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Observados pela Guarda Nacional Bolivariana, estudantes realizam protestos em Caracas Marcha realizada durante o FSM 2010 Manifestação pró-Zelaya em Tegucigalpa São Paulo, de 4 a 10 de fevereiro de 2010 www.brasildefato.com.br Ano 8 • Número 362 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 ISSN 1978-5134 Projetos de Serra e Kassab agravam enchentes em SP As enchentes que vêm castigando a Grande São Paulo não são provocadas apenas pelas chuvas recordes que caem desde dezembro de 2009. O modelo de desenvolvimento empreendido pelo governador José Serra (PSDB) e pelo prefeito da capital, Gilberto Kassab (DEM), também é responsável pelos danos causados aos moradores da metrópole. A prioridade ao transporte individual agrava a impermeabilização dos solos urbanos com a construção de avenidas sobre rios e córregos. O projeto vem desde meados do século 20, mas as gestões atuais continuam seguindo seus passos. Exemplo notável é um dos carros-chefe da propaganda de Serra: a ampliação da marginal do Tietê.“Fala-se em fazer parques lineares, mas duplica-se a marginal do Tietê, lugar natural de espraiamento das águas dos rios” , critica Ermínia Maricato, urbanista da USP. Pág. 3 Na volta às aulas, as cam- panhas publicitárias expõem as novidades em materiais escolares ao seu público-al- vo, as crianças. Lápis, mo- chilas e cadernos estampa- dos com os personagens do momento chamam a atenção do público infanto-juvenil. E os pais nem sempre podem atender aos pedidos insisten- tes. Para a psicóloga Noeli Godoy, a variedade de pro- dutos e a publicidade osten- siva contribuem para esti- mular o consumo e acentuar as diferenças sociais dentro da sala de aula. Pág. 4 O material escolar como objeto de desejo infantil Reprodução A nova guerra midiática da oposição venezuelana O governo do presidente venezuelano Hugo Chávez passa por mais uma forte disputa interna. Crise ener- gética e de abastecimento de água, aliados à saída do ar do canal privado RCTV, têm sido o pivô de protestos da oposição. No entanto, de acordo com analistas, a mo- tivação dos adversários do governo vai além da defesa do acesso às necessidades básicas da população ou do livre pensamento: os parti- dos opositores, aproveitan- do a falta de investimentos em tempo hábil para evitar apagões e a escassez de água até as eleições legis- lativas de setembro, veem nestas a oportunidade de retornar à atividade política institucional e reverter, as- sim, a correlação de forças favorável para o governo. “A estratégia será eviden- ciar os erros relacionados a crises parciais e setoriais e aplicar o desgaste definitivo com o objetivo de conquis- tar espaço na Assembleia Nacional e forçar a saída de Chávez do governo”, anali- sa o sociólogo venezuelano Javier Biardeau. Pág. 9 O Ibama assinou a licença ambiental que permite o início da maior obra do PAC, a hidrelé- trica de Belo Monte, no Pará. A medida foi toma- da a despeito das popu- lações locais e da opinião de ambientalistas, que se preocupam com os impactos do empreen- dimento. A usina será a terceira maior do mundo e deve desalojar 30 mil famílias. Pág. 6 Governo ignora meio ambiente e libera usina de Belo Monte A morte do escritor J.D. Salinger rendeu homena- gens dos admiradores da li- teratura. Sua principal obra, O apanhador no campo de centeio, retrata o cotidiano de um jovem que vive o “sonho americano”, mas de- monstra revolta contra esse modo de vida. Pág. 8 Salinger expôs a revolta da j uventude Um outro mundo possível ainda por ser construído Seminário “FSM dez anos depois: desafios e propostas para um outro mundo pos- sível”, encerrado em 29 de janeiro, discutiu propostas para a nova ordem mundial surgida da crise do capita- lismo. Pág. 5 Em Honduras, o foco agora é a luta pela Constituinte Em entrevista, a líder da Frente Nacional de Resis- tência Popular de Honduras, Lorena Zelaya, afirma que não vai haver negociação com o governo “eleito” do país e que o foco agora será a Constituinte. Pág. 10 Daniel Bensaïd, filósofo e comunista francês, morreu em janeiro, aos 64 anos, em Paris. Em entrevista conce- dida no Brasil em 2008, ele discute a crise capitalista e a união das esquerdas. “Eu acho que ninguém po- de imaginar ou pretender saber que forma vão tomar as revoluções do século 21”, apostava. Pág. 12 Daniel Bensaïd e a esquerda diante da crise do capitalismo No distrito de Marracue- ne, 30 quilômetros ao norte da capital de Moçambique, Maputo, os camponeses procuram fortalecer uma agricultura familiar. Os trabalhadores rurais são os responsáveis por produzir comida para o país e seu ob- jetivo é assegurar a soberania alimentar. Para isso, eles buscam o apoio do governo. Entretanto, o presidente Ar- mando Emílio Guebuza pre- fere apostar nas técnicas da “revolução verde”, que, por onde passou, deixou um ras- tro de dependência. Pág. 11 Camponeses de Moçambique resistem à revolução verde Moradores caminham em rua alagada do Jardim Romano, zona leste da capital paulistana André Vicente-Folha Imagem Wilson Dias/ABr Ivo Gonçalves/PMPA

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Uma visão popular do Brasil e do mundo São Paulo, de 4 a 10 de fevereiro de 2010 www.brasildefato.com.brAno8•Número362 Marcha realizada durante o FSM 2010Manifestaçãopró-ZelayaemTegucigalpa Wilson Dias/ABr Ivo Gonçalves/PMPA janeiro, discutiu propostas para a nova ordem mundial surgida da crise do capita- lismo. Pág. 5 Em entrevista, a líder da Frente Nacional de Resis- tência Popular de Honduras, Lorena Zelaya, afirma que André Vicente-Folha Imagem Reprodução ISSN 1978-5134

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Observados pela Guarda Nacional Bolivariana, estudantes realizam protestos em Caracas

Marcha realizada durante o FSM 2010Manifestação pró-Zelaya em Tegucigalpa

São Paulo, de 4 a 10 de fevereiro de 2010 www.brasildefato.com.brAno 8 • Número 362

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

ISSN 1978-5134

Projetos de Serra e Kassabagravam enchentes em SPAs enchentes que vêm castigando a Grande São Paulo não são provocadas apenas pelas chuvas recordes que caem desde dezembro de 2009. O modelo de desenvolvimento empreendido pelo governador José Serra (PSDB) e pelo prefeito da capital, Gilberto Kassab (DEM), também é responsável pelos danos causados aos moradores da metrópole. A prioridade ao transporte individual agrava a impermeabilização dos

solos urbanos com a construção de avenidas sobre rios e córregos. O projeto vem desde meados do século 20, mas as gestões atuais continuam seguindo seus passos. Exemplo notável é um dos carros-chefe da propaganda de Serra: a ampliação da marginal do Tietê. “Fala-se em fazer parques lineares, mas duplica-se a marginal do Tietê, lugar natural de espraiamento das águas dos rios”, critica Ermínia Maricato, urbanista da USP. Pág. 3

Na volta às aulas, as cam-panhas publicitárias expõem as novidades em materiais escolares ao seu público-al-vo, as crianças. Lápis, mo-chilas e cadernos estampa-dos com os personagens do momento chamam a atenção do público infanto-juvenil. E os pais nem sempre podem atender aos pedidos insisten-tes. Para a psicóloga Noeli Godoy, a variedade de pro-dutos e a publicidade osten-siva contribuem para esti-mular o consumo e acentuar as diferenças sociais dentro da sala de aula. Pág. 4

O materialescolar comoobjeto dedesejo infantil

Reprodução

A nova guerra midiáticada oposição venezuelana

O governo do presidente venezuelano Hugo Chávez passa por mais uma forte disputa interna. Crise ener-gética e de abastecimento de água, aliados à saída do ar do canal privado RCTV, têm sido o pivô de protestos da oposição. No entanto, de acordo com analistas, a mo-tivação dos adversários do governo vai além da defesa do acesso às necessidades básicas da população ou do livre pensamento: os parti-dos opositores, aproveitan-do a falta de investimentos em tempo hábil para evitar

apagões e a escassez de água até as eleições legis-lativas de setembro, veem nestas a oportunidade de retornar à atividade política institucional e reverter, as-sim, a correlação de forças favorável para o governo. “A estratégia será eviden-ciar os erros relacionados a crises parciais e setoriais e aplicar o desgaste definitivo com o objetivo de conquis-tar espaço na Assembleia Nacional e forçar a saída de Chávez do governo”, anali-sa o sociólogo venezuelano Javier Biardeau. Pág. 9

O Ibama assinou a licença ambiental que permite o início da maior obra do PAC, a hidrelé-trica de Belo Monte, no Pará. A medida foi toma-da a despeito das popu-lações locais e da opinião de ambientalistas, que se preocupam com os impactos do empreen-dimento. A usina será a terceira maior do mundo e deve desalojar 30 mil famílias. Pág. 6

Governo ignora meio ambientee libera usina de Belo Monte

A morte do escritor J.D. Salinger rendeu homena-gens dos admiradores da li-teratura. Sua principal obra, O apanhador no campo de centeio, retrata o cotidiano de um jovem que vive o “sonho americano”, mas de-monstra revolta contra esse modo de vida. Pág. 8

Salinger expôsa revolta dajuventude

Um outro mundo possívelainda por ser construído

Seminário “FSM dez anos depois: desafios e propostas para um outro mundo pos-sível”, encerrado em 29 de

janeiro, discutiu propostas para a nova ordem mundial surgida da crise do capita-lismo. Pág. 5

Em Honduras, o foco agoraé a luta pela Constituinte

Em entrevista, a líder da Frente Nacional de Resis-tência Popular de Honduras, Lorena Zelaya, afirma que

não vai haver negociação com o governo “eleito” do país e que o foco agora será a Constituinte. Pág. 10 Daniel Bensaïd, filósofo e

comunista francês, morreu em janeiro, aos 64 anos, em Paris. Em entrevista conce-dida no Brasil em 2008, ele discute a crise capitalista e a união das esquerdas. “Eu acho que ninguém po-de imaginar ou pretender saber que forma vão tomar as revoluções do século 21”, apostava. Pág. 12

Daniel Bensaïde a esquerdadiante da crisedo capitalismo

No distrito de Marracue-ne, 30 quilômetros ao norte da capital de Moçambique, Maputo, os camponeses procuram fortalecer uma agricultura familiar. Os trabalhadores rurais são os responsáveis por produzir comida para o país e seu ob-jetivo é assegurar a soberania alimentar. Para isso, eles buscam o apoio do governo. Entretanto, o presidente Ar-mando Emílio Guebuza pre-fere apostar nas técnicas da “revolução verde”, que, por onde passou, deixou um ras-tro de dependência. Pág. 11

Camponeses deMoçambiqueresistem àrevolução verde

Moradores caminham em rua alagada do Jardim Romano, zona leste da capital paulistana

André Vicente-Folha Imagem

Wilson Dias/ABr Ivo Gonçalves/PMPA

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Mais uma ofensiva das elites contra a reforma agrária

O CENSO Agropecuário de 2006, divulgado no segundo semestre de 2009, apontou, inicialmente, um aumento de concentração de terras no Brasil no período entre 1995 e 2006. Em seguida, teria havido uma correção do índice de Gini, utilizado para tal medição. O referido coefi ciente pode variar de 0 (zero) – quando todos os estabelecimentos de uma região/país têm a mesma área (situa-ção de completa igualdade) – a 1 (um) – quando toda a terra de uma região/país está em um úni-co estabelecimento (situação de concentração absoluta de terras). O primeiro índice divulgado pelo IBGE era de 0,872 para o ano de 2006, e depois foi corrigido para 0,854. Os de 1985 e 1995 eram de 0,857 e 0,856, respectivamente, números já extremamente altos. De qualquer forma, a bancada ruralista comemora. A evolução do índice mostra que não há, nem de longe, um processo de redistri-buição fundiária no Brasil, muito menos uma reforma agrária. A concentração de terras neste enorme país segue sendo altíssi-ma, intocável e escandalosa.

O mais espantoso dessa evi-dência é o fato de que desde me-ados da década de 1990 passou a existir ofi cialmente no Brasil uma Política Nacional de Refor-ma Agrária com números que os governos FHC e Lula tentam se vangloriar e que totalizariam em torno 1 milhão de famílias assen-tadas. Número que equivaleria a um quarto do total dos estabele-cimentos familiares identifi cados pelo IBGE em 2006. Seria muito signifi cativo.

Entretanto, fi ca a pergunta: Se há uma Política Nacional de Reforma Agrária no Brasil com esse montante de famílias assentadas nos últimos 15 anos, porque o índice de Gini se man-tém inalterado? Qualquer re-forma agrária que se preze tem como objetivo central a des-concentração fundiária. Como desenrolar esse embrulho?

A meu ver, esses dados reafi r-mam algumas certezas e hipóte-ses (o primeiro enunciado é uma certeza, os seguintes são hipóte-ses para explicar o fenômeno):A política que existe no Brasil não pode ser chamada de refor-ma agrária, e sim de política de criação de assentamentos rurais, pois sua dimensão está muito longe de ser capaz de produzir uma “reforma” da estrutura fun-diária brasileira, aliás, não pare-ce ser capaz nem de arranhar seu histórico caráter concentrador.

Os números de famílias anun-ciadas como assentadas não correspondem à realidade, como já vem sendo levantado por es-tudiosos e movimentos sociais; grande parte desses números se referem à regularização fundiária de posseiros e reassentamentos em lotes vagos de assentamentos criados há mais tempo.

À margem da política de as-sentamentos rurais, o processo concentrador foi revitalizado pela expansão do agronegócio (essencialmente monocultor e exportador) que promove e im-pulsiona a compra e a grilagem (especialmente de terras devolu-tas) de quantidade signifi cativa de terras, inclusive por empresas estrangeiras que investem na terra brasileira como um ativo de alta valorização.

A difi culdade de pequenos estabelecimentos em sobreviver no contexto da pressão exercida pela expansão das monocul-turas do agronegócio acaba, muitas vezes, os impulsionando à venda para produtores ou em-presas de maior porte, quando não é o caso de posseiros expul-sos, especialmente em áreas de expansão da fronteira agrícola (ainda existe isso no Brasil no Século 21!).

Tudo isso reafi rma a cons-tatação de que só se consegue uma desconcentração fundiária efetiva se houver uma reforma agrária que esteja no bojo de um processo de reordenamento territorial mais amplo que “des-mercadorize” a terra e faça im-plementar um controle social e uma gestão democrática do bem mais valioso que um país pode possuir além de seu povo: o seu território. Povo e território têm que estar harmonizados para que se construa um país e uma so-ciedade sustentáveis. Povo sem território não constitui um país de verdade. Território que vira negócio, expulsando o povo, pro-duz favelas e periferias caóticas e violentas, apartação social.

O projeto de barbárie dos rura-listas, hoje reforçados pelas cor-porações globais do agronegócio e subordinado a elas (e também aos negócios dos complexos side-rúrgicos, celulósicos e energéti-cos), segue concentrando nossos campos, separando território e povo, fazendo piada da falsa e débil “reforma agrária”.

Carlos Eduardo Mazzetto Silva é engenheiro agrônomo, doutor em

Geografi a, pesquisador e professor concursado da FAE/UFMG.

debate Carlos Eduardo Mazzetto Silva

Reforma Agrária?crônica Luiz Ricardo Leitão

A LUTA PELA reforma agrária volta a ser criminalizada. E outra vez a investida é contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Neste momento, dezenas de sem-terra estão presos em vá-rias cidades e outros tantos foram condenados a penas altíssimas pelo simples fato de buscar terra para sobreviver – uma ação na qual o Su-perior Tribunal de Justiça já decidiu não confi gurar os delitos de esbulho possessório e formação de quadrilha.

A ofensiva, articulada entre os grandes meios de comunicação, latifundiários, agronegócio e Poder Judiciário, mostra-se mais evidente com novas prisões de trabalhadores em São Paulo e Santa Catarina.

Em Imbituba (SC), Altair Lavrat-ti, um dos coordenadores do MST catarinense, foi preso. No dia 28 de janeiro, cerca de 30 policiais milita-res efetuaram a prisão no momento em que o dirigente do MST realizava uma reunião pública, num galpão de reciclagem de lixo da cidade. A acusação é de que Lavratti, junto com outros sindicalistas e militantes sociais, preparava uma ocupação de terras na região. Foi levado sob a alegação de “formação de quadri-lha”. Outras duas pessoas também foram detidas, sendo que uma de-las, Marlene Borges, presidente da Associação Comunitária Rural, está grávida. Ela teve a casa cercada na madrugada do dia 28 e foi levada para Criciúma (SC). Outro militante, Rui Fernando da Silva Junior, foi levado para Laguna (SC).

Em São Paulo, no dia 25 de janei-ro, a polícia iniciou um cerco aos assentamentos e acampamentos da reforma agrária na região de Iaras, interior do Estado, portando man-dados de “busca, apreensão e pri-são”, com o intuito de intimidar, re-primir e prender militantes do MST. Nove militantes assentados e acam-pados foram detidos e levados para a delegacia de Bauru. No entanto, há a possibilidade de mais detenção e outros tipos de repressão. Ao todo, somam-se 20 mandados de prisão temporária.

TerrorismoNum clima de terror, além de

prenderem militantes, os policiais cercaram casas e barracos, ame-drontando as famílias e também apreendendo pertences pessoais. Tudo isso com o objetivo de forjar provas contra os agricultores, in-duzindo que os objetos teriam sido roubados durante a ocupação às ter-ras griladas pela Cutrale, em 2009.

O curioso é que, passados mais de 4 meses desde a ocupação e dos fatos ditos criminosos, o delegado da Polícia Civil já ouviu mais de 47 pessoas entre funcionários e ex-fun-cionários da Cutrale e integrantes do

MST (acampados e assentados) na região de Iaras, que participaram da ocupação. Só não diligenciou para ouvir os 20 investigados referidos.

Outro elemento grave é que o juiz que assinou o despacho prisional se valeu de hipóteses, conjecturas e subjetivismo pessoal articulados pelo delegado e endossados pelo Promotor de Justiça para decretar a prisão temporária dos investigados, por cinco dias, já prorrogada por igual período. A “justifi cativa” é a de que, se as 20 pessoas continu-assem soltas, poderiam atrapalhar as investigações, visto que são “perigosas, violentas, que exercem infl uências sobre os demais sem-terra e que causam temor e medo às pessoas e, por serem do MST, podem facilmente se esconder num lugar ou noutro”. Ocorre que, em quatro volumes de inquérito, não existe uma prova sequer que respal-de o entendimento dessas três au-toridades ofi ciantes nos autos. Isso mostra a ilegalidade dos decretos de prisão.

O fato é que as prisões não en-contram motivação fática, estão desgarradas das exigências legais, não atendem aos ditames da Jus-tiça, e sim ao ego dos requerentes,

de quem as endossou e de quem as decretou, pois, com elas, passaram a ganhar notoriedade e evidência na Rede Globo, emissora esta que, diferente do tratamento dado aos advogados dos trabalhadores, sem-pre tem em primeira mão, em ques-tão de minutos, o que se passa nos autos do inquérito. Longe de serem imprescindíveis para o curso das investigações criminais, são para atender as vontades dos latifundiá-rios, do agronegócio e da elite local, avessos à efetivação da reforma agrária na região.

SolidariedadeOs advogados dos trabalhadores

estão tentando, com muita difi cul-dade, acompanhar a situação e ob-ter informações sobre os processos – pois a polícia não tem assegurado plenamente o direito constitucio-nal às partes da informação sobre os autos e, principalmente, sobre as prisões. No entanto, é urgente que outros apoiadores políticos, organizações de direitos humanos e jornalistas comprometidos com a luta pela reforma agrária e com a luta do povo brasileiro divulguem amplamente e acompanhem mais de perto toda a urgente situação.

Situações como esta apenas re-forçam a urgência da criação de novos mecanismos de mediação prévia antes da concessão de limi-nares de reintegração de posse e de mandados de prisão no meio rural brasileiro – conforme previsto no Programa Nacional de Direitos Hu-manos 3 (PNDH-3) – com o intuito de diminuir a violência contra tra-balhadores rurais.

Outro elemento importante que corrobora com esse quadro de vio-lência e criminalização no campo é que o governo Lula não cumpriu a meta rebaixada de reforma agrária que fez e ainda não teve coragem de determinar ao ministro da Agricul-tura Reinhold Stefanes – represen-tante do latifúndio no seu Gabinete – que assinasse a instrução de atualização dos Índices de Produti-vidade.

No caso específi co e emergencial de Iaras, tal repressão é o aprofunda-mento de todo um processo de crimi-nalização e repressão que foi acelera-do a partir da repercussão exagerada e dos desdobramentos políticos ocorridos por ocasião da ocupação da Fazenda-Indústria Cutrale. O MST reivindica há anos para a reforma agrária aquelas áreas do Complexo Monções, comprovadamente griladas da União por essa poderosa transna-cional do agronegócio.

É lamentável que, ao invés de se acelerar o processo de reforma agrá-ria e a democratização do uso da terra, o que se tem é ainda mais ar-bitrariedade, repressão e violência.

de 4 a 10 de fevereiro de 20102

editorial

Gama

Vida de cachorro“ANO NOVO, vida nova” – dizem os otimistas de plantão, que, feliz ou infelizmente, ainda são muitos em nossa Bruzundanga. A cruel realida-de, porém, teima em desacreditá-los. E o recém-chegado 2010 já nos dá provas de que, ao menos nesta banda ocidental do planeta, as boas novas nem sempre nos chegam no ritmo que os povos demandam. É claro que essa constatação desagrada a muita gente, sobretudo àqueles reunidos no 10º Fórum Social Mundial, esperançosos de que bons ventos possam soprar em favor de todos os movimentos que insistem em proclamar que “um outro mundo é possível”.

De fato, no Velho e no Novo Mundo as boas novas nos chegam com um indisfarçável odor de naftalina. O bom-mulato Obama, por exemplo, não procurou nem sequer disfarçar a secular ambição imperial no Caribe, on-de, desde o século 19, as Antilhas eram vistas como “fruta madura” do Tio Sam, e despachou quase 10 mil soldados ianques para fazer uma faxina no velho quintal abandonado do Haiti. E, enquanto Evo Morales reafi r-mava a soberania dos povos indígenas na Bolívia, o povo chileno debatia-se angustiado entre duas candidaturas que, no frigir dos ovos, eram me-ras versões requentadas da velha política oligárquica que Allende buscou infrutiferamente suplantar em sua pátria.

É claro que os efeitos da crise imobiliária e fi nanceira de 2008 ainda ressoam sobre a Europa e os Estados Unidos, mas a desfaçatez das elites, tanto lá como cá, parece não ter se abalado com a retração dos mercados e a expressiva queda dos indicadores econômicos. Tampouco se alterou a lógica perversa do sistema vigente, sobretudo o “impulso incansável do capital em direção ao monopólio”, que o pensador húngaro István Mészá-ros, já em 2002, qualifi cava como um concomitante necessário do regime imperialista ainda em expansão.

Esse fenômeno acelera as desigualdades e o vertiginoso processo de concentração que se dá na área corporativa. Prejuízos para quase todos, bem o sabemos, exceto para os próprios monopólios e, permitam-me dizê-lo, para os cronistas de Bruzundanga... Eu lhe explico, caro leitor: o ritmo alucinado de acumulação implica paradoxos e situações muito além de sarcásticas, ou até mesmo absurdas, que ensejam diariamente um sem-número de motes para quem vive do imprevisível ofício de escre-ver.

Há poucos dias, por exemplo, comentaristas especializados do “velho e violento esporte bretão” nos informavam, com um tom entre o deboche e a perplexidade, que o astro inglês David Beckham, atual jogador do Milan, pagou a bagatela de 6.000 dólares (isto é, mais de dez mil reais!) para que o seu cãozinho de estimação viajasse na primeira classe de um voo internacional. Para quem não sabe, Beckham – tido por muitos como o mais vaidoso ou metrossexual dos craques da pelota – é casado com a ex-Spice Girl Victoria Adams, aquela que recentemente gastou mais de 800 mil dólares numa tarde de compras em Milão, onde adqui-riu 20 pares de sapatos da Dolce & Gabanna, 12 pares de óculos de sol Versace e um caríssimo relógio Rolex (o mesmo que roubaram de um tal de Luciano Huck nas ruas de São Paulo...).

A criatura se diz “viciada” em consumo, mas adverte que sua com-pulsão não deve ser objeto de censura, já que, afi nal, ela presta inegável “contribuição” à economia. Pensando em Victoria e no pobre cachorri-nho de Beckham, eu acabei por convencer-me de que aquela tenebrosa “vida de cachorro” com que os folhetins de antigamente ironizavam a existência dos miseráveis e dos setores mais explorados da própria classe operária hoje não é mais do que um chiste sarcástico. A cachorrada pós-moderna – tanto lá, na terra da Rainha, como cá, nos lares da burguesia tropical – há muito tempo vem levando uma vida de dar inveja a muito assalariado dessas latitudes...

Para que não me tachem de exagerado, vejam só os artigos disponíveis para a turma de Rex, Rintintim & Cia nos luxuosos ‘pet-shops’ de São Paulo: botas de couro sintético para proteção das patas, a R$ 54,99; tigela com sensor para abertura automática da tampa (quando o cão se apro-xima), a R$ 69,90; cesta de piquenique, com brinquedos, osso sintético, pente e alicate, R$ 353,00; capa de chuva para cães pequenos, R$ 35,90; e cd de música new age para cachorros ansiosos (!), R$ 16,35. Fez as contas, amigo? Pois é, deu mais que um salário-mínimo de Lulinha paz & amor. E aí o cronista, que é da família dos suínos, deve indagar: quem afi nal leva “vida de cachorro” nesta era dita globalizada?

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana,

é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

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R$ 48 milhões, em média, foram investidos pelo governo Serra na limpeza das calhas dos rios Pinheiros e Tietê; em 2006, o gasto foi de

R$ 72,9 milhões

Quanto

de 4 a 10 de fevereiro de 2010 3

brasil

Motoristas olham a marginal Tietê alagada, próximo à ponte Atílio Fontana

Rodrigo Coca/Folhapress

Eduardo Sales de Limada Redação

AS SEGUIDAS gestões, se-ja do governo estadual ou da prefeitura, pavimentam as ruas da cidade de São Pau-lo segundo o desenvolvimen-to de um modelo que prioriza carros. Desde meados do sé-culo 20, o “projeto” urbanís-tico da metrópole não leva em conta o curso das águas, mas sim dos automóveis. Hoje, o erro se repete. Uma das prin-cipais obras do governo pau-lista de José Serra (PSDB) é a ampliação das vias da Mar-ginal Tietê; mais um erro, na visão de especialistas.

O objetivo do poder públi-co é fomentar dois sonhos de consumo impostos pelo esti-lo da classe média: o carro e o apartamento, o que intensi-fi ca o foco das obras públicas voltadas à locomoção rodovi-ária. Isto é o que pensa o soci-ólogo Tiaraju D’Andrea, autor da dissertação de mestrado Nas tramas da segregação: O real panorama da pólis.

Ele critica a “irracionalida-de” da produção da elite pau-lista, que construiu avenidas sobre todos os rios e córregos da cidade. “Mais carros na rua, mais asfalto, mais ave-nidas, mais impermeabiliza-ção”, conclui.

Marginais A ampliação das vias mar-

ginais do rio Tietê, por exem-plo, revela a insistência de er-ros cometidos há 70 anos, de acordo com a urbanista e pro-fessora da USP Ermínia Ma-ricato. Para ela, ampliar a marginal, extremamente vul-nerável a alagamentos, é de uma irracionalidade do pon-to de vista ambiental e da ma-crodrenagem que não tem ex-plicação. “Fala-se em fazer parques lineares, mas dupli-

“Fala-se em fazer parques lineares, mas duplica-se a marginal do Tietê. As ações são casuísticas e obviamente obedecem a agendas eleitorais”

da Redação

O poder público tem insistido que áreas de risco e constante-mente alagadas, como a região do Pantanal, na zona leste de São Paulo, foram invadidas. As famílias que viviam, boa parte há mais de vinte anos, em ocu-pações irregulares da região fo-ram obrigadas “a se virar” ape-nas com o auxílio-aluguel de R$ 300, durante seis meses, sendo que existem no local casas que valem bem mais que R$ 30 mil.

Fato é que a maioria das famí-lias removidas de assentamen-tos informais acabam não tendo acesso à moradia da CDHU em função de problema de compro-vação de renda. Não existe pa-ra elas um plano de assenta-mento.

Na zona sul ocorre algo pare-cido. “Vemos a prefeitura levar ao morador do Grajaú, que es-tá ali há mais de 20 anos, uma notifi cação de crime ambien-tal”, lembra a urbanista e pro-fessora da USP Ermínia Mari-cato. A prefeitura quer fazer um parque linear no local, na Área de Proteção e Recuperação dos Mananciais da Bacia Hidro-

da Redação

Há fortes indícios de que o poder público fe-chou a Barragem da Penha para não inundar a marginal, quando ocorreram fortes chuvas em 8 de dezembro de 2009. A suspeita é a de que o go-verno estadual optou por inundar milhares de ca-sas na região do Pantanal, na zona leste da capital paulista, para não comprometer o trânsito.

Nos últimos dias, entretanto, surgiram mais informações sobre as novas enchentes no Pan-tanal. No início de 2009, a Companhia de Sane-amento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e o Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee) quase secaram o Tietê e encheram os re-servatórios ao longo do rio. No fi nal do ano, asbarragens estavam cheias demais para a época. Porém, em entrevista ao site Viomundo, o am-bientalista José Arraes revela que há anos o Daee e a Sabesp controlam o nível das barragens pre-vendo cheias no verão.

Arraes denunciou que as chuvas podem até ter contribuído, mas a causa mais importante das no-vas inundações (do mês de janeiro) no extremo leste da cidade de São Paulo é que as barragens do Alto Tietê estão excessivamente cheias. Além de “extravasar” as barragens, suas comportas estão sendo abertas, contribuindo com as inundações em toda a calha do rio até a região do Pantanal.

As comportas estão sendo abertas na época er-rada. Para explicar isso, Arraes cita algumas pos-sibilidades; dentre elas, a de que pode ter havi-do uma determinação governamental para que os reservatórios estivessem na cota máxima pa-ra não faltar água na região metropolitana de São Paulo. Uma outra se refere à privatização do Sistema Produtor de Água do Alto Tietê (SPAT). Hoje é um consórcio de empresas privadas que regula, administra, mantém e fornece as águas que estão represadas nessas barragens.

Assim, as empresas do consórcio fazem a con-servação das barragens e a intermediação coma necessidade da Sabesp, que trata e remete aágua para a população. Logo, para o consórciode empresas, quanto mais cheias estiverem asbarragens, mais água elas podem fornecer pa-ra a Sabesp. (ESL)

Senna e do rio Tietê, onde exis-te um novo eixo de valorização fundiária na cidade, como con-ta o sociólogo; tendo em con-ta, sobretudo, a construção da USP Leste, a reforma da linha de trem e a proposta de cons-trução de um trem de luxo li-gando o bairro da Luz ao aero-porto de Cumbica, na cidade de Guarulhos.

A especulação imobiliária é latente em toda a cidade. Co-mo consequência do aumento dos preços dos terrenos nas re-giões centrais e/ou mais valori-zadas do município nos últimos anos, os pobres foram empurra-dos cada vez mais para longe do centro. “É interessante obser-var como em todo município de São Paulo há mais imóveis va-gos, especulando, do que famí-lias necessitando de domicílio. Logo, seguindo a lógica do capi-talismo, o problema é de super-produção, e não de falta de ha-bitação”, explica D’Andrea.

Para ele, a função do poder público, que era agir contra a especulação imobiliária, faz o papel inverso e intensifi ca a cri-minalização da pobreza para garantir a realização da “mer-cadoria terra” e da “mercado-ria imóvel” para certos grupos de interesse, principalmente o setor imobiliário.

“Apesar de termos planos e leis que permitiriam aplicar a função social da propriedade e da cidade, garantindo assim a inserção dos pobres na cidade e impedindo a ocupação das áre-as ambientalmente frágeis, is-so não acontece em nenhuma metrópole do país, nenhuma”, conclui Maricato. (ESL)

METRÓPOLE Impermeabilização e construção de avenidas de fundo de vale e de córregos sanfonados “afundam” a cidade no caos

ca-se a marginal do Tietê, lu-gar natural de espraiamento das águas dos rios. As ações são casuísticas e obviamen-te obedecem a agendas elei-torais”, lembra.

De acordo com ela, a dupli-cação das marginais vai ali-viar durante um ano o fl uxo de automóveis, depois volta-rá à condição de terror. Es-

gráfi ca do Reservatório Billin-gs (APRM-B). “No restante da área de proteção dos manan-ciais não se toca. Nessa região da zona sul, removem os po-bres, mas fi cam as mansões à beira da represa”, acrescenta.

O cinismo é parecido na zo-na leste. O sociólogo Tiaraju D’Andrea revela que, no proje-to da construção do Parque Li-near do Tietê, as indústrias po-luidoras localizadas na beira do rio não serão removidas. Pa-ra ele, o discurso ambientalista para justifi car as remoções es-conde que o objetivo da prefei-tura paulistana é simplesmente garantir a realização dos lucros do setor imobiliário, em qual-quer parte da cidade.

Pobre culpado“O fenômeno que ocorre na

cidade de São Paulo, em que o poder público tenta culpar as classes populares pelo ataque ao meio ambiente, é mais uma faceta da nova investida de for-ças políticas de direita ao redor do mundo com o objetivo prin-cipal de criminalizar a pobre-za”, segundo diz D’Andrea.

Obrigada a partir para a in-formalidade, tanto no trabalho como na moradia, a população de baixa renda – aproximada-mente 90% da população bra-sileira que compõe o defi cit ha-bitacional está entre zero e três salários mínimos – fi ca sem al-ternativa para se instalar nas ci-dades, como lembra Maricato.

O espaço que “sobra” para a maioria dos pobres são as bei-ras dos córregos, as várzeas, as encostas íngremes, os mangues, as áreas de proteção ambiental

ou as áreas periféricas. “Essa expulsão da cidade formal/legal conduz a uma oposição entre os pobres e a preservação ambien-tal. Eles ocupam terras que não interessam ao mercado, desva-lorizadas pela distância em re-lação à cidade ou proibidas de serem ocupadas pela legislação ambiental”, afi rma Maricato.

A partir daí, sem que haja nenhum tipo de garantia, cer-tos governos tentam naturali-zar, segundo D’Andrea, a expul-são de famílias pobres de áre-as irregulares. Com isso, ocorre “um silenciamento da verdadei-ra causa dos problemas gerados na ocupação do solo urbano, que é o preço dos terrenos”.

EspecularNada é dito, porém, especi-

fi camente em relação ao extre-mo leste da capital paulista, que fi ca ao redor da rodovia Ayrton

se modelo, segundo Marica-to, tem sido copiado inclusi-ve por cidades de porte mé-dio, com as marginais à bei-ra de rios, que é o espaço res-tante da urbanização.

Concreto e lixoAlém de haver um subpla-

nejamento a reboque dos an-seios da cultura automobilís-

tica, os córregos sanfonados em geral estão nos vales, cer-cados de taludes (solo íngre-me), sendo seguidos por vias asfaltadas.

“Infelizmente não há o con-trole sobre o uso do solo, que continua sendo impermeabi-lizado. As avenidas de fundo de vale, o tamponamento de córregos para ampliar as vias

para o automóvel e as margi-nais contribuem para um mo-delo que impermeabiliza cres-centemente o solo e aumenta a velocidade com que as águas correm para as calhas natu-rais”, explica Maricato. Sobre os piscinões, ela considera co-mo “solução de emergência”, mas muito discutíveis.

AssoreadaSomado aos erros da falta

de planejamento, ainda exis-te o assoreamento dos riosna cidade. Para se ter umaideia, mesmo com a amplia-ção da calha (leito) do rioTietê, é impossível contro-lar o fl uxo de tanto lixo e ma-terial sólido nos rios da cida-de de São Paulo. O urbanis-ta Jorge Wilheim disse, ementrevista ao programa Ca-nal Livre, da Rede Bandei-rantes, que o Tietê foi pro-jetado num afundamento dacalha para mil metros cúbi-cos por segundo; entretan-to, no fi m de janeiro, na al-tura da Ponte da Casa Verde,estavam passando 850 me-tros cúbicos por segundo. Is-so porque, segundo afi rmouno programa, “são milharesde toneladas de terra que sãocarregadas, sem falar dos en-tulhos, dos pneus e das kom-bis que podem estar lá”.

Segundo Wilheim, o traba-lho de desassoreamento porparte do poder público pre-cisa ser incessante e “conviriarealmente conhecer se nos úl-timos quatro anos foi feito es-se trabalho ou não”. Não foi.No fi nal de 2009, uma repor-tagem do jornal Agora mos-trou que a limpeza da calhados rios Tietê e Pinheiros caiu34% na gestão de José Serra,que investiu R$ 48 milhões,em média, contra R$ 72,9milhões empenhados no últi-mo ano de administração deoutro ex-governador tucano,Geraldo Alckmin (PSDB).

Água gera lucroCriminalizar a pobreza, valorizar a terraEnquanto governos relacionam pobreza e ocupações irregulares com o meio ambiente, setor imobiliário ganha fôlego

O discurso ambientalista para justifi car as remoções esconde que o objetivo da prefeitura paulistana é simplesmente garantir a realização dos lucros do setor imobiliário

Projetada para carros, São Paulo submerge

Mesmo com a ampliação da calha (leito) do rio Tietê, é impossível controlar o fl uxo de tanto lixo e material sólido nos rios da cidade de São Paulo

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Tatiana se juntou com outras mães para comprar no atacado

de 4 a 10 de fevereiro de 20104

brasil

Ônibus escolar estadunidense decora vitrine de loja de departamento no Rio de Janeiro

Raquel Júnia

Raquel Júniado Rio de Janeiro (RJ)

MOCHILA DAS Princesas, borracha do Ben10, caderno do Homem Aranha. Se você já ouviu falar nesses persona-gens, é porque está por dentro dos desenhos animados que fazem parte do imaginário das crianças. E, já que as fé-rias terminaram, é o momen-to deles aparecerem não ape-nas na televisão, mas também nos materiais escolares. No Rio de Janeiro e em boa par-te do país, as férias já termi-naram e, com o novo ano le-tivo, chega também a neces-sidade de material escolar pa-ra ser usado no cotidiano das escolas. No caso de muitos es-tudantes, é o momento de in-sistir para ganhar aquela mo-chila com o personagem pre-ferido ou aquelas canetas que, além de escrever, soltam per-fume.

As papelarias estão lotadas, muitas crianças acompanham os pais na maratona salgada da compra do material escolar no sol de 40 ºC do verão ca-rioca. As vitrines estão enfei-tadas. “Tudo para você se di-vertir na volta às aulas”, convi-da uma grande loja de depar-tamentos. O problema é que muitas famílias não têm ver-ba sufi ciente para agradar os pequenos, e o material escolar não é oferecido gratuitamente aos estudantes da rede pública de ensino como deveria – pe-lo menos não de maneira sufi -ciente. O resultado já é conhe-cido: crianças frustradas por não comprar o que é visto na propaganda e diferenças so-ciais acentuadas na escola, até mesmo nas públicas.

Desigualdade“A criança gosta de ter ma-

terial novo, de mostrar pa-ra os colegas. Isso extrapola quando você começa a com-prar junto com o material es-colar objetos que não são ne-cessários. Por exemplo, hidro-cor é legal para cobrir um de-senho, para treinar o contro-le motor, mas para que tan-tas cores? É para acentuar a diferença social?”, questiona a psicóloga Noeli Godoy, do Conselho Regional de Psicolo-gia do Rio de Janeiro.

Noeli, que estuda a rela-ção da mídia com o consumo, também lida com a questão em casa, já que é mãe de qua-tro fi lhos e três estão na esco-la. “Os fabricantes de caderno, borracha, lápis vão querer in-crementar esse material. A Faber Castell lança, por exem-plo, o lápis de cor das Prince-sas, as meninas vão fi car doi-das, porque aquelas prince-sas viraram referência na in-fância. É aí que a publicidade consegue garantir a venda e se intensifi ca o capitalismo e a diferença social”, explica.

do Rio de Janeiro (RJ)

Tatiana Lima tem 31 anos e é mãe de cinco fi lhos em idade escolar. Ela também é estudante e em 2010 pre-tende concluir o Ensino Fundamental pelo ProJo-vem (Programa do gover-no federal orientado para a reinserção do jovem na es-cola). Moradora do Morro do Estado, em Niterói, re-gião metropolitana do Rio, ela precisa se virar com o salário mínimo que ganha como zeladora de um pré-dio para sustentar as crian-ças. Tatiana vive com os pais, o irmão e os cinco fi -lhos em uma casa de dois quartos. Ela reclama que, no início do período letivo de 2009, a escola munici-pal onde estão matricula-dos dois de seus fi lhos en-viou uma carta dizendo que a prefeitura garantiria ma-terial escolar e uniforme, mas que o tempo passou e só duas camisetas foram entregues às crianças, nada de lápis, borracha e cader-no, objetos básicos.

Para conseguir comprar o material dos cinco fi lhos, ela encontrou uma saída. Junto com a prima, a ir-mã e a tia que também têm crianças em idade escolar, faz as compras em papela-rias que vendem no ataca-do. Segundo Tatiana, com-prando o pacote fechado de cadernos ou a caixa fechada de lápis, sai bem mais em conta. “Assim eu gastei cer-ca de R$ 180 no ano passa-do”, assegura.

Preço altoDe fora do orçamento de

Tatiana fi caram os objetos escolares com personagens, já que encarecem os ma-teriais. Ela conta que, em 2009, uma de suas fi lhas ganhou do pai uma mochi-la da Penélope Charmosa – outra personagem conheci-da do mundo dos desenhos animados. Segundo a mãe, a mochila foi cara e mesmo assim rapidamente come-çou a descosturar, o que pa-ra ela prova que nem sem-pre o preço é sinônimo de qualidade.

“Já que os pais não ti-veram muita coisa quan-

do eram criança, para com-pensar e para agradar os fi -lhos, compram tudo que eles pedem. Aqui em ca-sa eu explico: é este que eu posso dar. Por exem-plo, uma barbie custa mais de R$ 200, aí falo com eles: se eu dou para vocês agora e depois não posso dar mais, vocês vão roubar para com-prar?”, refl ete.

Mesmo sem saber, Tatia-na segue um conselho bas-tante enfatizado pela psicó-loga Noeli Godoy, do Con-selho Regional de Psicolo-gia do Rio de Janeiro. Faz parte da tática dela não le-var as crianças na compra do material escolar. “Se eu levar, elas dão muito preju-ízo”, diz.

“Se você pegar dois orça-mentos de material esco-lar, uma lista de material simples chega a R$ 80, mas se caprichar muito, colocar apontador que faz mágica e borracha colorida, vai a R$ 200. E às vezes o aponta-dor mágico não é tão bom

do Rio de Janeiro (RJ)

O Sindicato Estadual dos Profi ssionais em Educação do Rio de Janeiro (Sepe) susten-ta que os governos têm o de-ver de fornecer o material es-colar. O professor de Histó-ria da rede pública do Rio de Janeiro e coordenador-geral do Sepe, Sergio Paulo Filho, afi rma que é ilegal as escolas cobrarem dos pais a compra dos objetos.

“O Sepe inclusive pede pa-ra ser acionado quando há co-brança de material escolar em escola pública”, informa.

Sergio afi rma que o kit for-necido pelos governos muni-cipal e estadual é bastante in-completo, geralmente compos-to por caderno, caneta, lápis e a camiseta do uniforme. O pro-fessor concorda que a desigual-dade social se acentua em sala de aula, já que alguns estudan-tes podem comprar os objetos e outros não. Para ele, o po-der público é o responsável por promover a isonomia, ou seja, evitar que essas diferenças se-jam tão gritantes no ambien-te escolar.

Questão do consumoA psicóloga Noeli Godoy

sustenta que só o oferecimen-to do material escolar pelo Estado não resolverá as dife-renças sociais na escola, mas pode amenizar o problema. Para ela, é bom para a educa-ção que o Estado cumpra suas atribuições, mas a disputa po-de continuar.

Material escolar vira objeto de desejoEDUCAÇÃO Como quase tudo não é um conto de fadas, consumo incentivado pela publicidade acentua a desigualdade dentro da escola e faz as famílias gastarem mais

“A questão do consumo não está na distribuição do mate-rial escolar, está na relação dos pais com a mídia, da publicida-de com os pais. O estojo que o Estado irá oferecer, por exem-plo, não tem personagem, não tem nenhum chamamento de status, então eu vou fi car com aquele que o Estado me deu ou vou comprar o do Batman? Cada criança vai se sentir con-templada, mas a disputa da di-ferença de poder continua”, aponta.

FinanciamentoEm entrevista ao Brasil de

Fato, o subsecretário executi-vo de Estado da Educação do Rio de Janeiro, Julio Cesar da Hora, informou que a “Secreta-ria de Estado de Educação não fornece material escolar pa-ra as escolas da rede”, apenas as camisetas do uniforme. Ele ressaltou que os livros são for-necidos pelo governo federal.

O Sepe acredita que o Es-tado e o município deveriaminvestir em educação os 35%previstos no texto original daConstituição Estadual e daLei Orgânica do Município.Uma ação direta de incons-titucionalidade (Adin) movi-da pelos governos derrubou anorma em 2003.

Questionado sobre os recur-sos destinados pelo governoestadual à educação, o subse-cretário Julio da Hora respon-deu que em 2009 o governoinvestiu mais do que os 25%determinados pela Constitui-ção Federal. “Em 2009, foramdestinados 25,12% dos recur-sos para a Educação em geral,incluindo universidades, es-colas profi ssionalizantes etc.”, argumentou.

Para o Sepe, os governos ten-dem a caracterizar a educação como gasto e não como investi-mento. “Do nosso ponto de vis-ta é um crime os governos não investirem os 35%, porque fa-zem falta 10%. Poderiam tam-bém estar engrandecendo o material didático. É um crime monstruoso com o futuro da sociedade do Rio de Janeiro”, reforça Sergio Filho.

Procuradas pela reporta-gem, as secretarias munici-pais de educação do municípiodo Rio de Janeiro e de Niterói,onde estudam os fi lhos de Ta-tiana Lima, não responderamaté o fechamento desta edição(dia 2). (RJ)

“Por exemplo, hidrocor é legal para cobrir um desenho, para treinar o controle motor, mas para que tantas cores? É para acentuar a diferença social?”

Quando papai e mamãe não têm superpoderes

“Se você pegar dois orçamentos de material escolar, uma lista de material simples chega a R$ 80, mas se caprichar muito, colocar apontador que faz mágica e borracha colorida, chega aos R$ 200”

Para Sindicato, Estado é responsável pelo material escolarProfessor Sergio Paulo Filho explica que o poder público deve garantir isonomia no ambiente de ensino

quanto aquele velho apon-tador de ferro. Os pais se esquecem de ver a qualida-de do produto para poder satisfazer um desejo desne-cessário”, comenta Noeli.

Pedidos desnecessáriosTatiana lembra que há

ainda outro problema com as listas de material esco-lar: para ela, há pedidos desnecessários. Ela cita co-mo exemplo marcadores de texto exigidos na lista de um de seus fi lhos. “Quem usou fui eu”, diz.

Apesar disso, ela acredi-ta que os pais devem com-prar os materiais escolares, mas que o Estado deveria ajudar. Atento à entrevis-ta, Ryan, fi lho dela, fala que não gosta de ir para a esco-la. “O pátio é pequeno e não temos como brincar”, recla-ma. A mãe faz coro com o fi lho e critica também a má utilização da estrutura da escola. “Lá tem sala de in-formática, mas nunca é uti-lizada”. (RJ)

“Do nosso ponto de vista é um crime os governos não investirem os 35%, porque fazem falta esses 10%”

Raquel Júnia

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Seminário sobre práticas antissindicais no FSM

PETRÓLEO

de 4 a 10 de fevereiro de 2010 5

brasil

Primeiro Seminário Internacional do Fórum Social Mundial na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre

André Netto/PMPA

Igor Ojedada Redação

DESDE SUA primeira edi-ção, em 2001, o Fórum Social Mundial (FSM) tem recebido reiteradas críticas por fi car restrito a discussões e não re-sultar em ações políticas, em-bora se reconheça a impor-tância que teve e ainda tem para a formação de articula-ções e redes internacionais.

Este foi, inclusive, o princi-pal debate da mesa de aber-tura do seminário “FSM dez anos depois: desafi os e pro-postas para um outro mun-do possível”, um dos princi-pais eventos do FSM 2010 – que teve atividades em todo o mundo –, realizado entre 25 e 29 de janeiro em Porto Ale-gre, no Rio Grande do Sul

De um lado, os que defen-diam a manutenção do caráter aglutinador de ideias, atores e propostas do FSM. De outro, aqueles que propunham que o espaço deve dar um passo à frente no que se refere a ações concretas (leia mais sobre o assunto na edição 361).

No entanto, um aspecto é quase unânime: nessas dez edições de Fórum Social Mun-dial, a postura dos seus parti-cipantes evoluiu de pratica-mente apenas se opor ao neo-liberalismo vigente para tam-bém propor alternativas mais elaboradas a esse modelo. As-sim, o seminário “FSM dez anos depois” serviu, além de espaço de balanço do evento nesta década, também como centro de debates sobre pers-pectivas e propostas diante da crise do capitalismo.

O que propor?Nesse sentido, a discussão,

grosso modo, se resumiu a um questionamento prepon-derante: frente à crise do ne-oliberalismo e do poder po-lítico e econômico estadu-nidense, o que fazer? O que queremos pôr no lugar, e co-mo construir uma nova hege-monia?

Durante a mesa “Novo Or-denamento Mundial”, reali-zada no dia 28, Antonio Mar-tins, da Attac (Associação pe-la Tributação das Transações Financeiras para ajuda aos Cidadãos) de São Paulo, afi r-

mou que a confi guração de uma nova ordem pode se con-verter em processo de trans-ferência de hegemonia, mas, para isso, “temos que consi-derar as potencialidades des-te momento e superar alguns defi cits. Entre eles, estão o defi cit da comunicação e o da formulação”.

O italiano Giampiero Ra-simelli, do Observatório Eu-ro-Latino-Americano de De-mocracia e Desenvolvimento Social (Euralat), defendeu, na mesa “Organização do Estado e do Poder Político”, também do dia 28, a criação de um go-verno mundial que funcio-nasse sustentado em institui-ções internacionais. Segundo ele, para essa proposta fun-cionar, é preciso “mais regio-nalismo”, em nível continen-tal ou subcontinental: “O go-verno mundial deve ser o re-presentante das diversas par-tes do planeta, mas com uma atuação diferente da que esta-mos acostumados”.

“Novo socialismo”Já os integrantes da me-

sa “Como Construir uma He-gemonia”, realizada no mes-mo dia, avaliaram que um no-vo socialismo está sendo dese-nhado pelos movimentos so-ciais e os governos gerados por eles no continente latino-americano nos últimos anos. Para a peruana Virginia Var-gas, da Articulación Feminista Marcosur, o chamado socia-lismo do século 21 traz um no-

vo horizonte de poder, no qual não há divisão entre gover-nantes e governados. “A pro-posta não é substituir uma he-gemonia por outra. É inven-tar relações não hierarquiza-das, que também estão nas re-lações pessoais e nas relações entre as organizações”, disse. Essa dinâmica, defende ela, leva à formação de um sujeito emancipado e revolucionário.

No entanto, na mesa “Novo Ordenamento Mundial”, uma polêmica foi levantada pelo belga Éric Toussaint, do Co-mitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM). Para ele, além de a crise não ter fragilizado o poderio esta-dunidense, ele está sendo re-forçado por atitudes imperia-listas dos países do chama-do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). “Podemos afi rmar que o modo como o Brasil es-tá presente na Bolívia, no Pe-ru, no Equador, é um tipo de imperialismo periférico, a re-produção da lógica imperialis-ta em escala regional”.

Taoufi k Ben Abdallah, do Enda Tiers Monde do Sene-gal, discordou, afi rmando que, se se considera imperia-lismo como “a confi scação do potencial e do futuro dos po-vos em favor de uma potência por dominação econômica,

política ou militar”, os países do Bric não podem ser cha-mados de imperialistas.

Democratizar a economiaPolêmica à parte, um con-

senso entre os participantes do seminário “FSM dez anos depois” é que qualquer de-mocratização do poder políti-co só é possível de ser alcan-çada com a democratização do poder econômico. “É tris-te ver que, mesmo em países onde as instituições democrá-ticas funcionam bem, a desi-gualdade social vem aumen-tando. A fonte dessa reali-dade reside na concentração do poder econômico”, aler-tou, durante a mesa “Orga-nização do Estado e do Poder Político”, Nancy Neamtan, da organização Chantier de l’Economie Sociale, do Cana-dá, para quem o caminho pa-ra o socialismo deve vincular o exercício do poder político com o exercício do econômi-co. Para ela, a economia soli-dária seria uma das formas de se alcançar esse objetivo.

Na mesma mesa, João Pe-dro Stedile, da coordena-ção do MST, explicou que, a partir dos anos 1990, o Es-tado burguês – que, embo-ra controlado pelos proprie-tários dos meios de produ-

ção, possibilitava avanços à classe trabalhadora em ter-mos de direitos – foi “seques-trado” pelo capitalismo fi nan-ceiro e pelas transnacionais. “O Estado mudou de carac-terísticas, não é mais um Es-tado republicano”, disse. Para ele, hoje, o Estado é o princi-pal instrumento de acumula-ção de capital, através do pa-gamento de juros da dívida pública para bancos e empre-

Durante a tradicional Assembleia dos Movimentos Sociais, algumas datas de lutas foram defi nidas ou convocadas:8 a 18 março – jornada de comemoração dos 100 anos do Dia Internacional da Mulher.Março – jornada de lutas da UNE e da Ubes em defesa da educação.Abril – jornada de mobilizações em defesa da reforma agrária e contra a criminalização dos movimentos sociais.19 a 22 de abril – Conferência dos Povos sobre as Mudanças Climáticas, em Cochabamba, na Bolívia.31 de maio – Assembleia Nacional dos Movimentos Sociais.1º de junho – Conferência Nacional da Classe Trabalhadora.11 a 15 de agosto – Fórum Social das Américas, em Assunção, Paraguai.Setembro – Plebiscito sobre o limite máximo da propriedade da terra.

Nara Roxode Porto Alegre (RS)

APROVEITANDO A presença do presidente Luiz Inácio Lu-la da Silva no Rio Grande do Sul para participar das ativi-dades do Fórum Social Mun-dial 2010 Grande Porto Alegre, que aconteceu entre os dias 25 a 29 de janeiro, os petroquími-cos gaúchos publicaram uma “Carta Aberta ao presiden-te Lula” cobrando responsa-bilidade do governo, bem co-mo da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, também pre-sidente do Conselho de Ad-ministração da Petrobras, pe-la entrega de 100% do setor petroquímico para o Grupo Odebrecht/Braskem.

No documento, os traba-lhadores cobram do governo

as demissões que a empresa vem fazendo no Rio Grande do Sul, as tentativas de elimi-nar direitos do Acordo Cole-tivo de Trabalho, a precariza-ção das condições de trabalho e os prejuízos que a concen-tração da petroquímica com a Braskem acarretará para a sociedade brasileira. A nota, além de ser publicada no in-formativo semanal da catego-ria, também foi publicada em jornal de grande circulação no Estado e distribuída aos participantes do FSM. “Nos-so objetivo foi mostrar o que a Braskem vem fazendo no Rio Grande do Sul e que agora, com a negociação da Quattor e a entrega do controle do se-tor para essa empresa, pode-rá acontecer em todo o país”, afi rma o presidente do Sindi-cato dos Trabalhadores das Indústrias Petroquímicas de Triunfo/RS (Sindipolo), Car-los Eitor Rodrigues.

Para ele, a “complacência” do governo federal com as ati-tudes da Braskem confi gura uma traição do governo aos trabalhadores. “Desde 2007, estamos nas ruas, na mídia, em audiências públicas nas câ-maras de vereadores, Assem-bleia Legislativa [gaúcha], Câ-mara e Senado denuncian-do as atitudes da Odebrecht/Braskem em relação aos traba-

lhadores e seus direitos. Por-tanto, não há como o gover-no dizer que não sabe. Inclu-sive levamos essas questões à Petroquisa [braço petroquími-co da Petrobras], na expectati-va de uma posição, o que não aconteceu”.

ResistênciaEssa iniciativa não é a pri-

meira que os trabalhadores to-mam para denunciar as atitu-des predatórias, desrespeito-sas e agressivas da Braskem. Desde 2007, quando foi anun-ciada a compra do Grupo Ipi-ranga pela Petrobras, Braskem e Grupo Ultra, os trabalhado-res vêm realizando atividades para manter os postos de tra-balho e garantir os direitos da categoria.

“Em muitas delas houve compromisso da Braskem e da Petrobras de que não ha-veria demissões, mas até ago-ra já foram mais de 500 tra-balhadores demitidos somen-te entre os diretos. Se forem levados em conta os terceiri-zados, esse número mais que triplica”, diz Eitor, lembran-do que esta é uma prática an-tiga na Braskem. Desde o iní-cio, quando ela assumiu o Polo de Camaçari, na Bahia, as de-missões se sucedem. “Lá foram mais de 1.500, e a retirada de vários direitos”, acrescenta.

Práticas antissindicaisOs trabalhadores petroquí-

micos também distribuíram o material no seminário do Fó-rum que debateu o tema das praticas antissindicais. Segun-do Eitor, a perseguição a di-rigentes sindicais, monitora-mento dos locais onde os tra-balhadores costumam fazer manifestações, assédio moral

descarado dentro das fábricas, pressão nas assembleias de trabalhadores para aprovar as propostas da empresa, amea-ças veladas de demissões e até controle do caminhão de som utilizado normalmente pelo sindicato nas atividades são práticas rotineiras na Bras-kem. “São ações inaceitáveis que não desrespeitam somente

o sindicato, mas a todos os tra-balhadores”, destaca ele.

Eitor salienta que os prejuí-zos não são só para os petro-químicos. “A sociedade irá pa-gar o preço por essa concen-tração, além da própria Petro-bras”. Ele explica que, em rela-ção à estatal, a Braskem terá condições de infl uenciar mui-to no preço da nafta, produto do qual a Petrobras é fornece-dora. Em relação à sociedade, como a Braskem será a única produtora de matérias-primas petroquímicas, já que está com todos os polos sob seu contro-le, poderá ditar os preços em relação à indústria de transfor-mação. “A conta, quem pagará, será a sociedade, o consumi-dor fi nal dos produtos de ori-gem petroquímica; tanto as in-dústrias de segunda e terceira geração como a própria popu-lação”. Para Eitor, desde a in-dústria automobilística à dona de casa que compra um pote de plástico no mercado, incidi-rá o preço do produto infl uen-ciado pela Braskem.

“Com a ganância da Bras-kem, a busca desenfreada e de-sumana por lucros, as práticas de gestão perversas e o desres-peito aos direitos dos trabalha-dores, características que ela imprime onde quer que che-gue, o que se pode esperar des-sa empresa?”, desafi a.

Que outro mundo possível?FÓRUM SOCIAL MUNDIAL Seminário de balanço e perspectivas sobre o espaço debateu em Porto Alegre as alternativas ao modelo de desenvolvimento em crise

sas. “Ou seja, o voto não va-le nada”. Como exemplo des-se argumento, ele cita os ban-cos centrais de todo o mun-do, que têm mais poder que o próprio poder político de cada país. “Ou seja, se há uma coi-sa que devemos reivindicar é eleger o presidente dos BCs. E estatizar todo o sistema fi nan-ceiro”. (Com informações do blog do Seminário Dez Anos Depois)

O seminário “FSM dez anos depois” serviu, além de espaço de balanço do evento nesta década, também como centro de debates sobre perspectivas e propostas diante da crise do capitalismo

Petroquímicos acusam governo Lula de conivência com monopólioCarta responsabiliza presidente pela entrega de 100% do setor petroquímico para a Odebrecht/Braskem

“Em muitas delas houve compromisso da Braskem e da Petrobras de que não haveria demissões, mas até agora já foram mais de 500 trabalhadores demitidos somente entre os diretos”

Maria Rosa Junges

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O ministro Carlos Minc e o presidente do Ibama, Roberto Messias

ANÁLISE

de 4 a 10 de fevereiro de 20106

brasil

Belo Monte – 1Pressionado por empresas em-

preiteiras e de mineração, o governo federal tratorou o processo do Ibama para aprovar a construção da hidrelé-trica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará. Em defesa da população que será duramente afetada pela obra (povos indígenas, pescadores, moradores do município de Altamira), dom Erwin Krautler, bispo da Prelazia do Xingu e presidente do Cimi, alerta que a reação dos povos da fl oresta é “imprevisível”.

Belo Monte – 2Em entrevista coletiva em São Pau-

lo, dia 29 de janeiro, no auditório da Livraria Paulinas, dom Erwin Krautler deixou claro que os danos ambientais causados pela usina de Belo Monte se-rão irreversíveis, já que o lago da bar-ragem deverá destruir o ecossistema do rio Xingu, inundar terras indígenas, provocar o despejo de 30 mil famílias e destruir sítios arqueológicos importan-tíssimos. Enfi m, um desastre natural, humano e cultural – para benefi ciar alguns grupos empresariais.

CongeladorNão apenas os processos contra a

Construtora Camargo Corrêa e o ban-queiro Daniel Dantas, do Opportunity, foram congelados pelo Judiciário: dezenas de casos apurados pela Polícia Federal e denunciados pelo Ministério Público, nos últimos anos, dormem em berço esplêndido, especialmente os que envolvem empresários nos crimes de sonegação fi scal, evasão de divisas e corrupção ativa de funcionários públi-cos. Por que será?

Dívida Pública – 1O governo aumentou a dívida pú-

blica federal em R$ 100 bilhões, em 2009, exatamente 7,16% acima do fi nal de 2008. Agora está em R$ 1,497 trilhão. O aumento foi feito com a emissão de títulos para captar recursos para o BNDES. O banco estatal tem usado esses recursos para fi nanciar, com juros baixíssimos, grandes grupos empresariais, nacionais e estrangeiros, entre os quais a indústria automobilís-tica e o agronegócio exportador. Quem vai pagar?

Dívida Pública – 2O aumento da dívida pública vai

obrigar o governo a promover supera-vit primário destinado ao pagamento de juros, o que signifi ca reduzir in-vestimentos públicos em áreas sociais ou desonerar setores geradores de empregos. A elevação da dívida só faz sentido quando acoplada a políticas de distribuição da renda e melhoria das necessidades básicas da população. Caso contrário, é transferência de ren-da para o capital privado.

Luta políticaA imprensa empresarial-burguesa

do Brasil caiu de pau – mais uma vez – no presidente da Venezuela, Hugo Chávez, porque a autoridade de comu-nicação de lá puniu as emissoras de TV que não transmitiram programação obrigatória em rede nacional. Mais uma vez a RCTV, aquela que perdeu a concessão de canal aberto, foi punida e alegou que não entrou em rede porque sua sede fi ca em Miami. A gritaria é luta política e ideológica!

Teto salarialEm 1994, quando as primeiras ope-

radoras de TV a cabo iniciaram acirra-da disputa com a perspectiva de expan-são do mercado, tinham como previsão que o Brasil teria, até o ano 2000, algo em torno de 10 milhões de assinantes. No entanto, a coisa não caminhou conforme o previsto, já que ainda hoje – em 2010 – o número de assinantes da TV paga está em torno de 7 milhões, e assim mesmo com muita inadimplên-cia. A renda não ajuda!

Conexão nacionalAs empresas privadas de telefonia

estão em pé de guerra contra a pro-posta governamental de recriação da Telebras (InfoBrasil), que assumiria o fornecimento de banda larga para o se-tor público e localidades onde o setor privado não tem interesse econômico. A mídia burguesa, como sempre, está bombardeando o projeto, que pode representar grande economia para os cofres públicos e para os bolsos dos ci-dadãos. Será que o governo vai peitar?

Deu desempregoAo longo de 2009 a grande mídia

divulgou inúmeras vezes, com base em fontes do governo, a queda do de-semprego e o aumento de empregos formais – sempre como prova de su-peração da crise econômica e retoma-da do crescimento. Agora, dado ofi cial do IBGE constata que 2009 fechou com taxa de desocupação de 8,1%, pouco acima da taxa de 2008, que foi de 7,9%. Aumentou mais o desem-prego entre trabalhadores com maior escolaridade.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Mulher Kayapó banha criança no rio Xingu: impactos ambientais afetarão populações tradicionais

Glenn Switkes/International Rivers

Patrícia Benvenutida Redação

APESAR DAS manifestações con-trárias de movimentos sociais e organizações ambientalistas, o Instituto Brasileiro do Meio Am-biente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu, no dia 1º, a licença ambiental prévia para a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA).

A liberação da licença prévia não signifi ca ainda a autorização para o início da obra, mas permite a realização de leilão para decidir qual consórcio será o responsável pelo empreendimento.

De acordo com o Ministério de Minas e Energia, a Agência Na-cional de Energia Elétrica (Ane-el) deve publicar em breve o edi-tal do leilão, e a expectativa é de que o processo ocorra em março. O governo tentou realizar o lei-lão no fi nal de 2009, mas a licita-ção teve que ser adiada pela falta da licença.

A Usina de Belo Monte constitui o carro-chefe dos projetos energé-ticos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e terá capa-cidade para gerar 11,2 megawatts médios (MW) a partir de 2015. O custo total da obra, segundo o go-verno, será de R$ 16 bilhões, com a inundação de uma área de 516 quilômetros quadrados. A hidre-létrica será a segunda maior do país e a terceira do mundo, atrás apenas de Três Gargantas (China) e da usina binacional de Itaipu.

Lideranças locais, comunidades tradicionais e pesquisadores, po-rém, apontam que o projeto de-ve causar um desastre na região, com impactos ao meio ambiente e a populações tradicionais de indí-genas e ribeirinhos. Estima-se que 30 mil famílias serão despejadas, e bairros inteiros devem ser inun-dados em Altamira (PA). O muni-cípio também deve ser impacta-do pelo intenso fl uxo de mão-de-obra atraída pelas promessas de emprego, comprometendo ainda mais sistemas básicos como saú-de e educação.

CríticaContrário ao projeto, o presi-

dente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), dom Erwin Krautler, lamentou a concessão da licença e a falta de diálogo que vem marcando o processo. Em ju-lho, o bispo integrou uma comis-são de representantes da bacia do Xingu para discutir a implanta-ção da hidrelétrica. “O presiden-te Lula me prometeu, em 22 de julho [de 2009], que não ia em-purrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja e que o di-álogo teria que continuar. Infeliz-mente não houve diálogo, de jeito nenhum”, afi rma.

Em novembro, a Justiça Fe-deral de Altamira (PA) chegou a suspender o licenciamento da hi-drelétrica por considerar insatis-fatórias as audiências públicas re-alizadas até então para discussão da obra junto às comunidades. A liminar, no entanto, foi derruba-da pelo Tribunal Regional Fede-ral da 1° Região (TRF-1), que aco-lheu pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) juntamente com a Procuradoria do Ibama.

CondicionantesJunto com a licença, o Ibama di-

vulgou uma lista com 40 condi-cionantes que deverão ser cum-pridas pelo empreendedor para a execução da obra. No documento constam medidas socioambien-tais como saneamento, melhoria das condições de vida da popula-ção impactada, monitoramento de fl orestas e adoção de unidades de conservação.

No anúncio da liberação, o mi-nistro do Meio Ambiente, Carlos Minc, afi rmou que as condicio-nantes são “ações de mitigação aos impactos do empreendimen-to” e que o valor para implemen-tação das medidas pode chegar a R$ 1,5 bilhão.

A aparente solução, porém, não convenceu o advogado Raul Sil-va Telles do Vale, do Programa de Políticas e Direitos do Instituto Socioambiental (ISA). De acordo com ele, o Ibama não disponibi-

lizou, em sua página na internet, uma série de documentos neces-sários para um exame mais deta-lhado das proposições e de seus benefícios reais. “A falta de trans-parência atrapalha a análise das condicionantes”, esclarece.

O tamanho da lista e da cifra que pode ser gasta com as benfei-torias também não pode ser con-siderado, por si só, uma boa no-tícia. Pelo contrário: para Vale, o alto número de condicionantes expõe a fragilidade do projeto.

“A quantidade de condicionan-tes não quer dizer nada. Se você

tem um bom estudo, não precisa de condicionantes. E também, se você tem muita condicionante, é uma obra com problema”, alerta.

Dom Erwin também critica a precariedade dos estudos do Iba-ma. “As condicionantes falam que ainda tem que se estudar a quali-dade da água. Ora, se isso ainda tem que ser estudado, por que cargas d’água se publica então es-sa licença prévia para o leilão, já que ainda não foi sufi cientemen-te estudado?”, questiona.

A resposta, para o advogado do ISA, está nos interesses envolvi-

dos na construção da usina, que atropelaram as demais preocupa-ções. “Tinha um calendário polí-tico para emitir o licenciamento, e foi ele que prevaleceu”, conclui.

AcirramentoA liberação da licença prévia

pode ainda agravar os tensiona-mentos na região. O alerta é do coordenador-geral da Coordena-ção das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Marcos Apurinã.

Ele lembra que, em carta, os povos indígenas já solicitaram ao governo a paralisação do licen-ciamento e anunciaram que estão dispostos a entrar em confronto com os brancos caso seja instala-da a hidrelétrica Belo Monte.

“As comunidades já deram seu recado”, afi rma Apurinã, que res-ponsabiliza o poder público por possíveis confl itos. “O primeiro tijolo construído será derrubado, e o governo será responsável pelo que acontecer lá”, sentencia.

Governo atropela diálogopara leiloar Belo MonteENERGIA De olho nas eleições, poder público ignora riscos ambientais, estudos e debates

Lúcio Flávio Pinto

TALVEZ A projetada hidrelétri-ca de Belo Monte, no rio Xin-gu, se torne única na história da energia em todo mundo: o custo da transmissão irá su-perar o da geração. Jorge Pal-meira, presidente da Eletronor-te, diz que a obra da usina sai-rá por valor “superior” (não diz em quanto) a R$ 6 bilhões. Já a linha de transmissão custa-rá R$ 7 bilhões. Em geral, a hi-drelétrica é muito mais cara do que a sua linha. Por que a dife-rença?

Belo Monte foi concebida pa-ra gerar energia para consumi-dores que estão a grande dis-tância, e não para atender de-manda local. Suas linhas de transmissão poderão chegar a 3 mil quilômetros de extensão pa-ra que atinja os mercados mais eletrointensivos do país. Como o pacote completo do projeto, superando R$ 13 bilhões, difi -cilmente atrairia interessados e ainda exporia o seu custo a crí-ticas, foi dividido em duas par-tes e assim será licitada.

Como se trata de um proje-to colonial, de transferência de energia bruta para trans-formação em outro local, o que acontecerá é que essa linha de transmissão será quase só de mão única. No período úmido, quando chover bastante no vale

do rio Xingu, ela remeterá pa-ra o sul uma enorme quantida-de de energia, que a Eletronor-te continua a dizer que chegará a 11 mil megawatts (um terço a mais do que a potência máxima de Tucuruí).

No período seco, quando não houver água sufi ciente se-quer para movimentar uma das 20 máquinas da casa de força da usina, não virá por esse li-nhão a energia do sul, que es-tará em período hidrológico fa-vorável, através do sistema in-tegrado nacional. Por quê? Por-que não haverá demanda signi-fi cativa em torno de Belo Mon-te – típico projeto de enclave e não de desenvolvimento – para absorver a carga justifi cável pa-ra transferência em alta tensão por essa distância.

Se o que a Eletronorte diz for verdadeiro, mesmo em certos momentos do verão no Xingu, quando poderá estar gerando

de 800 a mil MW, Belo Mon-te continuará a ser um sangra-douro de energia do Pará se não surgir empreendimentos produtivos associados à ofer-ta abundante de energia. Por enquanto, essa relação não foi estabelecida. O que existe são conjecturas e especulações. Ou, quando muito, intenções não consolidadas.

Se Belo Monte sair, o Pará se tornará o maior exportador de energia bruta do Brasil (é o 3º no momento). Talvez do mun-do. Não é um título que nos honre, muito pelo contrário; estará mandando para outros lugares um dos principais in-sumos do desenvolvimento pa-ra se subdesenvolver cada vez mais. (Artigo originalmente publicado no Jornal Pessoal, de Belém-PA)

Lúcio Flávio Pinto é jornalista e sociólogo.

“O presidente Lula me prometeu, em 22 de julho [de 2009], que não ia empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja e que o diálogo teria que continuar. Infelizmente não houve diálogo, de jeito nenhum”

Usina colonial

Marcello Casal Jr/ABr

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cultura

MÚSICA

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Ligia Ximenesde São Paulo

ENTRE OS mais jovens, tal-vez a morte de Jerome Da-vid Salinger tenha passado despercebida. Afi nal, para os adolescentes que consomem autoajuda acreditando que há fórmula para a felicidade, são ultrapassadas as inquie-tudes do escritor estaduni-dense que em 1951 pintou o retrato da juventude no cená-rio pós Segunda Guerra Mun-dial, ao retratar um dia na vi-da de Holden Caulfi eld.

Protagonista do aclama-do romance O apanhador no campo de centeio, Caulfi eld é um garoto de 17 anos, destes articulados e irônicos que ho-je são comuns em vários dos seriados norte-americanos. Ele vive o sonho americano – nasceu em família rica, com dinheiro para matriculá-lo no Pencey, um desses tradicio-nais colégios preparatórios. Só que, diferente dos meni-nos dos seriados, ele não es-tá contente com nada.

Expulso do colégio depois de ser reprovado em quatro matérias, o anti-herói de Sa-linger vaga por uma Nova York gelada, às vésperas do Natal, questionando a hipo-crisia e os valores do mun-do adulto. É um desses meni-nos que não se encaixam, um pouco como o velho Salinger, que, um ano após a publica-ção de “O apanhador”, se re-colhe do burburinho na bucó-lica Cornish, em New Hamp-shire.

A outra escolaComo Caulfi eld, Salinger

também estudou em colégios nos quais se prepara a elite norte-americana. Também, como sua personagem, Salin-ger foi expulso. Matriculou-se na academia militar de Val-ley Forge, na Pensilvânia, for-mando-se aos 18 anos. Depois, viveu alguns meses na Europa, tentando aprender o ofício do pai, um comerciante de arti-gos de luxo de Nova York. De volta, matriculou-se num cur-so noturno de literatura e foi lá que descobriu seu talento.

Apesar disso, houve um epi-sódio mais determinante pa-ra formar o Salinger que co-nhecemos do que essas au-las de literatura. Aconteceu quando o Japão atacou a ba-se norte-americana de Pearl Harbour, determinando a en-trada dos Estados Unidos na Segunda Grande Guerra. Em 1942, Salinger passou a ser-vir ao exército, e, em março de 1944, sua unidade foi con-vocada a se preparar para a invasão da Normandia. En-quanto esperava a ordem pa-

ra o ataque, escreveu seis ca-pítulos de um romance que ti-nha uma personagem muito parecida com o próprio Salin-ger adolescente.

Para o crítico literário Paul Fussell, é dessas experiências que vêm a ironia e o completo desprezo de Holden Caulfi eld pelas coisas que o cercam. So-bre a guerra, aliás, diz o me-nino em determinada passa-gem de “O apanhador”: “Ju-ro que, se houver outra guer-ra, é melhor me pegarem logo e me botarem na frente de um

Aldo Gamada Redação

FOI EM 1970 que Paul Mc-Cartney anunciou o fi m dos Beatles, que o Brasil ganhou o tricampeonato mundial de futebol, que o Concorde fez o primeiro voo supersônico e que estreou a comédia Be-tão Ronca Ferro, de Mazzaro-pi. Também foi o ano em que Roberto Carlos deu adeus à Jovem Guarda e que Tim Maia lançou seu primeiro ál-bum. Tudo sob o olhar atento da ditadura civil-militar.

Alguns milhões em açãoEmílio Garrastazu Médi-

ci chegou ao poder em 1969 prometendo restabelecer o regime democrático, mas acabou sendo responsável pelo período de maior repres-são na história política do pa-ís. Era o “milagre brasileiro” em ação, época de grande de-senvolvimento econômico que, paradoxalmente, resul-tou no aumento da concen-tração de renda.

A propaganda do regime teve a seu lado a conquista da Copa do Mundo de 1970 no México, gerando marchi-nhas ufanistas e a ideia de que o Brasil seria uma potên-cia mundial.

Mas Tim Maia e Roberto Carlos tinham outras preocu-pações. O primeiro buscava estabelecer-se no cenário mu-sical e o segundo queria des-vencilhar-se defi nitivamente

da imagem de ídolo das tardes de domingo. E a música “soul” estadunidense seria o instru-mento utilizado por ambos.

Da Tijuca para o mundoTim e Roberto eram velhos

conhecidos da Tijuca, su-búrbio carioca, onde foram companheiros no conjunto Os Sputniks, em 1957. Mas o grupo durou pouco, se dis-solvendo após uma briga en-tre os dois.

Em 1959, Tim embarca pa-ra os Estados Unidos, onde aprende o idioma e se envol-ve com a música negra local. Fica no país até 1963, quan-do é preso por porte de dro-gas (maconha) e deportado. De volta ao Brasil, encontra os amigos desfrutando o su-cesso da Jovem Guarda.

Tim consegue gravar du-as canções de sua autoria em 1968, sem maiores repercus-sões, mas, no ano seguinte, outro compacto com a mú-sica “These are the songs” atraiu atenção sufi ciente (foi regravada por Elis Regina) para garantir o lançamento de um LP.

Roberto vivia um momen-to bem distinto. Após algu-mas tentativas frustradas – incluindo o LP Louco por você, de 1961, e que ele pró-prio impede o relançamento –, grava “Splish, splash” em 1962, dando início a uma sé-rie de sucessos sob o guarda-chuva da Jovem Guarda que, em 1968, já dava sinais de cansaço.

Mas agora resolvi falarA paternidade do soul bra-

sileiro pode até gerar contro-vérsia, mas ninguém contes-ta que Tim Maia é o principal representante do gênero. Para muitos, ele seria até responsá-vel pela criação de um novo ti-po de música ao misturar o es-tilo estadunidense com ritmos tradicionais brasileiros. Po-lêmicas à parte, anos depois da dissolução dos Sputniks, os caminhos de Tim e Rober-to voltam a se cruzar.

Em O Inimitável (1968), Roberto já se mostrava adep-to desse tipo de música, in-cluindo a batida e arranjos de metais em canções como “Se você pensa” e “Não há di-nheiro que pague”. Mas é no seguinte, no álbum Roberto Carlos, que o gênero é abra-çado sem restrições em mú-sicas como “As curvas da es-trada de Santos” e “Não vou fi car” (esta última de autoria de Tim Maia).

O primeiro LP de Tim, lan-çado em 1970, trouxe o suces-so que ele tanto aguardava. Bem recebido pela crítica e pelo público, foi um dos mais bem vendidos daquele ano, estabelecendo ainda alguns clássicos do cancioneiro po-

pular do país, como da “Cor do mar” e “Primavera”.

Números da indústriaO fi nal da década de 1960,

no Brasil, também fi cou mar-cado pelo desenvolvimento da indústria fonográfi ca. Em 1966, segundo dados da As-sociação Brasileira de Produ-tores de Disco (ABPD), eram vendidos 5,5 milhões de ál-buns no país, número que salta para 10,6 milhões em 1970, um aumento de quase 100% em cinco anos.

A consolidação desses artis-tas, é provável, teria sido be-nefi ciada por essas condições uma vez que, em 1980, as ven-das chegam a 46,9 milhões.

Ame-o ou deixe-o!Mas Tim e Roberto tiveram

forte concorrência. Escrita por Dom, da dupla Dom e Ravel, a marchinha “Eu te amo, meu” Brasil foi gravada pelo grupo Os Incríveis e lançada em um compacto em outubro de 1970 – e mais tarde incluída no LP lançado em dezembro daquele ano, que trazia ainda “Adeus, amigo vagabundo”, homena-gem ao guitarrista estaduni-dense Jimi Hendrix, morto pouco antes, em setembro.

Executada à exaustão na época, dado o caráter ufanis-ta que se adequava aos inte-resses da ditadura, a compo-sição é até hoje polêmica. Para alguns, uma peça publicitária encomendada pelos golpistas. Para o autor, apenas uma can-ção que traduzia “o clima de entusiasmo do povo, resultan-te do grande sucesso do fute-bol brasileiro” e que preten-dia “despertar sentimentos de afeto pelo país, a graça e o ca-rinho da mulher brasileira, e a vontade que se tem sempre de semear o amor entre nos-so povo”.

Oportunista ou ingênua, a música foi um dos maiores su-cessos de Os Incríveis, que vi-ram ali um fi lão a ser explora-do. Em 1971, o Hino Nacio-nal Brasileiro foi o lado A do compacto que, no lado B, tra-zia o Hino da Independên-cia do Brasil. Em 1976 seria a vez do “clássico” “Este é um país que vai pra frente” (...De um povo unido, de grande va-lor/ É um país que canta, tra-balha e se agiganta/ É o Brasil de nosso amor...) e de “Este é o meu Brasil” (ambas de Hei-tor Carillo). No ano seguinte, outro compacto trazia “O Bra-sil é feito por nós”, do mesmo compositor.

Trocando em miúdosAinda em 1970, Roberto fa-

ria uma bem-sucedida tem-porada na casa de espetácu-los Canecão, no Rio de Janei-ro. O show Roberto Carlos a 200 km por hora consolidaria

seu nome como grande intér-prete e o afastaria de vez daJovem Guarda.

O soul ainda seria impor-tante nos discos seguintes, como “Todos estão surdos” (1971) e “Não adianta nada” (1973), mas perderia espaço à medida em que Roberto se es-tabelecia como um intérprete de canções românticas. E aí o caminho dos dois se separam de vez.

Tim Maia continuou inves-tindo no gênero, lançando clássicos como “Gostava tan-to de você”, “Réu confesso” e “Sossego”. Roberto começou a incluir músicas religiosas em seus discos. Tim entrou pa-ra uma seita procurando dis-cos voadores. Roberto virou uma estrela internacional de difícil acesso. Tim deixava as crianças do bairro brincar em sua piscina. Roberto é uma das principais estrelas de uma multinacional. Tim Maia foi um dos primeiros artistas na-cionais a possuir seu próprio selo (Seroma). Roberto sofre de TOC (Transtorno Obsessi-vo-Compulsivo). Tim era usu-ário de inúmeras drogas “re-creativas”.

E, se em dezembro do ano em que os Beatles chegaramao fi m, John Lenon dizia que o sonho tinha acabado, paradois ex-membros dos Sputni-ks ele apenas começava. Pa-ra Tim, pelo menos, até 1998,quando, aos 55 anos, mor-reu após internação hospita-lar devido a uma infecção ge-neralizada.

Muito além do campo de centeioLITERATURA O retrato da desilusão juvenil no pós-guerra marcou a obra do escritor estadunidense J.D. Salinger; mas quem foi esse tipo recluso e misterioso?

pelotão de fuzilamento. Juro que não ia protestar”.

Para além de “O apanha-dor”, Salinger se consagraria com uma narrativa direta e fustigante e três outros títulos: Nove estórias (1953), Franny e Zooey (1961) e Carpinteiros, levantem bem alto a cumeei-ra & Seymour, uma introdu-ção (1963), nos quais são con-tados pedacinhos da história da família Glass, outra célebre criação salingeriana.

Obras inéditas?Ao longo dos três títulos de

Salinger, conhecemos os sete irmãos: Franny e Zooey, os gêmeos Walt e Walter, Boo Boo, Buddy e Seymour, este, o primogênito que na juven-tude lutou a Segunda Guerra Mundial e depois se tornou professor na Universidade de Columbia. É ele quem

protagoniza o pungente con-to “Um dia ideal para os pei-xe-banana” e também a per-sonagem principal de Ha-pworth, 16 (1924), o únicotítulo de Salinger ainda nãopublicado.

Mas seria “Hapworth” úni-ca criação de Salinger aindainédita para a maior parte denós? A dúvida sempre pairouno ar e, quando se anuncioua morte do autor, começou aespeculação em torno de umbaú da casa em Cornish [on-de passou seus últimos dias]contendo manuscritos inédi-tos. Quem melhor dá a pis-ta para entender essas déca-das de silenciosa reclusão é opróprio autor, em O apanha-dor no campo de centeio: “Agente nunca devia contar na-da a ninguém. Mal acaba decontar, a gente começa a sen-tir saudade de todo mundo”.

A dúvida sempre pairou no ar e, quando se anunciou a morte do autor, começou a especulação em torno de um baú da casa em Cornish [onde passou seus últimos dias] contendo manuscritos inéditos

O síndico, o romântico e o general; ou 40 anos esta noite

Executada à exaustão na época, dado o caráter ufanista que se adequava aos interesses da ditadura, a composição é até hoje polêmica

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Canal de TV tenta colar no governo a imagem de autoritário e repressor

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américa latina

Estudantes protestam contra retirada do sinal da emissora RCTV

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Manuela Sisade Caracas

AO DAR INÍCIO ao 11º ano à frente da presidência da Ve-nezuela, o governo de Hugo Chávez mais uma vez é colo-cado à prova. Crise energética e de abastecimento de água, aliados à saída do ar do canal privado RCTV, têm sido o pi-vô de protestos da oposição.

No entanto, de acordo com analistas, a motivação dos ad-versários do governo vai além da defesa do acesso às neces-sidades básicas da população ou do livre pensamento: os partidos opositores, aprovei-tando a falta de investimen-tos em tempo hábil para evi-tar apagões e a escassez de água até as eleições legislati-vas de setembro, veem nestas a oportunidade de retornar à atividade política institucio-nal e reverter, assim, a cor-relação de forças até agora fa-vorável ao governo.

Para alcançar esse objetivo, os partidos opositores têm utilizado o movimento estu-dantil – que voltou à cena na última semana – como “pon-ta-de-lança” para esquentar as ruas e canalizar, favora-velmente, o desgaste político chavista.

Aposta no desgaste“A demanda dos estudan-

tes, em termos gerais, é a de-fesa da liberdade de expres-são e de imprensa, mas, fun-damentalmente, ao avaliar as declarações desse grupo, há uma clara relação entre a de-

fesa da RCTV e a batalha elei-toral”, afi rma ao Brasil de Fato Javier Biardeau, ana-lista político e professor de sociologia da Universidade Central da Venezuela.

“A estratégia será eviden-ciar os erros relacionados a crises parciais e setoriais e aplicar o desgaste defi nitivo com o objetivo de conquistar espaço na Assembleia Nacio-nal e forçar a saída de Chávez do governo”, acrescenta.

As manifestações estudan-tis eclodiram no dia 26 de janeiro, logo após a suspen-são das transmissões do ca-nal privado RCTV e de ou-tros cinco canais de transmis-

são por TV a cabo, por desaca-to a uma nova legislação (leia matéria nesta página sobre o pivô da crise com a RC-TV). Três dias depois de tira-das do ar, três dessas emisso-ras compareceram à Comis-são Nacional de Telecomuni-cações (Conatel), apresenta-ram a grade de programação comprovando que são canais internacionais – ou seja, não são obrigadas a cumprir a no-va regra – e, logo depois, vol-taram ao ar.

Agenda eleitoral Agravando a tensão inter-

na, a disputa com as televiso-ras ocorreu ao mesmo tempo

De olho nas eleições legislativas, guerra midiática recobra forçaVENEZUELA Oposição se aproveita de aspectos relacionados a crises setoriais para desgastar ao máximo governo Chávez até setembro, quando ocorrerá o pleito para o Parlamento

de Caracas (Venezuela)

A controvérsia que desatou a nova crise entre governo e opo-sição está na divergência em re-lação à defi nição, ou não, do ca-ráter nacional da RCTV. Segun-do a Conatel, 94% da programa-ção da RCTV é de conteúdo ve-nezuelano, elemento que quali-fi ca a emissora como nacional.

De acordo com uma nova nor-mativa para radiodifusão, pro-mulgada em 23 de dezembro, os canais que são qualifi cados como nacionais devem obede-cer à lei interna, que determi-na, entre outras regras, a trans-missão de anúncios do gover-no, a obrigatoriedade de classi-fi cação etária da programação e

Pivô da disputa entre RCTV e governo é a restrição à publicidadeNova legislação para a radiodifusão determina, entre outras coisas, fi m de comerciais entre dois blocos do mesmo programa

Governo tenta diminuir custo político da crise energética

que o vice-presidente, Ramón Carrizález, militar conserva-dor do núcleo duro do gover-no, e sua esposa, Yubirí Or-tega, renunciaram, alegando “motivos pessoais”. Tal deci-são alimentou a ideia intensi-fi cada pela oposição de que os dias de Chávez no governo es-tariam contados.

“O impacto internacional da crise interna é parte da acumulação de informação negativa no campo midiáti-co. A guerra política e virtu-al agora recobram força e a imagem que querem proje-tar do Chávez é a do tirano que está sofrendo os últimos momentos no poder”, avalia Biardeau.

Durante os protestos, dois estudantes vinculados ao chavismo foram assassina-dos em enfrentamentos entre manifestantes ofi cialistas e opositores no Estado de Mé-rida. O governo responsabi-lizou a oposição. A imprensa local minimizou o fato de que os jovens assassinados eram simpatizantes do governo.

A imprensa internacional ig-norou o fato, convertendo os jovens chavistas em oposito-res que teriam sido mortos em repressão governamental.

À espera da repressão“Estão buscando mortos

para poder dizer ao mundo que aqui há violação dos di-reitos humanos, o que não é correto”, afi rma ao Brasil de Fato o vice-presidente do Parlamento, Dario Vivas, que acrescenta: “Tudo isso de olho na Assembleia. Mas nós temos povo organizado e o mostraremos nas ruas”.

Nos últimos dias, as mobi-lizações estudantis, que che-garam a reunir 3 mil pesso-as, vêm perdendo força. No entanto, continuam denun-ciando a inefi ciência gover-namental no manejo da ges-tão pública, além das queixas à criminalização do protesto.

“No fi m-de-semana, o go-verno fez um chamado à guerra contra o movimento estudantil, do povo contra o povo. Querem que sejamos

atacados pelo povo, mas nóssomos o povo. Não entrare-mos na agenda da violência”,afi rmou Roderick Navarro, dirigente estudantil opositor,em entrevista coletiva.

Na avaliação de Javier Biar-deau, as manifestações estu-dantis – que, a seu ver, são fi -nanciadas por agências esta-dunidenses como a USAID ea NED, “que apoiam mobili-zações antigovernamentaisem países que são inimigosofi ciais dos Estados Unidos” – devem durar até as eleiçõesde setembro. “As manifesta-ções buscam uma repressãodesmedida do governo, er-ros como detenções e repres-são, para depois conseguiremuma reação da comunidadeinternacional”.

Outra realidadeA Comissão Interamericana

de Direitos Humanos já ma-nifestou “preocupação” com os atos de violência ocorridos durante os protestos e pediu ao governo que investigue o uso “indevido da força” poli-cial durante as manifestações.

Diferentemente de oportu-nidades anteriores, quandoa polarização entre chavis-tas e antichavistas favoreciao governo, a realidade agoraé outra. “A oposição tem umavantagem agora porque o go-verno está na defensiva. Ain-da não conseguiu identifi car quais são suas debilidades enão tem capacidade de cor-reção política por apresentar uma posição exageradamen-te arrogante frente ao adver-sário”, analisa Biardeau.

No ato político de come-moração do 11º aniversáriode seu governo, no dia 2 defevereiro, Chávez rebateu osrumores de que a crise inter-na desembocaria em um le-vantamento popular capaz dederrocá-lo.

“Nestes dias, dirigentes e centros de estudos estão di-zendo que a Venezuela está à beira de um Caracazo [re-belião popular de 1989], por isso eles estão como estão. Tem gente que de tanto di-zer mentiras termina sendo vítima delas e atua em conse-quência [disso]”, disse Chá-vez, acrescentando: “As re-beliões na Venezuela não são feitas pelos ricos, são feitas pelos pobres”.

de Caracas (Venezuela)

Em uma tentativa de diminuir o custo políti-co da crise energética, o governo da Venezue-la decidiu poupar as residências de Caracas doprograma de racionamento de eletricidade emvigor em todo o país.

O novo plano determina que os “grandesconsumidores” da capital reduzam o consumoem 20%. Segundo a agência estatal ABN, serãopoupados do racionamento “pequenos comér-cios, o setor residencial e setores de alta sensi-bilidade social”. A data para implementação damedida ainda não foi divulgada.

Essa é a terceira tentativa do governo de es-tabelecer um programa de economia de eletri-cidade na cidade. O presidente venezuelano,Hugo Chávez, já voltou atrás em medidas co-mo cortes de luz de até quatro horas em diasintercalados e mudança no horário de funcio-namento de shoppings.

A Venezuela sofre com os efeitos de uma se-vera seca que levou à redução dos níveis daprincipal represa que abastece a usina hidre-létrica de Guri, responsável por quase a totali-dade da energia utilizada no país. No país pe-troleiro, 70% da energia é proveniente de hi-drelétricas.

Recentemente, em uma tentativa de dimi-nuir a crise, o governo anunciou o investimen-to de 1 bilhão de dólares no setor, além de terrecorrido à ajuda de Brasil e Cuba para tentaramenizar a crise.

O ministro cubano de Tecnologia, RamiroValdés, encabeça a comissão técnica venezue-lana para paliar a crise. “Eles [os cubanos] ti-veram [problema elétrico] muito grave em ou-tras épocas (...) está conosco, à frente dessa co-missão, um dos heróis da Revolução Cubana,o comandante Ramiro Valdés”, anunciou Chá-vez. (MS)

“A estratégia será evidenciar os erros relacionados a crises parciais e setoriais e aplicar o desgaste defi nitivo com o objetivo de conquistar espaço na Assembleia Nacional e forçar a saída de Chávez do governo”

restrições à transmissão de pu-blicidade.

Esse último ponto, no entan-to, é o central na disputa entre RCTV e governo. Segundo a no-va legislação, os canais de TV nacionais transmitidos por ca-bo não podem difundir publici-dade entre os blocos da progra-mação. Somente ao fi nal e iní-cio de cada programa é permiti-da a difusão de comerciais. Essa restrição, segundo o diretor do canal, Marcel Granier, o torna-ria “economicamente inviável”.

São considerados produto-res nacionais os canais de TV que contenham 70% ou mais de produção audiovisual venezue-lana, ou seja, a realizada com capital, pessoal técnico, artísti-co e locações do país.

“Plano político”A RCTV, por sua vez, argu-

menta que a avaliação do conte-údo de sua programação foi fei-ta antes do dia 13 de janeiro, da-ta que, de acordo com a direção da emissora, o canal reduziu a programação nacional a 30%, elemento que o defi niria como internacional.

A Conatel diz que, se isso for verdade, a RCTV deve apresen-tar a grade de sua programa-ção à instituição para, em segui-

da, poder voltar ao ar. A emis-sora, que espera a defi nição do Supremo Tribunal de Justiça, afi rma que não negociará com o governo.

No entanto, na opinião de Ar-lenin Aguillón, professor de Se-miótica da Universidade Boli-variana da Venezuela, “não es-tão protestando por um aspec-to técnico ou legal. A oposição está utilizando um fato noticio-so para levá-lo ao plano político, ao acusar o governo de repressor e autoritário”, afi rma ao Brasil de Fato.

A seu ver, se o caso RCTV é avaliado essencialmente pelo aspecto legal, a polêmica per-de sentido. “Se vamos ao plano legal, o governo tem razão. Te-rá de assumir um custo político, sem dúvida, mas como em qual-quer país do mundo, a lei deve ser respeitada”, avalia.

A disputa entre a RCTV e o governo se arrasta desde 2007, quando o Executivo decidiu não renovar a concessão da emis-sora. Desde então, o canal dei-xou de ser transmitido no sinal aberto. (MS)

Santiago Armas (Presidência do Equador)

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Lorena Zelaya, da Frente Nacional de Resistência Popular de Honduras

de 4 a 10 de fevereiro de 201010

américa latina

Manifestantes fazem marcha pró-Zelaya, no centro de Tegucigalpa, capital hondurenha

Wilson Dias/ABr

Leandro Uchoas,Otávio Nagoya,

Julio Delmanto,Gabriela Moncau eBárbara Mengardo

de Porto Alegre (RS)

NO DIA 27 de janeiro, o gol-pe de Estado em Honduras, cometido em junho de 2009, deu novo passo. Porfi rio “Pe-pe” Lobo, vencedor das elei-ções (boicotada por movi-mentos sociais) realizadas em novembro de 2009, as-sumiu o comando do país em substituição ao ditador Ro-berto Micheletti. Por sua vez, o presidente deposto Manuel Zelaya deixou o país.

Líder da Frente Nacional de Resistência Popular, Lo-rena Zelaya (que não possui nenhum parentesco com o presidente deposto) deu en-trevista ao Brasil de Fa-to durante o Fórum Social Mundial (FSM) 10 anos, em Porto Alegre (RS). Lúcida e destemida, ela afi rma que não vai haver negociação com o governo “eleito” do país e acusa os golpistas de tortura e boicote econômico.

Brasil de Fato – Queríamos conhecer um pouco da história desse movimento.Lorena Zelaya – É um mo-vimento composto por tra-balhadores e trabalhadoras, sindicalistas, colégios magis-teriais, grupos de jovens. Um espaço com muitas organiza-ções, que surge da luta contra os tratados de livre comércio. Isso é importante, porque o que aconteceu agora em Honduras tem a ver com es-sa resistência. Fomos contra as privatizações, pelos direi-tos trabalhistas etc.

Mas em que ano surge?Em 2000. Já havia outros

espaços em Honduras desde a década de 1980. Foi muito forte a mobilização. Muitos estudantes morreram. Até hoje há desaparecidos. E por que isso é importante? O atu-al assessor de Michelleti, por exemplo, é quem fez desapa-recer, torturou e matou pes-soas nos anos de 1980. Cha-ma-se Billy Joya Amendola e é o assessor de Segurança. O que acontece em Honduras é então uma grande radiogra-fi a dessas conexões. Não so-mente do golpe, mas todas as conexões das oligarquias, dos meios de comunicação.

Quando o golpe aconte-ceu, o país inteiro estava se preparando para sair a vo-

tar. Iríamos todos às urnas. E, às seis da manhã, recebe-mos a notícia do golpe de Es-tado. Ninguém sabia se era sério ou brincadeira. Antes disso, já haviam dito ao pre-sidente Zelaya que não po-deria haver consulta de ne-nhum tipo, apesar de termos uma lei de participação cida-dã e de constitucionalmente podermos. Ameaçaram des-tituir o presidente. Quando veio o golpe, todo mundo co-meçou a chegar à casa presi-dencial. Vinha gente de todo lado. Então, criamos a Frente Nacional contra o Golpe de Estado.

O que foi decisivo para que se desse o golpe?

Zelaya começou a manter relações com o movimento popular. Outra coisa que fez foi aderir à Alba [Alternati-va Bolivariana para as Amé-ricas, aliança que reúne Anti-gua e Barbuda, Bolívia, Cuba, Dominica, Equador, Nicará-gua, São Vicente e Granadi-nas e Venezuela] e à Petroca-ribe [aliança petrolífera entre a Venezuela e países da Amé-rica Central e do Caribe]. Eram ações muito fortes, que foram deixando-o cada vez mais só. A única alternati-va que tinha era o movimen-to popular. Então, quando a corte diz que ele não podia fazer o referendo, ele leva as urnas a uma base militar. Su-biu em um ônibus para tra-zer as urnas. Imagine o pre-sidente da República na por-ta de um ônibus para trazer as urnas. Por isso, as pesso-as acreditavam que poderia haver mudanças. Ele apro-vou um salário mínimo que nunca se pensou ser possível. Mais de 50% de aumento. De 3 mil a 5,5 mil lempiras [cer-ca de R$ 546]. O aumento historicamente sempre foi de 8%, no máximo 10%. Então, por acreditar nele, a popula-ção saiu às ruas.

Como foi o processo da convocação das eleições?

Um ano antes do processo eleitoral, Zelaya já fez a con-vocatória. O Tribunal Supe-rior Eleitoral é composto pe-los mesmos partidos tradi-cionais golpistas. São autôno-mos, mas conservadores. Ele convocou as eleições tendo ainda um tribunal suposta-mente novo. Como não esta-mos presos a nenhum parti-do, candidatamos um compa-nheiro trabalhador. Era pre-

Movimento social hondurenho muda estratégiaENTREVISTA À frente da resistência, Lorena Zelaya defende foco na convocação da Assembleia Constituinte e boicote aos golpistas

sidente do Sindicato da In-dústria de Bebidas. Para isso, nos pediam 40 mil assinatu-ras, e coletamos 60 mil. Não nos podiam dizer que não. Mas, quando entregamos a documentação, nos pediram um mês e meio. Antes dis-so, acontece o golpe. Duran-te a mobilização pós-golpe, dizem a Carlos [H. Reyes], nosso candidato, que ele po-dia concorrer. Tudo isso pa-ra dar legitimidade ao golpe. Mas a candidatura indepen-dente renunciou às eleições, e a Frente deu indicativo pa-ra não votar. As pessoas não foram. Mas, como o tribunal está nas mãos dos mesmos golpistas, dizem que foram as eleições mais votadas da his-tória. Milhões de pessoas nas ruas dizem que não foram votar. Sabemos que, mesmo que ninguém vá votar, se há um voto, eles ganharam. Mas queremos mostrar à comu-nidade internacional que a maioria da população estava contra o golpe.

Qual a posição da Frente perante o resultado das eleições?

A Frente não reconhece o governo. E a tarefa que tem agora é evidenciar que é um continuísmo do golpe. Há or-ganizações que são combati-das pelo governo, porque não se renderam. Nós não va-mos fazer nenhuma negocia-ção com Porfírio Lobo, a não ser que o que esteja colocado seja a Assembleia Nacional Constituinte.

O que você pensa da participação do governo brasileiro?

Tem sido importante para nós. O presidente viveu em terras brasileiras por mais de três meses, na Embaixada. Foi determinante para que não o tivessem retirado, ape-sar de terem tentado de mil formas – com sons, sonegan-do água, lançando bombas de gás lacrimogêneo, lançando químicos pelo ar. Se não fos-se pelo apoio, acredito que ele

estaria morto. Então, tem si-do muito importante. Recen-temente li que o Brasil não iria reconhecer o governo de Porfírio Lobo. O que pedimos à comunidade internacional é isso. Mas com a saída de Ze-laya do país, lamentavelmen-te vai haver muita mudança nas relações internacionais.

E quanto à participação do governo dos Estados Unidos? O que você pensa?

Ao longo do golpe, houve decisiva participação dos Es-tados Unidos. Retiram o pre-sidente de sua casa, e o levam a uma base militar estadu-nidense em Honduras. E, a partir dali, levam-no para a Costa Rica. Além disso, an-tes do golpe, chegou a Hon-duras John Negroponte, um dos maiores torturadores da história, inclusive em Hon-duras, onde foi embaixador. Embora em outros momen-tos os Estados Unidos pudes-sem retirar facilmente o pre-sidente, agora não podiam. Isso justifi ca esse discurso dúbio. Sustentaram econô-mica, técnica, tática e mili-tarmente o golpe. Portanto, são os golpistas intelectuais, os executores.

Vocês sofreram muita repressão?

As primeiras mobilizações, no primeiro dia, foram bran-das. Achavam que iriam li-quidar rapidamente, em um país onde há muitos golpes de Estado. No segundo dia, quando viram que a resis-tência seria grande, deu-se o primeiro ato de repressão do Exército. Repreenderam nas ruas, com bombas lacrimo-gêneas, paus, pedras. Muitos foram feridos. E, desse dia em diante, todas as mobiliza-ções são acompanhadas pelo Exército. Em muitos momen-tos houve repressão, embora as mobilizações fossem sem-pre pacífi cas. Desde os anos 80 eu não via tanta bomba. Caíam como chuva.

Você sofreu pessoalmente alguma repressão?

A repressão está menos in-tensa. O Exército está prepa-rado para qualquer reação. Mortes acontecem todos os dias. Então, temos muitos companheiros que têm saí-do do país. E temos que pro-curar o que fazer com eles. Temos que contar com a so-lidariedade de todo o mun-do: guatemaltecos, salvado-renhos, nicaraguenhos. Eu pessoalmente não sofri nada. Sobretudo entre os jovens, há muitos que sofreram fra-turas. É complicado, porque o Estado não cumpre o pa-pel de cuidar da saúde dessas pessoas, então nós temos que nos virar.

Qual foi o papel da mídia na manutenção da hegemonia conservadora em Honduras?

Esta é a grande chave pa-ra nós. Os meios de comu-nicação são os maiores gol-pistas. Há inúmeras ligações entre eles. O golpe foi anun-ciado de uma forma incrível. “Ocorreu um golpe de Esta-do em Honduras. Voltemos a nossa programação normal”. Não reconhecem que existem mortos, que existe resistên-cia. Referem-se a Michelet-ti como o presidente, e Ze-laya é o que quis desrespeitar a Constituição. Há uma rádio popular que fez um trabalho muito bom e foi fechada. Há a rádio do Congresso, tam-bém fechada. Na televisão, só o canal 36 transmite alguma coisa. O mesmo ocorre entre os jornais.

Qual a sua avaliação da situação atual de Honduras?

Há algum tempo, o povo suspendeu as mobilizações diárias. Era muito compli-cado manter, depois de 190 dias. A última foi agora em janeiro. Muitíssima gente. Pessoas muito felizes de vol-tar a se encontrar. Nossa me-ta é a Assembleia Nacional Constituinte. Não vai haver tanta mobilização quanto no início, mas as pessoas não es-tão quietas. E não apenas em Tegucigalpa, mas em todo o país, em todas as comunida-des, há resistência.

Qual o papel de Zelaya agora?

É um homem que chegou à presidência sem pensar que iria fazer tudo isso. Lembro quando ele dizia: veja, ago-ra já entendo o que é livre co-mércio, agora já entendo o que é o neoliberalismo. Por isso, o discurso de Zelaya foi mudando, inclusive nas Na-ções Unidas. As pessoas se perguntavam de onde ele ti-nha tirado aquilo. A princí-pio, pensou apenas que o po-vo hondurenho tinha que vi-ver melhor. Não pensou em princípios de esquerda. De-pois foi aprendendo coisas. Os setores que o apoiaram deixaram-no só. Os empre-sários que estavam com ele, quando veem que ele havia – para eles – enlouquecido, vão deixando-o sozinho. E ele vai se aproximado cada vez mais dos movimentos sociais. Ele está convencido cada vez

mais que o que está aconte-cendo é ótimo. Ele nunca rei-vindicou a reeleição, coisa deque lhe acusaram muito. Rei-vindicava reeleição para osque viriam depois.

Há a possibilidade de Zelaya trocar de partido?

Em Honduras, são cinco ospartidos. O Liberal e o Nacio-nalista são os principais. Oque chamam de alternânciade poder é a troca entre eles.E são a mesma coisa, ou seja,não havia alternância de po-der. Representavam os mes-mos oligarcas, os mesmos ci-clos de poder. Surgiram ou-tros três. A democracia-cris-tã, que nunca cresceu. Os so-cial-democratas, que são gol-pistas também, apesar de te-rem em suas bases um setorque se declarou não-golpista.E há também um partido deesquerda, que nunca cresceu.Estamos começando um no-vo período em que temos quever como atuar, e não acredi-tamos que vai ser por meiode um novo partido.

Existe a possibilidade de migrar para o partido de esquerda que já existe?

O partido de esquerda tem mais ou menos 15 anos, e não cresce. Não é um partido que a cada ano vai tendo mais mi-litantes, mais deputados. E, neste momento, atuamos di-ferente. Porque nós convoca-mos a população a não com-parecer ao processo eleito-ral. E esse partido, o Unifi ca-ção Democrática, participou do processo eleitoral. Eles não renunciaram para não perde-rem o partido. Mas seguem fa-zendo resistência. Não pode-mos dizer que são golpistas.

Como está o país do ponto de vista econômico?

Vou responder em uma pa-lavra: quebrado. Quando sedá o golpe de Estado, e se re-tira toda a cooperação inter-nacional, perdemos muitoinvestimento. E os golpistascomeçam a usar o dinheirode forma questionável. Usa-ram os fundos de pensão dosprofessores, dos funcionáriospúblicos, dos aposentados.Estão descapitalizando o pa-ís. Por isso a preocupação de“Pepe” Lobo restabelecer es-sa relação com a comunidadeinternacional. Porque senãonão sei como vai governar. Opaís está quebrado.

“Recentemente li que o Brasil não iria reconhecer o governo de Porfírio Lobo. O que pedimos à comunidade internacional é isso”

“Sustentaram econômica, técnica, tática e militarmente o golpe. Os Estados Unidos são os golpistas intelectuais, os executores”

“Em muitos momentos houve repressão, embora as mobilizações fossem sempre pacífi cas. Desde os anos 80 eu não via tanta bomba. Caíam como chuva”

“Os meios de comunicação são os maiores golpistas. Há inúmeras ligações entre eles. O golpe foi anunciado de uma forma incrível”

Renato Araújo/ABr

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Ismael Ossane, presidente da Mesa da Assembléia Geral da Unac

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áfrica

Para os agricultores de Marracuene, setor carece de investimentos

Fotos: Ana Amorim

Ana Maria Amorimde Marracuene (Moçambique)

APENAS 30 quilômetros ao norte da capital de Moçam-bique, Maputo, localiza-se o distrito de Marracuene. Ter-ra de antigas batalhas, com rebeliões locais travadas con-tra os portugueses, a cidade e seus arredores vivem um ce-nário escasso de desenvol-vimento e qualidade de vi-da. O perfi l do município, se-gundo relatório realizado pelo Ministério de Administração Estatal, mostra que a popu-lação local vive predominan-temente em palhotas – casas feitas de caniço, pavimenta-das com terra e tetos de pla-cas de zinco e pau. Outro ca-ráter marcante das casas é a falta de acesso à eletricidade e de saneamento básico. O dis-trito ainda carrega 60% de Ín-dice de Incidência da Pobre-za (proporção de pessoas cujo consumo está abaixo da linha da pobreza).

Dentro desse quadro, os camponeses da região tentam fortalecer uma agricultura fa-miliar que assegure sobretudo a soberania alimentar do pa-ís. Tomas Ouana, integrante da União Nacional dos Cam-poneses (Unac), explica que Marracuene pode ter todos os seus problemas escondidos em uma passagem superfi cial pelas suas ruas pavimentadas. “A impressão pode até ser fa-vorável, pode-se até acredi-tar que estamos em uma re-gião desenvolvida, pois vere-mos casas de alvenaria, mas, para nós, é diferenciado. Fal-ta-nos uma vida favorável, com casas de alvenaria e aces-so à luz, mas para isso precisa-mos de investimento, e atual-mente a ajuda é muito difícil”, completa.

Revolução não desejadaOs empecilhos para o inves-

timento na agricultura local estão para além da burocracia para angariar fundos de pro-jetos e da proatividade do go-verno com a causa – a priori-dade elencada não passa pela produção nos moldes que os agricultores propõem. “Se nós não conseguimos abastecer os mercados, é por causa dessa fragilidade de investimentos. O apoio ao setor familiar está aquém do necessário, mesmo sabendo que quem alimenta a cidade de Maputo não são os grandes agricultores, são os camponeses. Os mercados se movem com nossa produção, e já alimentamos até mesmo outra província, como Gaza. Se fôssemos capacitados ma-terialmente, produziríamos ainda mais”, ressalta Ouana. A posição do integrante da Unac faz contraste com a pos-tura governamental. O novo governo, empossado em ja-neiro, realça que a priorida-de estará na agropecuária e em recursos minerais – seria esta a “espinha dorsal” para o desenvolvimento do país, nas palavras do ministro da Ener-gia, Salvador Namburete. Es-

pinha dorsal essa que é comu-mente substituída por outra expressão: “revolução verde”.

A expressão, conhecida dos agricultores, está também es-tampada nas capas de jornais e revistas como uma bonan-ça para o país. Para Ouana, as incertezas do retorno des-sa dita “revolução verde” pa-ra o povo são muitas. “Eu não sei qual será o cenário dos próximos anos, pois o gover-no está a priorizar a ‘revolu-ção verde’. Tememos como ela será implementada, pois não houve consulta sobre a implementação dessa políti-ca. Mas o governo diz que a melhoria do sistema de pro-dução em Moçambique só se-rá atingida com a revolução verde”, comenta.

O presidente da Mesa da Assembleia Geral da Unac, Is-mael Ossane, enfatiza o fra-casso das outras tentativas de implantação da “revolução verde”. “Ele [o presidente de Moçambique, Armando Emí-lio Guebuza] fala sobre a re-volução verde em todo discur-so voltado para a agricultura. Não nos sentimos bem com isto, pois conhecemos as ex-periências da Ásia e América, que desembocaram em uma dependência ao mercado, uso excessivo de produtos quími-cos e exaustão da terra”. Gue-buza, que em outubro de 2009 esteve presente na 5ª Confe-rência da Via Campesina em Maputo, acompanhou os re-latos sobre como a implanta-ção da revolução verde pre-judicou a vida dos campone-

ses e não contribuiu para a se-gurança nem para a soberania alimentar dos países. Osma-ne relembra o posicionamen-to do governo: “O presidente disse que entendia os proble-mas que aconteceram em ou-tros países, mas que a revolu-ção verde era uma forma de ‘mobilização de recursos’. Ele disse que valoriza mais as for-mas de agricultura campone-sa e que fará a revolução ver-de à maneira moçambicana – mas isto quando está conosco, pois, nas outras representa-ções da agricultura, ouvimos que estamos atrasados e que o crescimento pede a revolu-ção verde”.

EsperançaÉ com dança que a comuni-

dade rural de Telmina Perei-ra, uma das áreas de agricul-tura familiar em Marracue-ne, espera a chegada dos re-presentantes da Unac. A ale-gria do momento está nos do-cumentos que reconhecem e, portanto, ofi cializam a asso-ciação local, permitindo as-sim que seja facilitado o aces-so dos camponeses aos pro-jetos e incentivos ao campo. Com as cópias dos documen-tos em mãos, os camponeses cantam, como que aguardan-do as melhorias que essas pá-ginas podem proporcionar para a região.

Entre os agricultores, está Issufo Assani. Assim como os outros, Assani enxerga no tra-balho coletivo uma forma de poder enfrentar as difi culda-des locais na produção. “Além

“Potencializar e capacitar os movimentos camponeses das zonas rurais é uma saída para enfrentar os altos índices de pobreza de Moçambique”

Os árduos passos e entraves da agricultura familiar em MoçambiqueCAMPO Camponeses do distrito de Marracuene cobram apoio do governo, que, por sua vez, aposta suas fi chas na “revolução verde”

dessa coletividade, precisa-mos de investimento, o que está limitado. Quem precisa nos apoiar para, por exemplo, termos tração animal ou má-quinas, é o governo. Antes so-fríamos com a falta de docu-mentos ofi ciais. Estamos re-cebendo agora o estatuto, es-pero que isso nos ajude”, diz.

Ouana enfatiza que o carro-chefe das promessas de Gue-buza, o combate à pobreza, deveria ser pensado de forma a incluir a agricultura fami-liar, incentivando a produção de Marracuene. “O governo tem a linha única de combate à pobreza, que precisa de nos-so trabalho e de nossa produ-

ção. Esse combate tem duas vertentes: nas zonas rurais e na zona urbana. Potenciali-zar e capacitar os movimen-tos camponeses das zonas ru-rais é uma saída para enfren-tar os altos índices de pobreza de Moçambique”, opina.

Ainda nesse cenário, en-contram-se as difi culdadesnaturais. Com as mudan-ças climáticas, o castigo pa-ra o sul de Moçambique es-tá nos extremos: Marracue-ne sofre ora com uma gran-de seca, que impede a estabi-lidade da produção e agudizaa pobreza local, ora com for-tes enchentes, que tambémdeixam os camponeses semcolheita e sem sustento. Es-se retrato faz com que 5% dapopulação local seja conside-rada em situação de vulnera-bilidade alimentar.

Diante de tantas difi culda-des, Assani fala com força ecuidado sobre a macham-ba – expressão que usam pa-ra designar as terras roçadas.“Já tivemos até mesmo ame-aça de perdermos nossa ma-chamba para os latifundi-ários portugueses, que nãoqueriam deixar que traba-lhássemos aqui. Enfrentamosuma grande enchente em2000, quando não tivemosnenhuma ajuda do governoa não ser mudas de bananei-ra. O acesso às ajudas do Es-tado nunca foi facilitado por-que não tínhamos o estatuto.Agora, ao menos, temos essesdocumentos e festejamos, naesperança de que agora pode-remos crescer”.

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internacional

Evento do NPA (Noveau Parti Anticapitaliste) homenageia Daniel Bensaïd

Reprodução

Mariana Santosde São Paulo (SP)

O FILÓSOFO e militante co-munista Daniel Bensaïd mor-reu em janeiro, aos 64 anos, em Paris, lutando, como em maio de 1968, pela união das esquerdas contra o capi-talismo, com a fundação do Novo Partido Anticapitalis-ta (NPA). Professor de Filo-sofi a da Universidade Paris VIII, foi fundador da Juven-tude Comunista Revolucio-nária, em 1966, e da Liga Co-munista Revolucionária, em 1969, e dirigente da Quarta Internacional.

Nesta entrevista, concedi-da em 2008 durante o lan-çamento do livro Os irredutí-veis (Boitempo), em São Pau-lo (SP), Bensaïd discute a for-ça simbólica das lutas operá-rias e estudantis de 1968 na França, as consequências da aliança da social-democra-cia com o Estado neoliberal, a crise capitalista e a união das esquerdas anticapitalistas. Um dos fundadores do Fó-rum Social Mundial, Bensaïd sugeria uma nova palavra de ordem sob a pressão da crise capitalista: “outro mundo é necessário e urgente”.

Brasil de Fato – Como o senhor avalia as manifestações de maio de 68 na França?Daniel Bensaïd – Acho que muitas vezes se lembra do maio de 1968 insistindo muito no aspecto estudan-til. Então nós, que fomos es-tudantes, somos conhecidos, mas isso tende a esconder o que faz de 68 uma data sim-bólica. Eu acho que a carac-terística foi a greve geral. Em proporção à população, é a mais importante pelo menos da história da França. Quase 10 milhões de trabalhadores em greve durante três sema-nas. Por outro lado, também porque participa de uma sé-rie de acontecimentos inter-nacionais. Não se pode pen-sar em 68 francês sem rela-cioná-lo com a ofensiva de fevereiro no Vietnã, a Prima-vera de Praga, o movimento dos estudantes no México e no Paquistão. É um conjunto de muita carta simbólica. Is-so eu acho que tem certa im-portância, porque a greve – não digo que poderia ser fei-ta uma revolução socialista, mas derrubar o governo, co-mo na greve geral – abria um cenário, não só para a Fran-ça, mas para a Europa, to-talmente distinto durante os anos de 1970.

Quem são os irredutíveis, hoje?

Os que lutam. São muitos, das mobilizações da juventu-de, que conquistaram, dois anos atrás [em 2006], uma das poucas vitórias sociais dos 15 últimos anos. A gran-de mobilização da juventude conseguiu a retirada da lei chamada de contrato de pri-meiro emprego, que precari-zava o trabalho da juventu-de, mas tem que ver também com um contrato parecido para os desempregados. Tem começado a aparecer coleti-vos de jovens desemprega-dos que estão ocupando os supermercados para repartir

comida, não no sentido Ro-bin Hood, mas para denun-ciar a alta dos preços. São os trabalhadores que se mobili-zam contra a privatização, o fechamento de fábricas. Tem muitas atividades sociais com poucas ou muitas ex-cepcionais vitórias. As mobi-lizações sobre pensões, segu-ro social, educação, tanto em 1995, com as grandes greves, como em 2003, foram derro-tadas, e também a última, a mobilização juvenil do ano passado [2007] sobre a re-forma da universidade. Tudo isso se perdeu, mas há possi-bilidade de se recompor um espaço não só de resistência social, mas também de radi-calidade política. Isso em for-mas distintas signifi ca, quase em todos os países da Euro-pa, uma remobilização social sem vitórias e o início da re-composição política até com certo impacto eleitoral. Isso tem a ver também com a cri-se, a quase desaparição dos partidos comunistas e com um debilitamento da social-democracia.

O senhor acredita que os valores neoliberais foram desmistifi cados com essa crise econômica?

Não quero generalizar, mas na França agora quase nin-guém se diz liberal. Liberal parece sinônimo de capitalis-mo mau, mafi oso, desonesto, imoral. Então, todo mundo, o governo primeiro, fala que é necessário moralizar o ca-pitalismo, reinventar, refun-dar o capitalismo. Então, isso é importante no sentido sim-bólico. Todo discurso nos 25, quase 30 últimos anos de le-gitimar o capitalismo, o feti-chismo de mercado, tudo isso de fato eu acho que feriu de morte o deus mercado. Ago-ra, não signifi ca que automa-ticamente tenha alternativa a isso e tampouco se sabe que tipo de novo discurso se po-de inventar do lado do gover-no ou da social-democracia. A crise é muito recente, é só o início, mas já abalou a so-

cial-democracia. Então, tem mudado o discurso – alguns pedem a nacionalização dos bancos. O próprio governo tem desistido agora da pri-vatização do Correio, que es-tava prevista para este ano [2008]. Está claro que é in-decente, porque o motivo, o pretexto para privatizar era atrair 3 bilhões de euros da iniciativa privada, enquan-to o governo acaba de encon-trar 40 bilhões de euros para salvar os bancos. Então, is-so também está deslegitima-do no momento. Vai ser mui-to difícil, por exemplo, seguir com a reforma do seguro so-cial com a falência dos Fun-dos de Pensão nos Estados Unidos.

Então não sei que discurso vão inventar para tentar en-contrar uma nova legitimi-dade. Ademais, um proble-ma que tem a Europa é que qualquer discurso, não digo revolucionário, mas de refor-ma um tanto sério, imediata-mente se choca com o con-junto dos tratados da Cons-tituição europeia. Logo, não vai ser uma crise econômi-ca, mas também uma crise política da Constituição eu-ropeia. Com que saída nin-guém sabe. Depende das lu-tas, e a crise vai ter efeitos contraditórios; de um la-do, intentos de dar um pas-so adiante na construção po-lítica da Europa. Por exem-plo, criar o que [o presi-dente francês Nicolas] Sar-kozy reivindica: um fundo soberano, uma reserva co-mum fi nanceira europeia. Mas, por outro lado, a crise provoca tendências centrí-fugas, porque cada país ten-ta salvar seus bancos, como a Alemanha, a Irlanda. En-tão, o que vai prevalecer das tentativas vai depender mui-to das lutas sociais.

Como o senhor avalia hoje o contexto internacional, a crise na Europa, o crescimento do fascismo e a articulação dos partidos de esquerda?

Eu acho que a esquerda eu-ropeia é distinta da existente na América Latina; é organi-zada desde os anos 1920 pra-ticamente, em torno de cor-rente comunista stalinista e da social-democracia. Os par-tidos comunistas, com a desa-parição da União Soviética, es-tão muito debilitados, alguns, agonizando. Por outro lado, a social-democracia – que ne-cessitaria confi rmar minha hi-pótese – tem participado du-rante 25 anos do desmantela-mento do Estado social, que é sua base de sustentação, por-que é um mecanismo de ma-nutenção da paz social, pa-ra assegurar um certo cresci-mento do nível de vida. Nes-se processo, foi se destruindo metodicamente tanto o siste-ma de seguro social como os serviços públicos e as empre-sas públicas com as privatiza-ções. As lideranças, as cúpu-las da social-democracia, tam-bém têm mudado muito. Não são só funcionários de Estado, com um certo sentido do ser-viço público; agora são orga-nicamente associados ao ca-pital fi nanceiro e industrial. São os gerentes de confi ança do capital. Isso eu duvido que será reversível.

A consequência de tudo is-so, o debilitamento dos PCs e a mudança da social-demo-cracia, é a abertura de um es-paço à esquerda da esquerda tradicional. Um espaço que não é ocupado de forma ho-mogênea. A posição é que, para um futuro previsível pe-lo menos, haja uma total in-dependência da social-de-mocracia, nenhuma coliga-ção, nem em nível de prefei-tura, nem de governo etc. Is-so parte da ideia de que saí-mos de uma derrota histórica no século 20. Então, é um iní-cio de reconstrução e, se que-remos reconstruir algo sólido, não se pode confundir desde o início com operações táticas que confundem a gente. Tem que traçar para médio ou lon-go prazo uma perspectiva de reconstrução de verdade.

Ora, a crise facilita, de certo modo, porque mostra quem quer reconstruir ou refundar o capitalismo e quem quer destruí-lo. É um ponto de di-visão de águas bastante visí-vel. Digamos que a nova es-querda, na Europa, está pa-ralisada. Eu acho que tem um espaço da esquerda em dis-puta, tem várias opções. O que tentamos fazer é agrupar, não conclamar um partido,

Daniel Bensaïd: um lutador irredutívelMEMÓRIA Pensador francês, morto em janeiro, concedeu esta entrevista em 2008, na qual discute a união da esquerda e os efeitos da crise

mas uma esquerda antica-pitalista europeia, para ten-tar fazer com nome comum a campanha à eleição europeia de 2009. Com chapa na Polô-nia, Espanha, Itália, França, Inglaterra, vai ser complica-do, mas isso começa a fi rmar não só uma opção anticapita-lista na França, mas dar, já jogando com um desenvol-vimento desigual, uma pers-pectiva europeia.

Na sua opinião, pode-se ter alguma perspectiva de uma retomada revolucionária nesse contexto de crise econômica internacional? Quais as tarefas da esquerda?

De um lado, digamos que a palavra simbólica de ordem dos fóruns sociais, “outro mundo é possível”, hoje teria de ser mudada: “outro mun-do é necessário e urgente”. O problema é fazê-lo possível, mas aqui tem que ser lúci-do também. Se a hipótese se-ria de que o ponto de partida é uma derrota, não qualquer, mas uma derrota histórica das esperanças de libertação do século 20, se pode imagi-nar o início de um processo de reconstrução. Falo para a Eu-ropa. Revolução social do “dia para a noite” com a correla-ção de força atual, porque não se trata só de reconstruir uma esquerda política, mas tam-bém de reconstruir os movi-mentos sociais. É preciso sa-ber que na França os sindica-listas são apenas 10% da for-ça de trabalho. É muito mino-ritária. Então trata-se verda-deiramente de uma recons-

trução, depois de uma derro-ta política, e em condições di-fíceis, porque o obstáculo não é só ideológico.

Os efeitos da individualiza-ção do salário, do emprego, do seguro de pensão e fl exibi-lização, tudo isso obstaculiza a organização coletiva. A crise pode favorecer a reconstrução por um lado, mas vai ter efei-tos contraditórios, vai ter gen-te que tentando se salvar por si mesma. Então é uma bata-lha política aberta. Na Amé-rica Latina pode ser diferen-te. Que efeito vai ter a crise no processo bolivariano? Se vai retroceder ou avançar, se a convergência Bolívia e Equa-dor se fortalece, que resposta à crise, que uso do Banco do Sul... Tem aparecido o tema de uma moeda latino-ameri-cana para desvincular-se do dólar, e não sofrer com o seu enfraquecimento. Tudo isso está em aberto.

Eu acho que a mudança com a crise é que o discurso sobre o socialismo, o comu-nismo, está ganhando legiti-midade. A ideia de que o ca-pitalismo era o fi m da história agora terminou. Ninguém po-de imaginar ou pretender sa-ber que forma vão tomar as revoluções do século 21. Nin-guém sabia em 1789 que ia haver uma revolução em Pa-ris. Dizer que tem uma opo-sição quase sistemática en-tre uma lógica do capital – de concorrência, de todos com todos, de ganância privada, de egoísmo, falta de solida-riedade, privatização do es-paço público etc. – e uma ló-gica alternativa que é de re-construção do espaço públi-co, defesa do serviço públi-co, dos bens comuns da hu-manidade, como terra, água, ar etc., uma política solidária de energia, que tem também mais que uma dimensão eco-lógica, porque o que está em crise na realidade é a lei do valor como forma de organi-zar a vida social, que se traduz por uma crise social e ecoló-gica. Não é para fazer mano-bras políticas, mas é o núcleo de um programa alternativo. Se vai ter essa envergadura de 1968, fazemos propaganda para isso, mas não depende de propaganda, acontece ou não acontece. Veremos. Mas o importante é já convencer a gente de que outra coisa é possível, o capitalismo não é fatal, não é o estado terminal da história, e que há outra ló-gica possível.

“Não quero generalizar, mas na França agora quase ninguém se diz liberal. Liberal parece sinônimo de capitalismo mau, mafi oso, desonesto, imoral”

“A conseqüência de tudo isso, o debilitamento dos PCs e a mudança da socialdemocracia, é a abertura de um espaço à esquerda da esquerda tradicional”

“Eu acho que ninguém pode imaginar ou pretender saber que forma vão tomar as revoluções do século 21. Ninguém sabia em 1789 que ia haver uma revolução em Paris”