azevedo, celia maria marinho de. onda negra medo branco o negro no imaginário das elites século...

138
8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 1/138  CELIA1 !9QSBMqn n f1 1 '' tm EGE ftl m | [ HH 1 1 / $ ím i ® ki ® «SW Í; w m iw a i» | 1 i. I  séc ul o : m . mmmmm-m o ..'-v.' '//fTs.r//  ' *//#/ /#/ //* • 'W/AZ/A • 4 mwmk.

Upload: flavitcha-patrocinio

Post on 06-Jul-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 1/138

1   CELIA 1!9QSBMqnnf11f ''

t m 

EGEf t l■ m | [ H H1 1/ $

ím i®ki® «SW Í;w m iw a i»|1i.I   séc ulo :m .

mmmmm-m  • o ..'-v.' ‘ '//fTs.r//  ' */ /#/ /#/ / /* •'W/AZ/A   • 4 mwmk.

Page 2: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 2/138

À primeira vista a abolição daescravidão no Brasil foi uma empre-sa política relativamente curta e pací-fica, dirigida por elites humanitáriase progressistas. Ansiosas por fundarum novo tempo, pautado pela ordemcapitalista e pelo progresso, estas elites

liberais teriam se posicionado firme-mente pelo trabalho livre e pela eman-cipação dos escravos. Entretanto nãolhes teria sido possível incorporar onegro ao mercado de trabalho. Porculpa de sua inconstância, de suaincapacidade para as relações de tra-

 balho contratuais , enfim, devido à pesada herança da escravidão carre-gada por ele, não restou outro recurso

a não ser incentivar a vinda de milha-res de imigrantes europeus em substi-tuição aos exescravos.

Mas se o leitor não se contentarcom estas imagens produzidas conjun-tamente por abolicionistas e imigrantistas e que ainda hoje perambulamem nosso imaginário, este livro lhedará o ensejo de acompanhar um dosmais longos e acesos debates já tra-vados em nosso país.

Page 3: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 3/138

ONDA NEGRA, MEDO BRANCO

Page 4: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 4/138

COLEÇÃOOFICINAS DA HISTÓRIA

VOL. 6

Direção Edgar Salvadori de Decca

CELIA MARIA MARINHO DE AZEVEDO

ONDA NEGRA, MEDO BRANCO

O negro no imaginário das elites — Século XIX

Prefácio dePeter Eisenberg

0PAZ E TERRA

Page 5: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 5/138

Copyright by Celia Maria Marinho de Azevedo, 1987

A»88o

87*0880

Capa Moema Cavalcanti

Copydesk  Suely Bastos

 Revisão  Barbara Eleodora BenevidesArnaldo Rocha de ArrudaMárcia Courtouké Menin

Oscar Faria MeninFranz Keppler 

CIPBr&sil. Cataiogaçàonafonte.Sindicato Nacional dos Edltorw» de Uvros, R J.

Azevedo, Celia Maria Marinho deOnda negra, medo branco; o negro no imagi-

nário das elites — século XIX / Celia Maria Ma-rinho de Azeredo; prefácio de Peter Eisenberg — Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1B8*1.

(Coleçáo Oficinas da História, v. 6)Bibliografia.

1. Negros — Brasil — Século XIX. I. Título.II. Titulo: O negro no Imaginário das elites. III.Série.

CDD — 305.8036081CDtJ — 304( =96)

Direitos adquiridos pelaEDITORA PAZ E TERRA S/A

Rua São José, 90,11.® and arCentro, Rio de laneiro, RI

Tel.: 221*4066

Rua do Triunfo, 177São Paulo, SPSanta Ifigênia,

Tel.t 2236522

Conselho Editorial Antonio Cândido

Celso F urtadoFernando Gasparian

Fernando Henrique Cardoso

1987Irhpresso no Brasil /Pr inte d in Brazil

“Articular o passado historicamente não significaconhecêlo ‘tal como ele propriamente foi*. Signi-fica apoderarse de uma lembrança tal qual ela cintilou no instante de um perigo.**

Walter Benjamin

Page 6: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 6/138

*

)4

v

V

>

Para a famííia de Silvana Pereira da Silva eAdelino José de Souza, que tem muito a vercom este livro.E para o Carlinhos.

Page 7: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 7/138

1

Y

\

>

ÍNDICE

Prefácio  ..................................... ........................................... ....... 13

 Introd ução   .......................................... ......................................... 17

 Agradecimentos   ....................................................................... 31

CAPÍTULO I. Em busca deum povo  ................................   331. Projetos emancipacionistas ...................................... 37

O inimigo interno domesticado ..............................   37ócio e latifúndio ....................................... ! ............. 47Pedagogia da transição ...........................................   52Mulheres, ao trabalho! ...........................................   57

2. Proje tos imigrantistas ......................................... ...... 59Sonhos brancos ................................... ........................ 59O paraíso racial brasileiro .......................................   76O imigrante e a pequena pr op rie da de .................... 83

3. Projetos ab oli cio nis tas ............................................... 88A estratégia da conciliação .......................................   88O paraíso possível ....................................................   90Liberdade, terra e trabalho .....................................   97

CAPÍTULO II. Os políticos ea  “onda negra”   ...................   1051. A batalha contra o tr á fi c o ......................................   111

A passos de gigante ...................................... ............ 115

Pisando sobre um vulcão .........................................   116Conflitos nortesul à vista .......................................   119Cenas de sangue e radicalização parlamentar . . . . 120Imigrantes rebeldes e negros perigosos ........... ....... 123

11

Page 8: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 8/138

2. O nacional livre em debate ....................................   125O imigrante im pr es tá ve l............................................ 126Coação ao trabalho e controle dot e m p o .................   127Estratégias dis cip lin are s.............................................. 130Vadiagem e escassez de braços?! ......... : .................   133

3. O sentido racista do imigrantismo ........................   139Bemvindos, brancos! ................. ............................... 140

O perigo amarelo ....................... ........................ ........ 147

4. O grande avanço imigrantis ta .................................   153A defesa da barreira à onda negra ........................   154Do escravo traiçoeiro ao escravofiel ...................... 157

5. O imigrantismo co nsolidado .................................... 162Basta de negros! ...................... ........................ ........... 163O últim o deba te .................................. ....................... 167Italianos! Afinal, a solução .....................................   171

CAPÍTULO III. O "não quero” dos es cra vo s ................. 175

1. Crimes de es cr av os .................................... ..............   1802. Revoltas, fugas e apoio p o p u la r .............................   199

3. A pátr ia em perigo! Pela União Nacional! ............   211

CAPÍTULO IV.  Abolicionismo econtrole social  . . . . . . . 2151. A defesa da ordem ....................... ........................ ..... 220

Ordem e coação ......................................................... 225Ordem e orientação ..................... ........................ ..... 231

2. Denúncia do racismo ........... ........................ ............. 2383. Integração e cidadania ............ ................................   246

Conclusão ........................... ....................... ........................ ......... 251

Bibliografia .. ........................ ........................ ....................... ...... 259

12

PREFÁCIO

T

*

“O que fazer com o negro?*' Este livro da Celia analisaum debate que já vem se realizando no Brasil desde, pelo

 \   menos, os meados do século XV III. A própr ia formulação daquestão básica deste debate carrega em si um grande viésracista, na medida que somente um grupo subordinado, comoo “negro” ou o “índio”, foi pensado como categoria socialdistinta e problemática: ninguém perguntava “o que fazer como branco?” Também a questão revela uma presunção de mani

■ p ular o negro como ob jeto num jogo do po der , n a m ed id a q uese supõe que alguém tenha os meios de fazer alguma coisacom, ou pàra, ou contra, o negro. Ignorase, entretanto, acapacidade do negro para a autodeterminação.

Celia trabalha com uma variedade de fontes à procurade respostas históricas a essa pergunta básica. Como era deesperar, não encontrou uma resposta única, senão várias, cujas

formas e conteúdos foram dados pelas condições específicas daépoca. Assim, na época da repressão ao tráfico internacional deescravos, quando se percebeu que a oferta de africanos não erailimitada, o problema principal para as classes dominantes eracomo arregimentar para o trabalho pessoas considêraüas inferio-res por razões raciais. Não se negava, porém, a importância des

v tes indivíduos na produçã o do País. Mais tarde, na segunda me-tade do século XIX, enquanto o fim do tráfico ameaçava criaruma falta de braços, pelo menos nos setores mais dinâmicos daeconomia* como a cafeicultura paulista, a resistência dos negros

 já levantava a possibilid ade de desorganização do trabalho .

13

Page 9: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 9/138

Então, cresceu a exaltação a respeito das vantagens de trazerimigrantes europeus e, como corolário, descobriuse a incapaci-dade do brasileiro negro. Esta incapacidade, agora, foi atribuídanão só à sua própria biologia, como também, e sem explicitara ironia, à sua experiência como escravo.

Celia chega a criticar especialmente uma escola de pensa-mento que apareceu na historiografia brasileira na década de1960, escola essa que atribuiu a pobreza e a alienação dosnegros no século XX a uma suposta herança da escravidão.Esta escola, radicada em São Paulo, de certa forma atualizouos viéses racistas das décadas de 1870 e 1880, porque negavaaos negros uma grande parte da responsabilidade pelas vitóriasnas lutas contra a escravidão, ao mesmo tempo em que afirma-va a existência de um pesado legado cultural cuja superação,novamente, excedia a capacidade dos próprios negros. Seguindonum trilho aberto por Carlos Hasenbalg e Robert Slenes, cujosestudos pioneiros na década de 1970 revelaram algumas daslimitações daquela escola de pensamento, Celia recoloca a ênfa-se no vigor do racismo. O racismo do século passado não foi

um elemento onipresente na espécie humana, nem uma distor-ção encoberta pelas cópulas desenfreadas entre as raças, masuma construção ideológica, fruto de conjunturas históricas, naqual os interesses materiais das classes dominantes encontraram,no racismo, uma justificativa científica para a importação deeuropeus, e a inferiorização da maioria dos brasileiros.

Celia chama a atenção do leitor para a hegemonia arrogan-te da ideologia da burguesia “conquistadora”, na frase sucintade Charles Morazé. Muitos abolicionistas, como Nabuco, embo-ra comovidos com a situação do negro escravo, dirigiram a sua propagand a exclusivamente aos escravocratas e aos brancosAté mesmo Antonio Bento, líder e portavoz dos caifazes, eradicalíssimo na sua tática abolicionista, compartilhava comos escravocratas odiados, e também com os abolicionistas maismoderados, a preocupação em manter o negro à disposiçãodos donos dos meios de produção. Tentavase, deste modo,tranqüilizar as pessoas amedrontadas com o espectro de umnovo Haiti assombrando o Brasil. O desaparecimento do seu

 jornal,  A Redempção,  logo após a abolição, constituiu uma prova silenciosa de que a e liminação da condição legal de escra-vo não incluía uma luta pelos direitos civis dos negros, e muitomenos uma distribuição diferente do poder político. A chegada

14

t

da República, apoiada por partidários apaixonados pelo imigran-te branco, mas não pelo brasileiro de cor, fortaleceu este racismo.

Finalmente, espero que seja útil ao leitor destacar mais umaqualidade deste livro: ele traz novo reforço para uma outraescola historiográfica que emergiu na década de 1970, e queidentifica o escravo e o negro, especificamente, e as classesdominadas, em termos mais gerais, como sendo atores princi- pais da sua própria histó ria. Uma boa par te desta geração dehistoriadores entende que não foi nem a ação filantrópicade grupos “modernos” de consciência mais elevada, nem alógica inexorável de um modo de produção cuja hora vinhachegando, que dava a direção e a velocidade aos acontecimen-tos do século XIX. Fundamentalmente, foi a luta de classe,^como afirmaram Marx e Engels no início do  Manifesto Comunista.  A história da transição da escravidão para o trabalholivre no Brasil constróise a partir das ações e reações dossujeitos históricos, que nunca, nem quando muitos deles foramcaracterizados como mercadorias, deixaram de fazer sentir asua presença.

Peter L. Eisenberg Campinas, maio de 1987

t

15

Page 10: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 10/138

\

%

t

*

 J.

■í

INTRODUÇÃO

Homens! Esta lufada que rebenta

É o furor da mais lôbrega tormenta... — Ruge a revolução

E vós cruzais os braços.,. Covardia!E murmurais com fera hipocrisia;

 — Ê preciso esperar . ..

Esperar? Mas o quê? Que a populaça,Este vento que os tronos despedaça»

Venha abismos cavar?

Castro Alves,Estrofes do Solitário

Tia Tosefa dos Prazeres era uma negra muito feia queinspirava medo às criancinhas cada vez que as fitava comaqueles seus olhos felinos, injetados de sangue. Recémchegadaà cidade juntamente com seu marido, o pedreiro e coveiroManoel Congo, levou algum tempo para que ela ganhasse aconfiança de seus habitantes. Tia Josefa, porém, sabia fazeruns ótimos pasteizinhos de carne, muito alvos e macios, e com

o tempo conseguiu muitos fregueses. Além disso a sua casa,situada ao lado do cemitério, começou a ser bastante procura-da por aqueles desejosos de mezinhas e de uma boa parteira.

Assim, o tempo venceu as primeiras desconfianças e, emboraas crianças ainda a olhassem assustadas — tal como a umafeiticeira de seus pesadelos — , tia Josefa tornouse uma figuraimprescindível do cotidiano de pacatos cidadãos.

Mas um dia Nini, uma linda menina loira, rosada, alegree esperta, por causa de um pequeno resfriado, começou a tomar 

17

Page 11: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 11/138

as beberagens de tia Josefa e, ao invés de melhorar, piorourapidamente. Chamado finalmente o médico, já não havia maisremédio para ela, a não ser buscar Manoel Congo para enterrála. Para consolar a pobre mãe, a boa tia Josefa passou a presenteála com aqueles seus deliciosos pastéis.

Esta história terminaria aqui se não fosse a mãe, incon-solável, pedir para ver a filha ainda uma última vez, oito dias

depois de sua morte. Para seu espanto, nada mais havia no pequenino caixão aber to pelo coveiro . A suspeita criou asas e a polícia cercou a casa de tia Josefa e Manoel Congo. Lá dentroencontrou cachos loiros, restos de roupa de criança e, embaixoda mesa da cozinha, pequeninos ossos...

O povo quis esquartejar os dois negros, enquanto a mãeda linda menininha morta, quase louca, contorciase horrori-zada — tinha comido a filha em pastéis...

Esta história estranha, macabra, capaz de revirar estôma-

gos delicados, também tem a sua história. Apareceu assimcomo quem não quer nada, em meio às notícias do jornalCorreio Paulistano,  em 26 de julho de 1888.1 Data sem dúvidasignificativa, pois apenas pouco mais de dois meses haviam passado desde a assinatu ra da Lei Áurea , abolindo a escravi-dão no país. Os fogos, aplausos ,e cantorias dos grandes feste- jos comemorativos da abolição mal haviam se extinguido, asruas guardando ainda o calor das proclamações esperançosasde esquecimento dos ódios e horrores passados. E talvez numaesquina ou outra ainda se ouvissem os ecos de discursos aboli-

cionistas clamando pela integração dos negros no mundo dos brancos.

1. O conto é de autoria de Arthur Cortines. Nesta época o Correio Paulistano  expressava a opinião dos conservadores da facção liderada peloConselheiro Antonio Prado, político influente do Império e um dosmaiores incentivadores da imigração européia. Este mesmo conto foirecolhido e analisado de um modo muito perspicaz por Lilia K. M.Schwarcz em  Retrato em Branco e Negro   — jornais, escravos e cidadãosem São Paulo no final do século XIX, São Paulo, Companhia das

Letras, 1987.

18

Contudo, toda festa tem seu fim e os medos momentanea-mente esquecidos na embriaguez da alegria vêm outra vez àtona, lembrando a todos que no diaadia das relações huma-nas nada realmente mudou. Além de nos dizer muito de comoestavam sendo reavaliados socialmente os exescravos e seusdescendentes, esta história pode ser compreendida como um

 peque nino lance dentro de uma estra tégia abran gente de higie

nizaçao do espaço urbano, que de um lado visava combater ocurandeirismo e as práticas culturais afrobrasileiras e, de outro, procu rava deslocar os negros das áreas centra is da cidade deSão Paulo, onde ainda resistia, poderosa, a igreja da Irmanda-de do Rosário dos Homens Pretos, a despeito da desapropria-ção de seu cemitério e das circundantes moradias de negros,ocorrida há pouco mais de uma década.2

Mas estas são outras histórias.. . A história que me inte-ressa aqui é a do próprio medo que ressalta destas linhas intri-gantes, aparentemente ficcionais. Sim, apenas aparentemente, pois os tênues limites entr e ficção e realid ade se rompemquando voltamos atrás e convivemos com toda uma série de brancos ou “esfolados” bemnascidos e bempensantes que, du-rante todo o século XIX, realmente temeram acabar sendo tra-gados pelos negros malnascidos e malpensantes, tal como ostenros pastéis de carne alva da preta Josefa.3

Recuperar o medo como dimensão da história não é tarefafácil. Não é fácil, em primeiro lugar, porque esta dimensãodificilmente se encaixa em modelos metodológicos. Tal comonos filmes de Hitchcock, as ações deslanchadas pelo medogeram outras ações tão inesperadas quanto as primeiras e assim,

a despeito das tentativas de planejar, de racionalizar os atos

2. A igreja foi finalmente desapropriada em 1903 e reconstruída em 1906no Largo do Paiçandu. Cf. Clovis Moura, “Organizações negras", in  PaulSinger e Vinicius Caldeira Brant (Orgs.), São Paulo  — o Povo em Movimento,  Petrópolis, Vozes/Cebrap, 1981, pp. 14375.3. ‘Esfolados” era o termo pejorativo usado pelo exescravo, abolicionistae republicano Luiz Gama para satirizar mulatos que pretendiam passar por bran cos, rene gan do suas orige ns afri canas. Luiz Gam a, Primeiras Trovas Burlescas,  Rio de Janeiro, Pinheiro, 1861.

19

Page 12: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 12/138

do presente em função do futuro, nunca se consegue alcançarexatamente o que se pretendia. Em segundo lugar, porquetratase de uma dimensão oculta,  raramente reconhecida poraqueles que vivenciaram o momento histórico pesquisado. Natentativa de racionalizar os atos é muito mais comum apelarse para argumentos logícos, sofis ticados , do que simplesmente re-conhecer que se tem medo. Assim, o medo apenas aparece de

relance nos documentos históricos, mas é muito raro que sejareconhecido como o móvel profundo e amargo daquele quefala. Em terceiro lugar, porque, enquanto dimensão oculta dasrelações sociais, o medo raramente é incorporado nas análisesdaqueles que escrevem a história, prevalecendo as explicaçõesestruturais, muito bem elaboradas e tão lógicas que acabam

 por provar que a história realmente só poderia ter ocorrido deuma dada maneira. Ou seja, os resultados estão contidos nas premissas teóricas e nenhum outro poderia delas resu ltar,

£ do medo, portanto, que se tratará neste estudo relativo

à instituição do mercado de trabalho livre em substituição aoescravo no Brasil do século XIX. Não foi, porém, um temaescolhido a priori,  de modo que a pesquisa empreendida de

»s

vesse confluir para se encaixar ao final nos seus prérequisitosteóricos. Ao contrário, ele se impôs na medida mesma em quese aprofundava a procura de respostas para um ponto que par ticu larm ente me intrig ava na his tór ia bras ileir a, tal como elatem sido produzida ao longo da historiografia.

Até meados da década de 1880 temos como enfoque privi-legiado a escravidão, o negro e sua rebeldia, o movimento abo-licionista e as sucessivas tentativas imigrantistas, enfim, o cha-mado momento de transição para o estabelecimento pleno dotrabalho livre. A partir da data da abolição, o tema da transiçãodeixa subitamente de existir e o negro, como que num passe demágica, sai de cena, sendo substituído pelo imigrante europeu.Simultaneamente a esta troca de personagens históricos, introduzemse novos temas, tais como desenvolvimento econômicoindustrial, urbanização e formação da classe operária brasileiracom base numa população essencialmente estrangeira.

20

I

Esta substituição de temas e de enfoques tem sido justifica-da de modo sucinto e algo taxativo: o negro apático para o  J  trabalho livre e acostumado à coação de um sistema irracionalde produção não pôde fazer frente à concorrência representada pelo imigrante europeu, trabalhad or este já afeito a uma ativi-dade disciplinada, racionalizada e regulada a partir de contratode compra e venda da força de trabalho.

A partir desta premissa seguese uma conclusão igual-mente rápida, que em geral consta das páginas finais dos estu-dos sobre a escravidão ou então cias introduções de trabalhosreferentes à urbanização e desenvolvimento industrial: o exescravo e seus descendentes saíram espoliados da escravidão edespreparados para o trabalho livre, incapazes, enfim, de seadequar aos novos padrões contratuais e esquemas racionalizadores e modernizantes da grande produção agrícola e industrial,tornandose doravante marginais por força da lógica inevitáveldo progresso capitalista.

%

Quanto ao elemento nacional livre, formado em sua maioriade negros e mestiços pobres e que durante toda a escravidãovivera à margem da grande produção exportadora, ele conti-nuaria “vegetando”, marginal e dispensável, a não ser em re-giões de fraco desenvolvimento econômico onde não chegaramimigrantes. É que também ele sofreria do mal da “herança daescravidão'’, acostumado às relações patriarcais de dependênciaservil e entregue em sua maioria a atividades de mera subsis-tência. Implícita nestas formulações está a idéia de que margi-nalidade e grande produção se excluem e, portanto, quemestiver interessado nos temas da urbanização e desenvolvimento

econômico industrial no período pósescravista deve aterse exclu-sivamente ao agente da produção por excelência: o imigranteeuropeu.

Partindo da constatação crítica de que a situação marginaldo negro em relação aos trabalhadores estrangeiros tem sidotratada na maioria dos estudos como algo já dado e inevitável,em decorrência de uma suposta influência deformadora da escravidão e conseqüente incapacidade do negro para o trabalhonão imediatamente coercitivo, proponhome a responder à se

21

Page 13: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 13/138

 jgu int e questão: até que ponto a imagem de uma massa inerte,/^desagregada, inculta, sem grande importância histórica naquele

momento, na medida em que já teria saído marginal da escra-vidão, não surgiu do âmago de formulações de teor étnicoracista que justamente procurariam com isso justificar a neces

' sidade de imigração européia em substituição ao negro?O trabalho de maior vulto com enfoque na situação do

exescravo é o Florestan Fernandes —  A Integração do Negro  na Sociedade de Classes.  Contudo, a história do negro recémsaído da escravidão é abordada praticamente apenas no primeirocapítulo, referindose o restante dos dois volumes ao negro dasdécadas de 20 em diante. O motivo disto talvez possa ser expli-cado a partir de uma postura metodológica determinada. Segun-do o autor, ocorre neste período “o esboroamento final da so-ciedade de castas e o processo de elaboração da ordem socialcompetitiva” ou, nos termos de outra obra sua mais recente, “a_emergência e expansão de um capitalismo dependente”. Trata

se, em suma, da “revolução burguesa”, não enquanto episódiohistórico, mas sim enquanto fenômeno estrutural, em que “di-versas situações de interesses da burguesia, em formação e ex- pansão no Brasil, deram origem a novas formas de organizaçãodo poder em três níveis concomitantes: da economia, sociedadee do Estado”.4

Ao negro deformado pela escravidão e longe ainda de seintegrar à sociedade de classes em formação coube apenas o papel de “elementos residuais do sistema social” . Este perío doda história social do negro na cidade de São Paulo resumese àexpressão “anos de espera”, em que a grande massa de negros,

“à margem da vida social organizada e de toda a esperança,sucumbe à própria inércia”. Nem mesmo as poucas exceções in-cluíamse “entre os fatores humanos do novo surto capitalista”,embora estivessem numa posição bem mais vantajosa que a

4. Estas formulações estão presentes etn três trabalhos de Florestan Fer-nandes:  A Integração do Negro na Socie dade de Classes,  3.* ed., SãoPaulo, Ática, 1978, 1." vol., p.142; Circuito Fechado,  São Paulo, Hucitec,1976, p. 15;  A Rev oluçã o Burguesa no Brasil  — Ensaio de InterpretaçãoSociológica,  2.* ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p. 21.

maioria dos negros. Isto porque eles “não estavam nem estru-tural nem funcionalmente ajustados às condições dinâmicas deintegração e de expansão da ordem social competitiva. Aprovei-tavamse dos vácuos resultantes do crescimento econômico sú- bito. . Por tanto, dada esta inadaptação, do negro à sociedadecompetitiva, Fernandes conclui que a repulsão do negro pelacidade não se colocava em termos raciais:

___   “ • * r

“(...) o, isolamento econômico, social e cultural do ‘negro’, comsuas indiscutíveis conseqüências funestas, foi um produto ‘na-tural’ de sua incapacidade relativa de sentir, pensar e agirsocialmente como homem livre. Ao recusálo, a sociedade re- pelia, pois, o agente humano que abrigava, em seu íntimo, o' escravo’ ou o ‘liberto’”.5

Desde a publicação do livro de Fernandes em 1965 — cujovalor inestimável, digase de passagem, é o de ter revelado umasociedade profundamen te racista — , prevalece na historiografia

da transição este quadro bem montado da marginalização inevi-tável do negro por força da própria herança da escravidão car-regada por ele. Ao negro apático, despreparado em termos ideo-lógicos para o trabalho livre, costumase contrapor o imigrantedisciplinado e responsável, já suficientemente condicionado àética do trabalho contratual, em que capacidades de iniciativa ede autosacrifício combinamse de forma maleável a fim de aten-der aos anseios de mobilidade e ascensão social. Além disso, etambém ao contrário do imigrante, o negro não possuiria aqueleslaços familiares tão necessários à reprodução e estabilidade de

sua força de trabalho.6 Faltava em suma ao liberto, outra vezsegundo Fernandes, “a autodisciplina e o espírito de responsabi-lidade do trabalhador livre, as únicas condições que poderiamordenar, espontaneamente, a regularidade e a eficácia do traba

5. Esta citação e as anteriores encontramse em F. Fernandes,  A Int egração do Negro na Sociedade de Classes, op. cit.,   pp. 4695.6. Robert W. Slenes contesta este ponto de vista de Fernandes e que ahistoriografia em geral assume. Cf. “Escravidão e Família: Casamento eCompadrio Entre os Escravos de Campinas no Século XIX* (Departa-mento de História, Unicamp).

23

Page 14: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 14/138

lhador no novo regime jurídicoeconômico”. Como existia aalternativa de substituílo com facilidade, pois os imigranteseram numerosos e bem considerados, o liberto saiu derrotado nacompetição ocupacional e econômica, passando a ser visto comovagabundo e inútil, o que determinou a sua concentração na-quelas “ocupações indesejáveis ou insignificantes”.7

Outros importantes estudos secundaram as proposições de

Florestan Fernandes, dentre os quais destacamse os de FernandoHenrique Cardoso e Octávio Ianni. Também para estes o exescravo se negava ao trabalho ou então era incapaz de se ade-quar aos esquemas contratuais do trabalho livre, deixandosevencer facilmente pela concorrência dos imigrantes europeus nomercado de compra e venda da força de trabalho.8

Há, porém, uma premissa fundamental para que possamos perc orrer todo este argum ento até as suas conclusões lógicas.Tratase da tão freqüentemente alegada irracionalidade da escra-vidão. Em um estudo com enfoque nos aspectos econômicos da

escravidão no Brasil, Pedro Carvalho de Mello e Robert W. —f 

Slenes assinalam que para a maior parte dos estudos, marxistasou não, o sistema escravidão/plantação era de natureza précapitalista. Daí decorre que o sistema teria retardado o desen-volvimento capitalista no país, por ter criado estruturas sócioeconômicas que “(...) desestimulavam a especialização de fun-ções, bem como o crescimento do sistema de economia de mer-cado fora do setor de exportação, e que tendiam a reduzir oumesmo bloquear a introdução das. técnicas novas que permiti-riam um aumento da produtividade do trabalho”.9

7. F. Fernandes, op. cit.,  p. 73.

8. Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional,  2.* ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; O ctávio Iann i,  As  

 Met amor foses do Escrav o  —  flpo geu e Crise da Escra vatura no Brasil  Mer idion al,  São Paulo, Difel, 1962.9. Pedro C. de Mello e Robert W. Slenes, “Análise Econômica da Escra-vidão no Brasil", in  Paulo Neuhaus (Org.), Economia Brasileira: Uma Visão Histórica,  Rio de Janeiro, Campus, 1980, pp. 89122. Para umadiscussão pormenorizada do assunto, ver R. W. Slenes, The Demography

24

A reduzida divisão social de trabalho, a ausência de ummercado interno, o desestímulo para o trabalho, inerentes aosistema escravista précapitalista — voltado essencialmente paraa produção de gêneros tropicais de exportação, complementaresàs necessidades da metrópole e outros países europeus, ondeocorria então o desenvolvimento do capital —, teriam geradouma população indolente de homens livres, entregues às precá-

rias roças de subsistência ou, então, como seria o caso do ca-tivo, um trabalhador imbecilizado e rude, incapaz de manejartécnicas mais avançadas. Celso Furtado chegavmesmo a afirmarque a população submetida a este sistema escravista apresentaum baixo nível mental. E com isso pretende explicar a própriasegregação sofrida por ela após a Abolição e mesmo o ritmolento do desenvolvimento econômico nacional.10

A contrapartida deste modo de pensar é lógica, e assim sechega a uma e a só uma conclusão inevitável: se no Brasil nãohavia quem formasse o mercado de trabalho livre, dada a inca-

 pacidade menta l e despreparo prof issional do exescravo, 4oma

vase inevitável a vinda de mãodeobra estrangeira, devido aoseu (suposto) enquadramento nas relações de produção capita-listas. Da irracionalidade de um sistema escravista, précapitalista, que gerava homens pouco racionais, objetivavase passarà racionalidade de outro sistema — o capitalista, através deagentes racionais já produzidos por ele.

Em termos metodológicos, esta postura expressa de fatouma das ilusões do “verdadeiro” em história apontadas porFrançois Furet e que se forma a partir da adesão racional quan-do da reconstituição a posteriori  de uma história que se pretende

and Economics of Brazüian Slavery, 1850-1888,   2 v., Ph. D., Stanford University, 1976, em especial o capítulo 1: “Economic and Traditional Man,and the Organization of Labor under Slavery".10. Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil,  12.a ed., São Paulo,Cia. Ed. Nacional, 1974, p. 141. Para um enfoque que relativiza as dife-renças entre o escravo e o proletário, ver Peter L. Eisenberg, “Escravo eProletário na História do Brasil”, in Estudos Econômicos,  IPE/USP, ano13, n.° 1, janeiroabril de 1983, pp, 5569.

Page 15: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 15/138

necessária, não se reconhecendo outra possibilidade a não seraquilo que aconteceu. Movido por esta ilusão, o pesquisadoracaba por sua vez confinado aos limites temáticos e cronológi-cos traçados pela memória produzida pelos sujeitos sociais quedominaram politicamente uma dada época.11

%A discussão em tomo desta questão da irracionalidade

versus  racionalidade de dois sistemas — précapitalista e capi-

talista — é de suma importância, porque se a aceitamos assimcomo tem sido tradicionalmente colocada, justificamos a políticade imigração européia, sem quaisquer questionamentos a res- peito de uma possível men talidade racis ta e segregacion ista anorteála. E, deste modo, fechamse outros possíveis caminhos

 par a se con tar esta his tória , cham ada de histó ria da transiçãodo trabalho escravo para o trabalho livre.

A suposta irracionalidade dasrelações de produção escravistas começa, porém, a~ser desvendada a..partir das pesquisas

._____

  '   _______  j m  . , - I I . . . . . v ' V k •- • * r *r r '   w * - •• , - " ■

de Antonio Bárròs de Castro .12 Em seu lugar emerge um regimede trabalho nem mais nem menos racional que qualquer outro

voltado para a realização de lucros no mercado, não apenasvinculado ao capital através do mercado externo, mas intrinsecamente parte do modo de produção capitalista. Esta formulação

11. François Furet,  A Oficina da Histó ria,   trad. Felipe Jarro e AdrianoDuarte Rodrigues, Lisboa, Gradiva, s.d., 1.° vol., p, 32. Sobre a imposiçãoda memória dos dominantes, ver Carlos Alberto Vesentini e Edgar S. deDecca, “A Revolução do Vencedor”, in Contraponto, ano I, n.° 1, novem-

 bro de 1976, pp. 6071: “Qu and o da vitó ria, há que apag ar todas as outr as propos tas jun tam ente com as espec ificidades de suas ‘mem órias '. Aomesmo tempo esse exercício legitima a dominação do vencedo r.. E em

relação à pretensão de neutralidade do historiador que escolhe a pesquisade fatos afastados no tempo, certo de que assim estará tratando de reali-dades acabadas que não mais exigem um posicionamento político, verMaria Stella M. Bresciani, “Democracia, Democracias", in Plural,  SãoPaulo, 1978.

12. Antonio Barros de Castro, Escravos e Senhores nos Engenhos do Brasil  (tese de doutoramento, IFCH/Unicamp, 1976). E também, “AsMãos e os Pés do Senhor de Engenho. Dinâmica do Escravismo Colonial”.in  Paulo Sergio Pinheiro (Org.), Trabalho Escravo, Economia e Sociedade,  Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, pp. 4166.

26

que descarta a contraposição entre regime escravista précapita-lista e regime capitalista com base no trabalho livre, situandonum mesmo tempo histórico o trabalho escravo e o trabalholivre, foi explicitada por Maria Sylvia de Carvalho Franco. Paraesta autora, é preciso pensar nas determinações específicas daorganização social do trabalho (escravo e livre) e das unidadescoloniais de produção (os latifúndios) dentro de seu próprio

tempo, o que significa abordálas como “parte constitutiva daessência do capitalismo” e não em termos de uma relação deexterioridade entre colônia e metrópole. Portanto, as relaçõesentre uma e outra não devem ser vistas como resultantes dacombinação de formações sócioeconômicas diversas (précapitalistas, capitalistas) ou então como resquícios feudàis ou res-surgimento de formas antigas de organização social. Ao contrá-rio, estas relações “são momentos do processo que inaugurou omodo de ser moderno das sociedades ocidentais”.13

Há ainda um aspecto essencial que não encontra lugar em* * ■ " i —    ........................ — ~ • •— • •

toda esta discussão referente à irracionalidade da escravidão,

assim como a de seus agentes de trabalho em contraposição àracionalidade do trabalho livre e de seus agentes por excelência,os imigrantes europeus. Refirome à faceta esquecida.de umahistória desumanizada, ou seja, à .multidão de indivíduos queanonimamente fazem a história, vivendo^, ejxuiien.s .cotidianos,diferenciados social e culturalmente, relações de amizade e deconflito e construindo num processo de tensões, embates e aco-modações os próprios resultados históricos que anos depois serãotomados como ponto de partida pelos pesquisadores de suaépoca.14

Raramente entrevistas, a não ser quando se tem uma pers- pectiva explicitam ente antropológica , as relações humanas (esociais) ficam obscurecidas pela visão das relações de produção

15. Maria Sylvia de Carvalho Franco, “Organização Social do Trabalhono Período Colonial”, in  P. S, Pinheiro, op. cit.,  p. 145.14. Edward P. Thompson chama a atenção para este aspecto em “LaSociedad Inglesa dei Siglo XVIII; Lucha de Ciases sin Gases?", in Tradicion, Revuelta y Consciência de Clase,   trad. Eva Rodriguez, Barce-lona, Critica, 1979, pp. 1361.

27

Page 16: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 16/138

determinadas por aquele esquema implacável do desenvolvi-mento das forças produtivas. Ao final, tudo o que nos resta éreconhecer uma racionalidade imanente à história — ou a tãomencionada “lógica do capital” — e, a partir dos resultadostidos por inevitáveis (frutos desta mesma lógica...), procurarexplicar por que se formularam determinadas políticas, por quese construíram determinadas instituições, por que determinados

agentes se marginalizaram em vidas miseráveis enquanto outrosascenderam social e politicamente.

Mas se ao invés disso nos perguntássemos como se chegoua tais resultados, se ao invés de simplesmente aceitarmos osresultados históricos, procurando sempre justificálos à luz deuma pretensa racionalidade histórica, fôssemos aquém deles bus-cando os caminhos que neles resultaram, talvez então se pu-desse tomar a história como uma grande viagem, do tipo da-quelas em que não se conhece o destino e em que os viajanteslutam para atingir os fins de seu interesse, chocandose ao mes-

mo tempo com os desejos de outros indivíduos igualmente empe-nhados em vencer a trajetória da vida da melhor maneira possível.

Os homens de elite, que desde o início do século XIX co-meçaram a formular uma série de propostas relativas à institui-ção do mercado de trabalho livre em substituição ao escravo,não sabiam decerto em que solução resultaria o problema quetanto os angustiava. Suas falas previdentes e planejadoras estão

 presentes no primeiro capítulo deste livro, deixando entrevertodo um imaginário perpassado pelo medo, pela tensão sempre

 presente nas relações entre ricos proprie tários brancos e mise-ráveis negros e mestiços escravos ou livres. O caminho esco-lhido para vislumbrar este imaginário foi a leitura de livrosfreqüentemente citados pela historiografia, mas quase nuncaabordados em seu conteúdo, a não ser o destaque de algumas

 propostas relativas à escravatu ra. Mais do que registrar tais pro - jetos, interessavame sobretudo saber como  se chegava a tais proposições ou que argumentos entravam para a const rução dasdiversas políticas acenadas por estes autores. Algumas vezes, nafalta de livros, mas diante da importância de determinadas per-

28

sonalidades neste debate relativo à instituição do mercado detrabalho livre, recorri a artigos assinados de jornais ou simples-mente a coleções de jornais.

Certamente não consegui abarcar todos aqueles que de umamaneira ou de outra participaram deste debate, que se estendeu por quase todo o século XIX . Haver ia um material infindávelnos anais parlamentares da Câmara Geral e das províncias, nos

relatórios presidenciais e policiais, nas correspondências oficiaise particulares, na literatura de viajantes estrangeiros, entre outrasricas fontes do período. Mas numa avaliação preliminar percebique os livros continham um material privilegiado, uma vez queneles havia um espaço apreciável, construído ao gosto de cadaautor, onde se discutia a questão da substituição da escravidão

 pelo trab alho livre e enveredavase por argumentos e propostasos mais diversos.

 já no segundo capítulo poderem os acompanhar a traje tóriavitoriosa, mas nem por isso sem percalços, da política imigrantista, num momento em que outras propostas faziam constarem alto e bom som a possibilidade de incorporar negros e mes-tiços ao mercado de trabalho livre. É certo que a vitória da

 política imigrantis ta não ocorreu em todo o país, mas tãoso-mente em São Paulo (e em menor grau em outras províncias,como o Rio de Janeiro), porém, conforme aponta Carlos Hasenbalg, esta política “impregnada” de “matizes racistas” re-sultou na marginalização de negros e mulatos na região Sudeste,além de ter reforçado o padrão de distribuição regional de brancos e nãobrancos que já vinha se desenvolvendo no regi-me escravista. Em conseqüência desta política — assinala este

autor — , “uma maioria da população nãobranca permaneceufora do Sudeste, na região economicamente mais atrasada do país, onde as oportunidade s educacionais e ocupacionais erammuito limitadas”.15

Portanto é preciso ter em mente que a política imigran-tista, aplicada com grande sucesso na província em que se con

15. Carlos Alfredo Hasenbalg,  Discriminação e Desigualdad es Raciais no  Brasil,  Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 167.

29

Page 17: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 17/138

Page 18: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 18/138

Page 19: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 19/138

sua pele, nos seus traços físicos, nos seus cabelos, os negrosüvres já de há muitas gerações, mesmo miscigenados, freqüen-temente traziam impressas as suas origens africanas, as marcasde seus antepassados escravos, e assim ficavam entregues à pos-sibilidade de serem tratados com desprezo e violências. Quantoaos libertos, isto é, os negros alforriados, as restrições a eleseram ainda mais explícitas, constando de vários itens de leis

que desta forma contrariavam a disposição da Constituição de1824 em aceitálos como cidadãos.2Mas o alvorecer do século XIX trouxe dois grandes acon-

tecimentos que influiriam grandemente neste arraigado modode vida escravista. Por um lado o movimento emancipacionistatomava vulto nas ruas miseráveis, nos ricos salões e no parla-mento da Inglaterra, determinando o início das pressões inter-nacionais contra o secular tráfico de negros da África para as

cor livre em relação à população total de cor era da ordem de 40 a 60%em meados do século XIX, tendo efetivamente atingido 74% no recensea

mento de 1872 (p. 9). Peter L. Eisenberg chamou a atenção para o homemnacional livre em geral e o seu pouco reconhecimento por parte da historiografia em “O Homem Esquecido: O Trabalhador Livre Nacional noSéculo XIX — Sugestões para uma Pesquisa", in Anais do Museu Pau- lista/ USP tomo XXVIII, separata, 1977/1978. Clovis Moura discute oconceito de branco  ou de ser branco  no Brasil e lembra que ele possuí“uma grande margem de conotações, variando de acordo com a condiçãosocial, cultural ou política de cada um”. Para este autor, tratase de umacategoria mais sociológica do que antropológica. Ver o seu livro, O Negro, de Bom Escravo a Mau Cidadão?,  Rio de Janeiro, Conquista, 1977, p. 20.nota 4.2. A respeito das violências a que estavam sujeitos os negros livres, além

dos escravos, na cidade do Rio de Janeiro nas duas primeiras décadas doséculo XIX, ver Leila Mezan Algranti, O Feitor Ausente  — Estudo sobre a Escravidão Urbana no Rio de Janeiro   — 1808-1821,  dissertaçãode mestrado, Departamento de História, FFLCHUSP, 1983; e tambémsobre perseguições aos libertos, ver Manuela Carneiro da Cunha,  Negros,  Estrangeiros  — Os Escravos Libertos e sua Volta à África,  São Paulo,Brasiliense, 1985, As restrições legais aos libertos foram demonstradas já no século passado por Agos tinho Marques Perd igão Malheiro,  A Escravidão no Brasil  — Ensaio Histórico-)uridico-Social,  Rio de Janeiro, Na-cional, 1867, e Luiz Maria Vidal,  Repertó rio da Legislação Servi l,  Rio deJaneiro, Laemmert, 1886.

34

colônias de alémmar. O Brasil recémindependente herdaria porseu turno estas incômodas pressões da nação capitalista mais poderosa de então , já consideravelmente aum entadas ,3 Tambémcaberia ao novo país uma outra herança, igualmente decisiva para que se começasse a pensar na necessidade de se extinguira escravidão. Era o grande medo suscitado pela sangrenta revo-lução em São Domingos, onde os negros não só haviam se re-

 belado contra a escravidão na última década do século XV IIIe proclamado sua independência em 1804, como também —sob a direção de Toussaint 1’Ouverture — colocavam em prá-tica os grandes princípios da Revolução Francesa, o que acar

retou transtornos fatais para muitos senhores de escravos, suasfamílias e propriedades.4

Ora, perguntavamse alguns assustados “grandes” homensque viviam no Brasil de então, se em São Domingos os negrosfinalmente conseguiram o que sempre estiveram tentando fazer,isto é, subverter a ordem e acabar de vez com a tranqüilidade ,dos ricos proprietários, por que não se repetiria o mesmo aqui?Garantias de que o Brasil seria diferente de outros países escra-vistas, uma espécie de país abençoado por Deus, não havianenhuma, pois aqui, assim como em toda a América, os qui-lombos, os assaltos às fazendas, as pequenas revoltas individuaisou coletivas e as tentativas de grandes insurreições se sucede-ram desde o desembarque dos primeiros negros em meados de1500,

As três primeiras décadas do século XIX só viriam confirmar estas sombrias expectativas com o desenrolar das insur-reições baianas, detalhadamente organizadas pelos haussás e

nagôs. E se elas não conseguiram alcançar seus objetivos, nem

3. Peter Linebaug h, “Todas as Montanhas A tlânticas Estremecer am",trad. Celia M. Marinho de Azevedo, in Revista Brasileira de História,  n.° 6, São Paulo, Marco Zero, 1984, pp. 746, aponta para a importânciado movimento negro londrino na luta contra o tráfico de escravos.4. Ver a respeito Eugene Genovese,  Da Rebe lião à Revoluç ão,   trad.Carlos Eugênio M. Moura, São Paulo, Global, 1983; e Luis R. B. Mott.“A Revolução dos Negros do Haiti e o Brasil", in  revista Questões &  Debate s,  ano 3, n."   4. Curitiba, ju nho de 1982, pp. 5563.

35

Page 20: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 20/138

 por isso eram menos atemorizantes . A pers istência um dia po-deria ter sucesso e em muitos ouvidos educados ressoava, amea-çadora, a cantiga entoada em 1823 nas ruas de Pernambuco:“Marinheiros e caiados/Todos devem se acabar/Porque só par-dos e pretos/O país hão de habitar”.5

Frente a estas expectativas disseminadas de inversão daordem política e social, de vingança generalizada contra os

 brancos, os ouvidos educados não só ouviram como começarama falar e sobretudo a escrever, registrando todo um imaginárioem que se sobressai a percepção de um país marcado por uma

 pro funda heterogen ia sócioracial, dividido entre uma minoria branca , rica e proprietária e uma maioria nãobranca, pobre enãoproprietária.6

As soluções encontradas para se ultrapassar esta heteroge-nia foram diversas, embora tivessem como ponto comum a ânsiade instituir uma nacionalidade. Esta busca de um povo foiexpressa repetidamente por diversos reformadores ao longo de

todo o século XIX. Em um primeiro momento, os emancipacionistas voltaramse para os próprios habitantes pobres do país,fossem eles escravos ou livres, e procuraram arrancálos de suasvidas vistas como abjetas, inúteis e isoladas, para integrálos noseu projeto de uma sociedade unida, harmoniosa e progressiva.Em meados da década de 1870 e sobretudo no início dos anos80, os abolicionistas retomaram muitas destas propostas eman

5. Estas insurreições são analisadas por Clovis Moura,  Rebe liõe s da Sen zala,  3." ed., São Paulo, Ciências Humanas, 1981; o levante de escravos

muçulmanos de 1835 é detalhadamente descrito por João José Reis,  Rebelião Escrava no Brasil  —  A História do Lev ant e dos Malês (1835), São Paulo, Brasiiiense, 1986. Cantiga citada cf. Jurandir Freire Costa.Ordem Médica e Norma Familiar,  Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 212.6. Utilizo o conceito de imaginário de acordo com Cornelius Castoriadis,

 A Inst itui ção Imaginária da Sociedade ,  trad. Guy Reynaud, Rio de Ja-neiro, Paz e Terra, 1982: “O imaginário de que falo não é imagem de.É criação incessante e essencialmente indeterminada (socialhistórica e psíquica) de figura s/fo rma s/im age ns, a pa rtir das quais somente é possí-vel falarse de ‘alguma coisa’. Aquilo que denominam os ‘realidade’ e‘racionalidade' são seus produtos" (p. 13).

36

cipadoras, embora passassem a defender um prazo fatal para ofim da escravidão.

Já em um segundo momento, que podemos localizar a partirdos anos 50, ganhando força principalmente nos anos 70, osemancipacionistas aderem às soluções imigrantistas e começama buscar no exterior o povo ideal para formar a futura naciona-lidade brasileira. A força de atração destas propostas imigran-

tistas foi tão grande que em fins do século a antiga preocupaçãocom o destino dos exescravos e pobres livres foi praticamentesobrepujada pelo grande debate em torno do imigrante ideal oudo tipo racial mais adequado para purificar “a raça brasílica”e engendrar por fim uma identidade nacional.

1. PROTETOS EMANCIPACIONISTAS

O inimigo interno domesticado

Antes mesmo que a independência fosse proclamada em1822, esta preocupação com o ordenamento dos habitantes emtermos nacionais começa a ser colocada. Em 1810, um paulistaformado em Direito em Coimbra ofereceu uma “memória” aD. João VI em que procurava chamar a atenção do soberano

 para a necess idade de se form ar no Brasil .uma população ho-mogênea e integrada num todo social. Em  Memória sobre o  Melhoramentos da Provincia de S. Paulo ,  App licável em Grande Parte á Todas as Outras Províncias do Brasil   (Rio de Janeiro, Nacional, 1822), Antonio Vellozo de Olive ira denunciava a Vexistência vegetativa e isolada de um povo antisocial, que

 justamen te por não conhecer “prazeres” , nutria um verdadeiro“horror ao trabalho”. E no entanto para que a “indústria”, bemcomo “todas as virtudes sociais”, tivesse início, constituindoum “povo enérgico, rico, vigoroso, sábio, e por todos os modosrespeitável”, seria preciso, antes de mais nada, instruir a população e “mostrarlhe um lucro fácil”, possível de ser obtido“sem muita fadiga”, o que evidentemente caberia ao governoamparar, mediante a antecipação de capitais. Somente assim

37

Page 21: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 21/138

 pensava ser possível “ tor nar esse mesmo Povo social, e infun-dirlhe o desejo de novos prazeres”, o que por fim produziria“a necessidade, e o amor do trabalho” (p. 29).7

A partir desta primeira tese temos a idéia de que a socie-dade positiva — ou a Sociedade — só pode ser aquela habi-tada por um povo social, isto é, uma comunidade de produtoreslivres e insaciáveis, sempre perseguindo novas necessidades, e

 portan to, constantemente devotados ao trabalho. A sociedade positiva seria assim alcançada med iante a construção da positividade do trabalho. Porém, anterior a esta idéia há um impor-tante pressuposto: a socied ade positiva .deye ser constituída peloEstado, ou “a mão hábil” do governo, conforme explicitava oautor logo de início (p. 28).

Em contraposição a esta imagem de uma sociedade verda-deira, Vellozo de Oliveira descrevia o que a seu ver constituíano momento a realidade de uma sociedade negativa: de umiado, uma massa de nacionais livres e pobres que viviam ali-

 jados da propriedade da ter ra e que por isso não podiam passarde parceiros ou rendeiros — “obstáculo terrível ao progressoda agricultura e povoação” (p. 102); de outro lado, milhares deíndios viviam dispersos pejas matas, arredios em função das perseguições movidas “pelos nossos” e da “mais injusta escra-vidão” (p. 107); es por último, havia ainda “os negros braçosdos selvagens Africanos”, que custavam “importantes somas” aos proprie tário s, mas viviam apenas o “cur to espaço de oito a dezanos” e resistiam ao máximo ao trabalho (p. 19 e 91).

Além disso, havia dois aspectos que pareciam estar lhe preocupando em relação à con tinu idade da escravidão. Um deles

7. Este livro foi publicado somente em 1822, quando Antonio Vellozode Oliveira já participava do Conselho de Estado do imperador D. Pedro Ie preparavase para exercer o mandato de deputado à primeira consti-tuinte brasileira. Suas propostas valem, pois, tanto para o Brasilcolôniaquanto para o Brasil independente e não há menção a nenhuma modifi-cação de conteúdo neste intervalo de tempo. Dados biográficos dos diver-sos autores que se seguem, cf. Augusto V. A. Sacramento Blake,  Diccio-  nário Bihliográphico Brazileiro,  7 vols., Rio de Janeiro, Nacional, 1883.Todas as citações estão com a ortografia atualizada; mantive porém ostítulos dos livros e demais documentos na grafia original.

38

era o artigo 10 do Tratado de Comércio firmado com a Ingla-terra em 19 de fevereiro de 1810 e que previa a extinção daescravidão, o que significaria a falta de braços em futuro pró-ximo. O outro eram “os casos tristes” e recentes ocorridos naJamaica, Suriname, São Domingos e que mereciam uma “par-ticular reflexão” (pp. 923).8

Em vista de todos estes problemas e na esperança de quese estabelecessem a “verdadeira Agricultura”, as “Artes” e as“ Manufaturas mais preciosas” não só na província como emtodo o país, o autor concluía propondo um plano abrangente eminucioso para o aproveitamento dos vários tipos de trabalha-dores disponíveis ou em potencial, como os negros alforriados,nacionais livres sem terra, índios e também imigrantes europeus.Ele pretendia a concessão de terras a nacionais e europeus po-

 bres (de preferência , famí lias), além de sementes, empréstimosgratuitos de dinheiro e isenção de impostos territoriais por dezanos. Embora defendesse a continuidade do tráfico “de resgate”dos escravos africanos, ele era favorável à libertação do ventre,

com a condição dos ingênuos prestarem serviços aos senhoresde suas mães até os vinte e cinco anos de idade. Defendia tam- bém maiores facilidades para alforrias pagas pelos própriosescravos. Quanto aos índios, ele lembrava a necessidade de ca-tequizálos a fim de incorporálos à sociedade. Para isso sugeriatransformar alguns deles em missionários (pp. 89110).

Outro autor a preocuparse com a inexistência de um povo y brasileiro foi João Severiano Maciel da Costa, marquês de Que ^luz, que em 1821 publicou  Memória sobre a Necessidade de 

 Abol ir a Introdução dos Escravos Africanos no Brasil; sobre o  Medo e Condiçõis com que esta Abolição se Deve Fazer; e 

sobre os Meios de Remediar a Falta de Braços que ela Pode Ocasionar   (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1821).

8. Os tratados firmados com a Inglaterra em 1810 são analisados por Nelson Wern eck Sodré,  As Raz ões da Independê ncia,  2.* ed., Rio deJaneiro, Civilização Brasileira, 1969. Entre as instruções trazidas pelodiplomata inglês Strangford havia uma que determinava a inclusão emqualquer tratado de artigo regulando a extinção do tráfico de escravosda África para o Brasil (p. 144),

39

Page 22: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 22/138

Dedicada “aos Brasileiros e seus Compatriotas”, a obradeste mineiro que governou a Guiana Francesa de 1809 a 1819questiona não só o tráfico como o próprio sistema escravista,responsável pela “multiplicação indefinida de uma populaçãoheterogênea, inimiga da classe livre”. Além da heterogeneidadedecorrente de sua condição social de escravos, o autor lembravatambém a sua natureza bárbara, africana, de gente que vive

“sem moral, sem leis, em contínua guerra, (..,) vegetam quasesem elevação sensível acima dos irracionais.. (p. 12). Destemodo o negro seria inimigo, não só por sua condição de es磧vocomo também por sua natureza bárbara, africana.

 Natureza de bárbaro e condição de escravo seriam ameni-zadas sensivelmente pelo bom tratamento dado a eles pelos se-nhores, que os alimentavam, vestiam, curavam, instruíam e atémesmo lhes davam por vezes a liberdade e continuavam a assis-tilos enquanto livres (p. 13). Apesar deste quadro paradisíacoda escravidão no Brasil, Maciel da Costa concluía que as rela-

ções entre brancos e negros continuavam a ser de inimizade edistância. Como no Brasil não há “classe do povo”, mas tãosomente “uma enorme massa de negros escravos e libertos quefazem ordinariamente causa comum entre si”, ele perguntavase

] em tom de alarme: “Que faremos pois nós desta maioridade de* população heterogênea, incompatível com os brancos, antes ini-

miga declarada?” (pp. 213).

Para ele, apenas “felizes circunstâncias” tinham impedidoaté aquele momento insurreições do tipo de São Domingos.Por isso mesmo era urgente a necessidade de trabalhadoreslivres para substituir gradualmente os escravos. Onde porémencontrar tais trabalhadores? Embora não visse com bonsolhos o aproveitamento dos libertos africanos e seus descen-dentes, a seu ver inferiores aos índios, ele nao via outra soluçãoa não ser inspirar o amor ao trabalho nos “homens livres da

> classe do povo de todas as cores” e, quando preciso fossa,forçálos mesmo a isto. Além disso, aconselhava o incentivoà reprodução de escravos e a imigração de trabalhadores euro-

 peus (pp. 2557).

40

Também para o eminente político paulista |osé Bonifácio yde Andrada e Silva (o “Patriarca da Independência”), o tér-mino do tráfico africano em poucos anos colocavase comouma necessidade premente e essencial para o futuro do paísrecémconstituído. Em  Representação á Assem bléa Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura  (Rio de Janeiro, Cabral, 1840), encaminhada em 1823, este

constituinte e organizador do primeiro ministério brasileirodeixava claro que a superação da “hete rogeneidade física e y^civil” da população só seria possível mediante a extinção lentae gradual da escravidão, e para isso tornavase necessário colo-car alguns empecilhos ao livre comércio de africanos para o

 país.

Apesar de considerar o africano de baixo nível mentaldevido à “vida selvática” da África, resistente “a toda espéciede civilização”, José Bonifácio empenhavase em formular dis- posições para integrálos no país recémfundado, incen tivando

 por um lado a reprodução de negros e, por outro, transforman-doos em trabalhadores livres (p. V). Contrário à tese, muitocomum durante todo o século passado, de que a escravizaçãodos africanos constituía uma saída cristã para os sofrimentosdos povos da selvagem África, ele a rebatia com uma simplesquestão: se os africanos são também seres humanos, por quenão os estabelecer no Brasil como “colonos livres”? A partirdisto ele propunha fixar o negro livre no campo medianteincentivos, tais como a concessão de pequenas sesmarias peloEstado a todos os libertos sem ofício. Pretendia também a pro-

 pagação dos africanos e seus descendentes, e por isso defendiaa emancipação das escravas com cinco filhos e também quesobre as negras traficadas incidisse apenas a metade dos im- postos, de modo que mais mulheres viessem se jun tar aosescravos. Ao mesmo tempo, esperava uma firme interyejaç|oestatal nos negócios do tráfico, a ser encerrado dentro de

# W ;1

quatro ou cinco anos no máximo, e para isso deveriam dobraros impostos sobre os escravos (homens) trazidos para o país

neste período (pp. 35 e 147).

41

C O id l d I l i ili á l D f

Page 23: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 23/138

 Na mesma linh a de José Bonifácio, três anos depois umoutro autor propõe explicitamente a abolição gradual do trá-fico africano. Em  Memória sobre a Escravatura e Projecto de Colonisação dos Europeus e Pretos da África no Império do 

,  Brazil  (Rio de Janeiro, Plancher, 1826), José Eloy Pessoa daSilva defende a tese de que a escravidão constituía a fonte detodos os males do Brasil e nenhum bem poderia resultar dela,

donde se concluía pela urgente necessidade de se travar otráfico.

 Nascido na Bahia, é provável que este bacharel em Mate-mática e Filosofia pela Universidade de Coimbra e brigadeirodo Exército tenha escrito estas páginas sob o peso das impres-sões tenebrosas suscitadas pelas primeiras insurreições dos haussás e nagôs em Salvador, e também pelas crescentes e contí-nuas revoltas dos escravos da rica região do Recôncavo, queabalaram as duas primeiras décadas daquele século. Preocupa-do com a desproporção numérica entre habitantes escravos elivres no país, que, segundo calculava, estaria na razão detrês para um, ele detectava o mal da escravidão precisamenteno seu agente de trabalho: “Esta população escrava, longe dedever ser considerada como um bem, é certamente grande mal.Estranho aos interesses públicos, sempre em guerra domésticacom a população livre, e não poucas vezes apresentando nomoral o quadro físico dos vulcões em erupção contra as massasque reprimem sua natural tendência; gente que quando é pre-ciso defender honra, fazenda, e vida, é o inimigo mais temívelexistindo domiciliada com as famílias livres”.

 Não bastassem os perigos representados por este temível

inimigo domiciliar, havia ainda a imoralidade com que oscativos impregnavam a sociedade. Para ele “o mau exemploque os escravos oferecem diariamente por seus vícios” expli-cavase pelo “estado de coação, violência e miséria” em queviviam (pp. 156).

Como solução para extirpar esta causa primeira de todaa pobreza e imoralidade do país, el^^SpunKâ a abolição_gradual do tráfico mediante a imigração de trabalhadores euro peus e africanos, sendo que estes últimos dever iam vir da

42

Costa Ocidental, onde a Inglaterra estava a civilizálos. Defen-dia também a civilização dos índios (pp. 149).

A preocupação expressa já muitas vezes com a necessidade de formar urgentemente uma nação homogênea assumirá l  !/  J  contornos radicais na década de 1830, quando Frederico Leo- poldo Cezar Burlamaque defende a devolução dos negros àÁfrica. Nascido no Piauí e doutorado em Ciências Matemáticase naturais pela Escola Militar, Burlamaque publicou  Memória  Analy tica á Cerca do Commercio d'Escravos e á Cerca dos  Mates da Escravidão Domestica   (Rio de Janeiro, Comercial Flu-minense, 1837), onde traça a vivas cores a situação opressivados negros no Brasil, submetidos à crueldade da “classe egoís-ta”. Era exatamente por isso que a seu ver a situação era alar-mante, estando os interesses dos senhores sob constante ameaçada parte de uma numerosa raça de “inimigos domésticos”,“cujo único fito deve ser a destruição e o extermínio de seusopressores” (p. VIII).

Além de perigosos, os negros não primavam pela inteli-

gência. Para o autor, a questão da diferença biológica — cadavez mais atribuída pelas ciências aos africanos em termos deinferioridade racial — era algo ainda não resolvido. Que uma

conformação cerebral específica os tornasse estúpidos ou queisto fosse resultado da escravidão, o que ele achava “maisnatural”, o fato é que os negros eram mesmo “de uma incúriae imprevisão que revolta; eles vegetam no estado o mais vizi-nho do mais bru to animal. . (p. 85).

Angustiado por estes motivos com “a segurança da raça

 bra nca ”, bem como com a possibilid ade de se cons trui r “uma

 Nação homogênea” , Burlamaque levantava a seguinte questão:“Convirá que fique no país uma tão grande população de liber^ ^tos, de raça absolutamente diversa da que a dominou? Não have1

rá grandes perigos a temer para o futuro, se as antigas tiranias J  forem recordadas, se os libertos preferirem a gente da sua raçaa qualquer outra, como é natural? Poderá prosperar e mesmo  j 

existir uma nação composta de raças estranhas e que Tnhuma sorte podem ter ligação?” ^

43

Page 24: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 24/138

A esta pergunta que explicita, de forma muito mais inci-siva que os autores anteriores, a diferença entre as duas raçase a impossibilidade de uma sociedade harmoniosa, seguese umaresposta igualmente taxativa:

“Não se pense que, propondo a abolição da escravidão,o meu voto seja de conservar no país a raça libertada: nemisto conviria de sorte alguma à raça dominante, nem tam-

 pouco à raça dominada. Os primeiros teriam a sofrer as rea-ções, e os segundos teriam sempre a suportar os resultadosde antigos prejuízos, que nunca cessariam a seu respeito"(p. 94).

Em vista desta divisão racial irremediável, Burlamaqueoferecia como única solução a extradição dos exescravos paraa África, onde o governo brasileiro, a exemplo do que já faziamingleses e norteamericanos, fundaria colônias para abrigálos.À medida que os escravos, atingidos os vinte e cinco ou trintaanos de idade, e as escravas, com vinte ou vinte e cinco anos,fossem sendo libertados e mandados de volta para a África,ele esperava que os nacionais pobres e livres e também estran-geiros encontrassem ocupação nas artes e ofícios ou em servi-ços domésticos (pp. 957).

O tema da heterogeneidade sócioracial da população bra-sileira toma a aparecer em  A Escravatura no Brazil Precedida d’um Artigo Sobre Agricultura e Colonisação no Maranhão (Bruxelas, ThiryVan Buggenhoudt, 1865), de autoria do posi

v tivista Francisco Antonio^ Brandão J rL Mas, ao contrário deoutros reformadores, este maranhense não propunha uma eman-

cipação gradual e disciplinar, e sim a transformação dos escra-vos em escravos da gleba e, mais tarde, em colonos sob regimede trabalho compulsório.9

9. Brandão Tr. doutorouse em Ciências Naturais pela Universidade deBruxelas, onde, juntamente com seus colegas Luis Pereira Barreto eJoaquim Alberto Ribeiro de Mendonça, começou a tomar contato com asidéias do filósofo francês Augusto Comte (17981857). O livro de BrandãoJr. inaugurou a produção sociológica positivista no Brasil. Cf. Ivan Lins,

 Histó ria do Posit ivismo no Brasil,  São Paulo, Nacional, 1964.

44

Fiel ao postulado comtiano de que a civilização repele aescravidão, Brandão previa o desmoro namento inevitável e / próximo da sociedade brasileira que, a seu ver, compunhase“de^partes tão heterogêneas” que acabava por alimentar “umespírito de classe, degenerando em monstruosa antipatia umas pelas outra s” (pp. 512). Escrevendo ao tempo do fim da guer-ra civil americana, ele parecia bastante impressionado com a

possibilidade de que um tal conflito viesse a se repetir aqui(pp. 523 e 945). Não faltavam evidências para isso, princi-

 palmente da parte dos escravos, que estavam sempre a se rebe-lar contra a crueldade com que eram tratados. E mesmo noscasos de bom tratamento, os cativos muitas vezes trocavam aamizade de seus senhores pela rebelião, movidos por “senti-mentos de independência”. Na verdade, os negros nunca ha-viam cessado de lutar pela liberdade no Brasil e em outras

 partes da América:

“A república dos Palmares, a rebelião do Cosme no Ma-ranhão, e tantas outras tentativas de conquistar a sua liber-dade, têm sido ensaiadas pelos escravos; e a última cena dodrama representado em São Domingos, nos princípios desteséculo, e o segundo ato nos Estados Unidos, ensaiase a estahora no Brasil!” (pp. 415).

Tão cônscio estava este autor da inevitabilidade da aber-tura do último ato deste “drama” sangrento que dedicou todoum longo capítulo (o capítulo 4) ao problema dos quilombos.Ao definir os “calhambolas” como “hordas de escravos que seescapam das fazendas e vão habitar as florestas”, onde funda-vam “uma república”, o autor procurava mostrar como esteisolamento era apenas aparente, uma vez que, à medida quecresciam em número de membros, estabeleciase toda uma redede relações de comércio com os fazendeiros. Ele revelava quealguns quilombos da região de expansão algodoeira do Mara-nhão cultivavam também este produto e vendiamno aos fazen-deiros, recebendo em troca ferramentas, armas e tecidos. Os proprietá rios, por sua vez, aceitavam estas relações de comércioe, fosse por medo dos negros ou por simpatizar com tais vizi-

h f é i d ê d il

Page 25: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 25/138

nhos, o fato é que importavam todos estes gêneros da vilaespecialmente para eles. Com isso, os quilombolas, freqüente-mente aliados aos índios, tornavamse mais e mais “respeitá-veis” e suscitavam um grande medo entre os brancos, que vis-lumbravam a construção de “uma sociedade na sociedade”(pp. 7696).

Entretanto, a destruição sistemática dos quilombos não

impedia a formação de outros, pois a matança dos quilombolassó fazia aumentar a “justa cólera” dos negros que se lançavamsobre as fazendas dos brancos, “pondo fogo a tudo e seduzin-do os outros escravos!” (pp. 834).

Defendendo uma posição sem dúvida ousada para a época,Brandão acreditava que os quilombolas não cometiam outrocrime a não ser o de querer “melhorar a sorte”. Por isso ele propunha o aprove itamento destes homens como colonos, aoinvés do seu assassinato pelas forças da repressão. Em seu favorele lembrava ainda que os quilombolas não eram inimigos dotrabalho, conforme se afirmava, pois eles eram freqüentemente

empregados pelos próprios fazendeiros nas suas lavouras —“conhecemos aqueles que o fazem” —, sendo solícitos no cum- primento de seus deveres desde que bem tratados (p. 89).

Estas relações sociais informais entre negros fugidos efazendeiros pareciam estar apontando na prática para o queeste positivista julgava ser uma necessidade primordial do país:a incorporação do negro ao mundo do branco. Em sua opiniãoeste era o caminho para se constituir uma “sociedade homo

W  * *9   mi |--------------------1—  §  |

gênea”, organizada de acordo com “uma escala perfeita dehierarquia social”, de modo que cada um conhecesse perfeita-

mente o seu lugar. Por isso, os escravos que permaneciam nasfazendas, e a quem ele representava “como meninos no de-senvolvimento intelectual”, não deveriam ser libertados ime-diatamente e nem mesmo se deveria cogitar da libertação doventre.

De acordo com o postulado positivista — as sociedadescaminham numa escalada progressiva e previsível rumo aoestágio final da civilização mais perfeita e harmoniosa — ,Brandão acreditava que o Brasil se encontrava no primeiro

46

degrau da etapa feudal. Para galgar o segundo, era precisorespeitar a propriedade tal como fora instituída e ao mesmotempo decretar a “escravidão da gleba” ou a proibição devenda dos escravos. Além disso, os senhores deveriam pagarum salário aos seus cativos, fornecerlhes máquinas simples para pouparlhes a força e dete rminar uma quantia “razoável”como preço da sua liberdade (pp. 623).

Este conjunto de medidas disciplinares, que incluíam ofim dos castigos corporais, deveria possibilitar a libertaçãogradual dos escravos. Quanto aos seus descendentes, eles se-riam considerados ainda por certo tempo “escravos” ou “tribu-tários” dos exsenhores. Ao final todos ficariam livres, porémsujeitos aos proprietários como “colonos”, devido à sua inca- pacidade de se dirigir por si mesmos. Somente assim seria possível inicia r o processo de formação do pro leta riado “h on-rado” no país e alcançar no futuro a plenitude de uma civili-zação superior. E nesta escalada rumo ao estágio final da liber-dade, o negro nunca escaparia ao poder do branco, uma vez

que “.. .o branco, conhendo melhor a sua posição, e o graude escala social que o negro deve ocupar”, deve levantar “esse 'seu semelhante com fra terna mão, em vez de oprimilo. . . ”

(pp. 656).

ócio e latifúndio

Assimilação, incorporação e homogeneização são expres-sões correlatas que aparecem repetidamente nos textos destesreformadores, traduzindo não só uma vontade de exercer, um

melhor controle sobre a população em geral como sobretudoa necessidade de produzir a própria subjetividade do trabalha-

dor livre.Embora a maioria da população composta de negros e J

mestiços fosse co nsiderada de baixo nível mental, isto não se >ycolocava como empecilho pa ra uma fu tura incorporação à so jciedade brasileira, tal como esta era projetada por estes reforjmadores. Para vários deles, tratavase simplesmente de tomarocupados os “desocupados” ou manter ocupados aqueles que

47

Page 26: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 26/138

se fossem alforriando, de modo a se instituir um controle estri-to e cotidiano do Estado sobre suas vidas.

Era deste modo que se pretendia combater a vagabunda-gem, problematizada na medida mesma das perspectivas deextinção da escravidão em futuro mais ou menos próximo.Ao mesmo tempo, a repressão sistemática sobre aqueles quenão tinham um "modo certo de vida” — ou, visto de outro

ângulo, aqueles que só se ocupavam consigo próprios, não sesujeitando a uma disciplina de trabalho em espaço alheio —deveria engendrar, com o passar do tempo, uma mentalidadede trabalho ou “o amor do trabalho” na população. Tratavaseem suma de incorporar a população pobre ao modo de vida prescrito pelas elites dominantes.

Portanto, apesar de os temas do baixo nível mental da população negra, índia e mestiça e da vagabundagem destesaparecerem relacionados nestas análises, isto não significa que

o segundo fosse visto como decorrente do primeiro, comonuma relação de causa e efeito. Para alguns destes primeiros

^reformadores, a ociosidade colocavase mais como um antigo“vício” da humanidade em geral, enquanto para outros ela

: deveria ser compreendida à luz da estrutura fundiária brasi-leira.

O baiano Domingos Alves Branco Moniz Barreto expres-sou com muita clareza esta primeira abordagem do ócio comoantigo vício humano em sua  Memória sobre a Abol ição do Commercio da Escravatura,  oferecida ao rei D. João VI em

1817 (Rio de Janeiro, Paula Brito, 1817). Muito alarmado coma vadiagem — “Mãe fecunda de todos os vícios”, “peste dosEstados” — e com a possibilidade de grande expansão casoa escravidão terminasse sem os devidos freios, Moniz Barretodefendia a abolição gradual do tráfico e também do próprioregime de trabalho escravista. É que era preciso deixar tempo para que o Estado estabelecesse uma coação polic ial sobre osescravos que se alforriassem. A partir disto, os libertos disporiam da liberdade apenas para trabalhar “segundo a sua voca-ção”, mas nunca para vagar “sem destino útil e honesto”

(pp. 312). Evidentemente, o que era útil e honesto ficava acargo do Estado definir.

Além da coação dos exescravos ao trabalho, ele se preo-cupava com os homens livres citadinos, dentre eles muitosmendigos que grassavam pelas ruas, “sem outro algum motivo,que o da preguiça e embriaguez. . . ” Este modo de vida dissoluto e inútil para os interesses do Estado deveria ser freadoenergicamente pelo governo. Nenhum mendigo escaparia dodever do trabalho, mesmo os inválidos — os cegos dariam

 bons ferreiros , os aleijados, bons alfaia tes. O contro le esta talsobre as ruas deveria estenderse ao interior das prisões, ondeuma multidão de condenados temporários às galés se dedica-riam ao aprendizado de ofícios úteis ao país, ao invés dostrabalhos forçados sem outra razão que a mera punição. Tam-

 bém os índios poderiam ser arrancados da ociosidade, “n ão aferro e fogo como se tem praticado, mas sim adoçandoos coma voz de Missionários escolhidos (...) e que excitem entre eles

o desejo das comodidades da vida social. ..” (pp. 412). r -   _____

Tudo se resumia,, porta nto, a um esforço decidido e siste|>©\vc^ ^mático da parte do Estado no sentido de educar, amoldar, civi|Itzar, controlando e disciplinando o cotidiano dos governadosa fim de que eles se tornassem efetivamente úteis ao país^ partes integ rantes, e bata lhad oras de uma razão nacional supe-rior.1" Mas os reformadores que, sobretudo a partir dos anos 70'relacionavam o ócio da maioria.ú a   pomilacão pobre com a estru(ftura fund iária já . não encarav am como tão direto e simples oJ

 pexcurso entre emancipação grad ual e disciplinarização das vidas.

Antes disso, havia jjm a importante p remissa a ser disc utida:a concentração da propriedade da terra em poucas mãos e o

10. Neste mesmo sentido, Maciel da Costa preocupavase em comb ater avagabundagem, a qual ele atribuía indistintamente aos homens livres“brancos e pardos" que "vegetam", recusandose a trabalhar. Para inspi-rarlhes o amor ao trabalho, ele propunha drásticas medidas repressivas,tais como a instituição de uma “Polícia vigilante e severa que não consinta ociosidade nesta classe de gente, trazendoa resistada e até inven-tariada", op. cit.,  p. 57.

49

i ti t b lh di i li d l l ti dão colocasse em questão a própria sobrevivência da grande

Page 27: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 27/138

 pouco incen tivo ao trab alho disciplinad o, regular e cumu lativoque isto poderia representar para a maioria da população mar-ginal e sem quaisqu er recu rsos .11

O visconde e marechaldecampo Her>riqnp Pedro Carlos,\ de BeaurepaireRohan discutiu em profun didade esta premissa

em fins da década de 70, época em que os clamores em tornoda escassez de braços no país já amparavam muitas propostas

imigrantistas. Em O Futuro da Grande Lavoura e da Grande  Propriedade do Brazil  (Rio de Janeiro, Nacional, 1878), esteeminente fluminense, que havia sido ministro da Guerra e agoradirigia a Comissão da Carta Geral do Império (para o levanta-mento geográfico do território nacional), procurou demonstrarque não havia falta de gente no país, mas tãosomente o nãoaproveitamento de populações dispersas e sem terra. Para ele,o problema real da lavoura no Brasil repousava na grande

 propriedade, cuja existência estava ameaçada pela próxim a extinção da escravatura, que, segundo suas  prev isõ es , não durariamais de dez anos, em razão da mortalidade e manumissões.

Após constatar que grande lavoura e grande propriedadenão se confundiam, uma vez que os artigos de primeira neces-sidade podiam ser cultivados tanto em grandes* extensões deterra como também em áreas pequenas, ele enfatizava que omesmo se poderia concluir para artigos de exportação comoa cana e o café. Mas se eles existiam apenas em grandes pro-

 priedades era porque só os ricos os podiam cultivar, por seremos únicos com condições de comprar máquinas e instrumentoscaros.

Implícito nestas suas formulações a respeito da grande

lavoura estava o temor de que a próxima extinção da escravi

11. Esta questão já havia sido apontada anteriormente por AntonioVellozo de Oliveira e losé Bonifácio de Andrada e Silva. Enquanto o prim eiro exp licava a exist ência vegetativ a e isola da da maio ria da popu -lação livre, voltada exclusivamente para a subsistência, em razão da suafalta de propriedade, op. cit.,  p. 102, o segundo rebatia a tese da preguiça bra sileir a e lem bra va que, antes do estab eleci men to de grandes enge nhosde açúcar em São Paulo, a província prosperava com base na produçãoagrícola de pequenos proprietários, op. cit.,  p. 7.

50

dão colocasse em questão a própria sobrevivência da grande propriedade. Afinal, a idéia de liberdade já se insinuava peri-gosamente entre os escravos, que, a exemplo do ocorrido nascolônias francesas e nos Estados Unidos, poderiam impingir aossenhores uma “libertação sem condição alguma” (p. 16). Porisso ele se propunha a responder a esta questão premente:como manter a grande lavoura na grande propriedade? Ou,

como manter incólume o poder do grande proprietário? (pp.56 e 12).

A resposta era simples: concretizar, antes que fosse tardedemais, uma liberdade apenas nominal e um plano bastantedetalhado. Tratavase em primeiro lugar de dar início ao “retaIhamento da grande propriedade”, o que queria dizer dividir asterras em pequenos lotes e distribuílos às famílias de escravos,de modo que elas se vinculassem definitivamente ao solo sempresob o poder do grande proprietário. Era apenas uma questãode “trocar a denominação de escravos pela de foreiros” (pp.106). Em segundo higar. era preciso atrair os nacionais pobrese livres e também imigrantes, que decerto ansiariam pela con-dição de pequenos proprietários.

Ao contrário dos imigrantistas, que, como veremos adiante,negavam então a existência da idéia de propriedade entre osnegros, BeaurepaireRohan afirmava que esta era uma aspira-ção geral à humanidade (p. 9). Era preciso apenas compeliro homem livre a trabalhar para os grandes proprietários, canali-zando bem seus instintos pela pequena propriedade em tomodestes “centros agrícolas”. O “domínio direto” sobre as terrascontinuaria, porém, a pertencer ao fazendeiro original (p. 10).

Assim, o problema da ociosidade do nacional pobre e livreseria solucionado por este esquema de autonomia ilusória, acres 7  ,cido de uma boa dose de educação moralizadora. Aqui este f I _ A a .*-*

' — ■ t . . . . .. .............. ...  — ........ * ....................................................

  -*4

autor também se distingue dos reformadores que propunham arepressão pura e simples para obrigar os pobres a trab alha r^ \ para interesses alheios. Em sua opinião, o essencial era acos-tumar o homem ao trabalho voluntário  desde a mais tenraidade, o que poderia ser obtido a partir da criação de escolasespecializadas..em_xd.ucação..iJidusicial (p. 19).

51

vidão Por isso tal como BeaurepaireRohan que pretendia

Page 28: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 28/138

Além da familiarização com instrumentos agrários maisaperfeiçoados, estas escolas deveriam incutir nos alunos umaoutra mentalidade de tempo. Ao invés “de ficar em casa porcausa da chuva”, distraindose “com a viola, o jogo ou outroqualquer vício”, o lavrador não seria mais dominado pelasintempéries da natureza e procuraria outrossim construir o seu

 próprio tempo, um tempo de ocupações úteis, produtivas , obvia-

mente no sentido capitalista do termo.Enquanto não fosse possível fundar essas escolas, ele re-

comendava, além do ensino da religião às crianças — “sem aqual nunca haverá moralidade perfeita” —, o fim do “usoignominioso dos castigos corporais” e o ensino dos ingênuos

 pelos fazendeiros. Somente assim os descenden tes dos escravos poderiam se tornar, no futuro , “homens mora lizados, dignoscidadãos de um país civilizado” (pp. 21*2).

Pedagogia da transição

A necessidade de um aprendizado morai assinalada porBeaurepaireRohan constituiu uma das teclas mais insistente-mente repisadas por estes primeiros reformadores emancipa-cionistas, tendo, sido mais tarde retom ada^elo ^ .^bôUcÍ£üaiStas.É que de nada adiantaria a coação policial ao trabalho e ocontrole administrativo das vidas se não ocorresse simultanea-mente uma internalização da hierarquia social ou um reco-nhecimento subjetivo da posição social a ocupar e dos limitesdas aspirações.

Assim, era preciso coagir exescravos e pobres ao trabalhoe manter o seu diaadia sob um controle estatal estrito, semdescuidar de lhes abrir novas perspectivas de vida, o que sig-nificava incentivar novas necessidades de consumo e de prazer.Estas perspectivas, porém, deveriam restringirse ao âmbito dotrabalho constante e disciplinado. Fora dele não haveria maisespaço para os homens livres a caminho da cidadania.

Como vimos, vários destes autores parecem ter encontradodificuldades em formular seus projetos de internalização dahierarquia social fora dos parâmetros disciplinares da escra

52

vidão. Por isso. tal como BeaurepaireRohan, que pretendiatransformar exescravos e homens livres em foreiros perpétuosa serviço disfarçado dos grandes proprietários, e FranciscoBrandão, que postulava a servidão da gleba para se galgarmais um degrau rumo à civilização, outros emancipacionistasinclinaramse para uma transformação da escravidão a partirde seu próprio interior e traçaram planos detalhados de mora^

lização dos escravos.12Podemos encontrar um precursor desta tendência ainda

no século XVIII e cujo livro mereceu a atenção de diversosemancipacionistas e abolicionistas, a julgar por suas referênciaselogiosas. É mesmo possível que o padre Manoel Ribeiro daRocha tenha sido o primei ro autor a preocuparse com o tema 1do negro livre no Brasil, pelo menos em termos do preparosistemático do escravo para a liberdade. De qualquer modo ele

 pode ser visto como o autor que mais profu nda influênciaexerceu sobre ps reformadores sociais do século XIX.

 Nascido em Lisboa em 1687, bacharel em Direito pelaUniversidade de Coimbra e ordenado padre pela Companhiade Jesus, Ribeiro da Rocha mudouse para o Brasil e lecionouem colégios dos jesuítas nas capitais do Espírito Santo, SãoPaulo e Bahia, tendo se radicado nesta última, onde morreuem 1745. Desta vivência prolongada na colônia resultou umlivro póstumo que revela uma arguta capacidade de observa-ção das relações conflituosas entre senhores e escravos em seucotidiano — Ethiope Resgatado, Empenhado, Sustentado, Cor- regido, Instruido e Libertado  (Lisboa, O.P. Francisco LuizAmeno, 1753).13

12. Ver a respeito Paulino José Soares de Souza, Carta aos Fazendeiros e Commerciantes Fluminenses sobre o Elemento Servil, ou Refutação do Parecer do Sr. Conselheiro Christiano Benedicto Ottoni Acerca do Mesmo  Ass umpto por um Conservador,  Rio de janeiro, Nacional, 1871; e MariaJosephina Mathilde Durocher,  Idéias por Coordenar á Res peito da Emancipação,  Rio de Janeiro, Diário do Rio de Janeiro, 1871.13. Dados biográficos cf. José Honório Rodrigues,  História da Histór ia do Brasil,  1* parte, H istoriografia Colonial, 2.“ ed, São Paulo, Nacional,1979.

53

Para que o negro escravo pudesse ser preparado para aneceriam cativos porém como temíveis “domésticos inimigos”

Page 29: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 29/138

vida em liberdade, objetivo central deste livro, tal como indicao próprio título, o padre Ribeiro da Rocha começa por des-montar a tese corrente de que os cristãos travavam na Áfricauma guerra legítima contra os bárbaros pagãos.14 Na reali-dade, escrevia ele, os cristãos, mais precisamente os comer-ciantes, não faziam mais do que invadir e assaltar aquele con-tinente, negociando “coisa alheia”, pois os negros, mesmo redu-

zidos ao cativeiro, continuavam a reter a posse da liberdade(p. 3 e 15).

Entretanto, cônscio da necessidade que o reino portuguêstinha de tal comércio, Ribeiro da Rocha procurava minorar aculpa destes traficantes, assegurandolhes o perdão divino desdeque negociassem escravos a título de redenção, ou seja, até queos cativos paguem com seu trabalho o seu valor de resgate.Para alcançar esta libertação final do negro escravizado, ele

 pro pun ha um “modo háb il” , que se resum ia a um lento cami-nhar do africano rumo à liberdade, sempre sob as rédeas curtas

do branco redentor. Em primeiro lugar, ele deveria ser “resgatado  da escravidão injusta”, que começava na própria África,entre africanos; em segundo lugar, “ empenhado  no poder deseu possuidor” até que pagasse ou compensasse com os seusserviços o seu valor de compra, ou melhor, os gastos com oseu “resgate” da África; os passos seguintes seriam o seusustento  condigno pelo senhor e mais a correção  de seus vícios,a instrução  na doutrina cristã e nos bons costumes e, final-mente, a libertação  (pp. 79102).

As fases da correção e instrução sob a responsabilidadedireta dos senhores de escravos eram essenciais não só paraum melhor funcionamento da escravidão, como também parao futuro das relações sócioraciais. Isto porque, sem a interiorizaçãa da dominação pelo dominado, os negros continuariama fugir e a ameaçar os interesses dos brancos, ou então oerma

14. A respeito desta tese, Winthrop Jordan, White over Black   —  Am erican Altitudes toward the Negro, 1550-1812,  Baltimore, Penguin Books,1969.

54

neceriam cativos, porém como temíveis domésticosinimigos(pp. 2112). Ao mesmo tempo, ficava implícito o desejo de pre-

 parar a próp ria subjetivid ade dos futu ros trabalhad ores livres,os quais deveriam continuar a considerar o branco como seusuperior.

Para que os senhores se assegurassem do amor, respeito etemor dos escravos para com eles, o padre Ribeiro da Rocha

 prescrevia o “castigo econômico”, isto é, aquele que tem po robjetivo corrigir, em lugar do castigo por “vingança” que, apli-cado impensadamente e com raiva, apenas destrói física e espi-ritualmente o castigado. Por isso ele recomendava, primeira-mente, que o senhor verificasse se o escravo era de boa ou máíndole. No primeiro caso, bastaria uma repreensão verbal. Já nosegundo, o ato de punir deveria obedecer a um plano bem orde-nado em relação às seguintes variáveis: 1. tempo  — o castigonão pode ser ministrado imediatamente ao delito; antes é pre-ciso esperar que “os espíritos sosseguem”, pois “(...) o furor

com que o senhor castiga provoca também a ira do escravocastigado, e desordenada a correção, em vez de ser a que Deusmanda, fica sendo a que o demônio influi”; 2. causa  — o cas-tigo só ocorre com motivo; a ênfase nisto era necessária paraevitar que os senhores continuassem a castigar por mero capri-cho de dominador; 3. qualidade  — o castigo tem limites e “nãodeve passar de palmatória, disciplina, cipó e prisão”; 4. quantidade  — o castigo tem de ser bem proporcionado, de tal modoque o escravo sempre receba um castigo menor do que o fixadoinicialmente (diminuase três dúzias de cipoadas para duasdúzias, ou troquese uma dúzia pela simples palmatória...);

5. modo  — o castigo não deve se exceder “nem nas obras”(fustigandose o escravo pelo rosto, pelos olhos, pela cabeçaetc.) e “nem nas palavras” (xingandose ou maldizendose oescravo) (pp. 177208).

O conjunto destes preceitos necessários a uma economiade punir objetivava, portanto, assegurar o poder daquele quecastiga e a sujeição subjetiva do castigado, a fim de se evitarque a raiva mútua do repressor e do punido os igualasse nomomento do castigo. Ao invés disso, o primeiro deveria agir 

55

com frieza e distância por um lado e com palavras “amoro-vezes implícita ou mal explicitada, desenvolviase o argumen-

d i ( i l i l i ili

Page 30: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 30/138

com frieza e distância, por um lado, e com palavras amorosas”, por outro, explicitando o porquê do castigo, bem comoo seu tipo e dosagem, de modo que o segundo pudesse tomarconsciência da sua falta e, ao mesmo tempo, do rigor e damagnanimidade de seu senhor. Já nos casos em que o senhor proporcionasse algum “benefício” ao escravo, as palavras amo-rosas deveriam ser substituídas por 

“(...) palavras mais dominantes, (...) para que, deste modo,sempre o amor, o poder e o respeito reciprocamente se tem-

 perem de sorte, que nem os senhores por rigorosos, deixem deser amados; nem também por benévolos, deixem de ser temi-dos, e respeitados.. (pp. 21723).

Por último, a instrução dos escravns na doutrina cristã enos bons costumes completaria a obra de sujeição interior donegro ao branco. Além das razões puramente religiosas paraque os escravoíTse convertessem ao catolicismo, o padre acena-

va com uma motivação bem mais palpável aos interesses terre-nos dos senhores: os negros serviriam “com mais prontidão,e fidelidade (...), pois a Fé, que recebe no Batismo, faz o servomais pronto, e fiel no serviço de seu senhor...” (p. 263).

Ao interpretar as relações sociais de seu tempo, este jesuí-t a jogava com duas idéias básicas à primeira vista algo contra

 jdi tór ias : por um lado ele descrevia o escravo como um ele-mento perigoso, inimigo doméstico sempre pronto a atacar seusenhor ou a fugir; mas, por outro lado, ao abordar a questãoda disciplina, o escravo assemelhavase mais a uma massaamorfa, elemento passivo e resignado à espera das ordens e punições de seu senho r. Assim, o leito r pode fica r com umadestas duas imagens — o negro atuante ou o negro passivo —

í ou então tentar compreendêlas a par tir de uma premissa essen-cial: a inferioridade dos escravos negros, africanos.

Lugarcomum no pensamento do século XIX e anteriores,a idéia da inferioridade do africano assinalava a sua presençanos discursos sem se perder em longas exposições a respeito.Era como se a pressuposta concordância geral quanto a este

 ponto dispensasse explicações. Assim, desta premissa, muitas

56

to de que o negro perigoso (porque inculto, imoral, nãocivilizado, enfim, diferente) precisava ser rapidamente incorporadoà sociedade via estratégias disciplinares. Quanto à viabilidadedestas propostas passavase por alto, pois esta mesma inferio-ridade, que tornava o negro perigoso, assegurava a certeza desua aquiescência em relação a um estado de liberdade ilusória.15

 Mulheres, ao trabalho!

Além dos exescravos, pobres nacionais e índios, tambémas mulheres mereceram um lugar nestes discursos de reconhe-cimento do potencial de braços a ser incorporado ao mercadode trabalho e à sociedade em termos mais gerais. Embora se

 possa pensar que a figura femin ina estivesse impl ícita nostermos “exescravo”, “liberto”, “nacional”, houve pelo menosalguém que julgou necessário explicitála neste debate sobre otrabalho livre.

 Nisia Floresta Brasilei ra Augus ta Faria, nascida no Rio V"Grande do Norte e estabelecida no Rio de Janeiro desde 1838como proprietária de um colégio para moças, destacouse comouma das primeiras feministas do país. Suas críticas em relaçãoà criação das meninas ricas como objetos de luxo tolos e inú-teis, bem como a defesa do aproveitamento das pobres no mer-cado de trabalho, revelam um esforço militante em prol daafirmação da mulher como ser social tão atuante e necessárioem termos produtivos quanto o homem.

Embora não chegasse a propor qualquer medida relacio-

nada diretamente ao término da escravidão em seu livro Opúsculo Humanitário  (Rio de Janeiro, M. A. Silva Lima, 1853),limitandose a denunciar a degradação dos costumes em gerale do trabalho em particular devido ao regime escravista, Nisia

15. Ao argumentar em favor de uma aplicação algo modificada das leisemancipacionistas romanas, o padre Ribeiro da Rocha lembrava que

m

entre os escravos brancos e cultos de Roma e os escravos negros e igno-rantes do Brasil havia uma grande diferença, op. cit.,  pp. 7980.

57

Floresta avançava algumas propostas relativas à formação dasb il i t b lh li ( 100 40) P l ã h i problema representado por uma “falsa idéia” muito comum

Page 31: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 31/138

 brasileiras para o trab alho livre (pp. 10040). Par a ela não havia por que trazer imigrantes , qua ndo no próprio país hav ia “comque formar, querendo, numerosas e respeitosas legiões de bra-vos!” Entre os seres que potencialmente formariam tais “le-giões’', ela destacava as mulheres pobres nacionais, tanto asque já nasciam em famílias livres quanto as que eram resga-tadas na pia batismal, além das índias, que muitas vezes ainda

viviam em estado selvático (p. 46 e 170). Todas elas formariam“uma classe pública de operárias”, que, dedicadas a “toda sortede trabalho”, acostumariam “nossos filhos para esse feliz por-vir, em que todo o trabalho será feito por braços livres”(pp. 1467).

Deste modo, se o governo começasse a envidar esforçosno sentido da proletarização das brasileiras pobres, bem comoda civilização das índias, alternativas seriam criadas para queno futuro os escravos fossem substituídos por trabalhadoreslivres.

*. Mas não só ao governo caber ia institu ir uma política de.y J h^iIita^QL_d§sjiiuJUierÊSLpara 0 . trabalho livre. Também “ as j mães bra sile iras ” deveriam desempenhar um importante pape l/ pedagógico para que uma tal política pudesse encon trar_ resso

nânçia. Ela as aconselhava a cuidar pessoalmente da educação^ J   de suas filhas, ao invés de deixálas entregues a escravas cheias

) de vícios e desmoralizadas pelo cativeiro. Somente assim seria possível exercer uma constan te vigilância sobre as crianças, di-recionando seus hábitos, leituras e amizades para os altos inte-resses da pátria e da família. E, como não poderia deixar deser, em atendimento a estes mesmos objetivos, que incluíam oaumento das riquezas e o progresso do país, as mulheres detodas as classes deveriam ser acostumadas ao trabalho “desdea mais tenra idade (...) mediante a conjugaçãõ bem planejadade distrações inocentes com úteis ocupações” (pp, 1023 e12278).

Tratavase acima de tudo de moralizar o trabalho, e paraisso era preciso tornálo positivo e inevitável não só aos olhosdas mulheres pobres como também das ricas. Havia ainda o

 problema representado por uma falsa idéia , muito comumno Brasil, de que a mulher “nada pode por si mesma, sendolheindispensável o braço do homem para fazêla viver,  como asua razão  para dirigila!” E embora não estabeleça uma vinculação explícita entre a necessidade de habituar desde a infân-cia as mulheres pobres e também as ricas ao trabalho para se poder então rebater esta “falsa idé ia” , ela deixa entreve r que

a afirmação da mulher como ser social útil, equiparado aohomem em termos de produção material e mental, só poderiaser conquistada mediante a sua inserção no mercado de tra- balho livre.

Mas para isso as mulheres como um todo teriam de sercriadas tendo como postulado de vida a positividade do tra- balho ou a interiorização da necess idade de trabalha r não sóno lar como fora dele, a exemplo do que ela pudera constatar,maravilhada, entre as mulheres pobres na França e Inglaterra

 — países em que a dupla jornada de trab alho feminino já iaem curso (pp. 1378).

2. PROJETOS IMIGRANTISTAS

Sonhos brancos

Ao lado das vividas imagens da crise presente ou iminentee também da ordem, evolução e progresso futuros, a_rg£resgntação de um. tempo de transição é sem dúvida a que jn ai ssobressai ao conjunto das falas que desde o início_do„sécul9XIX tenderam à instituição de um mercado^ de jrab alh o Jiv rçno país, em substituição ao escrayo. Çjise.era o que se tinhanas visões mais pessimistas ou o que se estava para ter em breve se não se conseguisse assegura r a evolução do país rumoà meta sonhada — o progresso. lá para se alcançar este idealera necessário partir de uma situação de ordem que controlassea crise, evitando o desregramento da população e o caos total.Este período de ordem, de crise controlada ou contornada,exprimiase pela idéia de passagem do velho Brasil, o Brasil

59

colonial dos senhores de escravos, para o novo Brasil, aquele tratados para trabalhar como parceiros no interior da fazendaIbi b d d Ni l V i A é ã iê i

Page 32: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 32/138

p qem que as leis de mercado regeriam, livremente e em igualdadede condições (jurídicas), as relações entre patrões e empregados.

Esta passagem, ou transição, era concebida como um tem- po ordei ro de superação gradativa dos graves problemas sócioraciais, em que um conjunto de táticas de controle e de dis-ciplina seria aplicado a fim de se atingir no futuro o tão

sonhado tempo de progresso. Nesse meio tempo esperavase queo país pudesse preencher uma carência básica apontada porquase todos os autores já vistos até aqui: a nacionalidade. Paraisso era preciso que se forjasse uma população plenamenteidentificada com a idéia de pátria, de sociedade brasileira, não_ só em termos de limites geográficos como. principalmente no .sentido de uma ética nacional. Contudo, a percepção de umaexplosiva heterogenia sócioraciaí destacase como um consi-derável entrave no pensamento daqueles que almejavam trans-formar o país recémindependente em nação.

Já vimos como foram freqüentes as vozes daqueles refor-madores que desde o início do século XIX e até quase o seufinal pretenderam estabelecer um tempo de transição para otrabalho livre à custa da disciplinarização do exescravo eseus descendentes, bem como pobres nacionais em geral. Houve,

 porém, autores que part iram de uma perspectiva essencialmen-te distinta em sua tentativa de diagnosticar os males doJBrasile^propor os remédios para a crise. Sob a influência das teoriascientíficas raciais que então se produziam na Europa e nos Esta-dos Unidos e açodados pela percepção de que o fim da escra-

vidão se avizinhava cada vez mais, vários reformadores passarama tratar do tema do negro livre não mais do ângulo inicialmente

 proposto — o da coação do exescravo e demais nacionaisIlivres ao trabalho — , mas sim da perspectiva de sua substi-tuição física pelo imigrante tanto na agricultura como nas diver-sas atividades urbanas.

O projeto imigrantista começou a ser praticado em SãoPaulo em fins da década de 1840, quando, em meio às pressõesexternas e também internas contra o tráfico africano, iniciaramse as primeiras experiências com imigrantes europeus, con-

60

Ibicaba, do senador Nicolau Vergueiro. Até então a experiênciacom a imigração reduzirase à fundação de colônias pelo go-verno geral, onde colonos, em geral suíços e alemães, congre-gavamse como pequenos proprietários e produtores de gênerosde primeira necessidade para o abastecimento de cidades e vilas próximas. Mas em São Paulo pretendiase provar que os imi-

grantes também poderiam ser aproveitados como trabalhadoreslivres a serviço da grande propriedade, acenandose assim coma possibilidade de num futuro próximo substituir o escravo nas

lides rurais.Apesar de estas primeiras tentativas particulares com a par-

ceria terem sido bastante traumáticas para os fazendeiros quese arriscavam nesta empresa — dada a resistência imprevistados imigrantes às condições de trabalho — , elas suscitaram umtema que doravante ocuparia cada vez mais espaço nas pro-

 postas tendentes à instituição de um mercado de trabalho li-vre.16 É o tema do imigrante jde al_e o tipo de condições .quelhe deviam ser oferecidas a fim de que ele se fixasse no país

cumprisse com a_s_ua suposta_.mksánde introd^toif e agentede progresso e civilização.

Assim, a velha preocupação com a ausência de um povoe a heterogenia sòcío~raciaÍ ganhou novos contornos.nas_análises_dos imigrânli&tas. É que, ao invés de simplesmente constataraquilo que já era secularmente de senso comum — a inferio-ridade de negros e mestiços — e passar em seguida a tratarde sua incorporação social, estes reformadores tenta ram... com- preender o que reconheciam como diferenças raciais e a parti r

daí _derivar suas propostas. A implicação disto é que a idéia

16. Ver a respeito destes percalços Thomaz Davatz,  Memó rias de um Colono no Brasil (1850),  trad. Sergio Buarque de Holanda, Bahia/SãoPaulo, Itatiaia/USP, 1980; e Verena Stolcke e Michael M. Hall, “AIntrodução do Trabalho Livre nas Fazendas de Café de São Paulo”, in 

 Revi sta Brasileira de His tória ,  n.° 6, trad. Celia M. Marinho de Azevedo,São Paulo, Marco Zero, 1984, pp. 80120. Sobre Ibicaba, ver José Se-

 basti ão Wit ter,  Ibicaba, Uma Experiência Pioneira ,  São Paulo, Arquivo

do Estado, 1982.

61

da inferioridade dos africanos, vista até então em termos doSuas concepções racistas já apareciam bastante explícitas

em duas de uma série de cartas publicadas originalmente no

Page 33: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 33/138

seu “paganismo” e “barbarismo” cultural, começou a ser reves-tida por sofisticadas teorias raciais, impressas com o selo pres-tigioso das ciências17 Em decorrência, ao assumirem a idéiada inferioridade racial de grande parte da população brasileira,estes autores inclinaramse a tratar da transição para o traba-lho livre quase que exclusivamente do ângulo do imigrante, já

/ que consid eravam negros e mestiços incapazes de interiori zar! sentimentos civilizados sem que antes as virtudes étnicas dostrabalhadores brancos os impregnassem, quer por seu exemplomoralizador, quer pelos cruzamentos interraciais.

A necessidade de renovar a população brasileira a partirda imigração branca foi muito bem explicitada pelo alagoano

r- Aurel iano Cândido de Tavares Bastos em vários escritos dadécada de 1860. Formado em Direito em São Paulo em 1861e eleito deputado por sua província no ano seguinte, TavaresBastos abraçou desde muito cedo a causa das reformas polí-ticas e sociais. Entre estas últimas, as questões relativas à aber-tura de condições que propiciassem a vinda massiva de imi-grantes ocuparam uma boa parte de seus escritos e atividades

 políticas, tendo inclusive fundad o em 1866 a Sociedade Int er-nacional de Imigração.

17. A inferioridade racial em termos biológicos começou a ser atribuídaaos africanos principalmente a partir de meados do século XIX, com oinício dos experimentos científicos com cérebros humanos e símios e a pub licaç ão de tratados sobre as difere nças das raças hum anas , bem comosuas distintas aptidões naturais. Segundo Winthrop Jordan, no iníciodo século XVIII o conceito de inteligência não incluía uma demarcação

entre atributos inerentes e adquiridos e, como havia um abismo culturalentre europeus e africanos, estes últimos, recémchegados à América(Estados Unidos) e na condição de dominados, pareceram muito estúpidosna perspectiva dos brancos. A partir daí foi simples concluir que osnegros eram de uma estupidez inveterada e natural, sem entretanto im- prim ir precisão e signif icado a esta idéia , o que seria feito no séculoseguinte pelas ciências, op. cit.,  pp. 18990. Ver também a respeito GeorgeM. Fredrickson, The Black Image iti The White Mind   — The Debate on 

 Afro -Am eric an Character and Dest iny, 1817-1914,  Nova Iorque, Harper& Row, 1972, em especial o cap. "Science, Polygenesis, and the Proslavery Argument".

62

em duas de uma série de cartas publicadas originalmente no jorn al Correio Mercantil, sob o pseudônimo de “O Solitário”,entre setembro de 1861 e abril de 1862. Em Cartas do Solitário (4.a ed., São Paulo, Nacional, 1975; l.a ed., 1862) e tambémem Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro   (2,a ed.,São Paulo/Brasília, Nacional/INL, 1976), panfleto publicadoem 1861 por “Um Excêntrico”, Tavares Bastos desenvolve atese de que a defesa do término da escravidão não se resumiaa uma questão de compaixão pelo oprimido, mas visava sobre-tudo a fastar os “p rejuízo s” resultantes deste . regime de_.trabâlho.

Em Cartas do Solitário  estes. pxeiuízo&^ãQ_^mon#tradQS_j par tir da tese da infe rior idade racial dos africanos , já atestada ,cientificamente. Para este autor, a ciência já não deixava dúvi-das de que entre o branco e o negro, ou “entre esses dois extre-mos”, havia de fato um “abismo que separa o homem do

 bru to” (p. 88). Por tanto o regime de trab alho escrav ista pad e-cia de problemas inerentes à própria raça de escravos originá-

rios da África. E isto poderia ser melhor comprovado comparandose o atraso da província da Bahia, onde vivia uma maioíria de negros “grosseiros”, ignorantes e incapazes para o tra-

 balho, com o grande desenvolvim ento do Rio Grande do Sul,com seus núcleos de colonos europeus, efervescentes em maté-ria de trabalho, progresso e civilização. Deste modo o leitoçé levado a pensa r que a origem dos ma]es , do pjaííL.localiza-vase no _p.róprio ne g r o n a suam fe^io ridad e racial. Além demau trabalhador, a sua simples presença havia impedido oaparecimento das indústrias no Brasil durante todos os séculos

de colonização. Até mesmo a monocultura deviase a ele, asculturas extensivas e rotineiras centradas em apenas um pro-duto, deixando grandes áreas virgens incultas. Também podiaseacusálo de responsável pelas comunicações deficientes (pp.

901).

Tavares Bastos acreditava firmemente que caso a históriado Brasil tivesse sido outra, com brancos ao invés de negrosna produção, o país contaria então com uma riqueza triplicada, pois o trab alho dos primeiros era três vezes mais prod utivo do

63

que o dos segundos. Isto em matéria de quantidade; quantoà qualidade, não havia termos de comparação tal a sua grandio-

 passado, qua ndo um posicionamento especificamente imigrantis-ta começa a se formar no Brasil 18

Page 34: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 34/138

à qualidade, não havia termos de comparação tal a sua grandiosidade — “um terço de imigrantes europeus é igual, quanto à

 produção, a um núm ero dado de afr icanos” (p. 89).Além de todas estas vantagens representadas pelo europeu,

ele oferecia ainda outra qualidade: sua tendência para a pe-quena propriedade, cujo “espírito” é “de conservação e liber^dade”. E nisto ficava implícita uma outra falta do negro, umavez que da sua presença só resultara a grande propriedademonocultora, o atraso e a escravidão.

Por todos estes motivos, este imigrantista considerava quecada africano que tinha sido introduzido no país,

“(...) além de_afugentar o emigrante europeu, era, em vez deum obreiro do futuro, um instrumento cego, o embaraço, o ele-mento de regresso das nossas indústrias. O seu papel no teatroda civilização era o mesmo do bárbaro devastador das flo-restas virgens” (pp. 901).

A associação entre os males da escravidão e a inferiori-dade racial do negro é explícita. A observação é importante

 porque de certo modo a his toriografia atual continu a a tra taro tema da transição do trabalho escravo para o trabalho livresem se referir à questão racial subjacente e que em seu tempoteve um lugar ^rivilegiado entre as motivações imigrantistas.Assim, tornouse lugarcomum pensar a escravidão como umregime irracional, por ser trabalho forçado, em contraposição àracionalidade do trabalho livre, racional porque em liberdade.

Mas, para além desta argumentação puramente liberal, é preciso lembrar que os refo rmadores que no século passadose viram às voltas com uma tal questão bebiam também dasfontes recémabertas pelos teóricos das raças humanas e dasaptidões naturais. Portanto, argumentos liberais e raciais convergiam para que a suposta irracionalidade da escravidão fosse

iexplicada tanto em termos do caráter compulsório de setTregíme de trabalho quanto, pela, inferioridad e racial do s'escravo siafricanos. Esta convergência do liberalismo com o racismo^se"explicita principalmente a partir da segunda metade do século

ta começa a se formar no Brasil.18

Tavares Bastos é um exemplo típico desta postura numaépoca em que ela ainda tomava forma. Em seus textos há umaligação explícita e até mesmo orgânica entre branco e trabalholivre e, portanto, liberdade/progresso/civilização, o que por suavez implica pequena propriedade/cultura intensiva e diversifica-

da/desenvolvimento. Já o negro definiase pela falta disso tudo,ou pela negação do que é bom, do que é ideal. O negro erao real a corrigir, pois denotava a próp ria escravidão e, por conseguinte, trabalho compulsório/atraso/barbárie e imorali-dade, o que implicava grande propriedade/monocultura exten-siva e rotineira/estagnação.

Interferir neste real que era o negro e o escravo a fimde se atingir o ideal — o branco e o trabalhador livre —significava não só acabar com a escravidão e instituir ummercado de trabalho livre no país, mas sobretudo posicionarse

contra o negro e em favor do branco, sem apelo a subterfúgioshumanitários. “Para mim, o emigrante europeu devia e devede ser o alvo de nossas ambições, como o africano o objetode nossas antipatias” (p. 91).

 Não bastassem os prejuízos causados pelo negro e pelaescravidão, o Brasil carregava ainda o peso de um pecadooriginal: a colonização portuguesa. Em Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro,  ele se lamentava da falta de “espí

!8. A respeito das teorias raciais então em curso, León Poliakov, O Mito  Ariano,  trad. Luis João Gaio, São Paulo, Perspectiva/USP, 1974. Etambém, Noelle Bisseeret, “A Ideologia das Aptidões Naturais", in  JoséCarlos Garcia Durand, Educação e Hegemonia de Classe  —  As Funções  Ideológ icas da Escola,  Rio de Janeiro, Zahar, 1979, pp. 3167. Sobre asteorias liberais, C. B. Macpherson,  A Democracia Liber al  — Origens e Evolução,  trad. Nathanael C. Caixeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1978. E arespeito do processo de formação de um discurso liberal no Brasil e seusaspectos de controle social, ver Maria Stella Martins Bresciani,  Liberalismo: Ideologia e Controle Social (Um Estudo sobre São Paulo de 1850 a 1910); 2  voís., tese de doutorado, Departamento de História, FFLCH

USP, 1976.

65

rito público” e “atividade empreendedora” no país, o queatribuía em parte ao sistema colonial extinto há quase quarenta

não poderia prescindir do concurso decisivo do Estado. Nestafase a missão do governo seria engajar “excelentes imigrantes

Page 35: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 35/138

atribuía, em parte, ao sistema colonial extinto há quase quarentaanos com a proclamação da independência. Contudo, tambémaqui o mal não parecia residir tãosomente no sistema colonial,mas sobretudo no tipo de população que surgira a partir dele,

 proveniente em prim eiro lugar do elemento luso, também infe-rior etnicamente quando comparado com “o espírito forte e a

vontade indomável dos povos de raça germânica”. Era istoo que, na opinião deste autor, explicava a própria decadênciade Portugal, onde o absolutismo se instaurara com facilidadea partir do século XV. Deste modo, a história da metrópoleesclareceria “a fisionomia da colônia”, que ficou ainda maisagravada com a entrada do “elemento mais triste” da “envene-nada composição” da sociedade brasileira — a escravatura deíndios e africanos (pp 301).

Embora a possibilidade de imigração estrangeira estivessecolocada como uma perspectiva pouco tangível ainda em finsda década de 1860 — prejudicada tanto pelos relatos correntesna Europa sobre as miseráveis condições de vida dos imigran-tes quanto pela própria resistência dos fazendeiros em aceitálos após experiências conflituosas — , Tavares Bastos não desa-nimava de seus intuitos imigrantistas. Muito afeiçoado aosEstados Unidos, ele encontrava naquele país recémsaído deuma guerra civil um celeiro ideal de imigrantes: os fugitivossulistas, senhores escravistas arruinados pela derrota de 1865.Ele esperava que a imigração de homens dotados de recursose de inteligência pudesse evitar um dos problemas enfrentados

 pelas exper iências iniciais com a parceria , obstaculizadas pela

ação de imigrantes suíços que, em sua opinião, não passavamde vagabundos, condenados, enfermos e velhos.

Em “Memória sobre Imigração”,19 anexada ao relatórioanual de 1867 da Sociedade Internacional de Imigração, Ta-vares Bastos desenvolveu as suas propostas relativas à imigra-ção norteamericana para o Brasil que, em sua fase inaugural,

19. Esta Memória encontrase em Os Males do Presente e as Esperançasdo Futuro, op. cit.

66

fase a missão do governo seria engajar excelentes imigrantesagricultores” e operários agrícolas dos Estados Unidos paraoperar em núcleos coloniais oficiais. Enquanto isso os núcleos

 part iculares não sofreriam interferência e continuariam a impor-tar diretamente os seus colonos, que poderiam vir até mesmode regiões nãocivilizadas, como a índia ou a China, com exce-

ção, porém, da África (pp. 69 e 71 e 1056).Mas, para que o governo fosse bemsucedido nesta forma-

ção de uma corrente de imigrantes civilizados, seria preciso baixar medidas proibitivas em relação ao trab alho escravo nascidades. Isto porque “sendo as cidades os grandes centros deindústria onde o recémchegado encontraria facilmente trabalhoe salário, o braço escravo, que aí domina, impede o acessodelas ao imigrante”. Sua proposta era de limitação da proprie-dade de escravos ao número necessário exclusivamente ao ser-viço doméstico; aos que o excedessem, seria cobrada uma taxa

elevada e progressiva. Com isso os escravos de aluguel desa- pareceriam das cidades e os imigrantes as povoariam gradual-mente em substituição àqueles nos ofícios urbanos e mais tardeaté mesmo nos serviços domésticos (p. 66 e 95).

A reivindicação de imigrantes brancos tem claramente oobjetivo de substituir o negro em todos os setores, não sórurais como também urbanos. Longe de pretender qu£_jaÍBMgrante ocupasse lugares yazjos,,xle at end er^enf im, ao problema.d^Tescassez de braços — um dos argumentos centrais com que a_hlstoríÕgrãfia convencionou justificar a imigração para o país — ,Tavares Bastos. acalentava um sonho bem distinto: deslocar osescravos como. um todo e substituílos pelos agentes da cívili^zação, os trabalhadores europeus20

20. Raros foram os momentos em que este imigrantista se dispôs a tratardo destino do negro e sua inserção no mercado de trabalho livre, como por exem plo quando defe ndeu o assalaria men to dos cham ados “africa noslivres” em obras públicas, em lugar de sua escravização ilegal comconivência do Estado. Ver o seu Cartas do Solitário, op. cit.,  p. 74.

67

A imagem de um país vitimado por uma colonização erra-da foi retomada anos depois por um dos mais importantes

grande inteligência. Isto podia ser atribuído ao fato de seucrânio ser modelado pelo caucásico: “mesma dolicocefalia

Page 36: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 36/138

da foi retomada anos depois por um dos mais importantesfundadores da corrente positivista no Brasil, o médico Luis

; / F?rrira Para este fluminense pertencente a uma ricafamília de Resende e que em inícios da década de 1860, comoestudante na Bélgica, entrou em contato com as idéias deAugusto Comte, a escravidão deveria ser condenada não tanto pelo mal infligido aos negros, mas principalmente pelos malessociais resultantes da presença daquela raça inferior entre “nós” — conform e ele fazia questão de frisar.

Em uma série de artigos publicados no jornal  A Província de Sâo Paulo,  entre 20 e 30 de novembro de 1880, sob o título“Os Abolicionistas e a Situação do País”, Pereira Barreto aler-tava os abolicionistas, imprevidentes, exaltados e movidos mais pela compaixão do que pela razão, para o perigo representado por esta “onda negra” que despejava na sociedade “uma hordade homens semibárbaros, sem direção, sem um alvo social”.Após defender o uso da razão e não dos meros sentimentos nas

discussões em torno da emancipação, ele procurou demonstrarcientificamente por que os abolicionistas não poderiam conti-nuar fechando os olhos para o problema representado pelonegro. Simplesmente porque o negro não era igual ao branco. Não pelo motivo de sua cor epidérmica, mas sim devido a umarazão mais profunda e incontornável porque biológica, isto é,a filiação da raça. As origens arianas ou não é que determi-nariam a superioridade ou inferioridade de uma raça, o que

 por sua vez explicaria a posição que lhe fora dest inada nasociedade.

Apesar de assumir tais asserções como verdades incontes-táveis, ele reconhecia que a ciência ainda não tinha determi-nado experimentalmente se o cérebro africano, submetido aomesmo ambiente social em iguais circunstâncias, apresentariaou não “os mesmos resultados intelectuais e morais do cérebroariano”. Para complicar ainda mais a questão, o termo arianonão devia ser confundido com a epiderme branca, pois naÁfrica existia a raça abissínica que, embora de “cor extraordi-nariamente preta”, distinguiase de todas as outras por sua

68

crânio ser modelado pelo caucásico: mesma dolicocefalia,mesmo ângulo facial, mesma massa e estrutura de substânciacerebra l” . Por isso os naturalistas classificavamna entre os povos brancos.

Mas de qualquer modo esta delicada questão não afetavagrandemente o Brasil, uma vez que para aqui teriam vindo

apenas alguns poucos representantes desta “raça superior”africana:

“O que consti tui , porém, o grosso da nossa população

escrava é o contingente das outras populações caracterizadas

todas anatomicamente peta sua menor massa de substânciacerebral; e esta condição anatômica de inferioridade é bem pr óp ria pa ra ab ra nd ar os ra nc or es ab ol ici on ist as co nt ra a

 pa rte da so cie da de , qu e tem po r si a va nta ge m efeti va dasuperioridade intelectual*’.

Para este positivista e imigrantista, a asserção científica —raça como determinante de evolução social — não poderia serentendida apenas no sentido da dominação dos fracos pelosfortes, no melhor estilo da doutrina do darwinismo social. Ainstituição escravista garantira o lugar social do negro na esferados dominados, porém ele não deixava de influir negativamen-te sobre “nós”, sobre os costumes e caráter social dos domi-nantes brancos. O próprio “movimento ascendente da nossa ci-vilização” fora afetado a ponto de acarretar o atraso do país.Quanto ao trabalho, ele se degradara tanto que quase já não

se podia pensar em termos de fundação de um novo tempo, pautado pelo progresso e civilização.

 Numa palavra, a raça infe rior negra, embora escravizada,teria determinado a má evolução ou a nãoevolução dos brasi-leiros brancos, E assim despido da imagem de vítima, que esta-va então sendo construída pelos abolicionistas, o negro passavaa incorporar a de opressor de toda uma sociedade. Finalizando,Pereira Barreto propunha políticas para assegurar condições fa-voráveis à imigração européia, tais como a separação da reli-

69

gião do Estado, a grande naturalização, o casamento civil, asecularização dos cemitérios, a elegibilidade dos nãocatólicos.

do negro, Romero atacava aqueles que, ao fazerem “uma inver-são disparatada das teorias negristas”, queriam “impingirnos

Page 37: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 37/138

secularização dos cemitérios, a elegibilidade dos não católicos.Sem isso e mais um severo controle social sobre os negros, nãose conseguiria garantir as simpatias da Europa e atrair umagrande corrente imigratória e, conseqüentemente, seria “abso-lutamente impossível resolverse a questão do trabalho”.

 Na mesma linha de racismo aber to, científico, de Pereira

Barreto, o crítico literário, promotor, juiz e deputado SylvioRomero não hesitava em afirmar o seu profundo desapreço pela “raça negra” . Se os temas da irrac ional idade da escravidãoe da inferioridade racial do negro aparecem confundidos emmuitos discursos da época, tendentes ora para uma argumen-tação liberal, ora racial, seguramente isto não ocorreu no pen-samento deste sergipano que se notabilizou pelo seu caráter polêmico e pela sua erudição.

Em “ Joaquim Nabuco e a Emancipação dos Escravos”, publicado em Ensaios de Critica Parlamentar   (Rio de Janeiro,

Moreira, Maximiano & C., 1883), Romero defende a continui-dade da escravidão sem apoiarse em nenhum subterfúgio,como, por exemplo, a opinião de teor liberalhumanitário deque o negro deveria ser emancipado apenas lentamente paranão se perder na miséria de uma liberdade súbita e malcom

 preend ida. Ao contrário, ele afirm ava enfa ticamente que “onegro é um ponto de vista vencido na escala etnográfica”, e por isso, por ser ele incapaz, nãocivilizado, sem noção deliberdade, a escravidão deveria continuar até que tivesse su-cumbido no terreno econômico pela concorrência do trabalho

livre personificado pelo imigrante europeu.Sua grande preocupação era de que “o Brasil não é, não

deve ser, o Haiti”. Tendo isto em mente era preciso acabarcom aqueles “projetos absurdos” que pediam ao governo a de-cretação de leis contra a escravidão e, em lugar disso, com-

 preender que a libertação devia ser “o resul tado de uma tran s-formação orgânica da sociedade” (pp. 16373).

Apoiandose em naturalistas, como o inglês Thomas Huxley, que então atestavam cientificamente a inferioridade racial

p g , q p ga superioridade do negro sobre o branco” (pp. 1646). Era a part ir desta linha de um “darw inista social” — conforme elese autodenominava — que ele concebia o Brasil como produ-to de três raças, o branco europeu, o negro africano e o índio,a primeira delas, porém, com papel predominante reservadono futuro, tal como exposto em seu livro  A Litteratura Brazi- leira e a Critica Moderna  (s.e., 1880):

"A minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida,entre nós, pertencerá, no porvir ao branco; mas que este, paraessa mesma vitória, atentas as agruras do clima, tem necessicfade de aproveitarse do que útil as outras duas raças lhe podem fornecer, máxime a preta, com que tem mais cruzado.Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio deque necessita, o tipo branco irá tomando a preponderânciaaté mostrarse puro e belo como no velho mundo. Será quan-do já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatoscontribuirão largamente para tal resultado: — de um lado aextinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dosíndios, e de outro a emigração européia!” (p. 53).21

 Neste ponto encontramos a esboçarse a tese do branqu eamento, apontando para o momento em que o elemento ra-cialmente superior conseguiria se firmar em termos de sua predominância na população naciona l. Há aqui, porém, umaspecto a ressaltar: não era só o negro que necessitava cruzarcom o branco para conseguir se elevar mentalmente e, por

21. Este volume reúne trabalhos publicados na imprensa no período de1869 a 1876. Para este autor, naquele momento o tipo do “genuíno bra-sileiro" estava ainda “na vasta classe dos mestiços, pardos, mulatos,cabras, mamelucos, que abundam no país com sua enorme variedade decores". Entretanto ele acreditava, ou talvez fosse melhor dizer, ele ansiavaque esta "fusão ” ainda não estivesse completa, faltando ao país “umespírito, um caráter original". E concluía: “Este virá com o tempo , oque como vimos ficava na dependência da vinda de um grande contin-gente de europeus, ibid.,  pp. 512.

71

tanto, socialmente; por uma questão de sobrevivência física,também o branco, transposto para um clima que lhe era inade-quado precisava miscigenarse com as duas raças inferiores já

sociedade brasileira.23 Em  Algumas Palavras sobre a Emigração __   Meios Práticos de Colonisar Colonias do Barão de Porto-

Page 38: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 38/138

quado, precisava miscigenarse com as duas raças inferiores, já plenamente adaptadas ao hab ita t trop ical. Inic iado este salutar processo de miscigenação, a lei da seleção natural determ ina ria , por seu turno, a vitó ria final da raça branca sobre a negra e aindígena, e ainda se obteria um espécime de homem arianosuperior, plenamente ambientado aa4^niiiiente americano.

Contudo, para que esta evolução pudesse assim ocorrer,era preciso intervir na história... ou na natureza — noçõesmuito próximas neste quadro de pensamento — e injetar mais

 brancos no espaço até então ocupado predom inantemente pornegros e índios. Era por isso precisamente que se fazia presen-te a necessidade da imigração européia, com todo o seu poderde purificação étnica.22

 Nestes mesmos anos um out ro autor ocupouse da tese do branqu eam ento, teorizandoa com mui to cuidado a fim de res- ponde r à questão que o preo cupava no momento: como_ênfrêntar o fato da miscigenação quando, ao invés de mulatos branqueados, a população clrèscesse em sentido contrário, ou seja,engrossando uma maioria de nãobrancos?

Para o cearense Domingos José Nogueira Taguqribe. mé-dico, político e proprietário radicado em São Paulo, havia uma

 perigosa desp roporção racia l entre brancos e nãobrancos na

22. Alguns poucos anos depois, preocupado com o fato dos imigranteseuropeus terem se encaminhado em sua maioria para o sul do país,

Romero propõe o sistema de “colonização integral e progressiva", obje-tivando com isso uma “distribuição equitativa dos estrangeiros pelo terri-tório nacional". Deste modo ele procurava evitar o desaparecimento da"raça portuguesa” que ao norte, no “velho Brasil”, corria o risco demorrer de “marasmo", “sob o afluxo superabundante do sangue das raçasinferiores”; já no sul, estava prestes a submergir devido à “onda estran-geira". Cf. S. Romero, “A Immigração e o Futuro do Povo Brasileiro",in Ensaios de Sociologia e Litteratura,  Rio de Janeiro, Gamier, 1901.Thomas E. Skidmore abordou a questão do branqueamento em seu livroPreto no Branco  —  Raça e Nac iona lidad e no Pens amento Brasileiro,  trad.Raul de Sá Barbosa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.

72

Feliz e Estatista do Brasil  (São Paulo, “Diário”, 1877), Jaguaribe chama a atenção para o fato de que numa população decerca de 10 milhões de pessoas, apenas 3 milhões e 800 milaproximadamente pertenciam à “raça branca”, enquanto os res-tantes 6 milhões e tantos distribuíamse entre negros, índios esobretudo mestiços.

Em suma, o que a estatística estava ,a„ demon strar comtodas as letras e ra nada mais que uma, as£usíadora ,“ dfeçadêricia da raça branca” e o avanço dos, mestiços, ao contrário dasteses que previam o desaparecimento destes. Diante destesfatos era preciso pensar urgentemente num modo de obter oaperfeiçoamento das raças no Brasil, “em ordem a melhorar enão a retrogradar, pois o africano deve cruzar com o mulato,e este com o branco” (pp, 412).

Mas, se o último elo desta cadeia etnográfica ascendenterumo ao progresso estava desaparecendo no Brasil, com quementão os mestiços deveriam cruzar de modo a não degenerar?Decerto a “decadência da raça branca” e, por conseguinte, dacultura e civilização brasileiras só poderiam ser sustadas desdeque a população nacional recebesse novas infu§ões..4Ía. sangue,europeu, donde a necessidade da imigração alemã (p. 10 e1920).

Em outro livro —  Ref lexões Sobre a Colonisação no  Brasil  (São Paulo/Paris, Garraux, 1878), tese aprovada “comdistinção” pela Academia de Medicina do Rio de Janeiro e

 publ icada em 1878, Jaguaribe alertava para o fato de que não

se deveria almejar tãosomente o progresso material, mas tam- bém o moral e inte lectual, o que tomava sumamente necessárioexaminar “qual o povo que melhor nos convém. . E certa-mente não seriam os africanos e muito menos os chineses a

23. Jaguaribe foi também abolicionista, tendo colaborado com o jornal pau lista  A  Redempção  (18871888), além de ser autor de um volumosoromance de propaganda antiescravista. Os Herdeiros de Caramuru,  publi-cado em 1880.

73

nos convir, pois ambas eram raças inferiores, “decrépitas noespírito, disformes no corpo e condenadas a desaparecer”

. o cruzamento do Africano muito comum com os portu-gueses no Brasil produz o chamado cabra ou mulato, que em

Page 39: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 39/138

(p. 277).

Embora defendesse a tese da unidade das raças humanasem suas origens, com base em textos sagrados da teologiacatólica, ele a relativizava no momento seguinte, fundamentan-dose em asserções científicas relativas à evolução racial. Deacordo com a ciência, lembrava ele, as raças evoluíam sofrendoalterações de duas ordens: pelo meio que modifica o tipoétnico ou pela hereditariedade, que perpetua uma dada trans-formação do tipo. O homem, porém, devido à inteligência queo distingue dos outros animais, imprime modificações ao meio.Contudo, em determinadas circunstâncias ele não consegue seabster da “influência maléfica do ambiente”, sofrendo entãoefeitos que modificam seu organismo, assim como dos outrosseres vivos (pp. 2036). Este parecia ter sido o caso das cha-

madas raças inferiores, entre elas a chinesa, a julgar por seurepúdio radical à presença dela em território brasileiro.

Atacando aqueles que então propunham a imigração asiá-tica, ele se detinha na análise do chinês, ressaltando o queconsiderava como suas características étnicas: propensão parao crime, vícios e suicídio, indolência para os trabalhos rudes,isolamento étnico e incapacidade de aculturação em outro meioque não o seu. Esta última característica era o que pareciadistinguir particularmente chineses de africanos, pois em seu

 julgamento destes últimos o autor não é tão severo. Isto por-

que, apesar da sua apatia, miséria e incapacidade de se civili-zar, os africanos misturavamse facilmente com “os brasileiros”e deste modo “vão perdendo a cor à proporção que se afastamda primitiva origem, tornandose mulatos” (pp. 27894).

Valendose das afirmações do eminente antropólogo fran-cês Armand de Quatrefages, que atestava a impossibilidade de amestiçagem entre brancos e negros gerar uma nova raça, Jaguaribe apostava na viabilidade do branqueamento da popula-ção, desde que se tivesse em mente o seguinte ensinamento:

74

g p qcinco gerações cruzandose por sua vez com o branco se trans-forma neste” (p. 206).24

Desde portanto que os descendentes dos africanos fossemcruzando sucessiva e sistematicamente com brancos, o autor

garantia que como resultado o país teria “homens fortes, inte-ligentes e altivos” (p. 294). Além disso, um restinho de “san-gue negro”, mais precisamente “ 1 oitavo” dele, até teria as suasvantagens, pois, conforme assegurava, “a febre amarela e asafecções paludosas respeitam a raça mestiça”.25

Assim, para este autor, a imigração européia era .insubs-

tituível como agente exclusivo de purifiçação étnica. De nadavaleria sjmplesmente. disciplinar o homem livre nacional, incor

 porandoo ao mercado de trabalho juntamente com os escravos

que se fossem .libertando. Era preciso isso e muito mais, poissem a vinda passiva de europeus, persistiria a grande despro-

 porção de nãobrancos em relação aos brancos. Os mestiços, por seu turno , na falta dos parce iros ideais que embranque-ceriam e por conseguinte elevariam mentalmente seus descen-dentes, teriam de cruzarse com negros, rebaixandose outravez à sua ínfima origem racial. Em conclusão, mesmo que o

 país alcançasse algum progresso material, sem brancos e em- branquecidos, ele se ressentiria da falta de avanços morais e

intelectuais.

24. Armand de Quatrefages, decano da escola francesa de antropologia

■física, era contrário à escravidão e defensor da abolição. Contudo escla-recia que esta sua posição política deviase não a uma simpatia par acom a raça ne gra” , mas sim em razão da imoral idade de que ela neces-sariamente introduz entre os brancos". Quatrefages julgava o negro umamonstruosidade intelectual” e definiao como um branco cujo corpoadquire a forma definida da espécie, mas cuja inteligência se detém intei-

ramente no caminho’’; cf. Poliakov, op. cit.,  p. 204.

25. D. Jaguaribe,  Algumas Palavras ... . op. cit.,  p. 42.

75

O  paraíso racial brasileiro

Ao mesmo tempo q e defendiam a s bstit ição dos negros

terminou com uma guerra, no Brasil reinava a mais plena har-monia racial e, por isso, asseguravase, os conflitos de classe

Page 40: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 40/138

Ao mesmo tempo que defendiam, a substituição dos negros por brancos nos diversos setores da produção, os imigrantis tasnunca deixavam de se posicionar firmemente pela emancipaçãogradual, o que significava dizer, sob o controle estrito do Esta-do. Contudo, como a sua ênfase prendiase muito mais às

'questões imigratórias do que às emancipatórias, bojuYe__refor.> •' madfííes que tenderam a minimizar ou mesmo a deixar de lado

o tema incômodo do perigo representado pdos.negros em.liherdade. Já que os imigrantes vindos aos milhares (ao menos,eram estas as expectativas) poderiam estabelecer um equilíbrio populacional em favor dos brancos, por que não começar aencarar desde já o problema das relações raciais sob um prismamais otimista?

As imagens decorrentes desta postura otimista em relaçãoao futuro de um país em que predominariam descendentes deeuropeus deixam a impressão de uma espécie de paraíso racial

 brasileiro, onde a miscigenação embranq uecedora ocor ria e con-tinuaria a ocorrer livre e fartamente, sem quaisquer restrições(legais ou de costumes) e em todas as camadas sociais.

Além de assegurar a possibilidade desde já do embranquecimento da população brasileira, a imagem da ausência de preconceitos raciais permit ia também a defesa da continu idad eda escravidão ainda por algum tempo, até que correntes massivas de imigrantes começassem a se dirigir ao Brasil. Sim, por-que, conforme tornouse comum argumentar, não importava queeste país fosse um dos últimos baluartes da escravidão. Afinal,

aqui as relações raciais eram isentas de preconceitos, essen. , cialmente d istintas daquelas vigentes nos Estados Un idos — 

. v., afirmavam enfaticamente alguns reformadores, orgulhosos da\ suposta benignidade dos senhores brasileiros para com os seus

escravos.

E por último, muito provavelmente, a imagem da ausên-cia de preconceitos assumia a condição de um recado tranqüi-lizador aos europeus que estivessem à procura de um país paraemigrar. Ao contrário dos Estados Unidos, onde a escravidão

76

entre senhores e escravos poderiam se resolver em paz, dentrodos quadros legais e sem sobressaltos para a população tra- balhadora.

Q médico francês Loyis Cüuty lançou alicerces profundos X para ampara r estas imagens paradisíacas a pa rti r de suas des-crições do Brasil como uma sociedade multirracial em que asheterogenias étnicas que porventura subsistissem, a despeito dagrande miscigenação populacional, não causariam conflitos dequalquer espécie. Radicado no país como professor da EscolaPoiitécnica e do Museu do Rio de Janeiro desde 1878, estu-dioso de uma nova disciplina — a Biologia Indu strial — ,Couty debruçouse sobre a realidade brasileira como um cien-tista em seu laboratório, apontando seus males e sugerindo osmeios para curála.26

Seu diagnóstico: o Brasil, yivia um momento de crise devido .à. irracionalidade da escravidão; seu desenvolvimento só

será retomado rumo ao progresso e à possibilidade de uma ver-dadeira riqueza quando se tiver formado um povo inteligente,ativo e produtivo, oriundo das populações avançadas da Europa;do contrário o país permanecerá velho, colonial, estagnado,

26. A imagem do paraíso racial brasileiro aparece em vários escritosabolicionistas, embora, conforme veremos adiante, isto seja colocado maiscomo uma possibilidade futura, uma vez alcançada a abolição. O emi-nente jurista Agostinho Marques Perdigão Malheiro, autor de um livroque constitui fonte básica da historiografia da escravidão, também repre-senta a sociedade brasileira de então como um organismo multirracial,

em que o fato de alguém ser “de cor”, ser filho mesmo de africano, nãosignificava a sua exclusão social: “longe disto, o homem de cor goza noImpério de tanta consideração como qualquer outro que a possa terigual. .. " Se persistiam ainda restrições legais ao liberto, ele as atribuíamuito mais à “ignorância", “maus costumes’ e “degradação”, herançasde seu miserável passado como escravo. Mas reconhecia que, “se nãofora a cor escura,  os nossos costumes não tolerariam mais a escravidão .E, como prova disso, lembrava que os escravos de “cor clara" eram

 prefe rente men te alforri ados . Cf. A. M. P. Malh eiro,  A Escra vidão no Brasil — Ensaio Histórico-Jurídico-Social,  Rio de Janeiro, Nacional, 1867, pp.

1167, nota 388; e p. 124 e 207.

77

uma vez que sua população é atrasada, amorfa, sem valoralgum em termos produtivos, descendente em sua maior parted f i d d id d l i l

liberdade, apesar das facilidades de emancipação. Segundo esteautor, além da boa vontade dos senhores em libertálos, oscativos tinham o direito em quase todos os lugares de cultivar

Page 41: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 41/138

de africanos de reduzido desenvolvimento mental.Três foram os interlocutores de Couty em seus numerosos

artigos e livros, editados todos nos primeiros anos da décadade 1880: os senhores de escravos, a quem cabia convencer dairracionalidade da escravidão e da necessidade de uma redis

tribuição agrária; o governo, o qual deveria incentivar a imi-gração européia; e os abolicionistas, contra os quais argumentava em favor de uma emancipação nãoimediata, apenas gra-dual, dandose tempo para solucionar a grande questão de comosubstituir o escravo.

Para apaziguar os receios dos primeiros, dar tempo aosegundo e acalmar os ânimos dos terceiros, Couty ocupou um bom espaço de seus escritos com as imagens áureas de um país escrav ista essenc ialmente dist into de todos aqueles quetambém haviam passado pela escravidão. Em UEsclavage au 

 Brésil   (Paris, Guillaumin et Cie, 1881), ele expressou grande

entusiasmo por este paraíso:

“No Brasil, o liberto entra em pé de igualdade em umasociedade onde ele é tratado imediatamente como igual (...).

 No Brasil, não somente o preconceito de raça não existe e asuniões freqüentes entre cores diferentes formaram uma popu-lação mestiça numerosa e importante; sobretudo estes negrosforros, estes mestiços, misturaramse inteiramente à população branca (. .. ). Não é apenas à mesa, no teatro, nos salões, emtodos os lugares públicos; é também no exército, na adminis-tração, nas escolas, nas assembléias legislativas, que encon-

tramse todas as cores misturadas em pé de igualdade e defamiliaridade a mais completa (...). O escravo propriamentenão é em lugar algum considerado uma besta, como um serinferior que se utiliza: é o trabalhador preso ao solo em con-dições sempre mais doces que aquelas de muitos de nossosassalariados da Europa” (pp. 810).

Bem tratados, bem alimentados, curados nas doenças, con-servados na velhice e assegurados contra o desemprego, osescravos deste paraíso não faziam esforço algum para ganhar 

78

q gum pedaço de terreno, uma vez por semana, comercializandolivremente seus produtos, o que lhes dava a chance de com- pra r a alfo rria com os próp rios recursos. Mas os negros, muitosatisfeitos com o cativeiro e preguiçosos demais, deixavam osterrenos incultos; e, com esta afirmação, Couty descartava

radicalmente as acusações abolicionistas de uma jornada exces-siva de trabalho imposta aos escravos. Não, o negro trabalhava

 pouco, pois raros eram os castigos corporais contra ele. Osescravos domésticos teriam ainda mais facilidades em obtersua emancipação, se soubessem poupar o dinheiro surrupiadode seus donos ou ganho de gorjetas. Mas, ao contrário, eles oempregavam em boas roupas, embebedandose, comendo bemetc. (pp. 810 e 701).

Em suma, não era a liberdade o que importava ao negrono Brasil, mesmo porque suas origens africanas descartavam

qualquer idéia de liberdade individual; importavalhe somenteo direito de nada fazer, uma vez que ele é “quase sempre umgrande preguiçoso” (p. 72). É com este tipo de argumentaçãotendenciosa e nada sutil que Couty introduz o segundo temaconstante em toda a sua obra e que cada vez mais aparecerianos discursos imigrantistas de vários autores: a vagabundagem do negro,  sua recusa em trabalhar, sua tendência ao alcoolismoe à marginalidade. Este tema associase por sua vez ao temada inferioridade racial do negro, seu reduzido desenvolvimentomental, sua incapacidade, enfim, para o trabalho.

Segundo Couty, estudos relativos aos negros em seu con-tinente de origem já revelavam muito de sua tendência inataà ociosidade. Na África eles não cultivam terras muito férteis,não têm idéfa de família ou propriedade, roubam e matam paraganhar a vida. Além disso, as pesquisas científicas sobre aconformação do cérebro africano atestavam suficientemente asua incapacidade mental (pp. 6869).

Estas características orgânicas das raças negras continua-riam a se manifestar no escravo, igualmente preguiçoso, sem

79

apego familiar, incapaz de sentimentos profundos ou resoluçõesduráveis. São como crianças no agir e no pensar.

“C i l tê tid i f i

Embora advertisse que a questão da escravidão no Brasilcompreendiase pelo estudo dos hábitos e características sociaise não pelo das raças e características étnicas, já que não existi-i i i l i é id l f i d

Page 42: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 42/138

“Como as crianças, eles têm os sentidos inferiores e so- bretudo ò paladar e a audição relativamente desenvolvidos.O negro gosta do tabaco (...); ele adora as coisas açucaradas,a rapadura; mas o que ele gosta acima de tudo é da cacha-ça (...). Para conseguir cachaça, ele rouba, ele rouba (...)e sacrificando tudo a esta paixão, inclusive a própria liber-

dade, ele trabalhará até no domingo (...)" (pp 77*9).

Intenso e indiscreto em seu gosto quanto às coisas do paladar, do tra jar , da música, o negro revelase indiferente emsuas relações sociais, não se importando com os filhos e utili-zandose da mulher como se fosse uma serva ou objeto. Nãoraro esta indiferença transformase em violência: ao encontraroutra mulher que lhe agrade mais, o negro mata a atual comervas venenosas. Nessas condições, Couty acreditava que nãohavia nenhuma jovem negra que não se sentisse feliz em ser

escolhida pelo seu senhor para parceira sexual (pp. 745).O tema da inferioridade racial completase assim com aidéia de que o negro não se relacionava socialmente, não tinhafamília, era um desagregado por natureza, cujos sentimentososcilavam da indiferença e apatia à mais cruel violência. Preen-chia deste modo a figura do criminoso em potencial.

Quanto ao mulato, o autor atribuíalhe uma conformaçãocerebral e capacidade intelectual superiores. Era freqüente queele continuasse apático e preguiçoso, mas muitas vezes elesabia trabalhar e lutar a ponto de conquistar importantes postosna sociedade como grandes proprietários, engenheiros, médicos,oradores, políticos. Contudo, Couty considerava que a capaci-dade do mulato tinha limites, uma vez que tanto os negroscomo os mestiços eram aptos apenas a preencher certas fun-ções distribuidoras ou de relação, conforme atestava o filósofoe sociólogo evolucionista inglês Herb ert Spencer; “ .. .mas eles

 permanecem inábeis para as funções mais importantes , paraas funções de produção que exigem um trabalho seguido eregular” (pp. 8890).

80

ria preconceito racial aqui, é evidente pelo que foi apontadoacima que a irracionalidade do sistema trazia implícita a inca- pacidade do negro em termos raciais. Em seus numerosos art i-gos de imprensa, reunidos em  Le Brésil en 1884  (Rio de Ja-neiro, Faro & Lino, 1884), ele esclareceu repetidamente este

seu ponto de vista. O trabalho escravo podia representar gran-des ganhos, mas não adquiria um valor realizável, não consti-tuía a verdadeira riqueza, porque seu esforço era compulsórioe nãoespontâneo e consciente da necessidade da apropriaçãodo solo para seus próprios fins (pp. 1324). Mas, ao extinguirseo escravo, permanecia o negro' ou o mestiço com todos os seusdefeitos étnicos. Por isso a emancipação por si só não poderiamudar em nada os defeitos mentais e sociais dos trabalhadores

nacionais (p. V).

Estudioso da disciplina Biologia Industrial, ele defendia a

separação completa entre os fatos materiais biológicos e os fatosmateriais psicológicos e sociais para se compreender a atuaçãodo homem no seu meio ambiente (pp. IIIIV). Portanto, na_questão da escravidão destacamse em sua obra dois aspectos  /jdo problema, já apontados de certo modo por Tavares Bastos:a irracionalidade do sistema em si — um fato material social e  I /   . wW • psicológico — e a infe rioridade mental do negro — um fatomaterial biológico. Contra o primeiro a batalha seria travada ^ . ■. a r -mais facilmente, uma vez que não existiria preconceito racial f 'no país. Mas contra o segundo não haveria solução rápida, pois,devido à incapacidade do negro ou mestiço para o trabalho, a

emancipação não poderia ocorrer imediatamente. Assim, o pro ; bíema da extinção da escravidão repousava muito mais sobre o  j

aspecto étnico, sobre o fato material biológico da inferioridade  j

do negro, do que sobre o aspecto social da irracionalidade do/'

sistema escravista.

Fiel a uma visão evolucionista da história, Couty antevia aetapa da revolução burguesa também no Brasil, mas defendiauma política de preparo neste sentido. Era preciso revolucionar 

81

de acordo com os modelos civilizados europeus, e para issonecessitavase de elementos sociais avançados, indispensáveis para a luta do país com os países concorrentes. Mas, para que

O imigrante e a pequena propriedade

As idéias de Louis Couty relativas ao imigrante europeu e

Page 43: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 43/138

o país transpusesse efetivamente os umbrais do “velho Brasil”*

 para o “ novo Brasi l”, esta injeção de civilizados deveria sermuito forte: como ponto de partida a imigração teria de contarcom uma base de 2 milhões de cidadãos europeus ativos eúteis, tanto no campo quanto na cidade (pp. 267 e 3301).

Como medidas de incentivo à imigração européia, Couty pro pun ha a concessão de direitos aos estrangeiro s, iguais aosdos nacionais, pois a seu ver era preciso deixálos lutar nomercado de trabalho em igualdade de condições:

“(...) se os lavradores do Brasil valem mais, tanto melhor para eles, eles vencerão ( .. .) ; mas se socialmente eles valemmenos, se eles são menos úteis, se eles não servem comotrabalhadores regulares, por que lhes dar mais direitos?”(p. 330).

A pergunta já continha uma resposta: os imigrantes valemmais e por isso a imigração deveria ser planejada a fim de possibi litar sua fixação definitiva no país. E como fixálos?Tratavase sobretudo de atrair os imigrantes, acenandolhes coma possibilidade de se tornarem pequenos proprietários ao finalde alguns anos de trabalho árduo nas grandes fazendas. Sua prop osta de divisão das grandes fazend as insolventes em pe-quenos lotes, simultaneamente ao estabelecimento de grandesengenhos compradores do café produzido pelos pequenos pro- prie tário s, visava preservar acima de tudo os interesses dos

grandes fazendeiros e de seu capital. Estes interesses, porém,encontrariam ruína certa caso não se estabelecesse uma correnteespontânea de imigrantes europeus, portadores da civilização edo progresso, os únicos capazes de construir um novo Brasil(p. 193).27

27. Todos os textos citados de Couty foram traduzidos por mim. Emrelação ainda a este autor, é importante observar o grande emprego desuas afirmações, com teor de verdade, para fundamentar teses da histo

82

os supostos anseios deste em tornarse pequeno proprietário noBrasil parecem ter alcançado uma considerável repercussão entreos imigrantistas brasileiros, sobretudo aqueles que freqüentavama corte mais assiduamente. Seria difícil determinar quem in-fluenciou quem, mas o fato é que, um ano antes da morte do

 jovem médico francês no Rio de Janeiro , fundouse em 17 denovembro de 1883, naquela mesma cidade, a Sociedade Central de Immigração  (SCI), cujo intuito era justamente promover aimigração européia nos moldes preconizados por ele em seusnumerosos escritos e conferências.28

Sensíveis às denúncias de Couty relativas ao nativismo eseu preconceito com relação ao trabalhador estrangeiro, o jornalda SCI,  A Immigração,  não poupou críticas aos males do“brasileirismo”, bem como da decorrente “influência deletériada indolência”, que estariam obstaculizando o desenvolvimento

do “novo Brasil” (ano I, boletins n.os 14, dezembro de 1883agosto de 1884, p. 3).E o que era o “novo Brasil” para estes homens de elite

que se congregaram anos a fio em torno da SCI e de seu jornal, publ icado de 1883 a 1891?29 Nada mais do que a imigração

riografía da "transição'', não obstante suas premissas profundamenteracistas.28. Um dos mais importantes fundadores da Sociedade Centrai de Immi- gração,  Alfredo d’Escragnolle Taunay, não poupou elogios a Louis Couty,em uma introdução biográfica à sua obra póstuma Pequena Propriedade 

e Immigração Européia,  Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1887. Ex- press ou tamb ém sua gratid ão par a com aque le “ilustr e pens ador " que“meditou sem arrastamentos nem paixão, mas com a calma e firmeza dosábio e do economista”. Segundo Taunay, Couty foi recebido "com certa prev enção no Rio de Jan eiro" , em fins da década de 1870. Con tudo , sua"facilidade de palavra e a firmeza de conhecimentos”, expostas em con-ferências públicas, bem como sua atividade científica incansável, logoatraíram a atenção dos “mais abalizados e ilustres médicos do país ,

 pp. IV e XI XII .29. Seria difícil avaliar a penetração de suas idéias nos meios políticos,e talvez sua importância deva mesmo ser relativizada, visto que sua prin

83

européia e a promoção das reformas necessárias para atrairuma massiva corrente de imigrantes, entre elas a desapropriaçãode terras férteis e próximas às ferrovias a serem divididas em

cabia, instável e sempre à mercê do arbítrio do grande pro- prie tário. Mas, ao invés de em sua conclu são aproximarse da-queles que propunham primordialmente o aproveitamento do

Page 44: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 44/138

lotes e vendidas a eles em condições de pagamento facilitadas.Além disso apelavase aos grandes proprietários para que divi-dissem suas fazendas em pequenos pedaços de terreno e osvendessem aos imigrantes (“Artigos de Propaganda”, ano I, boi. n„os 14, dezem bro de 1883agosto de 1884, p. 5).

Defendendose das acusações de um senador contra a “po-lítica que desloca o brasileiro”, o senador e visconde Alfredod’Escragno!Ie Taunay, grande admirador das idéias de LouisCouty e ele mesmo descendente de franceses, respondia caute-losamente, justificando o que representava como a “vagabun-dagem” do brasileiro:

“O trabalhador nosso é vagabundo por não encontrarregalia alguma; são homens oprimidos pela idéia de que sãosempre intrusos e com justiça podem ser desalojados da terraque têm regado com seu suor. Daí a preguiça, o pouco amorao local onde permanecem, mas que não lhes incute o senti-mento da estabilidade” (ano III, boi. n.° 24, setembro de 1886, p. 4).

Após este reconhecimento de que o nacional poderia atémesmo trabalhar com afinco e, ao final, ao invés de recom- pensas, acabar expulso da terra, não seria difíci l a este imigrantista concluir que a vagabundagem não era algo orgânico a ele,mas muito mais uma atitude adequada ao tipo de vida que lhe

cipal proposta — transformação do imigrante europeu em pequeno pro- prie tári o — não foi con cret izad a com a plen itud e dese jada. Porém , ofato é que em torno deste jornal estiveram congregadas algumas dasfiguras mais eminentes da elite ilustrada fluminense, como o visconde deTaunay, o marechaldecampo Henrique BeaurepaireRohan, o abolicio-nista André Rebouças, além de numerosos profissionais liberais e nego-ciantes europeus radicados no Rio de Janeiro. O relato desta sociedade ede seus membros está em M. Hall, The Origins of Mass Immigration in  Brazil, 1871-1914,  Ph. D., Universidade de Columbia, 1969, pp. 407.

84

nacional livre e exescravos no mercado de trabalho, Taunayterminava concitando a todos a apoiar a imigração européia.

É que para este fluminense, romancista de renome, militarconhecido por sua atuação na guerra do Paraguai, além de enge-nheiro e matemático, recentemente ingresso na política, o euro-

 peu destacavase como o único tipo de trabalhad or que sabiaconjugar harmoniosamente trabalho e liberdade. Por isso so-mente ele poderia desempenhar o papel de agente moralizadorentre nacionais vagabundos e incapazes para atividades sériase disciplinadas que exigissem esforço constante e permanente.

Além de nobilitar o trabalho, ensinando aos brasileiros o“quanto é vantajoso fazer pela vida e ganhar a sua independên-cia moral e material pelo esforço próprio”, o europeu tambémestaria lançando as bases para a organização da família no país.Isto porque, conforme Taunay deixava transparecer, só existia

um único tipo de família, isto é, aquela que se fundava sobreo trabalho de pequenos produtores livres e independentes, tãodevotados à acumulação material de bens quanto os fanáticosde uma seita a preces e exercícios religiosos (ano I, boi. n.0814, dezembro de 1883agosto de 1884, p. 3).

Mais uma vez, a valorização do europeu como o tipo detrabalhador e cidadão ideal repousava sobre a idéia da inferio-ridade racial de grande parte da população brasileira. Um re-dator do jornal, possivelmente o próprio Taunay, não deixavamargem a dúvidas quanto à superioridade racial do europeu,reconhecendo que o aproveitamento dos nacionais no mercadode trabalho livre atenderia a necessidades complementares, po-rém bem menos importantes do que aquelas destinadas ao

imigrante.

“Cumpre não confundir o problema da imigração com oda substituição dos braços necessários à grande lavoura., Estaquer salariados e chega a preferir até os de raça inferior. Oescopo da imigração, porém, é de ordem muitíssimo maiselevada, busca organizar os elementos que devem fgrfflflr,8

85

grande., nacionalidade brasileira, senhora da m aior e melhor pa rte do co nt in en te Su lA me rican o. Ex ige , po r isso me sm o, a

maior seleção nestes elementos.

 pa ra ser in tro du zi da , mesm o po r me io do ca tiv eir o no co nv í-

vio da civilização” (“A Organização das Indústrias”, ano III, bo i. n.° 25, ou tu br o de 1886 , p. 6, e “ Pe rig os da Co lo niz aç ãoA iáti ” IV b i ° 30 d 1887 4)

Page 45: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 45/138

Ora, para que o imigrante ativo, laborioso, inteligente, pr og res siv o, ve nh a pa ra o Bra sil, é pr ec iso qu e es te pa ís of e-

reça condições de bemestar para si e para sua família, im-

 pos sív eis de en co nt ra r na E ur op a” (“Ar tig os de Pr op ag an da ” ,ibid.).

Assim estabeleciase uma distinção básica entre os interes-ses da grande propriedade agrícola e os interesses genéricos do país. Para os primeiros havia a possibilidade de transforma r osescravos em assalariados, já os segundos, que diziam respeitosobretudo à carência de uma nacionalidade, só poderiam sersatisfeitos com o concurso de membros de raças superiores.

Este foi de fato o grande tema subjacente às proposiçõesdos imigrantistas da SCI. Tratavase não só de trazer imigrantesde raça superior como também de possibilitar a sua fixação no país como pequenos proprie tário s. E à medida que se estabe le-

cesse esta rede de pequenos agricultores europeus, os nacionaisseriam gradualmente envolvidos, moralizariam seus costumes eadquiririam hábitos de trabalho.

Entretanto, os imigrantistas da SCI não deixavam muitoclaras as suas concepções com respeito às relações raciais entreeuropeus e nacionais. O articulista que mais longamente se de-teve sobre estas questões, Ç. E. Amoroso Uma, não estabelecialigação alguma entre a formação da nacionalidade e^aunecessi.dade de miscigenação FKõmogenia racial. Crítico feroz da imi-gração asiática, a qual só “viria causar sérios desvios no nosso

sistema social, já por demais africanizado”, e entusiasta incon-dicional das características étnicas da “raça ariana”, AmorosoLima parecia imaginar a sociedade futura como constituída deraças justapostas, arianos de um lado e nãoarianos de outro,os primeiros no papel de eternos dirigentes dos segundos.

“Com a liberdade deve o preto ir recebendo a educaçãoe a elevação moral de que tanto carece. Só o europeu, porém,

 poderá servir de guia à raça mestiça, tendo sido a africanatrazida às plagas americanas por uma tendência irresistível,

86

Asiática”, ano IV, boi. n.° 30, março de 1887, p. 4).

Deste modo, os negros, que por uma questão de fatalidadehistórica haviam chegado à América para serem civilizados pelos brancos, estariam à espera agora de um novo influ xo

ariano, pois, mesmo já tendo passado por um processo de mis-cigenação, necessitavam ainda da direção inteligente da raçasuperior. Esta posição era de fato a que melhor exprimia oconjunto das concepções encontradas nos diversos artigos do

 jorna l. O negro precisava de liberdade para se educar e também para que o país como um todo pudesse se elevar mora lmente.Porém, só a emancipação do negro não bastava. Era neste pontoque surgia a necessidade de um órgão de propaganda da imi-gração européia, voltado exclusivamente para a sua promoção.

Trabalhando permanentemente ..co m est es três temas •—

liberdade, trabalh o e nacionalidade — , os imigrantistas reunidosem torno da SCI deixavam claro que o trabalho digno ou amentalidade positiva do trabalho só poderia se consubstanciarem liberdade. Porém, liberdade e trabalho submetiamse ao tema ^maior da nacionalidade, e a ênfase constante era no sentido deique o governo não descuidasse da formação de um povo inte: jligente e ativo, com base na imigração maciça de europeus e ■na concessão de direitos que lhes permitissem reconhecer o^} Brasil como a sua  pátria.

Sem isso — conforme alertavam repetidam ente — , a liber-dade assumiria a sua face libertina e, ao invés do trabalho

ordeiro e fonte da prosperidade nacional, o país ficaria imersoem caos, fruto das ações desordenadas daqueles que formavama maioria da população — os negros e mestiços, incapazes dese dirigirem sem a mão firme do branco.30

*

30. Houve também vários imigrantistas que escreveram livros em defesada imigração chinesa; todos eles, porém, ressalvam que esta imigraçãoseria apenas transitória e cederia lugar no futuro à imigração européia.O debate entre estes imigrantistas e aqueles que repudiavam tais propos

87

3. PROJETOS ABOLICIONISTAS

A é i d ili ã

 polícia. Apesar de fazerem críticas à est rutura fun diá ria , carac-terizada pela grande propriedade monocultora de produção ex-tensiva de gêneros de exportação, os abolicionistas sempre dei-xavam claro que a sua intenção não era revolucionária, mas

Page 46: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 46/138

 A estratégia da conciliação

Em fins da década de 1860 e início da de 70, com o reco-nhecimento oficial de que a extinção da escravidão era apenasuma questão de forma e oportunidade, a inclusão da emanci-

 pação entre as reformas pre tend idas pelos radicais do Par tidoLiberal e a decretação da Lei do Ventre Livre (28 de setembrode 1871), abrese um período que se caracterizou pela propa-ganda abolicionista propriamente dita. A princípio desenvolvidana imprensa, em tribunas parlamentares e conferências de salão,esta propaganda restringiase praticamente aos limites estreitosda diminuta elite brasileira.

Devido a este caráter limitado de classe, que apenas muitotimidamente ousava transcender os interesses escravistas, não se

 pode dize r que os abolicion istas se distinguissem essencialmentedos emancipacionistas, a não ser que, enquanto para estes bas-

tava a lenta extinção do cativeiro, mediante a libertação doventre escravo, aqueles pretendiam ainda um prazo fatal paraeste término. Tendo porém como principais interlocutores os próprios senhores de escravos, a quem procura vam convencerda irracionalidade de seu regime de produção, os abolicionistasmais propagandeavam a abolição do que se posicionavam fir-memente a respeito, às vezes até mesmo assumindo propostasde emancipação gradual ou então de libertação com prestaçãocompulsória de serviços aos exsenhores ainda por alguns anos.

Esta mesma ambigüidade persiste na década de 1880,

quando o abolicionismo realmente toma o vulto de um grandemovimento urbano e popular, espraiandose pelas ruas em aca-lorados comícios, manifestações e conflitos violentos com a

tas será abordado adiante, no capítulo II. O leitor interessado poderárecorrer aos seguintes autores: Quintino Bocayuva,  A Crise da Lavoura

 — Succinta Exposição,  Rio de Janeiro, Perseverança, 1868; J. C. Galvão,Questão dos Chins,  Rio de Janeiro, Laemmert, 1870; Salvador de Men-donça, Trabalhadores Asiáticos,  Nova Iorque, Novo Mundo, 1879.

88

xavam claro que a sua intenção não era revolucionária, mastãosomente reformista.

Preocupados com a possibilidade de que a obra da abo-lição escapasse dos quadros estritamente parlamentares, fazen-dose “cegamente” e à margem da “estrada larga da experiência

dos povos e do direito positivo”, eles procuravam manter omovimento dentro da legalidade institucional, muito embora àsvezes tivessem de transgredila por força das circunstâncias deum tempo de conflitos de ciasse e interclasses generalizados.31

 Nestas suas tentativas sempre renovadas de manter o con-trole institucional sobre o movimento das ruas, os abolicionistas perseguiam o mesmo objetivo a que eles se tinham propostodesde o início, ou seja, reordenar o social a partir das própriascondições sociais vigentes, sem nunca enveredar por utopiasrevolucionárias. Isto significa dizer que o abolicionismo, talcomo pretendido por seus dirigentes, deveria por um lado lutar

 pela libe rtação dos escravos e a sua integração social, mas, poroutro, precisaria envidar todos os esforços para manter o poderda grande propriedade, ou, mais precisamente, o poder do

capital.Assim como os reformadores que desde o início do século

almejavam alcançar um tempo de progresso, imaginado emtermos de harmonia social, homogenia racial e desenvolvimentoininterrupto das riquezas públicas e privadas, os abolicionistastambém nutriam estas imagens douradas do futuro. Por issonão poderiam deixar de retomar o antigo tema da regeneraçãodo trabalho mediante a interiorização do dever de trabalhar pelos exescravos e nacionais livres , sem o que , conforme aler-tavam, as fazendas se esvaziariam. E, embora tenham demons

31. José do Patrocínio e André Rebouças, "Manifesto aos Representan-tes da Nação Brasileira", encaminhado aos parlamentares gerais pelaConfederação Abolicionista,  fundada no Rio de Janeiro em 12 de maiode 1883; cf. Osório DuqueEstrada,  A Abo lição (Esboço Históric o) 1831- 1888,  Rio de Taneiro, L. Ribeiro, 1918.

89

trado alguma inclinação para a solução imigrantista, a ênfasede seus discursos esteve muito mais na questão do aproveita-mento do potencial nacional de força de trabalho, de acordocom as proposições de alguns dos mais importantes dirigentes

ciai obrigatório de todos os que atuaram na campanha aboli-cionista, repetidamente citado e louvado, o livro deste advogadoe parlamentar traçou os contornos do abolicionismo, assinalandose s limites estritamente parlamentares Para ele o mo imento

Page 47: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 47/138

com as proposições de alguns dos mais importantes dirigentesdo abolicionismo.

O paraíso possível

Ao contrário dos primeiros emancipacionistas, que tratavamda questão da extinção da escravidão como uma perspectivalongínqua, a ser solucionada a longo prazo, os abolicionistasdeixavam entrever a percepção de que o futuro sem escravostornavase cada vez mais próximo, ameaçando mesmo de acon-tecer sem a mediação racionalizadora da política. Expressando bem os temores desta elite ilus trad a, o senador liberal Souza

S Franco justificou sua proposta de abolição em dez anos comesta tirada, curta e grossa: “Percorremos um plano inclinado,em cuja descida parar é cair, e voltar atrás impossível”.32

Mas também diferentemente dos primeiros reformadores,que enfatizavam bastante a_questão do ódio de raça entre bran-cos e negros, os abolicionistas esforçaramse por demonstrar queegte aspecto praticamente inexistia no Brasil. Neste ponto elesse aproximavam das formulações do imigrantista Louis Couty,com uma diferença importante, porém: se não havia ódio deraças no país, isto não significava a inexistência de conflitosde classe entre senhores e escravos. Por isso, ao invés da reali-dade de um paraíso racial brasileiro, assinalada por Couty,alguns abolicionistas apontavam tãosomente para a sua viabili-dade no futuro, desde que a escravidão fosse efetivamente abo-lida por ato oficial e o negro se tornasse trabalhador livre.

A imagem harmoniosa de um país sem preconceitos raciaisemergiu da pena de um dos mais importantes dirigentes aboli

X" cionistas, o pernam bucano Joaquim Na buco , em sua obra maior,O Abolicionismo  (Londres, Abraham Kingdon, 1883). Referen-

32. Citado por Ruy Barbosa, Projecto n.° 48,  Rio de Janeiro, Nacional.1884.

9 0

seus limites estritamente parlamentares. Para ele o movimentoabolicionista devia colocarse integralment^ç^mõlam veHa^êiro proje to de reconstrução da vida nacional, degradada em todosos seus poros pela ação destrutiva do sistema escravista. Entre-

tanto, este projeto deveria restringirse única e exclusivamente

ao plano legal, pois fora dele só restava a hipótese de revolução,o que não estava nas intenções deste membro de uma ilustre

família do Império (pp. 67).

Felizmente, e apesar da luta de classes as quais os abo-licionistas esforçavamse em “conciliar”, conforme enfatizava

 Nabuco, o tempo desta reconstru ção nacional poderia ser alcan-

çado pacificamente. Isto porque, se naquele momento as classes

sociais estavam em conflito, o mesmo não acontecia com as

raças, reinando harmonia ao menos neste aspecto.

"A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca aalma do escravo contra o senhor, falando coletivamente, nemcriou entre as duas raças o ódio recíproco que existe natural-mente entre opressores e oprimidos. Por esse motivo o contatoentre elas foi sempre isento de asperezas fora da escravidão,e o homem de cor achou todas as avenidas abertas diante desi” {pp. 235).

É que no Brasil teria ocorrido o inverso dos Estados Uni-

dos. Apesar de a escravidão fundarse na diferença entre raças,não se desenvolveu a prevenção da cor, pois os contatos entre

ambas desde o início da colonização produziram uma populaçãomestiça. Assim, ao se tornarem forros, os negros transformaramse em “cidadãos”, podendo partilhar igualmente dos privilégios

que o regime escravista mantinha abertos a todos indistinta-

mente (p. 175). A miscigenação como premissa explicava, por-tanto, a ausência de problemas raciais e acenava decididamente para a poss ibilidade de instauração de um paraíso racia l ao

abolirse a escravidão.

91

A ênfase na ausência de preconceito racial, ao mesmotempo que o alarde em torno dos conflitos entre classes, tinhauma função especial no discurso de Nabuco. Se por um lado

entre brancos e negros. Pelo contrário, fazia questão de afir-mar a paz social com que transcorrera a aplicação da Leido Ventre Livre na década de 70, contrariando a seu ver asexpectativas sombrias daqueles que como o jurista Perdigão

Page 48: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 48/138

objetivavase abolir a escravidão para conciliar as classes, poroutro lado, a abolição podia (e devia) ocorrer dentro dos qua-dros estritos do parlamento, uma vez que o estado de harmoniaracial vigente possibilitava uma transformação pacífica, ao con-

trário dos violentos eventos norteamericanos.33Argumento semelhante foi desenvolvido por outro depu\ tado, o advogado baiano Ruy Barbosa, igualmente preocupado

em afastar o perigo revolucionário e em assegurar ao parla-mento as rédeas daquele conturbado momento histórico.

Associandose desde o início de sua carreira política àque-les que postulavam a abolição da escravidão, ele foi um dosfundadores do Partido Radical em 1869, formado a partir dadissidência liberal, No artigoprograma do novo partido e cujaautoria lhe tem sido atribuída, já alertava contra o perigo do

advento de uma revolução, caso o país não enveredasse urgen-temente pelo caminho das reformas democráticas.34 Entre elas,a abolição da escravidão colocavase como das mais urgentes e,conforme enfatiza em outro artigo publicado no jornal  Radical Paulistano,  era fatal que isto acontecesse, quisesse ou nãoo governo.35

Embora estivesse sempre a alertar para o perigo de umarevolução iminente, Ruy Barbosa não associava este risco àsquestões raciais ou ao que a escravidão pudesse ter instaurado

33. Mas J. Nabuco não parecia tão tranqüilo em relação a esta pretensaharmonia. Referindose ao papel conciliador do movimento abolicionista,ele lembrava que os escravos não deveriam ser atingidos pela propagandaantiescravista, pois, como eles haviam sido mantidos até o momento “aonível dos animais", suas “paixões" "não conheceriam limites no modode satisfazerse", caso fosse “quebrado o freio do medo", ibid.,  p. 25.34. Ruy Barbosa, "ArtigoPrograma”, Obras Completas,  vol. 1, 18671871,tomo 1, Primeiros Trabalhos, Rio de Janeiro, Ministério de Educação eSaúde, 1951, pp. 324 (artigo publicado em 12 de abril de 1869 no pri-meiro número do jornal  Radical Pauli stano).35. R. Barbosa, “A Emancipação Progride", ibid.  (artigo publicado nodécimo número do  Radical Paul istano  em 25 de junho de 1869).

92

expectativas sombrias daqueles que, como o jurista PerdigãoMalheiro, a combateram, prevendo o caos e conflitos sangrentosentre senhores e escravos.36

A transição para o trabalho livre poderia ser feita pacifi-

camente, pois ao contrário dos Estados Unidos, onde os negrossofriam violentas perseguições, o Brasil abrigava proprietáriosde “índole benigna” e “hábitos de humanidade”. Além disso, as

 províncias com população escrava numerosa já estavam atra indocorrentes de imigrantes, o que deixa entrever o antigo anseiotantas vezes explicitado ao longo do século XIX de fazer re-verter a desproporção entre nãobrancos e brancos em favordestes últimos.

O risco revolucionário parecia provir muito mais da imprevidência dos políticos conservadores que, com sua habitual re-

sistência à emancipação, estariam abrindo brechas para o quedenominava “abolicionismo inconsciente”, ou seja, “o aboli-cionismo, na sua expressão mais absoluta, mais devastadora”,aquele que não previa o futuro da pátria e, portanto, não pro-curava compensar a propriedade pela perda de seus escravos,assegurandolhes a transformação, no ato, do escravo em tra-

 balhado r livre .37

Ao que parece, este abolicionismo sem consciência patrió-tica, movido por intuitos puramente individualistas e sem aten-tar para a razão maior do bemestar geral, seria aquele que

escapava do quadro parlamentar e faziase por si mesmo, aosabor das ações espontâneas e sem uma organização política.E era na onda deste abolicionismo “sem mérito” que os libertos

 poderiam dar vazão à “liberdade da preguiça”, ou seja, à li

36. R. Barbosa, Projecto n.° 48, op. cit.,  pp. 1723. O tema da revoluçãoaparece também em seu livro O Anno Político de 1887,  Rio de Janeiro,Gazeta de Notícias, 1888.37. R. Barbosa, Elemento Servil. Discurso Proferido em 28 de julho de  1884,  Rio de Janeiro, Nacional, 1884, pp. 1820.

93

 berdade de se negar ao trabalho livre na grande propriedadeagrícola.38

 Na mesma linha destes discursos par lamentares que pro-curavam manter o processo abolicionista sob controle estatal

A idéia da harmonia racial brasileira, que ora distinguiaa figura do bom senhor, ora a do escravo dócil e também ado português miscigenador, ganhou roupagens científicas comas formulações dos abolicionistas filiados à Igreja e Apostolado

Page 49: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 49/138

curavam manter o processo abolicionista sob controle estatal,o jornal abolicionista Qazeta da Tarde,  dirigido por José doPatrocínio, publicou vários artigos tendentes a “desdobrar oescravizado no trabalhador livre’’, o que queria dizer, estabele-

cer para o exescravo um período transitório de trabalho com- pulsório no estabelecimento de seu exsenhor.

Talvez por suspeitar que este desdobramento pacífico eordenado do escravo em trabalhador livre sob o mando domesmo senhor fosse considerado ilusório e temerário por mui-tos, há um esforço em provar que o Brasil oferecia condiçõesespecíficas para isso. Em um artigo de 1887, chamase a atenção para o fato de que neste país a colonização portuguesa haviaassimilado “as raças selvagens” ao invés de as destruir, “pre-

 parandonos assim para resis tir à invasão assoladora do precon-

ceito de raças”.Com isso parece ficar implícito que neste país a tarefa

libertadora ficava sensivelmente simplificada, dada a ausênciade divisões raciais. Restava, portanto, apenas uma questão social

 — o regime de trabalho escravista — , que poderia ser resol-vida simples e pacificamente mediante a abolição complemen-tada pela transformação gradual do exescravo em assalariado,sem riscos para os interesses dos proprietários.39

38. R. Barbosa, Projecto n.° 48, op. cit.,  p. 151. Este abolicionista elogiava

a liberalidade do projeto Dantas, relativo aos escravos sexagenários, tãosomente por fixar os emancipados nos municípios, ao invés de obrigálosa trabalhar para seus exsenhores. Era esta “saudável disciplina” que aseu ver tornaria exeqüível o trabalho obrigatório, fazendo com que o"homem imbecilitado, aviltado, ou desvairado pelo cativeiro" se tornasseefetivamente um assalariado. Cf. Projecto n.c 48, op. cit.,  pp. 14951.39. O artigo mencionado, “O Grande Projecto", de 5 de maio de 1887,trata do projeto apresentado na Câmara dos Deputados por AfonsoCelso, jflue pretendia a libertação imediata de todos os escravos, mascom a condição de prestação intransferível de serviços aos exsenhoresainda por mais dois anos.

as formulações dos abolicionistas filiados à  Igreja e Apostolado  positi vista ,  destacandose entre eles, Miguel Lemos e TeixeiraMendes.

Oponentes radicais do parlamentarismo, que só faria iludir

e postergar indefinidamente a questão da abolição, estes positi-vistas pretendiam a “incorporação do proletariado escravo” àsociedade, o que para eles significava a transformação do libertoem assalariado. Entretanto, descartavam quaisquer medidas ju-rídicas relativas ao trabalho compulsório para exescravos. Não,o que se queria era simplesmente um decreto abolicionista doimperador e a incorporação espontânea dos negros livres, sema mediação do Estado. A viabilidade quanto a este último as-

 pecto foi um dos temas do livreto  A Incorporação do Proletariado Escravo e o Recente Projecto do Governo,   de autoria deMiguel Lemos, publicado originalmente no  Jornal do Comércio, em agosto de 1883.40

“Presidente perpétuo” da Sociedade Positivista  do Rio deJaneiro, Lemos descartava enfaticamente as objeções daquelesque encaravam a abolição como uma ameaça à paz interna etambém ao desenvolvimento da produção em vista do supostodesregramento e ociosidade dos libertos. Para ele, a prova maiorde que nada disto ocorreria estava nas próprias característicasraciais dos negros, que os faziam primar pela resignação, passi-vidade e submissão. Lembrando os ensinamentos de AugustoComte, ele definiu a “raça africana” como essencialmente “afe-

tiva”, o que significava postular a sua “superioridade moral”em relação às outras raças:

“O africano é, naturalmente, venerador, e por isso sub-

metese; não é o medo, nem o interesse, que o mantém na

40. Este texto de M. Lemos é o apêndice 3 do livro do mesmo autor, OPositivismo e a Escravidão Moderna,  Rio de Janeiro, Sociedade Positi-

vista, 1884, p. 60.

9 5

escravidão, é o amor para com os senhores  que eles reputamseus superiores. A submissão do africano é análoga à submis-são do soldado ao general; repetimos, é fruto da veneração,  enão interesse” (p. 60).

 Liberdade , terra e trabalho

Esta dissociação operada pelos abolicionistas entre as no-ções de classe (conflito) e raça (paz) permitia a formulação deProietos de integração social do exescravo, prescindindose da

Page 50: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 50/138

Era da veneração ou desta qualidade natural de uma raça,que ao longo da sua história não progredira tão rapidamentequanto os brancos, que resultava a possibilidade dos exescravos

tomaremse pacíficos trabalhadores livres a serviço dos proprie-tários agrícolas (pp. 601). Além deste pressuposto racial, quea seu ver não tinha origem orgânica, mas sim histórica, haviaainda um outro a reafirmar seu ponto de vista de que os liber-tos não se tornariam vagabundos. Miguel Lemos, juntamentecom Teixeira Mendes, explicam em  A Liberdade Espiritual e a 

! Organização do Trabalho  — Considerações Historico-Filosoficas Sobre o Movimento Abolicionista  (Rio de Janeiro, Centro Posi-tivista do Brasil, 1888) que, em função de leis biológicas queregiam o organismo humano, os indivíduos acostumados aotrabalho, e sobretudo trabalhos penosos como eram os dos escra-vos, não se entregavam à vagabundagem (p. 16). Se isto acon-tecesse com os recémemancipados, seria apenas algo momen-tâneo, pois, além dos fatos atestados pela ciência — leis bioló-

gicas e características étnicas — , todas as evidências eram deque os libertos continuavam a trabalhar tão resignada e ativa-mente quanto o faziam como escravos. Por estes motivos nãohavia por que pretender medidas jurídicas de fixação do libertoao solo ou de coação ao trabalho.

Deste modo, a denúncia da escravidão como um regime de

trabalho que degradava senhores e escravos, por um lado, e aênfase na suposta ausência de preconceitos è ódios raciais entrenegros e brancos, por outro, obedeciam a objetivos propagandísticos bem precisos: lutar pelâ__.abolição e ao mesmo tempo

11acalmar„.o.S ânimos de u ns e outro s, assegurando com_ ís s .q  _ aIpossibilidade de uma reformulação pacífica das relações de tra; balho e a preservação do poder do grande proprietária.

96

g ç , pquelesHbngos períodos de transição com trabalho compulsóriodo~Hberto ou servidão da gleba, previstos pelos emancipacio-nistas como a única forma de evitar o revanchismo dose sua dispersão desordenada pelos campos e cidades.

 Nem sempre, porém , os conceitos de raça e classe tiveramsua autonomia assegurada nas falas abolicionistas. Podemosacompanhar a conquista desta dissociação conceituai na obrade Joaquim Nabuco, de acordo com os distintos momentos po-líticos vivenciados por ele.

A princípio, ao redigir O Abolicionismo  na distante Ingla-terra, onde trabalhou durante cerca de três anos como corres- pondente do  fornal do Comércio,  amargando a derrota sofridanas eleições de 1881, ele apelou simultaneamente para as teo-rias liberais e raciais. Em uma análise muito similar à dos imi-

grantistas, o tema da indolência e apatia__generaHza4ã..4a..pQpUTlação nacional (escravos e pobres livres) é abordado em duas.dimensões: como resultante da escravidão enquanto regime de

  . . ^ - • —* • _ í s "

trabalho compulsório e irracional e como decorrente das origensraciais africana s, de grande parle. dos. nacionais. Embora ambasapareçam como complementares em sua exposição, a segundaassume de fato um papel decisivo para explicar o atraso bra-

sileiro:

“Quando os primeiros Africanos foram importados noBrasil, não pensaram os principais habitantes (...) que prepa-

ravam para o futuro um povo composto na sua maioria dedescendentes de escravos (...).

Chamada  para a escravidão, a raça negra, só pelo fatode viver e propagarse, foise tornando um elemento cada vezmais considerável da população (...). Foi essa a  primeira vin-gança das vítimas. Cada ventre escravo dava ao senhor três aquatro crias que ele reduzia a dinheiro; essas por sua vezmultiplicavamse, e assim os vícios do sangue Africano acaba-vam por entrar na circulação geral do país” (pp. 1367).

Embora lamentasse a presença dos africanos e seus descen-dentes, certo de que se não fosse isso o país “estaria crescendosadio, forte e viril como o Canadá e a Austrália”, colonizado poreuropeus, Nabuco acreditava que os negros por si só não teriam

É

de sua propaganda abolicionista e passa daí por diante a defende rjia p J ó a abolição, como também “o Brasil para çs. Brasi-leiros”.

Embora continuasse a apoiar a imigração européia, Nabucoó d iti d d f tâ i t é ã b idi d

Page 51: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 51/138

constituído um mal tão grande. É que para ele os males trazidos por esta raça, tais como seu “ desenvolvimento mental atrasado” ,“seus instintos bárbaros”, a “fusão do catolicismo com a feiti-çaria”, a “ação das doenças africanas sobre a constituição física

de parte do nosso povo” e a “ corrupção jig. língua, das maneirasSQciais,. da educação”, foram grandemente acentuados pela escra-vidão. O regime escravista, combinado com as característicasraciais dos escravos, teria promovido o “abastardamento daraça mais adiantada pela mais atrasada”, ao invés da “elevaçãogradual dos negros ao nível dos brancos” (pp. 1415).

Mas, entre o povoamento através da miscigenação e aqueleque poderia ter sido (exclusivamente branco), sem dúvida as

 prefe rências deste abolic ionista inclinavam se para este último,uma vez qué a escravidão poderia ser extinta, mas a etnia de

um povo era algo muito mais definitivo. De qualquer forma, oBrasil, colonizado por portugueses, nunca poderia elevarse àaltura de outros povoados pela “raça Inglesa” (p. 168).

Implícita neste modo de pensar está a concepção de umaescala etnográfica dos seres, dispostos naturalmente numa gra-duação de raças inferiores (africanos), intermédias (como os portugueses), superiores (arian os). Colonizado por portuguesese negros, e ainda por cima sob regime escravista, Nabuco acre-ditava que o Brasil precisava urgentemente da abolição a fim

)  de constituir uma nacionalidade apropriada çom_ base n ojm igrante europeu, com seu “sangue caucásico, vivaz, enérgico esadi£” (pp. 2523).

Tomado por esta representação paradisíaca de um futuronacional a ser regenerado pelo sangue caucásico, Nabuco nãodedicou a princípio muito espaço para as questões relativas aodestino do exescravo e à possibilidade de seu aproveitamentocomo trabalhador livre. Mas em fins de 1884, já de volta ao país e confrontado com uma agitada campanha eleitoral paradeputado geral por sua província, ele muda radicalmente o tom

9 8

só a admitia desde que fosse espontânea, isto é, não subsidiada pelo Estado, pois somente assim pensava ser possível prio rizara incorporação da população nacional no mercado de trabalholivre. É neste espírito arraigadamente nacionalista que este can-

didato liberalabolicionista discursa em meio às massas popu-lares do Recife, tomando como que uma distância de séculosem relação àquelas suas posições expressas há apenas um anono isolamento de seu autoexílio londrino;

“Quem  já viu o problema dos defeitos de uma raça sersolvido pela importação de outra? Uma nação declarandoseimprópria para o trabalho e importando outra para dominála, porque quem trabalha é quem dominai (Muito bem)  Não,senhores, o recurso da imigração é muito importante, mas ésecundário a perder de vista comparativamente a esse outro:

o de vincular ao trabalho, o de transformar pelo trabalho,a nossa população toda”.41

A primeira tarefa de um abolicionista, portanto, além delutar pela abolição, era abrir espaço para que o trabalho sedesfizesse de sua secular imagem negativa, impregnada pelaescravidão na consciência de escravos, senhores e demais na-cionais. Era mediante a regeneração do trabalho, o reconheci-mento enfim de que “o trabalho manual, dá força, vida, digni-dade a um povo”, que se poderia alcançar no futuro a regene-ração racial ou a formação efetiva de uma nacionalidade e, por

conseguinte, de instituições políticas verdadeiras.42

4í. J. Nabuco, Conferências e Discursos Abolicionistas   — Obras Com pletas,  vol. 7.  São Paulo, Progresso Editorial, 1949, pp. 2545 (“PrimeiraConferência”, realizada no Teatro Santa Isabel, Recife, 12 de outubrode 1884).42.  Ibid .,  p. 370 (“Discurso aos Artistas do Recife”, Campo das Princesas,29 de novembro de 1884). Para Nabuco, a escravidão havia impedido a próp ria formação de um povo e, com isso, as institu ições haviam ficado

\

Ao assumir como lemas de sua campanha, “Liberdade e

Trabalho”, “O Trabalho que dá dignidade, a Liberdade que dá

valor à vida”, Nabuco despiuse da forte influência das teoriasf i11 raciaisjde sua época para enveredar resolutamente pelo caminho

Foi nesta mesma perspectiva de crítica à grande proprie-dade escravista e de luta pela regeneração do trabalho que oabolicionista baiano André Rebouças formulou todo um projetode reestruturação social e econômica do país. Filho de um impor-

Page 52: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 52/138

1í do ideário liberal.43 Se ele ainda admitia a necessidade de uma

regeneração étnica, era para concluir que ela só seria alcançada

caso o trabalho se revestisse de uma imagem positiva aos olhosdos próprios nacionais.

 Neste momento, por tan to, ele passou a se centrar mais nosaspectos de classe do que de raça, retomando a antiga argu-

mentação dps emancipaciQais.t&s...que visualizavam a^possibílidade de incorporação dos exescravos e pobres nacionais..acmercado de trabalho e à sociedade em termos mais .gerais. Paraisso, além de propor a instrução técnica e cívica e o incentivoà indústria nacional, Nabuco avançou uma proposta que certa-mente deve ter sido a responsável por grande parte dos trans-tornos enfrentados por ele durante a apuração dos votos: a

decretação de uma reforma agrária que, “por meio do impostoterritorial ou da desapropriação, faça voltar para o domínio públ ico toda a imensa extensão de terras ”, deixadas incul tas edesertas por força do monopólio escravista.44

sem raízes e a sociedade sem alicerces, ibid.,  p. 217 (“Segunda Confe-rência", Teatro Santa Isabel, 1.° de novembro de 1884).43.  Ibíd .,  p. 258 (“Primeira Conferência”). A respeito da formulação deum discurso que enfatizava particularmente este aspecto da regeneraçãoda noção de trabalho, ver Iraci Galvão Salles, Trabalho, Progresso e a Sociedade Civilizada,  São Paulo, Hucitec/PróMemória/INL, 1986.44.  Ibid .,  pp. 3778 (“Quarta Conferência", Teatro Santa Isabel, 30 denovembro de 1884). Em vista do “desaparecimento" da ata eleitoral daMatriz de São José, Recife, Nabuco foi obrigado a concorrer em segundoescrutínio, sendo eleito então com 890 votos em janeiro de 1885. Entre-tanto, não chegou a ser empossado, pois as manobras da junta apuradoraacabaram conferindo o cargo ao candidato conservador Manoel Portella;cf. DuqueEstrada, op. cit.,  pp. 1467, Ver também a respeito o própriorelato de Nabuco sobre estas manobras e mesmo violentos conflitos emtorno de sua candidatura e de outro candidato abolicionista, José Mariano,ibid.,  pp. 389418 (“Quinta Conferência" e "Sexta Conferência"),

100

tante advogado e político do Império e formado em EngenhariaCivil no Rio de Janeiro, Rebouças escreveu um longo e deta-lhado volume a fim de provar a possibilidade de integrar econciliar os vários segmentos sociais num todo harmônico e  \   I

interdependente, conLM§ê no trabalho livre. Libertos, pobresnacionais, imigrantes e grandes fazendeiros, todos eles tinhamseu lugar perfeitamente delimitado no projeto de constituiçãode uma “Democracia Rural”, tal como apresentado em seulivro  Agricu ltura Nacional. Estudos Economicos   (Rio de Janeiro,Lamoureux, 1883).

Mas ao contrário de Nabuco, que pretendia uma lei dereforma agrária, Rebouças preferia métodos mais sutis. Paraque a democracia rural se viabilizasse, a iniciativa teria de par tir dos prop rietários de grandes extensões de terr as que de-

veriam repartilas, mediante a venda ou arrendamento, entre osnãoproprietários. Embora ele não o recomendasse diretamente

 — possivelmente por temer os preconceito s enra izados de umasociedade dominada por latifun diários — , ele desenvolvia algunsexemplos, procurando persuadir presumíveis leitores/grandesfazendeiros dos benefícios resultantes de um tal sistema. Emuma hipótese bastante tentadora ele imaginava o fazendeirodividindo parte de suas terras em pequenos lotes de acordo como seguinte critério: “melhores terras” para si mesmo, “terrascansadas” para emancipados, colonos nacionais e imigrantes.E justificava esta divisão pouca eqüitativa, certo de que o

“suor de um homem livre, trabalhando para assegurar o bemestar de sua mulher e de seus filhos, tem uma força fertili-zante, que é impossível determinar, mesmo aos mais abaliza-dos professores de química agrícola!” (p. 118).

 No caso de arre ndam ento dos lotes, o que Rebouças consi-derava mais provável em um país em que poucos teriam recur-sos para comprálos, a hipótese continuava ainda mais tentadora:

101V

o grande proprietário deteria a propriedade de todas as terras,extraindo um aluguel de cada rendeiro. Mas, além disso, o pro- prie tário atuaria também como capi talis ta, pois poderia fab rica r produtos a par tir da matér iapr ima vendida a ele pelos forei ros.

Entretanto, por força de sua própria postura política abo-licionista, Rebouças não poderia fechar os olhos para a questãoda incorporação dos exescravos e pobres nacionais à sociedade.Por isso, além de propor incentivos pecuniários aos grandes

Page 53: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 53/138

Quanto a estes últimos, o autor lembrava que a renda a serlhescobrada teria de ser mínima, de modo que também pudessemacumular e atuar como pequenos capitalistas (pp. 1201).

Guardados os limites dos interesses de grandes e pequenoscapitalistas — o que fica implícito nesta hipótese conciliado-ra — ( estaria estabelecida uma harmôn ica interdepend ênciaentre uns e outros, com divisão de trabalho e centralizaçãoeconômica complementandose, o que faz lembrar o pro]fita_do

/femancipacionista BeaurepaireRohan, já visto anteriormente.r

Também ao contrário de Nabuco, que chegou a esgrimirargumentos francamente antiimigrantistas, Rebouças parecia pre-ferir um meiotermo entre as posições de aproveitar os nacionaise a de trazer imigrantes. Colaborador do jornal  A Imtnigração, ele saudava com entusiasmo a vinda de trabalhadores perten-centes às raças mais inteligentes e ativas da humanidade e ali-mentava a esperança de que no futuro a “raça atual” melho-rasse sob a influência daquelas (“Nativismo e Patriotismo”, anoII, boi. n.° 10, abril de 1885, pp. 23). Ê que mesmo os líderesabolicionistas descendentes de africanos, como o era André Re-

 bouças, não escapavam da inten sa propaganda imigrantista, ba-seada em teorias científicas raciais.45

45. José do Patrocínio, outro descendente de africanos, também não ficou

imune às teorias científicas raciais de sua época. Alguns meses após aAbolição, Patrocínio compareceu a um “meeting  de indignação", reali-zado pela Sociedade Central de Immigração,  no Teatro Recreio Dramá-tico, Rio de Janeiro, onde discursou “eloqüentemente” contra a imigraçãochinesa. Ele demonstrou que “o chim é incompatível &om._a npisajiacjonalidade, não só j>or muitos motivos étnicos e biológicos, como p orqueé um péssimo fator econômico”, cf.  A Imm igraçã o,  ano V, boletim n.° 50,novembro de 1888, p. 1. À respeito desta assimilação cultural, há umestudo muito valioso de Leo Spitzer que aborda, entre outros, o caso deAndré Rebouças — “Assimilação, Marginalidade e Identidade: Os DoisMundos de André Rebouças, Comelius May e Stephan Zweig", in Estu-

102

 prop rietá rios que se dispusessem a criar fazendas centrais, eman-cipar escravos e importar grande número de colonos europeus,ele defendia o aproveitamento dos próprios nacionais no mer-cado de trabalho. Em  Agri cultura Nacional  ele se contrapõe

resolutamente ao argumento imigrantista relativo à escassez de braços e calcula que pelo menos 3 milhões de pessoas vivessemdesocupadas ou mal aproveitadas no país (1 milhão de índios,outro milhão de mestiços e ainda quase outro milhão de escra-vos). E isto num país “em que se clama todos os dias por faltade braços!” (p. 50 e 383).

Ao longo destes diversos projetos de reformulação das re-lações de produção e de constituição de uma nacionalidade

 brasileira, acompanhamos a produçã o da idéia de transiçã o,intrinseçamente ,ligada.. aos..jjropósitos. jde.. se. alcançar no futuroqma harmonia sócioracial. A harmonia social constituía de fato

................................" • ' ' * . , ■ MV— -*' * 

o grande anseio destes reformadores, temerosos de que os con-flitos entre senhores e escravos se avolumassem a ponto de ex-

 plo dir num caos genera lizado . Por isso, para que esta perspec-tiva não se realizasse, estes membros de uma elite bastante

 previdente colocavamse na posição de quem se antecipa a umfuturo provável, projetando um outro mais condizente com osseus interesses materiais e culturais.

Além da harmonia social, os imigrantistas destacaramse por sua preocupação em conq uistar uma harm onia racia l, a serobtida por meio da regeneração da “raça brasílica” pelo imi-grante branco. Quanto a este ponto o discurso abolicionista

 prop orcionou melhores fundamen tos, desenvolvendo com grand eênfase a idéia de que a escravidão poderia ser superada em

dos Afro-Asiáticos, n.v  3, Rio de Janeiro, Centro de Estudos AfroAsiáticos/Cândido Mendes, 1980, pp. 3562.

103

 paz, sem conflitos raciais ou de revanch ismo de negros contra brancos. Por serem simpát icos às prop ostas imigrantistas ousimplesmente por se preocuparem em manter a direção e o con-trole do movimento abolicionista para assegurar a paz e a con-ti id d d i t it li t f t é b li i

OS POLÍTICOS E A “ONDA NEGRA”

Page 54: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 54/138

tinuidade dos interesses capitalistas, o fato é que os abolicio-nistas contribuíram grandemente para produzir nesta época aimagem do paraíso racial brasileiro.

Assim, por motivos diversos — propagandear nos países

de emigração que aqui havia e haveria paz e, no plano interno,enfatizar que a abolição poderia ser feita pacificamente pormeio de lei parlame ntar ou decreto do Executivo — , imigrantistas e abolicionistas convergiram para a imagem de uma socie-dade escravista sem racismo, onde o negro e o mestiço, umavez livres, viveriam em pé de igualdade com o branco, semrestrições legais e nos costumes.

 }  Mas enquanto os abolicionistas retomavam os argumentosdos emancipacionistas, que desde o início do século pretenderama incorporação social do negro livre, os imigrantistas consoli-

davam sua posição quanto à vagabundagem irremediável doexescravo e seus descendentes por força de suas supostas ori-gens raciais inferiores.

 Nas duas últimas décadas do século XIX os sonhos tãolongamente acalentados pelos imigrantistas — principalmenteaqueles relativos à mera substituição do negro pelo branco nosgrandes estabelecimentos rurais — tornamse realidade com avinda de mais de 700 mil imigrantes europeus para as prós-

 peras terras paulis tas. Contudo, alguns pouco s anos antes , nad a

faria suspeitar que São Paulo viesse a abrigar um tal númerode trabalhadores estrangeiros e com tanta rapidez.

Durante toda a década de 1870 foram muitos os deputadosda Assembléia Legislativa daquela província que considerarama imigração como virtualmente "paralisada”, o que sem dúvidaera bastante compreensível, visto o grande número de escravostraficados da região Norte do país e que continuavam a satis-fazer as necessidades de braços para a lavoura. De fato, uma)enquete feita em 1874 pelo governo , imperial aponta va _São \  Paulo como uma das poucas ^rovíncias^ em que n ão se consta-tara escassez de_ trabalhado ras^ É que neste caso o tr áfico inter "

 provinc ial de cativos parecia ter substituído plenamente aqueleque se fazia diretamente da África, extinto em definitivo noinício da década de 1850.1

1. Sobre a enquete de 1874, ver Michael McDonald H all, The Origins of   Mass Immig ratio n in Brazil, 1871-1914,  p. 32. A respeito do tráfico inter prov incia l de escravo s, Rob ert Edga r Con rad, Tumbeiros  — O Tráfico de Escravos para o Brasil,  trad. Elvira Serapicos, São Paulo, Brasiliense,I985, pp. 187207.

O que portanto teria mudado em termos tão radicais o panoram a desta província a pon to de neste cur to período ter seforjado uma política francamente imigrantista?

Em resposta a esta questão já houve qujem consi^e^ass^..osgaulistas como dotados de uma mentalidade progressista, essen-

tórico, ambos porém respaldados na certeza de uma racionali-dade imanente à história.3

Como condição estrutural básica que teria impulsionado ooeste mais novo a buscar novas “definições econômicas”, tería-

f t d t “ t d d ” t “i i i d

Page 55: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 55/138

cialmente distinta da elite restante do país. Devido a um espí-rito empresarial, racional, que visava acima de tudo o lucro emlugar do prestígio e status  decorrentes das antiquadas relações

de paternalismo e dependência, supostamente vigentes entre se-nhores e escravos e também senhores e agregados, os proprie-tários de São Paulo — sobretudo aqueles das férteis regiõesocidentais — tenderiam a assumir uma postura menos aferradaao regime de trabalho escravo, preferindo operar com trabalha-dores livres europeus antes mesmo que a escravidão fosseabolida.

| Pâula^Beiguelman encarregouse de desmistificar esta teseque teve grande ressonância na historiografia, lembrando quea idéia de uma mentalidade progressista, específica dos proprie-tários do oeste paulista, deve ser remetida ao próprio ideário

formulado por estes, ao mesmo tempo que atribuíam aos fazen-deiros do Vale do Paraíba “o epíteto” de “emperrados”. Paraesta autora, o papel da análise deve consistir em identificar“as condições estruturais que impeliram a lavoura da área maisnova a buscar definições econômicas diversas estimulando nosseus fazendeiros um comportamento diferencial”. A mentalidade

 peculiar seria então percebida “como resultante  e não mais deforma simplista como causa'*}   Ou seja, sua proposta é a dedeslocar a análise das condições subjetivas para as objetivas,compreendendose a mentalidade à luz dos fatores estruturais.É em suma o velho embate entre idealismo e materialismo his

2. Paula Beiguelman,  A Formação do Pov o no Com plexo Cafee iro,  2.aed., São Paulo, Pioneira, 1978, p. 52. Peter Eisenberg, “A Mentalidadedos Fazendeiros no Congresso Agrícola de 1878", in  José Roberto doAmaral Lapa,  Mod os de Produção e Rea lidade Brasileira,  Petrópolis,Vozes, 1980, pp. 16794, examina as diversas interpretações existentes emtorno da questão da diferença regional de mentalidades e chega à con-clusão de que elas não eram tão marcantes e talvez mesmo inexistissem.

106

mos o fato deste “setor de vanguarda” estar apenas “iniciandoo suprimento de braços” e ao mesmo tempo “percebendo a

 poss ibilidade de fazêló em novas bases” , isto é, com base noimigrante europeu.4 Em decorrência disto, a “orientação imi-

grantista do setor de vanguarda” — liderado p o r. MartinhoPrado Jr. — teria provocado “uma crise fundamental dentrodó escravismo, criandose “as condições objetivas para a emer-gência do movimento abolicionista”.5

AQ Contrário^jpenso que a análise de um processo históriconão deva operar uma tal dissociação entre causas e efeitos ouentre condições objetivas e subjetivas. No primeiro caso criti-cado pela autora, teríamos uma análise simplista da causa ge-rando o efeito, isto é, a mentalidade progressista gerando aimigração e facilitando a abolição, em suma, uma condição

subjetiva a determinar uma objetiva. Já segundo a proposiçãode Paula Beiguelman encontramos uma mentalidade não comocausa, mas sim como efeito  de determinadas condições estru-turais, ou seja, condições objetivas teriam determinado as sub-

 jetivas. Estas condições de est rutura teriam permitido, portan to,a formulação de uma mentalidade diferencial, imigrantista, aqual por sua vez provocou uma crise fundamental dentro doescravismo. O efeito desta crise teria sido a própria criação de

3. Cf. Cornelius Castoriadis,  A Ins titu içã o Imaginária da Sociedade , op. cit.,  pp. 5470.4. Paula Beiguelman faz uma distinção entre terras do oeste mais antigoe do oeste novo. O primeiro abrangia a região de Campinas, já saturadade escravos em meados dos anos 70, enquanto o segundo, isto é, toda aárea mais a noroeste, estava então sendo desbravado e necessitava comurgência de braços para o cultivo de café. Cf. Formação Política do Brasil, 2.* ed., São Paulo, Pioneira, 1976, pp. 1921.5. P. Beiguelman,  A Crise do Escra vism o e a Gran de Imigração,   2.* ed.,São Paulo, Brasiliense, 1981, pp. 189.

107

condições objetivas para o aparecimento do movimento abolicio-nista, abrindose assim espaço para a abolição.

Em última análise, ao final desta sucessão de efeitos ge-rando outros efeitos, nos vemos obrigados a procurar o fatordesencadeante destes efeitos ou a suprema causa E a encon-

ao invés do posicionamento imigrantista, os representantes dooeste novo não assumiram a postura sempre presente nos de- bates sobre mãodeobra, tendente a aprove itar os nacionaislivres e mesmo os escravos que se fossem libertando?

D f t d t t d dé d d 1870 t d

Page 56: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 56/138

desencadeante destes efeitos, ou a suprema causa. E a encon-traremos na estrutura econômica ou nas condições objetivas dooeste novo, isto é, terras novas ainda em fase de suprimentode braços ou de estabelecimento de relações de produção. Aosseus fazendeiros caberia, portanto, a percepção de que poderiamestabelecer relações de produção com base no trabalho deimigrantes, ao invés de simplesmente recorrer aos braços escra-vos como em áreas de produção já constituídas há muito tempoe superlotadas de escravos. Em suma, a estrutura econômicateria permitido o aparecimento de determinada mentalidade

 polí tica.

 Neste ponto impõese a seguinte ques tão: por que os fazen-deiros desta área se voltaram mais resolutamente para a imi-gração européia, o que os teria impulsionado a adotar esta so-

lução para os seus problemas de mãodeobra, quando sabemos — conforme enfatiza a mesma autora — que as fontes de su- primento de escravos do norte do país aind a estavam muitolonge de se esgotar? Ou, dito de outra forma, o que teria feitocom que os representantes desta área tomassem a iniciativa de

 propor altas barreiras pecuniá rias a este tráfi co, ao invés desimplesmente aceitar aquele comércio e importar mais e maisescravos? Enfim, por que se formou  pol iticamente   esta mentali-dade imigrantista naquela área?

 Na tentativa de compreender a história como um processo

um tanto mais complexo do que nos fazem crer concepçõesdeterministas — com suas “esferas” econômicas, políticas esociais perfeitam ente delimitadas — , acredito que a resposta àquestão acima deva ser procurada num conjunto de circunstâncias não necessariamente determinadas por condições de estru-tura. O fato de as terras novas do oeste ainda estarem relativa-mente vazias de mãodeobra é sem dúvida um elemento impor-tante para a compreensão de por que ali houve um maior espaço para propostas imigrantis tas. Porém podemos per gun tar por que,

1 0 8

De fato, durante toda a década de 1870 os temas do negrolivre e do imigrante ideal nortearam os debates dos deputados

 provinciais. Preocupados com a extinção da escravidão em fu-turo próximo, os representantes dos interesses paulistas trava-ram intensas e acaloradas discussões, visando solucionar a ques-tão da substituição do escravo pelo trabalhador livre antesmesmo que ela se tornasse realmente um problema para os

 proprie tários. Assim como na literatura já anal isada no capítulo1. as posições_explicitayams.ê.—em... torno de duas tendências :havia deputados que se posicionavam claramente peío aprovei-tamento do próprio potencial nacional de força de trabalho{exescravos, nacionais em geral), enquanto outros tendiam parasoluções imigrantistas, ou seja, a substituição do negro peloimigrante. Outros ainda tendiam ora para um, ora para outro

 posicionamento, por vezes procurando conciliar ambos nummesmo projeto de constituição do mercado de trabalho livreregulamentado pelo Estado.

 No início da década de 1880, porém, esta ambigüidadenas posturas relativas à questão de mãodeòBra 'desaparece comoque num passe de mágica e os deputado s, em j>ua maioria,expressam uma clara tendência imigrantista. O desânimo dosimigrantistas, que há apenas seis ou se',e anos falavam em paral isia dos planos imigratórios para a prov íncia, cede lugarà euforia e ao entusiasmo a ponto de em 1884 um importante

(e custoso!) projeto favorável à imigração européia ter sidovotado e transformado em lei em questão de dias. Ê neste mo-mento que o tema do negro livre começa a ser deixado de lado,

 pois doravan te quase todas as atenções estavam concentradasna questão do imigrante e que tipo de incentivos deviam lheser destinados.

Parte desta euforia poderia sem dúvida ser remetida às possib ilidades emigratórias oferecidas pela Itál ia. Contudo , é preciso indagar se estas possibilidades teri am podido se concre-

1 0 9

tizar em termos de uma imigração em massa para a província,caso a maioria dos deputados (e não somente os representantesdo oeste novo paulista) não tivesse se posicionado favoravel-mente à imigração, votando amplos subsídios para a sua reali-zação. Ou seja, as possibilidades históricas tornamse realidade

1870 e 1880. Tendo por objetivo recuperar a argumentação pró e cont ra projetos relativos à questão de braços, procureianalisar estas discussões indistintamente, quer estas propostastenham sido aprovadas ou não. É que, para explicar o sucessoimigrantista ou a vitória política dos imigrantistas sobre aqueles

i i i i d i l i l d f

Page 57: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 57/138

ç j , psomente na medida do seu reconhecimento político. Por quenum dado momento os deputados passaram a reconhecer comouma necessidade impreterível a vinda de europeus em substi-

tuição aos escravos? O que impulsionou uma assembléia emtermos quase consensuais a adotar uma postura essencialmenteimigrantista?

Além de a província de São Paulo estar bem servida de braços para a lavoura mediante o tráfico inte rprovincial deescravos, havia ainda uma numerosa população de homens livrese sem posses que poderiam ser aproveitados nas atividadesagrícolas.6 Mas a questão fica ainda mais intrigante quando

 pensada con juntamente com o descrédito em que havia caídoa imagem do imigrante europeu junto aos fazendeiros paulistas,

após as primeiras experiências com a parceria nas décadas de1850 e 1860 e sobretudo em razão dos conflitos havidos nafazenda Ibicaba (SP) do senador Vergueiro, bem como outrosque se seguiram.7

Para compreender como se deu politicamente este sucessoimigrantista recorri aos  Anais da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo  ( ALPSP), acompanhando passo a passoos debates travados pelos deputados ao longo das décadas de

6. O senador paulista Joaquim Floriano de Godoy esforçouse por provarque o braço nacional era bastante “numeroso e hábil" para as necessi-dades da produção agrícola. Só em São Paulo ele citava estatísticas queapontavam 252.579 trabalhadores livres e mais 308.581 desocupadoslivres vivendo na província por volta de 1877. Cf. J. F. Godoy, O Elemento Servil e as Câmaras Municipaes da Província de S. Paulo,  Rio deJaneiro, Imprensa Nacional, 1887, p. 44 e 77.

7. A esse respeito, Thomas Davatz, op. cit.;  e também, para outros con-flitos envolvendo colonos estrangeiros, Verena Stolcke e Michael M. Hall,“A Introdução do Trabalho Livre nas Fazendas de Café de São Paulo",op. cit .

ÍÍO

que insistiam no aproveitamento do potencial nacional de forçade trabalho, interessa sobretudo entender que tipo de preocupa-ções moviam os deputados e que argumentos poderiam mobilizar

as atenções da maioria, determinando a formação e consolidaçãode uma ampla corrente de políticos favoráveis à imigração.

1. A BATALHA CONTRA O TRÁFICO

•T

A “onda negra” — imagem vivida do temor suscitado pela /multidão de escravos transportados do norte do país para a y província no decorrer das décadas de 1860 e 1870 — estevena raiz das motivações que impulsionaram os deputados provin-ciais a se mobilizarem numa forte e decisiva corrente imigran-

tista. Na verdade, a explicação para o sucesso dos imigrantistas

deve ser buscada a princípio na batalha empreendida por estes políticos contra o tráfico. Ao votarem altos impostos sobre oscativos .trazidos para São Paulo^ estes parlamentaram,— em suamaioria representantes de interesses agrícolas e eles mesmosfazendeiros — procuravam evitar que os proprietários contjnuas&em a importar.mais e mais negros. Sua esperança era que,em vista desta desvalorização forçada da mercadoria escravo,os capitais passassem a ser canalizados para os planos imigra-

tórios. Somente assim a sua asserção de que o trabalho livreera mais produtivo do que o trabalho escravo mereceria o cré-dito de seus abastados eleitores.

Esta intenção já aparece bastante explícita nos debates tra-vados em torno do projeto apresentado pelo imigrantista LopesChaves em fevereiro de 1871. O projeto abolia a lei de impos

^ to de 20$ sobre cada escravo que saísse da província e sujei-tava todo cativo ingressante por mar ou por terra a umamatrícula de 100 milréis (ALPSP,  1871, p. 65). Ou seja,

111

facilitavase a saída de escravos e dificultavase sua entrada na provínc ia. Com isso, conforme assegurava o dep utado, dimi-nuiria “essa lepra que de todas as províncias do norte doImpério vem para a nossa” (ALPSP,  1871, p. 145).

Embora este projeto antitráfico tenha sido aprovado, inclu-

“A lavoura caminharia, pois, apressadamente  para suadecadência e ruína total com a supressão de seus atuais instru-mentos, sem que tenham fornecido outros em substituição”(ALPSP,  1876, p. 37).

Esta fala pode muito bem ser considerada como a expres-

Page 58: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 58/138

p j p ,sive com um valor mais alto para o imposto sobre o escravoingressante na província (200$), o desânimo em relação às pos-sibilidades de imigração levou um outro deputado imigrantista

a propor a revogação da Lei n.° 12, de 9 de março de 1871,apenas dois anos após sua decretação. Obtida a anulação dalei em 1873, a questão do tráfico torna a ser o centro das dis-cussões em 1875, quando as posições se dividem entre deixálolivre como estava até aquele momento, ou dificultálo.

O deputado Celidonio, portavoz da comissão de Fazenda — a proponente do novo projeto — , argumentou com os moti-vos habituais em favor da cobrança de 500$ sobre todo cativoingressante na província. A lavoura, por “falta de braços” —o que, segundo sua perspectiva imigrantista, queria dizer falta

de colonização estrange ira — , tendia a se aniquilar ; e ao mesmotempo a existência de braços escravos era um obstáculo a estacolonização, pois os braços livres dificilmente se conciliavamcom aqueles. Por isso era preciso impedir o aumento dos escra-vos, criandose embaraços à sua entrada na província (ALPSP, 1875, p. 38).

Em vista das oposições ao projeto, foi votada uma lei nestesentido, porém determinandose uma quantia consideravelmentemais baixa, de apenas 100$ (Lei n.° 10, de 7 de julho de 1875).Convém lembrar que este montante era mesmo inferior àquele

decidido em 1871, de 200$, revogado no ano seguinte devidoàs reclamações dos fazendeiros. Mas a nova lei não agradou àlavoura e por isso, já no início de 1876, os deputados QueirozTelles e Alves Cruz encaminharam projeto autorizando suarevogação. Em sua defesa, o deputado Almeida Nogueira dis-cursou enfaticamente, lembrando a todos a necessidade pre-mente de braços, a impossibilidade de preenchêla com pobreslivres e a esperança longínqua e incerta de uma substancialimigração estrangeira. E arrematou, taxativo:

112

Esta fala pode muito bem ser considerada como a expressão de um sentimento geral dominante na Assembléia. Osanseios imigrantistas eram postergados e, em vista da descon-

fiança em relação aos trabalhadores livres nacionais, defendiase o mercado de escravos, revogandose os empecilhos ao trá-fico interprovincial. Entretanto, esta ambigüidade e indecisãoda Assembléia paulista em relação à questão do tráfico sãodeixadas definitivamente de lado apenas dois anos depois. Noinício de 1878 a maioria dos deputados da Assembléia unesenuma  propos ta bastante radical em comparação com a mansi-dão dos últimos anos. De acordo com o projeto encaminhado pelo republicano e imigrantis ta Martinho Prado Jr., os escra-vos procedentes de outras províncias e doravante matriculadosem São Paulo estariam sujeitos a uma taxa de 1:000$. Exce-

tuavamse apenas os cativos ingressos na província por motivode herança. Quanto aos infratores desta lei, eles seriam puni-dos com multas de 200$ a 300$, além do pagamento daquela

quantia.Esta virada quase consensual dos representantes de diver-

sas regiões da província no sentido de se restringir a entradade mais escravos em São Paulo era realmente algo surpreen-dente. O que teria mudado de um ano para o outro a pontode vinte dos trinta e cinco parlamentares terem se posicionadofavoravelmente a um projeto deste tipo? (ALPSP,  1878, p, 143).

Muitos dos nomes eram já antigos na Assembléia, tais comoPaulo Egidio, Lopes Chaves, Alves dos Santos, Queiroz Tellese Ulhoa Cintra. Outros como Martinho Prado estreavam norecinto parlamentar, como parte de uma primeira bancada maisconsistente de republicanos, num total de sete deputados.8 De

8. Os nomes destes republicanos, conforme relação dos anais da  ALPSP de 1878: Martinho Prado Jr., Cesário Motta Jr., Leite Moraes, Moreira deBarros, Prudente de Moraes, Martim Francisco Jr., Pinheiro Lima (p. 34).

113

qualquer modo, uma maioria de adeptos a um projeto tão radi-cal em relação às posturas de anos anteriores não poderia serexplicada como devido tãosomente à atuação de novos depu-tados, representando novos interesses — como os do oeste novo,defendidos por Martinho Prado —, a não ser que esta renova-ção tivesse sido quase total

 A passos de gigantex

Assim manifestouse o deputado republicano Leite Moraes — ardorosamente favorável à votação de um alto imposto sobreescravos traficados — a respeito das mudanças de atitudesoperadas pela Lei do Ventre Livre:

Page 59: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 59/138

ção tivesse sido quase total.

Para se compreender uma tal mudança de atitudes, é pre-ciso averiguar que tipos de motivação expressavam os depu-

tados, bem como quais foram os argumentos utilizados pelos poucos parlamentares contrários à medida proposta. Três foramas preocupações básicas manifestadas por vários oradores: em

 prim eiro lugar, os efeitos da Lei do Ventre Livre (28 de setem- bro de 1871) estariam tornan do impossível o mesmo controledisciplinar sobre os escravos, uma vez que a escravidão já não podia mais ser considerada como um regime abso luto e perpé-tuo, mas tãosomente relativo e condenado fatalmente a extinguirse; em segundo lugar, temos um crescente medo dos escra-vos e de possíveis rebeliões, em parte devido à perda de

controle disciplinar e, por outro lado, em razão do tráficoacelerado de cativos do norte; por último, em função do mes-mo tráfico interprovincial, renovavase o medo de que ocorresseno Brasil uma juex rac ivil do tipo da norteamericana, com onorte (|mp ondà ao sul uma aboliçãoyjorçadji e sem indenizaçãosobre o grande capital empatado em escravos.

Examinemos uma por uma estas preocupações, porqueelas são muito importantes para a compreensão de como, emdado momento, a ameaça latente dos interesses em jogo temo poder de sacudir os dominantes e tirar seus representantesda letargia rotineira da vida parlamentar, impulsionandoos àunião em torno de projetos mais radicais, em razão justamentede seus possíveis efeitos reformadores.

No livro  In Memoriam Mart inho Prado Jr. 1843-1943,  São Paulo, Elvino Pocai, 1944, a informação a respeito do número de republicanos na legislatura provincial de 1878/1879 é outra; além de Martinho Prado, figuram apenas outros dois deputados: Prudente de Moraes e Cesário Motta.

114

operadas pela Lei do Ventre Livre:

“V. Exc. e muitos dos nobres deputados, que são lavra-

dores, devem lembrarse de que antes da última lei sobre o ele-

mento servil, nas próprias fazendas agrícolas, só se conver-sava em assunto desta ordem com a mais completa reserva,

de modo que nem todos pudessem ouvir a conversação; hoje, po rém , o la vr ad or , sem re se rv a al gu m a di an te do s seus es cr a-

vos, discute com plena liberdade todas as questões que se

 pr en de m à em an ci pa çã o co m pl et a, sem rece io al gu m de qu e

este seu procedimento possa ser inconveniente e fatal a seus

 pr óp rio s int ere sses , É qu e a id éi a ca m in ha a pa ss os de gi ga nt e,

tomou corpo, ou, antes, assenhoreouse do espírito de cada

lavrador que tem um pouco de amor a esta terra que nos viu

nascer.

Assim, pois, para mim, a medida é utilíssima nas atuaiscircunstâncias, uma garantia para o dia de amanhã, garantiamuito solene e eficaz, que há de nos amparar a tranqüilidade

e a paz do lar doméstico” ( A L P SP , 1878, p. 535).

 Não é difícil imaginar o que signi ficaria para os escravoster a chance de ouvir conversas entre seus senhores a respeitoda sua próxima e inevitável libertação. Até bem recentementeo impulso pela liberdade partira do próprio escravo, quer fu-gindo para os quilombos, quer matando seus donos e feitores,ou então simplesmente se suicidando. Mas eram em sua maior

 parte tentativas isoladas, par te de uma resistência disseminada pelo cotid iano das fazendas e vilas e que apenas em algunsmomentos suscitaram rebeliões de maior porte, organizadasconjuntamente com os negros e mestiços livres e, por vezes,

os índios.Agora eram os próprios senhores que falavam em liber-

dade e, acatando ou discordando da idéia de extinção daescravidão, o fato é que o regime sofria com isso um sériorevés, na medida em que perdia a legitimidade de um meca-

115

nismo legal tido por absoluto durante séculos. Também podese pensar como se senti riam ludibriados os pais que viam seusfilhos nascer livres e não obstante crescer como escravos, aserviço dos mesmos senhores e sem nenhuma distinção de tra-tamento.

i d i id d l l

 Nao há dúvida, sr. presidente, que estamos à borda deum abismo, ou pisando sobre um vulcão!” ( ALP SP , 1878,

 p. 535).

A despeito da menção ao oeste da província, podemosindagar se também em outras regiões não estaria ocorrendo

Page 60: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 60/138

A Lei do Ventre Livre tem sido tratada em geral pelahistoriografia como apenas mais uma manobra parlamentar queaquietava os ânimos abolicionistas e ao mesmo tempo garantia

a força de trabalho escrava, visto que os senhores podiam con-tar com o trabalho compulsório dos ingênuos até os vinte eum anos de idade. Embora isto seja certo, penso que esta leideve também ser considerada sob um outro aspecto, precisa-mente este de que tratei acima e que diz respeito às mudan-ças de atitudes psicossociais no cotidiano de dominantes edominados.

As diretrizes da lei, reforçadas por estas mudanças de ati-tude, alimentaram por sua vez um sentimento de aceitaçãoquanto ao fim inevitável da escravidão entre os senhores (o

que, é claro, não excluía uma luta encarniçada para alongála),e sobretudo uma inquietação maior entre os escravos. Uns eoutros implicavam a quebra de disciplina e perda de controlesobre as relações de produção, o que acirrava os conflitos se-culares entre negros e brancos.

Pisando sobre um vulcão

O mesmo deputado, Leite Moraes, deixou registrada nosanais uma fala eloqüente a respeito do crescimento de conflitos

entre negros e brancos, manifestando seu temor pela segurançadestes últimos.

“Sr. presidente, desgraçadamente para nós, podese dizerque não se instala uma sessão judiciária a oeste da provínciade São Paulo sem que, perante ela, como consta dos respec-tivos anais, representese um desses dramas sanguinolentos,onde nós vemos o lar doméstico do fazendeiro lavado emsangue, e onde vemos muitas vezes, de envolta com o crimecometido, ameaçada a honra de nossas famílias!

116

g gum acirramento dos conflitos entre escravos e senhores. Dequalquer modo esta indicação do oeste paulista como local

 privilegiado de atos criminosos dos escravo s tinha um sentido preciso na fala deste deputad o. Tratavase de provar que estaregião nova e em franco desenvolvimento cafeeiro, grande im-

 por tado ra de braços escravos do norte do país, estava receben-do uma grande quantidade de negros criminosos.

A conclusão é que se devia “levantar uma barreira” aeste tráfico, conforme expressão de Martinho Prado Jr. duran-te a apresentação do projeto {ALPSP,  1878, p. 143). A “bar-reira” obviamente seria a aprovação pelos deputados destealtíssimo imposto, disfarçado em taxa de matrícula, uma vezque às províncias era vedado legislar sobre assuntos desta

natureza. Portanto, çrn função da defesa do próprio^projeto, otema do negro mau vindo do norte  ganhou grande repercussãonT Assembléia, constando até mesmo de um parecer da comis-são de Instrução Pública e Fazenda, que estudou a propostae foi favorável a ela (ALPSP,  1878, pp. 46971). O deputadoLeite Moraes expressou os sentimentos de seus colegas com

grande ênfase:

“Sr. presidente, este projeto não é senão o brado elo-qüente de cada um de nós em face da situação crítica e la-mentável que atravessa a nossa província, recebendo diaria-

mente dos portos do norte, não braços que venham aumentaras suas rendas e, conseguintemente, concorrer para a sua pros- peridade; mas, em regra geral, ladrões e assassinos que vêm perturbar a paz do lar doméstico e conservar em constantealarma e sobressalto as famílias e, finalmente, as pequenas

 povoações” (ALPSP,  1878, p. 535).

Deixando de lado os possíveis exageros de um orador tãoeloqüente, o fato é que este tipo de denúncia deixa entrever 

1 1 7

Page 61: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 61/138

 Martim Francisco Jr.  — Enq ua nto nã o ho uv er co lo niza çã ohavemos de ter escravos,

 Martinho Prado  /r. — Já existe, e não se desenvolve porcausa da instituição de escravos.

 Martim Francisco Jr.  — N ão se ac ab am os es cra vo s po r-que não se facilita a colonização” ( ALPSP , 1878, p. 253).

ridos um pouco antes, um contra um feitor de Indaiatuba eoutro contra mais um senhor em Itu. Segundo ele, estes homi-cídios eram apenas exemplos de “fatos horrorosos” que estariam se reproduzindo diariamente na província e por isso eleconclamava “todos os cidadãos mais altamente colocados” auniremse em seus esforços para conjurar a crise. Do contrá-

Page 62: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 62/138

i Sãojio is imigrantistas, republicanos , a disçorda r dos meios

, de se atingir a tão sonhada imigração. Um queria deixar aescravidão como estava, sem tocar na sua grande fonte deabastecimento, o tráfico de negros do Nordeste, e implementaras medidas colonizadoras. O outro pretendia dificultar consi-deravelmente a aquisição de escravos a fim de obrigar osfazendeiros a pensar duas vezes antes de adquirir um cativoem lugar de contratar um colono estrangeiro.0 Como veremos,esta última solução se imporia na medida mesma do avolumardos conflitos nas fazendas da província.

Cenas de sangue e radicalização parlamentar 1l

A insegurança tão alardeada durante todo o ano de 1878,decorrente da indisciplina e crimes de escravos contra seussenhores, feitores e respectivas famílias, constituiuse no pró-

 prio tema de abe rtura da legislatura de 1879. Já na primeirasessão em 12 de fevereiro, o deputado Leite Moraes pronun-ciou um inflamado discurso a respeito do assassinato de um

 proprietá rio de Itu, bem como de toda a sua família , por umescravo. Lembrou também outros dois crimes semelhantes ocor

9. Neste sentido Cesário Motta Jr. e Prudente de Moraes apresentaramemendas que convertiam este imposto sobre os escravos traficados paraa província em pecúlio destes. P. de Moraes argumentava: “Assim, olavrador, quando, impedido pela necessidade, entender que pode chegara dar 3:000$Q00 por um escravo, recuará sempre diante da idéia de queeste escravo fica para ele no valor extraordinário de 3:000$000, e com ograve defeito de possuir logo o pecúlio de 1:000$000 — e de estar porconseguinte muito próximo da liberdade (...). Só assim a medida se tor-nará de uma vez proibitiva (...)” (ALPSP,  1878, p. 251 e 4823).

120

ç p jrio ninguém poderia mais contar “com garantia para sua vidae de sua família!”

A percepção de que a sociedade estava dividida perigosa-mente entre senhores indefesos de um lado e escravos violentosde outro determina a linha de seu discurso:

“£ preciso que tais cenas não se reproduzam!É preciso que um outro homem, que uma outra família

não seja vítima do horroroso atentado que praticouse com o

ilustrado Dr. João Dias Ferraz da Luz (apoiados) excessiva-mente filantrópico e caritativo, que tratava seus escravos, porassim dizer, de igual para igual (apoiados).  Quando ele foivítima de um fato como aquele, quando suas filhas participa-

ram da sua sorte, quando semelhante barbaridade se deu emuma cidade como a de Itu, notável pela excelência de seus bo ns co stu mes , pe la bo a ín do le de seu s ha bi ta n te s, pe la su a pr ud ên ci a, pe lo am or à pa z, à or de m , à re lig ião, o qu e de ve -mos esperar de outras localidades?”

Observese a preocupação em atribuir ao senhor assassi-nado todas as qualidades do senhor bom, vítima indefesa deum bárbaro escravo. Tais virtudes estendiamse à população ea ele próprio, que, em outro trecho de seu longo discurso,descreve o seu próprio ambiente familiar, pacífico e ordeiro,

com os escravos sentandose à mesa com ele, e os ingênuos bem acomodados no “colo da fam ília” .

Esta descrição de um quadro paradisíaco da escravidão,em contraposição aos atos bárbaros dos escravos, obedecia semdúvida à necessidade de combater a propaganda abolicionistae de não permitir que se cruzassem os braços diante das amea

' ças à propriedade. Para isso ele propunha a participação deuma comissão de deputados em uma reunião de fazendeiros arealizarse na capital, onde se discutiria uma estratégia para

121

enfrentar a “tão lamentável situação criada pelo braço armadodo escravo com a impunidade legal” (ALPSP,  1879, pp. 45).

Foi, portanto, sob a impressão destas denúncias alarman-tes que continuaram as discussões em tomo do projeto antitráfico do ano anterior, destinadas a uma segunda votação. E devido

ó i l d l t d i d

Além da revolta dos escravos, Martim Francisco expres-sava um outro medo, já assinalado por outros deputados umano antes. Era o perigo de uma cisão entre norte e sul, pois,ao mesmo tempo que a “idéia separatista” já se tornava popu-lar nas províncias do norte e nordeste, seus escravos estavamsendo exportados em número crescente para o sul do país.

Page 63: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 63/138

ao próprio alarme causado pelo aumento dos crimes de escra-

vos contra proprietários, feitores e famílias, refazemse as posi-ções até então assumidas. A proporção de votos favoráveis à

 proposta de um imposto elevado sobre os escravos traficados para a provínc ia aumenta nesta segunda votação: são dezenoygcontra cinco, enquanto no ano anterior foram deZoito contranove (ALPSP,  1879, p. 188).10 Houve mesmo um deputado,Martim Francisco Jr., que explicitou seu voto a favor comouma mudança a contragosto, porém inevitável, devido à inse-gurança propiciada pela revolta dos escravos:

“O voto que hoje dou é diametralmente oposto. Embora me não pareça a idéia praticável, sob todos os pontos de vista, forçoso me é confessar que me não posso, como nenhum de  nós o pode, eximir-me à impressão dolorosa causada pelos últi

mos acontecimentos da província. Diversas das do ano passa

do são hoje as condições da província. A escravatura acha-se  mais ou menos revoltada; o espírito de dissidência fermenta com mais força; portanto a questão hoje reclama uma solu

ção diferente (apoiados, muito bem)”.

10. Combatid o pelo Clube da Lavoura de Campinas, que reunia então os pro prie tári os mais pode roso s da prov ínci a, o proje to n.° 23 foi apro vad o

em 1878, porém não obteve a sanção do presidente da província BatistaPereira, que alegou a incompetência da Assembléia para legislar sobreo assunto. No ano seguinte o projeto passou por esta nova votação, cot>seguindo a adesão de dois terços dos deputados. A grande maioria dosvotos favoráveis era de membros do Partido Conservador, além de seisou sete liberais e três republicanos. O presidente da província, o conser

Laurindo de Brito, recusouse porém a publicar a lei e com issoimpediu a sua execução. Cf. Os Deputados Republicanos na Assembléia Provincial de S. Paulo. Sessão de 1888,  São Paulo, L. K. BookWalter,1888, pp. 45861 e também  In Mem oria m, op. cit.,  pp. 1901.

122

p p pAo final desta exportação acelerada de negros, o norte estarialivre para formar um Estado separado, deixando o sul em

maus lençóis (ALPSP,  1879, p. 268).

 Imigrantes rebeldes e negros perigosos

A constância com que aparecem estes argumentos de ordemsocial e política expressa o peso que eles tiveram sobre asatitudes dos deputados em relação às questões de mãodeobra.Tratavase em primeiro lugar de barrar o tráfico de escravos,evitandose com isso a entrada de mais elementos potenciaisde desordem e indisciplina na província e também possíveis

desequilíbrios políticos a nível nacional. Ao mesmo tempo,abriase mais espaço para propostas de formação do mercadode mãodeobra livre em substituição ao escravo. A imigração,, porém, continuava em descréd ito.

Assim como os escravos, também os trabalhadores estran-geiros constituíam motivo de alarme para os deputados, na me-dida em que duas greves e atos de insubordinação tomavama tão propalada superioridade do trabalho livre sobre o escravo,ou do trabalhador branco sobre o negro, uma quimera de mau.gosto. O deputado Valladão expôs suas preocupações com rela-

ção à ameaça de morte que colonos italianos “ insubordinados” /fizeram ao di retor da fazenda Salto Grande, em Amparo, de ; propriedade “3 oIM tI e ." Jè ’J®BnãSiÊia, concluindo, algo desolad õr “Não bastavam essas cenas havidas entre o elementoservil, ainda temos de lamentar outras!” (ALPSP,  1879, pp.

1567).Outro deputado expressou uma total descrença na imi-

gração, definindo os imigrantes e colonos como meros “pertur- badores da paz pública” , uma vez que ao invés de trazerem

123

instrumentos agrícolas, eles vinham “armados com instrumen-tos do crime, a gazua e o serrote, além dos instrumentos des-truidores, como o revólver, a navalha e outros” (ALPSP,  1879,

 p. 306).

Mas, apesar da antipatia despertada pelos imigrantes entreit líti i tá i fi d dé d d 70 d

O deputado Paula Souza, presidente da Assembléia, assimexprimiu as motivações dos deputados ao votarem um projetotão eficazmente que se passaram apenas oito dias desde suaapresentação até a votação final e transformação em lei:

“Justamente impressionado pela próxima crise do trabalho,

crise inevitável pois é a conseqüência necessária da marcha

Page 64: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 64/138

muitos políticos e proprietários em fins da década de 70, nada parec ia sobrepujar o Jem or em relação à aglom eração cad a vezmais volumosa e explosiva de negros na província. Por isso,simultaneamente à aprovação de medidas mais enfáticas deincentivo à imigração, os deputados recrudesceram na lutacontra o tráfico em 1881. No início deste ano, um projetoassinado por dezessete deputados — alguns imigrantistas notó-rios, como Souza Queiroz Jr., outros, como João Bueno, maistendentes à incorporação do nacional no mercado de trabalholivre — determinava a cobrança de uma taxa de 2 contos deréis sobre a matrícula de todo escravo que entrasse dez diasapós a publicação da lei, com multa de 500$000 para os senho-res que não o fizessem. Isentavamse apenas os escravos rece-

 bidos por herança (ALPSP,  1881, pp. 112).Entretanto, os deputados que fizeram aprovar tão rapida-

mente a lei que elevava o imposto sobre os escravos trafica-dos de 1 para 2 contos de réis logo se viram na contingênciade reabrir os debates a respeito, em vista dos pedidos de isen-ções de proprietários. A maioria dos parlamentares, porém,cerrou fileiras em defesa da aplicação integral da lei, não dandoouvidos ao argumento de que a recusa de isenções fecharia as

 por tas aos fazendeiro s de regiões vizinhas que quisessem seestabelecer em São Paulo. Para eles havia um risco maior, já

amplamente apontado quando dos primeiros debates a respeitoda necessidade de se barrar o tráfico: a propaganda abolicio-nista crescia, enquanto os escravos acumulavamse em núme-ro crescente na província, aumentando com isso os perigos a

, serem enfrentad os no período pósescravista. Portan to concluía}se, pela urgência em barr ar de vez este tráfico, o que já erala té mesmo reconhecido pelo Clube da Lavoura de Campinas,

que dera o seu aval ao projeto tão logo ele foi apresentado j (ALPSP,  1881, pp. 3159).

124

crise inevitável, pois é a conseqüência necessária da marchados espíritos e do progresso da humanidade, esta assembléia

 pr ov inc ia l vo tou a lei n.° í , de st a ses são, lei qu e cr ia tão

 pesa do im po sto so bre os es cra vo s im po rta do s de ou tra s pr o-víncias, que é de presumir que não mais venha para nósesses braços, hoje talvez comprometedores, e quiçá perigosos”

(ALPS P,  1881, p. 368).

Lembremos que o projeto foi apresentado em 17 de janeirode 1881 e aprovado conjuntamente com uma emenda em 20 de janei ro; no dia 25 ele já era lei. A rapid ez com que este projetotornouse lei é realmente surpreendente, a julgar pela morosi-dade dos trabalhos parlamentares em geral. Podese ter assimuma idéia da insegurança e do temor sentidos pelos represen-

tantes dos proprietários da província em relação àqueles braçosnegros, “comprometedores e quiçá perigosos”.

Este medo, decorrente de um possível alastramento da in•O i I I I ~ ' * * *

disciplina entre os escravos, muito provavelmente impulsionoua corrente de imigrantistas que então se destacava com maisforça na província, ao que indica o crescente número de medi-das próimigração votadas daí para a frente na Assembléia Pro-vincial e efetivamente aplicadas pelo governo de São Paulo.

2. O NACIONAL LIVRE EM DEBATE

Mas, antes que se formasse uma forte corrente de políticosimigrantistas na Assembléia Provincial na virada da década de1870, muita atenção se destinou ao aproveitamento do próprio

 potencial nacional de força de trabalho .Embora as dificuldades de se incorporar negros, mestiços

e nacionais em geral no mercado de trabalho livre fossem ge-ralmente reconhecidas, elas não pareciam constituir obstáculo

125

intransponível, tal como fizeram acreditar muitos discursos imi-grantistas. Ao contrário, os imigrantes e seu emprego adequadoaos grandes interesses agrários é que pareciam por vezesimpossíveis.

O imigrante imprestável

Arouca oferecia uma explicação complementar para o desin-teresse do colono em relação à grande lavoura. O estrangeiro

 já acostumado ao maqu inism o chegava aqui e se depa rava comuma “rotina de fogo, enxada e machado” e ainda por cimatinha de se sujeitar a este trabalho pesado, exposto ao sol e àchuva da manhã até a noite, em troca de um “miserável salá-

Page 65: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 65/138

O imigrante imprestável

Em 1874, na mais longa discussão registrada a respeito,

o deputado Manoel Pereira de Souza Arouca descartou com- pletamente a possibilidade da imigração adequarse a tais inte-resses. Alarmado com as grandes quantias que se gastavamcom a arregimentação de imigrantes e que na realidade cons-tituíam tãosomente uma “vassoura que vai às penitenciáriasestrangeiras varrer as fezes e os criminosos ali existentes paravirem aportar às nossas praias.. (ALPSP,  1874, p. 168),Arouca também não via com melhores olhos aqueles que imigravam efetivamente com a intenção de trabalhar na grandelavoura. É que, a seu ver, esta intenção honrosa de alguns se

inviabilizava, faltandolhes as aptidões profissionais necessárias.Os europeus, afirmava, tendiam mais para as atividades

comerciais, com exceção dos portugueses e alemães, muito pro- pensos aos trabalhos agrícolas. Assim, o colono que não seadaptava às tarefas da lavoura, dois meses depois de chegarao país, já encontrava motivos para brigar com o patrão, “ale-gando injustiça na execução do seu contrato, unicamente comfito de escapar da obrigação a que se sujeitou”. Em seguidaele se dirigia para a cidade, espaço mais apropriado para de-senvolver suas aptidões naturais:

“Se é italiano, aí temos o comércio de latas de folhadeflandres; se é francês, aí temos mais um joalheiro; se é por-tuguês, aí temos um armazém de cebolas, paios e presuntos(risadas);  se é alemão, temos logo 4, 6, 8 vacas de leite paraa manteiga (continuam as risadas),  temos logo uma padaria

 para se misturar o trigo com o milho” .

Além da concepção das aptidões naturais segundo cada povo e cada raça — teor ia muito em voga na época — ,

126

rio de 800 réis”.Pesados na balança das conveniências dos proprietários, os

defeitos de uns e outros, o deputado Arouca ficava com osnacionais: “os únicos que se amoldam aos costumes agrícolas”do país. Por isso ele propunha um projeto especialmente paraarregimentar e organizar os nacionais livres, acostumandoosa um trabalho mecanizado que os arrancaria deste “estado semicivilizado” e “semibárbaro”, característico da população pau-lista, para no futuro resultar em um amplo desenvolvimento da

 província (ALPSP,  1874, pp. 3767).

Coação ao trabalho e controle do tempoEmbora o autor de tais idéias não tivesse o mesmo empe-

nho em detalhar como trazer os nacionais para estas fazendas,resumindose a fornecer uma longa lista das máquinas e apara-tos necessários, ele fez algumas sugestões de caráter geral.

Em primeiro lugar, Arouca queria, ao invés de projetosde colonização estrangeira, a votação de “leis adequadas queobriguem e facilitem aos nossos paisanos a aceitação do tra- balho ”. A grande vantagem desta coação ao trabalho seria, deum lado, a retenção dos recursos da província em lugar de seu

escoamento para o exterior e, de outro, a concentração daforça de trabalho como forma de rebaixar os salários, consi-derados muito altos, não obstante ele mesmo se referisse ao“miserável salário” pago na época pelos fazendeiros.

Em segundo lugar, ele apresentou uma proposta mais con-creta visando obter um maior controle sobre o tempo de tra- balho dos agregados. De acordo com out ro projeto, tambémde sua autoria exclusiva, só seria permitido ao proprietárioter agregados em suas terras sob a condição expressa de eles

127

trabalharem quatro dias por mês “a título de aforamento” pelo uso dos terrenos designados. Em caso de recusa ao tra - balho, o agregado seria punido com “3 dias de prisão porcada dia que faltar”. Quanto ao fazendeiro que não obrigasseseus moradores ao trabalho, também este seria castigado comuma multa de 50$ por homem (ALPSP,  1874, p. 41).

dades de emprego da força de trabalho alargavamse em seto-res novos que demandavam um considerável volume de mãodeobra — como as ferrovias, que possivelmente pagavam melhordo que os fazendeiros.1’

E para agravar a situação dos empregadores rurais, aumen-tava a demanda dos trabalhadores sem que estes perdessem o

Page 66: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 66/138

O inovador deste projeto de Arouca era a tentativa decontrolar o tempo de trabalho a partir de ângulos distintos,

obrigando também o fazendeiro a fazer uso regular da forçade trabalho de seus agregados de um modo mais uniforme.Outro aspecto a ser observado é a percepção da própria ausên-cia deste controle não só pelos fazendeiros como também peloEstado, uma vez que formulavase um projeto para coagir ohomem livre ao trabalho em apenas quatro dias do mês!

O reverso desta falta de controle de tempo dos traba-lhadores rurais pelos proprietários era a liberdade de apenastrabalhar para a própria sobrevivência, ou — examinada aquestão do ângulo dos fazendeiros — a “vadiagem” dos nacio-

nais livres e dos exescravos. Segundo Arouca, os homens livres, bem como aqueles recémlibertados, não trabalhar iam para osgrandes proprietários a não ser mediante coerção, porque, alémdas suas reduzidas necessidades de subsistência, eles não co-nheciam nenhuma outra semelhante àquelas do “civilizado”(ALPSP,  1874, p. 169). Isto quer dizer que, internamente, aonível de suas motivações, o nacional não estava preparado para se inte grar voluntariamente na grande produção e pro du-zir um trabalho excedente contínuo, gerador de lucros para osgrandes proprietários.

 Não bastasse este descontrole sobre o modo de vida doshomens livres, havia ainda a concorrência que as ferroviashaviam introduzido no mercado de trabalho nos últimos trêsanos. Isto porque até mesmo os “paisanos” (assalariados) estavam deixando as fazendas em troca dos “serviços melhor com- pensados nesta multipl icidade de redes de caminho de ferro ,que se têm feito e que ainda estão em construção”. Tratasesem dúvida de mais uma faceta do problema da “vadiagem”do nacional livre tão alegada pelos fazendeiros. As possibili-

1 2 8

controle do seu tempo de trabalho. Assim relata Arouca a sema-na do trabalhador livre:

“Os trabalhadores livres agora estão pimpãos, porqueeles já têm consciência da carestia de braços. Fora da lavouraeles ganham um dia para o resto da semana. E quando mes-mo assim não fosse, eles querem vadiar na segundafeira,

 pois no domingo passaram a noite no cateretê,  e tambémquerem vadiar no sábado porque é dia de Nossa Senhora.Os quatro dias da semana que restam, querem passar bem,fazer o cigarro no serviço e comer bem sossegados (...) qual,

 pois, a utilidade que poderão prestar ao lavrador, que estácom os seus serviços atrasados?!” (ALPSP,  1874, p. 175).

Descontandose os possíveis exageros de Arouca, pois écomum que os patrões se escandalizem com a idéia de tempolivre de seus empregados, este texto é muito valioso para seanalisar o tema da vadiagem e seu significado para os deten-tores do poder. Na verdade, os grandes proprietários detinhamo poder até certo ponto, pois faltava a incorporação deste por

 parte dos dominados, ao nível de uma disciplina de trabalho.Ao contrário, desenvolviase uma espécie de contrapoder pormeio de uma resistência disseminada e cotidiana nos locais de

trabalho e moradia, utilizandose de diversos subterfúgios emdefesa do controle do tempo.

11. Segundo Arouc a, as ferrovia s pagavam melh or, além de oferecer me-lhores condições de trabalho em relação às fazendas: “Ê sabido que trêsou quatro estradas de ferro se estão construindo na província, e que o jorn alei ro ali gan ha 2$ diá rios par a mais; e se ele é indolente , está cla roque dará preferência a esse trabalho onde em um só dia ganha o jornal prec iso para o resto da sema na. Além disso, o traba lho é muito maissuave, porque é em parte mecânico...” (ALPSP,  1874, p. 175 e 377).

129

As conseqüências desta liberdade irrefreada de trabalha-dores interessados tãosomente em garantir a própria sobrevi-vência e a da família preocupavam o deputado:

“Isto posto, o que ficará sendo a nossa lavoura? Ficaráretalhada em pedacinhos; cada um cuidará de sua rocinha,cada um terá seu animalzinho para tratar, seu pasto para

sos patrícios, que vivem entregues à ociosidade, a empregaremse no serviço da lavoura, mediante a promessa de certas van-tagens e certos favores”. Além disso ele queria uma lei queisentasse do serviço ativo da Guarda Nacional e do recruta-mento todos os indivíduos empregados na lavoura.

Com isso aumentariam os braços facilitandose a substi-

Page 67: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 67/138

p p plimpar, a economia de sua casa, o comestível e o combustível

 para um só morador. Assim irá todo o tempo do indivíduo

consumido em suas economias particulares, sem deixar ocasião para haver uma acumulação, um sobejo de suas necessidades,que é justamente onde se firmam os interesses dos cofres pú- blicos” (ALPSP,  1874, p. 174).

Dado este perigo dos interesses individuais se sobreporemaos sociais ou à razão maior do Estado, ou seja, a promoçãode garantias para uma ampla acumulação de capitais, a questãodo controle do tempo de trabalho do homem nacional livre e

 pobre constitu iu de fato uma das grandes vertentes de dis-

cussões travadas nesta década de 70.

Estratégias disciplinares

Entre os que nutriam esperanças de que os próprios na-cionais e exescravos pudessem interiorizar a necessidade detrabalhar além das meras necessidades de sobrevivência, cons-tituindo um mercado de trabalho livre suficientemente largo,duas eram as sistemáticas comumente propostas: a coerção

 jurídica e policial ao trab alho e/ ou a persuasão moral via apren -dizado profissional.

Exemplo significativo da primeira sistemática foi a pro- posta do deputa do F. A. de Araújo para que a Assembléia de1871 solicitasse ao governo geral a decretação de uma nova leide locação de serviços. Segundo este deputado, antes que aemancipação se fizesse era preciso tomar uma série de “medidasindiretas” a fim de que “a propriedade individual” não fosseabaFacte. tais medidas sugeria “um a lei que obrigue nos-

130

Com isso aumentariam os braços, facilitandose a substituição do trabalho escravo pelo livre e também diminuiriam os

crimes, pois “os ociosos, vendose obrigados a procurar traba-lho, deixariam de ser matéria disposta para o crime” (ALPSP,1871, p. 149).

 Nestas justificativas podemos perceber um projeto explí-

cito de enquadramento dos nacionais livres à sociedade, coa-gindoos ao trabalho de modo que eles trocassem sua autonomiae controle do tempo por um regime disciplinar de prestaçãode serviços. As vantagens e favores mencionados seriam formasde fazer internalizar a disciplina do trabalho e fazer esqueceraos ex“ociosos” a autonomia perdida.

Quanto à segunda sistemática, podese dizer que ela come-çou a tomar forma a partir da fundação do Instituto de Edu

candos Artífices em 1874. Objetivando “preparar homens paraa indústria, para as artes mecânicas e para várias profissões; jáno ano seguinte à sua criação, o instituto suscitou novo projetoque elevava de 60 para 100 o número de alunos. O deputadoPaulo Egidio justificava a necessidade de se subvencionar ummaior número de vagas, a despeito da entidade existir há tão pouco tempo, lembrando a urgência de se transform ar nacionais pouco propensos e aptos a trabalha r, em ‘amantes do tra ba lho ’ ”(ALPSP,  1875, pp. 567).

Já vimos anteriormente o que significava querer que osnacionais livres fossem “aptos e propensos para o trabalho”.

A aptidão,  na fala dos grandes proprietários capitalistas e seusrepresentantes políticos, assumia o sentido preciso da aceitação

 pací fica pelo trabalhador de um trabalho excedente, tempo nãoremunerado, e por isso mesmo gerador de possíveis lucros nomercado. Para isso tornavase necessário fazer com que o na-

131

cional incorporasse todo um ideário do trabalho, “a moral” ou“o amor do trabalho”, segundo expressões habituais da época.

Apreocupaçãio com a educação estava de fato muito rela-cionada com esta questão de formação de uma população tra

 balhadeira ou de “bons cidadãos” , cônscios de sem “deveras” para com a sociedade* Em 1877 outro projeto procurou inf luirneste sentido pedindo isenção de impostos para dois institutos

tacava que com isso esperava garantir “o direito ao trabalho” para todos os pobres , independente de sua nacionalidade(ALPSP,  1880, p. 185).

Como é simples perceber, a expressão “direito ao traba-lho” era apenas o verniz caridoso a encobrir intenções nadalisonjeiras, isto é, transformar uma multidão de pobres em umafileira de proletários ordeiros e dóceis amarrados irremedia-

Page 68: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 68/138

neste sentido, pedindo isenção de impostos para dois institutos beneficentes — o Novo Mundo e D. Ana Rosa, que abrigavam

menores órfãos. Logo o deputado Luiz Silverio apresentou umaemenda a este projeto, alargando a pretendida isenção paratodos os estabelecimentos de ensino primário e secundário quese fundassem na província, mantidos por associações beneficen-tes. O deputado Vieira de Carvalho defendeu a emenda pro-

 posta , enfatizando a necessidade de se educar meninos pobres para o trabalho (ALPSP,  1877, p. 151).

Esta ênfase quanto à educação profissional e ética domenor pobre torna a aparecer em duas propostas debatidas em1880. Uma delas partia de uma petição de um particular que

se propunha a organizar uma companhia agrícola medianteauxílio pecuniário do governo provincial. Quanto à força detrabalho necessária, não haveria maiores problemas, já queeram numerosos os meninos órfãos, nacionais e estrangeiros,maiores de doze anos, que trabalhariam em troca de abrigoe no futuro estaríam preparados para desempenhar bem o

 pape l de “cidadãos úteis à sociedade” (ALPSP,  1880, p. 248).

Este mesmo empenho em internar e por conseguinte con-trolar os homens pobres, a começar pelas crianças órfãs, a fimde acostumálas desde a mais tenra idade à exploração da sua

força de trabalho, aparece de forma mais elaborada em um proje to do deputado Paula Souza. Também ele pre tendia inter-nar “meninos desvalidos” em núcleos agrícolas, conservandoosaí até a maioridade. Durante este tempo, “sentimentos de ordeme de economia” seriam inoculados “no espírito” destas crianças,“por meio do exemplo e do trabalho constante e ativo”, trans-formandoas de “estéreis consumidores”, de perturbadores da“tranqüilidade pública”, em produtores úteis, enfim, em “cida-dãos aptos e úteis à sociedade”. Por último, o deputado des-

132

fileira de proletários ordeiros e dóceis, amarrados irremediavelmente ao dever do trabalho para os ricos proprietários (e,

 portanto, no respeito à propr iedade privada), porque o teriaminternalizado a tal ponto de acreditar nisto como um direito.Por vezes esta preocupação com a formação de uma men-

talidade de trabalho entre os nacionais explicitavase por viastão indiretas que aparentemente nada tinham a ver com a ques-tão. Ê o caso do projeto encaminhado em 1878 pelos republí;canos Prudente de Moraes, Cesario Motta Jr. e Martinho PradpJrTTè què*a primeira vista não parece estar relacionado a assun-tos de mãodeobra. Porém a argumentação em__defesa da abo-lição das loterias provinciais e vi de nc ia ^, objetw^a própria subjetividade da população, combatendose tudo que pudesse estim ular a preguiça e a esperan^a 3e não mais prec isartrabalhar para sobreviver.

“Dominados pela preguiça, pela aversão ao trabalho, eestimulados pela ambição de enriquecer os homens, se atiramaos jogos, e de preferência aos jogos sancionados por lei, só

 pela simples possibilidade de tirarem á sorte grande” (ALPSP, 1878, p. 216).

O projeto, portanto, visava remover mais um empecilho à

grande meta do momento: a produção do futuro paulista comoo trabalhador devotado, aquele que só vive pelo e para otrabalho, sentido único da vida.

Vadiagem e escassez de braços?!

Embora o aproveitamento do potencial nacional de forçade trabalho tenha sido aventado repetidas vezes durante todaa década de 70 e inclusive defendido por imigrantistas des

. . * 1   -

I *! V . ►

\/ ‘ j crentes das possibilidades imigratórias para o país, grandes re

| ' y t

v sistências se levantavam sempre que se procurava incluíla em

" projetos favoráveis à imigração.I

 Nestes momentos em que se reavivavam as esperanças, smrelação à vinda dos trabalhadores estrangeiros, os imigrantistasrecusavamse a tratar da incorporação do nacional ao mercadod t b lh li i d t i d

 Ro dr igo da Si lva  — No projeto de colonização seria bo-nita essa idéia.

Escobar   — É questão de nome; eu 'que ria antes que semudasse o título, que se tratasse de braços para a lavoura.(...) Mas por que razão se despreza a classe dos nossos pa-trícios. ..

Fonseca  — Quem despreza?d i â i i

Page 69: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 69/138

de traba lho livre e reagiam com desprezo e apartes, .iradoscontra aqueles que ousassem lembrar a existência deste poten-

cial de braços. Era como se para estes o nacional permanecessesempre como uma última e desprezível cartada, caso o grandelance da imigração não fosse alcançado.

Mas em 1870, quando os imigrantistas ainda estavamlonge de formar uma corrente política de peso, temos aindaa rara chance de observar como eles se esmeravam em provarque o nacional não deveria ser incluído no rol de privilégiosdestinados aos imigrantes e àqueles que favorecessem a suavinda. No início deste ano, Rodrigo da Silva e Antonio Prado,entre outros sete parlamentares, apresentaram um projeto que

autorizava o governo a gastar até 300.000$ com os proprie-tários de estabelecimentos agrícolas situados na província quemandassem vir colonos ou imigrantes da Europa ou dos EstadosUnidos. Além disso, o imigrante europeu ou norteamericanoque comprasse terras para trabalhos agrícolas na província ouas arrendasse por um prazo superior a dez anos receberia a im-

 portância de sua passagem para o Brasil (ALPSP,  1870, p. 200).

Logo levantouse um alarido na Assembléia: o projeto con-tinha uma grande falha, não mencionava o nacional. A argu-mentação neste sentido ficou por conta do deputado Escobar:

“Se porventura se quer favorecer ou proteger com tantoempenho os estrangeiros que vierem para nosso país, e aquicomprarem ou arrendarem terras, pergunto eu, por que nãohá uma idéia sequer, que tenda a proteger os nossos pa-trícios. ..

Scipião   — Apoiado, muito bem.Escobar   — . . .ou os nacionais que comprarem ou arren-

darem terras para lavrar? Pois, porventura, os nossos patrí-cios. ..

134

Escobar    — .. .para se dar importância unicamente aosestrangeiros?

 Ro dr igo da Si lv a   — Quem despreza?Escobar   — Eu não vejo da parte dos nobres deputados a

menor pretensão de beneficiar nossos patrícios. (...)Entendo que esta classe deve ser aproveitada, porque,

uma vez que assim o seja, produzirá maior soma de benefí-cios à lavoura, do que a classe estrangeira.

Olhese, senhores, para o estabelecimento agrícola que possui o sr. major Fidalgo, no distrito de S. José, custeadosomente com braços livres nacionais, e verseá os resultadosa que poderão chegar medidas que tendam a aproveitar nossos

 braços livres, de preferência aos estrangeiros.

Entretanto, esta idéia salutar é esquecida pelos nobresdeputados!

 Ro dr igo da Si lva  — Mas por que o nobre deputado nãoapresenta essa idéia salutar? Dessa maneira não se aumenta-vam os braços, davase aplicação aos que já existem.

Escobar    — Aumentavase, porque eles não trabalhamatualmente na lavoura.

Pacheco Jr.   — Não trabalham porque são vadios.Escobar   — Eu desejava que os nobres deputados, antes

de cuidar de atrair braços estrangeiros para nosso país, tra-

tassem de educar os que nós temos, habituandoos ao traba-lho; seria isto mais humano e até patriótico” (ALPSP,  1870, p. 438).

Observese como é tratada aqui a questão da vadiagem. Ap,contrário dos^imigrantistas, que, conforme já vimos no capítU:[o 1. relacionavam a ociosidade do_ nacional à sua supostainferioridade racial, os proponentes do aproveitamento dos ho-mens livres existentes no país, sem negar esta inferioridade — 

135

colocacia, porém, mais em termos culturais  —, procuravamintegrálos socialmente na produção. Neste caso, a via proposta pelo depu tado Escobar para que se desse esta incorporação donacional era a do incentivo ao trabalho, afastandose assim dalinha coercitiva que dominou as proposições a respeito durantetoda a década de 70 e parte da de 80.

Outra questão importante que assomou neste debate foi

na lavoura”, o que seria por demais oneroso para os cofres provinciais (ALPSP,  1870, p. 446).

Através desta argumentação podemos detectar, além daafirmativa de uma abundância de nacionais livres e pobres,alguns dos problemas enfrentados por eles, tais como: recru-tamento para a Guarda Nacional, obrigatoriedade de partici-

 pação nos corpos de jurados , falta de terras para trabalhar.

Page 70: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 70/138

Outra questão importante que assomou neste debate foiquanto à disponibilidade de mãodeobra no país. Para justi-

ficar a necessidade de imigração era comum afirmarse umaescassez de braços, além de um suposto melhor preparo doimigrante para o trabalho assalariado ou regime de colonato, Jávimos que este melhor preparo, ou as qualidades disciplinaresdo europeu ou norteamericano, ficava por conta da sua supe-rioridade racial, conforme alegavam os imigrantistas. Quanto àfalta de braços no país, tratavase sempre de uma asserçãogenérica, sem fundamentos quantitativos, no mais das vezes feitaem função de necessidades específicas regionais ou então deinteresses especificamente imigrantistas.

 Neste debate acalo rado entre o deputado Escobar e imi-grantistas, acabase até mesmo por reconhecer a abundânciada população nacional livre disponível para o trabalho ou jáefetivamente engajada na agricultura, de acordo com a falado deputado J. Alves, favorável à imigração e preocupado emmostrar por que o nacional não poderia ser auxiliado igual-mente pelo Estado:

“Sim, a idéia de favorecer a nacionais, que se apliquemà lavoura, é uma idéia boa (...). É uma idéia boa, porém o

nobre deputado sabe que os projetos, neste caso, devem sermuito amplos, porque a província tem uma população muitonumerosa. Que favor, pois, poderia a Assembléia votar? Dis- pensa da Guarda Nacional? Não pode; dispensa do recruta-mento? Não pode; dispensa do júri? Também não pode (..,).Terras devolutas não pode dar Resta, pois, o favor 

 pecuniário ( .. .) ”.

Entretanto, este favor é francamente descartado após elecalcular que existiam “mais de 100.000 homens empregados

1 3 6

p ç p j , pA.ociosidade tão freqüentemente lembrada não pode, portanto,

ser considerada como o único problema em relação ao aprovei-tamento do nacional.

A par da sua nãointernalização do dever do trabalho, ouseja, a obrigatoriedade de trabalhar para um proprietário alémdo tempo necessário para a sua própria subsistência, outrosfatores externos a ele obstaculizavam a concretização de umadisciplina do trabalho livre. De fato, o arbítrio dos interessesdominantes a sobressaltar cotidianamente as populações pareceter constituído um dos obstáculos mais sérios à integração donacional no mercado de mãodeobra livre, a julgar pelas cons-tantes reclamações neste sentido. A esse respeito, o testemunhode Escobar é muito eloqüente: “Relativamente a essa classe énecessária alguma providência, porque muitas vezes estão acos-sados pelas matas por causa do recrutamento, porque é justa-mente sobre eles que recaí o recrutamento com mais força”.

A atitude mais comum entre os imigrantistas foi ignorarestes problemas, encerrando a questão após destacar a irreme-diável vagabundagem do nacional. Vejamos como o imigrantistaJ. Alves procurou concluir o debate com Escobar: “Ou esses

indivíduos são ou não são trabalhadores; sendo trabalhadoresnão precisam de auxílio; se não são . . .” (ALPSP,  1870, p. 446).

ê   sem dúvida muito sintomático das preferências imigran-tistas este desprezo pelo nacional, apontado tão vivamente pelo deputado Escobar. Para os imigrantes julgavase necessá-rios vários tipos de auxílio, tais como passagem, instalação,concessão de terras por venda, arrendamento e até mesmo doa-ção, segundo algumas propostas. Tudo isso apesar das acusa-ções de inconstitucionalidade, muito freqüentes durante toda

1 3 7

a década de 70, por parte de deputados que recorriam às leisgerais para provar o impedimento de a província legislar autonomamente sobre questões imigratórias. É bem verdade queestas acusações encobriam muitas vezes uma má vontade paracom os projetos imigrantistas, o que se revela na junção desteargumento com outros mais concretos, como, por exemplo, aquestão das grandes verbas requeridas aos cofres provinciais

necessidades de sobrevivência e por isso mesmo conflitantecom o seu bemviver;13 em segundo, o arbítrio dos governantes(recrutamento oficial e também arregimentação particular) aentravar a própria possibilidade de disciplina de trabalho livre,

 bem como o processo de sua internal ização pelo nacional ; e, porfim, os “altos salários” exigidos pela mãodeobra interna ouo seu poder de barganha, o que decerto também significava

Page 71: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 71/138

questão das grandes verbas requeridas aos cofres provinciais(ALPSP,  1870, pp. 45864).

Do mesmo modo, a má vontade dos imigrantistas paracom o aproveitamento dos nacionais revelase na aceitaçãodestes mecanismos arbitrários, como o recrutamento, os quaisnem se cogitava de combater sob a alegação de que não erarpda alçada provincial.

Além da acusação de vadiagem, os nacionais também eramdescartados devido ao pecado de exigir “altos” salários. Con-forme argumentava o mesmo deputado J. Alves em favor daimigração estrangeira, faziase premente o aumento da ofertade braços para assim baratear o seu custo e, em conseqüência,

expandir a indústria e diversificar a produção (ALPSP,  1870, p. 447) .

Revelase aqui mais um aspecto das aspirações imigrantis-tas. Era preciso baixar os salários, e um recurso excelente paraisso, sem dúvida, seria aumentar a reserva de mãodeobra oua oferta de trabalhadores.12 Deste modo, além da concorrênciano mercado impor uma baixa nos salários, uma massa maiorde trabalho excedente nãopago, de maisvalia, poderia reali-zarse, aumentando com isso a margem dos lucros dos proprie-tários e possibilitando também a sua capitalização para outras

esferas produtivas.Conforme se viu neste debate, o grande e alardeado tema

da ociosidade do nacional não passava de uma manifestaçãpsuperficial a encobrir três questões muito profundas, enfren-tadas pelos proprietános num momento de reacomodação dasrelações de produção: em primeiro lugar, temos a nãosubmissão do nacional pobre a um “tempo burguês”, externo às suas

12. M. M. Hall. op. cit.,  enfatiza este aspecto, pp. 1656.

138

o seu poder de barganha, o que decerto também significavauma margem considerável de controle sobre o tempo de traba-

lho pelo próprio trabalhador, permitindolhe sobreviver comuns poucos dias de trabalho, conforme queixas freqüentes naépoca.

Estas questões expressavam, portanto, o próprio embateentre resistência (dos homens livres e pobres nacionais) e opres-são (por parte dos grandes proprietários e seus representantes

 polít icos), que na inte rpretação simplificada dos imigrantistasnão passava de “vagabundagem”, “incapacidade para o traba-lho” e/ou “escassez de braços”.

3. O SENTIDO RACISTA DO IMIGRANTISMO

Embora as fronteiras entre deputados imigrantistas e aque-les favoráveis à incorporação do nacional livre à grande pro-dução não fossem muito nítidas, uns e outros por vezes tro-cando de posições ou, o que foi mais freqüente, procurandoconciliálas, é preciso neste ponto tentar recuperar o traço dis-tintivo destes dois posicionamentos. Tratase do sentido racista que impregnava as proposições imigrantistas, muito diferentes

das argumentações daqueles que pretendiam incorporar exescra-vos e pobres livres no mercado de trabalho.Enquanto estes últimos tendiam a considerar as dificul-

dades em se tratar com negros e mestiços em termos de igual-dade jurídica à luz de explicações de cunho sóciocultural, ouseja, mais nos moldes do ideário liberal, os imigrantistas, por 

13. Utilizo o conceito de “tempo de trabalho burguês" tal como apareceem E. P. Thompson, “Tiempo, Disciplina de Trabajo e Capitalismo Indus-

trial", óp. cit.

1 3 9

seu turno, buscavam preferentemente as teorias raciais paraembasar a defesa de seus projetos favoráveis à imigraçãoestrangeira.

 Bem-vindos, brancos!

E id i d b li d já 1869

 Não desespero do presente, não desespero dos nossos,não vou tão longe que queira ser estrangeiro em meu próprio país, não abdico minha nacionalidade, mas noto que a des-moralização lavra em todas as camadas, e principalmenteentre os grandes da nação.

Se assim é, se o defeito está na raiz e não nas folhas, seencontramos decepções a cada momento, se não é possívelmelhorar esta raça ao menos procuremos o contato com o

Page 72: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 72/138

Este sentido racista pode ser bem avaliado já em 1869,

quando as posições imigrantistas começam a assomar com maisímpeto, debatendose intensamente a necessidade ou não detrazer norteamericanos para a província. Como uma espéciede preâmbulo necessário ao projeto de estabelecimento em ter-ras paulistas de mil famílias do sul dos Estados Unidos, odeputado Aguiar Witaker saudou a próxima chegada de trezen-tos imigrantes norteamericanos com seus “grossos capitais” aSão Paulo e aproveitou para atacar um projeto de reforma daGuarda Nacional que, em um de seus artigos, determinava oalistamento também do estrangeiro. Para ele era preciso tratar bem os imigrantes, porque somente assim este elemento de progresso e prosperidad e permaneceria aqui , misturandose auma população desmoralizada e incapaz por si só de se levan-tar e desenvolver:

“As duas raças, latina e saxônia, neste país, hão de pro-duzir alguma coisa melhor (...) quero ir gradualmente, istoé, trazendo o estrangeiro precipitadamente para a provínciade São Paulo, porque eu, primeiro que tudo, sou paulista.

Venha, pois, o estrangeiro, sr. presidente, façamos tudoquanto estiver ao nosso alcance para chamálo, e mais tarde

teremos a restauração de nossos foros”.

Embora se lembrasse de incluir os latinos, ou melhor, os brancos do país nesta represen tação do tempo futuro de pro-gresso, Witaker destacava a posição superior do estrangeiro detipo saxão, único capaz de inocular anseios e atitudes progres-sistas na população nacional:

“(. ..) enxergo toda a felicidade, todo o futuro do meu país, na vinda do estrangeiro.

140

melhorar esta raça, ao menos procuremos o contato com oestrangeiro”.

Ao que o deputado J. de Paula Sõuza complementou:

“Apoiado, uma transfusão de sangue melhor” (ALPSP, 1869, pp. 1689).

 Notese nas palavras de Witaker um certo véu defensivode quem teme passar por antinacional num período em quese procurava afirmar uma nacionalidade brasileira. Além disso, podese também atr ibu ir esta preocupação à par te saxôn ia de

seu sobrenome. Por isso, para se ressaltar o amor à pátria emais especificamente à província paulista, era preciso no planodo discurso exaltar em primeiro lugar a própria nacionalidade,

 para somente em seguida criticála e mesmo assim de form aindireta, mediante um exemplo proporcionado pela natureza.Contudo, o exemplo era bastante radical, na medida em queatribuía à nacionalidade um defeito de origem — a própriaraça (ou a raiz) — e, por isso mesmo, incontornável se con-tássemos apenas com os elementos internos para corrigila.

Este desprezo pela parte branca da nacionalidade brasileira

fica manifesto durante as discussões de seu projeto, quando ele, para defender os imigrantes norteamericanos da acusação devagabundos e desordeiros, ataca as próprias origens lusitanas:

“(...) o que foram os primeiros portugueses que vieram para o Brasil?

Foram homens degradados, foi a escória do reino por-tuguês. Entretanto, o que aconteceu? Mais tarde desenvol-veuse a população, e se não temos os verdadeiros homensdo norte da América, temos ao menos uma camada desta

mocidade que deseja o desenvolvimento do Brasil como odaquela parte do continente”.

Após convenientemente diferenciar a pequena elite brasi-leira deste aglomerado de gente inferior, muito diferente daque-les “verdadeiros homens” da América do Norte, Witaker enfa-tiza as qualidades desta “raça vigorosa”, já amplamente de-monstradas em seu “modo de trabalhar” nas culturas de algo-

ele donde vier, desde que não nos traga maus costumes, desdeque é de nação poderosa e civilizada. Desejo que venhamesses homens, para que, aliados com nossos patrícios, possadaí mais tarde nascer uma raça vigorosa e forte, que aindanão temos; desejo melhorar os costumes e a raça” (ALPSP,1869, p. 246).

Este diálogo é muito revelador dos sentimentos contradi-

Page 73: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 73/138

gdão nos municípios de Limeira, Santa Bárbara e Rio Claro.

Enquanto o lavrador brasileiro fugia ao trabalho, internandosesempre em busca de matas virgens, à medida que as terras seesterilizavam em sucessivas colheitas e queimadas, o ameri-cano, por seu turno, enfrentava bravamente as diversidades ecultivava as terras abandonadas, florescendoas novamente etrazendo com isso grandes lucros à província (ALPSP,  1869, p. 218) .

Mas a utilidade desta imigração não estaria apenas noaumento de rendas ou no provimento de braços à lavoura, massobretudo por serem os norteamericanos “os mais próprios para

se infiltrarem em nossa população”. Dotados do princípio daindividualidade, da iniciativa particular e da consciência dosseus direitos, os norteamericanos teriam a força necessária para “ retem perar os costumes” nacionais ao mistu rarse coma “raça latina”.

Diante de objeções de cunho nacionalista, como as dodeputado Oliveira Braga, Witaker respondelhe com muitaironia:

"O nobre deputado estou certo que não é filho , .. dos

indivíduos que povoam nossas matas; se não descendeu deinglês e português como eu, descendeu de português, e quemsabe se algum membro de sua família é de raça saxônia.

Oliveira Braga  — Mas tenho muito amor pátrio; nãoquero que meus costumes sejam modificados pelo estrangeiro.

Witaker   — Então o nobre deputado vai àqueles tempos primitivos de um liberalismo malentendido, que se conside-rava sempre o estrangeiro como inimigo, Eu não sou dessasidéias; entendo que o verdadeiro princípio da liberdade é aconcorrência, e por conseqüência abraço o estrangeiro, venha

142

gtórios que coexistiam nos discursos de afirmação nacional. Em

 primeiro lugar , há o sarcasmo do orador que procura associar,subrepticiamente, o interlocutor a uma ascendência consideradadesprezível, ou seja, os “indivíduos que povoam nossas matas”,o que pode ser entendido precisamente como os negros, índiose mestiços em geral, todos os nãobrancos ou aqueles que não pertenciam à já menc ionada e em par te valor izada “ raça lat i-na”. Do ataque inicial o orador passa rapidamente ao elogiocondescendente e para isso procura levantar o outro a umaascendência digna, isto é, quase à altura da sua própria genea-logia, composta de saxões e latinos.

A resposta de Oliveira Braga é de um nacionalismo nadefensiva. Ao invés de responder concretamente à argumenta-ção de cunho racial do outro, ele recorre ao sentimento abstra-to do amor à pátria e assume uma outra abstração — os cos-tumes nacionais em contraposição ao estrangeiro, aquele quenão faria parte da “nação”.

A posição de Witaker explicitase então: para ele, acimade tudo, existia a questão concreta das raças. Para que oscostumes do país, bem como a sua raça, se elevem, é precisotrazer elementos pertencentes a uma raça superior, pois somen-

te assim teríamos no futuro uma “raça vigorosa e forte”.Importa destacar aqui algumas características que pare:

cem inerentes aos discursos nacionalistas da época: a exaltaçãoda pátria em frases abstratas, generalizadoras; a depreciaçãoda pátria nos momentos em que uma argumentação racistaaponta para a inferioridade da “raça brasileira”; o caráterconsiderado irrefutável desta inferioridade, responsável por umnacionalismo defensivo, que se omite quanto à questão racial;e, por fim, a demonstração de que amar a pátria significa

143

modificar a sua raça, purificandoa mediante a transfusão desangue de raças superiores. Enfim, o problema de se forjaruma identidade nacional  confluía para a questão insistentementecolocada pelos imigrantistas — a purificação racial, o quequeria dizer não só substituição do negro pelo branco nossetores fundamentais da produção, como também a esperançade um processo de miscigenação moralizadora e jem bran quecedora.

cer a “uma raça vigorosa, trabalhadora e morigerada”. Contu-do, eles não eram os melhores, pois, a seu ver, eles “são tão

 bons talvez como os americanos no que toca ao trabalho, morar 

lidade, respeito à lei e à autoridade, menos na falta de docili-dade, vigor, iniciativa e coragem”. Por isso os alemães deve-riam ser acolhidos apenas como colonos,  isto é, cultivadores aserviço de outrem, cabendo aos norteamericanos o privilégiode chegar como imigrantes ou seja novos habitantes da pátria

Page 74: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 74/138

cedo a.

De fato, a discussão havida em torno do projeto Witakerdeixa entrever uma concordância em torno do tema da inferio-ridade racial do nacional. Em função disso, as discordânciasestiveram centradas muito mais no tipo de imigrante a serfavorecido de acordo com suas aptidões naturais. Para o depu-tado Tito Mattos, a imigração norteamericana não seria a maisconveniente para a província, pois os norteamericanos dificil-mente se sujeitavam “ao domínio de outrem”. Em seu lugar,ele sugeria a imigração alemã, raça mais propensa ao trabalhoagrícola por ser paciente, abnegada e resignada (ALPSP,  1869, p. 237 e 245).

O interessante a observar é que argumentações deste tipo pareciam ser de senso comum na época, as discussões girandosempre em torno dos prós e contras de uma raça, nunca esca- pando aos limites de uma concepção racial da história e dasdiversas sociedades em questão. A defesa dos norteamericanoscontra tais objeções é feita exatamente neste terreno por outrodeputado, Bento de Paula Souza:

“Sr. presidente, eu protesto em nome da província e doimpério contra essa repugnância de se receber americanos,

 porque são faltos de docilidade! ( .. .) Homens valentes, deenergia, que sabem respeitar as autoridades, quando a auto-ridade é a lei, porque sabem se opor a ela, quando transgride seus deveres. Bastava somente esta qualidade para eudizer: ‘São homens que nos convêm, pois é preciso inocular emnossas veias sangue novo, porque o nosso já está aguado’ ”.

Quanto aos alemães, este deputado não os descartava detodo, reconhecendo neles qualidades varonis, tais como perten

144

de chegar como imigrantes,  ou seja, novos habitantes da pátria,ou da província.

“Nós queremos os americanos como^ paulistas novos, co-mo paulistas adotivos, homens prestimosos, que escolham a província como sua nova pátr ia, e queremos os alemães comotrabalhadores, como homens ^produtivos, e que venham aquihabitar. Tanto uns como outros, os receberemos com o mes-mo entusiasmo”.

i

Quanto aos nacionais, responsáveis por esse “nosso” san-gue “aguado”, nenhum entusiasmo lhes era reservado. Paula

Souza não escondia sua aversão a eles, afirmando de fo rma , / ,taxativa: “A raça que tem feito o fundamen to da província de \ .S. Paulo é deficiente pelo lado do cinismo, da moralidade, da Ldignidade”.

Também os chineses são repudiados como elementos atra-sados e carregados de vícios, inerentes às raças inferiores:

“Não são, por exemplo, africanos novos que se quertrazer, não são eoolies, chineses, raça já abatida e velha que

 pode inocular vícios de uma civilização estragada, ao con-trário, é uma nação vigorosa que tem uma civilização sua,uma política toda do país, e que era um acerto se dotássemos”(ALPSP,  1869, pp. 2478).

Ê muito significativo desta mentalidade racista predomi-nante que mesmo o deputado que durante as discussões acusouos demais de almejar uma substituição dos costumes, nacionais pelos estrangeiro s tenha terminado por subscrever o adendoaprovado juntamente com o projeto. Segundo este, o governo

145

ficava autorizado a pagar a passagem de colonos de qualquer  nacionalidade  importados pelos fazendeiros, os quais a reembol-sariam à província num prazo de quatro anos. Não chega por-tanto a travarse um debate acirrado em torno da questão

esboçada — trabalhador nacional ou trabalhador estrangeiro.Há quando muito algumas acusações de nacionalistas ofendidos,mas nada tão grave que impeça ao final o consenso em tomo

O perigo amarelo

A repulsa a qualquer outra imigração que não a de mem- bros de nacionalidades brancas, já colocada com muita ênfasenestes debates iniciais, aparece ainda mais fortemente duranteas discussões em torno de um projeto de colonização chinesa.Em 1879, o deputado Ulhoa Cintra apresentou projeto deter-minando a aplicação de um fundo de 250:000$000 para ai t d ã d il iáti Sã P l t id d E t d

Page 75: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 75/138

da necessidade da imigração como elemento de prosperidade

 para a província .

Quaisquer imigrantes seriam bemvindos, desde que “agri-cultores, trabalhadores e moralizados”, o que não dizia respeitoaos chineses, aos africanos e nem aos nacionais, descendentes deraças nãoviris e pouco inclinadas ao trabalho. Tratavase emsuma de abrir o país ao progresso e para isso era urgente favo-recer a chegada e estabelecimento de seus agentes, os estran-geiros pertencentes às raças vigorosas.

“À exceção dos chins, da raça malaia e dos africanos,

entendo que todos os que vierem para o país contribuirão paraa nova aurora de sua felicidade” (ALPSP,  1869, p. 2 e 5).

Assim o autor do projeto interpretou a expressão “qual-quer nacionalidade” incluída no texto da lei, abrindo com issoespaço para as preferências raciais dos outros deputados, guar-dados porém os limites das raças tidas como superiores. Ao final,a exaltação de seu discurso nos proporciona uma boa idéia doclima de expectativa em relação ao imigrante branco que osimigrantistas começavam a instaurar na Assembléia:

“Eu quisera ver, sr. presidente, o sibilo agudo da loco-motiva, acordando o caboclo madraço para que não concebaa possibilidade de dormir no meio dessa civilização que cons-titui a partilha da personalidade humana! (muito bem)

Eu quisera, sr. presidente, que não se derrubassem essasflorestas gigantescas para em seu lugar se arrastar uma raçaraquítica e afeminada, mas sim para aí erguerse um povo vi-goroso de organismo, e forte de energia” (ALPSP,  1869, p. 3).

146

introdução de mil asiáticos em São Paulo, trazidos dos Estados

Unidos ou da própria Ásia por agentes particulares dos fazen-deiros, os quais seriam reembolsados pela província (ALPSP,1879, p. 247).

 No ano seguinte, os discursos inflamados pró e contraasiáticos sacudiram a Assembléia, dando ensejo a que os imi-grantistas expusessem suas preferências raciais e direcionassemo debate decisivamente no sentido da substituição do negro pelo imigrante branco. Por isso, apesar de a imigração asiáticanão ter se concretizado na província, interessa estudar emdetalhe tanto as propostas como os debates a respeito, porqueem nenhum momento explicitouse com tanta nitidez o con-fronto das diversas concepções raciais imigrantistas,14

Havia, é certo, um consenso a respeito do melhor traba-lhador em termos raciais, variando apenas as preferências,conforme vimos acima, em torno do norteamericano ou doeuropeu. Mas em fins da década de 70 e início da de 80,constatadas as dificuldades em conseguilos, alguns imigrantis-tas defendem a necessidade de preencher aquele momento con-turbado com uma espécie de imigrante transitório, ou seja,aquele que com seu trabalho permitiria uma transição pacíficado regime de trabalho escravo para o livre, criando condições

14. Robert E. Conrad, “The Planter Class and The Debate over ChineseImmigration to Brazil — 18501893”, in International Migration Review, ano 9, n.* 1, primavera de 1975, pp. 4155, observou que, apesar de os

 brasi leiro s terem uma rep utação de tole rân cia racia l, tan to os defen sorescomo os oponentes da imigração chinesa apelavam freqüentemente paraargumentos racistas a fim de fazer valer suas posições (p. 48). Informatambém que em 1880 um grupo de fazendeiros designou um agente paracontratar 3 mil chineses nos Estados Unidos.

147

 prop ícias para a chegada daqueles tão valor izados agentes do progresso.

O parecer emitido pela comissão de Fazenda, favorável atécerto ponto ao projeto, mas ao mesmo tempo contrário quantoaos gastos para a sua realização, evidencia já as dificuldadesa serem enfrentadas por uma proposta que polariza opiniões bastante conflitantes:

250:000|000 previstos pelo projeto para contratar mil asiá-ticos, previase uma quantia máxima de 120:000$000, sem seespecificar o número de imigrantes (ALPSP,  1880, pp. 1956).

Mesmo com todos estes cuidados de quem propõe umamedida sem facilitála em demasia, querendo com isso amansaradversários certeiros, o projeto assim reformulado provocou fe-rozes acusações. Tais ataques, é claro, diziam respeito à suposta

Page 76: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 76/138

“É de incontestável vantagem a introdução de trabalha-dores asiáticos no Brasil, são eles os únicos trabalhadores quede pronto podem com vantagens substituir os escravos, quetendem a desaparecer, e salvar o país da crise que está imi-nente em conseqüência dos efeitos da lei de 28 de setembro.

Os chins tão impropriamente confundidos com cfs cooliessão trabalhadores sóbrios, laboriosos, pacientes; a sua intro-dução na lavoura do Brasil será, talvez, o único meio de pre- parar o seu futuro, vencendo as dificuldades do presente.

A comissão de Fazenda apesar de reconhecer grandevantagem na introdução dos trabalhadores asiáticos (...) não

aceita todavia o projeto, tal qual está redigido, porque o con-sidera oneroso aos cofres públicos e de difícil realização, porexigir o projeto contrato direto com a América do Norteou Ásia (.,

Paradoxalmente, tais dificuldades de se contratar direta-mente com outros países não seriam sentidas alguns poucosanos depois, quando a província tomou a dianteira do país eestabeleceu uma corrente massiva de imigrantes diretamente daItália para São Pauío. Entretanto, no caso dos chineses reivin

dicavase o intermédio do governo geral, que no momento nego-ciava com as autoridades da China. Ao governo provincialcaberia apenas estabelecer uma hospedaria ou “depósito deemigrantes” na capital, onde os proprietários interessados os buscariam, indenizando a província por todas as despesas feitascom a sua aquisição e alojamento. Enquanto não fossem con-tratados, e já a título de indenização dos gastos com hospedagem, os chineses prestariam serviços nas obras públicas dacapital. Por último, o parecer diminuía consideravelmente averba a ser dispensada com esta imigração: ao invés dos

148

inferioridade racial dos “chins”, conforme eram comumente

designados.Uma das opiniões mais iradas foi a do deputado Camilo

de Andrade. Ele referiuse à cozinha chinesa, desfiando cheiode repugnância seus comestíveis, tais como gatos, ratos, sapos,aranhas, larvas e lagartas, além de ovos com pintinhos pornascer, a fim de simplesmente provar a sua assertiva: “O chimé poltrão, venal, traiçoeiro, vingativo e amante de Baco”. E,ainda por cima, são “polígamos” e “agricultores primitivos”(ALPSP,  1880, pp. 4789).

Outro deputado, Oliveira Braga, preocupavase com o cru-

zamento racial. Vejamos esta discussão com dois defensores do projeto, Paula Souza e Costa Jr:

Paulo Souza   — (. .. ) dentro em pouco o país será inun-dado, foi a palavra de que se serviu o nobre deputado, poressa raça de cara quadrada, que só nos pode fazer mal. Arazão não procede.

Sabem os nobres deputados que o trabalhador chinêsvem contratado (...) não se fixa (...) morto ou vivo vai para o seu país ( .. .) de modo que não há receio de inun-dação.

Oliveira Braga  — Podem também casar com nossas filhas(riso),

Paulo Souza   — Naturalmente não casarão.Oliveira Braga  — Naturalmente casarão.Costa Jr.  — Naturalmente por quê? É da índole do chim

não casarse.Oliveira Braga  — Pelo contrár io, eu vejo a propagação da

espécie (ALPSP,  1880, pp. 4689).

fá se vê por este breve debate que as opiniões não varia-vam muito quanto às características inferiores da ‘ raça chi-

1 4 9

nesa. Apenas defendiase a sua vinda como elemento transitó-rio, deixandose claro que o “chim” não se fixaria no país. Na verdade, a recusa em estabilizarse no local de imigraçãoe de misturarse com a população do lugar faria parte da pró- pria índole dele, conforme alegavam seus defensores, de modoa apaziguar os ânimos dos deputados contrários:

Costa Jr — Nós sr presidente não queremos o chim para

sada, apegada às suas tradições e adversa à civilização ocidental,incapaz, portanto, de se estabelecer por toda a vida em outro

 país que não o seu. Outra garantia racia l estar ia na sua pró - pria tendência para a autodestruição sempre que a vida o des-gostasse.

Contudo, o denominador comum dessas garantias, a gran-de assertiva que os proponentes do projeto encontraram paratentar persuadir os contrários foi a de que o chinês era sim

Page 77: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 77/138

Costa Jr. — Nós, sr. presidente, não queremos o chim para

conviver conosco, para aliarse às nossas famílias, para envol-verse em nossa vida pública (...); o chim é refratário à civi-lização do ocidente; o chim, cioso de suas tradições, é egoís-ta, não se envolve nem na nossa vida política, nem nanossa vida privada. Queremos o chim unicamente como instru-mento transitório de trabalho; e, como instrumento de traba-lho, será o chim conveniente ao Brasil? Eis a questão”(ALPSP,  1880, p. 481).

Outro deputado, Inglês de Souza, apressouse a respondera esta pergunta, garantindo que, mesmo que eles não se dessem

 bem como “inst rumento de trabalho ” na província, nad a have-ria a temer, pois a sua tendência não era mendigar para sobre-viver como era comum entre os europeus, mas sim suicidarse(■sic). Ao que lhe respondeu, cheio de sarcasmo, o deputadoOliveira Braga: “Depois de cem anos, teremos um milhão dechins sepultados no Brasil”. Sem se intimidar, mais uma vez,Costa Jr., taxativo, veio em defesa do primeiro orador: “Antesisso do que um milhão de mendigos nas ruas do Rio de Ja-neiro” (ALPSP,  1880, pp. 2856).

Deixando de lado o grotesco destes debates que se desen-rolavam normalmente na Assembléia, devemos observar o modocomo as teorias raciais eram adaptadas ao sabor dos diversosinteresses em jogo. Assim, o chinês era ruim e ponto final paraos adversários do projeto. Porém, o chinês era ruim, m as .. . para os seus defensores. Estes esforçavamse por dem onstra rque, apesar de todos os defeitos inerentes à raça chinesa, estetipo de imigrante oferecia garantias de constituirse apenas emelemento transitório de trabalho. A fundamentação racial paraesta tese estaria na sua própria índole inferior — egoísta, atra-

150

tentar persuadir os contrários foi a de que o chinês era, sim,

de raça inferior, porém não tão inferior quanto à do africano.Respondendo às alegações de que recorrer ao chinês seria

o mesmo que aproveitarse da força de trabalho do negro livre,o deputado inglês de Souza esforçouse por provar a superio-ridade racial do primeiro, bem como a incapacidade do segundo para o trabalho não imediatamente coercitivo. Para isso tra ta-vase de demonstrar as grandezas da China em contraposiçãoà miséria da África, atestandose assim a capacidade mental doschineses em detrimento dos africanos.

“Um país que, muito antes que se desenvolvesse a civili-zação do ocidente, havia criado uma civilização sua, emborahoje inferior à nossa, mas em todo o caso prodigiosa paraaqueles tempos, um país que inventou a imprensa antes daAlemanha, e que inventou a pólvora, um país que criouindústrias (. ..) não pode de forma alguma ser comparado aohotentote bruto, ao zulu ou a outro qualquer povo africano.Um país nestas condições, um país independente, que temgoverno seu, que tem instituições, não pode produzir homensiguais na inteligência às hordas selvagens da África, que, im-

 portados para o Brasil, vieram constituir a fonte de nossaescravatura! (. . .) Não se pode, senhores, comparar este espí-rito progressivo, èmbora lento, com a apatia do escravo, aquem é indiferente o dia de amanhã (...) pasma que se venhadizer nesta casa que o chim é tão inteligente como o escravo,como o negro que erra nos areais da África, sem vida social,sem instituições de liberdade, sem mesmo governo regular-mente constituído!

Sr. presidente, pareceme que, sem grave erro histórico,se poderá afirmar que a raça africana, que o nosso escravo,é tão inteligente como o chim, tão iniciador como ele”(ALPSP,  1880, p. 285).

151

Observese nesta fala o intercâmbio dos termos escravo  enegro  ou escravo  e africano.  Cada um deles pode perfeitamen-te preencher o lugar dos outros na frase, revelandose com issoa concepção corrente de que o negro havia se tornado escravodo branco justamente dadas as suas características raciais infe-riores, tais como a sua falta de inteligência e de iniciativa,apatia e selvageria, e, em decorrência, incapacidade de cons-truir uma sociedade própria, “instituições de liberdade”, uma

tação, da segurança, e de preço de trabalho” não lhes acenassecom “um futuro correspondente às suas aspirações”.

Assim, enquanto não se forjassem as condições requeridas por imigrantes vistos como superiores, propunhase como solu-ção temporária a vinda de trabalhadores supostamente baratose dóceis que desenvolveriam a produção, rebaixando com issonão só o preço da força de trabalho, como também dos gêne-ros alimentícios. O chinês, exatamente por sua “índole dócil e

Page 78: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 78/138

civilização, enfim.Esta concepção racista que atribuía ao negro a culpa daescravidão moderna, cuja origem remetiase aos próprios afri-canos, proporcionou os fundamentos científicos às propostasde imigrantistas de diversos matizes, como, por exemplo, adeste deputado que atestava com tanta segurança a incapaci-dade mental dos negros.

Uma última questão comparativa do negro com o chinêsteve de ser enfrentada pelos deputados favoráveis à importa-ção de chineses: a moralidade. E desta vez eles não fizeram

caso em negar a suposta imoralidade dos chineses, reconhecen-do abertamente que negros e chineses coincidiam plenamenteneste apoio. Paula Souza desvencilhouse da questão nos se-guintes termos:

“Faltalhes moralidade, também se disse. Não faço da mo-ralidade tanta questão (...). Vivemos no meio de escravos,e o escravo não se recomenda muito por sua moralidade.Para que alegar a questão da moralidade? Deixemos estaquestão aos moralistas e encaremola como cidadãos” (ALPSP,1880, p. 468).

Agir como cidadãos para estes deputados era constatar eatender a uma “necessidade pública”, isto é, substituir os ne-gros por uma raça que lhes era um pouco superior, enquantofaltassem condições ao país para receber europeus. Justamenteem função da sua superioridade racial, acreditavase que estesúltimos não emigrariam para o Brasil, pois não aceitariam tra-

 balha r nos mesmos moldes que os chineses e nem muito menosviveriam num país em que “as condições do clima, da alimen-

152

, p

frugal”, seria o único trabalhador capaz de operar tais milagreseconômicos, abrindo caminho para a imigração européia tãoansiada. Calculavase até mesmo um prazo para a duraçãodeste tempo transitório de trabalho com base na força de tra- balho chinesa: vinte ou trinta anos no máximo, o que queriadizer, até a extinção da escravatura por causas naturais (morte)e alforrias. Somente então os chineses poderiam ser dispensa-dos e em seu lugar viriam os europeus, estando a província já plename nte preparada para o trabalho livre e o advento de umtempo definitivo de progresso (ALPSP,  1880, pp. 2645, 2804

e 465).

4. O GRANDE AVANÇO IMIGRANTISTA

Simultaneamente à radicalização das medidas antitráfico,fortaleciase a corrente dos deputados imigrantistas na Assem-

 bléia pau lis ta, isto a despe ito das fracas possibil idades de imi:gração para a província ainda em fins da década de 1870.Contudo, a generalização dos crimes de escravos cõnfraseussenhores e feitores e, em seguida, das revoltas coletivas nas

fazendas deixa entrever o desenrolar de um processo de vio-lência acelerada e disseminada ao qual os políticos não pode-riam tardar em dar resposta sob pena de que as questões sociaisatingissem um ponto perigoso de descontrole institucional.

É possível que, justamente em função da radicalizaçãodestas lutas entre senhores e escravos, a propaganda imigran-tista relativa à superioridade do imigrante branco tenha encon-trado mais receptividade tanto entre fazendeiros como entre os

 próprios polít icos, conseguindo vencer as últim as resis tências

153

/ ' «

t <M> ^ 'twt p0rventura subsistentes entre os proponentes da incorporaçãoCUr* /tvvv..  I   j os negros e mestiços ao mercado de trabalho livre.

iM/wjitMZ   Após a acalorada discussão em torno da proposta deimigração asiática, defendida em 1880 como uma espécie desaída de emergência, os deputados voltaramse resolutamente

 para aquele que as modernas teorias científicas raciais apon-tavam como o trabalhador, por excelência, disciplinado, respon-sável, enérgico, inteligente, enfim, racional.

Assim o ano legislativo de 1881 primou pelas discussões

sentados pela grande e temida população de negros de pro-víncia.

“Considerando que, depois de promulgada a lei de 25de janeiro (...), a imigração para esta província ascendeu auma cifra considerável, especialmente no segundo semestredo ano passado (.. .)•

Considerando que desse fato (...) vai se fazendo demodo notável a transição do trabalho escravo para o traba-

Page 79: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 79/138

Assim, o ano legislativo de 1881 primou pelas discussões

em torno de projetos de apoio à imigração européia, além doimportante incentivo indireto representado pela votação de umalto imposto de 2 contos de réis sobre os escravos traficados

 para a província . Conforme vimos anterio rmente, os defenso-res de projetos deste tipo esperavam abrir um maior espaço

 para a imigração, uma vez que os preços impeditivos dos cat i-vos obrigariam os fazendeiros a pensar com mais atenção na

 possibilidade de con tratar imigrantes.

 A defesa da barreira à onda negra

A consolidação de uma postura eminentemente imigran-tista entre os políticos de São Paulo pode ser observada sobre-tudo a partir de 1882, quando dois projetos determinando aisenção do pagamento das matrículas de 2 contos de réis sobreescravos trazidos para a província por seus senhores suscitaramuma cerrada reação da parte da maioria dos parlamentares, te-merosos de que a imigração fosse com isso prejudicada.35

O parecer da comissão de Constituição e Justiça expres-sou esta desaprovação geral e ao mesmo tempo apontou paraa direção imigrantista que, doravante, as sucessivas legislaturasassumiriam, como forma de contrabalançar os perigos repre

15. Os proje tos n.° 3, de Mar tinho Prado Jr., e n.° 5. de Costa Jr., isen-tavam de pagamento as matrículas de todos os escravos que acompa-nhassem senhores em mudança para a província, desde que tivessemadquirido terras antes da publicação da lei em questão (Lei n.° 1, de25 de janeiro de 1881).

154

modo notável a transição do trabalho escravo para o traba

lho livre (,..).Considerando que a lei de 25 de janeiro foi votada pela

Assembléia em virtude de representações, e com inteira ade-são dos agricultores, que na sua decretação enxergavam omeio mais eficaz de minorar os efeitos da propaganda aboli-cionista (,..).

Considerando, finalmente, que, como é sabido, avulta onúmero de agricultores que pedem colonos, tendo estes, nomês de janeiro (...), entrado em número superior a mil,como um contraste a essa onda negra que, em igual mês de1881, precipitouse na província para escapar ao imposto da

lei de 25 de janeiro.É de parecer que nenhum dos aludidos projetos será ado-

tado” (ALPSP,  1882, p. 120).

 No conjunto temos a mesma argumen tação das legis laturasanteriores, centrada sobre a necessidade de barrar a entrada na província daquela temível “onda neg ra” traf icada do norte,diminuindo com isso os perigos suscitados pela “propagandaabolicionista”. Mas agora esta argumentação reaparece numa posição de força, com base no maior sucesso que a imigração

vinha registrando nos últimos meses e que se atribuía à próprialei de 25 de janeiro de 1881.

Embora o crescimento da imigração não possa ser expli-cado apenas em função de uma medida antitrafico de escravos,o fato é que as discussões que se travaram em torno desta leideram ensejo a que os discursos imigrantistas se colocassemmais enfaticamente, alertando para o risco de não se substituirem tempo o negro pelo branco. Por outro lado, o desenvolvi-mento mais acelerado desta substituição, ou desta “transição

155

do trabalho escravo para o trabalho livre”, fortaleceu os pro* ponentes da imigração e impulsionou a corrente de deputadosimigrantistas, dando novo alento às suas propostas e aumentan-do o número de seus adeptos dentro e fora da Assembléia.

Este fortalecimento da postura imigrantista podç^ser capi-tado não só pela sucessão de projetos próimigraçãoaprovadosneste período, como também pela veemência de seus. discursoscontra qualquer possibilidade de aumentar a população negra

do se extinguisse a escravidão, pois, conforme enfatizava RafaelCorrea, a ociosidade inevitável dos negros livres resultaria em“quilombos armados cá e lá, agredindo as povoações” e “tra-zendo a perturbação social por toda a parte” (ALPSP,  1882, pp. 4056).

 Do escravo traiçoeiro ao escravo fiel

Page 80: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 80/138

eni^São JLaulo. Não se tratava do escravo, o ente abstrato quesobressai muitas vezes da historiografia ao se explicar sua su- posta recusa ao trabalho livre por forç a de uma herança fune s-ta da escravidão, bem como a decorrente necessidade de imi-grantes. Era, sim, o negro, elemento considerado de raça inferior

 porque descendente de africanos, viciado, imora l, incapaz parao trabalho livre, criminoso em potencial, inimigo da civilizaçãoe do progresso, que os discursos imigrantistas repudiavam aber-tamente, em uma época que as teorias raciais ainda estavamlonge de cair em desuso.

Vários deputados fizeram bateria contra qualquer possi- bil idade de ent rada de mais negros em São Paulo via tráficode escravos, enfatizando que isto seria muito prejudicial aodesenvolvimento já em curso da imigração européia.

Quando os discursos não centravam fogo nos defeitos dosnegros — como o deputado Rafael Correa, para quem era

 preciso “arred ar de nós esta peste, que vem aumenta r a pesteque já aqui existe” (ALPSP,  1882, p. 405) — , eles se esforça-vam por demonstrar o que não sentiria o brioso e ambiciosotrabalhador europeu ao se nivelar com o escravo. O deputado

Paiva Baracho atribuía a má vontade da Alemanha e da Itália para com o Brasil devido à identif icação deste “com a índole,caráter e costumes dos negros, nossos escravos!” (ALPSP,  1882,

 p. 413). Já o deputado Domingos Jaguaribe enfatizava o perigorepresentado pelos escravos. Ao invés de aumentar a prosperi-dade da província, o crescimento do número de cativos vindosdo Norte redundaria em mais “assassinatos” e “crimes” contraos senhores (ALPSP,  1882, p. 456). E, por fim, o ingresso demais escravos significaria mais problemas para a província quan-

156

Como nota destoante em meio a este coro imigrantista,Martinho Prado Jr., autor deste projeto de isenções à Lei n.° 1de 1881, esforçou;se _por_dem onstrar que o crescimento donúmero de negros não seria prejudicial à província.

Também ele imigrantista, na verdade principal portavozdos interesses do oeste novo, que a partir de 1878 batalhara por um alto imposto sobre escravos traf icados para São Paulo,este deputado foi particularmente criticado pelo que seus colegasconsideravam uma incoerência em relação às suas posturas

anteriores. Rafael Correa apressouse em recordar o debatetravado com Martim Francisco Jr. em 1878, quando MartinhoPrado arrematou sua defesa do imposto com a seguinte afirma-ção: “Enquanto houver escravidão não é possível a colonização”

(ALPSP,  1882, p. 406).

 Na realidade , Martinho Pra do não aba ndonara sua pos turaimigrantista, como davam a entender as críticas a ele. Apenasformulara esta proposta em atendimento aos interesses dos pro-

 prie tários fluminenses e sobretudo mineiros que imigravam parao oeste novo de São Paulo, em busca de novos e férteis terre-

nos para suas plantações de café. Segundo ele, a partir dePinhal e passando por São João da Boa Vista, Casa Branca,Franca, São Simão, Ribeirão Preto, Cajuru, Batatais, sempre anoroeste da província, expandiase esta imigração de “bonscidadãos”, que desbravavam as “nossas matas” e expulsavamo índio “para lugares mais remotos”. Ele calculava que nestaregião não existissem talvez nem 20% de paulistas sobre o totalda população, “quase exclusivamente mineira” (ALPSP,  1882,

 p. 585).

157

É interessante confrontar esta postura maleável de um no-tório deputado imigrantista, representante máximo das ricas eférteis regiões recémintegradas ao complexo cafeeiro da pro-víncia, com a tese corrente na historiografia de que o oeste pau lista abrigava os proprie tários “progressistas” ou “de van-guarda”, seja por uma questão de mentalidade racionai e em- presar ial, e por isso mais favorável ao trabalho livre , seja por-que as condições estruturais do oeste novo (terras férteis e

sentantes políticos da grande propriedade em relação a ummomento em que os negros não teriam mais os freios usuais.

Assim, a decretação de medidas antitráfico. combinadascom outras de cuabo .imigrantista, não pode ser compreendidasimplesmente em função de ,uma suposta mentalidade avançada,mais desprendida da escravidão, ou então pelo fato de que, em

* • • '*■   -- ■- ■ ...............  1I - --- 1 , ,_- ssx--r 

uma determinada região ainda não totalmente suprida de braçosescravos, seus representantes tenham se voltado por opção própria polí tica para posturas imigrantistas Foi sim uma opção

Page 81: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 81/138

vazias de mãodeobra) possibilitaram a tomada de uma posição polí tica favorável à imigração.16

 No caso específico dos debates par lam entares a respeitodo imposto sobre os escravos traficados para a província, vimosque em 1878, 1879 e, depois, em 1881 os deputados — alar-mados com o perigo representado pela resistência dos negrosescravos — uniramse em defesa de uma barreira ao cresci-mento desta classe na província. Eles se preocupavam tantocom o presente como com o futuro, quando a escravidão fosseextinta, deixando uma multidão de negros livres em São Paulo,

fora do controle disciplinar dos grandes proprietários. Notese que esta antevisão atemorizadora do per íodo pós

abolicionista teve um grande peso na decretação de barreirasao tráfico, bem como nas formulações imigrantistas, conformedeixam entrever os reclamos contra os crimes de escravos contraseus senhores, que estariam crescendo “assustadoramente”. Defato, a nomeação destes conflitos ocupou um considerável espa-ço na argumentação contrária ao tráfico e, fossem exageros ou

não, tais argumentos exprimiam um grande medo dos repre

16. Por volta de 1877, Martinho Prado Jr. percorreu em lombo de burroos sertões inexplorados do noroeste paulista. Ao yoltar da viagem de-clarou entusiasmado: “Não há na província de São Paulo municípioalgum cuja importância possa se aproximar à de Ribeirão Preto, Cam-

 pin as, Limeira , Ara ras, Desc alva do, Casa Bran ca etc., tud o é peque no ,raquítico, insignificante, diante desse incomparável colosso”. Comprou emseguida terras em Cascavel (Ribeirão Preto), próximo das serras doGuarapará, formando a fazenda do mesmo nome em 1885. Cf.  In Me- moriam, op. cit.,  p. 17.

158

 pria polí tica para posturas imigrantistas. Foi sim uma opção polí tica e nãocasual — conforme enfa tiza Paula Beiguelman — , porém, a meu ver, tal ati tude não deve ser remetida a umadeterminação econômica, estrutural exclusivamente, como se amentalidade decorresse pronta e acabada de uma determinadaestrutura produtiva.

Ao acompanhar passo a passo os debates parlamentaresdestes anos 70 e 80, vimos como o imigrantismo, bem como aformulação correspondente de seu ideário racista, emerge talqual uma arma ou instrumento político manejado contra osnegros, adversários temidos do cotidiano passado, presente efuturo, e cuja resistência disseminada, e por isso mesmo difícilde ser coibida, objetivavase de alguma forma neutralizar, subs-tituindoos por uma massa de imigrantes brancos. Quero comisso sugerir que os deputados provinciais de São Paulo foramsendo impulsionados para uma postura imigrant ista e. mais '/abertamente racista à medida que se avolumavam a indisciplina )e rebeldia dos escravos com a recrudescência de ódios seculares. ;

Entretanto, no caso desta proposta de Martinho Prado Jr.,tendente a favorecer proprietários forasteiros que não queriam

se desfazer de seus escravos, vemos como interesses específicos Vde classe podem sobreporse aos conflitos entre classes, agindo A

em determinados momentos como se estes tivessem deixadosubitamente de existir. Em 1882, ao invés de defender umamedida que apenas viera reforçar e engrandecer os efeitos daoutra lei de 1878 — votada por sua iniciativa, com base

 justamente no perigo representado pelo aum ento da populaçãoescrava na província —, este expoente do imigrantismo propu-nha a permissão para o ingresso de mais negros.

159

É que agora ele precisava representar os interesses dos pro prie tários de fora da provínc ia que queriam emigrar pa ra ooeste novo paulista e já tinham empatado seu capital em escra-vos. Para estes não havia a possibilidade tão simples de esta-

 belecer relações de produção com base em outros trab alhadore sque não os seus próprios escravos, como seria o caso dos fazen-deiros já estabelecidos naquela região e que, na falta de maisescravos, estariam se voltando para os imigrantes europeus.

“ É preciso considerarmos a escravidão pftma eU cjtUftcatualmente entre nós: é preciso considerarmos as condiçõesde relação social e familiar que há entre o escravo.e o senhor,

 para avaliarse quanta barbaridade vai no ato de separálos,dandolhes novo senhor (...).

(O escravo) É parte da família brasileira, é o nosso com- panheiro e amigo. Tem o riso nos lábios junto ao berço denossos filhos, como lágrimas no túmulo de nossos paisí Par-ticipa das nossas alegrias como das nossas tristezas! (muito 

Page 82: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 82/138

p g p

Ao empreender a defesa destes novos interesses, MartinhoPrado tentou demonstrar a coerência de sua já notória posturaimigrantista em relação a esta proposta de permissão de entradade mais negros na província. Por isso ele procurou relativizaros argumentos inflamados de outros imigrantistas que, na ver-dade, nada mais faziam que repetir aqueles já utilizados emlegislaturas passadas, inclusive por ele próprio.

Para espanto de seus colegas, ele denunciou a lei de 25de janeiro de 1881 como uma medida tomada “às pressas”,

fruto do medo dos deputados diante do incremento do quedenominou “onda abolicionista” na província. Embora não che-gasse a questionar a validade de uma tal lei, ele lembrava a

necessidade de não se trancar as portas da província aos valiosos proprie tários que queriam emigrar par a o oeste novo paulista,

mas que não o fariam sem a isenção do imposto sobre seusescravos. Além disso, ele contrariava as opiniões daqueles que

interpretavam o crescimento da imigração como uma decorrên-

cia desta lei. Assim como a votação do imposto sobre osescravos traficados, também o aumento da imigração deviase à

“propaganda abolicionista”. Mas é particularmente ilustratiyadesta sua tomada de posição a idéia de que nada havia a temerqa relação senhorescravo. Ao contrário de anos passados, quando se tratava de ressaltar o ódio existente entre senhor e escravo,

agora enfatizavase a amizade, o afeto, enfim, as relações para-disíacas que caracterizariam a escravidão no Brasil. Após des-crever a afeição que tornava escravos e senhores mineiros inse-

 paráveis, o deputado logo generaliza este sentimento para todo

o país:

160

bem!)O escravo já não é o ente destituído de sentimentos no-

 bres, considerado incapaz de aperfeiçoamento, uma raça mor-ta para a civilização. (...) O escravo no Brasil tem concre-tizados todos os sentimentos de amizade e abnegação, que ofazem e o tornam parte de nossas famílias” (ALPSP,  1882, pp. 57987).

Temos, portanto, duas formulações imigrantistas a respeito .da relação escravosenhor. A primeira surgia sob o impulso deconflitos entre escravos e senhores e por isso ressaltava o ódioe a impossibilidade de um relacionamento futuro harmonioso.Enfatizamse, pois, as características raciais inferiores dos des-cendentes de africanos como atestado de sua incapacidade parao trabalho livre, bem como da necessidade de substituílos porimigrantes brancos.

Já esta segunda refazia a primeira sob o impulso de rei-vindicações econômicas e específicas de um setor da classe dos proprie tários de escravos. Tratavase então de provar que osescravos não podiam ser separados de seus senhores, ressaltando

se a amizade existente entre eles e tecendose a imagem donegro muito próxima à de um fiel cão de estimação, emboracom capacidade para superar sua inferioridade mental. Emdecorrência teríamos desde já um relacionamento harmonioso,com o escravo participando do progresso alcançado pelo fazen-deiro, o que possibilitaria inclusive a compra futura de sua

alforria.A imagem de um país imerso em ódios sócioraciais era

assim substituída num curto espaço de tempo por outra, radical-mente distjinta, a de um  paraíso racial.  Esta última — conforme

S > ( t s * < K '    )0U tt o A o " 1 161

 já foi assinalado no primeiro capítu lo — começa a cons tar dosdiscursos imigrantistas e abolicionistas, em vista de necessidades propagandíst icas (a imagem do Brasil no exterior) e de controlesocial (a luta restrita ao quadro parlamentar). Talvez a consta-tação desta mudança de imagens operada por um dos maiseminentes e bemsucedidos imigrantistas, como o foi MartinhoPrado Jr., em uma época de crescente otimismo com relação àimigração e quando se alcançava efetivamente o sucesso políti-

víncia branca, capacitada, conseqüentemente, para um franco progresso e desenvolvimento.

 Basta de negros!

Em 1884, logo no início dos trabalhos legislativos, Marti j  f  nho Prado Jr. propôs um auxílio que em breve se tornaria f "

Page 83: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 83/138

co, possa contribuir para elucidar o porquê da permanênciadesta representação harmoniosa das relações entre senhores eescravos até bem recentemente na historiografia brasileira.

5. O IMIGRANTISMO CONSOLIDADO

Os primeiros anos da década de 1880 podem ser vistoscomo uma sucessão de medidas imigrantistas, já plenamentedefinidas em relação à raça a ser favorecida. Em todas elasfrisavase a necessidade de oferecer vantagens específicas, bemao gosto das aspirações que se atribuía aos imigrantes europeus,como, por exemplo, facilidades em adquirir pequenas proprie-dades rurais ou em se dedicar a atividades artesanais urbanas.

Fossem estas aspirações reais ou não dos europeus queimigravam, ou, o que é mais provável, uma atribuição ideal doquerer destes membros da “raça superior” — formulada pelosimigrantistas justamente em razão de suas concepções raciais

 — , o fato é que neste período quase não entravam mais em

cogitação incentivos à imigração de outras nacionalidades quenão fossem da Europa.

r  Mesmo o tema do aproveitamento do nacional, que durantetodo o século ocupou tanto espaço de debates parlamentares e

 preencheu tantos livros, foi deixado de. lado e praticam entecaiu no esquecimento. Agora quase todas as mentes e coraçõesvoltavamse para à  imigração européia, dando vazão aos sonhosde trocar o negro pelo branco, de transformar a “raça brasilei

^ v' ‘ > ra”; e, no caso de São Paulo, de valorizar as tão decantadasqualidades “viris” dos paulistas, tomandoa no futuro uma pro

^ ' 162\

decisivo para o sucesso da imigração em massa na província. cO projeto autorizava o governo provincial a gastar 400 contos por ano com o pagamento integral das passagens de imigrantese também com o alojamento inicial destes por oito dias. Sublinbavase, porém — e isto era muito importante em termos deincentivo da imigração para São Paulo — , que este auxílio sóvaleria para aqueles que viessem de seus países diretamente para a província, juntamente com suas famílias.

Logo a comissão de Fazenda estudou o projeto e tratou deaparar as arestas, propondo um substitutivo que explicitava otipo de imigrante a ser auxiliado — o europeu, além de conce-der o auxílio de passagens e hospedagem inicial de oito diasunicamente às famílias que se destinassem à lavoura (ALPSP, 1884, p. 202).

As discussões em torno do projeto substitutivo revelaramalgumas dissensões importantes no seio da família Prado —considerada a grande empreendedora da imigração em massaem São Paulo —, embora não chegassem a comprometer poli-ticamente as intenções imigrantistas. Martinho Prado discor-

dava da especificação referente à procedência da Europa, exigi-da para os imigrantes a serem favorecidos, alegando que comisso ficariam de fora o grande número de europeus que sedirigiam para o Uruguai e Argentina e que porventura quises-sem vir para São Paulo. Além disso, era contrário à obrigato-riedade do imigrante dirigirse às atividades rurais, enfatizandoque a política de imigração subsidiada não deveria privilegiarapenas o campo, mas também as cidades.

Em sua opinião, o progresso certamente trazido às áreasurbanas reverteria igualmente para a agricultura. Isto porque a

163

chegada de “artistas” e “operários habilitados” provocaria oêxodo daqueles “artistas inferiores” que povoavam as cidades e

que se veriam obrigados a procurar “outros meios de vida”,como, por exemplo, as “diversas ocupações que oferece a lavou-

ra” (ALPSP,  1884, p. 226).

Embora não esclarecesse quem eram estes “artistas infe-

riores”, muito provavelmente ele se referia aos nacionais livres

e escravos de ganho e de aluguel que tradicionalmente empre I 

teriam vedados praticamente todos os acessos a uma vida autô-noma tanto em termos urbanos como rurais.17

Outra discordância de peso entre os Prados era quanto à ^sustentação do auxílio. E aqui MartinhojPrado Jr. curiosamenteexpunha um ponto de vista que contrariava frontaímente umadas teses mais importantes do ideário imigrantista. Segundo

-• .-V-..•.*. . . . . . „ ... . . — . _. „ -w.. .. ... -------  - - -------------------------------------V

ele, era preciso decretar um imposto sobre os escravos e cana-lizálos para a imigração, pois sem isso ele não surtiria efeito,

Page 84: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 84/138

gavamse em atividades artesanais, comerciais e serviços varia-

dos nas cidades e vilas.

A idéia de promover um êxodo  de negros citadinos parao campo aparece explicitamente no curso destes mesmos debates

..... . r 

na voz de outro deputado. Contudo, ao invés de uma saídaespontânea  — conforme queria Martinho Prado Jr. —, DelfinoCintra pretendia forçála mediante a decretação de “um tributo

 progressivo sobre os escravos das cidades, vilas e freguesias” .A conseqüência deste imposto, segundo ele, seria a retirada

 para o campo de todos os escravos, destinando*os exclusiva-mente ao serviço nas grandes propriedades. Com isso ficariamlivres as áreas urbanas e a imigração fluiria sem mais osobstáculos que ele atribuía à concorrência com o trabalho es-cravo. E, por fim, a ocupação das cidades e vilas por trabalha-dores europeus traria a moralidade da qual os escravos eramincapazes (ALPSP,  1884, pp. 5013).

Para garantir a afluência desta imigração “espontânea”,o deputado defendia que o produto líquido destes impostos

fosse aplicado ao serviço de imigração, ao invés do Fundo deEmancipação, como postulavam alguns. Era preciso, sobretudo,garantií a vinda de imigrantes, para somente mais tarde chegarà emancipação, quando os negros já estivessem conveniente-mente internados no campo, isto é, sob o controle dos grandes proprietários e sem possibilidades de subsistência autônoma nasáreas urbanas. As terras por sua vez já estariam sendo distribuí-

das aos imigrantes europeus interessados em tomarse pequenos proprietários e com isso os exescravos e seus descendentes

164

 já que o trabalho escravo era “mais remunerador” do que o. 4 ^trabalha ü vre^  f 

“{...) o escravo representando um valor de dois contos, nostempos de bons preços de café, nesta província, produzia porano um conto, sem mais despesa que 50$000. Capital repro-dutivo deste modo e só uma vez empregado, ao passo que ocolono reproduzia 100, absorvia pelo menos 50” (ALPSP,1884, p. 232).

Partindo de um importante imigrantista como MartinhoPrado Jr., esta tese é sem dúvida surpreendente, pois é comumatualmente justificarse a necessidade de imigração para o Brasilcom base em uma pretensa superioridade do trabalho livre sobreo escravo, tanto em termos de qualidade como de remuneraçãodo capital. Na verdade esta era uma tese de senso comum e n tr e i %<■*''■os imigrantistas — estamos agora a ver uma exceção importantej

/

><■

17. Em 1880 o deputado Paula Souza apresentou projeto com intuitosemelhante: além de propor internar “meninos desvalidos" em núcleos

agrícolas, ele defendia o fechamento do Instituto de Educandos Artíficessob a alegação de que o ensino de ofícios urbanos aos nacionais provo-cava uma desagradável concorrência com os imigrantes. “Assim pareceume que convinha não abrir contra os estrangeiros esta concorrência deoficiais do mesmo ofício (...) afastando das cidades os nacionais, apontamolhes um novo meio de vida muito mais vantajoso do que a músicaou os ofícios de alfaiate e sapateiro. Eles se dedicarão à lavoura commais vantagem para si e para o país, ao mesmo tempo o estrangeiro quenos procurar encontrará mais largura para desenvolver sua indústria. Eis

 po r que o pro jeto pref ere que seja o nacional tira do das grandes cidad es te_empregado na lavoura...” (ALPSP,  1880, p. 185).

165

 — , e muito provavelmente por isso foi incorporada pela histo-

riografia. Não se trata obviamente de fazer cálculos para ten tar

 provar uma destas duas teses, já que o nível de remuneraçãodo capital depende, entre outras variáveis, da maior ou menorcapacidade de resistência localizada dos trabalhadores, o queé absolutamente circunstancia l. Porém esta, .segunda, .tese..de

ionstra com nitidez que a imigração européia para o Brasil

Ao final, o projeto foi aprovado com algumas ligeiras modificaçoes, mantendose porem as suas linhas essenciais, istoé, a concessão de auxilio apenas aos imigrantes europeus — incluindose os das ilhas Canárias e Açores — que juntamentecom suas famílias se destinassem às atividades agrícolas, quercomo colonos, quer como pequenos proprietários. Quanto àsustentação destas despesas com a imigração, isto ficaria porconta de toda a população, proprietária ou não, abrindose

Page 85: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 85/138

Í ão envolveu apenas preocupações com a obtenção de maiores,lucros, mas também intenções de formar uma determinada popuíacão ou. de. .substituir a que exist ia por outra consideradaracialmente superior..

Por isso era preciso desvalorizar   a mercadoria escravo me-diante a decretação de altos impostos e ao mesmo tempo fazer

° com que estes subsidiassem a imigração, o que gradualmenteforçaria os proprietários mais arraigadamente escravistas a re-correrem ao braço livre europeu. Ao mesmo tempo, o incentivoà imigração também nas cidades e vilas provocaria um êxodo

dos negros e mestiços, livres ou não, de áreas urbanas para ointerior, onde eles seriam empregados pelos grandes proprietá-rios rurais. Com isso ficaria completo o plano de substituiçãodo negro pelo branco, sobretudo nas cidades, consideradas comoo espaço privilegiado do progresso.

O deputado Paula Souza foi muito explícito quanto a esteintuito dos imigrantistas, que já indiquei anteriormente como osentido racista da imigração. Ao elogiar o projeto substitutivo,Paula Souza entusiasmouse com o basta  que estava sendo dadoaos negros na província:

“Este projeto é uma espécie de tenção de  paulista  (.. .)•Discutese a questão de falta de braços, o paulista enten-

deu que o negro já era inoportuno, não podia mais ser tole-rado na província, ao lado dos nossos foros de povo civili-zado, das nossas condições de adiantamento moral e cristão,fechou sua porta, e disse — não entra mais negro nenhum.

Quisse abrir algumas frestas por meio de exceções; masa assembléia levantouse e disse — Não, a lei é absoluta, nãoentra mais negro” {ALPSP,  1884, p. 220).

166

créditos especiais. Este projeto, portanto, tornouse lei em 9 demarço de 1884 (Lei n.° 28), evidenciando, pela rapidez comque foi debatido, aprovado e decretado — menos de três meses

 — , a própria consolidação política dos imigrantistas em SãoPaulo.

O último debate

 Neste período de vitória do imigrantismo certamente muito

 pouco espaço restava para outros tipos de propostas relativasà questão da mãodeobra. Por isso a Assembléia de 1885 assis-tiu ao último grande debate entre os dois temas que ocuparamdurante tanto tempo os proponentes do trabalho livre: aprovei-tamento dos negros, mestiços livres, exescravos e índios e/ouimigração estrangeira. Não se deu porém propriamente umconflito entre estes posicionamentos, pois o primeiro temaapenas tentou inserirse no segundo como mais um complemen-to. Ao final, provavelmente em vista da má vontade em discuti

lo, ele saiu de cena sem maiores explicações, deixando o espaço

aberto tãosomente para as considerações de cunho imigrantista. Não foi nada simples a tare fa a que se propôs o deputado

foão Bueno ao apresentar seu projeto de extensão do auxílioconcedido aos imigrantes europeus, pela lei votada no ano ante-rior, também aos brasileiros desejosos de trabalhar nos núcleoscoloniais. E não foi fácil justamente porque ele pretendia esta- belecer uma igualdade de tratamento entre trabalhadores euro- peus e nacionais , o que naquelas altu ras de franco sucesso político da imigração para a província , dificilmente seria de

167

interesse dos imigrantistas. O texto do projeto era muito explí-cito quanto a este sentido igualitário:

“Art. único. A lei n.° 28, de 9 de março de 1884, seráexecutada com a seguinte alteração:

§ 1.° Com as mesmas vantagens decretadas em favordos imigrantes que vierem a esta província, à exceção dasconcedidas a título de passagem, serão concedidos lotes deterras nos núcleos coloniais criados pela lei a brasileiros casa-

 Nestes debates podemos discernir os dois posicionamentos relativos à questão da mãodeobra livre e que durante boa

 parte do século XIX suscitaram inúmeras e variadas propostas.  Neste caso, o jm mei ro pretende apro veita r o nacional .pobre e Nlivre, incorporandoo ao mercado de trabalho mediante a concessâü de vantagens, como a aquisição facilitada de pequenoslotes de terra com alguns recursos essenciais para os trabalhosiniciais. Não combate, porém, a imigração estrangeira — o que

Page 86: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 86/138

dos ou com filhos ou que tiverem em sua companhia mãeou irmãos menores, que aí quiserem se estabelecer por faltade estabelecimento próprio” (ALPSP,  1885, p. 254).

Interrompido várias vezes por apartes ora irados, ora sar-cásticos, o deputado tentou inutilmente justificar seu projeto:

“João Bueno  — Sr. presidente, não acho razão para que,tratando nós de aumentar a população laboriosa da província,os seus braços de trabalho, lancemos ao desprezo os nossos

 patrícios.Visconde de Pinhal  — Eles é que nos lançam ao despre-

zo, não querem trabalhar. João Bueno  — Há muitas famílias brasileiras que vivem à

míngua, que lutam com dificuldade, que não têm um palmo deterra onde possam exercer sua atividade; por que não have-mos de aproveitálas, animálas, dandolhes meios de trabalho?

 A. Queiroz  — Eles é que não querem trabalho. João Bueno  — (Após explicar os termos do seu projeto)  

(...) É (...) um meio que oferecemos para chamar ao trabalhoessa gente que os nobres deputados dizem que foge dele.

 A. Queiroz  — O que falta a essa gente é educação parao trabalho.

 João Bueno  — Pois isto é também um meio de educálosno trabalho.

Sr. presidente, vejo de antemão que a minha emendaestá reprovada pelos nobres deputados (não apoiados); (...)os nobres deputados parece que querem substituir no todo anossa população pela estrangeira, desprezar, fazer como quedesaparecer a nacional.

 A. Queiroz  — Queremos o cruzamento. João Bueno  — Pois então aceite a minha emenda, que

favorece o cruzamento” (Risadas) (ALPSP,  1885, pp. 778).

168

neste momento seria decerto uma temeridade — , pelo contrário,reafirma a sua necessidade ao mesmo tempo que procura evitara marginalização do nacional em relação aos favores oficiais.Já o segundo, essencialmente imigrantista. omitese quanto à ,incorporação do nacional ao mercado de trabalho livre^ cuidan-do apenas de in cen tiva ria imigração através., da concessão devantagens tãosomente aos europeus. O máximo que se conce-dia em termos do destino dos homens nacionais livres e pobresera esperar que no futuro eles se regenerassem de seus defeitos por meio de sua absorção pela população de imigrantes, viamiscigenação ou simplesmente exemplo moralizador.

Um último apelo foi feito pelo deputado loão Bueno nosentido da incorporação do nacional e para isso tentou relativizar o epíteto de vagabundo comumente atribuído a ele pelosimigrantistas:

“Vadios ou ociosos, como trabalhadores, sr. presidente,temos em todos os lugares como em todos os países.

Ora, se assim é, sr. presidente, por que havemos de des- prezar os nossos patrícios para favorecer só e unicamente osestrangeiros, por que não dispensarmos também a devida pro-

teção àqueles que abriram as nossas matas, àqueles que pre- pararam o nosso território para poder receber o trabalho do braço estrangeiro?!

 Não há justiça, tratando de favorecer os nossos traba-lhadores, esquecermonos daqueles que fizeram as nossas for-tunas.

*

Assim, ofereço o projeto à consideração dos nobresdeputados...

Assim se fazendo, sr. presidente, tiraremos dois resulta-dos, igualaremos os estrangeiros aos nossos patrícios na pro

169

teção que lhes damos, dando também meios de trabalho àque-les a quem falta a terra, e iremos disputar a emulação ao tra-

 ba lh o àq ue les qu e a ele são po uc o in cl in ad os ” (ALPSP,   1885,

 p. 253).

Esta última proposição era sem dúvida algo distinta doque propunham os imigrantistas. Para estes tratavase de con-ceder uma série de vantagens aos imigrantes a fim de estimulálos a vir concorrer com os nacionais. A concorrência, porém,

i d i l i i li ã i

livre, a “lei de imigração”, ou a Lei n.° 28 de 1884, tinha oobjetivo de “promover o desenvolvimento da nossa agricultura,o seu aperfeiçoamento por meio de trabalhadores mais inteli-gentes e adiantados. . .” (ALPSP,  1885, p. 14 e 154).

Comparandose as duas posições assumidas por este mesmo?deputado, podemos perceber o quanto eram fluidos os limites/entre um posicionamento e outro, e sobretudo porque aquelereferente à incorporação do nacional ao mercado de trabalho

li fi ã d di d à did d i i ã '

Page 87: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 87/138

seria desigual, pois os negros e mestiços livres não contariamcom quaisquer das facilidades destinadas aos brancos.

Contrário a este plano de substituição aparentemente es- pontânea de negros por brancos, ou de nacionais por europeus,João Bueno formulou um projeto que visava nivelar as possi-

 bilidades de concorrência entre eles, mediante a concessão devantagens iguais para todos. Assim, de acordo com esta suainiciativa isolada, a substituição de trabalhadores por outrosficaria por conta da concorrência estabelecida pelos mais“inclinados” ao trabalho sobre aqueles que lhe fossem menos

 propensos. A concorrência se estabe lecer ia entre os mais e menosaptos ao trabalho, mais ao estilo do ideário liberal, não seconcretizando em confronto entre brancos e negros em ummercado de trabalho prévia e desigualmente repartido peloEstado.

Embora defendesse a igualdade de tratamento para nacio-nais e europeus, João Bueno não resistia às concepções comunsde sua época que atribuíam mais inteligência aos europeus. Porisso ele não hesitou em assumir um a' radical postura imigran-tista quando se combateu um projeto daquele mesmo ano querevogava os impostos sobre os escravos das cidades e da lavou-ra. As Leis n.° 25 e 26 haviam sido aprovadas em 1884 poriniciativa de Martinho Prado Jr. e estabeleciam estes impostosa fim de canalizálos para os serviços de imigração (ALPSP,

1885, p. 12).Contrapondose a imigrantistas como Antonio Prado, que

argumentava contra tais impostos por julgar suficientes os ‘'re-cursos ordinários da receita”, Bueno enfatizou que, além deauxiliar os lavradores a substituir o braço escravo pelo braço

170

livre ficou tão desacreditado à medida que a grande imigração'européia se desenvolvia. Como continuar defendendo a igual-dade de incentivos para todos os trabalhadores, fossem elesnegros ou brancos, nacionais ou estrangeiros, e ao mesmo temporesistir à euforia de ver chegar aquela multidão de seres “maisinteligentes”, aqueles “superiores” imigrantes brancos?18

 Italianos! Afi nal , a solução

É neste período que a imagem do imigrante italiano começa

a destacarse da genérica representação do europeu. A possi- bilidade de concretizar uma imigração em massa da Itál iaatendia às aspirações da maioria dos imigrantistas paulistasquanto à procedência da Europa e à vinda de famílias de áreasrurais, e por isso os discursos parlamentares voltamse simul-taneamente para a valorização deste tipo específico de traba-lhador.

Mas, apesar do apoio parlamentar, os imigrantes italianosnão se estabeleceram sem dificuldades e — ao que indica aseguinte denúncia de Martinho Prado Jr. — não foram tão bem

recebidos como os imigrantistas o desejavam:

"Há muito tempo que no Ribeirão Preto a força públicadeclarou guerra caprichosa a toda a população estrangeira;

18. O projeto de João Bueno, concedendo iguais vantagens aos brasileiros,não chegou a entrar em discussões regulamentares naquele ano e porisso não foi posto em votação; não há notícia dele ou de qualquer outrosemelhante nos anos seguintes.

171

e a primeira vítima da odiosidade das autoridades foi a co-

lônia italiana.

Considerandose ali um crime um italiano estabelecersecom negócio, chegandose a considerar um atentado que um

estrangeiro fosse ali estabelecerse com negócio em concorrên-cia com os nacionais.

Com efeito foram dadas ordens terminantes aos agentes

da força pública para que, quando encontrassem italianos narua, os fossem acutilando. A força pública assim o fez, e este

fato reproduziu se muitas vezes com grande escândalo e

os imigrantistas de São Paulo apresentam e aprovam em menosde um mês o projeto mais substancial em termos de apoio eincentivo à imigração européia. O projeto, encabeçado porAntonio Prado, apresentado em 13 de janeiro e aprovado em1 de fevereiro, contava praticamente com o consenso da As-sembléia, pois nada menos que vinte e nove deputados o assi-navam. Ele autorizava o presidente da província a contratarcom a Sociedade Promotora da Imigração a introdução de 100

il i i t d dê i éi i i

Page 88: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 88/138

fato reproduziuse muitas vezes, com grande escândalo, eainda mais, com grande injustiça para com aquela colôniaque se constitui de pessoal muito distinto, de homens muito

morigerados e trabalhadores, e que só têm o crime de seremestrangeiros” (ALPSP,  1885, p. 72).

Levandose em conta a possibilidade de algum exagero norelato de um entusiasta da imigração italiana, de qualquermodo esta denúncia revela a existência de tendências xenófobas,suscitadas decerto pela concorrência que os estrangeiros, e no

caso os italianos, representavam aos nacionais em suas ativi-dades profissionais, e a que os integrantes da Força Pública nãoficayairuinsensíveis. Ao que parece, ocorreram inclusive váriosconflitos violentos à medida que a imigração em massa desen-volviase.19

Mas a política de incentivos continuados à imigração euro- péia conseguiu se sobrepor vitor iosamente a quaisquer confli tose malquerenças deste tipo, abrindo espaço para a vinda e esta- belecimento de milhares de italianos e impulsionando a imigra-ção em massa para a província. Ê assim que no início de 1888

19. A respeito das rivalidades entre im igrantes e nacionais, há referênciasem P. Beiguelman,  A Integ ração do Po vo . . op. cit.,  e também umcapítulo específico sobre o assunto em Sheldon Leslie Maram, “ConflitosÉtnicos. Atitudes dos Imigrantes. Repressão", in Anarquistas, Imigrantes e o Movimento Operário Brasileiro, 1890-1920, Rio de laneiro, Paz eTerra, 1979. Sidney Chalhoub, Trabalho, Lar e Botequim   — O Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Êpoque,   São Paulo, Brasiliense, 1986, encontrou vários processos criminais envolvendo conflitosétnicos.

mil imigrantes de procedência européia, açoriana e canarina,os quais deveriam vir em família, com passagens pagas poraquela mesma entidade, fundada dois anos antes.

Durante as discussões do projeto de imigração deuse aúltima oportunidade neste período de garantir o direito deemigrar para a província a povos de outras naciona lidadesque não a européia. O deputado Almeida Nogueira propôs a

supressão da procedência do texto do projeto, porque queriadeixar as portas abertas para a imigração asiática, bem como 'outras regiões do mundo que porventura viessem a oferecer

trabalhadores. Ele justificava a sua proposta por considerar oeuropeu um “braço caro” e também porque temia que estestrabalhadores estabelecessem aqui uma “resistência" aos patrões

com base naqueles temíveis “princípios socialistas” que agita-vam a Europa (ALPSP,  1888, pp. 323).

Embora ele não se colocasse contra a imigração européiae tãosomente pretendesse que o aumento da concorrência nomercado de trabalho tornasse menos pretensiosas as exigênciasdos europeus, é certo que a imagem . já quase consensual do y  p y  \ 

europeu disciplinado, ordeiro e bom trabalhador sofria uma( ' vconsiderável dilapidação. E isto, é claro, não era nada conve^^ ]^niente àquele momento de grande euforia imigrantista. O de putado D. Jaguaribe Filho, imigrantista ferrenho e tambémabolicionista, apressouse em endireitar a imagem chamuscadado imigrante europeu, afirmando não consentir que, em meio a

todo o progresso obtido pelos parlamentares, “uma nuvem(. ..) viesse embaciar de algum modo o brilho” que a província

vinha adquirindo.

173

“Sr. presidente, devemos concorrer para que a imigraçãoeuropéia continue a afluir na província sem o menor obstá-culo, para que ela continue a atuar em todos os seus recantoscom os benéficos influxos que ela tem sabido transmitir; demodo que o entusiasmo crescente possa traduzirse em reali-dade; na emancipação do escravo possa encontrar sucedâneo,não congênere, como é o chim, mas sucedâneo como aqueles

que compreendendo bem seus deveres nobilitem esta proí i ” (ALPSP 1888 33 4)

O “NÃO QUERO” DOS ESCRAVOS

III

Page 89: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 89/138

que, compreendendo bem seus deveres, nobilitem esta pro-víncia” (ALPSP,  1888, pp. 334).

Obviamente, em vista da tendência imigrantista majoritária3róeuropeu que estava então em curso, a proposta do deputadooi rejeitada.

É provável que esta inclinação a só favorecer imigranteseconhecidamente associados à ordem, moralidade e progresso,;onforme atestavam as teorias científicas raciais da época, tenha

>e acirrado ainda mais à medida que os negros radicalizavamma resistência ao cativeiro. Durante toda a década de 1870 esobretudo a partir do início dos anos 80, um movimentomassivo e espraiado de fugas, assassinatos, revoltas coletivas nasrazendas e manifestações violentas nas cidades e vilas sobressaltou os proprietários e, como vimos, seus ecos não poderiamileixar de ressoar na Assembléia de seus representantes.

Os estudos sobre o término da escravidão no Brasil costu-mam enfatizar os seus últimos anos, basicamente de 1885 a 1888,

quando os escravos já empreendiam revoltas de maior vulto,fugiam em massa das fazendas e sobretudo contavam com umfranco apoio popular e uma propaganda favorável formulada por uma elite de abolicionistas urbanos. Tudo se passa, enfim,

como se os abolicionistas tivessem dado o impulso inicial e diri-gido os escravos nestas rebeliões e fugas, numa ação racionali-zada e decidida a priori,  ao mesmo tempo humanitária e progres-sista.

Quanto aos escravos, temse a impressão de que são vítimas passivas subitamente acordadas e tiradas do isolamento das fa-zendas pelos abolicionistas; ou, então — nos estudos mais recen-tes que reconhecem a resistência secular dos negros —, a idéia

que se passa é a de que o negro, apesar de toda a sua rebeldia,estava impossibilitado de conferir um sentido político às suasações, dadas as próprias condições objetivas de um modo de

 produção que os reduziria irrem ediavelmente à alienação ou à

incapacidade de assumir por si sós uma consciência de classe.São duas idéias correlatas que, no entanto, se cruzam ao final,numa conclusão muito similar que confere aos abolicionistasos louros da vitória e, aos escravos, cumprimentos parciais pela

175

sua capacidade de acompanhar o branco redentor e lutar a seulado, sob sua direção.

A primeira destas idéias tem origem no próprio ideário abolicionista. Ninguém melhor do que Joaquim Nabuco explicouo papel dos abolicionistas como representantes autoproclamadosde uma raça amordaçada pelo cativeiro e incapacitada de fazerseus reclamos. Outros, como o'abolicionistas do jornal  A Re - dempção,  publicado em São Paulo nos anos de 1887 e 1888,

denunciavam o descaso e a passividade dos negros e mestiçosli l ã à l t l b li ã

 para moverse em termos decisórios. Ao invés de possibilidades,a história seria algo fechado em determinações objetivas*, cujatotalidade possuiria um sentido ou destinação, conduzindo aum “fim da história”, segundo expressão de Cornelius Castoriadis.1

A adoção destes enunciados como modelo por vários pes-quisadores que nos últimos anos têm procurado mostrar a lutade classes relacionada à abolição compromete um tal objetivo

logo de início Isto porque este modelo permite a formulação dasi t i

Page 90: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 90/138

denunciavam o descaso e a passividade dos negros e mestiçoslivres em relação à luta pela abolição.Obviamente tal idéia tem suas raízes na própria distância

social existente entre uma massa de negros escravos e livres euma diminuta elite de brancos intelectualizados e por vezesmestiços que já haviam conseguido ascender socialmente e dela part icipavam. Devido a este distanciam ento material e moral,escapava a esta elite a percepção do cotidiano dos negros, dassuas relações sociais e culturais; e o que hoje se reconhece comoformas de resistência, naquela época, mesmo entre as mentes

mais humanitárias, passava por desordem, desenfreamento, pai-xões soltas e criminosas,

A segunda destas idéias, e a que mais interessa, uma vezque influi grandemente nos rumos da historiografia contempo-rânea, tem origem no ideário marxista. Preocupados em apre-sentar o movimento da história à luz da luta de classes, estesestudos perdemse, porém, nos meandros de uma postura racionalista e reducionista, que se remete a todo instante à estruturaeconômica em busca de uma explicação última para os eventoshistóricos. De acordo com ela, as classes sociais são determi-

nadas por esta estrutura ou pelas condições objetivas de umdado momento histórico, enquanto as suas consciências expres-sam esta mesma estrutura ou o estágio de desenvolvimento dasforças produtivas, dependendo da posição econômica ocupada

 por cada uma delas.Deste modo, movida por esta racionalidade inscrita no real,

a história se resumiria a uma sucessão de estágios de desen-volvimento econômicosocial, com suas respectivas superestruturas políticas, restando à luta de classes bem pouco espaço

176

logo de início. Isto porque este modelo permite a formulação dasseguintes premissas:

/. O regime escravista começa a rui r devido às suas pró- prias contradições objetivas ou devido à sua irracionalidadeeconômica, que estaria entravando o desenvolvimento das forças produtivas ou o progresso cap italis ta urbano industrial.

2. Determinadas facções da classe dominante, bem comoda nascente classe média urbana, perceberam estas contradições por esta rem inseridas em determ inadas relações de produção decunho modernizante e obstaculizadas em seu desenvolvimento;

 por isso mesmo lançaramse à luta con tra o regime escravis ta,arrastando atrás de si os escravos.

J. Aos escravos coube um papel subordinado nas lutas pela abol ição , pois, além do seu isolamento nas fazendas, elesnão tinham condições de superar a alienação e alcançar por sisós uma consciência de classe, presos que estavam à irraciona-lidade de um regime retrógrado já condenado historicamente.

4. O mesmo se pode dizer dos trabalhadores e homenslivres em geral, agregados à terra dos senhores de escravos e

1. C. Cas toriadis,  A Ins titu ição Imaginária da Sociedad e, op. cit.,  pp. 689.De uma perspectiva marxista, E. P. Thompson critica o reducionismoa que se viram submetidos os escritos de Marx. Ver o seu livro  A  Miséria da Teoria ou Um Planetário de Erros   — uma crítica ao pensa-mento de Althusser, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, trad. Waltensir Dutra.A redução das formulações de Marx a “modelos" em termos de histo-riografia brasileira é criticada por Maria Sylvia de Carvalho Francoem “Organização Social do Trabalho no Período Colonial", in  P. S.Pinheiro, op. cit..  pp. 14392.

177

 por isso também presos nas malhas desse regime, mediante rela-ções servis de dependência pessoal.

5. O protesto negro tomado isoladamente era ineficaz, pois, além de seus atos individuais ou em grupos serem de puranegação do cativeiro, incapazes por si sós de se transformaremnuma afirmação de classe — ou seja, de conferirem um sentido polít ico à sua resistência — , havia ainda o aspecto da grandeorganização do aparato repressivo da classe dominante.

A conclusão a que levam estas premissas metodológicas é

a de que a luta de classes entre senhores e escravos não foi

se impor no cenário políticoinstitucional, os vencedores dahistória. Assim, como os abolicionistas passaram a atuar maisenfaticamente na década de 1880, combinando a atuação parla-mentar e a propaganda impressa e oral com movimentados co-mícios e manifestações de rua, esta época costuma ser eleita para a abertura das pesquisas.

Há ainda um outro aspecto a ser ressaltado em relação à postu ra metodológica adotada nestes estudos relativos à abolição.

Só se reconhece importância às lutas que aparecem de formaexplícita isto é aquelas cujas razões podem ser remetidas às

Page 91: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 91/138

a de que a luta de classes entre senhores e escravos não foideterminante ao longo do processo de extinção do escravismo,embora a sua importância seja muito ressaltada por estes pesqui-sadores. Dáse porém maior importância aos rachas na própriaclasse dominante e à ação modernizadora da classe média, justa-mente por reconhecerse nestes agentes os únicos capazes decaptarem em suas consciências as contradições do regime escra-vista e de postularem mudanças de ordem econômica, políticae social. As diferenças de tratamento teórico a respeito do papeldestes agentes ficam apenas por conta da ênfase em seu aspecto

considerado reformista, por alguns, ou revolucionário, poroutros.2

Por isso mesmo, por privilegiarem a ação da classe domi-nante e/ou da classe média, estes estudos acabam por assumir afala destes agentes, ficando assim o objetivo de resgatar a açãodos dominados, no caso, os escravos, obscurecido e mesmo semsentido, uma vez que toda a pesquisa — não importa quão ricaseja — confluirá para demonstrar o seu papel auxiliar na his-tória. A própria periodização escolhida para estes estudos pren-dese às razões expostas pelas falas daqueles que conseguiram

2. Abstenhome de citar todos os trabalhos que partem destas premissas;mas o leitor interessado encontrará toda uma argumentação neste sentidonos trabalhos da chamada Escola de São Paulo, que tem entre seusexpoentes Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e OctávioIanni, Mais recentemente, um outro autor abordou especificamente aação política das classes médias: Décio Saes,  A Formação do Estado  

 Burguês no Brasil: 1888-Í891,  Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.

178

Só se reconhece importância às lutas que aparecem de formaexplícita, isto é, aquelas cujas razões podem ser remetidas às premissas adotadas e que atestam uma racional idade do desen-volvimento histórico. Já as pequenas lutas disseminadas pelocotidiano, não organizadas num todo coerente e dotado deideário próprio, e quase sempre reprimidas e derrotadas, sãodeixadas de lado. Segundo Castoriadis, estas “lutas implícitas”aparecem como elementos indefinidos que não se encaixam na pressuposição da racional idade já dada no real e não passam petas insti tuições deste mesmo real, sendo em decorrênc ia rele-gadas como algo sem maior significado. Por isso mesmo, nãomerecem espaço em pesquisas e são minimizadas ou mesmo•silenciadas pela produção historiográfica.3

Entretanto, antes que o movimento histórico se petrifique<rm historiografia , as lutas implícitas — presentes no cotidiano

5. Antonio Barros de Castro assinalou esta questão em “A EconomiaPolítica, o Capitalismo e a Escravidão" (em especial o item “Sobre a

 pres ença históric a dos escravos : sugestões e indagaçõ es”), in  José Robertodo Amaral Lapa (Org.),  Mo dos de Produção e Real idad e Brasileira,  Pe

trópolis, Vozes, 1980, pp. 67107. A interferência ativa dos escravos nocotidiano das relações escravistas e o modo como eles, tanto quanto ossenhores, moldavam estas relações são demonstrados por Silvia HunoldLara, Campos da Violência — Estudo sobre a Relação Senhor-Escravo na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-Í808,   tese de doutoramento, Depar-tamento de História, FFLCHUSP, 1986, a ser publicada pela Ed. Paz eTerra. Emprego o conceito de “lutas implícitas” de acordo com C. Casloriadis, op. cit.,  e em especial o seu artigo “Dúvidas na História dasLutas Operárias", in Oitenta,  vol. 1, Porto Alegre, LP&M, novembrodezembro de 1979. pp. 10734.

179

dos que vivem (e fazem) a história — figuram entre as primeiras preocupações daqueles que, por força de sua próp ria posiçãosocial, devem coibilas, além de postular medidas diretas eindiretas para evitar que elas continuem a se repetir, pondo emrisco a sobrevivência dos interesses dominantes. Conforme vimosno capítulo II, os ecos das revoltas de escravos nas fazendas evilas ressoam no recinto da Assembléia Legislativa Provincialde São Paulo, sobretudo em meados dos anos 70, impulsionando

 por um lado a votação de drást icas medidas antitráfico e, port ó i f ã d f t t d líti

1870, grande parte das atenções das autoridades policiais con-vergia para a questão dos crimes diários de escravos contrasenhores, administradores, feitores e respectivas famílias.

É possível que as relações sempre conflituosas entre se-nhores e escravos estivessem agora a vivenciar um novo momento histórico, com o espaço da produção tornandose palco

 privilegiado das revoltas indiv iduais e colet ivas dos negros escra-vizados. Isto quer dizer que a resistência escrava estaria se

concretizando cada vez mais no próprio lugar de trabalho (noi i i d di d h ) i i d

Page 92: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 92/138

p ç , poutro, a própria formação de uma forte corrente de políticosimigrantistas. Ao mesmo tempo, aqueles que tinham de tratardireta ou indiretamente com a questão da criminalidade escrava

 — os chefes de polícia e presidentes de província — não poucasvezes deixaram entrever um misto de medo, impotência e incer-teza quanto ao futuro próximo da província, muito embora naqualidade de altas autoridades devessem ostentar a imagem decircunspecção e controle competente da situação social.

1. CRIMES DE ESCRAVOS

 Na virada das décadas de 1860 e 1870, os relatórios doschefes de polícia dirigidos aos presidentes de província expres-sam uma crescente preocupação com as lutas dos escravos. Indi-vidualmente ou em pequenos grupos, de forma premeditada ounão, eles se revoltavam e matavam, e ao invés de simplesmentefugir, como era costumeiro — internandose em quilombos nasmatas ou mesmo em agrupamentos de leprosos à  beira das estra-

das —, começam a se apresenta r espontaneamente à polícia,como se julgassem de seu direito matar quem os oprimia,

Pouco a pouco o tema da criminalidade crescente dos ne-gros nas fazendas de toda a província paulista vai se impondonestes relatórios, até que mesmo as questões que despertavammuitas preocupações na década de 1860, como os ataques deíndios e as revoltas de imigrantes portugueses nas estradas deferro em construção, acabam ficando em segundo plano, mere-cendo cada vez menos destaque. Assim, ãõ  longo da década de

180

p p g (eito e no interior das moradias dos senhores), muito mais doque fora dele, tal como nas tradicionais fugas e quilombos.

 Não que ante riormen te não ocorressem tais crimes e revol-tas na produção, tanto é que a lei geral de 1835, que previa a

 pena de morte para os escravos que atentassem contra a vidade seus senhores e feitores, objetivava pôr um paradeiro aestes eventos sangrentos, em especial os ocorridos na Bahia.4Porém, em São Paulo, a partir da segunda metade do século,as possibilidades de manter a disciplina e o controle sobre os

escravos na grande produção agrícola tornavamse cada vez maisdifíceis. Isto devido à grande concentração de negros subita-mente criada nestes anos, sobretudo em fins da década de 1860,em atendimento às necessidades crescentes de mãodeobra colo-cadas pela expansão do café rumo ao oeste. Além disso, asdificuldades com a disciplina tinham muito a ver com o descré-dito em que caía a escravidão e com as inevitáveis mudanças deatitudes psicossociais, tanto da parte de senhores como de es-cravos, bem como da população em geral.

De fato, as repetidas denúncias dos deputados provinciais

em tomo dos crimes de escravos apontavam para as crescentesdificuldades de se manter uma disciplina de trabalho e de vidasobretudo nas fazendas, em vista não só da grande concentraçãode negros como também dos chamados “efeitos” da Lei doVentre Livre. Embora a lei não significasse mudanças concretas

4. P ara um relato destes eventos, ver João José Reis,  Rebe lião Escrava no  Brasil  —  A História do Leva nte dos Malês (1835).

181

substanciais, pois os ingênuos continuariam a serviço dos senho-res até a idade de vinte e um anos, de qualquer modo ela decre-tara o fim do caráter absoluto da instituição escravista, e osescravos, assim como os senhores, se apercebiam da sua temporariedade. Talvez por isso mesmo os escravos já se sentissem maisà vontade para resistir no próprio espaço da produção, atacandofeitores e senhores, e por vezes entregandose tranqüilamente à polícia, ao invés de se embrenharem em fugas perigosas pelas

matas.5Alé di ti d 1857 lé ét

a existência de braços para o trabalho alguns poucos anos apóso encerramento do tráfico da África, pode ter tido o efeitoinesperado de acenar com uma certa impilnidade aos escravosque se rebelassem.7

Também é preciso lembrar que nesta época a região oestede São Paulo estava sendo desbravada para o estabelecimentode novas fazendas de café e de ferrovias, em meio a violentosconflitos com os índios que lá habitavam. A quebra gradativa

deste isolamento rural até então assegurado pelas matas virgense falta de vias de comunicação pode ter dificultado ainda mais

Page 93: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 93/138

Além disso, a partir de 1857 as galés perpétuas passarama constituir oficiosamente a penalidade máxima do Império, aoinvés da pena de morte prevista pela lei de 10 de junho de1835 para os escravos que matassem ou ferissem feitores, senho-res e respectivas famílias. Isto porque, segundo notou LanaLage da Gama Lima, um aviso imperial suspendia a execuçãoda pena de morte e subordinavaa ao pronunciamento dó PoderModerador, “tornandose comum sua comutação em galés per-

 pétuas” .6 Esta medida, que provavelmente procurava preserva r 

5. A respeito dos anos que se seguiram à decretação da Lei do VentreLivre (28 de setembro de 1871), escreveu o abolicionista Antonio Gomesde Azevedo Sampaio: “Do ano de 1871 em que se promulgou a lei de28 de setembro, que estancou pelo nascimento a continuação do escravizamento (...), a Í883, um intervalo de 12 anos, não se tendo tentadoa menor modificação na lei Rio Branco, de sorte a esperançar os escravosmais moços, um fato significativo da imperícia de nossos legisladorescomeçou a tomar vulto e a atemorizar a sociedade. Era o assassinato de

 feitores, adm inist radores   e alguns senhores que se reproduzia diariamen-te", cf.  Abolicionismo Um Paragrapho   — Considerações Geraes do Movimento Anti-esclavista e Sua História Limitada a Jacarehy, que Foi Um  Centro de Acção do Norte do Estado de São Paulo,   São Paulo, Louzadas& Irmão, 1890, p. 23.

6. Lana Lage da Gama Lima,  Reb eldia Negra e Abolicionismo,  Rio deJaneiro, Achiamé, 1981, p. 48. A fonte para esta informação é AgostinhoMarques Perdigão Malheiro,  A Escra vidão no Brasil   — Ensaio Histórico-

 Jurídico-Social,  que na nota 102 do capítulo 2, vol. 1, informa sobre esteAviso de 1857, lembrando que ,na época havia um movimento contra  a

 pena de mor te, e que isto não poderia deixar de ser favorá vel ao escravo, p. 36.

182

e falta de vias de comunicação pode ter dificultado ainda maisa sobrevivência dos pequenos quilombos que existiram em SãoPaulo durante toda a escravidãq. Isto e mais o próprio desco-nhecimento do terreno por parte dos numerosos negros recém

ingressos na província teriam contribuído igualmente para que

o escravo passasse a reagir mais intensamente no próprio espaçoda produção, talvez mesmo mais assiduamente do que fora dele.8

7. A este respeito escreveu o abolicion ista José do Patrocínio: “As esta-tísticas demonstram que o número de atentados de escravos contra seussenhores aumentou de um modo sensível desde que o Imperador começoua comutar sistematicamente a pena de morte pronunciada contra osescravos em trabalhos forçados perpétuos”, cf. UAffranchissement des Esclaves de la Province de Ceará au Brésil,   Paris/Rio de Janeiro, Bureaux de la Gazeta da Tarde, 1884, (trad. minha), p. 8.

8. Segundo Warren Dean, os quilombos e também aglomerados de pos-seiros “eram regularmente aniquilados com a chegada das fazendas",sendo que por vezes os próprios escravos fugitivos arranjavam trabalhonelas como agregados, cf.  Rio Claro  — Um Sistema Brasileiro de Grande  Lavoura 1820-1920,  trad. W. M. Portinho, Rio de Janeiro, Paz e Terra,

1977, p. 91. Este mesmo autor notou que em 1871 o sentimento abolicio-nista da classe média urbana era ainda muito pequeno, enquanto nestemomento surgia uma “mentalidade revolucionária” entre os escravos de-vido a "uma mudança estrutural significativa”: aumentava o número de  y  escravos brasileiros que assim se consideravam, assimilando uma retórica/^de igualdade e de cidadania, op. cit.,  p. 128. Talvez se possa também

 pensar no aum ento do núm ero de crim es de escravos con tra seus senho resà luz desta questão colocada por Dean. Eugene Genovese adota ponto devista semelhante ao analisar a transformação do teor das lutas dos escravosem seu livro  Da Rebelião à Revo luçã o,   São Paulo, Global, 1983.

183

Comparandose os relatórios das décadas de 1860 e 1870é possível perceber, a partir dos primeiros anos desta última,um acirramento geral das lutas dos escravos contra seus senho-res, a julgar pelos grandes espaços ocupados pela descrição decrimes. e revoltas, tanto nos itens especialmente dedicados aoassunto, quanto na sua inclusão entre os “crimes notáveis” regis-trados de forma detalhada.9

Alarmado pelas ameaças de sublevação de escravos que

nos últimos meses vinham amedrontando vários municípios, o

mia dos escravos da fazenda de Antonio Joaquim da Costa paraque este comunicasse suas suspeitas imediatamente à polícia.De fato, foram dez os escravos que se insubordinaram.

Para o autor deste relato havia uma “crise” a ameaçar osinteresses provinciais e por isso ele julgava “de urgentíssimanecessidade” o envio de um batalhão de linha pelo governoimperial, dada a falta de destacamentos no interior. O envolvi-mento de terceiros nos conflitos entre escravos e senhores

 preocupavao em par ticular: “Hoje não há a temer só os escra-vos; mas também os especuladores que os excitam” 10

Page 94: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 94/138

chefe de polícia Sebastião José Pereira incluiu em seu relatóriode 1871 quase duas páginas relativas a esta questão sob o títulode “Projetos de Insurreição”.

 Nestes projetos temos agrupados indistintam ente revoltaslocalizadas ou mais abrangentes que se consumaram ou que

foram descobertas a tempo. As mais graves não chegaram a se

realizar, como as de Campinas, Jundiaí e Indaiatuba, onde seconstatou que os escravos de várias fazendas vizinhas planejavam

insurgirse.

As revoltas menos graves ocorreram em fazendas localiza-das em São Simão, Una e Pinhal. Em São Simão, nove escravos

dirigiramse “em atitude ameaçadora” ao proprietário, “pedindoa liberdade”. Mas o senhor conseguiu ganhar tempo contem-

 por izando até a chegada da polícia. Em Una passouse algosemelhante com dois escravos rebelados, sendo presos em seguida.

E, em Pinhal, bastou uma “certa altivez” estampada na fisiono-

9. Seria impossível fazer uma análise quantitativa destes crimes a partir destes relatórios, pois os relatos não são padronizados; alguns relatórios pub lica m extensas listas de crimes, prisõ es, condenações, enquanto outr osnão ó fazem; quanto à inclusão dos crimes entre os “notáveis”, isto é, aque-les que mereciam ser relatados com detalhes, isto ficava por conta dadecisão de cada chefe de polícia, não havendo nenhuma menção a cri-térios porventura adotados. Chamar atenção para o aumento do númerodestes crimes não significa, porém, afirmar que fugas e quilombos ti-vessem cessado de existir. Apenas não pareciam ser o que mais preo-cupava os chefes de polícia naqueles anos.

184

vos; mas também os especuladores que os excitam . 10A mesma preocupação já havia sido expressa no início do

ano em ofício da Câmara Municipal de Campinas ao presidenteda província, no qual se pedia um reforço de tropas, alegandoseque “as idéias da época em relação à escravidão, hoje impru-dentemente espalhadas ou em escritos públicos ou por particula-res estouvados, produzem seus frutos” .11

De fato, o ano de 1871 parece ter primado pelas revoltasde escravos, a julgar pela longa lista de casos de assassinatos

de feitores e senhores incluídos entre os “crimes notáveis” pelochefe de polícia Sebastião losé Pereira. Produtos de uma açãocombinada ou individual, estes crimes parecem ter contado coma aprovação passiva de outros escravos. Entre estes últimos podese incluir o assassinato do filho de um “ aba stado” fazen-deiro de Pindamonhangaba pelo escravo Fortunato, no momentoem que este era conduzido para ser castigado. Segundo o chefede polícia, “José Francisco andava em um carrinho puxado àmão, por ser aleijado das pernas, e quando foi assassinadoestavam junto a ele quatro escravos, que nenhum auxílio presta-ram. Entretanto não há indício de que houvesse conluio dessesescravos com o assassino”.

Vários crimes foram feitos por vingança, como o assassinatode um fazendeiro em Parnaíba pelo escravo Malaquias, devido

10.  Relatorio da Repartição de Policia da Prov incia de S. Paulo ,  15 de jane iro de 1872, pp. 3840 .11. Emilia Viotti da Costa,  Da Senza la à Colônia,  2.® ed., São Paulo,Ciências Humanas, 1982, p. 298.

185

aos castigos sofridos por sua mulher. Outros ainda por escravosque se rebelavam contra castigos rigorosos e combinavam mataro senhor, como foi o caso do assassinato de um fazendeiro deCampinas por seis escravos. Também os capitãesdemato nãoescapavam aos golpes de foice e facadas de cativos fugitivos queeram conduzidos de volta às fazendas. Outro crime revela acordosentre escravos e negros livres a serviço do mesmo fazendeiro.Foi o caso de um proprietário de São Luís, que havia despedido

um trabalhador africano (ele se dizia livre, alegando ser exvoluntário da pátria), por julgálo “insubordinado”, e à noite

sido levado a cometêlo por desespero do cativeiro. Aqueles infelizes foram vítimas por terem chamado de quilombola aoassassino”.13

Alarmado com a freqüência com que “nestes últimos tem- pos” reproduziamse os assassinatos de feitores e senhores, o presidente da provínc ia em 1872, conselheiro Francisco XavierPinto, não via como estancar estes eventos sangrentos enquantodurasse a escravidão, ansiando pelo seu fim. Somente assim eleacreditava que diminuiria “consideravelmente entre nós o nú-

Page 95: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 95/138

foi atacado em sua casa por seus escravos, pelo demitido emais outro negro livre a seu serviço, tendo ainda uma escravaroubado suas armas para dificultarlhe a defesa.12

 Nos anos seguintes continuam a se registra r os atentadosde escravos contra a vida de senhores, feitores, administradores.O relato detalhado de um deles, ocorrido em Silveiras em 1873,evidencia a impaciência dos escravos pela liberdade:

“Na noite de 27 de fevereiro, foi barbaramente assassi-nada D. Anna Jacintha Quintanilha. Esta senhora fazia cons-

tar que por sua morte ficariam libertos doze escravos, cons-tituindoos ainda seus herdeiros. Um deles concebeu o tene-

 br os o plan o de ab re vi ar os dias de su a be nf ei to ra ( . . . ) . Te ve pleno as sent im en to e pr om es sa de au xí lio de mais tr ês doscontemplados nas disposições testamentárias. Naquela noite

 pe ne trar am no qu ar to de do rm ir da se nh or a e as sa ss inaram na por estrangulação do pescoço”.

Outro crime ocorrido em Limeira no mesmo ano revela o

desespero daquele que se sente estigmatizado em sua liberdadetão duramente conquistada:

“A 14 de setembro, no sítio de Vianna & Irmão, foram

 ba rb ar am en te as sass inad os do is men ores pe lo es crav o Laz aro,

que andava fugido. No dia seguinte apresentouse o criminosoao Delegado de Polícia confessando o crime e declarando ter 

12.  Reia tor io. .,, Sebastião José Pereira, op. cit.,  pp. 915.

186

mero de assassinatos” .14

 No ano seguinte, o chefe de polícia Joaquim José do Ama-ral chamava a atenção para o aumento de crimes na província,“avultando os crimes de sangue”, e traçava comparações desfa-voráveis da situação desta com o restante do país:

"Tomando por base a estatística policial do Império,relativa ao ano de 1870, cuja liquidação está terminada,observo que a Província de S. Paulo só é inferior, quanto aos

crimes, à Província de Pernambuco e à do Ceará, tendo a dePernambuco população maior na razão de um terço, e a do

Ceará menor, na razão de quase metade”.15

Em 1875 o mesmo chefe de polícia publica outro relatórioonde expUca" o aumento do número de crimes em São Paulo,ajxmtandp sobretudo para o crescimento da escravaria na provín.cia, combinado com uma redução do número de fugas de escravos.

“O crescimento da população escrava é elemento dele-

tério no seio da família, com uma incalculável extensão de

13.  Reia torio Ap rese nta do ao Illustris simo e Exce llen tiss imo Senhor Dr. Theodoro Xavier, Presidente da Província de São Paulo, pelo Chefe de Policia Joaquim José do Amaral,  15 de janeiro de 1874, pp. 112.

14.  Reia torio com que o Exm . Sr. Conselhei ro Franci sco Xa vie r Pin to  Lima Passou a Adm inistra ção da Prov íncia ao Exm. Sr. Dr. João Theodoro Xavier, Presidente da Mesma,  21 de dezembro de 1872, pp. 56.

15.  Reia torio.  . J. I. do Amaral, 1874, op. cit.,  p. 7.

187

perigos para a propriedade e estabilidade da indústria agrí

cola.

Só no ano de 1874 foram importados de outras Provín

cias 2.067 escravos, e as fugas destes podem ser calculadas em pouco menos da décima parte do seu número; porque, em anos anteriores, foram presos 300 a 400 em cada ano e a importação não era tão copiosa como em 1873 e 1874”.16

Embora o chefe de polícia não esclareça por que estariam

diminuindo as fugas de escravos, há em sua argumentação umarelação implícita entre o aumento do número de crimes nas

Contudo, a relação implicitamente estabelecida pelo chefede polícia, referente ao aumento do número de crimes nas

 propriedades agrícolas, ao mesmo tempo que aumentavam osescravos em São Paulo e diminuíam as fugas destes, parece bastante plausível quando se toma o conjunto dos ^relatórios policiais e presidenciais da década de 70.17 Neles ressaltammuito mais em termos de número e de ênfase os crimes pratica-dos por escravos *nas fazendas, ao invés dos relatos de quilombose prisões de fugitivos. Em um e outro relatório aparecem narra-tivas de assaltos e assassinatos de viajantes por quilombolas oud ã j t t d f id P é t

Page 96: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 96/138

relação implícita entre o aumento do número de crimes nas propriedades agrícolas, o crescimento da população escrava na província e a diminuição de fugitivos.

 Neste ponto poderíamos pensar que, ao invés de fugir, meiosecularmente empregado pelo escravo para desvencilharse dasua condição de cativo, o negro estaria enfrentando ,_o regimeescravista diretamente, matando feitores e senhores e — con-forme numerosos relatos — entregandose à polícia ou mesmo procurandoa para entregarse e confessar seu feito. Mas^ pode-ríamos também refletir em outros termos: o_número de prisõesde negros fugidos é que estaria decrescendo e não o númerode fugas propriamente dito, e isto devido ao aumento desmedidode escravos traficados para a província e que aqui permaneciam.Segundo Amaral, enquanto em 1874 entraram 2.067 escravos,apenas trinta e dois foram exportados de São Paulo para outras

 províncias. A polícia , portanto i esta ria cada vez menos capa-citada a prender fugitivos e por isso o número de prisões efe-tuadas estaria caindo em relação aos anos anteriores, quando eramenor o número de escravos em São Paulo. Dizer que diminuíao número de capturas de fugitivos não seria o mesmo que afirmara diminuição das fugas, mas isto, porém, o chefe de polícia nãoesclarece, pois coloca fugas e prisões no mesmo plano da com- paração traçada por ele.

16.  Rela torio de Policia Apr esen tad o ao lllm. e Exm. Sr, João Theodoro Xav ier, Presid ente da Provincia de S. Paulo, pelo Che fe de Policia  Joaq uim José do Amaral, Juiz de Direito,  1875, p. 9.

188

de repressão a ajuntamento de negros fugidos. Porém, entre oscrimes ou eventos “notáveis”, isto é, aqueles que, conformedenota o próprio qualificativo, eram destacados como os que pela sua importância e repercussão mereciam ser relatados emespecial — registrandose sua ocorrência não com os númerosfrios da estatística, mas com descrições pormenorizadas e tra-çadas a vivas cores — , avultam aqueles cometidos nas própriasfazendas e algumas vezes em ruas da capital, por escravos soli-tários ou em pequenos grupos.

 No relatório referente ao ano de 1876, o chefe de políciaElias Antonio Pacheco e Chaves procurou explicar as razões paraeste aumento do crime nas propriedades agrícolas, o que mere-ceu um tópico especial — “ Crimes praticados por escravos” — ,evidenciando a importância da questão. Em primeiro lugar, elerebatia o argumento abolicionista de que “o rigor no tratamentodos escravos influi para a maior perpetração dos crimes, que oregime das fazendas toca ao extremo da barbárie”. Não, na suaopinião, nem “a severidade no tratamento das fazendas” e tam-

 pouco a lei de 1871, de liber tação do ventre escravo, poderiamser consideradas como motivações exclusivas para esses crimes.

17. Para um ponto de vista bastante distinto do meu que enfatiza aocorrência de fugas de escravos neste mesmo período, atribuindo a estefato “um papel decisivo na desestruturação da ordem escravista", verAdemir Gebara, O Mercado de Trabalho Livre no Brasil,  São Paulo,Brasiliense, 1986. Para este autor, outras formas de protesto que não asfugas alimentavam e legitimavam o próprio sistema escravista (p. 137).

189

Sem descartálas, ele apontava porém para uma outra causa,“imediata” e “inteiramente diversa”. Era o escravo mau vindo 

/ \ do Norte  que, como já vimos no capítulo II, de fato agitaria aAssembléia Legislativa Provincial nos próximos anos, com um

número crescente de deputados propondo altas barreiras pecuniá-

rias ao tráfico interprovincial.

Segundo Pacheco e Chaves, devido à crise econômica dasregiões ao norte do império, bem como aos altos preços pagos

 pelos compradores de escravos no Sul, estavam convergindo para São Paulo “o que há de pior na esc rav atu ra” , indivíduos

crime. No dia seguinte, porém, apresentouse à autoridadeconfessando o crime com imperturbável cinismo!”19

Ou então este outro, muito semelhante:

“Na fazenda de D. Maria Caetana de Oliveira, o escravoVenancio assassinou o feitor Boaventura Moreira da Silva, nanoite de 18 de maio, e, no dia seguinte, apresentousena cadeia pedindo que o prendessem porque tinha sido o

autor de uma morte. A divulgação do fato foi demorada por-que o escravo assassinou o feitor quando este dormia, muti-l d lh l d d Só à it d

Page 97: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 97/138

p q p ,

“relapsos” e “criminosos”. Além disso, estes cativos vinhamsozinhos, sem família, após terem sofrido a separação de seus

 parentes e do local em que haviam se acostumado a viver.Havia ainda uma outra motivação para que os escravos atacassemsenhores e feitores: a pena de galés. Referindose às atitudes

que observara nos escravos que ingressavam na província, eleafirma:

“Esses infelizes fogem muitas vezes sem conhecerem osenhor a quem vão servir, revoltamse por qualquer ato dedisciplina, tornamse delinqüentes, e até fazemse responsá-veis por crimes que não cometeram, para alcançarem aquela

 pena”.18

A afirmação de Pacheco e Chaves não parece sem funda-mento, a julgar pelos relatos, durante toda a década, de escravos

que cometiam crimes e se entregavam pacífica e até mesmo

voluntariamente. São muito comuns relatos deste tipo:

“Em Campinas, (...) o escravo Aristides, pertencente aJoão Batista de Morais Godoi, assassinou a Elizeu, feitor dafazenda de seu senhor, evadindose logo depois de cometer o

18.  Rela tório Apr esen tado ao Ill mo e Ex™0 Snr. Dr. Sebastião José Pereira,Presidente da Provincia de SP, pelo Chefe de Policia Bacharel Elias Antonio Pacheco e Chaves aos 25 de Janeiro de 1877,  pp. 323.

190

landolhe o corpo com golpes de enxada. Só à noite, quandocompetia ao feitor fazer a chamada dos escravos, foi quedescobriram o cadáver” .11

Outros relatos de crimes de escravos evidenciam a firmeresolução de matar senhores e feitores e, na falta destes, atémesmo desconhecidos, apenas para escapar à fazenda e ganhara prisão. Como, por exemplo, o assassinato de um africano livrena rua do Matadouro, em São Paulo, pelo escravo fugido Apolinário, em 1871. Apolinário havia sido vendido por seu senhor,um alferes residente no Brás — “ por não podêlo suportar” — ,a um fazendeiro de Amparo. Acostumado porém à cidade, “não pôde resignarse à vida rude da lavoura” e fugiu, sendo presonaquela rua logo após matar o africano. Ele confessou seucrime “com notáve! desembaraço”, “acrescentando que seu projeto era matar o primi tivo senhor; mas, não podendo realizálo, por ser perseguido no Brás, matou o africano, como teriamatado a qualquer outra pessoa”.21

Houve ainda crimes de escravos que já haviam alcançadoa prisão e, na iminência de voltar à fazenda, não hesitavam emcometer outros. Foi o caso do escravo Francisco, pertencente alosé de Souza Teixeira:

19.  Rela torio . .., Cons. Pinto Lima, op. cit.,  1872, p. 7.20.  Re la to rio. ..,   !• |. do Amaral. 1874, op cit.,  p. 11; o crime ocorreu

em 1873.21.  Rela torio . .  Sebast ião j. Perei ra, 1872, op. cit,,  p. 14.

“(. .. ) apesar de ter cumprido pena, não queria sair da ca

deia para voltar ao cativeiro, e ordenando o delegado que  o oficial de Justiça, João Francisco de Camargo, descesse à prisão com uma escolta para dali retirar o preso, este agrediu a Camargo com estranha ferocidade, lançando-lhe repetidos golpes de faca ♦

Em outro evento, um escravo volta efetivamente à fazenda,mas no mesmo dia dá um jeito de retomar à prisão. Feliciano

havia assassinado seu proprietário, Joaquim Guedes de Godoy,fazendeiro de Campinas, junto com outros três escravos. Cum-

 Neste ponto impõese uma questão; o que significava para onegro deixar a casa do senhor e entrar para as galés? E o querepresentaria isto para aqueles que permaneciam escravizadosnas fazendas e cidades e os vissem passar?

Ao longo de toda a década de 70 vários chefes de polícia e presidentes de prov íncia tentaram responder a esta questão,colocada cada vez mais insistentemente por uma realidade para-doxal de homicidas que, ao invés de fugas, buscavam a polícia,como se nela vissem uma espécie de atalho para a liberdade. Em1871. assim se expressou a respeito o chefe de polícia SebastiãoJosé Pereira:

Page 98: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 98/138

 priu pena e depois foi solto e mandado de volta à fazenda, mas“no dia em que chegou à casa tentou matar ao senhor moço”.Foi novamente preso e condenado.23

Ao que indicam estes relatos, matar senhores, feitores eadministradores significava libertarse de um cruel regime_detrabalho e de vida, uma vantagem mesmo que. momentânea parao criminoso. Mas, além disso, na década de 70 já havia a espe-rança de impunidade, ao menos no tocante à pena capital, e,

como vimos acima, escravos homicidas incorriam em penastemporárias, provavelmente devido à necessidade de braços sen-tida pelos fazendeiros. É possível também que o descréditogeneralizado em torno do regime escravista alimentasse a espe-rança de uma anistia dos cativos condenados às galés perpétuasno momento em que se extinguisse a escravidão.

De fato, a propaganda abolicionista não poderia deixar derepercutir entre os escravos, que talvez matassem seus opressoresesperando que este ato de violência acabasse reconhecido comoum direito de autodefesa por aqueles mesmos homens de elite

que denunciavam a escravidão.24

22.  Reia torio . .  ., f. J. do Amaral, 1874, op. cit.,  p. 10; o crime ocorreuem 1873.23.  Re ia to rio ..  ., S. J. Pereira, 1872, op. cit.,  p. 15; o crime ocorreu em1871.24. Causou grande polêmica a frase dita pelo advogado abolicionista, oexescravo Luiz Gama, durante o julgamento de um escravo que mataraseu senhor: “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for,

192

José Pereira:

“Tal pena é uma monstruosidade em Direito Penal.

Em vez de remédio é veneno; não regenera, mas deprava o culpado.

Para o cidadão ela é — a morte moral; para o escravo é a liberdade.

O escravo deseja-a e procura-a como se deseja e procura a felicidade.

Assim dizem os fatos.

Condenada pela ciência, reprovada pela opinião pública,  nada há que aconselhe a conservação dessa pena degradante.

Enquanto não for abolida deve-se neutralizar os maus  efeitos, e o meio é isolar os condenados, retirá-los dos centros  populosos, dar-lhes trabalho.

mata sempre em legítima defesa". Também ao denunciar o linchamentode escravos, Gama defendeu estes últimos sem hesitar: “(...) assim, o

escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável dedireito natural, e o povo indignado que assassina heróis jamais se con-fundirão". Estas citações encontramse em Sud Mennucci, O Precursor  do Abolicionismo no Brasil (Luiz Gama),  São Paulo, Cia. Ed. Nacional,1938, pp. 1489 e 153. Formulações como esta, que atestavam o direitoà violência pelo escravo, não eram comuns entre os abolicionistas. Con-tudo, permanece ainda desconhecido o papel representado por esteabolicionista negro, sem dúvida um caso à parte, que desenvolveu intensacampanha abolicionista e republicana muitos anos antes do surgimentode movimentos favoráveis à Abolição e à República.

193

São terríveis os efeitos que sobre a população escrava

 pr od uz a vi sta, e o co nt at o desse s in fe liz es , qu e pe la s ru as

e praças arrastam a calceta.

Insisto em pedir a remoção desses condenados para o

 pr es íd io de Fe rn an do de N or on ha , po r es ta r co nv en ci do de qu e

essa medida há de produzir a diminuição do número de cri-

mes cometidos por escravos”.25

Vemos que, deste ponto de vista, a passagem dos condenados

às galés exercia uma influência nefasta sobre os escravos, comoque num convite aberto ao crime, muito embora arrastassem

A convivência do galé com o agente que o guarda encer-ra um vício gravíssimo, que cumpre evitar de pronto, para 

 prevenir conseqüências de funesto alcance {. ..) .Finalmente há, por assim dizer, incitação que tais senten-

ciados fazem a entes acanhados, por educação, mormenteescravos, cujas iras despertam contra a sociedade em quevivem (...)”.27

Longe de significar uma suâvi.zação da sorte no sentido

material do termo, o escravo condenado às galés continuava aviver em ambientes miseráveis, semelhantes aos das senzalas

Page 99: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 99/138

ferros pesados nos tornozelos e pescoço, similares àqueles utili-

zados para castigar negros nas fazendas e cidades. Por que então

o negro se sentiria tão atraído pelas galés a ponto de encarálas

como a liberdade, tal como considerava este chefe de polícia?

As galés poderiam realmente representar “uma suavidade de

sorte” para os negros tirados do cativeiro, conforme denunciava

em 1879 o chefe de polícia João Augusto de Padua Fleury?26

A descrição do cotidiano das galés, constante de um relatóriode 1867 do chefe de polícia Daniel Accioli de Azevedo, permite

uma idéia dos atrativos que este tipo de penalidade poderia

exercer sobre os escravos:

“Digno é de lástima o hediondo espetáculo que a popu-

lação da capital observa, todos os dias, nos passeios, não só

que fazem, pelas ruas, os forçados postos em trabalhos no

comércio livre a que se dão, de compra e venda de objetos,como nos atos de escandalosa imoralidade, que praticam, de

 pa rc er ia com as pr aç as in cu m bi da s de vig iá los e gu ardá lo s.

Em tais atos vai perdida a circunstância de corregibili

dade dos réus ( . . . ) .

25.  Rela iori o do Che fe de Policia de SP,  7 de janeiro de 1871, pp. 101.26.  Rela torto Apre sen tado ao IIlus tríss imo e Exce llen tiss imo Senh or Do utor Laurindo Abelardo de Brito, Presidente da Província de S. Paulo, peloChefe de Policia }oão Augusto de Padua Fleury, Juiz de Direito,  1879,

 p. 39.

1 9 4

ou talvez até piores; durante o dia era do mesmo modo obrigadoa trabalhos (públicos), com o agravante de trabalhar permanen-temente acorrentado aos outros presos, mediante calcetas e golilhas. Porém, ao ingressar nas galég, ele tornavase membro deuma comunidade sui generis,  onde pareciam bastante tênues oslimites entre dominantes e dominados, ou entre guardas e prisio-neiros, no ruidoso espetáculo de sua passagem diária pelascidades e vilas.

Ao que indica o relato acima, uns e outros haviam desen-volvido um modo de vida muito semelhante, ligados por mútuosinteresses, e, assim, aqueles que não traziam correntes aos pésmuitas vezes poderiam passar a impressão de estar verdadeira-mente aprisionados aos prisioneiros, invertendose os papéis ecom isso desmoralizando esta forma de punição e o exemploque ela deveria proporcionar. Era como se os atores de uma

 peça teat ral, fadados a desempenhar o papel de bandidos e adespertar as iras do público, subitamente se apropriassem do pap el inverso, convencendo a todos de que na verd ade eram eles

os injustiçados, merecedores da simpatia e solidariedade geral.

Dada a insistência com que os chefes de polícia durantetoda a^ década de 1870 denun ciaram a pena das galés, relacionandoa ao aumento do número de assassinatos de feitores e

 proprietár ios de escravos, podemos aventa r que naquele mo

27.  Rela torio do Che fe de Policia Danie l Acc iol i de Aze ved o,   31 dedezembro de 1867, p. 11.

1 9 5

mente' esta modalidade de prisão estava a se constituir numaverdadeira opção de vida, enquanto perdurasse a escravidão no país. Segundo o chefe de polícia Joaquim José do Amaral, osescravos costumavam até mesmo dizer ao juiz durante a inquiri-ção das causas do crime: “Matei para servir ao Rei! Matei para sair do cativeiro! ”28

Assim, contando com um possível aval social que se perso-nificaria na pessoa do rei, muitos negros estariam preferindo

romper seus laços com o cativeiro mediante a obtenção de umlugar nas galés. Ainda em 1878, o presidente da província, JoãoSebastião Pereira queixavase da ineficácia desta punição e até

 Na falta de uma pro nta solução para o problema das galés,os proprietários e autoridades provinciais respondiam à crimi-nalidade crescente dos escravos efetuando pequenos ajustes localizados, oficiosos ou oficiais. Entre os primeiros temos o relatodo chefe de polícia Elias Antonio Pacheco e Chaves em 1876,a respeito da atuação dos júris, em particular em Campinas, noscasos de crimes de escravos, a fim de evitar a decretação da

 pena de galé:

“Esta prejudicialíssima tendência (dos escravos comete-rem crimes para alcançar a galé) tem levado o Júri a criarcircunstâncias para desclassificar os crimes No município de

Page 100: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 100/138

Sebastião Pereira, queixava se da ineficácia desta punição e atémesmo do incentivo ao crime representado por ela:

“A freqüência com que se reproduzem os crimes de quesão vítimas os proprietários rurais ou seus prepostos é umfato gravíssimo, que tem gerado sérias apreensões no ânimo

 público e traz sobressaltados os lavradores.O delinqüente não escondese e nem oculta as provas do

seu crime: plácido e tranqüilo busca a autoridade e vem

oferecerse à vindita da lei, sonhando com a corrente docalceta, que é para ele uma redenção”.29

Da mesma forma que os reformadores europeus e norteamericanos tenderam cada vez mais para o encarceramento eisolamento dos prisioneiros, bem como para o seu tratamentoindividualizado, também aqui clamavase pela extinção do “he-diondo espetáculo” das galés e pela remessa dos prisioneiros

 para a long ínqua ilha de Fernando de Noronha, bem distante dasvistas de um público considerado facilmente influenciável pelo

exemplo do crime.30

28.  Rel at or io ... , ].  J. do Amaral, 1874, op. cit.,  p. 26.r *

29.  Relat orio com que o Exm . Sr. Dr. João Baptista Pereira, Presidente  da Provincia de S. Paulo, Passou a Administração ao 2.° Vice-PresidenteExm. Sr. Barão de Tres-Rios,   7 de dezembro de 1878, p. 57.'30. Para as propostas de reforma das penas nos séculos XVIII e XIX,ver Michel Foucault, Vigiar e Punir,  trad. Ligia M. Pondé Vassallo,Petrópolis, Vozes, 1977.

196

circunstâncias para desclassificar os crimes. No município deCampinas mais que em nenhum outro o mesmo tribunal temnegado a qualidade de^ feitor ou senhor na pessoa do ofen-dido e também reconhecido a atenuante da minoridade, mes-mo contra a evidência das provas, a fim de obter a conversãoda pena de galés em açoites. Isto é suficiente para demonstrara reforma penal de que precisamos”.31

A conversão da pena de galés em açoites também era

decidida pelos próprios fazendeiros, que às vezes nem se davamao trabalho de levar o escravo criminoso à polícia. Este foi ocaso do escravo Fortunato já anteriormente apontado, que apósmatar o filho do fazendeiro, também administrador da fazenda,confessou que há alguns anos sofrerá um castigo de açoites por

 já ter tentado matálo com um tiro, sem que no entanto a políciafosse notificada.

Mais para o fim da década temos outro ajuste oficioso, olinchamento, relatado pelo chefe de polícia João Augusto dePadua Fleury com uma maldisfarçada aquiescência:

“No dia 8 de fevereiro do corrente ano (1879), pela ma-nhã, o escravo Nazario assassinou a golpes de machado seusenhor, o doutor }oão Dias Ferraz da Luz, matando emseguida duas filhas do mesmo doutor e uma sexagenária queresidia com elas, e ferindo uma sua parceira. Este atroz

31.  Rel at or io ... ,  Pacheco Chaves, 1877, op. cit.,  p. 33.

197

atentado (...) foi cometido pelo malvado escravo, sem quehouvesse ele sofrido castigo algum.

O execrável matador (...) apresentouse à prisão (...).O povo, aterrado, revoltouse contra o assassino; e, arrancandoo da prisão, matouo a pedradas (.. .)”,32

Até que ponto estes meios oficiosos adotados pela políciae proprietários tornavamse mais comuns à medida que aumen-tavam os assassinatos de senhores e feitores, é difícil de dizer

tomandose por base estes relatórios provinciais. Isto porqueestes relatórios parecem muito mais preocupados em apontarpara a ilegalidade dos chamados “entes aca nhados” ou “classe

senhores, salvo reconhecendo que vão a serviço urgente dosmesmos”. Além disso, era recomendado aos guardas urbanos“dispersar ajuntamentos de escravos nas tavernas e outras casasde negócio”.33

Os pequenos ajustes oficiosos e. oficiais .não. pareciam, porém, surtir o efeito desejado, pelo menos não em termosabrangentes e duradouros. Ao final da década, o chefe de políciaJoaquim de Toledo Pisa e Almeida queixavase de que “certosmeios de intimidação”, à margem da lei, não produziam grandesresultados, pois eram aplicados localizadamente e, enquanto isso,os crimes continuavam a se reproduzir “com freqüência”, con-

Page 101: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 101/138

 para a ilegalidade dos chamados entes aca nhados ou classehumilde”, em particular os escravos, do que para a própriailegalidade dos proprietários e autoridades em relação a toda umalegislação formulada, é certo, em favor destes últimos, mascrescentemente ineficaz.

O Regulamento do Serviço da Companhia de Urbanos, de-cretado em 29 de novembro de 1876, revela uma tentativa deajuste oficial a estes tempos de perda progressiva de controle

da mãodeobra escrava, o que se refletiria talvez com maiorênfase no ambiente difuso das cidades. A ilegalidade que se procurava coib ir aos escravos citad inos ou fugidos para as cida-des transparece no artigo relativo aos deveres dos guardas urba-nos. Estes deveriam “conduzir às respectivas estações” (asdelegacias) todos os que fossem “encontrados comerciando frau-dulentamente com escravos ou pessoas rústicas”. Com issotentavase, decerto, dificultar a venda de produtos desviadosdas fazendas por escravos e pobres livres, o que foi muitodenunciado na época por deputados na Assembléia Legislativa

Provincial. Também os escravos “abandonados por seus senhorese os que andarem mendigando pelas ruas” deveriam ser levados par a as delegacias. E o mesmo aconteceria aos escravos fugidos“ou encontrados depois do toque de recolher, sem bilhete dos

32.  R ei a to ri o .. .,   f. A. P. Fleury, 1879, op, cit.,  p. 11 (parêntesis meu).Este crime teve grande repercussão na Assembléia Legislativa Provincialde São Paulo, conforme vimos no capítulo ÍI.

1 9 8

p qtando ainda com o incentivo da pena de galés. “Com uma população superior a 150.000 almas a prudência deve aconselharmedidas que desarmem o braço homicida do escravo”, afirmavaele, enfaticamente, sem no entanto sugerir alguma.34

2. REVOLTAS, FUGAS E APOIO POPULAR 

Enquanto os anos 70 revelamse marcados pelos crimesfeitos individualmente ou em pequenos grupos de escravos, os primeiros anos da década de 80 primam pelas revoltas coletivas

«

ou insurreições, registradas em fazendas de diversos municípios.Já em maio de 1879 o delegado de polícia de Limeira teve derequisitar uma força de trinta praças para conter a sublevaçãodos escravos da fazenda de Sampaio Peixoto. Imediatamente osdemais fazendeiros acorreram em auxílio do delegado, tomando“as necessárias medidas para que não se propagasse tão desastroso

exemplo”, o que significava impor uma maior vigilância sobre

33. Regulamento do Serviço da Companhia de Urbanos, em anexo ao Reia torio Apr ese ntado a Assemblé ia Legislati va Prov incial de S. Paulo   pelo Pres iden te da Província, o Exm . Sr. Dr. Seba stião José Pereira, em  6 de Fevereiro de 1877,  pp. 123. A Companhia de Urbanos foi organizadaconforme o artigo 4,° da Lei Provincial de 4 de março de 1875.

34. Secretaria da Policia da Província de S. Paulo,  Anexo 15 de 10 denovembro de 1878, in Reiatorio.. J. B. Pereira, 1878, op. cit.,  p. 6.

1 9 9

os seus próprios escravos, a fim de assegurar a disciplinaentre eles.35

Contudo, dificilmente alguma medida disciplinar seria capazde impedir a recrudescência da violência naqueles anos tormen-tosos de um regime de trabalho já bastante desacreditado e quecada vez mais perdia seus adeptos para as fileiras emancipacio-nistas e abolicionistas.

Em 1881 começam a aparecer sinais mais insistentes deapoio popular à causa dos escravos, pois até então os relatórios

de polícia quase não mencionam o envolvimento de pessoas defora das fazendas nos conflitos entre senhores e escravos. Em

atendido à requisição da província, enviando “50 praças delinha” para ficarem estacionados na cidade de Campinas, “comouma medida de precaução”.37

Em 1882 continuam os relatos de incitamento de escravos por elementos de fora das fazendas, ao mesmo tempo que vãoem curso pequenas sublevações e atentados individuais ou emgrupos de cativos contra senhores e feitores. Em Araraquara eJacareí, em outubro e novembro respectivamente, os fazendeirosse mobjlizaram para expulsar de suas regiões o capitão AntonioHenrique da Fonseca. O capitão teria feito agitação em Arara-quara, escrevendo cartas a alguns proprietários, além de “acon-

Page 102: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 102/138

1881 deuse “uma malograda tentativa de insurreição” de escra-vos em alguns municípios do norte da província, de acordo como 1.° vicepresidente conde de TrêsRios em seu relatório à

Assembléia Legislativa Provincial. E esta tentativa teria sidoinsuflada por elementos vindos do Rio de Janeiro.36

 No ano seguinte o pres idente da província, conselheiroFrancisco de Carvalho Soares Brandão, relata “casos graves deinsurreição de escravos” ocorridos em setembro e novembro

nas fazendas do Morro Alto, em Araras, do Castelo, em Campi-nas, e de São Pedro, em São João da Boa Vista. Segundo ele,“a proximidade com que esses casos seguiramse uns aos outrosdeu lugar a receios sérios” de que eles fizessem parte de um

 plan o geral. Porém, todos os revoltosos foram reprimidos e presos e os movimentos ficaram circunscritos aos limites de cadauma das fazendas. Além disso, o governo imperial já havia

35.  Rel ato rio ..., J. A. P. Fleury, 1879, op. cit.,  p. 15.

36.  Relatorio Dirigido á Asse mbl éa Legis lativa Provincial de S. Paulo  pelo 1.° Vice-Presidente da Provincia Cond e de Tres-R ios e Apre sentadono Acto da Installaçõo da Mesma Assembléa pelo 4° Vice-Presidente Dr. 

 Miguel Marcondes de Moura e Costa,  7 de janeiro de 1882, p. 10. Osrelatórios dos anos 70 não expressam esta preocupação com o apoio

 pop ula r, embora exista uma refe rência enfá tica ao apoio de terceiros ,em projetos de insurreições de escravos, no relato de um caso ocorridoem 1871 em Campinas, envolvendo o transportador de munições deguerra, Vespasiano Rodrigues da Costa. Cf.  R el at ori o. ..,   Sebastião JoséPereira, 1872, pp. 3840.

200

q , g p p ,selhar os escravos”, pondo assim “em perigo as vidas dos lavra-

dores”. No mês seguinte, em Jacareí, o mesmo Antonio Henrique

da Fonseca, juntamente com o coronel Francisco Felix da Rocha

Martins e o italiano Nicoláu Chioffi, foram

“intimados, por grupos armados, a saírem daquela cidade (...) pelo fato de se terem tornado inconvenientes ali como amoti

nadores e perturbadores da ordem e sossego público, aconse-lhando os escravos a matarem seus senhores e garantindolhescompleta impunidade (..

Para o presidente da província, barão de Guajará, o mo-mento era de crise e exigia precauções, e por isso ele defendia

uma união nacional em torno do problema, evitandose assimque “as classes ínfimas” entrassem em cena, com inevitáveis

riscos para a ordem e a autoridade.

"A questão do elemento servil é bastante séria e cumpreque os brasileiros se reúnam num só pensamento e tratem sin-ceramente de resolvêla com calma, critério e inteira isençãode espírito, evitando por todos os meios possíveis açular as paixões ruins das classes ínfimas da população: extirpese o

37. Falia Dirigida á Assembléa Legislativa Provincial de S. Paulo na   Abertur a da 2° Sessão da 24,a Legisla tura em 10 d e Janeiro de 1883 p elo  Presidente Conselheiro Francisco de Carvalho Soares Brandão,  p. 6.

201

mal, porém, sem atentar nem contra a lei, nem contra a auto-ridade nem contra a ordem pública.”38

Também na capital de São Paulo as autoridades policiaiscomeçam a enfrentar problemas com os primeiros abolicionistasradicais que das palavras passavam aos atos, tomando escravos para libertálos. Em agosto de 1884 houve um “ roubo à mãoarmada” de uma escrava de Silvério Rodrigues Jordão Junior,em plena rua do Hipódromo; e no mês anterior “um delitosimilar” já havia ocorrido em Perdizes. Segundo o chefe de polícia Antonio de Oliveira, as invest igações provaram que estes

mente visada por inflamados e humildes abolicionistas anônimos,que não hesitavam em atacáia para obter a libertação de escra-vos fugidos e capturados por ela. E, à medida que mais e maisescravos fugiam das fazendas de diversas partes da província etomavam o rumo de Santos, aguçavamse os conflitos de ruasnaquela cidade.

Em 1886 o chefe de polícia Luiz Lopes Baptista dos AnjosJr. relata um destes conflitos violentos ocorridos em Santos, quesegundo ele só poderia ser atribuído a interesses escusos deindivíduos que açoitavam escravos a fim de explorarlhes a forçade trabalho em proveito próprio.40 Contudo, fossem quais fossem

Page 103: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 103/138

“roubos” efetuados “por grupos de pessoas armadas” foramcomandados, por José VillaMaria, Feliciano Bicudo e o portuguêsJoão Ferreira. Após um conflito de rua, VillaMaria foi preso elevado até a sala do chefe de polícia, que assim relatou aconversa entre eles:

“Este indivíduo exprimiuse ante mim de modo tal, comrelação às ocorrências do Brás, fez tais manifestações acercado que entende por abolicionismo  e assumiu tão francamentea responsabilidade dos delitos, cuja prova colhi, que imedia-tamente compreendi que a sua permanência na Freguesia desua residência é um perigo e uma ameaça à tranqüilidade pública”.3*

Em Santos também crescia o movimento popular contra aescravidão, ultrapassandose a fase da pura propaganda e discur-sos políticos para se realizar a abolição na prática e à forçasempre que preciso. Como nessa região já era diminuto o númerode proprietários de escravos, a polícia parece ter sido particúlar

38. Falia Dirigida á Assembléa Legislativa Provincial de S. Paulo na  Abertu ra da 1.* Sessão da 25.“ Legisla tura em 16 de Janeiro de 1884  pelo Pres idente Barão de Guajará,   pp. 927. Referese a fatos ocorridostambém em 1882^ pois os crimes relatad os são de 1.° de ou tubr o de1882 a 30 de setembro de 1883.39.  Rela torio do Che fe de Policia An ton io de Olive ira em 27 de Ago sto

de 1884,  pp. 67.

202

os interesses envolvidos dos humildes carregadores que acorreramà estação da estrada de ferro e, munidos de pedras e paus,tentaram impedir o embarque de cinco escravos fugidos para acapital, o fato é que “as classes ínfimas” haviam entrado em plena ebul ição, assumindo cada vez mais ousadamente aquelasatitudes imprevisíveis e desreguladas — ou “as paixões ruins”,como se dizia — tão temidas pela polícia e proprietários de

todo o tempo e lugar.À medida que cresciam as fugas em massa das fazendas,

sobretudo a partir dos últimos meses de 1887, radicalizavase omovimento abolicionista nas cidades, em especial nos centrosmais populosos, como Santos e São Paulo.

Ao contrár io .do. qye .os . abolicionistas do jo rnal paulista  A  Redempçâo   estavam sempre a reafirmar — a fraca participaçãodos negros nesse movimento —, os relatórios de 1887 e 1888dedicam grandes espaços não só às fugas de escravos e conflitosnas áreas rurais, como também às lutas de negros com a polícianas ruas das cidades. Em 22 de outubro de 1887 deuse mesmoum quebraquebra no centro de São Paulo, motivado, segundoo chefe de polícia, pela prisão “de um desordeiro e ébrio habi-tual”. Acontece que os negros que estavam naquela noite, por 

40,  Relatorio Apresentado ao Illm. e Ex m . Snr. Barão do Parnayba, Presidente da Província de São Paulo, pelo Chefe de Policia Interino   Lui z Lopes Baptista dos Anjos Jún ior , 30 de novembro de 1886, p. 5.

203

volta das 21 horas, participando de uma festa na igreja do LargoSão Francisco, não compartilhavam desta opinião e tomaram o

 par tido do prisioneiro:

“(...) grande número de pretos arremessaramse contra osguardas, para tomarem o preso, ferindoos com pedradas.

Logo que foi comunicado a esta Secretaria (de polícia)o ocorrido, verificandose que eles, em posição de resistência,dispararam tiros de revólveres contra as praças, ordenouse

que saísse uma força de Cavalaria ao encontro dos desordei-ros, sendo auxiliada por outra de Infantaria, que consegui-ram, a custo, debandálos, já à 1 hora da noite”.

 polícia, ajudada pela força de linha, conseguiu às 9 horas danoite a dispersão desses perturbadores da ordem pública”.

 No mesmo dia, em Santos, mais de trezentos negros “arma-dos de cacetes” reuniamse nas imediações da estrada de ferroa fim de impedir o embarque de uma escrava para a capital.Mas a polícia aqui teve mais sorte, conseguindo dispersálosantes que se travasse um conflito, segundo a versão deste mesmochefe de polícia.41

Enquanto isso, as áreas rurais eram atravessadas por bandosde negros armados e dispostos a tudo para se verem livres docativeiro. Em sua caminhada pelas vilas, cidades, estradas,

d i i i l d i

Page 104: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 104/138

 Na noite seguinte, continuam os ataques à polícia, comviolência redobrada:

“(...) os pretos que, no dia anterior, haviam provocado aforça pública voltaram à carga, já desafiando as praças de polícia, que faziam a guarnição da cidade, já promovendogrande desordem no largo do Palácio, por ocasião em que ali

tocava, como é costume, a música do Corpo Policial.As praças foram agredidas a cacete e os desordeiros pro-

curavam desarmálas, o que não conseguiram, por ter acudidoa força de Cavalaria, à qual se ordenou que dispersasse osamotinadorés. Vendose, porém, que o tumulto aumentava ecom ele o número de negros, que erguiam vivas à liberdade e morras aos escravocratas, estabelecendo desta forma o pâ-nico entre as famílias que estavam no jardim do Palácio,mandouse que os portões de entrada fossem guardados por praças de Cavalaria, sendo postada uma força em frente aoPalácio, a fim de salvaguardar as famílias contra os ataquesdos amotinadorés.

Assim impedidos de penetrarem no jardim, os desordei-ros lançaram então mão de outro expediente, qual o deutilizaremse das pedras que achavamse em frente à novaTesouraria, para arremessálas contra as praças que guarda-vam os portões, e o mesmo fizeram aos soldados que nessaocasião tentaram prender dois dos desordeiros que, de cacete,acometiam a força; apesar, porém, de redobrarem de valor,não conseguiram os outros revoltosos tomarem os presos, e a

204

veredas e matas, um grupo inicial de escravos que se retiravade alguma fazenda era engrossado por outros, para grande alarmedos proprietários que já não tinham mais quase como tocar assuas produções. Além disso, é fácil imaginar como estes exsenhores e suas famílias se sentiam ameaçados por aquelas levasde negros que vagavam livremente pelo campo fora de qualquercontrole institucional.

Pela primeira vez na história da escravidão na província pressentiase a aprox imação de um momento de acerto geral decontas e nisto os brancos poderiam levar a pior, já que as forças policiais existentes dificilmente conseguiriam fazer frente a umasituação de ruptura institucional completa.

A grande questão debatida tão longamente durante todo oséculo XIX — o que fazer com o negro livre ou quais oscontroles institucionais necessários para mantêlo subordinadoao branco — estava a exigir agora uma premente resposta, qual-quer coisa capaz de aliviar, mesmo que temporariamente, a

angustiante tensão entre negros e brancos. Mas, antes que a leide Abolição, com todo o seu cortejo de festas e apelos à con-ciliação, viesse sancionar uma situação já existente de fato,

4i.  Reia torio Apr esen tad o ao Illm o e Exm . Snr. Dr. Francisco de P.  Rodr igues Alv es, Presidente da Proví ncia de São Paulo, pelo Che fe de Policia Interino, o juiz de Direito Salvador Antonio Moniz Barreto de   Aragã o,  31 de dezembro de 1887, p. 6.

205

muitas lutas ainda seriam necessárias para que os negros con-quistassem sua liberdade sem nenhuma restrição institucional,tais como obrigatoriedade de prestação de serviços e fixação dedomicílio dentro de um certo prazo, cláusulas estas defendidasnão só por emancipacionistas, como também por dirigentes abo-licionistas até fins de 1887.42

Após a fuga das fazendas, os negros tentavam solucionar seudestino como homens livres de formas variadas. Havia os queficavam pelos matos reunidos em grupos e que para sobreviver

saqueavam cidades e vilas. Este parece ter sido um recursomomentâneo até que fosse encontrado o caminho para Santos,cidade em que esperavam encontrar abrigo no quilombo do

instintos o referido Barão, se encaminhavam, fugidos, paraos lugares em que os mencionados os aguardavam, para umarevolta geral, tomou V. Exc. a deliberação de fazer seguiruma força de cerca de 46 praças de cavalaria e infantaria,sendo 26 desta arma e 20 daquela, determinoume que, emcompanhia dessa força, seguisse eu também, para providen-ciar como entendesse, a fim de pacificar esses escravos, pren-der os criminosos, e tomar outras deliberações”.

Mas eram tantos os pontos de revolta ou de ameaças de

ataques que o chefe de polícia, ao chegar na noite de 11 dedezembro em um trem especial em Indaiatuba, teve de dividiras tropas, deixando uma parte delas naquele local a fim de

Page 105: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 105/138

cidade em que esperavam encontrar abrigo no quilombo doJabaquara, especialmente montado para eles a partir de 1882 pordirigentes abolicionistas preocupados com a manutenção daordem na província.43 Outros insistiam em ficar nas própriasimediações das fazendas de onde haviam se retirado, exigindosua carta de liberdade e direito de trabalho com salário. E,enquanto não conseguiam seus intentos, rondavamnas ameaça-doramente, ao que indica este veemente relato do chefe de

 políc ia Barreto de Aragão , em dezembro de 1887:

“Havendo chegado ao conhecimento da Presidência, portelegramas particulares de fazendeiros de Itu, Indaiatuba,Capivari e Piracicaba, que grande número de escravos setinha revoltado e vagava por aqueles municípios, furtandoseao serviço de seus senhores, aos quais intimavam, para con-cederlhes imediatamente carta de liberdade e pagarlhes salá-rio, confirmadas estas notícias pelas autoridades policiaisdesses lugares, ainda acrescendo que uma leva de cerca de130 escravos do Barão da Serra Negra, no município de Pira-cicaba, depois que conflitos que provocaram e em que toma-ram parte na fazenda, sendo quase vítima de seus ferozes

42. Esta questão será tratada em especial no capítulo IV.43. Cf. Clovis Moura,  Rebeliões da Senzala ,  pp. 2214. Há relatos desaques em Itu e da caminhada rumo a Santos em meio a violentoschoques com a polícia no  Re la tor io . . Barreto  de Aragão, 1887, op. cit., 

 pp. 78.

206

p , p qaguardar a passagem dos escravos do barão da Serra Negra.Enquanto isso ele próprio, acompanhado da força de cavalaria,dirigiuse à fazenda de fosé Manoel da Fonseca, próxima àquelalocalidade, para reprimir outra revolta de escravos.

Era já de manhã "quando este atribulado chefe de polícialivrouse deste problema para passar a tratar de outro, agora emItaici, onde numerosos escravos que haviam fugido de fazendas

vizinhas “estavam em vadiagem e aglomerados” na própria vilae suas imediações. Segundo ele, também aqui os escravos forammandados de volta para seus senhores. Quanto aos escravosdo barão da Serra Negra, a força armada esperou por eles emvão, pois já seguiam para Itu. Outra vez, Barreto de Aragão tevede se deslocar às pressas, uma vez que “em Itu a vida dacidade e das propriedades agrícolas não era normal e necessitavaa minha presença ali para acalmar ânimos indignados contra osque pregavam a insubordinação das fazendas e especulavam coma causa da libertação dos cativos”. E a situação agravavase ainda

mais diante da possível chegada daqueles negros rebelados quedurante o percurso haviam ganho as adesões de outros, saídosdas fazendas de Capivari e Itu.

Como se vê, não era nada fácil a vida de um chefe de polícia naqueles tempos, obrigado pelas circunstâncias a assumiro papel de bombeiro itinerante e sem descanso. Barreto deAragão queixavase da desproporção existente entre as forças

 policiais diminutas e desaparelhadas e a grande extensão geo-

207

gráfica e densidade populacional da província. Não bastasse a população próp ria e adven tícia, havia ainda “hordas” de escravosfugidos vagando pelos campos e matas de propriedades agrícolas,“capazes de todos os terrores”.44

Além do fortalecimento da polícia em termos do aumentode seus efetivos e melhor organização, e da reforma judiciáriaa fim de se coibir a impunidade e a desmoralização das penas

 — medidas estas reclamadas sucess ivamente pelos chefes de polícia dos últimos anos — , enfatizavase também a necessidadede se estabelecer algum tipo de controle institucional sobre osexescravos. Em janeiro de 1888 o presidente da província Fran-i d P l R d i Al d ti i d

Em vários municípios, ao mesmo tempo, os escravos

abandonaram em massa as fazendas, procurando, a princípio,abrigo no município de Santos, colocandose depois nas loca-

lidades vizinhas, e não raro, à vista dos seus próprios se-

nhores.

Os fatos extraordinários, que se deram, estão no domí-

nio público.

Os senhores não procuravam, em regra, os escravos que

fugiam. Estes, por seu turno, saíam pacificamente, sem exas-

 pe ra r os senh ores , pa ra nã o su sc ita rem re si stê nc ia s ou pr o-vocarem reações. (. . .) Como conseqüência dessa grande agi-

tação, multiplicaramse as alforrias.

Page 106: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 106/138

cisco de Paula Rodrigues Alves advertia para o perigo de osnegros conquistarem sua liberdade de forma imediata e incon-dicional, sem restrições de espécie alguma, conforme já vinhaocorrendo. Por isso ele recomendava a “intervenção do PoderPúblico para regular as novas relações que se estabelecem, e paraconter os excessos e desvios dos que saem do cativeiro” 45 Um pouco mais dc três meses depois o mesmo Rodrigues Alves dáseconta da impossibilidade de qualquer intervenção pública nestesentido diante da enormidade do movimento de retirada dosescravos das fazendas. Seu relato expressa bem o estado deespírito de impotência a que se viram reduzidos proprietários eautoridades por força das ações disseminadas e violentas dosescravos por toda a província:

“Em uma reunião de fazendeiros efetuada nesta capital, a 15 de dezembro do ano passado, com o fim de dar impulso  e direção ao movimento emancipador, ficou assentado o pra

zo máximo de três anos para a extinção do elemento servil  

na província. Antes, porém, que a comissão incumbida de executar as deliberações da Assembléia organizasse definiti

vamente as bases do seu trabalho, os acontecimentos se precipitaram.

44.  Relato rio. .  Barreto de Aragão, 1887, op. cit.,  p. 9.45.  Rela torio Apresenta do á Asse nib léa Legislat iva Prov incia l de SãoPaulo pelo Presidente da Província Exm. Snr. Dr. Francisco de Paula 

 Rodrigu es Alv es no dia 10 d e Janeiro de 1888,  p. 16.

208

O fazendeiro que entrava no movimento, manumitindo

os seus escravos com a cláusula de serviços por três anos, emais tarde com a obrigação de fazerem eles a colheita pen-dente, por último, verificada a insuficiência de tais conces-sões, resolveu que a alforria devia ser imediata e incondi-

cional, vencendo salários os libertos”.46

Vemos por este relato como a princípio os escravos fugiam procurando o abrigo de Santos; depois, já nos primeiros mesesde 1888, talvez por ganharem mais confiança em suas própriasforças, eles começam a lutar pelo direito de permanecer nasmesmas regiões a que estavam acostumados. Ao que parece,nesse momento os escravos já não mais fugiam, mas simples-mente se retiravam das fazendas, enquanto os fazendeiros viamnos partir, impotentes, ou então, na falta de mãodeobra queos substituíssem na próxima colheita, faziamlhes sucessivasofertas, até reconhecer seu direito ao salário em troca de trabalho.

Isto não significa, porém, uma redução da violência, poistanto de uma parte como de outra os ódios eram antigos e viviase um momento de revanches. Bastava um fazendeiro maisrenitente teimar em não reconhecer a liberdade plena e imediata

46.  Rela torio com que o Exm. Snr. Dr. Franci sco de Paula Rodrigues  Alv es Passou a Adm inis traç ão da Província de S. Paulo ao Exm . Snr.   Dr. Franci sco An ton io Dutra Rodrigues. í.° Vice-Presidente, no Dia 21 

de Abril de 1888,  pp. 234.

209

aos negros e já estes saíam pelas cidades, suscitando grandesdemonstrações de solidariedade e revolta. Foi o que aconteceuem Piracicaba nos dias 9 e 10 de janeiro de 1888, conformerelata o chefe de polícia Barreto de Aragão:

“O fazendeiro Luiz Gonzaga havia concedido liberdade condicional a seus escravos e apenas se havia feito a publi

cação deste ato na imprensa local, esses libertos abandonaram a propriedade agrícola, tomando passagem na Estrada de  Ferro Ituana para a Capital.

Em Jundiaí foram eles presos pelo Delegado (...) poucos  dias depois de presos, foram levados para Piracicaba. Nesta cidade, sabendo-se que esses escravos chegavam, reuniu-se na

Já quando os policiais pendiam para o abolicionismo, a suasorte podia ser mais violenta, conforme o ocorrido com o delega-do de polícia de Penha do Rio do Peixe, na madrugada de 11de fevereiro. Atacado quando dormia por grupos armados, aosgritos de “morra! deita fora os negros!”, Joaquim Firmino deAraújo Cunha foi linchado no quintal de sua casa, após tentara fuga escalando muros. Pagou assim com a vida o fato de terescondido escravos fugidos da região.49

3. A PÁTRIA EM PERIGO! PELA UNIÃO NACIONAL!

Page 107: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 107/138

cidade, sabendo se que esses escravos chegavam, reuniu se na estação grande massa de povo, e ao parar o trem, foram dele arrancados, os pretos das mãos de seus condutores, que foram  maltratados.

Excitaram-se os ânimos, e no dia seguinte, mais de mil pretos vieram à cidade, percorreram as ruas, provocando  grandes desordens, e a ameaça à tranqüilidade pública tomou  proporções assustadoras”.47

As autoridades policiais, por seu turno, ficavam entre doisfogos, pois se compactuavam com os fazendeiros — o que eramais comum — corriam o risco de ser agredidas de formas nadalisonjeiras, como foi o caso da vaia recebida pelo capitão Colatino de Araújo Goes, comandante do contingente de infantariaem Campinas, ao desembarcar do trem acompanhado de pessoasinfluentes como o barão de Itapura e o comendador SouzaAranha. Em seguida, ao tentar prender um dos autores da vaia,o português José Antonio, o capitão Colatino foi insultado e

apedrejado, seguindose depois grandes manifestações em tornoda cadeia e violentos quebraquebras na cidade durante todaa noite de 23 de janeiro de 1888.48

47,  R ei at or io ... ,  Barreto de Aragão, 1887, op. cit.,  p. 6.48,  Reia torio do Che fe de Policia Inte rino Dr. Salvador A. Mu niz  Barreto de Aragão,  p. 7; contém um resumo das ocorrências desde 31de dezembro de 1887 até abril de 1888.

210

Enquanto a província continuava a viver momentos degrande agitação, alguns fazendeiros tentaram adaptarse à novasituação de uma produção doravante sem escravos. Aqueles commais recursos, em geral os do oeste novo paulista, já vinhamse abastecendo de imigrantes europeus em substituição aos ne-gros. Outros procuravam entrar em acordo com exescravos ouentão dirigiamse a Santos para contratar negros. Nem sempre,

 porém, estes últimos eram bemsucedidos, pois, além de teremconquistado a sua própria condição de livres, bem como o reco-nhecimento dela pelos brancos — e isto à margem da lei — ,estes negros já ousavam até mesmo exprimir posicionamentos polít icos, vinculando a questão da libe rdade a uma mudança deregime.

Em Santa Rita do Passa Quatro os proprietários foramassaltados de temores logo após terem trazido de Santos umaleva de trabalhadores negros para trabalhar em suas fazendasdespovoadas:

“Na noite de 26 de janeiro, mais de cem pretos vieramao alto da vila, armaram arcos de bambus e folhagens, has-tearam bandeiras encarnadas, acenderam fogueiras ao estourardos foguetes e rufos de caixa, e gritando: ‘Viva a república! Viva a liberdade!’,  bem como outros vivas e morras.

49.  Ibid.,  p. 8.

211

O fato atemorizou a população e as famílias, indo algu-mas pernoitar no mato.

 No dia seguinte os fazendeiros e outros cidadãos reuni-ramse em número considerável para ir atacar os sediciososnas próprias fazendas onde se achavam empregados.

As autoridades, com meios prudentes e bons conselhos,conseguiram dissuadir a esses fazendeiros desse intento, deconseqüências bem funestas, prometendo requisitar do Go-verno medidas com o fim de garantir a manutenção da ordeme a vida das famílias e fazendeiros ameaçados.

Haviam os pretos feito anunciar um grande samba  navila, mas este não se realizou porque, imediatamente ao ternotícia dos fatos narrados, fiz seguir força suficiente e devi-

víncia por “pessoas desabituadas completamente a este gênerode manifestação de suas idéias”.

Para este parlamentar só havia uma sombria perspectiva,caso as autoridades não tomassem medidas de controle social emtempo: a guerra civil.51

Este movimento de retirada das fazendas parece ter sidotão grande que já em janeiro de 1888, mesmo que se quisessefazer durar ainda algum tempo a escravidão, este regime detrabalho não seria mais possível. As fazendas estavam despo-

voadas, muitos municípios proclamavam a emancipação, e agora,diante deste “não quero” generalizado dos escravos, só restavaaos políticos batalhar por uma saída simultaneamente ordeira e

Page 108: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 108/138

damente municiada, para facilitar as autoridades policiais atarefa de impedir a continuação dos desacatos, e fazer respeitara paz pública”.50

Em outros tempos certamente a polícia não hesitaria em juntarse aos prop rietário s para atacar tamanha ousad ia. Porémo momento era delicado e a polícia devia zelar acima de tudo

 pela manutenção da ordem pública, cada vez mais ameaçada poruma guerra aberta entre negros e brancos e cujos contornos jáse delineavam de forma bastante sangrenta.

Enquanto a polícia tentava evitar que os ânimos se exaltas-sem ainda mais, os políticos na Assembléia Legislativa da pro-víncia sucediamse em discursos exaltados, denunciando o des-controle institucional generalizado. Segundo o deputado Castilho,naquele momento o despovoamento das fazendas estaria “toman-do um caráter mais perigoso para a ordem social’\ pois se a

 princ ípio os escravos abandonavam secretamente as fazendas,

escondendose em seguida, agora eles invadiam as cidades, orga-nizando passeatas e gritando pelas ruas “vivas a seus protetores”e “morras” aos escravocratas. O deputado concluía, lembrandoque se os “ meetings” eram perigosos “até na tradicional Ingla-terra”, o que não pensar destes ajuntamentos realizados na pro-

50. íbid.,  p. 10.

2 1 2

honrosa: a decretação legal da abolição.52O deputado Campos Salles, membro do Partido Republi-

cano que congregava arraigados escravistas, cedeu a este pontode vista em janeiro deste ano:

“Esse movimento (da emancipação) tem sido tão grandeque eu, sr. presidente, já me animo a calcular que não resta,

na província de S. Paulo, senão um terço de seus escravos, para receber a sua liberdade completa. Portanto, ninguém pode ter medo de errar, conjeturando que, quando em maiodeste ano se abrir o parlamento, não haverá mais um sóescravo nesta província”.

Por isso a Assembléia encerrou seus trabalhos naquele anovotando uma representação ao Poder Legislativo Geral em que,

51.  Anais da Assembléia Legislati va Provin cial de São Paulo,   1888,

 pp. 212.52.  A expressão é do abolicionista Ruy Barbosa que, ao analisar a aboli-ção, enfatizou o "papel autonômico" do escravo neste movimento pelaextinção da escravidão. “O não quero dos cativos, esse êxodo glorioso daescravaria paulista, solene, bíblico, divino como os mais belos episódiosdos livros sagrados, foi, para a propriedade servil, entre as dubiedadese tergiversações do Império, o desengano definitivo", cf.  A Qued a do 

 Imp ério , tomo II, p. 376, citado por Evaristo de Moraes,  A Camp anha   Abolicio nista (1879-1888),  Rio de laneiro, Leite Ribeiro, 1924, p. 304,nota 226.

213

após apelar para o ‘‘patriotismo’’ dos deputados gerais, expunhaa necessidade de se decretar rapidamente o fim da escravidão,em termos incondicionais e sem cláusulas de serviço.33

Para que os interesses do capital saíssem intatos desta épocade instabilidade geral das relações de produção, era preciso,

 portanto , firmarse uma união nacional, tal como pro pusera em1884 o barão de Guajará, evitandose por todos os modos que“as paixões ruins” das “classes ínfimas” viessem à tona, o que

 possivelmente poria muito ou mesmo tudo a perde r para pro prie-tários e comerciantes, bem como seus representantes políticos.

Esta proposta de união nacional, cada vez mais insistente-mente colocada pela elite em suas diversas correntes de opinião,não tardaria em se concretizar. No início de maio de 1888, os

ABOLICIONISMO E CONTROLE SOCIAL

IV

Page 109: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 109/138

 polít icos dos três part idos — Liberal, Conservador, Republicano,aos quais se filiavam escravistas, emancipacionistas e abolicio-nistas indistintamente — deramse as mãos num consenso quaseabsoluto e votaram a Lei de Abolição, clamando em meio a loase hinos à pátria pela conciliação, o que queria dizer esqueci-mento dos conflitos passados e sobretudo nãorevanchismo.

53.  Anais da Ass emb léia Legis lativa Prov incia l de São Paulo,  1888, p. 21 e 499; a repr esentação é de 13 de març o de 1888, dois meses, por tan to, ante s da dec retação da Abo lição em todo o país.

214

Enquanto na Assembléia Legislativa Provincial de São Pauloos políticos forjavam uma política imigrantista, começando asolucionar deste modo o problema da substituição do escravo

 pelo trabalhador livre, con tinuava penden te a grande ques tãodebatida desde o início do século XIX: o que fazer com o negro

em liberdade?CAparentemente ^sta questão não estava mais em pauta em

São Paulo em meados da década de 1880, pois foram raros osmomentos em que os deputados se deram ao trabalho de debatêla, reagindo com chacotas e sarcasmos contra aqueles que por-ventura ousassem recordála, como foi o caso, já visto no capítuloII, do deputado João Bueno e seu projeto de inclusão do nacionalna lei de incentivos ao imigrante europeu. Contudo,/para alémdos debates legislativos divididos entre a euforia dos primeiros

 passos da grande imigração ital iana e a preocupação em encon-

trar uma saída institucional para o término da escravidão, persis-tia um cotidiano pleno de conflitos sociais, cujas conseqüênciasa curto prazo poderiam pôr em risco os interesses dos grandes'

 proprie tários e, com isso, até mesmo a possibi lidade de seconcretizar com inteiro sucesso a política imigrantista.

É neste ponto que entraram em cena os abolicionistas, deixando de lado seus eventos propagandísticos de salão e açoes

215

estritamente legais, para ocupar o espaço momentaneamente rele-gado pelos políticos, o do controle social via integração do negrolivre no mercado de trabalho.

Reunidos na Confraria de Nossa Senhora dos Remédiosem torno de seu provedor, o promotor público Antonio Bento,os abolicionistas fundaram em janeiro de 1887  A Redempção, que, a julgar pelo depoimento de contemporâneos, tornouse em pouco tempo um dos jornais mais lidos e populares da pro víncia.1De linguagem coloquial, irreverente e agressiva, o jornal teria

sido fundado para cumprir duas necessidades básicas: denunciara escravidão em geral, bem como aqueles que  pessoalmente aindasustentavam este regime, e oferecer meios para solucionar odestino do negro livre, como o seu assalariamento nas fazendas.

mento planejado de fugas de escravos das fazendas, ida paraSantos e, em muitos casos, retorno como trabalhadores agrícolas

assalariados, sob a firme direção dos abolicionistas de  A Redempção. É que esta i^Léia vem no bojo de uma outra, responsável pelo direcionamento metodológico de muitos trabalho s de pes-quisa histórica: o movimento abolicionista de cunho urbano e aresistência escravocrata, rural, expressariam o embate entre doistempos históricos distintos, o primeiro significante de progressoe desenvolvimento econômicopolíticosocial (racionalidade) e o t  

segundo, de retrocesso e paralisia (irracionalidade).Sergio Buarque de Holanda apontou para o embate entre

estes tempos históricos ao desenvolver a tese de que a Aboliçãot i t d “ i í l” t d é t d

Page 110: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 110/138

destino do negro livre, como o seu assalariamento nas fazendas.Mas sobretudo o jornal teria como função primeira a de servircomo núcleo organizador e aglutinador dos chamados “caifazes”,ou seja, uma multidão de cocheiros, mascates, ferroviários, pe-quenos comerciantes, artesãos, estudantes, profissionais liberais,mulheres, menores e libertos, que em toda a província movimen-tavamse para auxiliar os escravos em suas fugas, escondendoos

em suas próprias casas, facilitando suas viagens nas ferrovias eorientandoos para Santos, onde os aguardava o quilombo doJabaquara, fundado especialmente para eles pelos abolicionistas.2

A descrição deste movimento ainda pouco pesquisado, masmuito citado pela historiografia, transmite a idéia de um movi-

1. Antonio Bento, apontado como sucessor de Luiz Gama na liderançado movimento abolicionista paulista (Gama morreu em 1882), nasceuem 1843, fiiho de um farmacêutico de algumas posses. Formouse emDireito em 1868, foi promotor e juiz municipal. Membro do PartidoConservador, Bento aliavase com filiados a outras correntes, desde quefossem abolicionistas. Fundou o jornal  A Redemp ção   juntamente com oadvogado liberal Fernandes Coelho e o poeta republicano Hippólytoda Silva. Cf. Evaristo de Moraes,  A Campanha Abo lici onis ta (1879-1888), op. cit.,  pp. 2612. Ao que eu saiba, existe uma única coleção completadeste jornal no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Esta precio sa coleção encon trase num estado tão lastimável de cons ervação,esfarelado, rasgado, em frangalhos, enfim, que me foi extremamente difícilfazer esta leitura.2. Cf. Clóvis Moura,  Rebe liões da Senza la, op. cit.,  pp. 2214.

216

teria representado um “marco visível” entre duas épocas, tendocessado de funcionar os freios tradicionais ao advento de novostempos a partir desta data. Para ele a Abolição marcaria o fimdo predomínio agrário e o início de um novo sistema com centrode gravidade nos centros urbanos. Seria exatamente esta dife-renciação entre rural e urbano que determinaria a “revoluçãolenta” desde então em curso e que estaria representando o

“aniquilamento” do predomínio agrário ou de nossas “raízesibéricas”.3

A tese de uma ruptura a realizarse nesta época, desta veznos termos conceituais de uma “sociedade de castas” em esboroamento e a concomitante formação de uma “ordem socialcompetitiva” é retomada por Florestan Fernandes. A premissametodológica que norteia esta idéia de ruptura entre tempos ouordens é a concepção da Revolução, entendida aqui em termosestruturais e evolucionistas, que estaria se realizando em meioao processo de extinção da escravidão.4

Seria interessante tentar traçar uma genealogia destas idéias,o que, porém, não é o meu propósito. Contudo, é preciso observarque estas idéias já estão presentes de certo modo nas páginas

3. Sergio Buarque de Holanda,  Raízes do Brasil,  14.* ed., Rio de Janeiro,José Olympio, 1981, em especial o capítulo “Nossa Revolução”.4. Florestan Fernandes,  A Integração do Negro na Socie dade de Classes, op. cit.,  pp. 4252.

217

de  A RedempçÕo  em seu único ano de existência (18871888), bem como em seus números comem orativos pub licados esparsamente em 1889, 1890, 1893, 1895 e 1897. Possivelmente estasforam imagens suscitadas e expressas pelo próprio movimentoabolicionista e que mais tarde foram incorporadas pela produçãohistoriográfica, sem uma preocupação maior em averiguar atéque ponto idéias expressas por um determinado grupo social queobteve a vitória de suas reivindicações no plano político (a Lei

# h

de 13 de Maio) podiam corresponder a uma realidade mais

abrangente que não a de seus interesses estritos.Pouco se sabe a respeito dos caifazes de Antonio Bento,

embora sempre se façam citações eloqüentes a seu respeito,f i d õ d d di i fi d

O reverso desta idéia de um movimento abolicionista essen-cialmente racional e planejado repousa na definição do escravocomo um ente passivo e isolado, sem condições de chegar porsi só a uma consciência de sua situação de explorado e oprimido,

 por força de sua própria posição est rutura l. Assim, mesmo a suarebeldia e resistência seculares teriam de encontrar uma direçãoracional e generalizadora (política), sem o que não passariamde atos sem sentido, irracionais, politicamente sem efeito.

Esta idéia que nega ao negro a condição de sujeito da

história, encarandoo tãosomente como objeto a ser resgatadodas trevas da escravidão pelos verdadeiros sujeitos daquelemomento histórico, os abolicionistas, já foi analisada mais longa-mente no capítulo III Quero porém retomá la para sugerir que a

Page 111: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 111/138

enfatizando suas ações coordenadas e radicais e reafirmando osucesso prático da missão a que se atribuíam os abolicionistas emgeral: redimir “a. raça escravizada” . É que a fonte básica do

 período repetidamente citada para descrever o movimento doscaifazes constitui um curto depoimento de uma testemunha entu-siasta, Antonio Manuel Bueno de Andrada, publicado em 13 demaio de 1918 em O Estado de S. Paulo.

Jovem participante do movimento abolicionista paulista,Bueno de Andrada recordouse anos mais tarde da organizaçãodos caifazes com grande admiração, definindoa como “um ver-dadeiro clube revolucionário”. Isto porque, em sua opinião, aação coordenada dos caifazes teria tolhido o escravismo paulista,organizando as fugas dos escravos, trazendoos para a capital eSantos e ocultandoos dos capitãesdemato. Para que isto ocor-resse, afirmou, “bastava” “um recado de Antonio Bento” a seuscongregados. Depois que estas cidades ficaram saturadas de fugi-tivos, o chefe dos caifazes “enveredou por um caminho revolu-

cionário, mais original. Combinou com alguns fazendeiros, dosquais havia já despovoado as roças, para receberem escravosretirados de outros donos”.5

5. Esta imagem de uma ação racionalizada e bemsucedida é tambémexpressa no romance de Afonso Schmidt,  A Mar cha- Romance da Abol ição , São Paulo, Brasiliense, 1981, publicado originalmente em 1941 e que,entre as principais fontes utilizadas, inclui este muito citado artigo de

218

mente no capítulo III. Quero porém retomála para sugerir que asua permanência na historiografia tem impedido que se enxergueo processo de extinção da escravidão para além do movimentoabolicionista propriamente dito e para aquém da periodizaçãoimposta por este mesmo movimento.6

Embora os escravos raramente tenham voz nos documentoshistóricos — e quando isto acontece, como nos autos criminais,

Bueno de Andrada “A Abolição em São Paulo — Depoimento de umaTestemunha". Este depoimento também consta do livro de Evaristo deMoraes, op. cit.,  pp. 26676. Para uma tese sobre a atuação dos caifazes,ver Alice Aguiar de Barros Fontes,  A Prática Abo licio nist a em São Paulo: os Caifazes (1882-1888),  dissertação de mestrado, Departamento de Histó-ria, FFLCHUSP, 1976. L. K. M. Schwarcz pesquisou as imagens emrelação ao negro constantes deste jornal em  Retr ato em Branco e Negr o.

6. Reportandose à decretação da Lei do Ventre Livre (28 de setembrode 1871), Warren Dean observou que, “ainda que se tenha dito com

freqüência que a lei surgiu em meio à crescente inquietação dos escravos, prov ocada ind iret ament e pela gue rra do Para guai, e que o Imp eradorconsiderava a possibilidade da revolta dos escravos como motivo para propôl a, os historiadores têmse preocu pad o prin cipalm ente com as luta s pessoai s polít icas das figuras par lam enta res, o altru ísmo do Imp erador ,ou questões secundárias como regionalismo". Ele acrescenta que tambémanálises mais sistemáticas têm deixado em segundo plano a tão mencio-nada inquietação para centrarse preferencialmente nos aspectos de de-senvolvimento econômico e na correspondente percepção dos fazendeiros

219

suas respostas ficam condicionadas às perguntas de seus inquiri-dores —, foi possível perceber o crescimento de suas lutas nadécada de 1870, sendo agora preciso questionar até que pontoesta escalada da violência impulsionou os abolicionistas a radi-calizar seu movimento em meados da década de 1880.

Ao analisar o conteúdo discursivo do jornal  A Redempção,  constatei a presença deste movimento subjacente, implícito, dosescravos em revolta, a insinuarse no ideário produzido pelosabolicionistas em sua tentativa de generalizar e racionalizar omundo restrito de seus próprios interesses. Contrapondose aogrande medo que assolava as “melhores famílias”, os abolicio-nistas pretenderam desenvolver uma ação normalizadora e re-

vidão, bem como a necessidade de acabar com ela. Teremosassim a compreensãode como eles representavam o seu próprio

 papel social ou a sua atua ção polít ica naquele momento histórico.Em primeiro lugar, o texto de um redator de linha marcan

temente positivista e republicana, publicado em 1.° de marçode 1888:

“As instituições se moldam de acordo com o meio  social;tudo tem sua época, sua quadra, tudo tem sua fase de flores-

cência e vigor, decadência e desaparecimento, dando lugar anovas reformas, cada vez mais aperfeiçoadas de harmoniacom a marcha evolutiva da humanidade.

As sociedades e as civilizações variam, melhoram, sedifi f i ã di t d di t t

Page 112: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 112/138

formista.

Contudo, em função do crescimento daquele mesmo movi-mento cuja imprevisibilidade parecia ser objeto particular deseus temores, os abolicionistas de São Paulo viramse na contin-gência de reformular e radicalizar suas propostas. Ao mesmotempo faziam questão de proclamar a sua condição de dirigentes

máximos do processo de extinção da escravidão, ressalvando porém que não se responsabilizavam pelas violências então emcurso. Pelo contrário, enfatizavam, seu objetivo era a harmoniae a integração sócioracial, para que os negócios da provínciaretomassem o desenvolvimento e alcançassem o tão sonhado

 progresso.

1. A DEFESA DA ORDEM

Vamos tentar nos aproximar um pouco dos abolicionistasde  A Redempção  buscando o modo como eles explicavam a escra

de que o trabalho livre era mais produtivo do que o escravo. Para esteautor, é em suma "inaceitável considerar os escravos como seres inertese passivos, cujo papel alterouse apenas com a mudança de condiçõesque estavam além de seu alcance ou compreensão", in Rio Claro  —Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura 1820-1920,   pp. 1267.

220

modificam e se aperfeiçoam na razão direta do adiantamentointelectual da humanidade'’.

Após enaltecer a civilização atual com todo o seu progressotécnico e filosófico, em compasação com o atraso de épocasanteriores, o autor passa à segunda parte de seu artigo, ondedemonstra que a origem dos agrupamentos humanos ligavase

à necessidade de defesa e exalta o papel da guerra como pode-roso fator de organização social (com ela apareceram o chefe ea disciplina) e de desenvolvimento industrial (aperfeiçoamentodas armas). A escravidão teria surgido “com os primeiros vis-lumbres da civilização’", afirmandose como uma “instituiçãohumanitária” na medida em que, ao invés de matarse os prisio-neiros, passouse a escravizálos. E uma vez demonstrado que atémesmo a escravidão teve o seu tempo de legitimidade, o autoresforçase por traçar um corte bem nítido entre a velha e anova era:

“Certas instituições, como a escravidão, as monarquiase algumas mais,  foram medidas provisórias para garantir asociedade naquele tempo, cuja estabilidade e permanênciaem nosso tempo constituem um atentado, pecam por obso-letas”.

Em resumo, para este redator, escravidão e monarquia não passavam de “dois trambolhos” , sendo por tan to preciso lutar 

221

contra ambos a fim de que o país pudesse equipararse às “gran-des nacionalidades”.

A necessidade de abrir o país ao progresso, o que significavaacabar com instituições caducas, é também o móvel do artigo‘■Immigração”, publicado em duas partes, respectivamente nosdias 17 e 20 de fevereiro de 1887. Nele o autor quer provar queo Brasil necessita de imigrantes porque eles constituem “impor-tação de trabalho e de capital”. São em suma “a vida” quefalta à nação, os dois elementos necessários “para explorar edesenvolver as suas imensas riquezas naturais”. Por isso a escra-

vidão, ou seja, a negação da vida no país, precisa ser urgente-mente abolida, abrindo espaço para aqueles que virão vivificara pátria e que se não o fizeram até agora em maior número foiapenas devido à repugnância despertada pelo regime escravista.

a ordem, o progresso, e o negro poderia vir a ser a desordem,o retrocesso. O papel dos abolicionistas estaria justamente emcoibir a desordem e viabilizar a ordem.

Esta associação do negro com a idéia de negação da ordeme do progresso aparece em vários artigos. Há, no entanto, nocaso dos abolicionistas, um esforço em associar tais conotaçõesmaléficas do negro com a sua vivência de escravo. Mas nemsempre se consegue isto, saltando à vista o preconceito racialsem subterfúgios teóricos em alguns momentos:

“(. . .) o distintivo do abolicionista é a limpeza da consciên-cia, é o libertar aqueles a quem estão roubando e deixálosque vão tratar de sua vida ou pagarlhes o salário a que tem

direito todo aquele que trabalha; é ter sua casa seu lar e

Page 113: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 113/138

A preocupação do autor em justificar o papel dos aboli-cionistas diante dos fazendeiros é muito grande e ocupa uma

 par te considerável do texto. A abolição não deve ser associadaà idéia de desordem, muito pelo contrário, ela trará ordem namedida em que o negro fique sob permanente coação, além de

 possibil itar a riqueza, isto é, a imigração.

“Somos acoimados de precipitados, de incendiários, quan-do aconselhamos a abolição imediata da escravidão (. . .) .

 Não pe ns e o es cr av oc ra ta qu e qu er em os a de so rd em , a

vagabundagem ( . . . ) .

Entendemos que o liberto que não quiser trabalhar, pre-ferindo a vadiação e a mendicidade, deve ser coagido ao tra-

 ba lh o, sob as ma is se ve ra s pe na s. ( . . . ) Port an to , a ab ol iç ãoimediata da escravidão é uma necessidade palpitante parao desdobramento da riqueza geral do país, precedendoa, semdúvida, medidas preventivas”.

 Neste artigo podese discerni r duas imagens bem dist intasque caracterizariam o período pósescravista, conforme previao autor: de um lado o imigrante, significante de riqueza, detrabalho livre, de vida; de outro, o liberto, aquele que não temnenhuma renda e que pode significar vagabundagem e, portanto,necessidade de trabalho sob coação. Em suma, o imigrante seria

direito todo aquele que trabalha; é ter sua casa, seu lar esua família limpa da lepra negra que contamina a todos e

 pe rv er te os co stu mes ( . . . ) ” (“ Es pe cu la çã o In dust ri a l” , 11 dedezembro de 1887).

 Neste artigo, que não foi escri to com intenção de apresentarum projeto abolicionista, mas tãosomente de repudiar a ação

especulativa de fabricantes de chapéus com distintivos da Abo-lição, o autor não se preocupou em apresentar argumentos re- buscados. Por isso temos claramente que o objetivo dos abolicio-nistas era não apenas libertar os escravos, mas também livraros lares da “lepra negra” responsável pela perversão dos costu-mes, pela desordem moral reinante.

Ao longo destes três artigos podemos visualizar um projeto

abolicionista que, embora não fosse homogêneo — na medidaem que o jornal contava com colaboradores de diversas correntes polít icas (liberais, conservadores, republicanos) — , oferece algu-

mas linhas mestras. Em primeiro lugar, a escravidão não temrazão de ser porque não se enquadra na fase atual de progressoe civilização; conseqüentemente, é preciso abolila e de formaimediata. Em segundo lugar, é necessário garantir a ordem, sema qual não há progresso; por ordem entendese a Abolição acom-

 panhad a de medidas capazes de impedir a desordem, isto é, aação desgovernada dos negros; a Abolição com ordem será com-

223

 plementada com os elementos do progresso, os imigrantes. Emterceiro lugar, sem a escravidão, as famílias ficarão livres dosnegros e os costumes até então pervertidos por eles encontrarão oseu caminho ordeiro.

Há também nestes artigos uma distinção bem nítida entre“nós” os abolicionistas e “eles” os escravos; ou, em termosraciais, “nós” os brancos e “elesJ' os negros. A explicitação distoaparece em “Mulatos e Negros Escravocratas”, publicado em25 de setembro de 1887. Após denunciar a ação de capitãesdomato negrosi e mulatos, o autor assegura que isto não é umaexceção, mas quase que uma regra na raça negra, mais afeita aservir aos brancos escravocratas e distanciada dos quadros aboli-cionistas:

Ê interessante observar que os termos comumente utilizados pelos teóricos do racismo para explicar a inferioridade dosnegros são trocados nesta análise, travestidos pela roupagem daescravidão. Aqui os negros são inferiores não porque o fossem joriginalmente (biologicamente), mas de qualquer modo o são i porque o malefício da escravidão neles teria se infil trado a pontode seus sentimentos não serem tão bons como os dos brancosque nunca foram escravos. Isto significa que mesmo libertoseles carregariam ainda por muitas gerações um sangue distinto

dos brancos, o “sangue escravo”.Ao final de contas a distinção racial em termos de inferio-

ridade mental do negro permanece, embora não tenha partidode argumentos especificamente racistas. O negro é inferior (não

Page 114: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 114/138

cionistas:

"Nós porém que temos de perto examinado os aboli-cionistas com quem convivemos temos observado que se hámaior dedicação no abolicionismo, salvo raríssimas exceções,é sempre dos brancos.

Mesmo entre os homens educados e graduados que per-tencem à raça mestiça de branco e preto, há certa negação

 para a causa da liberdade”.

Como prova disto, o autor cita os advogados mulatos queservem a causas escravistas, os mercadores “quase negros” deescravos, a resistência do mulato Cotegipe (chefe do gabineteconservador naquele momento) à Abolição, os cruéis senhoresnegros e mestiços. A explicação para o descaso dos negros comrespeito à libertação de sua raça encontrase na própria escra-vidão:

“Grande número de mulatos e negros entendem que de-fender a sua raça os desdoura; porque acreditam eles que aliberdade os fez brancos e que o cativeiro é que enegreceos homens e não a cor...

A ignomínia da escravidão infiltrouse de tal forma 'nessa pobre gente que muitas gerações são precisas para purificarlhes e dar os sentimentos próprios daqueles quenunca tiveram sangue escravo”.

224

de argumentos especificamente racistas. O negro é inferior (nãotem bons sentimentos, não liga para a liberdade, não tem apegoaos que lhe são próximos) e vai ser inferior ainda por muitotempo porque carrega nas veias “sangue escravo”. Na análise propriamente racis ta bastaria trocar este último termo por “san-

gue africano”.

Por último o autor conclui responsabilizando os própriosnegros pela permanência da escravidão: “Se os mulatos e negroscompreendessem seus deveres, se essa gente tivesse brio, já nãohaveria mais um só escravo no Brasil”.

Dada, portanto, a passividade e colaboracionismo dos ne-gros, contaminados pela escravidão, cabia aos brancos de senti/"mentos puros, os abolicionistas, libertar a raça negra.

Ordem e coação

Manter a ordem para assegurar a prosperidade da nação,e mais precisamente da província, por vezes explicitada emtermos da própria riqueza dos fazendeiros era, conforme já seapontou acima, a grande preocupação dos colaboradores de A Redempção.  A percepção de que os negros constituíam umaameaça aos interesses materiais da grande propriedade sobressaiem vários artigos do jornal, alguns dirigidos aos próprios pro- prietários e outros destinados a orientar a ação dos caifazes na província.

225

 No início de 1888, quando a desorganização das fazendas já atingia o auge devido às ret iradas sucessivas de escravos,Antonio Bento veio a público — o que era raro, sendo os artigosem geral anônimos ou sob pseudônimo —, para defenderse deacusações de promoção de desordens:

“Tenho mantido a propaganda abolicionista evitando portodos os modos qualquer desordem, quando poderia ter im-

 pulsionado uma revolução.

Ora, agora que a província de S. Paulo está quase com- pletamente livre, eu havia de aconselhar desordens dessanatureza?” (“Negócios da Ressaca”, 25 de março de 1888).

Em outro artigo da mesma época ao invés da imagem

“Em nome da prosperidade desta província, em nomedo patriotismo, a bem da tranqüilidade e ordem pública; em prol da própria lavoura, imploramos do honrado sr. presi-dente da província o grande benefício de sancionar esse pro-

 jeto. £ um ato de patriotismo e de amor para com a provín-cia de S. Paulo” (“Gravíssima Responsabilidade”, 11 demarço de 1888).

Mas o que se escondia atrás do fantasma da anarquia, da

desordem? Como já vimos acima, o negro, quando aparece nosartigos dos caifazes, está sempre muito associado a estas imagens.

É o que se vê no artigo assinado sob o pseudônimo de Galnei, que responde às críticas de outro pseudônimo,  Rei-Lottor.  Ao

Page 115: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 115/138

Em outro artigo da mesma época, ao invés da imagemassustadora da revolução, temse uma outra, não menos alarman-te: a anarquia. Após apoiar o projeto de iniciativa republicana,estabelecendo um alto imposto de 400$ sobre todo escravo matri-culado na província e que, segundo o artigo, dificilmente passariana Assembléia Provincial, seu autor conclui com um recado aos

 proprietários:

“Mais tarde não se queixem dos anarquistas.Quando quiserem arrependerse, será tarde. Quem po-

derá impedir a marcha de uma idéia triunfante? Nesta província já não é preciso a intervenção dos po-

deres públicos para a extinção da escravidão.Se o projeto não for sancionado, em vez de se conter

a famosa e célebre hidra da anarquia, veremos então aber-tamente como se há de encaminhar a desorganização do tra- balho e o despovoamento das fazendas” .

O texto é bem explícito: a escravidão já estava em vias deabolirse por si mesma, anarquicamente, sem as rédeas da auto-ridade, do governo. Era preciso, portanto, sancionar leis capazesde conter a desordem, de coibila, de apressar o fim da escravi-dão, por um lado, e de ordenar aquele período em termos damanutenção da força de trabalho nas fazendas, por outro. Adefesa dos interesses dominantes esclarecese ainda mais ao final,no apelo dirigido ao presidente da Assembléia:

226

que parece, este último, de “idéias intransigentes”, segundoGalnei,  queria a abolição imediata sem condições, o que seriadepois a posição realmente assumida pelo jornal, em especialnos primeiros meses de 1888, acompanhando a radicalizaçãodo movimento. Já Galnei  defendia desde a fundação do jornal

a abolição da escravidão, porém, com a transformação compul-

sória do exescravo em trabalhador “contratado”, ou seja, obri-gado ao trabalho por três anos no estabelecimento do “contra-tante”, o exsenhor. Seu salário seria determinado por lei. Comisso Galnei  procurava atingir os seguintes objetivos:

"Estabelecer um meio de transição suave entre a condi-ção de escravo e o estado livre.

Fazer com que a substituição do braço escravo pelo braço livre se operasse sem a desorganização do trabalho.

Criar um meio de aprendizagem — moral e intelectual —,

a favor dessa classe infeliz que não pode ficar abandonadaaos seus próprios instintos e à ignorância mantida pelo regimeda escravidão.

Inventar, com o título de contratado, um estado de tran-sição que em nada se assemelhasse ao do escravo atual e queentretanto não os deixasse supor que possuem a liberdadeabsoluta de ficarem na ociosidade ou de praticarem livre-mente o mal” (“Orientação Abolicionista”, 14 de julho de1887).

227

 Não era possível, pois, entregar a liberdade imedia tamente

ao negro, porque, além da sua ignorância, havia a temer os seusinstintos. Livre, ignorante e podendo dar vazão aos seus impul-sos, o negro cairia na vagabundagem e no crime, com a conse-qüente desorganização do trabalho nas fazendas. Era preciso, portanto, assegurar o seu enquadramen to na sociedade, coagin-doo suavemente ao trabalho mediante a criação de uma cate-goria ilusória de liberdade, de meio caminho entre a escravidãoe o estado livre.

Mas, ao que parece, no momento em que não foi mais

viável a aplicação de planos como este, o jornal adotou a firme posição de reiv indicar a abolição imediata e sem condições. Seguramente a ameaça representada pela saída desordenada eem massa dos escravos das fazendas impulsionou o órgão dos

23 de setembro de 1887. O quadro descrito por ele é sem dúvidaalarmante:

“O trabalho servil está completamente perturbado; nãohá confiança no dia de amanhã, nem mesmo no de hoje(apoiado),  os escravos abandonam em massa os estabeleci-mentos agrícolas e não querem mais voltar ao serviço semque haja alguma garantia por parte dos que governam. Distohá exemplo no que ocorreu em Jacareí (. ..). Foram ali liber-tados mais de 600 escravos sob a condição de servirem du-rante o prazo de três anos; ao cabo de três dias esses escra-vos abandonaram as lavouras, e alguns, sendo capturados e

inquiridos, declararam que não depositavam confiança nas promessas dos seus senhores e que desejavam um ato de poder legal, na frase deles, que lhes desse garantia (. .. ).

Até agora a reclamação dos escravos é feita com humil-dade com temor; mas quem diz que eles permanecerão nesse

Page 116: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 116/138

caifazes a posicionarse mais radicalmente, sobretudo a partirdos três últimos meses de 1887.

Podemos percorrer este caminho da moderação à radicali-zação examinando a posição do jornal com relação à questão daliberdade condicional ou incondicional. Em agosto de 1887 o

 jornal posicionase dubiamente mesmo em relação à libertação

imediata, pois não questiona ainda o fato dos escravos estaremadquirindo gradualmente uma liberdade condicional, isto é, comtrabalho obrigatório por um determinado número de anos nasfazendas de seus exsenhores. Em “ Promessa de Liberdade”denunciase o fato dos senhores estarem reunindo seus escravose prometendolhes verbalmente a liberdade num certo prazo.Sem questionar, porém, o regime de liberdade condicional, oartigo preocupavase tãosomente com a forma como isto estavaocorrendo, sem garantias legais.

“A liberdade condicional na forma da lei deve ser con-cedida pelo senhor por meio de um papel escrito, assinado,competentemente registrado no cartório de qualquer tabeliãoou escrivão de paz (. . .)”  (28 de agosto de 1887).

Um mês mais tarde o jornal reproduz o discurso do senadorGodoy, representante de São Paulo, na sessão parlamentar de

228

dade, com temor; mas quem diz que eles permanecerão nessesistema de implorar e não impor? Pode muito bem ser que,depois desse estado pacífico, venha a revolta anunciada peloincêndio, pelo morticínio, e pelo ensangüentamento do solo brasileiro” (“O Directório Liberal e os Abolicionistas de Jacarehv”, 5 de outubro de 1887).

Em conclusão, defendiase a “fixação de um prazo fatal eterminante”, certamente como forma de acalmar os ânimos dosescravos ansiosos pela libertação e que, como evidencia o texto,estavam desrespeitando o poder dos fazendeiros, ao mesmo tempoem que ainda confiavam no poder governamental. Nestas alturas pediase a intervenção legal do governo para arrematar o que já não tinha mais solução dentro dos quadros do regime escra-vista. Esta parece ter sido a conclusão dos caifazes que, namesma edição, denunciam o engodo em que os escravos caíam,aceitando uma libertação condicional:

“Continuam nessas fazendas os libertos condicionais atrabalhar guiados por um feitor armado de vergalho.

Há bem poucos dias os libertos da fazenda do sr. Cotrinem MogiMirim apresentaramse ao dr. promotor público quei-xandose dos castigos que sofriam naquela fazenda (,..)■

229

 No meio de todas estas contradições — querer a liber-dade condicional como meio de estabelecer o regime dotrabalho livre, sem previamente educar aos fazendeiros, é umabsurdo” (“Liberdades Condicionaes”, 5 de outubro de 1887).

É a partir desta época que o tema da Abolição sofre umdeslocamento radical nas páginas de  A Redempção,  deixandode fixarse no escravo e nas suas supostas mazelas para atacarmais decididamente os recalcitrantes escravistas. A publicaçãodas poesias de Os Latifúndios,  de Hippólyto da Silva, alternan-dose no rodapé da primeira página com os capítulos do romancede Harriet B. Stowe,  A Cabana do Pai Tomás,  marca q inícioda fase radical do jornal em 13 de outubro de 1887. De estiloinflamado e sem contemporizações, o poeta panfletário posicio-

liberdades condicionais, e então o povo verá que S. Paulo não

está livre e quem tem de li be rtar . & P aulo são os abolicionistas , . (“Comprehendase esta Mechida!” , 11 de março de1888)>

A fundamentação para este posicionamento aparece logo aseguir, ressaltandose o sentido de se contentar os libertos parase alcançar a ordem, o que significava a manutenção de suaforça de trabalho nas fazendas:

“Há uma desconfiança natural entre o liberto e seuexsenhor.

O liberto quer ter o direito natural de pôr o  pr eço noseu trabalho, de trabalhar para quem quiser.

Page 117: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 117/138

inflamado e sem contemporizações, o poeta panfletário posicionase decididamente pela libertação imediata e incondicional:

“Libertai! Aboli! Em nome da Justiça!Por honra do país! sem perda de um minuto!Sem indenizações, sem ônus, sem tributo,Porque o homem não é d’outro homem propriedade!”

(4 de dezembro de 1887).

De fato esta será a posição do jornal que daqui para frentenão poupará críticas aos fazendeiros que tinham libertos condi-cionais, denunciandoos sistematicamente na coluna “Chronicade Annos”, publicada desde os primeiros números do jornal parao relato de crueldades e fofocas diversas das gentes da província.Além das denúncias, as ameaças:

“Poderiam muitos acreditar que S. Paulo estava livre,

mas ^ós, que conhecemos as coisas de pertcT,'\entendemos quenão pode haver meia liberdade, que ela deve ser inteira ecompleta.

Enganouse o povo e no entretanto existem no cativeiro,trabalhando, uma porção de infelizes que na coletoria figu-ram como libertos. (,..)

Vivemos em uma completa mascarada!Havemos de publicar um por um o nome desses indiví-

duos que festejaram o aniversário do conselheiro Prado dando

230

Obrigálo a trabalhar para certa e determinada pessoa,embora com promessa de salário, é completa asneira (. . .)*

O exemplo que está dando esta província, libertandosem condição seus escravos, que vão imediatamente oferecerseu serviços à lavoura — é a prova mais evidente de que

o único modo que há de restabelecer a ordem  nos estabele-

cimentos agrícolas — é a liberdade sem condição” (“Não seIlludam os Jornaes”, 18 de março de 1888).8

Ordem e orientação

A partir do momento em que o jornal assume firmementea posição de abolição imediata e incondicional, seguese umasérie de artigos dedicados à orientação piática e pedagógica donegro. Procuravase com isso integrálo socialmente a fim deque a ordem pudesse ser restabelecida e o progresso alcançado

7. O artigo referese à festa do dia 25 de fevereiro de 1888, promovida pelos comerciantes nas ruas de São Bento e Imperat riz, em homenagema Antonio Prado, então ministro da Agricultura, quando se anunciou comgrandes pompas a libertação dos escravos da capital.

8. O artigo é de crítica ao projeto de lei do conselheiro Antonio Prado,que estipulava uma libertação imediata, porém, com “salário forçado" por três anos; o assun to é tra tado out ra vez em “Liberdade com SalárioForçado”, 8 de abril de 1888.

231

rapidamente. O objetivo, portanto, não diferia daquele exposto por Galnei,  apenas substituíase a coação explícita (trabalhocompulsório) por uma coação implícita, procurandose criarcondições para que o negro assimilasse uma disciplina de tra-

 balho livre.

Ao assumir tal perspectiva, o jornal começa a estamparalgumas críticas à imigração, denunciando os privilégios desti-nados aos estrangeiros, e o descaso com que era tratado o“brasileiro”, isto é, o exescravo. Desta forma lutavase por

garantir um espaço para a mãodeobra nacional, sem o que oshomens livres do país não se efetivariam enquanto força detrabalho e, em conseqüência, viveriam perigosamente à margemda grande produção capitalista, desenquadrados socialmente,enfim, como elementos potenciais de desordem.

Concedemos ao imigrante todos os favores possíveis: passagem nos vapores e no trem de ferro gratuitamente, hos- pedaria, alimentação, subsídio em dinheiro, abono de manti-mento e terreno barato e a crédito.

Ao brasileiro, que regou a terra com o seu suor, quearrancou dessas florestas o ouro que representa a riquezanacional, não se concede nada; considerase como reprobo, porque quer reaver a liberdade que se lhe roubou.

Basta de crimes! (...) Substituase, na lei que concedefavores aos estrangeiros, a palavra — ao imigrante pelas se-guintes: ao cidadão nacional e estrangeiro.

Ampliese esses favores ao nacional e ao libertando, quetem tanto ou mais direito que o estrangeiro”.9

Embora não descarte a vinda do imigrante, bem como aconcessão de favores a ele Rei-Lottor coloca muito enfaticamente

Page 118: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 118/138

, p

A crítica à imigração e a defesa do exescravo e seus des-cendentes aparece num longo artigo de  Rei-Lottor,   publicadoem 7 de agosto de 1887. Assim como prevaleceu a sua tesede abolição imediata e sem condições, apresentada na polêmicacom Galnei,  também a reivindicação de abolição com reparação

seria assumida logo depois pelo órgão dos caífazes.

“Nós abolicionistas não nos contentamos com a abolição,queremos também a reparação (...) Não basta cotidianamente abrirse as portas a centenas e milhares de imigrantes.

É necessário estudarse, desde já, qual os destinos quehão de seguir os milhares de criaturas que diariamente adqui-rem a liberdade.

Estabelecer para eles, segundo as mais justas aspirações,meios diversos para aproveitarem as suas aptidões adquiridasno trabalho.

Se, até hoje, eles formaram uma das maiores fontes dariqueza nacional, não devem hoje imprevidentemente ficaremabandonados.

 Nós, que não regateamos favores aos imigrantes que aban-donam o lar paterno, a pátria que lhes serviu de berço, unica-mente para virem buscar fortuna em país estrangeiro, e regres-sarem com toda a riqueza que adquiriram para os seus países,não devemos negar os mesmos favores aos nossos concidadãos.

232

concessão de favores a ele,  Rei Lottor   coloca muito enfaticamentea necessidade de incluir o negro dentro das medidas de organi-zação do mercado de trabalho livre. Ao contrário dos imigran-tistas, reconhecese que o negro — agora elevado à categoria de“brasileiro” — tinha também aptidões valiosas, adquiridas du-rante o regime de trabalho servil. Era preciso apenas reparar o

mal que ele havia sofrido durante a escravidão, orientando seudestino de homem livre, sem o qual sua capacidade de trabalhoestaria perdida. Além disso, havia também que lembrar que ariqueza gerada pelo trabalho nacional ficava no país, enquantoo imigrante não se fixava aqui, levandoa de volta para seu país.

Esta instabilidade do imigrante é tratada outra vez em artigo jocoso editado na coluna “Microscopia” , outro espaço do jornaldestinado aos mexericos:

“Andam a jogar as cristas em Campinas, os fazendeirosJuca Bento e Joaquim Paulino (. ..) adivinham por quê? Abo-

licionismo? Qual! Campinas civilizouse! Pois se até o PedroEgídio e o Antonio Américo já libertaram incondicionalmen-te os seus (trecho rasgado).  Os dois fazendeiros jogam ascristas por causa de colonos! Um veio, viu e levou, e vai o

9. O projeto a que se refere o artigo é o do deputado João Bueno que,como se viu no capítulo II, foi repudiado pela Assembléia Provincial.

233

outro põese a namorar os colonos e a seduzilos, fazendolhes propostas (. .. ). Ora verão como para muitos esta coloniza-ção ainda dá em droga (...) e sopapos entre os fazendeiros,que então se arrependerão de não ter dado ao negro livre defato, ou liberto pela fuga, o trabalho que extorquiam infamemente ao escravo” (8 de março de 1888).

Além de uma avaliação irônica do imigrante que iria atrásde quem lhe acenasse com mais vantagens, o relato contémtambém a denúncia de que o negro estaria sendo preterido pelosfazendeiros, mais inclinados a contratar o trabalho estrangeiro

do que o nacional.

Mas não só o negro estaria soçobrando na concorrência comos imigrantes. Também o índio era desprezado a ponto de estarsendo descartado fisicamente, isto é, exterminado, conforme

3. os brasileiros (neste caso os índios), aqueles que poten-cialmente têm interesse no enriquecimento nacional, existem,mas nenhum favor recebem, pelo contrário, são desprezados a

 ponto de serem exte rminados. Estas afirmações convergem paraa necessidade de se aproveitar o potencial de força de trabalhoexistente no país, deslocandose a ênfase na prioridade do imi-grante para o nacional.

 No caso dos índios do oeste pau lista, a proposta era que

a Assembléia Provincial decretasse uma lei de autorização paraa reabertura dos conventos franciscanos no interior. Com isso

objetivavase acabar com o método de “catequizar os infelizesíndios a tiro” e em seu lugar permitir que missionários abnega-

dos chamassem “os índios infelizes para o grêmio da sociedadee da religião”.

Page 119: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 119/138

denúncia feita em “Mortandade de índios”:

“Hoje, que nesta província se trabalha com afinco parase introduzir imigrantes, gastandose para esse fim somas fa-

 bulosas, que fazem tornar quase impossível possuirse algumacoisa, pois que é imenso o gravame de impostos — despo-

voamse os sertões matandose os infelizes índios.Ao estrangeiro, que nenhum interesse tem na prosperidade

deste país, se fornecem meios de transporte, comida, e atéterras; ao passo que aos donos deste país, aos míseros selva-gens, dáse a morte e roubase o que eles têm. (...) Introduzemse de um lado imigrantes e de outro lado matamse os brasileiros, verdadeiros donos deste país” (1.° de março de1888).

Há neste artigo três afirmações relevantes para a discussão

que então se travava a respeito da formação do mercado demãodeobra livre:

1.  a pop ulação.gstá pagando altos impostos, muito mais dor que ela pode arcar, a fim de possibilitar a importação de imi-

grantes pela província;

2. apesar de receber muitos privilégios, o estrangeiro nãoestá interessado no progresso do país;

234

Do mesmo modo que o negro, também os índios deviamser orientados, cooptados socialmente, integrados numa ordemque lhes era alheia. Atrás desta postura humanitária e nacionalista de assegurar o Brasil para os brasileiros, escondia*se tam- bém uma out ra opção em termos de exploração da força de .^ /%•• * ' —.....  *• • *

trabalho. Para os imigrantistas tratavase de trazer imigrantes afim de aumentar a riqueza da classe dominante mediante a explo-ração da sua força de trabalho; já para os abolicionistas deste

 jornal, em sua fase radical, parecia ser menos custoso e maisseguro, em termos de estabilidade da mãodeobra e de paz social,aproveitarse o potencial interno (negros, índios e pobres), ne-cessitandose tãosomente de orientar esta população no sentidoda ordem e do progresso daqueles mesmos dominantes.

Como já se disse acima, no momento em que a coaçãoexplícita do plano de Galnei  deixou de ser viável diante da

onda de retirada de escravos das fazendas, os caifazes limi-tamse a orientar os negros, tentando encaminhálos para ondeseu trabalho fosse mais proveitoso. Num primeiro momento, perante uma situação inus itada, temse a surpresa e a propostaambígua de mandar os fugitivos para províncias despovoadas.É o que se lê num artigo de 20 de outubro de 1887. Apósrelatar fugas de escravos e um conflito entre negros e praças de

235

Itu, ficando alguns praças feridos e até mesmo desaparecidos,afirmase:

“O que achamos esquisito é toda essa gente procuraresta capital.

Seria conveniente que os abolicionistas do interior acon-selhassem os grevistas a dirigirse à província de Goiás eMato Grosso onde podiam formar riquíssimas colônias.

Essa gente encaminhada para esta capital são braços quese perdem, obrigando os abolicionistas a despesas superioresàs suas forças.

Faltam infelizmente aos nossos companheiros do interiorcoragem e patriotismo.

Libertar esses infelizes do bacalhau, mas dirigilos demodo a concorrerem para o progresso de nosso país, é obri-gação de todo brasileiro patriota.

 procura de liberdade. (. .. ) Os abolicionistas procuram em- pregálos a todos para não ser perturbada a ordem” (“CasaBranca”).

Outra notícia enviada de Santos e publicada em 26 de janeiro daquele ano procura apresen tar aquela cidade como focoirradiador da liberdade e da reorganização do trabalho na pro-víncia:

“Grande número de colonos pretos  tem seguido para o

interior, já contratados para o serviço livre da lavoura.E se mais não tem ido segundo informações que temosé devido às sugestões de alguns, que os pretendem desviardessa sábia e paternal resolução, quando deviam secundar osabolicionistas, que depois de terem coadjuvado essa raça infe-li libertando a pela f ga hoje q e a liberdade na pro íncia

Page 120: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 120/138

g ç pQueremos a liberdade de nossa pátria mas também que-

remos que todos os habi tantes concorram uns , com a inteli-gência, outros com o trabalho para o engrandecimento doBrasil” “Que Pena!".

O progresso, portanto, seria alcançado caso os “brasileiros

 patriotas” , isto é, os abol icion istas, usassem da sua inteligência para coag ir os negros ao trabalho onde ele fosse mais necessárioà prosperidade do país, prosperidade esta que parecia coincidircom os próprios interesses da grande propriedade, conformeartigos referidos anteriormente.

A ambigüidade do momento inicial se desfaz à medida queos caifazes definem sua proposta de orientar os negros para oseu aproveitamento no mercado de trabalho livre. A idéia decolônias de negros em regiões distantes cede lugar à idéia doemprego dos negros como assalariados nas fazendas da própria

 província. Com isso os caifazes interior ianos demonstram maiorsegurança quanto aos seus deveres de “patriotas” ou guardiõesda ordem, a julgar por esta notícia enviada de Casa Branca e

 pub licada em 11 de março de 1888:

“Os escravos nestes últimos dias têm abandonado o tra- balho e dirigemse uns para esta cidade, outros para essa em

236

liz libertandoa pela fuga, hoje que a liberdade na provínciaé uma realidade, trabalham em darlhes colocações, entre-gando esses braços livres à lavoura que os tinha aproveitadocomo escravos.

E esse grande movimento que hoje os abolicionistas ope-ram devido à sábia iniciativa do seu glorioso chefe da capital,

fazendo voltar para a lavoura aqueles braços ausentes, vaidar um possante impulso à nossa bela província, que engran-decerá soberanamente, não como nos dias idos de lutas edores, em que o vergalho retalhava as carnes enquanto aslágrimas dos infelizes regavam o solo, mas sob uma novaera, um regime normal, entre as alegrias do trabalho livre.

Temos sob as vistas a carta de um fazendeiro de BelaVista, dirigida a um nosso amigo que se confessa satisfei-tíssimo com 20 colonos pretos  que daqui levou e estes porseu lado também contentes. Este fazendeiro, no dia quechegou à fazenda com seus novos colonos, libertou incondi-cionalmente os últimos escravos que possuía, que não quise-ram retirarse, continuando a trabalhar com os recémchega-dos, gozando das mesmas regalias que estes” (Coluna “Cor-respondência” — “Santos”).

 Neste texto destacamse nitidamente duas postu ras ao que parece muito comuns entre os abolicionistas. Em primeiro lugar ,a postura paternalista já apontada acima. Após expressar uma

237

separação marcante entre “nós’* os abolicionistas e “eles” os .escravos — “os infelizes” — , assumese aqui a posição de guiaredentor dos negros, libertandoos “pela fuga” e “entregandoesses braços livres à lavoura”. Devido a esta “paternal resolu-ção”, os caifazes acreditavam estar satisfazendo negros de umlado e fazendeiros de outro. Aos primeiros dariam a liberdadee uma colocação na sociedade (trabalho e salário) e além dissoo exemplo destes novos trabalhadores livres motivaria a liber-tação dos ainda escravos, bem como sua imediata contratação

 pelo próp rio senhor. Com isso, podese infer ir, o processo aboli-cionista (fuga para Santos, volta como contratado para o interior)seria abreviado, não ocorrendo mais aqueles deslocamentos massivos de negros pela província. Aos segundos, forneceriam tra-

 balhadores livres sem maiores gastos, devolvendo os “braçosausentes” à lavoura. Deste modo a província passaria por um

d i l b i d d f li id d b

grandose socialmente. Portanto, se por um lado era precisocombater seu concorrente nesse mercado — o imigrante bran-co —, reivindicandose direitos iguais para todos, por outrorevelase um esforço em demonstrar que o negro podia ser tão bom quanto o branco.

É muito significativa desta última postura a seguinte notícia publicada em 21 de agosto de 1887, sob o título “ Quanto ValeUm Negro de Batuta na Mão”:

“Na festa da Boa Morte, em Limeira, apreciamos a mú-

sica sendo regida pelo Marques, ele pretinho maneando a ba tut a e chaman do a dive rsos branco s, músicos , à obediênciado compasso. (...) Que grande coisa é a inteligência! (...)Parabéns a Joaquim Luiz Marques”.

N i ã d di i l b b

Page 121: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 121/138

grande impulso, abrindose a era da felicidade com base nanormalidade do trabalho livre.

A segunda postura é a da afirmação do negro como bomtrabalhador. Notese que o autor faz questão de citar a carta dofazendeiro, “satisfeitíssimo” com seus vinte colonos pretos. De

certo modo esta postura é a mesma dos imigrantistas, estesúltimos traçando a imagem do imigrante branco ou amarelocomo bom trabalhador. Por isso, para firmar a imagem do negro

 bom trabalhador, era preciso contrapôla à imagem imigrantistaou pelo menos relativizála, afirmando a igualdade das raças.O negro podia ser tão bom trabalhador quanto o branco, porquenada havia a desmerecêlo em termos de diferenças biológicas.

É o que veremos a seguir.

2. DENÜNCIA DO RACISMO

A crítica dos privilégios concedidos ao imigrante em detri-mento do nacional e a denúncia do preconceito racial em relaçãoao negro podem ser vistas como dois lados da mesma moeda.Tratavase de assegurar um espaç.Q P>ara o negro a fim de que ele pudesse ser aproveitado pelo mercado de trabalho livre, inte

238

 Neste texto temos a inversão do tradiciona l branco sobrenegro, pois aqui é o negro que dirige brancos. Negro poréminteligente, provando que desde que  seja dotado de saberes eque estes sejam reconhecidos pelo branco, o negro pode sobres-sair socialmente.

A fundamentação da nãoinferioridade da raça negra en-contrase em artigo publicado em 14 de julho de 1887. Nele

 procurase demonst rar que a_escravidão dos africanos ocorre radevido à ganância dos brancos e não por serem os negros infe-riores. É certo que os povos da África são ignorantes e muitoafeitos às barbaridades — argumentava o redator —, mas istonão significa que devessem ser escravizados. Se não fosse acobiça, “a raça branca civilizada” poderia ter levado a civilizaçãoà África e o Brasil seria povoado por negros livres.

Embora tenha como objetivo esclarecer a capacidade dosnegros e provar a igualdade das raças, o redator não critica

realmente o axioma das desigualdades raciais com base nas di-ferenças biológicas e distintos níveis mentais entre os povos.Pelo contrário, ele recorre aos ensinamentos do teórico máximodo positivismo, Augusto Comte, para exaltar uma qualidade queseria específica dos negros: a capacidade de sofrimento. “Parase avaliar o que vale a raça negra basta lembrar que ela resistemais às intempéries do tempo e aos sofrimentos da vida (...)”.

239

Já como exemplo da existência de negros inteligentes na

África, ele sintomaticamente aponta os fulas — mestiços de brancos e negros — , “altos , robustos, de cor ave rmelhada, e deinteligência bem desenvolvida”. Além destes negros, não muitoescuros, dada a sua ascendência branca, o artigo encontra outrasinteligências entre os “descendentes próximos ou remotos” da“martirizada raça negra” no Brasil, ocupados nas letras, nasartes, nas indústrias e na política. Portanto, as raças seriamiguais, distintas apenas devido à cor e também “pela maior oumenor civilização dos indivíduos” (“A Raça Negra”).

Apesar das intenções de provar a igualdade das raças, prevalece neste redator o pad rão racial dominan te (branco), en-contrandose inteligência onde os negros não são tão negros, mas

 já mistu rados com brancos. Também no tocante à retid ão decaráter, conforme já se viu acima, e à beleza (física), os aboli-

cionistas pareciam encontrar alguma dificuldade em associálas

É certo que os relatos de viajantes estrangeiros no Brasil

davam conta da existência de escravos brancos devido à intensamiscigenação populacional, mas de qualquer modo a imagem daescravidão estava associada irremediavelmente aos povos afri-canos, sendo o negro um tipo mais característico dela, sobretudo para fins propagandís ticos da Abolição. Tanto isso é palpávelque os redatores de  A Redempção  não poupam críticas aosnegros e mulatos que traíam a sua raça defendendo a escra-vidão. Um bom exemplo é o artigo intitulado “Para os Mulatose Negros Lerem”. Após denunciar o barão de Cotegipe, “ocabra negro”, e Saraiva, ambos autores da Lei dos Sexagenários,

de 1885, e que já estava “produzindo os seus efeitos”, o artigoreproduz um relato da Gazeta da Tarde  a respeito da repressãoem Campos, Rio de Janeiro. E comenta: “Que espetáculoagradável para os escravocratas, acostumados a matar escravos,

 poderem com o patr ocín io de um governo dirigido por uml i i i d i b li i i ” (10 d

Page 122: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 122/138

ao negro.

Sob o título muito expressivo “Propaganda Abolicionista”,o poeta Amelio Braga publicou uma poesia descrevendo os sofri-

mentos de uma linda e virtuosa escrava, encarcerada por cruel

feitor. No entanto o propagandista da Abolição não consegue

criar uma personagem com tais qualidades e ao mesmo tempo possuidora de uma epiderme escura:10

“Eu vi uma mulher linda e ativa,um tipo sem igual! beleza rara!Tão alva qual o mármore de CarraraMas a pobre infeliz era cativa!”

(“A Escrava”, 12 de julho de 1887).

10. O padrão racial dominante branco também prevalece na literaturaabolicionista da época. Como exemplo, temos  A Escrava Isaura,  de

Bernardo Guimarães, publicado em 1875, e O Mulato,  de Aluísio Aze-vedo, de 1881. Ambos os personagens centrais, que deveriam captar asimpatia dos leitores, são descendentes de africanos, porém mestiços,de traços fisionômicos próximos ao do branco e por isso considerados belos.

240

mulato, inimigo de sua raça, assassinar abolicionistas” (10 defevereiro de 1887). Outro exemplo é a denúncia contida nacoluna “Chronica de Annos” de 8 de abril de 1888: “Em S. Josédos Campos, faz anos o Caçu, filho de escravos, inimigo de suaraça, por ganhar dinheiro dos escravocratas para meter as botasnos abolicionistas e desfeitálos pelas ruas (.,.)”.

A percepção de que o negro estava associado ao cativeirodevido à sua cor e que dificilmente se livraria do estigma dainferioridade sobressai de forma muito nítida nos poemas deHippólyto da Silva, reunidos sob o título de Os Latifúndios. Em “Vozes na Treva”, após discorrer em versos os vários argu-mentos escravistas contra os abolicionistas, o poeta conclui:

“(...) Para justificar vosso procedimentoA vossa chave de ouro, a lei do vosso culto,Que nos arremessais à cara, e que é um insultoA toda a humanidade, é esta, sede francos:

‘O negro é sempre o negro. Antípodas dos brancos,ê   um maldito do céu, é um ente desprezívelQue traz na pele impresso o selo indestrutívelCom que Deus o marcou para uma vida inglória!

241

 Nasceu para o chicote, e tudo mais é história!’ ”(27 de outubro de 1887).

Era preciso, no entanto, assegurar um lugar para o negro

e, por isso, em outro poema, Hippólyto da Silva se insurge contraa divisão racial vigente, mostrando através de versos muito

sarcásticos e diretos que isto não tinha razão de ser num país

de tanta miscigenação:

•!* .

"Quem quer que vós sejais — excelso potentadoMarquês, conde ou barão, ministro ou deputado

 Nédio comendador, astuto conselheiro,Mandachuva d’aldeia ou simples fazendeiro,Se gozais da nobreza os foros e a vaidade,

Cujo próximo avô nasceu n'uma cabana,Filho de um europeu que amou uma africana!”

(“Aos Fidalgos”, do folhetim Os Latifúndios, 4 de dezembrode 1887).

De acordo com o poeta, neste país não haveria espaço parao orgulho de raça, uma vez que as raças já se tinham amalgamado a tal ponto que restara tãosomente o brasileiro. Era umaimpostura apelar para as diferenças raciais entre os membrosda elite e seus escravos como justificativa para a escravidão,

 pois sob epidermes mais claras ou mais escuras corr ia agoraapenas “sangue brasileiro”, fruto dos relacionamentos amorososde europeus com africanos. Se havia a escravidão de irmãos desangue, de brasileiros, isto se devia unicamente à ganância dosfidalgos.

Page 123: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 123/138

Mas se também prezais os cultos da verdade, Não toqueis na questão de cor que é uma impostura.

A pele pode ser mais clara ou mais escura,Mas tratase de sangue, e sangue brasileiro,E se vossa ganância, e sede de dinheiroLevouvos a comprar o sangue de um irmão,A culpa não é minha ou dele; é uma questãoQue afeta unicamente a vossa consciência.Quanto ao vosso desprezo, ouvime:

 — É uma indecência

Que afeteis sangue azul, cor branca e raça pura;Vós bem sabeis que quando agora alguém procuraFalar em sangue puro e vai encomiálo,Todo mundo supõe tratarse de um cavaloQue se vai inscrever nas próximas corridas.

( . . . )Quanto a mim que não tenho o sangue azul nas veias,Se um fidalgo me diz — ‘Minha nobreza é alta!5E o sangue dos avós com entusiasmo exalta,Fingindo desprezar — com gestos de taful — A cor dos que não têm como ele o sangue azul,Eu vos posso jurar — esse fidalgo ardenteQuer ocultar ao mundo a pele de um parente

 Notese que neste poema já se delineia muito nitidam ente afigura do brasileiro como resultado da fusão secular de raças,do caldeamento racial tão vivamente descrito por Gilberto Freyreem Casa Grande & Senzala.  O poeta constatava a representaçãoda divisão racial vigente entre as elites, porém não a aceitava,

denunciandoa como um engodo daqueles que queriam perpetuara escravidão. Além disso, reivindicava implicitamente a cida-dania para todos, e para isso relativizava as diferenças de corde pele e distinguia uma mesma origem dos nascidos no Brasil,fossem eles escravos ou senhores.

A luta contra a divisão racial exprimese também no plano prático das denúncias pessoais contra o racismo. Delas sobressaia jie fes a da igualdade jurídica e de d ireitos vários, como, porexemplo, os religiosos. Ê o que se vê no artigo que denunciavaJosé Pereira por ter proposto proibir os negros de participar da

 procissão promovida pela Irm andade do Senhor dos Passos:

“O que estranhamos é que s.s. na mesa da Irmandadedo Senhor dos Passos propusesse que as irmandades de S.Benedito e Rosário sejam obrigadas a fazer Passos todos osanos, mas que essas irmandades por serem de pretos não

 possam acompanhar a procissão.

243

Cristo, quando pregou, não fez distinção entre pretos e brancos, mulatos e caborés e até diz a história que S. Matias

era negro. (...)Já vê o sr. Pereira que Cristo entre os seus apóstolos

também admitiu um preto e talvez S. Lucas e outros após-tolos fossem pretos, porque todos sabem que, na Ásia, omaior número é de pretos do que de brancos.

Ora, por que razão convidandose outras irmandades, porque a de Passos não tem pessoal, para fazer alas na pro-cissão não há de convidar as irmandades dos pretos tantodo Rosário como de S. Benedito, que gastam para fazerPassos? (...)

Convidese as irmandades do Rosário e S. Benedito, ouentão os brancos que se desprezam dos pretos larguem osempregos que ocupam nessas irmandades, porque já há mui-tos pretos que lêem e escrevem melhor o português do quemuitos brancos.

mentação para esta atitude encontrase em Cristo, que não fez

distinção entre uns e outros, e a isto fica implícito que seusseguidores deveriam atentar para os seus ensinamentos. Ao final,

uma advertência também implícita: ou os brancos aceitam osnegros como iguais, convidandoos a se integrarem com eles, ou

 preparemse para serem subst ituídos pelos negros, cuja capac i-dade (nas letras e na política) nada deixava a desejar.

O tratamento iguai no plano jurídico é a tese defendida noartigo que denuncia a discriminação racial contra o liberto Ro-drigo Anta, “homem trabalhador, proprietário”, preso em suacasa horas depois de ter esbofeteado um branco.

“Se Rodrigo Anta fez ferimentos leves em um patife enão foi preso em flagrante, em que disposição de lei se fun-dou o sr. chefe de polícia para mandarlhe arrombar a casa,horas e horas depois, e prendêlo à tarde, quando o fato

Page 124: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 124/138

Sempre fomos inimigos de distinção de raça e a provade que os pretos governam mais que os brancos está noCotegipe, que, apesar de preto, tem dado água para a barbados brancos1’ (“Esta É Boa”, 1.° de março de 1888).

 Neste texto é muito clara a idéia de que viviase numasociedade dividida racialmente. Havia irmandades de brancos{dos Passos) e de negros (do Rosário e S. Benedito) e a subalternidade destes últimos se exprimiria até mesmo no plano reli-gioso, na medida em que pretendiase obrigar a estes a contribuí-rem financeiramente para a procissão. A ostentação, porém, fica-ria por conta dos brancos, deixandose os negros fora do eventodevido à cor de sua pele.

O caminho escolhido por este redator foi o de lutar contraas injustiças resultantes de uma sociedade dividida racialmente.

 Não houve, porém, o intento de demonstrar a inviabilidade daimagem da divisão racial em um país de miscigenados, conforme

 poema acima analisado. Pelo cont rário, o autor do artigo reco-nhece a existência de brancos, pretos e mestiços como figurasdistintas, merecendo todos um tratamento igualitário. A funda-

244

deuse pela manhã?

Oue importa para a justiça que o ladrão ofendido seja branco, tenha um estabelecimento comercial feito à custa deroubos, e o outro seja preto, para mandar arrombar a casae prender o que é preto e deixar o ladrão impune, com

grande perigo da algibeira do próximo?E é o sr. chefe de polícia que, em seu relatório ao go-

verno, afirma que a magistratura está decaída porque con-cede habeas-corpus   a pretos fugidos!” (“O Sr. Chefe de Polí-cia e o Capitão Paulino, TenenteCoronel dos índios”, 18de março de 1888).

Mais uma vez temos a descrição de uma sociedade dividida

racialmente a ponto de a justiça ser administrada de acordo com

a cor da pele de cada um (além da riqueza particular), isto é,

em termos desiguais. Para o autor do artigo importava apenasos termos abstratos, “trabalhador”, “proprietário”, “ladrão”,que fazem de uma pessoa — não importava a cor — um bom ou*

mau cidadão. A. justiça, portanto,, deveria.ser cçga às distinções

raciais e sociais se quisesse realmente fazer jus a esse nome.

245

3. INTEGRAÇÃO E CIDADANIA

Até aqui demonstrei como o esforço pelo controle socialfoi um componente muito forte no discurso dos abolicionistas f de  A Red emp ção . Lutavase contra a escravidão, mas ao mesmotempo procuravase garantir a ordem, orientandose o negro para

 buscar ocupação onde fosse mais necessário aos interesses domi-nantes. Em um primeiro momento propõese a sua coação, masem seguida, pressionados pela crescente radicalização do pro-cesso abolicionista (fugas em massa e desordenadas de escravos),os caifazes limitamse à pretensão de orientálos, lutando aomesmo tempo contra as injustiças resultantes de uma sociedadediscriminatória em termos raciais.

A ânsia de controlar, de não esperar a iniciativa das auto-ridades, revelase com mais ímpeto nos últimos meses do jornal,que correspondem também ao período imediatamente préaboli V

Amazonas iam concretizando a abolição. Quanto a Joaquim

 Nabuco, quando a escravidão já estava por um fio, resolviaangariar mais atenções, procurando em países estrangeiros asolução que não fora capaz de perceber já em mãos de seuscompatriotas.

 Na opinião deste redator eram, por tanto, os abolicionistasabnegados e distanciados do poder que estavam fazendo aabolição, aqueles que acreditavam nas suas próprias forças eque por isso não precisavam recorrer a autoridades de qual-quer tipo para a solução de suas vidas. A percepção de que estadistinção entre abolicionistas orgânicos, radicais,, e abolicionistas

de fachada, moderados,, não era largamente compreendida apa-rece no seguinte comentário, já em vésperas da abolição:

“Quando se escrever a história da escravidão no Brasil,não faltará algum escritor venal que venha pondo essesescravocratas como grandes cooperadores na redenção dos

Page 125: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 125/138

q p p pcionista, traduzindo um sentimento de crise e de descrença acen-tuada nos partidos, no clero e no governo. Muito ilustrativa destafase são as criticas do jornal à atuação moderada do abolicio-nista Joaquim Nabuco. Se Nabuco e os chefes caifazes trocavamcartas cordiais, publicadas em 20 de fevereiro de 1887, te j

cendose elogios grandiloqüentes ao então reconhecido dirigenteabolicionista, apenas um ano depois a aliança e o respeito serompiam em artigos cheios de sarcasmo. Em ‘‘Esperem peloPapa”, Nabuco é ridicularizado e acusado implicitamente decolaboracionista do regime escravista, na medida em que preferiadesertar do campo de luta e procurar Leão XIII na Europa para pedir uma encíclica em prol da abolição.

Ao longo deste artigo de crítica ao abolicionismo festivoda Corte, publicado em 25 de março de 1888, os caifazes sãodistinguidos como uma corrente abolicionista com um modo de

 pensar e agir próprios. Para isso o auto r empenhase em negarvalidade à atuação dos abolicionistas moderados da capital do ^Império, ironicamente denominados “nossos ilustres chefes”.Enquanto seus discursos e cortesias não produziam liberdadealguma, pois ficava sob o controle das autoridades escravocratas,os abolicionistas de São Paulo e também aqueles do Ceará e

246

escravos” (“Liberdade em Botucatú”, 29 de abril de 1888).

Embora reivindicassem para si a iniciativa da abolição, aqual devia incluir não só a libertação dos negros como tambéma sua integração sócioracial, os redatores do jornal por diversas

i

vezes exprimiram seu desgosto com a falta de controle deste processo . Não havia “ leis sociais” que amparassem a sua pro - posta de orien tação dos negros livres e com isso formavamsefocos perigosos de desocupados no interior da província. Alémdisso, havia a ação imoral dos especuladores de colonos negros,que se aproveitavam da sua ignorância para obter trabalho

gratuito.■ A  proposta de aproveitamento dos negros como trab alha -

dores livres parece ter ficado tão fora do controle pretendido pelos caifazes que, no início de 1888, tomouse necessária aseguinte declaração:

“(...) declaramos sob a nossa palavra de honra que nuncacontratemos osserviços dos infelizes foragidos com quemquer ,que seja. (...) O fato de aconselharmos esses homens atrabalharem aqui ou acolá, onde melhor salário o recebam,

247

I♦

não autoriza a que certos patifes usufruam os serviços dessa pobre gente, enganandoos que fazem o pagamento dos seussalários ao redator principal desta folha (...). Fazemos estadeclaração porque estamos informados que alguns canalhas,que outrora talvez se ocupassem em perseguir esta infelizraça, hoje aproveitamse do trabalho desses desgraçados e naocasião do pagamento declaram que ajustarão contas com oredator desta folha” (“Declaração Necessária”, 15 de janeirode 1888).

A proposta de inserção do negro no mercado de trabalho

livre viabilizâvase, pois, nem sempre de acordo com as intençõesdos caifazes. Ora eram os negros que se ajuntavam e ficavamvagando sem destino, ameaçando os interesses dominantes, oraeram os especuladores que consideravam o negro livre apenascomo um ente desprezível pronto a ser ludibriado em seu con-trato de trabalho. Também estes ameaçavam os interesses capi-

a igualdade não só no plano jurídico, como também ao nível dasrelações sociais cotidianas. Os negros deveriam ser tratados comrespeito assim como os brancos, tornandose cidadãos não só

 por direi to, como de fato.

Assim, as atitudes racistas mereceram uma denúncia siste-mática pelos redatores de  A Redempçã o  em sua tentativa defazer ceder a imagem de uma sociedade dividida racialmente,

 produzida pelas relações desiguais e violentas entre senhores eescravos, e substituíla por uma outra, harmoniosa e ordeira —• a de uma sociedade de integração sócioraciaL Nesta socie-dade de integração, tal como idealizada pelos abolicionistas,de São Paulo, os homens livres ou cidadãos teriam asseguradascondições de igualdade jurídica para ascender socialmente, dife-renciandose tãosomente em decorrência das aptidões para otrabalho desenvolvidas por cada um.

Page 126: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 126/138

ç ptalistas na medida em que impediam uma transição ordeira parauma sociedade de iguais no plano jurídico, acentuando os con-flitos decorrentes das discriminações raciais. E, por último, haviauma política de privilegiamento do imigrante no mercado detrabalho, tornando ainda mais difícil a integração social donegro, pois a discriminação contra ele crescia no mesmo ritmodo aumento da concorrência representada pelo europeu.

A percepção de uma sociedade dividida não só em termossociais como também raciais, em que o racismo não ficavacamuflado como hoje em dia, significava também a consciênciada possibilidade sempre latente de revanchismo social. Tal revanchismo poderia aflorar em insurreições sangrentas ou nomero, negativismo no espaço cotidiano das relações de produção.Tanto um como outro significariam desordens, impossibilidadede dar continuidade a um modo de produção com base na explo-

ração e opressão da força de trabalho de uma maioria de não brancos.

Por isso, se se quisesse realmente integrar esta maioria naordem social instituída pelã minoria branca, era preciso tornaresta ordem algo abrangente a ponto de ser incorporada e assu-mida pelos nãobrancos. Tornavase urgente, portanto, assegurar 

248 1

Agora podemos enfrentar duas questões deixadas em abertono início deste capítulo: os abolicionistas realmente significavamuma ruptura com os interesses dos grandes fazendeiros? Eramos arautos de um novo tempo histórico?

Embora sempre fizessem questão de enfatizar a novidade desuas propostas e de imprimir um teor racional em suas formu-lações relativas à necessidade histórica de acabar com a escra-vidão e fundar uma nova era de civilização, os__ãbolÍcionistas

nãojizeram , mais.àLJiae. rmÜ LiSy Íl9s  A9S argumentos, colo-cados por emancipacionistas, que desde o início do século XIX, postu laram a incorporação do negro livre no mercado de tra- balho como medida de controle social.

Assim como os emancipacionistas, também os abolicionistastinham como principais interlocutores os grandes proprietáriose comerciantes, enfim, os representantes do capital. A eles diri-giam suas mensagens e projetos, convidandoos a enfrentar omedo suscitado pelas crescentes lutas dos escravos, não mais

 pela repressão pura , mas sim combinandoa com medidas pater-nalistas de controle social, tais como orientação para o trabalhosob contrato e educação moral e profissional, além de uma regu-lamentação legal do mercado de trabalho livre.

249

Portanto, o fato de os próprios abolicionistas se pretenderemos arautos de um novo tempo histórico não significava que eleso fossem efetivamente. Para isso seria preciso que eles assumis-sem uma postura de ruptura com a grande propriedade, o que,como vimos, estava bem longe de suas pretensões. Ao ultra passar os limites das proposições de emancipação gradual paraassumir de fato a proposta de abolição imediata — sem condi-ções e sem indenização — , os abolicionistas de  A Redempção respondiam não tanto às necessidades que eles julgavam estarcolocadas historicamente, tais como o desenvolvimento econô

micopolíticosocial, o “progresso”, enfim, mas sim à radicali-zação de um movimento de fugas e revoltas de escravos e mani-festações populares que eles pretendiam a todo custo controlar.

Assim, embora os abolicionistas de Antonio Bento quisessemconferir um alto grau de racionalidade às suas ações, muitasvezes eles tiveram de radicalizar suas posições acompanhando

t

CONCLUSÃO

“O elemento estrangeiro que aponta às nossas plagas é portador de uma outra educação ( .. .) , traz na bagagemoutras energias, que nós os brasileiros brancos, pardos e pre-tos não temos atualmente (...). O Brasileiro branco deixousevencer pelo elemento estrangeiro, devido a sua indolênciacaracterística (. ..), devido à péssima educação do passado,onde ele apenas aprendeu a receber e gastar o fruto do tra- balho escravo (. .. ). O Brasileiro negro, esse é naturalmenteinimigo do trabalho, é indolente e preguiçoso, mas não porsua culpa. O nosso negro é atavicamente uma vítima do pas-sado e do viciado cativeiro de quatrocentos anos”1(O Getu- lino.  n.° 6, 2 de setembro de 1923).

Page 127: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 127/138

vezes eles tiveram de radicalizar suas posições acompanhandoa generalização e o recrudescimento dos conflitos no campo enas cidades. Por isso foi somente a partir de outubro de 1887que eles fecharam questão em torno da abolição imediata eincondicional. Antes disso, conforme se viu,  A Redempção  ex-

 pressava uma pos tura ambígua, com artigos propondo um estadode transição para o liberto e outros instruindo os escravos decomo proceder em caso de alforria condicional, consideradalegítima desde que registrada em cartório.

Foi, portanto, em reação às fugas e rebeliões de escravosnas fazendas, revoltas e manifestações citadinas de negros eabolicionistas populares, que os dirigentes abolicionistas assumi-ram uma postura decisivamente prólibertação, sem prazo e semcondições, combinada com projetos de integração do negro nomercado de trabalho livre e de conciliação sócioracial.

250

Ao escrever este artigo em resposta a um outro que lamen-tava as condições miseráveis de vida do negro frente ao enrique-cimento do imigrante europeu, o redator deste jornal, fundado

 por militantes negros em Campinas (SP) “para a defesa dos

homens pretos”, apenas expressava o que já vinha impregnandoo imaginário social há algumas décadas. A escravidão, fontede todos os males do país, seria a responsável pela presenteindolência e má educação de brasileiros de todos os matizes.

E a partir desta assertiva chegavase à seguinte conclusão: aesta incômoda herança dos tempos de trabalho escravo deviase

a marginalização do negro, bem como a simultânea ascensãosocial do imigrante europeu, portador das virtudes do trabalhodisciplinado, responsável, regular.

Podemos reconhecer neste conjunto de idéias que então

começava a se esboçar os primeiros passos para a formulaçãodo que hoje já constitui uma espécie de senso comum da cha-mada historiografia da “ transição”. Mas vamos retomar a questãoformulada no início deste livro: até que ponto a imagem denggros e mestiços como uma massa inerte, desagregada, inculta,sem grande importância histórica em fins do século XIX — namedida em que já teria saído marginal da escravidão e defor

1 251

raada por ela — , não surgiu do âmago de todo um imaginárioracista que procuraria com isso justificar a necessidade de trazerimigrantes europeus em substituição aos escravos?

w . . . _ • • •

Para respondê!a foi preciso inicialmente resgatar toda umaintensa produção intelectual que formulou projetos com vistasà instituição do mercado de trabalho livre pelo Estado, aprovei-tando, dinamizando e regulamentando aquele que já existia para lelamente à escravidão. Contemporâneos de revoluções deideário liberal e democrático e de violentas revoltas e insurrei-

ções de escravos em toda a América, estes primeiros reforma-dores procuravam dar conta dos problemas decorrentes de um possível término da escravidão e de sua substitu ição por relaçõesde trabalho livre.

Ao acompanhar estes projetos que começam a surgir jános primeiros anos do século XIX temse a nítida impressão

 por uma corrente de políticos imigrantistas, entre eles tambémalguns abolicionistas, o negro começa a ser descaracterizado nãosó enquanto força de trabalho, mas sobretudo como futurocidadão. A partir daí os argumentos especificamente racistas(mais em termos biológicos que culturais) ou de racismo cien-tífico, complementados por outros encontrados nas teorias dasaptidões naturais, começam a descartar os descendentes de afri-canos, acusandoos não só de membros de uma raça inferiortendente fatalmente à ociosidade, à desagregação social e ao

crime, como também de maus trabalhadores, de incapazes parao trabalho livre.

Assim, o imaginário do medo, aquele que tinha por centroa figura do negro instável e perigoso que exigia um permanentecontrole da parte do branco, vai gradualmente cedendo lugara um outro imaginário de paz e progresso e cuja personagem

Page 128: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 128/138

nos primeiros anos do século XIX, temse a nítida impressãode que se está armando uma caçada aos negros e mestiços emgeral, com todo um arsenal de propostas e de medidas disciplinares visando enquadrálos socialmente na posição de traba-lhadores livres a serviço do capital. Isto num primeiro momento,

quando praticamente não se contavam com outras perspectivas anão ser a transformação dos próprios escravos e também dos pobres e índios em trabalhadores livres.

Até aqui, embora a inferioridade racial do negro — vistamais em termos culturais do que biológicos — fosse sempremuito ressaltada, não se colocava então a questão da sua inca- pacidade para o trabalho livre, isto desde que ele fosse conve-nientemente disciplinado, via coação policial, administração esta-tal de seu cotidiano e internalização do “amor ao trabalho”.

Mas, mais do que trabalhadores livres, estes autores preten

^ y d i a m formar a longo prazo uma cidadania ou nacional idade,\tentando assim se antecipar aos problemas que poderiam decorrer

de um j>aís cujos habitan tes não a^iam como um “ povo” e simV \ como partes heterogêneas, exercendo livremente seus conflitos

sociais, sem a mediação padronizante e contemporizadora doEstado.

 Já  num segundo momento, à medida que a possibilidadede uma grande imigração européia tomava corpo, impulsionada

252

a um outro imaginário de paz e progresso e cuja personagemcentral e redentora dos males do país era o imigrante.

A comparação de projetos de emancipacionistas que pos-tulavam o aproveitamento do próprio potencial nacional de forçade trabalho com outros centrados no tema da imigração estran-geira permite destacarse alguns pontos peculiares ao discursoimigrantista:

 — em primeiro lugar, fazse a exaltação do imigrante branco,  da necessidade de sua vinda a fim de se instaurar umtempo de progresso no país, com a efetiva formação de umanacionalidade e uma cidadania;

 — em segundo lugar , temos a afirmação taxa tiva e colocada í & de forma inquestionável da incapacidade do negro para o tra- balho livre.  O negro é incapaz não só devido ao peso da escra-

vidão sobre a sua formação moral, como sobretudo por pertenJ (pcer a uma “raça inferior”;

 — em deco rrência desta assertiva, o discurso imigrantistaapresenta um terceiro elemento fundamental pela constânciacom que aparece: a afirmação da  passividade dos nacionais, com exceção, é claro, da própria elite. Por serem descendentesem sua maioria da “raça africana”, os nacionais livres teriamno sangue a inferioridade racial e por isso eram considerados

253

entes passivos e incapazes para o trabalho livre. A concepçãoda passividade dos nacionais atribuíalhes vários defeitos incontornáveis, em função das suas origens raciais: falta de energia,de iniciativa, de responsabilidade e disciplina, em suma, inca- pacidade para o trabalho livre e par a a vida regrada numasociedade civilizada; baixo nível mental e irracionalidade; ten-dência para a vagabundagem, a bebida, o crime. Em resumo, anegação de tudo que era atribuído ao branco enquanto caracte-res inatos. Assim, além de justificar a impossibilidade de apro

veitálos como trabalhadores livres, a imagem de seres passivosservirá para descartálos totalmente do discurso do presente,referindose a eles apenas num futuro indefinido, quando játeriam sido regenerados racialmente pelos seres atuantes, osimigrantes brancos. Por regeneração racial entendiase não só amiscigenação, como também “o exemplo civilizador”, o que os

negro em trabalhar devido ao “fator herança da escravidão” ou“traumatismo” do escravo, pois para ele a liberdade seria ocontrário do trabalho. Assim, o negro teria se marginalizadodada a sua incapacidade para o trabalho livre, o que se explicahoje por ter sido escravo, e não mais por ter “sangue africano”.Por sua vez, esta transmutação da representação imigrantistaracista — negro vagabundo — , em tema historiográfico — exescravo incapaz —, deve ser entendida den tro do contexto sus-citado pelo mito da democracia racial, engendrado este a partirdas imagens paradisíacas de um país escravista sem preconceitosraciais, veiculadas tanto por imigrantistas quanto por abolicio-nistas.

Portanto, embora depurada de seus termos racistas, perma-nece ainda hoje íntegra a argumentação desenvolvida por aquelesque conseguiram se impor no cenário político da província de

Page 129: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 129/138

 branquear ia física e moralmente;

 — a concepção de tran sição, ou seja, a necessidade de seinstituir um tempo transitório em que o escravo seria substituídogradualmente pelo trabalhador livre, é um quarto elemento deste

discurso. O tempo de transição denota ordem, segurança pública,defesa da propriedade privada — em particular a grande pro- priedade agrícola — , início ou reto mada do desenvolvimento,enfim, um caminhar sereno e certo rumo ao tempo de progresso. Era o que então se representou como a passagem do “velho”

 para o “novo Brasil” . Neste período a irracio nal idade do regimeescravista seria erradicada gradativamente, na medida em queos escravos irracionais fossem sendo substituídos pelos imigran-tes, isto é, os trabalhadores livres que incorporavam a capacidadede agir racionalmente. O silêncio em tomo do destino dos exescravos e nacionais em geral a partir deste tempo de transiçãotem sua lógica na negação da sua capacidade para o trabalholivre, contraposta à afirmação da capacidade dos seres que eramconsiderados étnica e racialmente superiores.

Atualmente podese constatar a permanência desta idéia —a vagabundagem do negro —, transformada em tema historiográfico, destituída porém da argumentação racista do imigran-tismo. Ao contrário, convencionouse explicar a “recusa” do

254

maior desenvolvimento econômico em fins do século XIX. Aproveitandose deste debate nacional sobre trabalho e nacionalida-de, que em meados da década de 1860 começa a produzir asimagens contrapostas do negro incapaz/imigrante capaz, os

 polít icos paulistas tra taram de prati car o projeto imigrant ista . Não o fizeram, porém, por uma questão de pura adesão aosideais racistas ou às modernas teorias científicas raciais trazidasna bagagem de diversos jovens de elite que faziam seus cursossuperiores na Europa. Longe de constituir uma mera importaçãode idéias, esta adesão ao racismo científico transcorreu na me-dida mesma da exacerbação das lutas entre escravos e senhores.

A preocupação com o aumento “avassalador” dos crimese revoltas de escravos por toda a província de São Paulo cons-tituiu um dos grandes temas de debate dos deputados provinciaisque nos anos 70 confrontaramse com o problema da próxima

extinção da escravatura. Para muitos deles o crescimento desteseventos sangrentos estava relacionado à vinda massiva de negrosdo norte do país, a maioria “maus” e “criminosos” e por issomesmo vendidos por seus proprietários. Acreditassem ou nãoque os negros vindos do norte eram piores do que aqueles jáestabelecidos em São Paulo de longa data, o fato é que, aodificultarem o tráfico interprovincial mediante pesadas barreiras

255

 pecuniária s, os deputados procuravam reverte r uma perigosa predom inância de nãobrancos escravos ou pobres livres sobreuma minoria branca e proprietária dos meios de produção.

Ao mesmo tempo, os parlamentares provinciais atiraramsecada vez mais à formulação de projetos imigrantistas, apresenta-dos com esmeradas argumentações de cUnho racial em favor dotrabalhador branco, ou quando muito em apoio à vinda tempo-rária de colonos chineses, que abririam caminho para a imigra-ção tão ansiada de membros da raça superior ariana.

Deste modo, na medida mesma do crescimento dos temoresdestes deputados, formulavase todo um conjunto de projetos,que, vistos a distância, dão a idéia de um plano genérico de

 branqueamento da população. De um lado , barravase a ent radade mais negros, de outro abriamse as portas da província, ace-nandose com vários privilégios aos valorizados imigrantes. Con-

Em fins da década de 1870 e início de 1880, os relatóriosde polícia e de presidentes da província de São Paulo dão contade uma generalização das revoltas de negros nas fazendas, bemcomo do apoio mais incisivo e ativo de populares à causa dosescravos. São os primeiros abolicionistas que em ruas e matasexpunham a própria vida e cujos nomes não entraram para aHistória. A partir de meados de 1887, com as fugas massivasde escravos e maior atuação dos abolicionistas, começam tambémas manifestações de negros nas ruas da capital e cidades dointerior. Seus protestos, bem como a ação violenta de gruposarmados a serviço dos proprietários escravistas, indicam o nívelde radicalização a que haviam chegado tais conflitos, abertos egeneralizados em toda a província.

Por outro lado, os abolicionistas ou caifazes de AntonioBento, apesar de afirmaremse contrários aos interesses dos

Page 130: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 130/138

tudo, não havia obviamente um plano racista firmado a vriori, embora muito se tenha aproveitado da farta literatura científicasobre o assunto que circulava na época. Apenas os representan-tes políticos dos fazendeiros de São Paulo tiveram de tomaruma posição diante de uma situação de grande instabilidadesocial e acabaram assumindo uma postura imigrantista.

Quanto aos deputados que ao longo da década de 1870 emesmo até meados de 80 colocavam em dúvida os argumentosimigrantistas relativos à impossibilidade de aproveitamento donacional e à escassez de braços no país, ou aderiam ao imigran-tismo ou caíam em total descrédito. Ê que, dado o fortalecimento

^da tendência imigrantista na Assembléia Legislativa Provincial,1não havia mais espaço político para propostas deste tipo. Tra-tavase a todo custo — e a província inteira subsidiou ampla-mente estes gastos vultosos com a imigração — de trazer imigran-tes europeus em substituição aos negros, não só nas fazendascomo também nas áreas urbanas. Ê nesta perspectiva de higienização do espaço urbano, considerado o espaço do progresso porexcelência, que devem ser compreendidos vários projetos quevisavam uma espécie de sutil segregação dos exescravos e na-cionais livres nas áreas rurais, a serviço compulsório dos lati-fúndios ou de colônias militares agrícolas.

grandes proprietários escravistas, demonstravam nesta época umagrande preocupação em relação ao futuro daqueles mesmos se-nhores, cuja riqueza estava sendo ameaçada pela retirada emmassa dos escravos das fazendas. Seu ajuntamento explosivo nascidades e campos, seu viver ocioso, estaria colocando em riscoa “prosperidade” e o “progresso” da província e, por conseguin-

te, da nação, uma vez que grandes capitais aqui se concentravam.E, por isso, estes abolicionistas que têm sido apontados pelahistoriografia como dos mais radicais e mesmo revolucionários,

acabam propondo medidas de controle social sobre os ex

escravos a fim de devolver aos fazendeiros esta mesma força

de trabalho que lhes escapava, agora porém na condição de

assalariada.

Deste modo, por caminhos diversos e por vezes conflitantes,

as ações políticas de imigrantistas e abolicionistas acabaram porse complementar, os primeiros substituindo negros por brancosem atividades rurais e urbanas (ao menos, as mais valorizadassocialmente e melhor remuneradas), e os segundos contribuindo

 para concret izar em par te as antigas proposições emancipacio-nistas de controle social e sujeição do negro livre aos interessesdo grande proprietário.

257

Assim, se é preciso reconhecer a existência sempre reno-vada de “heranças” do passado escravista, é preciso buscálassobretudo no profundo racismo herdado do imigrantismo, alémda concepção emancipacionista e abolicionista de que o negro,embora cidadão, devia continuar sujeito aos interesses da elite

 branca devido ao seu passado ou “sangue escravo” .

BIBLIOGRAFIA

ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor Ausente  — Estudo Sobre 

Page 131: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 131/138

258

a Escravidão Urbana no Rio de Janeiro — 1808-1821.  Dis-sertação de mestrado, Departamento de História, FFLCHUSP, 1983.

ALVES, Henrique L.  Bibliografia Afro-Brasileira.  São Paulo,

Ed. H., 1976.BEIGUELMAN, Paula. Formação Política do Brasil.  2.a ed., SãoPaulo, Pioneira, 1976.

.  A Formação do Povo no Complexo Cafeeiro  —  Aspectos Políticos. 2*   ed., São Paulo, Pioneira, 1977.

.  A Crise do Escravismo e a Grande Imigração.   2.a ed.,São Paulo, Brasiliense, 1981.

BENJAMIN, Walter. “Sobre o Conceito de História,,) trad.Marcos Lutz Muller e Jeanne Marie Gagnebin (mimeo.).

BERTELLÍ, A. R.; PALMEIRA, M. G. S. & VELHO, O. G.Estrutura de Classes e Estratificação Social. 4.9 ed., Rio deJaneiro, Zahar, 1973.

BRESCIANI, Maria Stella Martins.  Liberalismo: Ideologia e Controle Social (Um Estudo Sobre São Paulo de 1850 a  1910). 2  vols., tese de doutorado, Departamento de História,FFLCHUSP, 1976.

CARDOSO, Ciro.  Agricultura, Escravidão e Capitalismo.  Petró polis, Vozes, 1979.

259

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no  Brasil M eridional. 2.a ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

CASTORIADIS, Cornelius.  A Inst ituição Imaginária da Sociedade.  Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.

. “Dúvidas na História das Lutas Operárias”, in Oitenta, n.° 1, Porto Alegre, L&PM, noverabrodezembro de 1979.

CASTRO, Antonio Barros de. Escravos e Senhores nos Engenhos do Brasil  Um Estudo Sobre os Trabalhos do Açúcar e aPolítica Econômica dos Senhores. Tese de Doutorado, IFCHUNICAMP, 1976.

-------------. “ Em Torno à Questão das Técnicas do Escravismo” .

Rio de Janeiro, FGV/EIAP, 1979.. “Brasil, 1610: Mudanças Técnicas e Conflitos So-

ciais”. Rio de Janeiro, in Pesquisa e Planejamento Econômico,  ano 10, n.° 3, dezembro de 1980.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim — O Cotidiano 

COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar.  Riode Janeiro, Graal, 1979,

CUNHA, Manuela Carneiro da,  Negros, Estrangeiros   — OsEscravos Libertos e sua Volta à África.   São Paulo, Brasi-liense, 1985.

. “Sobre os Silêncios da Lei. Lei Costumeira e Positivanas Alforrias de Escravos no Brasil do Século XIX”, Cam- pinas , Cadernos IFCH-UNICAMP,  abril de 1983.

DAVATZ, Thomas.  Memórias de Um Colono no Brasil.  BeloHorizonte/São Paulo, Itatiaia/USP, 1980,

DEAN, Warren.  Rio Claro — Um Sistema Brasileiro de Grande  Lavoura 1820-1920.  Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

DEBRUN, Michel,  A “Conciliação” e Outras Estratégias.  SãoPaulo, Brasiliense, 1983.

DEGLER, Carl K.  Nem Preto Nem Branco. Escravidão e Relações Raciais no Brasil e nos EUA.  Rio de Janeiro, Labor,

Page 132: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 132/138

, y , qdos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Êpoque.   SãoPaulo, Brasiliense, 1986.

CHAUl, Marilena. Cultura e Democracia  — O Discurso Com petente e Outras Falas.  2.a ed., São Paulo, Moderna, 1981,

-------------, O Que Ê Ideologia.  4.a ed., São Paulo, Brasiliense,1981.

COMAS, Juan e outros.  Raça e Ciência.  2 vols., São Paulo,Perspectiva, 1972.

CONRAD, Robert. Os Ültimos Anos da Escravatura no Brasil —1850-1888.  2.a ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1978.

. “The Planter Class and the Debate over ChineseImmigration to Brazil 18501893”, in International Migra- tion Review,  ano 9, n.° 1, primavera de 1975.

. Tumbeiros  — O Tráfico de Escravos para o Brasil.São Paulo, Brasiliense, 1985.

COSTA, Emilia Viotti da.  Da Senzala à Colônia.  2* ed., SãoPaulo, Ciências Humanas, 1982.

.  Brazil: The Refo rm Era 1870-1889.   1982 (mimeo.)..  Da Monarquia à República Momentos Decisivos.  2*

ed., São Paulo, Ciências Humanas, 1979.

260

ç , ,1976.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX.   São Paulo, Brasiliense, 1984.

DUQUEESTRADA, Osório.  A Abolição (Esboço Histórico) 1831-1888.   Rio de Janeiro, L. Ribeiro, 1918.

DURAND, José Carlos Garcia. Educação e Hegemonia de Classe — As Funções Ideológicas da Escola.  Rio de Janeiro, Zahar,1979.

EISENBERG, Peter L.  Modernização Sem Mudança. A Indústria   Açucareira em Pernambuco 1840-1910.   Rio de Janeiro/Campinas, Paz e Terra/UNICAMP, 1977.

. “Escravo e Proletário na História do Brasil”. SãoPaulo, in Estudos Econômicos,  .IPE/USP, vol. 13, n.° 1,1983.

---------

 — . “O Homem Esquecido: O Tra balhad or Livre Nacionalno Século XIX — Sugestões para Uma Pesquisa”. SãoPaulo, in Anais do Museu Paulista/ USP, tomo XXVIII,separata, 1977/1978.

FANON, Frantz. Escucha Blanco! 2.*  ed., Barcelona, Nova Terra,1970.

261

FERNANDES, Florestan.  A Integração do Negro na Sociedade  de Classes. 2  vols., 3.a ed., São Paulo, Ática, 1978.

. O Negro no Mundo dos Brancos.  São Paulo, Difel,1971.

--------- - —.  A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de Interpre

tação Sociológica.  2 a ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1976. ——— ---- . Circuito Fechado: Quatro Ensaios Sobre o“Poder 

 Ins titucional”.  São Paulo, Hucitec, 1976.FONTES, Alice Aguiar de Barros.  A Prática Abol icionista em 

São Paulo: Os Caifases (1882-1888).  Tese de mestrado,

Departamento de História, FFLCHUSP, 1966.FOUCAULT, Michel.  Microfísica do Poder. 3.a ed., Rio de

Janeiro, Graal, 1982.. Vigiar e Punir.  Petrópolis, Vozes, 1977.FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho.  Hom ens Livres na Ordem 

Escravocrata.   2.a ed., 2.a imp., São Paulo, Ática, 1974,1976 (i )

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial.  São Paulo, Ática,1978.

GR AH AM, Douglas H.  Internai and Foreign Migration and the Question of Labor Supply in the Early Economic Growth of Brazil.  São Paulo, IPE/USP, 1973.

HALL, Michael McDonald. The Origins of Mass Immigration in Brazil, 1871-1914.  Tese Ph. D., Universidade de Colum

 bia, 1969.

. & STOLCKE, Verena. “A Introdução do Trabalho

Livre nas Fazendas de Café de São Paulo”, in Revista  Brasileira de História ,  n.° 6, Rio de Janeiro, Marco Zero,1984.

HASENBALG, Carlos A.  Discriminação e Desigualdades Raciais  no Brasil.  Rio de Janeiro, Graal, 1979.

HOETINK, H. Caribbean Race Relations  —  A Study of Tw o 

Page 133: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 133/138

1976 (impr.).FREDRICKSON, George M. The Black Image in The White 

 Min d   — The Debate on Afro-American Character and   Dest iny  — 1817-1914.  Nova Iorque, Harper Torchbooks,

1972.FREITAS, Décio. Palmares  —  A Guerra dos Escravos.  2.a ed.,Rio de Janeiro, Graal, 1978.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala . 20 . a ed., Rio deJaneiro/Brasília, INLMEC, 1980.

FURET, François.  A Ofic ina da História.   1.° vol., Lisboa, Gradiva, s.d.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil.  12.a ed., SãoPaulo, Cia. Ed. Nacional, 1974.

GEBARA, Ademir. O Mercado de Trabalho Livre no Brasil.

São Paulo, Brasiliense, 1986.GENOVESE, Eugene.  Da Rebel ião à Revolução.   São Paulo,Global, 1983.

.  A Economia Política da Escravidão.  Rio de Janeiro,Pallas, 1976.

GONZALEZ, Lélia & HASENBALG, Carlos.  Lugar de Negro. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1982.

262

, y fVariants.  Londres, Oxford University Press, 1971.

HOLANDA, Sergio Buarque.  Raízes do Brasil.  14.a ed., R io deJaneiro, José Olympio, 1981.

IANNI, Octávio.  Raças e Classes Sociais no Brasil.  2 a ed., Riode Janeiro, Civilização Brasileira, 1972.

. Escravidão e Racismo.  São Paulo, Hucitec, 1978.----- ------- .  As Metamorfoses do Escravo  —  Apogeu e 'Crise da

Escravatura no Brasil Meridional.  São Paulo, Difel, 1962.

JORDAN, Winthrop. White over Black   —  American Alt itudes  toward the Negro, 1550-1812.  Baltimore, Penguin, 1969.

KEITH, Henry H. & EDWARDS, S. F. Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira (Ensaios).  Rio de Janeiro, Civiliza-ção Brasileira, 1970.

KLEIN, Herbert S. “Os Homens Livres de Cor na SociedadeEscravista Brasileira”, in Dados,  n.° 17, Rio de Janeiro,IUPERJ, 1978.

KOWARICK, Lúcio. Escravos, Párias e Proletários.  Tese de livredocência, Departamento de Ciências Sociais, FFLCHUSP,

1981.LAFARGUE, Paul. O Direito à Preguiça.  2.a ed., São Paulo,

Kairós, 1980.

263

LAPA, José Roberto do Amaral (Org.).  Modos de Produção e  Realidade Brasileira. Petrópolis, Vozes, 1980.

LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência  — Estudo Sobre a  Relação Senhor-Escravo na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.  Tese de doutorado, Departamento de História,FFLCHUSP, 1986.

LIMA, Lana Lage da Gama.  Rebeldia Negra e Abolicionismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 1981.

LINEBAUGH, Peter. “Todas as Montanhas Atlânticas Estreme-

ceram”, in Revista Brasileira de História,  n.° 6, Rio de Ja-neiro, Marco Zero, 1984.

LINS, Ivan Monteiro de Barros.  História do Posit ivismo no Brasil. São Paulo, Nacional, 1964.

MACPHERSON, C. B.  A Democracia Liberal  — Origens e Evolução.  Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

d l

MOURA, Clovis.  Rebeliões da Senzala.  3.a ed., São Paulo, Ciên-cias Humanas, 1981.

. O Negro, de Bom Escravo a Mau Cidadão? Rio deJaneiro, Conquista, 1977.

. Os Quilombos e a Rebelião Negra.  São Paulo, Brasi-liense, 1981.

 NEUHAUS, Paulo (Org. ). Economia Brasileira: Uma Visão Histórica.  Rio de Janeiro, Campus, 1980.

 NOVAES, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo  Sistema Colonial (1777-1808).  São Paulo, Hucitec, 1979.

 — — — . “ Passagens para o Novo Mundo” ,  Novos Estudos,  n.° 9, São Paulo, CEBRAP, julho de 1984,

PINHEIRO, Paulo'Sergio. Trabalho Escravo, Economia e Sociedade.  Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984,

POLIAKOV, Léon. O  Mito Ariano: Ensaio sobre as Fontes do  Racismo e dos Nacionalismos.  São Paulo, Perspectiva/USP,

Page 134: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 134/138

MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra.  São Paulo,Ciências Humanas, 1979.

MARX, Karl.  Líneas Fundamentales d e la Crítica de la Economia Política  {Grundrisse). México, Grijalbo, 1977.

.  A Ideologia Alemã.  2 vols., 3.a ed., São Paulo, Ed.Presença/Martins Fontes, 1975.

. El Capital Critica de la Economia Política.  3 vols.,México, Fondo de Cultura Econômica, 1975.

------------ . Contribuição para a Crítica da Economia Política.3.a ed., Lisboa, Estampa, 1974.

MELLO, João Manuel Cardoso de. O Capitalismo Tardio.  SãoPaulo, Brasiliense, 1982.

MENNUCCI, Sud. O Precursor do Abolicionismo no Brasil (Luiz Gama).  São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1938.

MORAES, Evaristo de.  A Campanha Abol icionista (1879-1888). Rio de Janeiro, Leite Ribeiro, 1924.

MORAES, Rubens Borba de.  Bibliografia Brasileira do Período Colonial  São Paulo, IEB/USP, 1969.

MOTT, Luiz R. B. “A Revolução dos Negros do Haiti e o Bra-sil”, in Questões & Debates,  Curitiba, ano 3, n.° 4, junhode 1982.

264

1974.PRADO Jr,, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo.  13.a ed.,

São Paulo, Brasiliense, 1973.QUEIRÓS, Suely R. Reis de. Escravidão Negra em São Paulo 

(Um Estudo das Tensões Provocadas pelo Escravismo no Século XIX).   Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.

. ,4  Abolição da Escravidão, São Paulo, Brasiliense,

1981.REIS, João José.  Rebelião Escrava no Brasil  —  A Histór ia do 

 Levante dos Malês (1835).  São Paulo, Brasiliense, 1986,RODRIGUES, Nina, Os Africanos no Brasil.  5,a ed., São Paulo,

Cia. Ed. Nacional, 1977.SAES, Décio.  A Formação do Estado Burguês no Brasil: 1888- 

1891.  Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985,

SAES, Flávio. “O Término do Escravismo: Uma Nota sobre aHistoriografia”, in Estudos Econômicos,  IPE/USP, dezem-

 bro de 1982.SALLES, Iraci Galvão. Trabalho, Progresso e a Sociedade Civi

lizada.  São Paulo, Hucitec/PróMemória, 1986,SANTOS, José Maria dos. Os Republicanos Paulistas e a Aboli

ção.  São Paulo, Martins, 1942.

265

r

SANTOS, Ronaldo Marcos dos.  Resistênc ia e Superação do Escravismo na Província de São Paulo (1885-1888). São Paulo,IPE/USP, 1980.

São Paulo. Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo. 1834-1918.

SARTRE, JeanPaul.  Ref lexõ es Sobre o Racismo.  6,a ed., SãoPaulo, Difel, 1978.

SCHMIDT, Afonso.  A Marcha-Romance da Àbolição.  São Paulo,Brasiliense, 1981.

SCHWARCZ, Lilia Moritz.  Retrato em Branco e Negro   —  Jornais, Escravos e Cidadãos em São Paulo no Final do Século  XI X.   São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

SILVA, Sergio. Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no  Brasil.  São Paulo, Alfaõmega, 1976.

SINGER, Paul & BRANT, Vinícius Caldeira (Orgs.). São Paulo: 

TOPLIN, Robert Brent. The Abolition of Slavery in Brazil.  NovaIorque, Atheneum, 1972.

------------- . Freedom and Prejudice  — The Legacy of Slavery inthe United States and Brazil.  Westport, Connecticut/Lon-dres, Greenwood Press, 1981.

WEBER, Max.  A Êtica Protestante e o Espír ito do Capitalismo.São Paulo, Pioneira, 1981.

WILLIAMS, Eric, Capitalismo e Escravidão.  Rio de Janeiro.Americana, 1975.

WITTER, I. S.  Ibicaba, Uma Experiênc ia Pioneira.  São Paulo,Arquivo do Estado, 1982.

Page 135: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 135/138

O Povo em Movimento.  Petrópolis, Vozes/CEBRAP, 1981.

SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco  —  Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro.  Rio de Janeiro, Paz e Terra,

1976.

SLENES, Robert W. The Demography and Economics of Brazi- lian Slavery: 1850-1888.  Tese Ph. D., Universidade deStanford, 1976.

. “Escravidão e Família: Casamento e Compadrio en treos Escravos de Campinas no Século XIX” (mimeo., pes-quisa em andamento).

SODRÉ, Nelson Werneck.  As Razões da Independência.  2.a ed.,Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969.

SOUZA, Laura de Mello.  Desclassi ficados do Ouro  —  A Pobreza  Mineira no Século XVIII.

  2.a ed., Rio de Janeiro, Graal,1986.THOMPSON, E. P. Tradicion, Revuelta y Consciência de Clase. 

Barcelona, Critica, 1979.

.  A Miséria da Teoria ou Um Planetário de Erros  — Uma Crítica ao Pensamento de Althusser.   Rio de Janeiro,Zahar, 1981.

266

Em Onda Negra, Medo Branco  

encontraremos numerosos reformado-res que desde o início do século deze-nove se viram às voltas com a seguin-te questão: o que fazer com o negroquando a escravidão terminar? ou en-tão — como impedir a possibilidadede um final brusco da escravidão dei-

Page 136: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 136/138

 Impress o m s oficinas da EDITORA PARMA LTDA.

Fone: 2095077Av. Antônio Bardella, 280

Guarulhos Sío Paulo BrasilCom filmes fornecidos pelo Editor 

de um final brusco da escravidão, deixando à solta e sem nenhuma regrauma imensa população de negros emestiços pobres em país regido por

uma minoria de ricos proprietários?Para alguns, como os primeirosemancipacionistas e mais tarde os ab o-licionistas, bastava armarse de rígi-das medidas disciplinares de modo atransformar exescravos em trabalha-dores livres a serviço do capital. Mas

 pa ra os im ig rant ist as , na da se po di aesperar de trabalhadores degradados pe la escrav idão e aind a po r cima pe r-tencentes às raças mais desprezíveisda humanidade. E decerto este debateainda teria se arrastado pelo tempo,não tivessem os escravos interferidocom sua ação autônoma e violenta,aguçando os medos daquela “ondanegra”, imagem vivida surgida nocalor da luta.

Page 137: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 137/138

Page 138: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

8/18/2019 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco o Negro No Imaginário Das Elites Século XIX

http://slidepdf.com/reader/full/azevedo-celia-maria-marinho-de-onda-negra-medo-branco-o-negro-no-imaginario 138/138

1(üEDttões; Jílétter ®t tt ti