baudelaire - o pintor da vida moderna

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    o pintor da vida modema*Io belo, a moda e afelicidade

    Ha neste mundo, e mesmo no mundo dos artistas, pessoas que vao ao Museu doLouvre, passam rapidamente - sem se dignar a olhar - diante de urn numero imenso dequadros muito interessantes embora de segunda categoria e plantam-se sonhadoras diantede urn Ticiano ou de um Rafael, um desses que foram mais popularizados pela gravura;depois todas saem satisfeitas, mais de uma dizendo consigo: "Conheco 0meu museu". Hatambem pessoas que, por terem outrora lido Bossuet e Racine, acreditam dominar ahistoria da literatura.Felizmente, de vez em quando aparecem justiceiros, criticos, amadores e curiososque afirmam nem tudo estar em Rafael nem em Racine, que os poetae minores possuem[pagina 7] algo de born, de solido e de delicioso, e, finalmente, quemesmo amando tanto abeleza geral, expressa pelos poetas e artistas classicos, nem por isso deixa de ser um erronegligenciar a beleza particular, a beleza de circunstancia e a pintura de costumes.Devo convir que 0 mundo, de alguns anos para ca, se corrigiu um pouco. 0 valorque os amadores atribuem hoje aos mimos gravados e coloridos do seculoXVIII prova quehouve uma reacao na direcao reclamada pelo publico: Debucourt, os Saint-Aubin e muitosoutros entraram para 0 dicionario dos artistas dignos de serem estudados. Mas eles representam 0 passado. Ora, hoje quero me ater estritamente a pintura de costumes dopresente. 0 passado e interessante nao somente pela beleza que dele souberam extrair osartistas para quem constituia 0 presente, mas igualmente como passado, por seu valorhistorico. 0 mesmo ocorre com 0 presente. 0 prazer que obtemos com a representacao dopresente deve-se nao apenas a beleza de que ele pode estar revestido, mas tambem a suaqualidade essencial de presente.Tenho diante dos olhos uma serie de gravuras de modas que comecam naRevolucao e terminam aproximadamente no Consulado. Esses trajes que provocam 0 risodemuitas pessoas insensatas, essas pessoas serias sem verdadeira seriedade apresentam umfascinio de uma dupla natureza, ou seja, artistico e historico. Eles quase sempre [pagina 8]sao belos e -desenhados com elegancia, mas 0 que me importa, pelo menos em identicamedida, e 0 que me apraz encontrar em todos ou em quase todos, e a moral e a estetica daepoca. A ideia que 0 homem tern do belo imprime-se em todo 0 seu vestuario, toma suaroupa franzida ou rigida, arredonda ou alinha seu gesto e inclusive impregna sutilmente,com 0 passar do tempo, os traces de seu rosto. 0 homem acaba por se assemelhar aquiloque gostaria de ser. Essas gravuras podem ser traduzidas em belo e em feio; em feio,tomam-se caricaturas; em belo, estatuas antigas.As mulheres que envergavam esses trajes se pareciam mais ou menos umas asoutras, segundo 0 grau de poesia ou de vulgaridade que as distinguia. A materia vivatomava ondulante 0 que nos parece muito rigido. A imaginacao do espectador pode aindahoje movimentar e fremir esta tunica ou este xale. Talvez, um dia desses, seramontado umdrama num teatro qualquer, onde presenciaremos a ressurreicao desses costumes nos quaisnossos pais se achavam tao atraentes quanto nos mesmos em nossas pobres roupas (quetambem rem sua graca, e verdade, mas de uma natureza sobretudo moral e espiritual, e seforem vestidos e animados por atrizes e atores inteligentes, nos nos admiraremos de nos

    Trata-se do desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys (1805- 1892). Artigo incluido no volume L 'ArtRomantique, coletanea de artigos de critica de arte, publicados postumamente em 1869. (N. doT)

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    terem despertado 0 riso de modo tao leviano). 0 passado, coriservando 0 sabor dofantasma, recuperara a luz e 0movimento da vida, e se tornara presente. [pagina 9]Se urn homem imparcial folheasse urna a urna todas as modas francesas desde aorigem da Franca ate 0 momento, nada encontraria de chocante nem de surpreendente.Seria possivel ver, sim, as transicoes organizadas de forma taogradativa quanto na escalado mundo animal. Nenhurna lacuna; logo, nenhurna surpresa. E se ele acrescentasse Iivinheta que representa cadaepoca 0 pensamento filosofico que mais a ocupou ou agitou,pensamento cuja lembranca e inevitavelmente evocada pela vinheta, constataria a profundaharmonia que rege toda a equipe da historia, e que, mesmo nos seculos que nos parecemmais monstruosos e insanos, 0 imortal apetite do belo sempre foi saciado.Na verdade, esta e uma bela ocasiao para estabelecer urna teoria racional e historicado belo, em oposicao Ii teoria do belo unico e absoluto; para mostrar que 0 beloinevitave1mente sempre tern urna dupla dimensao, embora a impressao que produza sejauma, pois a dificuldade em discernir os elementos variaveis do belo na unidade daimpressao nao diminui em nada a necessidade da variedade em sua composicao. 0 belo econstituido por urn elemento etemo, invariavel, cuja quantidade e excessivamente dificildeterminar, e de urn elemento relativo, circunstancial, que sera, se quisermos, sucessiva oucombinadamente, a epoca, a moda, a moral, a paixao. Sem esse segundo elemento, que ecomo 0 involucre aprazivel, palpitante, ape- [pagina 10] ritivo do divino manjar, 0primeiro elemento seria indigerivel, inapreciavel, nao adaptado e nao apropriado Iinaturezahurnana. Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que naocontenha esses dois elementos.Escolho, se preferirem, os dois escaloes extremos da historia. Na arte hieratica, adualidade salta Iivista; a parte de beleza etema so se manifesta com a permissao e dentrodos canones da religiao a que 0 artista pertence. A dualidade se evidencia igualmente naobra mais frivola de urn artista refinado pertencente a urna dessas epocas que qualificamoscom excessiva vaidade de civilizadas; a porcao etema de beleza estara ao mesmo tempovelada e expressa, se nao pela moda, ao menos pelo temperamento particular do autor. Adualidade da arte e urna consequencia fatal da dualidade do homem. Considerem, se issolhes apraz, a parte etemamente subsistente como a alma da arte, e 0 elemento variavelcomo seu corpo. E por isso que Stendhal, espirito impertinente, irritante, ate mesmorepugnante, mas cujas impertinencias necessariamente provocam a meditacao, seaproximou mais da verdade do que muitos outros ao afirmar que 0 bela niio e sendo apromessa da felicidade. Sem duvida, tal definicao excede seu objetivo; ela submete deforma excessiva 0 belo ao ideal indefinidamente variavel da felicidade; despoja com muitadesenvoltura 0 belo de seu carater aristocratico, mas [pagina 11] tern 0 grande merito deafastar-se decididamente do erro dos academicos.

    Ja expliquei estas coisas mais de urna vez; estas linhas sao suficientes para aquelesque apreciam os exercicios do pensamento abstrato; mas sei que os leitores franceses, emsua maioria, neles pouco se comprazem e eu mesmo tenho pressa de entrar na partepositiva e real de meu tema.

    11o croqui de costumesPara 0 croqui de costumes, a representacao da vida burguesa e os espetaculos damoda, 0 meio mais expedito e menos custoso evidentemente e 0 melhor. Quanto maisbeleza 0 artista the conferir, mais preciosa sera a obra; mas ha na vida ordinaria, nametamorfose incessante das coisas exteriores, urn movimento rapido que exige do artista

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    identica velocidade de execucao. As gravuras de vanas tonalidades do seculo XVIIIobtiveram novamente 0 favor da moda, como eu afirmava ha pouco; opastel, a agua-forte,a agua-tinta fomeceram sucessivamente seus contingentes para 0 imenso dicionario da vidamodema disseminado nas bibliotecas, nas pastas dos amadores e nas vitrines das lojas maisvulgares. A litografia, desde 0 seu surgi- [pagina 12] mento imediatamente se mostroubastante apta a essa enorme tarefa aparentemente tao frivola. Possuimos, nesse genero,verdadeiros monumentos. As obras de Gavarni e de Daumier foram com justicadenominadas complementos da Comedia Humana. 0 proprio Balzac, tenho certezaabsoluta, nao estaria longe de adotar essa ideia, pela justa razao de que 0 genic do pintor decostumes e urn genic de uma natureza mista, isto e , no qual entra uma boa dose de espiritoliterario. Observador,jlaneur, filosofo, chamem-no como quiserem, mas, para caracterizaresse artista, certamente seremos levados a agracia-lo com um epiteto que nao poderiamosaplicar ao ~intor das coisas etemas, ou pelo menos mais duradouras, coisas heroicas oureligiosas. As vezes ele e um poeta; mais frequentemente aproxima-se do romancista ou domoralista; e 0 pintor do circunstancial e de tudo 0 que este sugere de etemo. To do ospaises, para seu prazer e gloria, possuiram alguns desses homens. Em nossa epoca atual, aDaumier e a Gavami, primeiros nomes que nos vern a memoria, podem-se acrescentar osde Deveria, Maurin, Numa, historiadores das ambiguas belezas da Restauracao; Wattier,Tassaert, Eugene Lami - este ultimo quase ingles, de tanto amor pelas eleganciasaristocraticas - e inclusive Trimolet e Travies, cronistas da pobreza e da banalidadequotidiana. [pagina 13]

    IIIo artista,homem do mundo,

    homem das multidoes e criancaQuero falar hoje de um homem singular, originalidade tao poderosa e tao decididaque se basta a si propria e nao busca sequer a aprovacao de outrem. Nenhum de seusdesenhos e assinado, se chamarmos assinatura essas poucas letras, passiveis defalsificacao, que representam um nome, e que tantos apoem faustosamente embaixo deseus croquis mais insignificantes. Porem, todas as suas obras sao assinadas com sua almaresplandecente, e os amadores que as viram e apreciaram as reconhecerao sem dificuldadena descricao que delas pretendo fazer. Enamorado pela multidao e pelo incognito, C. G.leva a originalidade as raias da modestia. Thackeray, que, como se sabe, interessa-sebastante pelas coisas de arte e desenha ele proprio as ilustracoes de seus romances, urn diadiscorreu sobre G. num folhetim de Londres. G. irritou-se com 0 fato, como se se tratasse

    de um ultraje a seu pudor. Ainda recentemente, quando soube que eu me propunha fazeruma apreciacao de seu espirito e talento, suplicou-me, de uma maneira muito imperiosa,que seu nome fosse suprimido e que so falasse das obras como obras de urn anonimo.Obedecerei humildemente a esse estranho desejo. [pagina 14] Fingiremos acreditar, 0 leitore eu, que G. nao existe e trataremos de seus desenhos e aquarelas, pelos quais ele professaum desdem aristocratico, agindo como esses pesquisadores que tivessem de julgarpreciosos documentos historicos, fomecidos pelo acaso, e cujo autor devesse permaneceretemamente desconhecido. Inclusive, para apaziguar completamente minha consciencia,vamos supor que tudo quanto tenho a dizer sobre sua natureza, tao curiosa emisteriosamente brilhante, e justamente sugerido, mais ou menos, pelas obras em questao;pura hipotese poetica, conjetura, trabalho de imaginacao.

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    G. e velho. Comenta-se que Jean-Jacques comecou aescrever aos quarenta e doisanos. Foi talvez por essa idade que G., obcecado por todas as imagens que .lhe povoavam 0cerebro, teve a audacia de espargir tintas e cores sobre urna folha branca. Para dizer averdade, ele desenhava como urn barbaro, como urna crianca, irritando-se contra aimpericia de seus dedos e a desobediencia de seu instrumento. Vi muitas dessas garatujasprimitivas e confesso que a maioria das pessoas capazes de julgar, ou com essa pretensao,teria podido, sem desabono, nao adivinhar 0 genic latente que habitava esses tenebrososesbocos. Atualmente G., que descobriu sozinho todos os pequenos truques do oficio e, semreceber conselhos, realizou sua propria formacao, tomou-se urn admiravel mestre a suamaneira, conservando da simplicidade inicial apenas 0 necessario [pagina 15] paraacrescentar as suas mais ricas faculdades urn toque desconcertante. Quando ele descobreuma dessas tentativas de sua juventude, rasga-a ou queima-a com urna vergonha das maisdivertidas.

    Durante dez anos desejei travar conhecimento com G., que e, por temperamento,apaixonado por viagens e muito cosmopolita. Sabia que durante muito tempo ele foracorrespondente de urn jomal ingles ilustrado e que nele publieara gravuras a partir de seuscroquis de viagem (Espanha, Turquia, Crimeia), Vi, desde essa epoca, urna quanti dadeconsideravel desses desenhos improvisados nos proprios locais e pude ler assim urnacronica minuciosa e diaria da campanha da Crimeia, melhor do que qualquer outra. 0mesmo jomal publicara tambem, sempre sem assinatura, inumeras composicoes do mesmoautor, inspiradas nos bales e operas recentes. Quando finalmente 0 conheci, logo vi quenao se tratava precisamente de urn artista, mas antes de urn homem do mundo. Entenda-seaqui, por favor, a palavra artista num sentido muito restrito, e a expressao homem domundo nurn sentido muito amplo. Homem do mundo, isto e, homem do mundo inteiro,homem que compreende 0 mundo e as razoes misteriosas e legitimas de todos os seuscostumes; artista, isto e, especialista, homem subordinado a sua palheta como 0 servo agleba. G. nao gosta de ser chamado de artista. Nao teria ele alguma razao? Ele se interessapelo mundo inteiro; quer saber, compreender, apre- [pagina 16] ciar tudo 0 que acontece nasuperficie de nosso esferoide. 0 artista vive pouquissimo - ou ate nao vive - no mundomoral e politico. 0 que mora no bairro Breda ignora 0 que se passa no faubourg Saint-Germain. Salvo duas ou tres excecoes que nao vale a pena mencionar, a maioria dosartistas sao, deve-se convir, uns brutos muito habeis, simples artesaos, inteligenciasprovincianas, mentalidades de cidade pequena. Sua conversa, forcosamente limitada a urncirculo muito restrito, toma-se rapidamente insuportavel para 0 homem do mundo, para 0cidadao espiritual do universo.

    Assim, para entrar na compreensao de G., anotem imediatamente 0 seguinte: acuriosidade pode ser considerada como ponto de partida de seu genic.

    Lembram-se de urn quadro (e urn quadro, na verdade!) escrito pelo mais poderosoautor desta epoca e que se intitula L 'Homme des Foules (0 Homem das Multidiiesv] Arrasdas vidracas de urn cafe, urn convalescente, contemplando com prazer a multidao, mistura-se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam a sua volta. Resgatado ha poueo dassombras da morte, ele aspira com deleite todos os indicios e efluvios da vida; como estavaprestes a tudo esquecer, lembra-se e quer ardentemente lembrar-se de tudo. Finalmente,precipita-se no meio da multidao a procura de urn desconhecido cuja fisionomia, apenasvislumbrada, fascinou-o num relance. A curiosidade transformou-se numa paixao fatal,irresistivel! [pagina 17]

    Imagine-se urn artista que estivesse sempre, espiritualmente, em estado deconvalescenca e se tera a chave do carater de G.

    Ora, a convalescenca e como uma volta a infancia. 0 convalescente goza, no maisalto grau, como a crianca, da faculdade de se interessar intensamente pelas coisas, mesmo

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    por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais. Retomemos, se possivel,atraves de urn esforco retrospectivo da imaginacao, as mais jovens, as mais matinais denossas impressoes, e constataremos que elas possuem urn singular parentesco com asimpressoes tao vivamente coloridas que recebemos ulteriormente, depois de urna doenca,desde que esta tenha deixado puras e intactas nossas faculdades espirituais. A crianca vetudo como novidade; ela sempre esta inebriada. Nada se parece tanto com 0 quechamamos inspiracao quanta a alegria com que a crianca absorve a forma e a cor. Ousariair mais longe: afirmo que a inspiracao tern alguma relacao com a congestiio, e que todopensamento sublime e acompanhado de urn estremecimento nervoso, mais ou menosintenso, que repercute ate no cerebelo. 0 homem de genic tern nervos solidos; na crianca,eles sao fracos. Naquele, a razao ganhou urn lugar consideravel; nesta, a sensibilidadeocupa quase todo 0 seu ser. Mas 0 genic e somente a infdncia redescoberta sem limites; ainfancia agora dotada, para expressar-se, de orgaos viris e do espirito analitico que lhe[pagina 18] permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente acurnulada. E acuriosidade profunda e alegre que se deve atribuir 0 olhar fixo e animal mente estatico dascriancas diante do novo, seja 0 que for, rosto ou paisagem, luz, brilhos, cores, tecidoscintilantes, fascinio da beleza realcada pelo traje. Urn de meus amigos dizia-me urn diaque, ainda pequeno, via seu pai lavando-se e que entao contemplava - com urnaperplexidade mesc1ada de deleite - os musculos dos braces, as gradacoes de cores da pelematizada de rosa e amarelo, e a rede azul ada das veias. 0 quadro da vida exterior ja 0impregnava de respeito e se apoderava de seu cerebro. A forma ja 0 obcecava e 0 possuia.A predestinacao mostrava precocemente a ponta do nariz. A danaciio estava consurnada. Epreciso dizer que essa crianca hoje e urn pintor celebre?

    Eu exortava meu leitor ainda ha pouco a que considerasse G. como urn etemoconvalescente: para completar sua inteleccao, considere-o tambem como urn homem-crianca, como urn homem dominado a cada minuto pelo genic da infancia, ou seja, urngenic para 0 qual nenhum aspecto da vida e indiferente.

    Dizia-lhe que me desagradava chama-lo de puro artista e que ele proprio recusavaesse titulo com uma modestia mesc1ada de pudor aristocratico, Eu 0 chamaria de borngrado dandi, e teria algumas boas razoes para isso; pois a palavra dandi implica umaquintessencia de carater [pagina 19] e urna compreensao sutil de todo mecanismo moraldeste mundo; mas, por outro lado, 0 dandi aspira a insensibilidade, e e por esse angulo queG., que e dominado por urna paixao insaciavel, a de ver e de sentir, se afasta violentamentedo dandismo. Amabam amare, dizia Santo Agostinho. "Amo apaixonadamente a paixao",diria G. com naturalidade. 0 dandi e entediado, ou finge se-lo, por politica e razao decasta. G. tern horror as pessoas entediadas. Ele possui a arte extremamente dificil (osespiritos refinados irao me compreender) de ser sincero sem ser ridiculo. Poderiacondecora-lo com 0 titulo de filosofo, que ele merece por varias razoes, se seu amorexcessivo pelas coisas visiveis, tangiveis, condensadas no estado plastico nao Iheinspirasse uma certa repugnancia por aquelas que formam 0 reino impalpavel dometafisico. Vamos reduzi-lo, portanto, a condicao de puro moralista pitoresco, como LaBruyere.

    A multidao e seu universo, como 0 ar e 0 dos passaros, como a agua, 0 dos peixes.Sua paixao e profissao e desposar a multiddo. Para 0 perfeito fldneur, para 0 observadorapaixonado, e urn imenso jubilo fixar residencia no nurneroso, no ondulante, nomovimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa ondequer que se encontre; ver 0 mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto aomundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espiritos independentes, apaixo- [pagina20] nados imparciais, que a linguagem nao pode definir senao toscamente. 0 observador eurn principe que frui por toda parte do fato de estar incognito. 0 amador da vida faz do

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    mundo a sua familia, tal como 0 amador do belo sexo compoe sua familia com toda asbelezas encontradas, encontraveis ou inencontraveis; tal como 0 amador de quadros vivenuma sociedade encantada de sonhos pintados. Assim 0 apaixonado pela vida universalentra na multidao como se isso lhe aparecesse como urn reservatorio de eletricidade. Pode-se igualmente compara-lo a urn espelho tao imenso quanto essa multidao; a urncaleidosc6pio dotado de consciencia, que, a cada urn de seus movimentos, representa avida multi pia e 0 encanto cambiante de todos os elementos da vida. E urn eu insaciavel dondo-eu, que a cada instante 0 revela e 0 exprime em imagens mais vivas do que a propriavida, sempre instavel e fugidia. "Todo homem", dizia G.urn dia, nurna dessas conversasque ele ilurnina com urn olhar intenso e urn gesto evocativo, "todo homem que nao eatormentado por urna dessas tristezas de natureza demasiado concreta que absorvem todasas faculdades, e que se entedia no seio da multiddo, e urn imbecil! Urn imbecil! edesprezo-o!"

    Quando G., ao despertar, abre os olhos eve 0 sol flamejante invadindo as vidracas,diz para si mesmo com remorso, com arrependimento: "Que ordem imperiosa! Quefanfarra de luz! Ha muitas horas ja, luz em toda [pagina 21] parte! Luz perdida por causade meu sono! Quantas coisas iluminadas poderia ter visto e nao vi!" E ele sai! E observafluir 0 rio da vitalidade, tao majestoso e brilhante. Admira a etema beleza e a espantosaharmonia da vida nas capitais, harmonia tao providencialmente mantida no tumulto daliberdade hurnana. Contempla as paisagens da cidade grande, paisagens de pedraacariciadas pela bruma ou fustigadas pelos sopros do sol. Admira as belas carruagens, osgarbosos cavalos, a limpeza reluzente dos lacaios, a destreza dos criados, 0 anda dasmulheres ondulosas, as belas criancas, felizes por viverem e estarem bern vestidas;resumindo, a vida universal. Se urna moda, urn corte de vestuario foi levementetransformado, se os laces de fita e os cachos foram destronados pelas rosetas, se a mantilhase ampliou e 0 coque desceu urn pouquinho na nuca, se a cintura foi erguida e a saiaalargada, acreditem que a urna distancia enorme seu olhar de aguia ja adivinhou. Urnregimento passa, ele vai talvez ao fun do mundo, difundindo no ar dos bulevares suasfanfarras sedutoras e diafanas como a esperanca; e eis que 0 olhar de G. ja viu,inspecionou, analisou as armas, 0 porte e a fisionomia dessa tropa. Arreios, cintilacoes,musica, olhares decididos, bigodes espessos e graves, tudo isso ele absorvesimultaneamente; e em alguns minutos 0 poema que disso resulta estara virtualmentecomposto. E sua alma vive com a alma desse [pagina 22] regimento que marcha como sefosse urn unico animal, altiva imagem da alegria na obediencia!

    Mas a noite chegou. E a hora estranha e ambigua em que se fecham as cortinas doceu e se ilurninam as cidades. Os reverberos se sobressaem sobre a purpura do poente.Honestos ou desonestos, sensatos ou insanos, os homens dizem consigo: "Enfim, acabou-se 0 dia!" Os placidos e os de rna indole pensam no prazer e todos acorrem ao lugar de suapreferencia para beber a tacado esquecimento. G. sera 0 ultimo a partir de qualquer lugaronde possa resplandecer a luz, ressoar a poesia, fervilhar a vida, vibrar a musica; de todolugar onde urna paixao possa posar diante de seus olhos, de todo lugar onde 0 homemnatural e 0 homem convencional se mostrem nurna beleza estranha, de todo lugar onde 0sol ilurnina as alegrias efemeras do animal depravadot "Foi, com certeza, uma jomadabern empregada", pensara certo leitor que todos conhecemos. "Todos tern talento suficientepara preenche-la da mesma maneira." Nao! Poucos homens sao dotados da faculdade dever; ha ainda menos homens que possuem a capacidade de exprimir. Agora, a hora em queos outros estao dormindo, ele esta curvado sobre sua mesa, lancando sobre urna folha depapel 0mesmo olhar que ha pouco dirigia as coisas, lutando com seu lapis, sua pena, seupincel, lancando agua do copo ate 0 teto, limpando a pena na camisa, apressando, violento,ativo, como se temesse que as [pagina 23] imagens the escapassem, belicoso, mas sozinho

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    e debatendo-se consigo mesmo. E as coisas renascem no papel, naturais e, mais do quenaturais, belas; mais do que belas, singulares e dotadas de uma vida entusiasta como aalma do autor. A fantasmagoria foi extraida danatureza. Todos os materiais atravancadosna memoria classificam-se, ordenam-se, harmonizam-se e sofrem essa idealizacao forcadaque e 0 resultado de uma percepcao infantil, isto e, de uma percepcao aguda.imagica itforca de ser ingenua!

    IVA modernidade

    Assim ele vai, corre, procura. 0 que? Certamente esse homem, tal como 0 descrevi,esse solitario dotado de uma imaginacao ativa, sempre viajando atraves do grande desertode homens, tern um objetivo mais elevado do que 0 de um simples fldneur, um objetivomais geral, diverso do prazer efemero da circunstancia. Ele busca esse algo, ao qual sepermitira chamar de Modernidade; pois nao me ocorre melhor palavra para exprimir aideia em questao. Trata-se, para ele, de tirar da moda 0 que esta pode conter de poetico nohistorico, de extrair 0 etemo do transitorio. Se lancarmos um olhar a nossas exposicoes dequadros modemos, ficaremos espantados com a tendencia geral dos [pagina 24] artistaspara vestirem todas as personagens com indumentaria antiga. Quase todas se servem dasmodas e dos moveis do Renascimento, como David se servia das rnodas e dos moveisromanos. Ha, no entanto, uma diferenca, pois David, tendo escolhido temasespecificamente gregos ou romanos, nao podia agir de outra forma senao vesti-los it modaantiga, enquanto os pintores atuais, escolhendo temas de uma natureza geral que podem seaplicar a todas as epocas, obstinam-se em fantasia-los com trajes da Idade Media, doRenascimento ou do Oriente. Evidentemente, e sinal de uma grande preguica; pois e muitomais como do declarar que tudo e absolutamente feio no vestuario de uma epoca do que seesforcar por extrair dele a beleza misteriosa que possa conter, por minima ou tenue queseja. A Modernidade e 0 transitorio, 0 efemero, 0 contingente, e a metade da arte, sendo aoutra metade 0 etemo e 0 imutavel, Houve uma modernidade para cada pintor antigo: amaior parte dos belos retratos que nos provem das epocas passadas esta revestida decostumes da propria epoca. Sao perfeitamente harmoniosos; assim, a indumentaria, 0penteado e mesmo 0 gesto, 0 olhar e 0 sorriso (cada epoca tern seu porte, seu olhar e seusorriso) formam um todo de completa vitali dade. Nao temos 0 direito de desprezar ou deprescindir desse elemento transitorio, fugidio, essas metamorfoses sao tao frequentes,Suprimindo-os, caimos forcosamente no vazio de uma beleza abstrata e [pagina 25]indefinivel, como a da unica mulher antes do primeiro pecado. Se it vestimenta da epoca,que se impoe necessariamente, substituirmos uma outra, cometemos urn contra-senso sodesculpavel no caso de uma mascarada ditada pela moda. Assim, as deusas, as ninfas e assultanas do seculo XVIII sao retratos moralmente verossfmeis.

    Sem duvida, e excelente estudar os antigos mestres para aprender a pintar, mas issopode ser tao-somcmc um exercicio superfluo se 0 nosso objetivo e compreender 0 caraterda beleza atual. Os planejamentos de Rubens ou de Veronese nao nos ensinarao a fazerchamalote, cetim it rainha ou qualquer outro tecido de nossas fabricas, entufado,equilibrado pela crinolina ou pelos saiotes de musselina engomada. 0 tecido e a texturanao sao os mesmos que os da antiga Veneza ou os usados na corte de Catherine.Acrescentemos tambem que 0 corte da saia e do corpete e absolutamente diferente, que aspregas sao dispostas de acordo com um novo sistema, que os gestos e 0 porte da mulheratual dao a seu vestido uma vida e uma fisionomia que nao sao as da mulher antiga. Empoucas palavras, para que toda Modernidade seja digna de tomar-se Antiguidade, e

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    necessario que dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente Iheconfere. E a essa tarefa que G. se dedica em particular. .

    Anteriormente afrrmei que cada epoca tinha seu porte, seu olhar e seu gesto. Esobretudo numa vasta galeria [pagina 26] de retratos (a de Versalhes, por exemplo). que setorna facil verificar essa proposicao. Mas ela pode estender-se mais amplamente. Naunidade que se chama nacao, as profissoes as castas e os seculos introduzem a variedade,nao somente nos gestos e nas maneiras, mas tambem na forma concreta do rosto. Tal nariz,tal boca, tal fronte correspondem ao intervalo de uma duracao que nao pretendo determinaraqui, mas que certamente pode ser submetida a um calculo. Essas consideracoes nao saosuficientemente familiares aos retratistas; e 0 grande defeito de Ingres, em particular, equerer impor a cada tipo que posa diante de seus olhos um aperfeicoamento mais ou menoscompulsorio colhido no repertorio das ideias classicas.

    Em semelhante materia, seria facil e mesmo legitimo raciocinar a priori. Acorrelacao perpetua do que chamamos alma com 0 que chamamos corpo explicaperfeitamente como tudo 0 que e material ou emanacao do espiritual representa erepresentara sempre 0 espiritual de onde provem. Se um pintor paciente e minucioso, masdotado de uma imaginacao mediocre, em vez de pintar uma cortesa do tempo presente,inspira-se (e a expressao consagrada) em uma cortesa de Ticiano ou de Rafael, e muitoprovavel que fara uma obra falsa, ambigua e obscura. 0 estudo de uma obra-prima daquelaepoca e daquele genero nao the ensinara nem a atitude, nem 0 olhar, nem 0 trejeito, nem 0aspecto vital de uma dessas criaturas que [pagina 27] 0 dicionario da moda sucessivamenteclassificou, com nomes grosseiros ou maliciosos, de impuras, mulheres sustentadas,loureiras e mundanas.

    A mesma critica aplica-se rigorosamente no estudo do militar, do dandi ou mesmodos animais, cao ou cavalo, e de tudo quanto compoe a vida exterior de um seculo. Aidaquele que estuda no antigo outra coisa que nao a arte pura, a logica e 0metodo geral. Detanto se enfronhar nele, perde a memoria do presente; abdica do valor dos privilegiosfornecidos pela circunstancia, pois quase toda nossa originalidade vern dainscricao que 0tempo imprime as nossas sensacoes. 0 leitor compreende antecipadamente que eu poderiacomprovar facilmente minhas assercoes atraves de numerosos outros objetos que nao amulher. Que diriam, por exemplo, de urn pintor de marinhas (levo a hipotese ao extremo)que, tendo de reproduzir a beleza sobria e elegante do navio moderno, atormentasse seusolhos estudando as formas sobrecarregadas, retorcidas, a popa monumental de um navioantigo e os velames complicados do seculo XVI? E 0 que pensariam de um artista a quemtivessem incumbido de fazer 0 retrato de urn puro-sangue, celebre nas solenidades do turfe,se ele fosse confinar suas contemplacoes nos museus, se se contentasse em observar 0cavalo nas galerias do passado, em Van Dyck, Bourguignon ou Van der Meulen? [pagina28]

    G., guiado pela natureza, tiranizado pela circunstancia, enveredou por um caminhocompletamente diferente. Comecon contemplando a vida e so muito tarde se esforcou paraaprender os meios para expressa-la, Disso resultou uma originalidade extraordinaria, naqual 0 que pode restar de barbaro ou de ingenue aparece como nova prova de obediencia aimpressao, como lisonja a verdade. Para a maioria dentre nos, sobretudo para os homens denegocios, aos olhos de quem a natureza existe apenas em suas relacoes de utili dade comseus negocios, 0 fantastico real da vida acha-se singularmente embotado. G. absorve-ocontinuamente e dele tern a memoria e os olhos repletos.