PARAFUSOS

Diego Luiz dos Santos

Universidade Estadual do Oeste do Paraná

O objetivo desta comunicação é apresentar a pesquisa de mestrado intitulada “Eu era oficialmente uma Artista Louca”: Uma Análise da Autobiografia em Quadrinhos de Ellen Forney (Estados Unidos, 1990-2000), ainda em fase de desenvolvimento. A pesquisa integra o campo historiográfico conhecido como História da Loucura e da Psiquiatria e visa problematizar a autobiografia em quadrinhos Parafusos: Mania, Depressão, Michelângelo e Eu. Na obra, a quadrinista estadunidense Ellen Forney narra suas experiências a partir do momento em que foi diagnosticada como bipolar, em 1998, pouco antes de completar 30 anos de idade. A partir deste diagnóstico, a autora assume voluntariamente a alcunha de “Artista Louca”, em referência a diversos pintores, poetas, músicos e escritores que foram, psiquiatricamente, considerados “loucos. Este estudo se baseia nas considerações de Michel Foucault em A História da Loucura na Idade Clássica, de que a “loucura” não se trata de algo natural e a-histórico, mas de um objeto construído socialmente. Neste sentido, o presente trabalho lança um olhar em direção à maneira como a quadrinista utiliza-se da condição psiquiátrica que lhe fora conferida a fim de construir-se e reinventar-se numa prática de Subjetivação, buscando em artistas do passado como Van Gogh ou Edvard Munch, um modelo a ser seguido e assim constituir-se como uma “Artista Louca”.

Palavras-Chave: História da loucura e da Psiquiatria; Quadrinhos; Autobiografia; Arte; Loucura.

Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(Capes)

Este trabalho faz parte da pesquisa de mestrado intitulada Eu era

Oficialmente uma Artista Louca: Uma análise da Autobiografia em Quadrinhos de

Ellen Forney que problematiza a autobiografia em quadrinhos Parafusos: Mania,

Depressão, Michelângelo e Eu. No livro, a quadrinista estadunidense Ellen Forney

narra sua vida a partir do momento em que foi diagnosticada como bipolar, em 1998,

pouco antes de completar 30 anos de idade.

No enredo, devido ao seu trabalho como quadrinista e o seu recente

diagnóstico, Ellen Forney assume voluntariamente a alcunha de “Artista Louca” em

referência a conhecidos artistas que foram, psiquiatricamente, considerados loucos

como Van Gogh, Virginia Woolf, Edvard Munch, e outros. No entanto, a autora

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receava que a medicação necessária ao tratamento do transtorno bipolar pudesse

reprimir sua criatividade e prejudicar a produção de sua arte. Neste sentido, a trama

se baseia em um dilema pessoal, enfrentado por Forney, entre ser uma “artista

louca” ou ser uma “artista medicada”.

A obra foi publicada nos Estados Unidos no ano de 2012 e chegou ao Brasil

em 2014 pela editora Martins Fontes e com tradução de Marcelo Brandão Cipolla.

O presente trabalho tem como objetivo problematizar, a partir de um ponto de

vista historiográfico, de que modo a autora aborda a relação “Criatividade/Loucura”

em sua obra.

Meu trabalho integra, portanto, o campo historiográfico conhecido como

História da Loucura e da Psiquiatria, que é definido pela historiadora Yonissa Wadi

como:

Um conjunto de discussões e pesquisas que, tendo como tema central a loucura, em temporalidades e espacialidades diversas, a partir de perspectivas teóricas e metodológicas, e de áreas do conhecimento também diversas (Ciências da Saúde, Ciências Humanas etc.), desdobra-se em problemáticas diferenciadas como a da constituição dos próprios conceitos (loucura/doença mental/saúde mental), da sua relação com a configuração da ciência psiquiátrica, da constituição de aparatos institucionais e políticas de assistência ou atenção, dos dispositivos disciplinares, das experiências dos sujeitos, entre tantas outras possíveis. (WADI, 2011, p. 264)

Vale esclarecer que por “problematização”, refiro-me ao conceito sugerido por

Michel Foucault. Segundo o filósofo, diversos padrões e formas de pensar são

construídos de acordo com vivências sociais situadas em determinado tempo e

lugar. Estas formas de pensar relacionam-se aos “jogos entre o verdadeiro e o falso,

através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como

podendo e devendo ser pensado.” (FOUCAULT, 1984, p.12) Neste sentido,

problematizar consiste em questionar “através de quais jogos de verdade o homem

se dá seu ser próprio a pensar quando se percebe como louco, quando se olha

como doente, quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser trabalhador,

quando ele se julga e se pune enquanto criminoso”. (FOUCAULT, 1984, p.12)

Em O Cuidado com a Verdade, o autor afirma ainda que:

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Problematização não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem tampouco a criação pelo discurso de um objeto que não existe. É o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política etc.). (FOUCAULT, 2010, p. 242)

Assim, neste estudo a própria “loucura” não é considerada algo natural e a-

histórico, mas um objeto construído socialmente. No livro A História da Loucura,

publicado pela primeira vez em 1964, Michel Foucault investiga as diferentes

percepções da loucura em períodos distintos, demonstrando que a compreensão do

que pode ser classificado como “loucura” pode sofrer modificações de acordo com o

lugar e o período ao qual está situada. Logo, a loucura não foi descoberta pelo

homem, mas construída por ele. Para Foucault, a loucura só passou a ser tratada

como uma “doença mental” a partir o século XIX, pelo saber médico consolidando a

psiquiatria como dispositivo de controle social, apto a fixar e classificar determinados

comportamentos como normais ou anormais.

A História da Loucura e da Psiquiatria começou a ser escrita no século XIX e

a análise da produção desde então indicou três tendências distintas nessa área que

foram classificadas por analistas como Tradicional, Revisionista e Cultural. Yonissa

Wadi afirma que “o surgimento de uma nova tendência teórico-metodológica (e

temática) não significou o desaparecimento de outras” (WADI, 2014, p. 130).

No artigo Entre Muros: Os Loucos contam o Hospício, Wadi afirma que os

estudos tradicionais (datados a partir do século XIX) eram escritos pelos próprios

psiquiatras que intencionavam registrar seus feitos e descobertas acerca da ciência

psiquiátrica:

Os primeiros historiadores desse campo não eram profissionais da História, e as contribuições mais importantes foram realizadas por psiquiatras renomados em sua época que desenvolviam, concomitantemente, o exercício da clínica hospitalar e investigações históricas. As fontes privilegiadas para a construção desses trabalhos são informações biográficas e memórias de trabalho escritas por médicos, bem como documentos administrativos diversos como relatórios governamentais, atas de reuniões, ofícios, leis e regulamentos. Ao mesmo tempo, alguns dos trabalhos – em sua qualidade de fontes secundárias – também constituíram recopilações

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de dados úteis para o desenvolvimento de pesquisas posteriores. (WADI, 2011, p. 251)

Nas décadas de 60 e 70, influenciados pelos estudos foucaultianos, grande

parte dos estudos acerca da História da Psiquiatria e da Loucura passou a ter uma

característica revisionista, lançando um olhar crítico à psiquiatria por meio de

estudos relacionados às Ciências Sociais, História e Antropologia. Wadi afirma que:

Em oposição direta à historiografia de corte biográfico, narrativo e linear que destacava as grandes conquistas da psiquiatria, os novos estudos discutiam a loucura como mito e como construção social, as respostas sociais à loucura, o papel das instituições psiquiátricas como instrumentos de controle social, entre outras questões que geraram acirrados debates entre seus defensores e os ambientes psiquiátricos mais conservadores. (WADI, 2011, p. 251)

Em meados da década de 1990, uma nova tendência de estudos passou a

ganhar mais expressão neste campo historiográfico ao articular seu objeto tanto a

práticas sociais quanto culturais. Nesta nova tendência, em que minha pesquisa se

insere, o protagonista não é mais o médico ou a instituição psiquiátrica, mas, o

paciente.

Nestes estudos, o “louco” é reconhecido como sujeito, dono de sua própria

história e produtor de subjetividade. A narrativa e os dizeres dos “loucos”,

expressadas de diferentes formas por diferentes meios (como autobiografias, cartas,

poemas, diários íntimos e documentos não-médicos) passaram a ser levados em

conta pelos historiadores como fontes que podem contribuir para uma nova

compreensão “sobre a própria ciência psiquiátrica, as concepções de loucura, os

loucos e suas experiências de vida” (WADI, 2011, 253).

Uma das obras de maior expressão nesta tendência trata-se do livro o Uma

História Social da Loucura, no qual o historiador Roy Porter investiga os escritos

pessoais de diversos sujeitos considerados “loucos”, a fim de compreender de que

modo “tentaram explicar o próprio comportamento para si mesmos e para os outros

na linguagem que estava a seu alcance” (PORTER, 1990, p. 08). Porter afirma que

seu trabalho consiste em:

despertar a lógica interna dos textos, pesquisando-os como produtos de sua situação e de seu tempo. Embora os loucos frequentemente

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pareçam tão alienados, tão alienados em suas mentes (acreditava se) a ponto de necessitarem ser excluídos da sociedade, seus testamentos denotam claramente, ainda que muitas vezes numa linguagem distorcida ou não-convencional, as ideias, valores, aspirações, esperanças e medos de seus contemporâneos. Eles usam a linguagem de sua época, apesar de muitas vezes de maneira nada ortodoxa. Quando lemos os escritos dos loucos, temos uma visão ampliada daquilo que pôde ser pensado e sentido num universo à margem. (PORTER, 1990, p. 08)

Minha investigação vem contribuir a esta tendência de estudos a partir da

utilização de uma fonte pouco utilizada neste campo: as histórias autobiografias em

quadrinhos.

Considerando que os testemunhos dos loucos “são eloquentes a respeito de

seus temores e esperanças, das injustiças que sofreram, acima de tudo do que é ser

louco ou considerado louco” (PORTER,1990, p. 08), o livro Parafusos pode ser

considerado então uma fonte de grande riqueza já que, conforme afirma o

quadrinista Scott McCloud, nos quadrinhos “o mundo invisível das emoções também

pode ser representado entre ou dentro do quadro” (McCLOUD, p. 121).

Ora, por se tratar de um meio midiático capaz de traduzir uma ideia a partir de

texto e imagens, os quadrinhos podem oferecer uma descrição pictórica de como

Forney compreende suas vivências e sentimentos. E é isso que torna o livro

Parafusos uma fonte ideal para meus objetivos, pois, conforme afirma o quadrinista

Scott McCLoud, “os quadrinhos levam a gente para uma dança silenciosa do que é

visto e não visto. O visível e o invisível. Esta dança é exclusiva dos quadrinhos.

Nenhuma outra arte oferece tanto ao seu público e exige tanto dele”. (McCLOUD, p.

121)

No livro O Pacto Autobiográfico, o teórico literário Phillip Lejeune define a

autobiografia como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz

de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a

história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, 14).

Os estudos de Lejeune foram o ponto de partida para uma vasta gama de

investigações posteriores acerca do tema. No livro O Espaço Biográfico, Leonor

Arfuch explora as diferentes formas de subjetivação possíveis graças às novas

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tecnologias e propõe a delimitação de um “espaço” que abrange diversos meios

pelos quais uma biografia ou autobiografia pode ser traçada:

A coexistência intertextual de diversos gêneros discursivos em torno de posições de sujeito autenticadas por uma existência ‘real’, podendo-se afirmar que, para além de suas diferenças formais, semânticas e funcionais, esses gêneros, que enumeramos numa lista sempre provisória, compartilham alguns traços (temáticos, compositivos e/ou estilísticos, segundo a clássica distinção de Bakhtin), bem como certas formas de recepção e interpretação em termos de seus respectivos pactos/acordos de leitura. (ARFUCH, 2010, p. 131-132)

Diante desta noção de um Espaço Biográfico, as biografias e autobiografias

estendem-se para além da narrativa em prosa e passam a abranger também outros

meios, como blogs, entrevistas, depoimentos, e-mails desde que seu enredo busque

narrar as vivências de um sujeito “real”.

A partir da constituição deste espaço, as histórias em quadrinhos também

podem ser considerados um meio para a construção autobiográfica.

No artigo intitulado Arquivar a Própria Vida, o historiador Phillipe Artières

afirma que a escrita autobiográfica “é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo

se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele desejaria ser visto” (ARTIÈRES, 1998,

p.29). No caso de Ellen Forney, a narrativa autobiográfica torna-se um meio de

contar a sua história e firmar-se como uma “Artista Louca”.

A possível relação entre a loucura e a criatividade não é um tema recente.

Sendo compreendida de diversas maneiras, a crença de uma possível conexão

entre a loucura e a arte ou entre a loucura e a criatividade faz parte da imaginação

popular há séculos (WHITE, 2007, p. 25). Segundo o historiador Roy Porter, o

assunto foi discutido a partir de diferentes perspectivas na Grécia Antiga:

Certos estereótipos (da loucura) exerceram um poderoso e duradouro fascínio (...), por exemplo, o excesso de confiança do herói condenado pelos deuses a perder sua razão – Os gregos acreditavam em uma loucura divina, no artista inspirado pelo espírito dos deuses ou tocado por um “fogo” divino. Em Fedro, Platão falava sobre a “fúria divina" do poeta e as obras atribuídas a Aristóteles (384-322 a.C.) traçaram o perfil do génio melancólico, cujo descontentamento solitário impulsionou a imaginação a produzir obras originais. (PORTER, 2002, p. 66 – tradução livre)

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De acordo com Porter, na Renascença acreditava-se que os artistas da época

recebiam visões em sonhos ou devaneios (PORTER, 2002, p. 67 – tradução livre).

Na Era da Razão, em contraste com o mecanicismo de filósofos como Locke,

Bacon e Newton, os românticos, como o poeta William Blake, glorificavam a ideia do

artista louco ao cantar que “A arte é a arvore da vida”. (PORTER, 2002, p. 80 –

tradução livre)

No entanto, esse tom romântico atribuído à ideia da loucura como fonte de

arte foi abandonada logo após a ascensão da teoria degeneracionista, que

associava o distúrbio mental a doenças como a sífilis e a tuberculose (PORTER,

2002, p. 81).

No fim do século XIX, o psiquiatra italiano Cesare Lombroso trouxe o assunto

a tona novamente, ao expor sua teoria de que, praticamente, todos os artistas e

escritores sofriam de algum distúrbio mental ou precisavam ser tratados

psiquiatricamente (PORTER, 2002, p. 81).

O Historiador da Arte Anthony White menciona ainda que no século XX, os

surrealistas franceses usufruíram da ideia do “artista louco” com objetivo de buscar o

“suposto isolamento e exotismo do doente mental” e reforçar sua crítica à sociedade

burguesa (WHITE, 2007, p. 26).

Nas últimas décadas do século XX, diversas pesquisas foram publicadas, nos

Estados Unidos, buscando encontrar um ponto de congruência entre a loucura e a

criatividade1. Livros como Touched with Fire2 (JAMISON, 1993), Bipolar affective

disorder and creativity3 (ANDREASEN, 1988) e o estudo Mood swings and creativity4

(RICHARDS, 1997) apoiaram-se na ciência médica a fim de defender confirmar a

ideia de que há uma maior incidência de transtornos mentais em pessoas

consideradas criativas.

1 Um levantamento acerca dos estudos que abordam a relação entre Transtorno Bipolar e Criatividade pode ser conferido em MAÇKALI, Zeynep; GÜLÖKSÜZ, Sinan; ORAL, Timuçin. Creativity and Bipolar Disorder. In. Turkish Journal of Psychiatry. 2013. 2 Tocados pelo Fogo (tradução minha). 3 Transtorno Afetivo Bipolar e Criatividade (tradução minha). 4 Alterações do Humor e Criatividade (tradução minha)

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A novidade por trás de tais estudos residia num embasamento biológico

proporcionado por uma profunda mudança na forma de se compreender a loucura e

o sofrimento mental nos Estados Unidos.

Durante grande parte do século XX, a psiquiatria estadunidense caminhou por

solo predominantemente psicanalítico, tratando a enfermidade mental a partir de um

olhar psicológico e social (RUSSO, 2002). O lançamento do medicamento

antidepressivo Prozac, em 1987, foi um dos responsáveis por uma grande ruptura

no saber psiquiátrico. O psiquiatra Steven Reibord, em seu texto A Brief History of

Psychiatry5, no site Psycology Today, afirma que, após o lançamento deste

medicamento e de outros semelhantes, a psiquiatria deixou de lado o seu viés

psicanalítico, priorizando uma abordagem muito mais neurológica:

Fortemente promovidos e com aparentes vantagens sobre seus antecessores, esses medicamentos foram amplamente prescritos por psiquiatras e mais tarde por médicos de cuidados primários e clínicos gerais. A Psiquiatria era, cada vez mais, vista como uma especialidade médica mainstream (...) e o dinheiro público destinado a pesquisas foi deslocado para a neurociência e pesquisa farmacêutica. (REIBORD, 2014. Tradução minha)

Nesta época, uma série de estudos e descobertas acerca do funcionamento

do cérebro levaram a consolidação e popularidade da neurociência repercutindo

largamente na comunidade médica e científica. O sofrimento mental e a loucura

deixaram de ser vistos como um problema social e passaram a ser entendidos como

uma doença do cérebro, uma questão biológica. De acordo com a psicóloga e

antropóloga Jane Russo, “Instado pela comunidade neurocientífica, o congresso

americano levou o então presidente americano Jorge Bush a declarar os anos 90

como a década do cérebro” (RUSSO, 2002, p. 80).

E é nos últimos anos da década de 1990 que se inicia a história narrada por

Ellen Forney no livro Parafusos.

Forney é quadrinista desde 1992. Além de publicar histórias em quadrinhos

curtas em jornais e revistas, também é professora de quadrinhos no Cornish College

of the Arts, em Seattle.

5 Uma Breve História da Psiquiatria (Tradução Minha)

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Além de Parafusos, Ellen publicou também os livros Monkey Food6 (1999), I

Love Led Zeppelin7 (2006) e Lust8 (2008). Em 2007, ela ilustrou o livro The

Absolutely True Diary of a Part Time Indian9, de Sherman Alexie. Grande parte de

seus quadrinhos busca trazer uma versão bem humorada e satírica de assuntos

comuns do dia-a-dia, sempre com um tom informativo.

Nascida em 08 de março de 1968, em New Jersey nos Estados Unidos, a

autora de Parafusos se define como “vegetariana, bissexual e quadrinista”

(FORNEY, 2014, p. 61).

Em 1989, Ellen se formou em Psicologia pela Wesleyan University10, em

Middletown, estado de Connecticut, porém, não se identificou com o cargo de

psicóloga e, alguns anos depois, aos 23 anos de idade, mudou-se para Seattle onde

se tornou quadrinista profissional (FORNEY, 2014, p. 15).

A autora narra em seu livro que, no ano de 1998, durante uma sessão de

tatuagem, notou que estava agindo de forma mais impulsiva e se sentindo mais

euforia do que o normal. Por esta razão, foi aconselhada a procurar uma psiquiatra:

Eu vinha frequentando uma terapeuta/assistente social desde o verão anterior, quando estava me sentindo meio para baixo. Algumas semanas depois de eu me tatuar, porém, ela parou de se referir ao meu novo estado como “animação” e me encaminhou para uma psiquiatra (FORNEY, 2014, p. 15).

Ellen afirma que, no segundo encontro com a médica, confidenciou ter

tendências bipolares: “Minha mãe e eu temos tendências bipolares, mas eu não sou

bipolar bipolar” (FORNEY, 2014, p. 15). Esta afirmação chamou a atenção da

psiquiatra que decidiu verificar os sintomas do transtorno bipolar no Manual

Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM - Diagnostic and Statistic

Manual of Mental Disorders), um inventário que lista diferentes categorias de

transtornos e os critérios para diagnosticá-los. Juntas, psiquiatra e paciente

6 Comida de Macacos (tradução minha). 7 Eu amo Led Zeppelin (tradução minha). 8 Luxúria (tradução minha). 9 Diário absolutamente verdadeiro de um indiano em meio período (Tradução Minha). 10 Wesleyan é uma universidade privada que faz parte das Little Three (juntamente com a Amherst College e a Williams College), grupo de faculdades estadunidenses de maior prestígio que se dedicam ao ensino das Artes Liberais.

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examinaram o manual e após consultarem e compararem os sintomas, ambas

concluíram que Ellen Forney era bipolar.

Segundo a autora, um transtorno do humor é “uma doença em que as

emoções se apresentam anômalas durante um período prolongado” (FORNEY,

2014, p. 59). No seu caso, o Transtorno Bipolar I, “alterna episódios maníacos e

episódios depressivos” (FORNEY, 2014, p. 59).

Os períodos maníacos e depressivos referem-se aos estados de humor. A

mania consiste em “um período distinto de humor anormal e persistentemente

elevado, expansivo ou irritável, com duração de uma semana” (FORNEY, 2014, p.

15), enquanto a depressão se refere ao “humor deprimido na maior parte do dia, ou

quase todos os dias” (FORNEY, 2014, p. 86). Frequentemente, a autora refere-se ao

período maníaco ou depressivo, respectivamente como “pra cima” ou “pra baixo”.

A primeira reação da autora após o diagnóstico foi de decepção consigo

mesma ao perceber que as características que ela acreditava que a tornavam única

também poderiam ser compartilhadas por outras pessoas que também seriam

bipolares:

Minha personalidade única e brilhante estava nitidamente delineada naquela pilha inanimada de papel. Minha personalidade refletia um transtorno partilhado por um grupo de pessoas. A ficha caiu como se o sol se escondesse atrás das nuvens... Como se eu fosse um papagaio na gaiola e um cobertor pesado fosse colocado sobre mim... Como um estereograma do olho mágico que revelasse uma imagem clara e irrefutável em 3D. Você é louca. (FORNEY, 2014, p. 19-20)

Porém, se num primeiro momento o diagnóstico lhe traz certa decepção,

pouco depois ela percebe que o transtorno lhe permitiria se afirmar como uma

“Artista Louca”, o que para ela a tornava especial: “Enquanto eu assimilava a notícia,

a sensação de peso ia sendo aliviada por uma sensação oblíqua de que eu era

especial. Eu era oficialmente uma Artista Louca” (FORNEY, 2014, p. 22).

Na ilustração que acompanha esta imagem, a autora apresenta um cartão

com seu nome e a inscrição “Clube Van Gogh”, além de um slogan: “O verdadeiro

artista é o artista louco” (FORNEY, 2014, p. 22)

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O Clube Van Gogh trata-se de um clube imaginário, formado apenas por

artistas loucos, mencionado diversas vezes em Parafusos. Van Gogh foi um pintor

pós-impressionista neerlandês do século XIX que ficou conhecido após a sua morte,

principalmente por ter sido (postumamente) diagnosticado como louco. Para a Ellen

Forney, era neste pintor que o ideal do artista louco encontrava sua maior

inspiração: “Van Gogh foi, de fato, o artista gênio, louco e torturado por excelência”

(FORNEY, 2014, p. 118).

De certa forma, Ellen Forney buscava encontrar um pouco de si em Van

Gogh:

Nos últimos quatro anos de vida, entrando e saindo de hospitais psiquiátricos, Van Gogh pintou mais de quarenta autorretratos. Será que ele estava tentando definir as confusas circunvoluções dentro de sua cabeça, trazê-las para fora? Será que, pintando seus autorretratos, ele encontrava uma sensação de calma? Concentração? Alívio?... Como eu? Quero crer que sim. Espero que sim. (FORNEY, 2014, p. 119-120)

Esta busca por alguém em quem se espelhar é percebida em outros

momentos da obra. Pouco após ser diagnosticada, a quadrinista começou a ler o

livro Uma Mente Inquieta, a autobiografia da psiquiatra Kay R. Jamison, que também

era bipolar. NO entanto, ao perveber que não havia identificação nenhuma com a

história de Jamison, a leitura é deixada de lado:

De certo modo, eu gostava de me sentir especial, mas também me sentia muito sozinha. Karen (a psiquiatra) sugeriu que eu lesse Uma Mente Inquieta de Kay Jamison, bipolar, psicóloga, pesquisadora e ganhadora do prêmio Macarthur. Me envolvi, mas parei na cena da alucinação maníaca. Ao mesmo tempo buscando e rejeitando reflexos de mim mesma, descartei a historia dela por não ter nada a

ver comigo. (FORNEY, 2014, p. 28).

Conforme a afirmação de Ellen, mencionada alhures, ser uma artista louca lhe

causava a sensação de que ela era especial. Para Forney, se sentir parte deste

“grupo” dos artistas loucos lhe traz conforto.

Nas últimas páginas da obra, a quadrinista demonstra que, mesmo após ter

encontrado os medicamentos corretos para seu tratamento e estabilizado os

sintomas de seu transtorno, não deixou de ser uma artista louca:

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Às vezes, é tentador dar um ar romântico às flutuações de humor. Elas são dramáticas, e o drama é empolgante. Mas não acho que minhas ideias fossem melhores quando eu estava maníaca. Eram explosivas, e na época eu as considerava brilhantes, mas não eram especialmente melhores. Eu diria que meu “processo de pensamento criativo” existe quer eu esteja maníaca ou estável... É assim que meu cérebro funciona. Talvez eu tenha de acreditar nisso, mas a estabilidade é boa para a minha criatividade. De qualquer modo, mesmo estável, ainda sou uma artista bipolar. Não é...? (FORNEY, 2014, p. 217-18)

Fazer de si própria uma Artista Louca faz bem a Ellen Forney. É algo que lhe

traz consolo e alento. Em sua narrativa, após assumir que mesmo estável, não

deixou de ser uma artista bipolar, a autora relembra uma série de pintores, músicos

e escritores que foram considerados loucos e, entre eles, a quadrinista mostra seu

rosto calmo e sorridente, expressando tudo aquilo que tais artistas representam para

ela: “laços; contexto; perspectiva; inspiração; companhia” (FORNEY, 2014, p. 222)

Para Ellen Forney, imaginar-se como um destes artistas trata-se de uma

forma de mostrar que ela não é apenas mais um indivíduo com um transtorno, mas

uma pessoa especial, uma verdadeira Artista Louca.

Fonte Forney, Ellen. Parafusos: Mania, Depressão, Michelângelo e Eu. São Paulo-SP: Martins Fontes, 2014.

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