bel pláos espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando...

18

Upload: others

Post on 07-Sep-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos
Page 2: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

Bel Plá

DOCES LEMBRANÇAS

E-book Pelotas, 2011

Page 3: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

Apresentação Muitas vezes, nos nossos sonhos, encontramos respostas para muits indagações. É como

se abrisse um portal que leva a um universo paralelo. Ao acordar, fica aquela dúvida: será que foi imaginação? Ou aquilo realmente aconteceu?

Os espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos por mundos diferentes, encontramo-nos com outros espíritos, experenciamos o que se chama “emancipação da alma”.

Allan Kardec, na questão 403, de O Livro dos Espíritos, indaga : “Por que não nos lembramos de todos os sonhos? Nisso que chamas sono só tens o repouso do corpo, porque o Espírito está sempre em movimento. No sono ele recobra um pouco de sua liberdade e se comunica com os que lhe são caros seja neste ou noutro mundo”.

Elisa tinha uma vida satisfatória, um casamento equilibrado, uma relação madura e um emprego que lhe dava uma vida confortável e segura. Houve época em que seu espírito idealista esteve ocupado em traçar planos e realizar sonhos fomentados na infância. Mas, com o passar do tempo, seus pés foram se firmando no chão e, mesmo sendo invadida, por vezes, por dúvidas, sabia a fórmula para voltar à estabilidade.

Então, por que, de repente, o passado voltava, com tanta intensidade, e a incitava a ouvir

de novo a voz de seu coração?

Dados do autor

Page 4: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

Maria Isabel Gonçalves Plá da Silva (Bel Plá) nasceu em Herval, reside há 30 anos em

Pelotas. Licenciada em Psicologia pela UCPel. Escreve desde criança, os livros são seus companheiros de sempre. Casada, possui três filhos. Associada da Bibliotheca Pública Pelotense e membro efetivo do Centro Literário

Pelotense (CLIPE). É preletora da Seicho-No-Ie, onde realiza trabalho voluntário. Publicou, em 2010, o livro “No fundo dos teus olhos - Romance”. Publica semanal e mensalmente trabalhos nos jornais O Herval, e Diário da Manhã de

Pelotas. Escreve poesias, artigos e contos, na sua grande maioria, com conteúdo espiritualista e

humanista, tendo como temas principais a família, relacionamentos e ecologia.

Índice:

Page 5: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

Capítulo 1 – Uma manhã diferente Capítulo 2 – No ônibus Capítulo 3 – Em casa Capítulo 4 – A despedida Capítulo 5 – A prova de coragem Capítulo final – O retorno

Capítulo 1Uma manhã diferente

Page 6: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

Os primeiros raios de sol despontaram e logo o despertador tocou. Aquela não seria uma

manhã como as outras. Era feriado, e Elisa tinha uma programação muito especial: encontraria uma amiga dos tempos do colégio. Há algumas semanas, ela e Mioko haviam se achado, por acaso, num site de relacionamento, e combinaram encontrar-se nesta data, na qual nenhuma das duas precisaria ir trabalhar.

Era início de primavera e a temperatura tinha baixado um pouquinho por conta do vento que soprou a noite toda. Mesmo assim, o céu estava com poucas nuvens, e a previsão era de ausência de chuva. Bem propício para sair e aproveitar o dia de folga. Levantou-se e foi direto para o banho, o tempo estava todo cronometrado. Na sua cabeça passava um sem fim de recordações, tinha saudade daquele tempo bom, da turma da escola, com quem compartilhou boa parte de sua vida.

Depois que saiu da Escola Fundamental, mudou-se de cidade e, ao voltar, teve vontade de procurar as amigas de infância, mas, a correria do dia-a-dia, o trabalho, mil e uma tarefas, ou seja, desculpas, foram adiando essa decisão. De relance, veio-lhe à mente uma frase que costumava escrever nas capas dos cadernos: “A verdadeira amizade supera todas as barreiras”. Ela acreditava realmente nisso, mas na prática as coisas não saíam bem como ela queria, o que sempre gerava uma certa decepção consigo mesma.

A imagem das amigas, uma a uma, lhe vinham à mente, com uma rapidez incrível. Era como se aquele encontro, muito ao acaso, tivesse aberto um portal que dava acesso diretamente àquela época que já parecia tão distante. Mioko era a amiga mais antiga, não eram vizinhas, mas moravam perto, e viviam uma na casa da outra. Frequentaram a escolinha maternal juntas e ficaram tão amigas, que seus pais se obrigaram a matricularem-nas na mesma escola. Eram muito unidas, não se desgrudavam. Assim como se davam bem, também brigavam, mas logo faziam as pazes. Tinham temperamento muito forte, líderes por natureza, e logo atraíram outras amigas, para formarem um grupo que ficou conhecido como “Luluzinhas”.

Quem conhecesse um pouquinho do dia-a-dia delas logo entenderia o porquê dessa denominação. Sua casa tinha um pátio bem pequeno, mas a de Mioko ficava no centro de um imenso jardim, com muitas árvores gigantes. Numa delas, o pai de Mioko construiu a casa da árvore, com escadinha de corda e tudo. A turminha se reunia lá para aprontar, e meninos não podiam entrar. Começaram a Sociedade desde que entraram para o colégio, e mesmo depois de mocinhas mantinham os encontros. Tinham códigos secretos, que incluíam sinais, linguagem com alfabeto invertido, e regras rigorosas para ingresso.

As coitadas que se arriscavam a solicitar inscrição passavam por uma seleção que incluía, além de votação, uma prova de coragem, esta sempre diferente a cada novata que aparecia. Para convencer a realizar a prova, as “associadas” juravam que também tinham passado pelo mesmo teste.

Enquanto se vestia, não pode conter uma risada ao lembrar de uma das meninas selecionada, a Bianca, que teve que tomar sangue de galinha para provar que não tinha nojo de nada. Passou mal, foi vomitando para casa e ainda teve que mentir para sua mãe que o lanche da cantina devia estar estragado, para não romper com a regra de fidelidade ao grupo. Dois dias depois, já recuperada, quando se encontraram novamente, as amigas contaram a verdade, dizendo que este era um trote a que todas as novatas estavam sujeitas. A menina ficou vermelha de raiva, mas como já estava com status de associada e o estômago já não lhe doía tanto, aceitou o logro, com a esperança de poder se desforrar quando alguma outra interessada

Page 7: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

aparecesse solicitando ingresso. Naquela época, ela mantinha um diário, onde contava todas essas travessuras, pensando que algum dia poderia escrever um livro ou simplesmente ter histórias para contar para os netos, quando crescesse.

O tempo passou, a escolha profissional a desviou para outras áreas, e a ambição de escritora desapareceu junto com um monte de cadernos, numa grande fogueira que fez na churrasqueira. Agora o que restava eram essas lembranças, que vinham, estranhamente, como “flashes”, tão nítidas como se as estivesse vivendo naquele instante.

Tomou um café ligeiro, escreveu um bilhete ao marido, que ainda dormia e o fixou na porta da geladeira. “ Estou saindo, atrás de minhas doces lembranças. Beijo.” Estavam juntos há quinze anos, dividiam lutas, alegrias, um cotidiano que incluía agendas lotadas, mas mantinham certos costumes dos primeiros anos de casados. Esse era um deles, nunca saíam sem dizer onde iam ou sem se despedir. Era como um estranho elo, que os mantinha, pelo menos aparentemente, em sintonia.

Mas ultimamente, andava um pouco insegura a respeito de seus sentimentos. Ao mesmo tempo que se sentia satisfeita por ter encontrado um companheiro para toda vida, com os pés no chão , e sem aqueles romantismos fantasiosos que deixara para trás há bastante tempo, por vezes lhe parecia que existia um vazio entre eles. Sentia vontade de parar para conversar, quem sabe expor suas dúvidas, ouvir suas queixas... mas... parecia impossível mexer com um relacionamento tão bem estruturado.

Esses questionamentos deveriam vir de um lado de sua personalidade que se recusava a amadurecer, depois de quinze anos as coisas ficavam mesmo diferentes, era realmente uma infantilidade querer despertar emoções, falar de sentimentos escondidos, a vida real exigia posicionamentos e era insensato ameaçar algo tão concreto com bobagens.

Mas parou por um instante, ao fechar a porta, tentando imaginar como estaria seu primeiro amor. Que homem teria se tornado aquele menino que a cuidava, de longe, que fazia seu coração bater apressadamente quando se aproximava e que, apesar dela ser uma menina expansiva e falar pelos cotovelos, fazia com que emudecesse ao lhe dar um simples “Oi...” Na sua cabecinha juvenil havia traçado mil planos para um futuro imaginário, promessas haviam sido feitas naqueles simples olhares... Quem seria ele hoje? Havia crescido, será que ainda morava na mesma cidade? Estaria casado, qual seria sua profissão? Talvez já tivesse passado por ele na rua, mas sabia que não conseguiria reconhecê-lo, o primeiro amor se conservaria sempre com seus treze anos, numa página especial de seu diário, bem no meio de uma fogueira extinta.

Atravessou a rua, em direção à parada de ônibus. Era cedo ainda e como era feriado, poucas pessoas circulavam na rua. Ela não lembrava do horário de feriados, então só restava esperar. De pé, encostada no abrigo, puxou de leve o casaquinho para se proteger da aragem da manhã. Viu uma senhora elegantemente vestida aproximando-se. Não lhe era estranha, já vira essa senhora algumas vezes no condomínio. Mas não sabia seu nome, então ouviu-a telefonando para o táxi, seu nome era Débora, e pela primeira vez dirigiram-se a palavra. A senhora disse que estava indo à cidade vizinha para dar uma palestra. Logo o táxi chegou e ficou novamente sozinha. Ficou pensando por que nesta manhã, em especial, ficou propensa a tantas reflexões.

Morava em um condomínio, com muitos vizinhos, mas se fosse dizer de quais conhecia os nomes, poderia contar com os dedos. Não era chegada em saber da vida alheia, acostumara-se a chegar e sair de casa de uma forma bastante incógnita. Não teria sempre sido esta uma forma de não envolver-se? Proteger-se, nem sabia bem de quê? Não podia conter os pensamentos, a ansiedade por rever a amiga e saber o que ela tinha

Page 8: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

feito nos últimos anos, trocarem informações sobre o que tinham ficado sabendo sobre os outros colegas. Tinha a Paulina, o Alex, aquela ruivinha que sentava na mesa ao lado, como era mesmo o nome dela? Não vinha à memória o nome, mas ela lembrava que a menina sempre levava balas para a aula. Engraçado como a memória pode ser olfativa, lembrar disso chegou a dar-lhe água na boca, ao trazer-lhe o sabor das balinhas ofertadas.

Qual o destino de cada um deles? O Alex, ela lembrava bem, queria ser piloto de avião, viajar pelos continentes, soberano acima das nuvens... Ele tinha até um protótipo de avião, que havia ganho dos pais, e exibia aos colegas, enquanto contava de todos os seus planos para o futuro. A Paulina, o grande sonho dela era ser uma atriz. Ela adorava fazer teatro na escola. Algumas vezes ela chegou a convidar Elisa para participar de peças improvisadas, ensaiadas após as aulas. Mas não chegou a emplacar, pois não conseguia se concentrar. Achava graça de tudo e atrapalhava os ensaios, acabou ajudando a escrever as peças. Nisso sim era boa, escrevia, rabiscava, amassava, tornava a escrever, até considerar que estava “razoável”.

Eram tantas as lembranças!... Por momentos, parecia que nem estava ali. Sua mente viajava. Sentia muita vontade de saber se eles conseguiram realizar os seus sonhos. Ao mesmo tempo lhe vinham a mente os seus próprios sonhos. “Será que realizei todos? Será que eu me lembro de todos os meus sonhos?” Ela acreditava, de certa maneira, que conseguira realizar seus sonhos, mas era engraçado que essa idéia não lhe vinha assim com tanta segurança... quer dizer, estava tudo muito bem, mas...

Capítulo 2No ônibus Repentinamente, o ônibus chegou. Tão absorta estava em seus pensamentos, que parecia

que ele tinha aterrissado ali. A porta se abriu e ela se encaminhou até o seu interior. Mas com a mente distraída, não viu o primeiro degrau e, não conseguindo se equilibrar, deu um giro e se estatelou no chão. “Nossa, há quanto tempo não caía um tombo!... Quem mandou ficar em devaneios?” Levantou-se, com um pouco de dificuldade, e, toda envergonhada, olhando para dentro, notou que os poucos passageiros que ali se encontravam pareciam solidários, disfarçando e olhando para o lado, para não constrangê-la.

Então, lá numa janelinha mais para o fundo, seu olhar deteve-se em um menininho, muito sério, olhando-a. Chamou-lhe a atenção as bochechas vermelhinhas e a boca, fechada, aliás, apertada, tentando a todo custo segurar a risada, como se fosse possível. Nos olhinhos dele ela via que a vontade de rir ia crescendo, crescendo, até que, não conseguindo segurar mais, explodiu numa gargalhada estrondosa.

Ao ver tanta expontaneidade, que fazia muito não reparava em ninguém com quem

Page 9: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

convivia, eela não resistiu e caiu junto na risada. A chateação passou, ela ria, o menino ria e, aliviado por não precisar mais ser solidário, o povo dentro do ônibus ria junto.

Com toda aquela explosão de riso, passou até a dor que estava no joelho, passou a vergonha, e, sentindo-se leve como uma criança, mancando levemente, mas sem perder a pose, com toda a tranquilidade, finalmente, entrou no ônibus, que seguiu viagem.

Sentou-se próximo ao menininho, que continha em seus lábios ainda um sorriso maroto. Olhou em volta, e reparou nas pessoas, mais demoradamente. Era cedo, havia poucas pessoas, a maioria vestida como se fosse para visita, como ela. Parecia que já haviam esquecido seu tombo, todos já estavam absorvidos em suas histórias pessoais. Ela sabia que havia muito caminho pela frente, pois Mioko morava num bairro bem afastado. Ela sempre gostou de ficar mais perto da natureza, ouvir o canto dos pássaros pela manhã. Quando crianças, costumavam fazer brincadeiras de ser adulta, e sua melhor amiga dizia que seria médica, e que gostaria de trazer os bebês ao mundo. Brincava de ser vegetariana e que ajudaria a salvar as baleias. Vinham à sua mente seus olhinhos pretos curiosos, sempre perguntando e fazendo teorias sobre tudo.

Olhou pela janela, a paisagem mudava a cada instante. Prédios, fumaça, gente passando, buzina... de repente um espaço verde, árvores frondosas, deve ser um parque. O azul do céu estava lindo “Ainda bem que eu escolhi o dia de hoje para sair...”, notou as nuvens branquinhas, elas iam mudando de forma, e distraiu-se olhando os "cachorrinhos" , "baleias", "rolos de macarrão"...

A Mioko, com certeza, faria uma descrição muito mais minuciosa. Ela sempre gostou de descrever paisagens, cenários, com todos os detalhes, principalmente cenas da natureza e explicações biológicas e químicas sobre os fenômenos. Elisa sempre foi mais avoada, os detalhes sempre passaram despercebidos. Pudera, estava sempre dispersa, prestava atenção em tudo, então, acabava não se fixando em nada. Veio à sua lembrança um fato curioso, das épocas de colégio. Havia um professor de matemática, da oitava série... “Ai, meu Deus...”, que era o sonho de consumo de todas as colegas colegiais. As amigas viviam lhe dizendo que ele era casado, e todos os dias que tinha aula, ela jurava a si mesma que olharia o dedo esquerdo dele para ver se via a tal aliança de casamento. Achava incrível acreditar, mas passou o ano todo, formou-se no Fundamental e nunca conseguiu comprovar a veracidade do fato.

Num dado momento,olhou para o lado, e deparou com os olhos enormes do menininho. Aquele olhar a intrigava. Ele olhava como que indagando. O que? Sei lá. Deu vontade de puxar conversa.

“Que lindo riso você tem!!!! Alguém já lhe disse isso antes???”Riu de si mesma, ao fazer essa pergunta, onde já se viu, falar assim, do nada...O menino se encolheu e falou:“ Minha mãe diz para não falar com estranhos !...” O óbvio, é claro, crianças não devem falar com desconhecidos e ela havia transgredido

uma regra de ouro. Só porque alguém ri de você ou com você não significa que ela tornou-se íntima. Deu um sorriso pra ele e disse que não se preocupasse. Logo ele começou a conversar com o coleguinha que esteja sentado junto e deixou-a de lado.

A viagem seguiu seu curso e ela "viajou" olhando aqueles campos verdinhos com os bichinhos pastando, árvores maravilhosas projetando muita sombra. Quando criança, também tinha bastante contato com a natureza, desfrutava de muita liberdade, mas mudaram-se em seguida para condomínios e acostumou-se com sua artificialidade. Achava engraçado, porque era como se sentisse saudade do que não havia vivido, já que foi por pouco tempo. Houve época

Page 10: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

em que ela e o marido, quando achavam um tempinho dentro de suas rotinas tão carregadas, falavam que quando tivessem seus filhos iriam se mudar para uma casa com quintal. Com o tempo, pararam de falar. Agora, olhando aquelas paisagens, parecia que se avolumava a vontade de poder se fundir com todo esse verde e saborear esse silêncio mais do que eloqüente.

Aquele embalinho gostoso do ônibus, as paisagens se confundindo lá fora, a conversinha dos meninos mais atrás, tudo foi se tornando uma só coisa. Foi batendo uma moleza, os olhos teimavam em ficar abertos, mas era difícil de resistir...

Capítulo 3 Em casa

De súbito, algo a acordou. Uma sacudidela forte despertou-a como de um longo sono. O ônibus havia parado, e ao seu lado uma menina japonesinha, muito elétrica puxava-a do braço:“ Chegamos, Elisa! Que moleza... vamos descer, o ônibus não espera...”

Olhou-a, confusa, parecia Mioko, mas... não havia tempo de pensar em alguma coisa, então, pegou sua pasta e saiu corredor afora, meio arrastada pela amiga. Desceram do ônibus e seguiram caminhando mais um pouco. Estavam voltando da escola e era quase hora do almoço, a barriga roncava. Despediram-se na esquina, combinando encontro na casa da árvore depois do almoço. Entrou por uma rua estreitinha e se dirigiu à sua casa. Estava um pouco zonza, parecia que tinha dormido, as questões de matemática estavam zunindo na cabeça, aquela tinha sido a prova mais difícil do ano. Deve ter dormido no ônibus, tapeou-se levemente para ver se despertava de vez. Naquele momento, somente duas palavras soariam como notas musicais: almoço e férias! Mas, apesar da mãe já ter preparado o almoço, tinham que esperar papai chegar, e isso significava ter que mandar ordens rigorosas para seu estômago parar de se mexer tanto e soltar aqueles ruídos engraçados. Sentou-se na mesinha da cozinha e pôs-se a organizar os papéis da pasta. Que bagunça! Naquela época do ano em que estavam, em meio a provas e encerramento do calendário, era impossível fazer grandes organizações. Logo tudo iria parar no fundo de uma estante da garagem. Finalmente papai chegou e foram almoçar. Após escovar os dentes, trocou o uniforme e não tardou a sair. Era dia de reunião, ou melhor, Convenção. O dia seria cheio, a turma da Luluzinha tinha coisas importantes a combinar, afinal, com as férias chegando, precisavam

Page 11: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

estabelecer as regras que regeriam a fases de “só brincadeiras” e quais meninas ainda poderiam entrar no grupo. Caminhou algumas quadras e logo chegou à casa de Mioko, olhou aquele imenso gramado, as árvores e o jardim, e sentiu-se invadida de uma imensa saudade. Algo que era impossível entender, olhou o lugar como se estivesse registrando num álbum fotográfico. No futuro, pensou, quando eu crescer e tiver minha família e não puder mais ver minhas amigas, quero voltar aqui nem que seja nos meus sonhos. Esse pensamento deixou-a triste, não podia imaginar um futuro em que todas as coisas do presente simplesmente não fizessem parte. Como se sumissem, evaporassem... bobagens, aquele dia estava mesmo pintando para deixá-la de miolo mole. Atravessou o imenso gramado, a mãe de Mioko estava num canto do jardim, mexendo em umas plantas. Abanou para ela e foi direto para a casa da árvore. A amiga já estava lá, arrumando tudo. Ela não parava, chegava a entontar. Logo chegaram mais duas amigas, a Nina e a Clarisse. “Cadê a Bianca, não vem?” “Tá de castigo. A professora de português mandou chamar a mãe dela e contou que ela colou na prova.” Ultimamente andava difícil de reunir o grupo todo. Ainda tinha a Fabiane, que foi passar uns dias na casa da vó. Era longe, e ela tinha medo de andar circulando de ônibus sozinha pela cidade. Era a mais quietinha da turma. O jeito era dar andamento nos processos, votar o que tinha que votar, e depois dizer para as outras.

Mioko se adiantou e foi logo dizendo:“Tem muita gente querendo entrar no grupo. Daqui há pouco a casinha cai!...”Essa Mioko... era curta e grossa, gostava de ir logo ao ponto. Mas ela estava certa, um dos

motivos de limitar a quantidade de participantes era o espaço. O medo das enxeridas vinha em segundo lugar, mas também tinha sua importância. Elas tinham coleções de fotos, de recortes de revistas, de pedrinhas, conchas, sem falar nas fantasias, para festinhas especiais, eram coisas muito preciosas para ficar dividindo com pessoas que não fossem jurar fidelidade.

Clarisse concordou: “Acho que mais uma cabe, e ainda ajuda na limpeza, né?” Nem precisou organizar votação, pois a maioria concordava com a admissão de mais uma amiga. O problema é que ela precisaria ser muito bem escolhida. O estoque de rituais começava a escassear, tinha que ser bem original, ou a novata não cairia. Mas a questão que mais pesava, sendo bem sincera consigo mesma, é que achava muito difícil isso de confiar nas pessoas. Quanto mais tempo convivia com as antigas amigas, mais difícil ficava ameaçar essa tranqüilidade com a presença de personalidades diferentes. E se a nova escolhida mostrasse sua verdadeira face após algum tempo? Como seria possível excluir uma pessoa que já soubesse dos seus segredos? E se fosse espiã? Muitas indagações...

Voltou para casa. A distância entre esse fim de tarde e a manhã seguinte parecia bem maior do que normalmente era. Seria o último dia de aula. No final, teria uma festinha, que estava sendo organizada pelos representantes de turma. Como não poderia deixar de ser, Mioko representava a sua turma. Após deixar tudo registrado em seu diário, foi se deitar. Mas foi difícil conciliar sono essa noite. Havia muitos pensamentos, estava na 8ª série, sabia que, depois dessas férias, muita coisa na sua vida ia mudar. Seria preciso fazer escolhas, suportar separações. Cada momento vivido poderia definir muitas situações futuras. Ainda tinha notas a receber para garantir a

Page 12: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

aprovação... o jeito era contar carneirinhos... difícil entender como conseguira dormir dentro do ônibus...

Capítulo 4A despedida

Demorou, mas o sono acabou vindo, e logo o sol inundou o quarto, fazendo complô com o despertador. Hora de levantar, tomar banho, vestir-se, café e... rua!!! Quando chegou à parada do ônibus, Mioko já estava lá, como sempre. Naquele dia, parecia que tinha mais gente indo à escola. Último dia de aula, e festa de despedida, ninguém inventou de ficar doente. Grupinhos se amontoavam na entrada do colégio. De longe, avistou as amigas e, deixando Mioko para trás, ela correu num fôlego só. Não foi possível evitar. Esbarrou... em quem? Ficou vermelha, era aquele gato da 8ª C, não era a primeira vez que eles se esbarravam, literalmente.

“Desculpa, te machuquei?”“Magina!... (louca de dor...)Não foi nada, eu é que sou uma estabanada”“Então ta, tchau.”“Tchau...”E lá se foi ele... Cada vez que eles ficavam perto assim, ela voltava para casa tramando

mil e um planos para conseguir espichar mais a conversa, segurá-lo ali por mais tempo, não parecer tão tola. Não estava dando certo, não conseguiam passar de poucas frases curtas.

As amigas não lhe deram muito tempo para novas reflexões. Juntaram-se a elas e seguiram em frente, acompanhando uma multidão de alunos que tentavam entrar no colégio antes do último sinal. Teriam as duas primeiras aulas e o restante da manhã seria no salão de festas. Mais duas horas intermináveis. Mas até que a professora de História foi legal, propôs um debate, o que tornou a aula interessante e fez o tempo voar.

Elisa, Mioko e Bianca estavam na 8ª A, Nina e Clarisse, na 7ª D e Fabiane, a menorzinha, estava na 6ª A. Havia um lugar no pátio, embaixo do Flanboyant, que era o seu ponto de encontro, nos recreios e na saída, as que saíam primeiro iam para lá esperar as outras. Era uma espécie de código de segurança, juntas tinham mais força, nos colégios sempre são comuns as provocações, e essa fidelidade lhes conferia uma boa dose de confiança e as mantinha seguras.

Bianca contou que sua mãe havia aliviado o castigo, ela estava arrependida e foi perdoada. Castigos em véspera de férias costumavam ser verdadeiros pesadelos, muitas vezes promessas de se comportar costumavam produzir efeito por algum tempo. Mas ela sabia que, a partir do ano seguinte, teria que se esforçar mais. No ensino médio, as exigências seriam maiores, e precisaria amadurecer um pouco.

Page 13: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

Passaram na secretaria no caminho para o salão de festas. Era preciso ver a folha das notas. O momento da verdade! Era engraçado, como dava um friozinho na barriga nesse momento, até naquelas matérias em que estava segura de ter passado, esperava ansiosamente o resultado. Precisaram aglomerar-se para ver as listas, que estavam coladas na parede da secretaria. Aos poucos, as caras preocupadas iam relaxando. Todas passadas! Era mais motivo de festa! Isso sim era fechar o semestre com chave de ouro.

Dirigiram-se para o salão, estava todo decorado com balões e serpentinas. Mioko assumiu seu lugar na equipe do som. Logo suas músicas prediletas inundaram o ambiente. Estava muito animado, tinha muito sanduíche, que as professoras haviam preparado para os alunos, houve momento de troca de presentes de amigo-secreto entre as turmas. Brincadeiras, trotes, prendas e tudo que tinham direito.

Era um momento festivo, fim de ano letivo, dever cumprido, clima de Natal, expectativa de 3 meses de pura diversão... era só motivo de alegria, mas na cabeça passava muita indagação. Havia passado as duas últimas semanas só pensando nesse dia chegar. Mas por que será que não se sentia tão feliz quanto achava que iria ficar?

Na sua mente, vinha a figura dele... Ricardo... o nome dele era esse... Ricardo... era pouco mais do que isso que sabia dele. A olhava de longe, em seu olhar ela via tantas promessas... Era o amor habitando seu coração juvenil, mas não passaria de promessa. Não sabia explicar, mas ele era assim como algo inatingível, e, agora, quando pensava em como seria dali para a frente, era como se a ficha finalmente caísse.

Não teria mais a mesma turma, cada um seguiria um rumo. Imaginava que a turminha ia continuar se encontrando, mas até quando? Se trocassem de colégio, de bairro, talvez até de cidade, o que as faria manter a união, a fidelidade?

Estavam se encaminhando para um ano de muitas mudanças, e sabia que nunca mais seria a mesma. Sabia que muitas coisas mudariam. E o Ricardo? Será que ele ia continuar no mesmo colégio? E se os pais dele mudassem de cidade? Não sabia como uma cabecinha tão pequena podia conter tantas preocupações. Mas durava pouco, porque logo era chamada à realidade pelas amigas. Ou por uma chuva de confetes, que quase a afogaram?

A animação só foi interrompida pelo sinal, que anunciava que o turno da manhã encerrava. Era hora de juntar os pertences e ir para casa. Com tanto sanduíche, seria complicado almoçar.

Quando ela estava saindo, viu-o de longe. Estava indo com outros colegas, mas lançou-lhe um último olhar. Ainda continha promessas. Promessas de um novo encontro... quem sabe a expectativa de esbarrar novamente... nos lábios dele ficaram muitos silêncios. Palavras que não foram ditas, dúvidas que não foram desfeitas...

Naquela noite, após dar boa noite a seus pais e se fechar em seu quarto, não pode conter as lágrimas. Agora que o semestre havia chegado ao fim, surgia-lhe remorsos por ter vivido como se ele jamais fosse acabar. Era curioso como a idéia do tempo agora lhe dava uma idéia tão diversa. Nem mesmo seu diário, seu confidente fiel conseguiu consolá-la. Por mais que escrevesse e pedisse que lhe desse algum consolo, as páginas em branco lhe traziam uma sentença incontestável. Nada ainda havia sido escrito... Aquela noite, tão interminável, parecia que nunca mais amanheceria...

Capítulo 5

Page 14: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

A prova de coragem

Mas amanheceu. E com os primeiros raios de sol, vieram as novas atividades. No dia

anterior haviam esquematizado as regras para o ingresso da novata. Como sempre havia muita divergência, nem todas aceitavam, mas no final tudo acabava dando certo. Quer dizer, Mioko, como tinha a personalidade de líder, dava as sugestões e tratava de convencer as demais.

“Já sei!!!!”As amigas se olharam. Era sempre uma bomba quando ela dizia isso. Uma afirmação

carregada de convicção, incapaz de deixar margem para argumentos contrários.“Já sei, a novata vai ter que fazer um bolo de areia e comer uma porção!”Nina ficou apavorada:“Tá louca, ela vai ter um piripaque no estômago! Sangue até é nojento, mas sai fácil...”“Ah, não tem nada que não cure com sal de fruta...” Mioko falava como se fosse uma

grande médica, o que era seu sonho de ser um dia. Logo as outras foram convencidas, tamanha a sua confiança.

Falta decidir quem seria a vítima, quer dizer, a aspirante à nova integrante do grupo. Elisa lembrou-se de Lili, uma menina que já incomodava há algum tempo para fazer parte das brincadeiras. Avaliaram vários fatores antes de tomar a decisão final. Lili era baixinha e tinha pouco peso, o que era favorável, visto as condições de espaço da casinha. Ela era meio chorona, mas isto, na avaliação de todas, não era lá um fator negativo. Afinal, veteranas que eram, não queriam uma menina maior e decidida, que não pudessem controlar.

Sabiam que a nova prova poderia dar rolo, mas eram craques em peraltices e essa seria apenas mais uma. Depois dariam boas risadas.

Então, bem cedo foi até a casa de Lili para comunicar a decisão do grupo. Ela havia sido a escolhida. A notícia foi recebida com muito entusiasmo, até ser comunicado qual seria a prova. Ela disse que não, de jeito nenhum, ela tinha muito medo de morrer.

“Imagina, menina, todas nós também tivemos que fazer isso para ser admitidas. De mais a mais, quando eu era pequena, cansei de fazer bolo de areia e comer um pouquinho. E estou viva, não estou? Mas tudo bem, se não tem coragem, não tem importância, tem uma fila de meninas que estão esperando essa oportunidade. Já vou lá avisar outra.”

Apelar para a coragem era até judiaria. Mas ela sabia que funcionava, nenhuma menina naquela escola, por menor que fosse, queria uma rejeição ao Clube das Luluzinhas em seu currículo, por falta de coragem. Havia sido escolhida entre tantas, o jeito era encarar o que tivesse pela frente.

Naquela tarde, encontraram-se todas na casa da árvore. Como sempre, quando Elisa chegou, Mioko já estava arrumando a decoração. Aquele era um dia importante, e todos os detalhes precisavam ser observados. Havia pedido à sua mãe para fazer um bolo para comerem

Page 15: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

com refrigerante .Depois chegaram as inseparáveis Nina e Clarisse, um pouco assustadas por causa das

nuvens escuras e da previsão de chuva que haviam visto no jornal. Mas elas eram corajosas e chuva nenhuma impedia suas reuniões. Além disso, a casinha era bem vedada. Depois chegou Fabiane, dizendo que não poderia demorar muito porque ia ao médico com a mãe. Por último, Lili chegou acompanhada de Bianca. Estava branca como cera, pois havia tido dor de barriga de manhã. Mioko não pode deixar de dar seu diagnóstico:

“Isso é de nervoso, assim que terminarmos o ritual isso tudo passa”. Ela realmente acreditava naquelas coisas que dizia, e passava confiança às amigas.

Claro que a novata ainda tentou ver se conseguia adiar para o próximo sábado. Um coro muito bem ensaiado devolveu-lhe um não bem redondo, que dispensou qualquer possibilidade de adiamento. Chorar seria muito arriscado. Mesmo morrendo de medo, não podia passar por covarde e ainda perder a oportunidade de fazer parte do grupo mais popular do colégio.

Então começaram os últimos preparativos. Colocaram música, Mioko tirou de um velho baú uma folha com todos os passos para o Ritual de Coragem. Todas estavam exultantes, enfim o grupo estaria completo, e depois poderiam programar atividades para a época de férias. As cabecinhas estavam cheias de idéias e não queriam perder um minuto para começarem a se divertir.

Então elas viram a luz de um raio através da porta da casinha e logo em seguida o som de um trovão. E instantaneamente, começou a chover, mas uma chuva torrencial, como há muito não se via. Elas olharam para fora, e logo começou a acumular água no gramado. E do teto, tão bem construído pelo pai de Mioko, começou uma goteira que nunca tinha aparecido antes. E logo mais outra.

Eram todas muito corajosas, estavam ansiosas por terminar o ritual. Mas não tinham vivido uma situação como essa e as coisas começaram a fugir do controle. Então decidiram largar tudo e, debaixo de muita chuva, desceram da árvore e foram para dentro da casa. Cada uma começou a ligar para seus pais e pedir que viessem buscá-las. Mas Elisa não conseguia encontrar os seus.

Ligou algumas vezes, então sua mãe atendeu, dizendo que estavam na casa de sua avó, que tinha ficado doente. Não havia ninguém em casa e ela não tinha chave. Apesar de sua mãe dizer que ela ficasse na casa de Mioko até diminuir a chuva, ela resolveu pegar o ônibus e ir ao encontro deles.

A casa da vó dela ficava em um bairro distante, e as outras não queriam deixar que ela fosse, onde já se viu tamanho disparate, com toda aquela água, melhor esperar. Mas elas sabiam que ela era teimosa, disse que não queria dar trabalho e que, já que a reunião seria adiada mesmo, então iria embora. Então Mioko lhe emprestou um guarda-chuva e ela se foi rua afora em direção à parada.

Pelo menos tentou. A chuva era muito forte e tocada à vento. Nem mal saiu da frente da casa e alcançou a calçada o guarda-chuva virou e parecia que iria arrastá-la. Deu medo, sentiu vontade de chorar, arrependeu-se, devia ter ouvido as meninas. Não conseguia enxergar quase nada, mas seguiu em frente, pois sabia que, logo que chegasse à esquina poderia avistar o ônibus.

Para sua sorte, ele já vinha se aproximando, então ela deu uma corrida, abanando os braços, freneticamente, para que o motorista parasse. Bem, ela questionou o fator sorte, pois a freada levantou uma onda que a cobriu inteira. A porta abriu, e ela, literalmente, um pinto

Page 16: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

molhado, subiu os degraus arrastando as pernas.Havia algumas pessoas dentro do ônibus e, naturalmente, todas a olharam, algumas

achando graça de sua triste figura, outras com pena, mas nenhum dos semblantes a deixou menos envergonhada. Devia estar cheirando à sarjeta, mas era melhor não pensar nisso, pois poderia provocar náuseas.

Atravessou o corredor, quietinha, abraçada à sua mochila que, como ela, estava encharcada, e sentou-se num banco bem ao fundo, evitando que continuassem olhando-a daquele jeito. Que canseira! Ela havia lutado contra a chuva e a ventania, mas agora, dentro do ônibus, estava segura. Apesar de estar toda molhada, o ônibus estava tão quentinho.... Chegava até a se sentir confortável.

A mochila serviu de cobertor, seria impossível alguém lhe tomar, de tão agarrada que estava a ela. Olhou pela janela, para ver se via alguma coisa, mas era só o branco das gotas de chuva batida. Embalada pelo barulho da chuva no vidro e pelo balancinho do ônibus, foi fechando os olhos e acabou dormindo.

Capítulo finalO retorno De repente, uma sacudida no ombro. Elisa acordou assustada. Levou as mãos ao peito

para segurar a mochila, mas não a achou. Abriu os olhos. Viu o cobrador do ônibus, que tinha vindo de seu lugar para chamar-lhe atenção:

“Moça, chegamos no fim da linha. A senhora tem que descer.”Sua cabeça parecia confusa.

Page 17: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

Cadê a chuva?Cadê a roupa molhada?Cadê minha mochila?E este rapaz, me chamando de moça?Desceu do ônibus, meio tonta de tanto dormir.Deu-se conta que deve ter atravessado a cidade dormindo. “Será que ronquei?” Riu de si

mesma por ainda ter essas idéias. De alguma forma, o passado esteve de volta por aquele breve período de tempo e lhe trouxe preciosas lembranças de sua infância. Ela havia “viajado” de volta a um tempo que julgava que não poderia mais afetá-la. Tantas recordações boas, que foram se perdendo com o passar do tempo.

Os anos haviam passado, ela havia crescido, se tornado uma pessoa responsável e de certa forma viveu os últimos anos tentando se proteger de possíveis “surtos de criancice”. Era bem ajuizada, tinha tudo sob controle, inclusive seu casamento. Por que de repente, pareceu-lhe não ter tanta certeza disso? Seria possível, mesmo, ter tudo sob controle? E isto significaria a verdadeira felicidade?

Subitamente, sentiu uma necessidade enorme de falar com o marido, ouvir sua voz, saber como ele realmente se sentia. Que loucura, sua vida estava tão certinha, mas agora, isso não parecia suficiente. Era como se a vida lhe tivesse aberto um “parênteses”, uma possibilidade de rever conceitos e fazer novas escolhas.

Já era meio da manhã e a rua onde descera estava bem movimentada. Enquanto caminhava em direção à casa da amiga Mioko, pegou o celular e, sem se dar muito tempo para desistências (esta era uma característica sua desde criança), puxou o número dele nos contatos e ligou. A voz amada do outro lado a animou. Precisava falar.

“Oi, querido, tudo bem? Já está de pé?”“Sim, levantei há pouco, estou tomando caf锓Liguei só pra dizer...” a voz embargou. O que era mesmo que ela queria dizer?“Liguei só pra dizer que te amo.” Ora, por que tinha sido tão difícil dizer? Pronto, agora já

disse.“Eu também te amo. Estás bem?”“Sim, claro. Estou a caminho da casa da Mioko. É que... bom, de repente, senti vontade

de conversar... acho que temos tanta coisa pra nos dizer.”Ele sentiu que alguma coisa estranha havia acontecido. Mas a voz dela estava tão calma,

tinha certeza que não tinha com que se preocupar. Mais do que ninguém, sabia do efeito positivo que aquele encontro com o passado poderia trazer a ela e a seu relacionamento.

Quando se conheceram, ela era uma moça expontânea, bastante descontraída, costumavam sair e se divertir juntos. Apaixonou-se logo por seu jeito de menina idealista e extremamente inventiva. Mas, com o tempo, os inúmeros compromissos em que ela foi se envolvendo foram absorvendo sua atenção. Ele procurava entender, mas aos poucos começou a acreditar que ela fazia isso como uma espécie de fuga. Como se fugisse de si mesma e da quantidade de sonhos que havia obrigado a si mesma a sepultar.

Despediram-se, ele a tranqüilizou, dizendo que aproveitaria a tarde para por umas leituras em dia. E tinham comida congelada de sobra para essas ocasiões. Ao desligar, ela sentiu um alívio. Ele continuava o mesmo, ela é que, de alguma forma, havia mudado naquelas poucas horas que haviam passado. Ou será que já não havia resgatado o hábito de refletir nos últimos dias, desde que, pesquisando numa comunidade do colégio onde estudaram, encontrou o perfil

Page 18: Bel PláOs espiritualistas dizem que, quando dormimos, nossa alma se desprende do corpo, restando apenas um fio de ouro que nos mantém ligados a esta existência. Então passeamos

da amiga Mioko? Olhou para o céu e agradeceu intimamente ao advento da Internet por trazer para tão perto pessoas queridas do passado.

Agora estava se dirigindo até a casa de Mioko. Não subiriam na casa da árvore. Nas palavras da amiga, já haviam ultrapassado o peso máximo permitido. Não haveria mais testes de coragem ou senhas para marcação de encontros. Talvez não aparecesse mais nenhuma das outras meninas, ela até sabia que a amiga de infância tentaria contactá-las e fazer-lhe surpresa.

Mas o que ela sabia é que esse dia seria inesquecível. E que talvez fosse o início de uma nova fase. Velhos sonhos foram despertos, sentimentos foram remexidos, ela se sentia especialmente viva naquela manhã. Estranho como viver, nos últimos tempos andava lhe pesando nos ombros... agora, sentia os passos leves. Olhou na bolsa o papelzinho onde havia escrito o nome da rua. Dobrou a esquina e já estava nela. Era só caminhar mais duas quadras. As casas daquela rua tinham imensos jardins. Não se surpreendeu. A amiga não poderia formar sua família em outro lugar.

Ao chegar ao portão onde tinha o número 67, olhou para dentro do jardim. Uma ternura invadiu-a. No centro do jardim, uma grande árvore e num dos galhos, uma casinha. Nela, uma menina japonesinha de uns 6 anos brincava de fazer comidinha.

Da porta da casa, mamãe Mioko saiu, abrindo os braços, com um enorme sorriso:“Elisa, que saudade!”

FIM