banalizacao interdicao direitos humanos[1]

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     A BANALIZAÇÃO DA INTERDIÇÃO JUDICIAL NO BRASIL : RELATÓRIOS Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados 2007

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A BANALIZAO DA INTERDIO JUDICIAL NO BRASIL : RELATRIOS

Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados

2007

Cmara dos deputados Comisso de direitos Humanos e minorias

A BAnAlizAono

dA interdio

JudiciAl

BrAsil:

relAtrios

Audincia Pblica e Seminrio Nacional realizados pela Comisso de Direitos Humanos e Minorias em parceria com o Conselho Federal de Psicologia, no ano de 2005, com o objetivo de debater sobre o tratamento que a sociedade e o governo dispensam aos portadores de sofrimento mental no Brasil.

CENTRO DE DOCUMENTAO E INFORMAO COORDENAO DE PUBLICAES BRASLIA 2007

CMARA DOS DEPUTADOS DIRETORIA LEGISLATIVA Diretor Afrsio Vieira Lima Filho CENTRO DE DOCUMENTAO E INFORMAO Diretor Adolfo C. A. R. Furtado COORDENAO DE PUBLICAES Diretora Maria Clara Bicudo Cesar DEPARTAMENTO DE COMISSES Diretor Silvio Avelino da Silva

Cmara dos Deputados Centro de Documentao e Informao CEDI Coordenao de Publicaes CODEP Anexo II Trreo - Praa dos Trs Poderes Braslia (DF) - CEP 70160-900 Telefone: (61) 3216-5802; fax: (61) 3216-5810 [email protected] Diagramao e Capa Tereza Pires

SRIE Ao parlamentar n. 349 Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) Coordenao de Biblioteca. Seo de Catalogao.

Brasil. Congresso Nacional. Cmara dos Deputados. Comisso de Direitos Humanos e Minorias. A banalizao da interdio judicial no Brasil : relatrios. Braslia : Cmara dos Deputados, Coordenao de Publicaes, 2007. 333 p. (Srie ao parlamentar ; n. 349) Audincia pblica e Seminrio Nacional realizados pela Comisso de Direitos Humanos e Minorias em parceria com o Conselho Federal de Psicologia, no ano de 2005, com o objetivo de debater sobre o tratamento que a sociedade e o governo dispensam aos portadores de sofrimento mental no Brasil. ISBN 85-7365-503-8 1. Interdio judiciria, Brasil 2. Deficincia mental, Brasil. 2. Pessoa portadora de deficincia mental, Brasil. I. Ttulo. II. Srie. CDU 347.647(81) ISBN 85-7365-503-8

sumrioApresentao I ..........................................................11 Apresentao II ..........................................................13 Apresentao III .........................................................15 Audincia Pblica Banalizao da Interdio Judicial no Brasil Audincia Pblica: Banalizao da Interdio Judicial no Brasil ..................................................................17 Iriny Lopes...............................................................19Presidente da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados

Marcus Vincius de Oliveira Silva ....................................19Representante do Conselho Federal de Psicologia

Alfredo Schechtman ...................................................25Coordenador do Programa de Sade Mental do Ministrio da Sade

Ana Lgia Gomes ........................................................27Diretora do Departamento de Benefcios Assistenciais da Secretaria Nacional de Assistncia Social do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome

Raimundo Nonato ......................................................31Gerente de Qualidade do INSS

Tnia Marisa .............................................................34Supervisora mdico-pericial

Talvane Marins de Moraes ............................................35Representante da Associao Brasileira de Psiquiatria

Ela Wiecko Volkmer de Castilho.....................................41Procuradora dos Direitos do Cidado do Ministrio Pblico

Joelson Dias .............................................................43Representante da Comisso de Direitos Homanos da OAB

Mark Npoli..............................................................48Representante da Rede Nacional Interncleos da Luta Antimanicomial

Iriny Lopes...............................................................50Presidente da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados

Seminrio Nacional H banalizao nos atos de interdio judicial no Brasil? Mesa de abertura.......................................................55 Iriny Lopes...............................................................55Presidente da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados

Niusarete Margarida de Lima ........................................56Representante da Subsecretaria Especial de Direitos Humanos da Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica

Alusio Lucena ..........................................................58Representante do INSS

Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti ..............................59Presidente do Conselho Regional de Medicina do estado de Alagoas

Ana Lgia Gomes ........................................................63Representante do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome

Joelson Dias .............................................................64Membro efetivo da Comisso Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil OAB

Lanamento da publicao ...........................................67O Novo Direito dos Portadores de Transtorno Mental: o alcance da Lei n 10.216/2001

Marcus Vincius de Oliveira Silva ....................................69Vice-Presidente do Conselho Federal de Psicologia

Conferncia .............................................................77Defesa da democracia, princpios republicanos e responsabilizao dos agentes pblicos: a excepcionalidade da interdio

Jos Geraldo de Souza Jnior .......................................79Representante da Universidade de Braslia

Painel I ...................................................................93A interdio judicial e o acesso aos direitos de cidadania garantido pelas polticas pblicas

Peterson de Paula Pereira ............................................95Procurador da Repblica, representante do Ministrio Pblico Federal

Menelick de Carvalho Netto ....................................... 100Professor de Direito Constitucional da UnB

Marcus Vincius de Oliveira Silva .................................. 107Vice-Presidente do Conselho Federal de Psicologia

Debates ................................................................ 109 Painel II ................................................................ 127Reforma psiquitrica, justia, assistncia social e interdio judicial

Rosemeire Aparecida da Silva ..................................... 129Representante da Rede Nacional Interncleos da Luta Antimanicomial

Marcus Vincius de Oliveira Silva .................................. 137Vice-Presidente do Conselho Federal de Psicologia

Ana Lgia Gomes ...................................................... 145Representante do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome

Debates ................................................................ 153 Conferncia ........................................................... 177Reforma psiquitrica e justia espao de banalizao da interdio judicial

Pedro Gabriel Godinho Delgado ................................... 177Coordenador da rea Tcnica de Sade Mental, do Ministrio da Sade

Painel III ................................................................ 191Laudo, percia e interdio judicial: fragilidades e desafios para os direitos humanos

Benedito Brunca ..................................................... 193Representante do INSS

Paulo Kelbert ......................................................... 199Perito mdico

Jos Geraldo Vernet Taborda ...................................... 203Chefe do Departamento de tica e Psiquiatria Forense da Associao Mdica Brasileira

Mark Npoli............................................................ 210Representante da Rede Nacional Interncleos da Luta Antimanicomial

Debates ................................................................ 216

Painel IV................................................................ 245Controle das Interdies Judiciais no Brasil

Niusarete Margarida de Lima Campos............................ 247Representante da Subsecretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica

Joelson Dias ........................................................... 251Representante da Comisso de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil OAB

Antonio Fernandes da Luz ......................................... 258Juiz de Direito da 1 Vara de Famlia de Taguatinga, do Distrito Federal

Marcus Vincius de Oliveira Silva .................................. 267Vice-Presidente do Conselho Federal de Psicologia

Antonio Fernandes da Luz ......................................... 268Juiz de Direito da 1 Vara de Famlia de Taguatinga, do Distrito Federal

Jairo Bisol ............................................................. 268Representante do Ministrio Pblico

Marcus Vincius de Oliveira Silva .................................. 274Vice-Presidente do Conselho Federal de Psicologia

Debates ................................................................ 276

AnexosAnexo I.................................................................. 315 Anexo II ................................................................. 319 Decreto N 5.699...................................................... 321 Decreto N 3.048 ...................................................... 327 Memorando-circular N 09 INSS/DIRBEN ............................. 329

apresentao iUm pas cuja sociedade ainda tolera o trabalho escravo, a explorao e abuso sexual de crianas e adolescentes, que pugna pelo encarceramento de idosos, deficientes mentais e portadores de hansenase, entre outros segmentos sociais, precisa de polticas pblicas fortes e decisivas, com investimentos, no apenas para proporcionar proteo especial a essas pessoas mas tambm para fomentar uma conscincia cada vez maior de respeito aos direitos humanos. De outra parte, necessria a soma de esforos de todos quantos lutam pela cidadania plena. Esta a diretriz orientadora da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados: celebrar parcerias como a proposta pelo Conselho Federal de Psicologia. Por sua iniciativa, realizamos dois eventos importantssimos. Primeiro, uma Audincia Pblica que evidenciou a necessidade de ampliar e aprofundar o tema. Por isso, um segundo evento, o Seminrio. Os resultados desses dois eventos sobre a banalizao da interdio judicial constituem a presente publicao. Nela est retratado o quadro em que vivem nossos portadores de deficincia mental. Apresenta reflexes profundas sobre o tratamento que a sociedade e o governo dispensam aos portadores de sofrimento mental. Apresenta tambm propostas concretas para possveis solues. Embora tenhamos uma legislao que regulamenta a interdio, na prtica verificamos que ela no observada ou desvirtuada em detrimento de pessoas que devem merecer proteo especial pela sua condio de deficincia mental. Este livro um guia para orientar profissionais, familiares e todos quantos convivem com os deficientes mentais, para proporcionarlhes mais cidadania e maior felicidade. Quero cumprimentar o Conselho Federal de Psicologia pela iniciativa, pelo patrocnio desta publicao, externar meu reconhecimento pela audcia, pela coragem de enfrentar e desnudar realidades to cruis como aquelas a que so submetidos os portadores dea Banalizaoda interdio

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deficincia mental, os portadores de hansenase que ainda vivem nas entranhas de leprosrios pelo Brasil afora (cerca de trs mil) e outros segmentos encarcerados. Quero agradecer a todos os expositores, representantes do Governo, do Poder Judicirio, do Ministrio Pblico e da sociedade civil. Quero manifestar tambm meus agradecimentos aos participantes que contriburam e engrandeceram esta obra, verdadeiro guia para todos ns.Deputada Iriny Lopes Presidente da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados

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apresentao iiPublicar a realizao da Audincia Pblica e do Seminrio Nacional sobre a banalizao da interdio judicial no Brasil , para o Conselho Federal de Psicologia, um dever, pois a questo da interdio judicial tornou-se importante para os psiclogos que atuam na sade mental, e a realizao dos eventos que aqui esto transcritos, pode ser considerada como um compromisso coletivo na busca da superao do problema. Em primeiro lugar, preciso deixar claro que acreditamos que o Benefcio de Prestao Continuada BPC e a Lei Orgnica de Assistncia Social sejam conquistas das mais importantes da sociedade brasileira. A transferncia de recursos para aqueles que, por qualquer motivo, estejam incapacitados de proverem as condies mnimas para sua existncia deve ser, sim, um dever do Estado brasileiro. Consideramos que a existncia desse tipo de programa e dessa Lei uma conquista da sociedade brasileira. Queremos deixar claro que no h nenhum tipo de questionamento acerca da importncia da Lei Orgnica de Assistncia Social LOAS ou da importncia do benefcio, ou, ainda, de qualquer idia de sua restrio ou limitao aos portadores de transtornos mentais. A busca, pelos psiclogos, da reinsero social dos usurios dos servios de sade mental, resgatando uma condio cidad para essas pessoas, comeou a se chocar com a condio, que muitos buscavam e possuam, de interditados judiciais, sobretudo a partir do recebimento do benefcio previsto na Lei Orgnica da Assistncia Social LOAS. Uma populao muito pobre e portadora de transtorno mental tem feito um percurso que tem, na interdio judicial, a condio para que receba o Benefcio de Prestao Continuada previsto na LOAS. Tomamos conscincia dessa situao e, como categoria profissional que tem feito de seu trabalho na rea da sade e tambm sua militncia em favor de uma reforma psiquitrica no Brasil, indignamo-nos. Sem dvida, a interdio judicial, a qual responde falta de condio laboral dessas pessoas, vem sendo banalizada, e muitos dos usurios tm ficado com sua condio de cidadania restrita, pois ela atinge suaa Banalizaoda interdio

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condio pessoal de gesto de sua prpria vida, impedindo a conquista de direitos e reduzindo sua dignidade social. Feitas essas constataes, o Conselho Federal de Psicologia se decidiu pelo debate como a melhor forma de enfrentar a questo, que, se por um lado caminha contrria luta por uma cultura antimanicomial que possa devolver a condio cidad aos usurios dos servios de sade mental, por outro, tem sido tomada como sada para a extrema pobreza dessas pessoas. O debate foi ento marcado e organizado por um conjunto de instituies que, provocadas pelo Conselho de Psicologia, responderam imediatamente, assumindo conosco a necessidade de pensar coletivamente sobre a questo e rever as polticas j definidas. A Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados encabeou os debates, em parceria com a Rede Nacional Interncleos da Luta Antimanicomial, a Comisso de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil e o Conselho Federal de Psicologia. O Ministrio Pblico Federal, o Departamento de Benefcios Assistenciais da Secretaria Nacional de Assistncia Social do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, a Secretaria Nacional de Assistncia Social e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica responderam ao chamado e fizeram o debate necessrio e inicial. O Conselho Federal de Psicologia considera que a iniciativa foi importante e que a conquista est, exatamente, em que agora somos um conjunto amplo de pessoas e entidades que tomaram nas mos a questo da banalizao da interdio judicial e, comprometidas, buscaremos juntas as solues necessrias. Esta publicao tem a finalidade de registrar os debates e tornlos pblicos, no sentido exato da palavra, isto , fazer circular e estar acessvel a todos os que compartilhem essas preocupaes e queiram somar esforos na busca das solues. , nesse sentido, um convite luta.Ana Mercs Bahia Bock Presidente do Conselho Federal de Psicologia14 a Banalizaoda interdio

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apresentao iiiNada melhor que as prprias pginas deste relatrio para comprovarem o sucesso alcanado pela Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados com a sua louvvel iniciativa de, a partir da provocao do Conselho Federal de Psicologia, realizar o Seminrio Nacional: H banalizao nos atos de interdio judicial no Brasil? Mais que a infeliz notcia de que um elevado nmero de nossos concidados tem sido interditado judicialmente como pr-condio para o gozo de benefcios da seguridade social, como, alis, h muito j era mesmo do conhecimento de todos, o evento estimulou o dilogo entre Governo e sociedade civil sobre o assunto e, como seu resultado, a concluso de que a interdio judicial no Brasil tema que diz respeito aos direitos humanos e dignidade das pessoas. , portanto, sobre o prisma da defesa e promoo dos direitos humanos que o tema deve ser abordado e em definitivo combatida a banalizao da interdio judicial no Brasil. Afinal, a questo envolve pessoas com sofrimento ou transtorno mental que, muito embora impedidas, parcial ou absolutamente, de exercerem pessoalmente os atos da vida civil, devem ter respeitados os seus direitos e protegida a sua integridade fsica e mental. Lutar contra o estigma que, na maioria das vezes, tambm resulta da interdio, certamente evitar o isolamento ou mesmo a excluso cada vez maior do indivduo, conferindo-lhe a dignidade inerente sua vida humana. Como advertia Caio Mrio da Silva Pereira, a lei no instituiu o regime das incapacidades com o propsito de prejudicar aquelas pessoas que dela padecem, mas, ao revs, com o intuito de lhes oferecer proteo. O novo Cdigo Civil ampliou possibilidades, pois os que, por enfermidade ou deficincia mental, tm o discernimento apenas reduzido, j no podem mais ser considerados absolutamente incapazes, mas apenas relativamente, e a certos atos ou maneira de os exercer.

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Essa distino importante no somente pelo fato de a legislao civil no utilizar mais a expresso louco de todo o gnero, mas sobretudo por no possibilitar que o indivduo seja considerado absolutamente incapaz pelo simples fato de ter sido acometido de enfermidade ou deficincia mental Afinal, no mais por si s essa situao em que eventualmente se encontre que define a sua absoluta ou relativa incapacidade, mas o que agora lhe impede ou apenas restringe a prtica dos atos da vida civil , na verdade, a ausncia ou a reduo do seu discernimento. Por isso a interdio no pode ser tida como condio necessria concesso de benefcio, ainda que esteja o indivduo incapacitado para a vida independente e para o trabalho. No particular, todo o controle social reside na atuao do Juiz, do Promotor de Justia, do perito e do advogado, que, no desempenho de seu mister, devem buscar tambm a realizao dos direitos humanos. Como inclusive j estabeleceu a ONU como um dos princpios bsicos relativos ao papel da advocacia, protegendo os direitos de seus clientes e promovendo a causa da Justia, os advogados devem tratar de fazer que se respeitem os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais reconhecidas pelo Direito nacional e internacional. Dessa concepo por ele tambm partilhada sobre o seu papel que resultou o apoio do Conselho Federal da OAB importante iniciativa da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados em realizar o Seminrio. Afinal, tambm a advocacia pode e deve ser utilizada como um instrumento privilegiado na defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.Joelson Dias Membro efetivo da Comisso Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB

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usos e aBusos da psiquiatriauma violnCia Contra a demoCraCia e os direitos Humanos

Cmara dos Deputados Braslia, DF 16 de junho de 2005

iriny lopesPresidente da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados Declaro abertos os trabalhos da presente Audincia Pblica, que tem como finalidade tratar do tema Banalizao da Interdio Judicial no Brasil. A Comisso de Direitos Humanos decidiu pela realizao desta Audincia Pblica a partir da provocao do Conselho Federal de Psicologia, que nos trouxe a preocupao com a relevncia do tema e sua prpria surpresa com o alto nmero de pessoas interditadas por familiares, e o quanto isso est criando uma anormalidade em um processo que deve ser tratado como uma exceo, e, como essa exceo, pela ampliao de sua aplicao, est tornando-se uma regra e, com isso, privando homens e mulheres de seus direitos bsicos. Por isso, consideramos que deveramos dar ateno especial ao tema e criar um ambiente onde ele pudesse ser debatido, um espao de dilogo sobre a questo, e, a partir da, verificar o que a Comisso de Direitos Humanos da Cmara Federal poderia fazer.

marCus vinCius

de

oliveira silva

Representante do Conselho Federal de Psicologia Gostaria de saudar a Deputada Iriny pela iniciativa de convocao desta Audincia Pblica que, na verdade, d seqncia a um esforo para a abordagem de um tema complexo, de pouca visibilidade, mas de grande importncia. Esse tema apareceu para ns a partir do momento em que, nos servios de ateno sade mental, onde trabalham muitos colegas, a questo da interdio judicial se tornou, de certa forma, banal e cotidiana. A solicitao de pareceres dos profissionais que trabalham na reforma psiquitrica para instrurem os processos de interdio judicial dos usurios do servio de sade mental e a presena de usurios, que, atendidos nos servios de sade mental, em uma perspectivaa Banalizaoda interdio

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da reforma psiquitrica, que prev sua reabilitao social, encontravam, na sua condio de interditados judiciais, um impedimento para evoluir na sua situao clnica, nos alertaram que algo no ia bem, ou seja, ocorria uma grande contradio entre o objetivo de todo o trabalho da reforma psiquitrica, que a ressocializao das pessoas, a reinsero social, e a condio freqente de que pessoas, de modo geral bastante pobres, passaram a ser interditadas judicialmente, sobretudo a partir do recebimento do benefcio previsto na Lei Orgnica da Assistncia Social. Ento, talvez o primeiro esforo que tenhamos de fazer seja reconhecer que existe um problema que nos afeta de duas maneiras. Em primeiro lugar, afeta-nos no plano da assistncia sade mental, da assistncia psiquitrica, com uma grande contradio entre o objetivo dessa assistncia e o efeito nefasto que a interdio gera na vida dessas pessoas. Em segundo lugar, entendemos, ampliando essa reflexo e constatando que o nmero dessas pessoas crescente, est ocorrendo um grave problema de direitos humanos na medida em que esses pacientes, muitos deles nossos conhecidos, os quais atendemos, com plenas condies de gerirem sua vida pessoal, mas sem condio laboral, ficavam restritos em sua cidadania a partir de sua condio de interdio judicial. A partir disso, passamos a interessar-nos pelo problema, buscamos compreender como o mesmo est produzindo-se e constatamos que de grande extenso. Chegamos a falar de genocdio poltico de um determinado grupo de brasileiros, aqueles que, sendo muito pobres e portadores de transtorno mental, fazem um percurso que tem, na interdio judicial, a condio para que recebam o benefcio de prestao continuada previsto na LOAS. Em primeiro lugar, preciso deixar claro que no acreditamos que o benefcio de prestao continuada e a Lei Orgnica de Assistncia Social sejam conquistas das mais importantes da sociedade brasileira. A transferncia de recursos para aqueles que, por qualquer motivo, estejam incapacitados de proverem as condies mnimas20 a Banalizaoda interdio

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para sua existncia deve ser, sim, um dever do Estado brasileiro. Consideramos que a existncia desse tipo de programa e dessa Lei uma conquista da sociedade brasileira. Queremos deixar claro que no h nenhum tipo de questionamento acerca da importncia da Lei Orgnica de Assistncia Social ou da importncia do benefcio, ou, ainda, de qualquer idia de sua restrio ou limitao aos portadores de transtornos mentais. A questo, como podemos compreend-la, tem vrios desdobramentos. H, ento, essa dimenso, que importante, porque o benefcio de prestao continuada, ainda que no esteja previsto na legislao que o regula e nas instrues emanadas dos rgos que o exercem e o controlam, ainda que no esteja escrito em lugar algum a exigncia da interdio judicial como elemento fundamental para que possa ser recebido, converteu-se em prtica comum na sociedade brasileira. Isso quer dizer que, ainda que no fosse a inteno do benefcio e que seja contraditrio com um dos artigos do benefcio que diz que a finalidade do mesmo reinserir socialmente, de forma concreta, a interdio se converteu em uma prtica de lesar a cidadania. H um grande contingente de brasileiros que, repito, so pobres e so portadores de transtornos mentais. como se houvesse um certo grupo que tem encontrado, como possibilidade de inscrever-se nesse benefcio, a condio da interdio judicial, mesmo que esta no seja uma das exigncias estabelecidas para seu recebimento. Ento, encontramo-nos diante de um fato de cultura que se alastrou em nosso pas e contagiou vrias esferas da administrao pblica que tm correlao com esse procedimento. Por exemplo, quanto a esse benefcio, ainda que no esteja previsto em nenhuma orientao do INSS, em nenhuma orientao da prpria Secretaria de Assistncia Social do Ministrio do Desenvolvimento Social, constatamos, em vrias circunstncias, haver inclusive funcionrios do INSS que afirmavam colaborar para agilizar os processos de interdio judicial de forma a facilitar que esses brasileiros tivessem acesso ao benefcio. Encontramos tambm, nos servios de sade mental, umaa Banalizaoda interdio

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prtica comum, na qual a questo do diagnstico psiquitrico, do laudo psiquitrico, muitas vezes, cede diante da insuficincia social que o candidato apresenta e faz um julgamento antecipado do direito ao benefcio, e concede, pelo laudo, a avaliao de que o sujeito incapaz para os atos da vida civil, e no apenas para os atos da vida laboral. muito interessante, porque temos, nos servios de sade, nessas percias psiquitricas, muito mais facilidade de se obter um laudo que confirme que o sujeito incapaz para a vida civil do que incapaz para a vida laboral. Se pensarmos que a vida laboral uma das dimenses da vida civil, isso parece um contra-senso, e est a convocar os responsveis por esses diagnsticos e por esses laudos a um novo posicionamento que no leve em considerao uma posio aparentemente de boa vontade no sentido de estarmos facilitando a situao para que esse sujeito possa ter o seu benefcio, despolitizando a situao, sem considerar que, ao faz-lo, temos um grande prejuzo para a cidadania, temos o ato de um agente do Estado que est concorrendo para desabilitar a cidadania de determinado cidado que compe exatamente o elo mais frgil da sociedade. Portanto, podemos pensar que, nesse caso, temos uma ao de lesa-Constituio, porque o Estado brasileiro estaria agindo, atravs de seus agentes pblicos, nas diversas instncias, para facilitar ou concorrer para que um certo grupo de brasileiros tenha diminudo seu patamar de cidadania. Esse um problema de direitos humanos e um problema grave de direitos humanos. No podemos trocar o benefcio pela cidadania, e isso tem sido pedido somente aos portadores de transtorno mental. Por outro lado, quando esses processos no so feitos atravs da via, digamos, tradicional, verificamos, muitas vezes, que o Judicirio, e a acredito que a posio do Ministrio Pblico seja fundamental, tambm cede diante desse laudo com a mesma boa vontade, ou seja, o sujeito to pobre, tem tantas dificuldades, que concedemos a interdio. Essas interdies nem sempre so revistas, e seus curadores nem sempre so acompanhados e avaliados. Posso citar aqui, nominal-

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mente, vrios casos de pessoas cujas interdies servem para beneficiar os curadores, mas os sujeitos no so beneficiados por isso. Quanto ao Ministrio da Assistncia Social, que, de certa forma, no estabelece essa exigncia, temos de buscar, na Secretaria Nacional de Assistncia Social, exatamente o reconhecimento das intenes relativas forma como esse benefcio tem sido concedido a esse grupo social dos portadores de transtornos mentais, que problemtica e precisa ser repensada. Mais objetivamente, precisamos repensar os critrios para a incluso de pessoas portadoras de transtornos mentais nesse benefcio, pois esses critrios, na medida em que apontam perspectivas mais objetivas, tornam-se mais compreensveis. Em um pas que vive de fraudes nos benefcios sociais, muito compreensvel que um critrio tente buscar formas objetivas de avaliao e que a percia possa acompanhar esse esforo de objetivao dessa condio de necessitado ou de incluso na reivindicao do benefcio. Precisamos pensar que os portadores de transtornos mentais, e talvez esse seja o ponto central de nossa discusso, formam um grupo que se exprime socialmente, exprime sua conduta na vida social de um modo bastante particular, e como grupo particular que tem que ser observado e compreendido. Os critrios devem tornar possvel a incluso desse grupo no benefcio, sem a necessidade de fazer esse recurso, digamos assim, torto, essa volta to prejudicial, que buscar na condio de interditado judicial a legitimidade para ser beneficirio da prestao continuada. Ento, temos, na verdade, um fato de cultura que, aparentemente, de boa vontade para com os pobres e portadores de transtornos mentais, mas que custa a eles o prprio exerccio de sua cidadania. Podemos afirmar que, dentre desse grupo de portadores de transtornos mentais, grande o nmero de pessoas que no necessitaria estar interditado judicialmente, mas que teria condies de ser enquadrado como beneficirio da prestao continuada porque so, de fato, portadores de dificuldades laborais importantes, de uma incapacidade para o exerccio de sua vida laboral, mas no so incapazes para o exerccio das demais atividades de vida civil.a Banalizaoda interdio

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E, finalmente, fica a preocupao com a dinmica judiciria que banalizou a concesso da interdio judicial sem que o que foi previsto em lei, do ponto de vista do controle das situaes dos curatelados, seja exercido, sem que exista uma fiscalizao, uma pr-curao em relao ao acompanhamento desses curatelados que, podemos afirmar com certeza, pelos inmeros casos que nossa experincia assistencial demonstra, so pessoas que, muitas vezes, no so beneficirias dos recursos que recebem. E a conseguimos, ento, a ampliao de nosso problema, pois, se a questo do benefcio e a interdio judicial vinculada concesso do benefcio so um problema, temos que alcanar uma viso mais ampla para abranger o caso de muitos brasileiros, e no somente dos brasileiros pobres, que fazem jus a recebimento de penses de seus familiares, para os quais a gesto de patrimnios familiares tem sido interditada e, muitas vezes, so interdies que no se fazem acompanhar da fiscalizao da condio do benefcio daqueles que esto curatelados, ou seja, muitas vezes, o Judicirio tem concedido a possibilidade de que algum passe a responder, do ponto de vista legal, por aquele paciente sem, entretanto, acompanhar como o paciente est sendo efetivamente tratado e quais benefcios est recebendo. Temos a inteno de realizar um seminrio. Parece que nossa primeira dificuldade, talvez o primeiro sentido desta audincia, como discutamos com a deputada Iriny, seja exatamente a de poder chegar, aqui, conscincia de que temos um problema grave, de que o que parece ser uma soluo para milhares de brasileiros atravs da concesso do Benefcio de Prestao Continuada ao custo de sua cidadania no pode continuar. No podemos aceitar o fato de que os pobres brasileiros, para receberem determinados benefcios, tenham de pagar o nus de perder sua cidadania. Precisamos reconhecer que esse um problema grave, que um problema institucional da Repblica, que os agentes que concorrem para a promoo dessa situao atuam no interior do Estado, e que, portanto, inconscientemente, na ao particular, parcelada, de cada um, estamos produzindo um efeito que precisa ser cessado para que os brasileiros possam, sim, ter direito ao benefcio,24 a Banalizaoda interdio

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mas que isso no tenha de lhes custar a cassao da cidadania. Ento, preciso que o Ministrio Pblico esteja atento, apontando esse panorama de defesa dos direitos do cidado, pois, aparentemente, o controle no est operando. Todos somos cmplices dessa convico de que, aos pobres, melhor conceder o benefcio mesmo que lhes custe a cidadania, porque, afinal de contas, precisam do benefcio. Isso nos parece absolutamente injusto, indigno, e o que precisaramos afrontar neste debate, nesta discusso. Que essa audincia possa iluminar-nos, no sentido de que esses vrios atores que compem o problema possam ser tambm responsveis por algum nvel de interveno para que o problema cesse. Benefcio, sim; perda de cidadania, no. Acho que esse deve ser o objetivo de nossa discusso.

iriny lopesPresidente da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados Quero registrar a presena do Deputado Estadual de So Paulo, Renato Simes, que presidiu a Comisso de Direitos Humanos da Assemblia Legislativa de So Paulo mais de uma vez, sendo um grande militante da rea.

alfredo sCHeCHtmanCoordenador Substituto do Programa de Sade Mental do Ministrio da Sade Gostaria de agradecer o convite e lamentar que ele tenha chegado em nossas mos apenas ontem, no final da tarde. A Teresa, diretora de nosso departamento, e o Pedro se viram impossibilitados de participar porque esto em um evento conjunto do Ministrio da Sade e do Ministrio do Trabalho e Emprego, com a discusso do programa de gerao de renda para usurios dos servios de sade mental, mas com prazer que tento substitu-los aqui.a Banalizaoda interdio

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Concordo plenamente com a relevncia do tema, conforme Marcus Vincius j ressaltou. No momento em que temos em curso, no Pas, o processo de reforma psiquitrica, essa questo se torna ainda mais importante, porque h contradio entre o uso de um instrumento que se v completamente defasado diante da nova realidade dos servios, da nova realidade de busca da reintegrao social e da conquista da cidadania para um segmento importante da sociedade. Tambm creio que o debate passa tambm pela questo cultural e, evidentemente, pela transformao da prtica dos agentes do Estado. Tivemos uma experincia na discusso de implantao do Programa de Volta pra Casa, fizemos uma discusso sobre haver ou no incompatibilidade entre o recebimento da LOAS e a concesso do benefcio do Programa de Volta pra Casa. Chegou-se, na discusso junto ao Ministrio da Previdncia Social, concluso de que um benefcio no anula o outro. Neste caso, o contrrio, travar a discusso sobre o fato de que o direito LOAS no tem que implicar a cassao da cidadania das pessoas. Isso um contra-senso, e acho que temos de fazer essa discusso. Parece-me que a questo do Judicirio fica fortemente implicada, alm do Ministrio da Previdncia, que precisa passar uma direo clara nesse sentido, j que no h uma orientao sobre a interdio, mas ela acaba sendo realizada. Seria extremamente importante se a Justia procedesse a uma ampla reviso de todos os processos j instaurados, at porque, muitas vezes, o prprio beneficirio nem sempre tem acesso ao benefcio, o que uma dupla perverso. Alm de termos que colocar em questo se faz sentido cassar a cidadania para se ter direito ao benefcio, h, muitas vezes, a apropriao perversa do benefcio, fato para o qual precisamos voltar um olhar atento. Seria muito importante que o Judicirio, o Legislativo e nossas instncias pudessem, junto ao Ministrio Pblico, solicitar uma reviso dos processos das pessoas atualmente interditadas e a reviso dos processos de interdio de um modo geral, porque no h como misturar a questo da incapacidade para o trabalho com a incapacidade para a cidadania.26 a Banalizaoda interdio

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No exemplo que trouxe, busca-se tambm a reverso da possvel incapacidade para o trabalho, criando-se mecanismos apropriados, seja por meio de cooperativas, seja por instrumentos de gerao de renda que aumentem essa forma de reintegrao e de incluso social. Concluindo, aqui est o que eu queria trazer: anotei alguns dados para mostrar a relevncia que temos nesse processo de reforma psiquitrica em curso e constatamos uma sensvel reduo de leitos no Pas e a criao de novos servios extra-hospitalares, e impe-se que esse instrumento de interdio no se transforme em um instrumento perverso de desconstruo do processo de reforma psiquitrica. Ento, quero manifestar tambm nossa preocupao e nossa adeso a essa discusso de suma importncia.

ana lgia gomesDiretora do Departamento de Benefcios Assistenciais da Secretaria Nacional de Assistncia Social do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome Gostaria de cumprimentar os membros da mesa, cumprimentar e saudar a iniciativa do Conselho Federal de Psicologia, to bem acolhida pela Comisso de Direitos Humanos, especialmente pela Deputada Iriny, e dizer do nosso envolvimento com essa questo, j h algum tempo discutida com o CFP, e da absoluta relevncia do tema, e ressaltar que temos interesse em discuti-lo. Pedi Deputada para falar antes do Instituto Nacional de Seguridade Social com o propsito de prestar alguns esclarecimentos. O gestor desse benefcio e o responsvel por seu oramento o Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, atravs da Secretaria Nacional de Assistncia Social, e o INSS opera, desde 1996, em razo de um decreto e pela legislao, at por vocao e pela rede que possui, esse benefcio para o gestor federal, no caso atual, o Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome.

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Outro fato que tambm gostaria de deixar claro que a Lei Orgnica de Assistncia Social, aprovada em 1993, embora seja citada pelas pessoas como um benefcio, transformando este ltimo em lei, tem muito mais projetos, programas e benefcios alm do da prestao continuada. Este um direito constitucional, regulamentado pela Lei Orgnica, bastante expressivo, mas a Lei est em curso, sua execuo possui bastante consistncia, e estamos construindo o sistema nico de assistncia social para que a poltica pblica de assistncia social seja, de fato, integralmente cumprida. O sistema nico de assistncia social compe-se de uma srie de programas, benefcios e projetos para alm do benefcio de prestao continuada, ainda que, no oramento, este seja o mais expressivo, equivalendo hoje a R$ 7,5 bilhes. O total do oramento do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome de cerca de R$ 60 bilhes. J foi dito que se trata, ento, de direito constitucional, que representou uma luta que, na minha militncia, tambm tive oportunidade de participar, uma luta da sociedade civil, especialmente das pessoas com deficincia e idosos, para conseguir esse direito. Nesse sentido, gostaria tambm de falar do significado desse direito. Pela primeira vez, o Estado brasileiro reconhece, em uma poltica de Estado, que cidados, independentemente de sua contribuio seguridade social, tm o direito de ter a proteo social do Estado no momento em que esto incapacitados para o trabalho. um benefcio no contributivo, reconhecido de modo indito, e no depende de qualquer contribuio ao sistema do seguro social; essas pessoas, como em outros pases do mundo, tm direito proteo do Estado. Do ponto de vista dos outros pases, evidente que, no Brasil, considerando inclusive seu tamanho e sua populao, bastante expressivo o nmero de atendimento. O alcance e a cobertura do benefcio, nesse momento, inclui cerca de 2.250 mil de pessoas. Dentre esses, 1.160 mil so deficientes. Gostaria tambm de dizer que o impacto socioeconmico desse benefcio inquestionvel. Temos pesquisa que aponta dados im28 a Banalizaoda interdio

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portantes, assim como o prprio benefcio da previdncia social e do benefcio do trabalhador rural, que tm uma importncia econmica nos Municpios. As pesquisas tambm indicam que esse benefcio por demais seletivo e restritivo. A Lei coloca o seu acesso para a pessoa que vive com menos de do salrio mnimo, portanto, seu impacto se torna bastante expressivo porque atinge o limiar da indigncia. Ao ser concedido um salrio mnimo, as pessoas so tiradas da linha da indigncia e levadas linha da pobreza. Ento, esse dado tambm me parece importante para ser citado. Houve um crescimento bastante expressivo de 1996 para c. De 2003 para c, a partir da colocao em vigor do Estatuto do Idoso, a curva de crescimento foi de mais 300 mil benefcios, com uma mdia, no ano passado, de 40 mil mensais, dada a ampliao de sua cobertura para as pessoas idosas, porque houve, ento, uma reduo da idade para o acesso e tambm a oportunidade de que uma pessoa idosa na famlia no seja contada no clculo para o acesso da outra. Dessa forma, possvel conceder o benefcio se atendido o critrio de menos de do salrio mnimo, e temos constatado que o crescimento ocorreu em razo dessas duas possibilidades. Da vocs podem avaliar esse impacto. Uma outra questo que no tem sido esquecida, e na qual estamos trabalhando, que o benefcio constitui uma transferncia de renda, e, portanto, no pode ser o nico acesso dos beneficirios s polticas pblicas. Esses beneficirios tm acesso a uma renda, basicamente para a proviso da sobrevivncia, mas tm o direito a todas as outras polticas pblicas que devem ter uma inter-relao com a poltica de sade, de educao, de cultura e todas as outras a que tm direito. Com relao interdio, tenho dito que o problema no est muito bem abordado. Acho que a melhor maneira de enfrentar o problema localiz-lo da melhor forma possvel, com todos os atores envolvidos. Penso que a expresso de que um direito dessa magnitude, direito de poltica pblica, inclusive, to questionado por determinados segmentos da sociedade, que tm dito na imprensa que o Governo est gastando muito dinheiro na rea social, esse benefcio da polticaa Banalizaoda interdio

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pblica de assistncia social responsvel pela violao do direito democracia. Creio que devidamente exagerado, e no a melhor maneira de situar o problema, at porque, e acho que no preciso dizer isso aqui, muito clara a nossa contribuio para enfrentarmos essa questo. Em nenhum momento negamos o problema, mas temos que localiz-lo, seno matamos a vaca ao invs de enfrentar as pulgas. Gostaria, inclusive, de dizer que os juzes deveriam estar nesta mesa. Eles so os atores que assinam a sentena da interdio. A famlia pede a interdio a um juiz (e importante discutir as razes pelas quais a famlia levada a pedir a interdio), que pratica esse ato legal diante de elementos, sendo um deles pareceres de mdico especialistas. Portanto, vamos discutir a responsabilidade de todos os atores nessa questo. No me parece que a forma como est sendo tratado, a comear pelo direito ao benefcio assistencial, seja a melhor forma de enfrentar o problema. A Procuradora Federal Eugnia Fvero aborda muito bem essa questo da interdio, negao de direitos e proteo social, e j foi dito aqui, muito claramente, que a interdio tambm usada para acesso a outras polticas que no o benefcio, como, por exemplo, as penses previdencirias, os planos de sade e outras questes. Essa Procuradora nos lembra muito bem que o Cdigo Civil permite, inclusive, a interdio parcial, e traz o tpico, para nossa discusso, com a presena dos juzes, de como enfrentar essa suposta contradio da negao do direito das pessoas cidadania, pois de importncia fundamental, para o concurso desse tema, os termos da sentena do juiz, o que o juiz diz ao praticar esse ato e dar a sentena. Isso fundamental para que a pessoa passe ou no pela maneira restritiva dessa ao. Acho que talvez isso possa contribuir para a discusso e o enfrentamento do problema. Tambm queria lembrar, de modo nenhum negando tal questo, que essas pessoas, antes do benefcio, em sua maioria, sequer tinham documentos. Eram pessoas invisveis.

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Gostaria de dizer, por fim, que o Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome comear, a partir de agosto, uma campanha publicitria de orientao e de servio para dar visibilidade ao benefcio, mas tambm orientar os usurios, os beneficirios e as agncias executivas do INSS que desenvolvem esse trabalho para ns. Tambm vamos contar com a reviso do decreto que regulamenta o benefcio, de modo que, nessa reviso, sejam contempladas contribuies importantes para a questo. Vamos contar com a contribuio dos Municpios, porque muita gente acredita que o benefcio seja uma aposentadoria, um benefcio previdencirio. Os gestores municipais de todo o Pas, que integram o sistema nico da assistncia social, vo participar da gesto desse benefcio conosco, de modo que o usurio que procure a assistncia social tenha toda a orientao necessria. Esse um requisito para que o Municpio integre o sistema nico da assistncia social. A ltima questo que acaba de ser assinada, pelos ministros Romero Juc e Patrus Ananias, uma portaria interministerial que d legitimidade a um trabalho de especialistas, peritos do INSS e trabalhadores do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, alm de convidados especialistas na rea, com novos parmetros e procedimentos para a avaliao das pessoas com deficincia, de modo a criar instrumentos e padronizar o trabalho dos peritos, alm de aperfeioar a gesto e contribuir inquestionavelmente para essa discusso. Ento, o produto do trabalho desse grupo vai compor um decreto para dar legalidade a essa regulamentao e fazer com que os peritos tenham toda condio de atuar melhor na concesso dos benefcios.

raimundo nonatoGerente de Qualidade do INSS Quero cumprimentar a mesa e agradecer pelo convite e pela oportunidade de estarmos aqui discutindo esse tema, cujo debate j tnhamos iniciado em uma reunio com o Marcus Vincius, l no Con-

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selho Federal de Psicologia, onde surgiu a idia da implementao de um seminrio que deve acontecer futuramente. Gostaria de dizer que temos aqui presentes duas mdicas peritas do INSS: a Teresa Cristina, chefe titular da percia mdica do INSS, e a Tnia Marisa, supervisora mdico-pericial, e, se elas tiverem permisso, podem ajudar na complementao de informaes sobre a rea mdica. Queria iniciar com o art. 203 da Constituio, que afirma que a assistncia social ser prestada a quem necessitar, independentemente da contribuio seguridade social. O BPC um programa de transferncia de renda, como a Ana Lgia disse, implementado em 1996, e tem sua coordenao e sua gesto realizadas pelo Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome. O INSS, por uma determinao legal, o rgo que operacionaliza a concesso e reviso desse benefcio. financiado pelo Fundo Nacional da Assistncia Social, sendo que, em 2004, foram repassados ao INSS, para custeio do benefcio, cerca de R$ 7,3 bilhes, e, para 2005, j foi assinado o convnio de repasse de R$ 8,6 bilhes para custeio e pagamento de benefcio de prestao continuada e tambm para o Renda Mensal Vitalcia, que, a partir de 2004, passou a ser coordenado pelo Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome. O benefcio requerido nas 1.995 agncias da previdncia em todo o Brasil, e 75 unidades mveis, entre Previmveis e Previbarcos. Portanto, por ser um benefcio de cunho federal, o INSS o rgo que tem o maior poder de capilaridade para operacionalizar o benefcio. A mdia mensal de requerimento desses benefcios, em 2005, foi de 50 mil, etapa em que so analisados e ento tomada uma deciso. A mdia mensal de concesso dos benefcios est em torno de 25.900, sendo em torno de 10 mil para portadores de deficincia e 15 mil para pessoas idosas. Em 1996, tivemos 339 mil benefcios concedidos aos portadores de deficincia. Em 2004, com o Estatuto do Idoso, a mdia de con-

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cesso foi para quase 30 mil ao ms. Ento, no ano passado, foram concedidos, apenas aos idosos, 337 mil benefcios. Em maio de 2005, tnhamos 2.148 mil benefcios pagos, sendo repassados mensalmente R$ 647 milhes como transferncia de renda para essas pessoas. Fizemos um levantamento, j que a questo-foco desta reunio a interdio judicial, sobre o quantitativo de beneficirios que possuem um representante legal, o curador, e foi apontado que os portadores de deficincia, nesse caso, chegam a 64.820 mil beneficirios curatelados. O retardo mental grave o que tem maior incidncia de interdio, seguido do retardo mental moderado. Era basicamente isso o que tinha a apresentar para vocs e queria deixar a mensagem de um pensador ingls que afirma que, ao invs de se ter pena dos pobres e acabar com os ricos, devemos acabar implacavelmente com os pobres elevando seu padro de vida. Queremos enfatizar que o INSS, em seus atos normativos internos, no orienta que seja condio sine qua non, para concesso de benefcio ao portador de deficincia, a apresentao de interdio. Os documentos necessrios so os de identificao, comprovao de idade e, se necessrio, comprovao mdica. Ento, quando surgiu esse debate, e o Marcus Vincius nos convidou para a reunio no Conselho Federal de Psicologia, mostramos a eles o fluxo operacional nas agncias do INSS para a obteno dos benefcios de prestao continuada aos portadores de deficincia. Como vocs verificaram, dos 160 milhes de benefcios mantidos ao portador de deficincia, cerca de 64 mil beneficirios esto interditados. claro que, como surgiu o questionamento, estamos providenciando os dados para buscar mapear e focar onde esto as discrepncias para enfrentarmos o problema com a sociedade e, se necessrio, readequar e reorientar melhor operacionalizao desses benefcios. isso o que tnhamos a apresentar, e gostaria de pedir a permisso Deputada para que as mdicas aqui presentes fizessem alguma complementao.a Banalizaoda interdio

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tnia marisaSupervisora mdico-pericial do INSS um prazer estar aqui e poder contribuir com a discusso desse tema to importante. Gostaria de confirmar a situao da concesso do benefcio relativo parte mdica. Os mdicos peritos, ao avaliar um beneficirio candidato concesso do benefcio assistencial ao portador de deficincia, esto obrigados a seguir a legislao conforme os enquadramentos, analisando se esse portador de deficincia est, primeiro, enquadrado em alguma deficincia conforme os decretos vigentes. Estando enquadrado em alguma, avaliar se essa deficincia incapacita para o trabalho e para os atos da vida independente. Isso est na lei. At este momento, no h, em nossos atos, uma obrigatoriedade de se ter curatela. Sabemos, atravs de queixas, que existem tais condutas em algumas agncias do INSS, e essa uma situao a ser avaliada, porque no esse o procedimento determinado pela nossa legislao. Se ele ocorre em algum lugar, est desconforme com os atos legislativos. Para a concesso desse beneficio, existe a exigncia do requerimento, em alguma agncia da previdncia social, do crivo da renda e, em outro momento, da avaliao mdico-pericial que, rigorosamente, tem que cumprir essas duas exigncias da lei. Em um passo seguinte, verifica-se se essa pessoa tem a patologia de um CID enquadrado em doenas mentais; o mdico vai, ento, solicitar que a pessoa, conforme o grau do transtorno mental, seja curatelado. No existe, no momento do ato ou anterior a essa concesso, a obrigatoriedade de que tenha que haver a interdio. Acho que realmente deve haver mais discusso, mais informao, porque, infelizmente, existe uma cultura de que mais fcil haver concesso do benefcio quando se tem uma curatela. Nossa prtica, em nvel de avaliao pericial, mostra uma outra situao de questionamento de nosso perito pelo no enquadramento de uma pes34 a Banalizaoda interdio

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soa curatelada. Quando vamos indicar e avaliar a pessoa curatelada, ela no tem direito ao benefcio e tambm no estaria enquadrada para ter uma curatela. Temos casos reais, temos epilpticos simples com interdio total. Ento, esse o momento de todos ns, atores desse processo, discutirmos a questo. possvel um juiz interditar um epilptico simples? E ainda se questiona nosso perito porque ele no concedeu o benefcio assistencial! Temos vrios casos nessa situao. Marcus Vincius pontuou muito bem ao dizer que importante acompanhar o curador. Temos recebido muitas queixas de que muitos no esto assistindo aquela pessoa. Esses casos cabem ao Ministrio Pblico, que um grande parceiro nesse trabalho conjunto. A parte mdica do INSS est disponvel para esclarecimentos de dvidas e para trabalhar conjuntamente. Raimundo e eu recebemos os dados h pouco. Temos muito a analisar junto ao MDS. Provavelmente, traremos mais dados. Queremos fazer um mapeamento de tudo, e, quem sabe, para o seminrio, teremos mais informaes para enriquecer as discusses. Coloco-me disposio para qualquer esclarecimento.

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moraes

Representante da Associao Brasileira de Psiquiatria Inicialmente, gostaria de agradecer a honra de estar aqui representando a Associao Brasileira de Psiquiatria na medida em que essa uma oportunidade nica de vrios segmentos tcnicos e da sociedade, que esto envolvidos com a questo, estarem juntos e discutirem de maneira ampla e, talvez, chegarem a um consenso e a uma proposta. Sou psiquiatra e meu exerccio prioritrio na rea forense, como perito judicial. Nunca trabalhei com a rea previdenciria. Alm disso, sou tambm advogado, ento, tenho uma certa vivncia desses problemas porque, como advogado, perteno Comisso de Direitos Humanos da OAB, Seccional do Rio de Janeiro, e, como mdico psiquiatra, perteno Cmara Tcnica de Percias do Conselho Regional do Estado do Rio de Janeiro. Assim, de maneira bifronte, visualizo essasa Banalizaoda interdio

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questes muito sensveis e que, felizmente, comeam a ser discutidas no Parlamento, que parece ser a sede correta para esse debate. Gostaria de resgatar um pouco a histria da interdio. A interdio vem do Direito romano antigo, e era um processo discriminatrio do ponto de vista social e poltico, isso porque, na Roma antiga, somente tinha plena capacidade o pater famlia, ou seja, o cidado nascido em Roma, de sexo masculino e que dirigia uma famlia. Estavam excludos da capacidade os estrangeiros, as mulheres, os prisioneiros de guerra, as crianas e os doentes, isto , todos aqueles que no representavam o cidado de Roma. Portanto, o incio da histria da incapacidade est intimamente ligado a um processo discriminatrio. Na medida em que houve a evoluo das conquistas de cidadania, a partir principalmente da Revoluo Francesa, que se comeou a entender a capacidade como um atributo da pessoa humana, tanto que nosso Cdigo Civil diz claramente que a capacidade de direito surge com o nascimento com vida. Portanto, vejam que o conceito evoluiu. H algumas excees, que a prpria lei cita, como a questo da idade. A capacidade de fato inerente pessoa humana, mas o exerccio dessa capacidade pode ser limitado pelo fator da idade, fixado pelo novo Cdigo em 18 anos. Ento, a capacidade civil plena, que a capacidade de fato, pode ser exercitada pessoalmente a partir dos 18 anos. um direito de cidadania. H a questo daqueles que sofrem transtornos mentais, e essa a questo fundamental que quero trazer aqui. A capacidade civil um atributo fundamental da pessoa natural. inerente a toda a pessoa para que possa ser sujeito ativo ou passivo de direitos e obrigaes. Essa a capacidade de direito, que s termina com a morte. Inicia-se com o nascimento e termina com a morte. J a capacidade de fato, que a capacidade para exercitar esse direito, o poder efetivo. Tambm deve ficar claro que um atributo irrenuncivel, indelegvel e inalienvel, ou seja, um direito de cidadania. Ningum pode alterar isso.36 a Banalizaoda interdio

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Acho que todos esclareceram que, infelizmente, o que existe em alguns segmentos uma confuso entre a capacidade laborativa e a capacidade civil. Os dois no podem ser confundidos. Felizmente, os nossos parlamentares, na ltima reforma que fizeram do Cdigo Civil, deixaram isso muito evidente. Vou tentar especificar dentro do tempo que tenho. A capacidade laborativa a plenitude fsica e mental para exercer atividade produtiva. Essa plenitude pode sofrer limitaes temporrias ou totais em razo de doenas fsicas ou mentais. a chamada invalidez. A sua natureza trabalhista e previdenciria. E extrajudicial. Quem afirma da capacidade laborativa no o juiz. No precisa aforar ao para declarar incapacidade laborativa. Quem afirma o perito, como disse nossa colega. Ento, ela tem uma natureza prpria, no judicial. H uma confuso muito grande, at pela novidade do Cdigo Civil. O Cdigo antigo, de 1916, muito bem criticado por todos aqueles que procuram analisar essa questo de cidadania, no que tange capacidade civil, usava a seguinte expresso: "So absolutamente incapazes para os atos da vida civil...". Portanto, haveria uma suspenso do exerccio pessoal da capacidade de direito, "...os chamados loucos de todo gnero". Havia uma vinculao entre a presena da doena e a incapacidade. Era um critrio linear-biolgico. Existindo a doena, existiria a incapacidade. Alguns colegas aqui at levantaram essa tese anterior, que era um raciocnio comum do mdico psiquiatra. Entretanto, o novo Cdigo traz algo muito importante para todos ns que lutamos contra aquele tipo de preconceito que havia no Cdigo anterior. O Cdigo atual diz, no art. 3, que "so absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os que, por enfermidade ou deficincia mental, no tiverem o necessrio discernimento para a prtica desses atos". Olhem a grande novidade. Agora o doente mental no automaticamente considerado incapaz. O doente mental somente ser considerado incapaz se existir uma patologia, um transtorno, e se esse transtorno interferir diretamente em seu discernimento ou na sua manifestao de vontade. Criou-se um critrio objetivo. Hoje,a Banalizaoda interdio

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para que haja interdio civil, no basta a presena da patologia mental. necessrio que haja o prejuzo do discernimento. Esse um critrio muito objetivo. Ento, bvio que no basta a percia psiquitrica forense dizer ao juiz que existe, por exemplo, uma esquizofrenia. preciso que o perito, alm de dizer que existe uma esquizofrenia, diga que esse quadro mental de tal monta que impede a pessoa de ter discernimento para a prtica de seus atos. Portanto, houve um afunilamento da decretao da interdio. Infelizmente, concordando com o que foi dito aqui, alguns juzes no entraram no clima do novo Cdigo, e esto simplesmente fazendo uma associao arcaica, superada, entre a presena de doena e incapacidade. Ento, acho que esse um ponto que poderamos discutir aqui. Por outro lado, acho que foi um grande progresso alcanado pela luta dos profissionais de sade mental, de todos ns que aqui estamos, porque hoje admissvel legalmente que o doente mental tenha capacidade civil. O critrio agora bio-psicolgico. No basta a doena. Ela deve estar associada diretamente ao psicolgico, ao discernimento, vontade. O Cdigo Civil de 2002 exige, para que algum seja declarado absolutamente incapaz, que exista a enfermidade, o transtorno mental acoplado ausncia do discernimento. O Cdigo anterior falava, no art. 6, que seriam relativamente incapazes os prdigos. Usavam a prodigalidade como um indicador de relativa incapacidade. Entretanto, o novo Cdigo introduziu certos elementos. Hoje so relativamente incapacitantes certos hbitos ou a maneira de exerc-los, os brios habituais, os viciados em txicos e o deficiente mental, os excepcionais sem desenvolvimento mental completo e os prdigos, mas desde que tenham discernimento reduzido. Vejam que o critrio bio-psicolgico. Quero chamar a ateno para o fato de que existe um exame pericial psiquitrico para a ao de interdio. Existe a interdio absoluta e relativa, como j dito aqui. E os elementos tcnicos a serem identificados e fundamentados so esses.

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Na questo previdenciria, vou divergir um pouco dos colegas que falaram pelo INSS. Gostaria de lembrar que, na Lei n 8.213/91, houve o Decreto n 3.048/99, que modificou essa Lei, introduzindo uma alterao, tambm por Decreto, a n4.729/2003, que um dos elementos perniciosos. O pargrafo 1 do art. 162 foi alterado para dizer que obrigatria a apresentao do termo de curatela, ainda que provisria, para a concesso da aposentadoria por invalidez decorrente de doena mental. Portanto, houve a criao de um vnculo, que, a meu ver, perverso, porque o objetivo ali buscado simplesmente a aposentadoria por invalidez. Ento, no se deve introduzir a curatela nisso. preciso tentar, de alguma forma, convencer a sociedade de que so duas coisas distintas. A meu ver, o problema existe porque l no estatuto, entre as causas de invalidez, h uma expresso arcaica: alienao mental. Isso confunde a cabea de alguns peritos, que dizem que, se alienado, tem que ser curatelado. uma relao direta. Aps 1996, sentimos, pela prpria estatstica do INSS e do Departamento do Servio Social, que houve um aumento das curatelas. J foi dito aqui porque. A incapacidade laborativa tem que ser determinada por percia previdenciria ou trabalhista, pois representa um prejuzo para o exerccio do trabalho. A finalidade desse tipo de incapacidade proteo de direito. A LOAS, inclusive, contempla isso. As pessoas so protegidas atravs de uma pecnia que lhes d pelo menos a condio de sarem da misria para a pobreza. Ento, o objetivo de proteo de direitos. J a incapacidade civil, determinada por ao judicial e estabelecida por percia psiquitrica forense, um prejuzo para os atos de cidadania e traz limitao de direitos. Esse o grande divisor. Uma privilegia o direito e a outra limita o direito. Ento, no podem ser confundidas. Gostaria de lembrar que no da mentalidade psiquitrica, at porque houve no Brasil, e isso j est superado, o tempo em que se imaginava que o psiquiatra fosse uma espcie de carcereiro de luxo. Na realidade, a questo do psiquiatra forense que oferece subsdio

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para a interdio no generalizada. Pediria que fosse feita essa correo porque preciso homenagear os colegas que trabalham. E, finalmente, gostaria de dizer que, em nome dos direitos humanos e observados os dispositivos da Lei n 10.216, que a Lei da Reforma Psiquitrica, fao questo de homenagear Paulo Delgado, que dispe sobre a proteo dos direitos das pessoas com transtornos mentais. Portanto, no possvel que ns comecemos a contemplar a limitao de direitos como algo que deveria estar includo dentro da Reforma Psiquitrica. Ento, queria chamar a ateno para um princpio constitucional fundamental do art. 1 da nossa Constituio, que o princpio da dignidade da pessoa humana. Trocar algum que busca um benefcio, que est incapacitado para o trabalho, que necessita ter seus direitos garantidos, por uma aposentadoria, por uma prestao continuada, no pode ser, de forma alguma, confundido com a reduo ou com a incapacitao dessa pessoa para o exerccio pessoal dos atos da vida civil. Isso atentar contra o pilar da dignidade da pessoa humana. A pessoa humana tem que ser vista como sujeito de direitos e como algum que merece todo respeito no que se refere a sua cidadania. Esse um princpio fundamental. A meu ver, muito claro. A Constituio, quando fala na dignidade da pessoa humana, fala em no discriminao; no seu art. 5, diz claramente que todas as pessoas tm o direito de viver bem, com dignidade. E at digo aos meus alunos que traduzam dignidade como felicidade. Todas as pessoas tm o direito de serem felizes, de serem respeitadas em sua dignidade e em sua felicidade. Esse um princpio fundamental. Quero novamente agradecer em nome da Associao Brasileira de Psiquiatria a honra de estar aqui ao lado de pessoas to ilustres e dizer que preparei um texto e j o entreguei assessoria da Deputada, e ele est disposio de todos.

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CastilHo

Procuradora dos Direitos do Cidado do Ministrio Pblico Deputada, senhoras e senhores. Eu havia preparado um texto, mas, desde logo, percebi que teria de falar de improviso, porque muito do que escrevi as pessoas que me antecederam j falaram, e agora tivemos essa brilhante manifestao do Talvane, que disse tudo o que eu gostaria de ter dito. Ento, pontuarei alguns itens, manifestandome de forma opinativa a respeito daquilo que foi dito. Acredito que precisamos ter audincias que se sigam a esta ou mesmo o seminrio, porque temos de ampliar esta discusso com representantes do Judicirio, representantes do Ministrio Pblico. Estou aqui como representante federal dos direitos do cidado, mas preciso ter uma representao daquele Ministrio Pblico l da base, que atua nesses processos de interdio. No final dessas audincias, a Comisso deve tomar algumas deliberaes. Um caminho seria o de modificao legislativa. Marcus Vincius disse que no era o caso de questionar a LOAS, mas, com o que foi dito, acho que sim. Tambm preciso questionar esse decreto agora indicado, que demonstra uma regra de direito que tem um efeito perverso, porque acaba colocando, como exigncia, a interdio. No caso da LOAS, foi comentado o posicionamento da Eugnia, minha colega do MP de So Paulo, e o que sei de uma ao que foi por ela proposta e eu, aqui em Braslia, no Ministrio da Previdncia, tentei ajudar, no com relao a pessoas com deficincia mental, mas com relao a pessoas portadoras de deficincia fsica que, em virtude de a lei dizer que precisam ser portadoras de deficincia e incapacitadas para o trabalho, faz com que essa dupla exigncia para a pessoas pobres imponha que no possam trabalhar, porque, se o fizerem, perdero o benefcio. Ento, a Eugnia entrou com uma Ao Civil Pblica argindo a inconstitucionalidade da exigncia da incapacidade do trabalho, porque esta se acha na contramo da Conveno da Guatemala, a conveno dos direitos das pessoas com deficincia, porque no traza Banalizaoda interdio

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as pessoas para a incluso no mercado de trabalho na medida das suas limitaes. A juza deu a sentena favorvel, inclusive mandou cumprir. Aqui a Advocacia Geral da Unio conseguiu a suspenso da tutela, e tentei articular uma reunio com o Ministrio da Previdncia para ver se a situao muda, mas, como est na lei, no podemos alterar. Por isso digo, Deputada, que temos de questionar a LOAS. Esses pressupostos, de alguma forma, acabam levando esses diversos atores, no Judicirio, no MP no MDS, no INSS, a criar barreiras para a incluso e, no caso das , pessoas com transtorno mental, a limitarem sua cidadania. Em virtude dessa audincia, dediquei-me a um estudo sobre a interdio e as mudanas do novo Cdigo Civil, e verifiquei que realmente ele melhorou, mas ainda carece de alteraes que poderiam ser muito positivas, seguindo, por exemplo, a doutrina alem, na qual o Juiz pode definir melhor quais os atos que a pessoa pode ou no pode praticar na vida civil, ampliando, diferenciando mais, no sentido de que a interdio seja realmente excepcional. Com relao ao fato de que talvez o Judicirio e o Ministrio Pblico no se tenham dado conta dessas modificaes, realmente parece que h muito por fazer para mudar esse entendimento dos chamados operadores do Direito, mas tambm me deparei com o seguinte, e a temos o Joelson, que da advocacia, e pode-se tratar isso no mbito da OAB; digo isso porque descobri, em um informativo da Advocacia Dinmica, no ano de 2003, um pequeno artigo trazendo o caso da me que insistia em obter a interdio do filho por entender que a doena dele, a epilepsia, em evoluo desde a infncia, produziu um homem de 27 anos de idade sem aptido para o trabalho e juridicamente incapaz de gerir sua pessoa e seus bens. O laudo no confirmava incapacidade mental. O Tribunal de Justia de So Paulo indeferiu o pedido, e indeferiu muito bem, dizendo que a interdio no podia restringir o direito de vencer o infortnio da pessoa e entrou em todas essas consideraes sobre a cidadania. Pois bem, mas o advogado faz uma crtica a essa deciso e diz que isso seria muito bonito e muito bom se no vivssemos em um pas de tanta desigualdade.42 a Banalizaoda interdio

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Isso mostra como, no campo da advocacia e tambm, com certeza, se fizssemos uma enquete, seria possvel descobrir que a maioria das pessoas julgaria que melhor fazer essa troca da cidadania por um benefcio de prestao continuada. Ento, so os comentrios que fao no sentido de que precisamos discutir algumas modificaes legislativas no campo do Cdigo Civil e tambm no campo do Processo Civil, porque o primeiro mudou, mas o Cdigo de Processo Civil no mudou. Na LOAS e nesse decreto referente aposentadoria por invalidez, devemos trabalhar junto ao Judicirio, ao Ministrio Pblico e Advocacia Geral da Unio na modificao do entendimento da lei. Agradeo a oportunidade e espero que continuemos essa discusso em uma prxima audincia ou em um seminrio.

Joelson diasRepresentante da Comisso de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil OAB Devo dizer, se eu tiver direito a eventual benefcio de extenso de tempo, que me sinto prejudicado, interditado, incapacitado para realizar o trabalho que me foi atribudo, dado o brilhantismo e a profundidade com que os expositores que me antecederam abordaram o tema. Na verdade, estava incapacitado de modo apenas relativo at a interveno do Talvane, mas agora, aps a interveno da Ela Wiecko, sinto-me absolutamente incapaz de agregar qualquer dado novo a esse assunto. Mas, de qualquer forma, queria lanar trs premissas que me parecem de fundamental importncia para a compreenso desse tema e, sobretudo, de sua limitao. Devo dizer, antes, que essa parceria, j h algum tempo estabelecida entre o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, tem produzido frutos que, com certeza, esperamos sejam cada vez mais profcuos. Fizemos visitasa Banalizaoda interdio

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a hospitais psiquitricos e, graas a isso, temos hoje uma comisso instalada no Governo, em decorrncia do relatrio produzido a partir das visitas, cuja esperana de que seja uma comisso atuante para implementar, de uma vez por todas, um novo modelo de assistncia em sade mental. Esta audincia pblica mais uma atividade decorrente dessa parceria entre o CFP e a OAB para trazer tona questo to importante quanto a banalizao das interdies judiciais. Esperamos sair daqui com a possibilidade de se confirmar um seminrio onde o tema ser tratado com a profundidade que exige. De qualquer forma, este um espao extremamente adequado para um debate como este, porque chegamos para discutir a interdio judicial e j h a sugesto, inclusive, de alteraes na prpria LOAS, o que, com certeza, vir em benefcio dos que dela, infelizmente, necessitam. Penso que essa questo da banalizao da interdio judicial sob a perspectiva do benefcio de prestao continuada, assegurado pela LOAS, apresenta-se, na verdade, em um primeiro momento, como um no problema, uma no questo. Por isso, devo confessar, tive uma grande dificuldade de entender o que, juridicamente, poderia ser agregado a essa questo. Digo isso porque, absolutamente em legislao nenhuma se estabelece, sequer se cogita de um vnculo entre a interdio e a concesso do benefcio. O motivo existe, geralmente, quando h uma exigncia de interdio e o advogado chamado para solucionar o problema do ponto de vista da interpretao, antes que o legislador possa promover a alterao. Mas esse problema simplesmente no existe. A interdio instrumento previsto no Cdigo de Processo Civil, em seus artigos 1.180, 1.181 e adiante, e o benefcio de prestao continuada decorre da Lei que estabeleceu a poltica de assistncia social. interessante ver que os fatos acontecem por nossa reivindicao, a da sociedade civil, e depois parece que ns mesmos no conseguimos acompanhar a mudana que provocamos. Essa confuso entre interdio e concesso do benefcio parece-me ser um exemplo44 a Banalizaoda interdio

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muito prtico disso. A primeira confuso que se estabelece deve-se ao fato de muitos no terem conseguido recuperar a natureza do antigo amparo previdencirio estabelecido em 1974, pela Lei n 6.179, com o atual benefcio de prestao continuada, que, de previdencirio, no tem absolutamente nada. um benefcio de natureza assistencial. de fundamental importncia essa compreenso, porque, se compreendermos realmente o benefcio, com a natureza que lhe prpria, teremos muita facilidade de entender porque, s vezes, nem mesmo essa incapacidade, que deveria ser chamada de restrio ou impedimento para o trabalho, representa um requisito necessrio. Digo isso porque, na evoluo do amparo previdencirio, passando inclusive pela renda mensal vitalcia assegurada pela Lei n 8.213 at chegarmos ao benefcio da prestao continuada, continuou-se exigindo praticamente os mesmos requisitos do amparo e previdencirio, e da, porque se continuou, da mesma forma que se falava invlido para o desempenho de atividade laboral, de uma certa forma, esta se converteu em incapacidade para o trabalho. Entendo este como um requisito talvez at excessivo, porque a LOAS decorre da efetivao do art. 203 da Constituio, que simplesmente no faz referncia nenhuma incapacidade para o trabalho, e, enquanto tal, esse problema simplesmente no se apresenta ou no deveria apresentar-se dessa maneira. bvio que a interdio ocorrer em determinados casos, pois resulta da incapacidade que o indivduo tem para reger a sua vida pessoal e seus bens. Ningum, em s conscincia, nega que, em determinados casos, isso efetivamente ir ocorrer. Caso de interdio declarado por sentena judicial, a meu ver, se os outros requisitos para a concesso do benefcio se fazem presentes, tem que ser contemplado pelo INSS, sem prejuzo, claro, de o INSS levar a matria ao Ministrio Pblico e este poder, ento, levantar a interdio. Mas, se existe uma sentena, por mais que aquela situao no se apresente prpria, no caberia, a meu ver, entidade administrativa, presentes os demais requisitos, indeferir o benefcio. Isso caso para o Ministrio Pblico, como caso para o mesmo MP acompanhar toda a tramitao do processo dea Banalizaoda interdio

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interdio que, muito embora o Cdigo de Processo Civil no tenha sido alterado depois do Cdigo Civil, define com bastante clareza o procedimento, exige que o juiz interrogue o interditor para certificarse de que as condies para a interdio efetivamente se apresentam, mas assegura ao interditando o direito de defesa, de impugnar a interdio que se pretende. Mas, penso que no o caso aqui de se discutir a interdio com maior profundidade, porque, como disse, a interdio apresentar-se- em determinados casos e est prevista e bem contemplada, principalmente com a competncia que o Ministrio Pblico detm e com a exigncia que se faz de ouvir o interditando, de se promover percia para se comprovar a situao antes da declarao da interdio, o que est muito bem contemplado no Cdigo de Processo Civil, at porque a interdio, pelo prprio Cdigo, no um estado definitivo. A sentena nem sequer transita em julgado. O processo continua em aberto porque, superada aquela fase que levou interdio, nada obsta que o interditado possa, ento, propor o levantamento dessa condio. Ento, essa a premissa que me parece deva ser superada: compreender o benefcio de prestao continuada como benefcio da assistncia social que, de previdencirio, no tem absolutamente nada, e, por fora de disposio constitucional, ter em mente que nem o requisito da incapacidade para o trabalho exigido. A segunda questo que me parece de fundamental importncia entender o modelo assistencial de atendimento s pessoas portadoras de transtorno mental. A posso sugerir que, muito embora tenha sido editada a Lei n 10.216, que estabelece esse novo modelo, muitos no atentaram para o fato de que, antes mesmo de definir qual esse novo modelo, a Lei dispe sobre a proteo e a promoo dos direitos das pessoas portadoras de transtorno mental, ou seja, a nfase est toda no direito dessas pessoas antes mesmo de se discutir esse novo modelo de assistncia que se prope. por fora dessa mesma lei, que, no art. 4, pargrafo 1, teremos uma disposio clara, especfica, dizendo que o tratamento visar como finalidade permanente a rein46 a Banalizaoda interdio

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sero social do paciente. Assim, bvio que no h como se conceber a interdio como medida pura e simplesmente destinada aquisio de um benefcio em detrimento da prpria Lei n 10.216, que assegura os direitos da pessoa portadora de transtorno mental e prope esse novo modelo como direito de reinsero do paciente e tratamento permanente. Penso que de fundamental importncia compreendermos esses direitos do paciente porque, dentre eles, h o direito de ser esclarecido, informado, incluindo sua famlia, e indispensvel que, no processo de interdio, estejam Juiz, Ministrio Pblico, perito, muito certos se o objetivo da interdio no , pura e simplesmente, a obteno do benefcio, porque a, da mesma forma que, no exemplo sobre o estado em que se apresenta hoje o debate, Ana Lgia citou, com muita propriedade, o dito popular de que, s vezes, se mata a vaca para se acabar com as pulgas, nessa questo, aproveitando a mesma sabedoria popular, no podemos entregar os dedos, que so os direitos assegurados a todos constitucionalmente e por fora dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, para preservar o anel, que, no caso, seria o benefcio de prestao continuada. Finalmente, como foi muito bem explanado pelo Talvane, o novo Cdigo Civil, e sua entrada em vigor a partir de janeiro de 2003, outra questo paradigmtica para a soluo desse no problema, desse no conflito que se apresenta entre a interdio e a concesso do benefcio de prestao continuada. Com a propriedade que lhe peculiar, o Talvane ressaltou muito bem que, antes, bastava a considerao "louco de todo gnero" (essa era a expresso do Cdigo) para levar interdio; hoje no mais se faz suficiente, nem mais dessa expresso se utiliza o Cdigo. Hoje, alm dessa anomalia psquica, que a expresso utilizada pelo Cdigo de Processo Civil quando trata da interdio, necessrio averiguar sobre a capacidade de discernimento, porque, at mesmo naqueles casos mais graves de transtorno mental, se no for grave o bastante, no h mais que se falar em interdio absoluta. Eventualmente ocorrer a interdio apenas parcial e, assim mesmo, com a descrio dos atos pelos quais o indivduo se apresenta interditado.a Banalizaoda interdio

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Eram essas as minhas consideraes, at por fora da limitao do tempo e, como disse antes, por tudo o que j foi exposto. Queria encerrar, senhora presidente, agradecendo o convite que foi formulado ao Conselho Federal da OAB, agradecendo esse convite em nome do presidente do Conselho Federal da OAB, Roberto Antnio Busato, bem como de nosso presidente da Comisso Nacional de Direitos Humanos, Jos Edsio Simes Souto, que, infelizmente, por outras questes profissionais previamente agendadas, no pde fazer-se presente. E encerro dizendo que a lei que instituiu o regime das incapacidades no teve o intuito, o propsito, de prejudicar, mas o de proteger. com essa observao, com essa advertncia, que no minha, mas de um grande estudioso do Direito Civil e figura das mais respeitadas, que Caio Mrio da Silva Pereira, que queria terminar esta interveno, agradecendo a oportunidade que me foi dada e esperando que, com certeza, outras atividades como esta sejam realizadas. Muito obrigado.

mark npoliRepresentante da Rede Nacional Interncleos da Luta Antimanicomial Acredito que a Mesa praticamente esgotou o que era preciso ser dito. Gostaria de primeiramente agradecer a oportunidade de a Rede Nacional Interncleos estar presente nesse debate de grande importncia e agradecer Deputada Iriny. Posso comear dizendo que, dada a pertinncia do tema, com certeza no o esgotaremos aqui. A necessidade de um seminrio para discutir a questo do benefcio de prestao continuada, principalmente no que diz respeito ao portador de sofrimento mental, necessria e urgente. No podemos mais adiar essa proposta. Feita essa primeira considerao, acho que criar um instrumento de gerao de renda para pessoas incapacitadas para o trabalho48 a Banalizaoda interdio

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e para gerar uma renda prpria atravs de uma aposentadoria ou de uma penso de extrema pertinncia. A LOAS tem um aspecto que um avano e que tem sido muito til para pessoas que esto no limite da misria. No entanto, quando se introduzem, nessa Lei, termos como deficiente ou incapaz para os atos da vida independente, estes expressam o preconceito da sociedade em relao aos portadores de sofrimento mental. Ento, tambm nosso desafio tirar esses termos desse benefcio, porque so muito genricos. Dizer que algum deficiente complicado. Qual de ns no tem algum grau de deficincia? O que est disposto representa um critrio que revela o preconceito de cada um, e o que vemos, como conseqncia disso, so os absurdos que acontecem na vida de pessoas que tm claramente a necessidade do benefcio de prestao continuada terem negado esse direito. Sabemos de pessoas para as quais o benefcio produziu mais um encarceramento, como aquelas que viraram refns da famlia, que se utiliza daquele benefcio para uso prprio ou dos portadores de sofrimentos mentais crnicos, que esto em instituies psiquitricas que fazem do benefcio mais uma renda para a prpria instituio. H assistentes sociais de hospitais psiquitricos que so curadoras dessas pessoas, e a instituio recebe o benefcio, que repassado parcialmente cantina do prprio hospital ou fica com a prpria instituio, e, com isso, o hospital trabalha ainda menos para que ela se recupere e ganhe liberdade. Acho que a capacidade de exercer os atos da vida de forma independente algo que almejamos para todos, e deveria ser o trabalho-foco de todo servio de sade mental. Cria-se a situao de se almejar que a pessoa consiga atingir sua independncia, e isso pode ameaar o benefcio que ela recebe. preciso construir uma outra lgica para esse benefcio de prestao continuada, uma lgica que permita que o trabalho do servio de sade mental continue dando a direo da incluso social, da autonomia, da garantia dos direitos de cada um. Esse benefcio tem que ser mais um instrumento para resgatar a cidadania do portador de sofrimento mental, e no algo que traga um conflito para o prprio sujeito que usufrui desse benefcio.a Banalizaoda interdio

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Em termos gerais, era isso o que queria dizer. Acho que a Mesa foi extremamente feliz em suas observaes, e volto a reforar a necessidade desse seminrio para conseguirmos enfrentar o desafio de conseguir gerar uma renda para pessoas que no tm capacidade de gerar a sua prpria, sem que isso traga novamente o preconceito que a sociedade ainda tem em relao ao sofrimento mental e que fica muito claro, justamente na interdio judicial. H outro absurdo, que no haver instrumentos para rever as curatelas mesmo quando o curador no presta nenhum benefcio para o curatelado. A Justia se preocupa muito mais, infelizmente, em beneficiar o familiar do que em proteger o portador de sofrimento mental. Eram essas as consideraes que tinha a fazer, agradecendo mais uma vez. Espero que, no seminrio, a Rede possa contribuir e trazer avanos para a defesa do direito do portador de sofrimento mental.

iriny lopesPresidente da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados A realizao desta audincia pblica precisou, para ns da Comisso, no sei se para todos os nossos convidados, os temas e os focos que o debate deve ter; ajudou-nos muito a localizar aquilo que, de fato, deve ser o objeto do seminrio, que j tnhamos um compromisso anterior de realizar, e reafirmo que esse compromisso ser honrado. Nossa inteno, inclusive, era realizar o seminrio hoje e amanh, porm tivemos dificuldades em funo da agenda da Casa, principalmente, para manter o combinado. Mas penso que esse debate preliminar, vamos cham-lo assim, ajudou a estabelecer os focos, tais como o que precisa ser alterado na legislao, identificou a necessidade da presena do Poder Judicirio nesta discusso, marcou a necessidade da presena dos Ministrios Pblicos Estaduais neste debate, de uma reviso um pouco mais globalizada da LOAS e, em especial, o artigo citado pelo Talvane, que pode ser o caminho para desobstruir essa incom50 a Banalizaoda interdio

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preenso e essa incompatibilidade, que acabam levando e conduzindo interdio casos que no deveriam ser assim tratados, privando de direitos pessoas que tm algum nvel de necessidade especial. Poderamos constituir um grupo de trabalho com pessoas indicadas, porque, at que se prepare o seminrio para que se tenha um resultado final bastante concreto, do qual saiamos com indicaes precisas de quais seriam as alteraes na legislao, talvez precisemos fazer um investimento nos profissionais que trabalham a questo nos rgos competentes, e precisaramos ouvir e ver, dentro dos Ministrios e no Judicirio, qual seria a receptividade para uma nova legislao, a fim de que possamos realizar a sua tramitao com rapidez, nesta Casa, para resolver esses problemas. Ento, se todos concordarem, acredito ser esse o resultado desta Audincia Pblica, esperando que todos faam as indicaes Comisso sobre quem iria compor esse grupo de trabalho, e a Comisso comearia a fazer os contatos, organizar as agendas e o prprio grupo de trabalho ajudaria a fixar a data de realizao do seminrio. Quero novamente agradecer a presena no somente dos convidados que estiveram mesa ajudando-nos neste debate, mas tambm a de todos vocs que esto no Plenrio. Dou por encerrada esta reunio.

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seminrio nAcionAl HBanalizao nos atos de interdio JudiCial no

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Cmara dos Deputados Braslia, DF 20 a 21 de outubro de 2005

Mesa de Abertura

Coordenadora: iriny lopesPresidente da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados Iniciamos, neste momento, Seminrio cujo tema H banalizao nos atos de interdio judicial no Brasil? Este Seminrio uma promoo da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara dos Deputados, em parceria com a Comisso Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, com a Comisso de Direitos Humanos da OAB e com a Rede Nacional Interncleos da Luta Antimanicomial. Temos o apoio do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, da Secretaria Nacional de Assistncia Social, do INSS, do Ministrio Pblico Federal, do Ministrio da Sade e da Subsecretaria de Direitos Humanos da Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica. A avaliao de que h exagero nas interdies de pacientes psiquitricos tem chegado insistentemente at a Comisso de Direitos Humanos, tanto por meio de casos individuais quanto pela anlise, em mbito nacional, que vem sendo feita pelo Conselho Federal de Psicologia, e que foi concluda na Audincia Pblica que realizamos anteriormente. O abuso em interdies est na contramo do movimento da reforma psiquitrica, que busca a reinsero do doente mental na sociedade. A interdio retira a cidadania dessas pessoas. O atual quadro brasileiro no condiz, inclusive, com as diretrizes da Lei Orgnica da Assistncia Social, a LOAS, que tem por objetivo garantir os direitos dessa parcela da populao excluda da sociedade brasileira. Este Seminrio Nacional, que discute a banalizao da interdio judicial no Brasil, o que uma violncia contra a democracia e os direitos humanos, tem, assim, o objetivo de dar visibilidade ao problema e definir parmetros.a Banalizaoda interdio

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necessrio criar uma conscincia comum entre os profissionais diretamente envolvidos com o problema. Essa uma questo fundamental para os direitos humanos em nosso pas e importan