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AUTORIDADE ETNOGRÁFICA: REFLETINDO AS DIMENSÕES

ÉTICAS E POLÍTICAS NA REPRESENTAÇÃO DAS CULTURAS

Luiz Fernando Pereira (UEL),

[email protected]

Resumo: O presente trabalho visa colocar em debate a figura do antropólogo (a) e sua

responsabilidade enquanto sujeito privilegiado no que diz respeito à representação de culturas

ea necessidade de que este exerça em sua prática (trabalho de campo, pesquisa documental,

etc.) uma postura ética. A polêmica dentro da antropologia envolvendo o antropólogo

Napoleon Chagnon e seu trabalho junto aos Yanonami é aqui revisitada por ser um exemplo

de pesquisa onde diversas práticas são apontadas como antiéticas por outros antropólogos e

pela utilização da obra de Chagnon como justificativa para a separação dos Yanonami em

diversos pequenos territórios com a justificativa de se evitar conflitos. Assim, busca-se

assinalar a importância da condução ética de trabalhos antropológicos, uma vez que os

mesmos podem ser voltados contra os interesses das populações pesquisadas. Assinala-se

também como o uso e retórica da antropologia não se restringe ao espaço acadêmico,

adentrando também na esfera política na defesa de interesses (coletivos ou individuais).

Palavras-chave: antropologia; etnografia; ética.

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Introdução

O presente texto busca colocar em evidência alguns aspectos do fazer antropológico que até

podem estar sendo levados em consideração, mas que precisam ser mais amplamente

debatidos: as dimensões éticas e políticas que envolvem a representação de culturas por meio

da etnografia. Para tornar mais claro a preocupação aqui presente: há uma preocupação ou

problematização com aspectos éticos e políticos na elaboração e realização de trabalhos

etnográficos tanto quantohá uma preocupaçãoem relação a que autores ou teorias utilizar,

orçamento, tempo para realização, etc.? E a relação pesquisador-pesquisados, resume-se só ao

consentimento do grupo quanto ao estudo?

A abordagem acerca da autoridade etnográfica e as relações de poder vêm sendo

intensificadas desde os anos 1960 na antropologia, em um contexto de descolonização dos

impérios e influências do marxismo e do feminismo na antropologia e, posteriormente, da

influência do pós-estruturalismo. O “fio condutor” selecionado para trazer à tona tais

discussões é a polêmica que envolve o nome do antropólogo Napoleon Chagnon e seus

estudos junto aos índios Yanonami1, que vivem em aldeias em ambos os lados da fronteira

entre Brasil e Venezuela.

Pelo seu livro Yanonamö: the fierce people (1968) 2 Chagon tornou os Yanonami ao

mesmo tempo famosos e infames: famosos porquese tornaram um dos grupos indígenas

amazônicos mais conhecidos internacionalmente, figurando como texto introdutório em

muitos cursos de antropologia de instituições americanas; Infames pela forma desvirtuada

como foram descritos (traduzindo o subtítulo, “the fierce people” equivale a “o povo feroz,

selvagem”), como veremos adiante.

Borofsky (2005, p.04) comenta que dentro da antropologia - fragmentada ao longo das

décadas por diferentes abordagens e estudos de vários tipos de sociedades – os Yanonami

tornaram-se um ponto de referência comum dentro da disciplina, tal como também são os

Nuer, os Trobriandeses, Navajos e outras sociedades.

1 Na literatura o grupo indígena é referido como Yanonamö, Yanonama ou Yanonami. Tecnicamente não há algo

que saliente uma ou outra forma como certa ou errada, mas Borofsky (2005, p.04) assinala que pode haver uma conotação política na adoção de um ou outro termo: Chagnon sempre usou o termo Yanonamö, e seus defensores costumam utilizar este mesmo termo, enquanto outros autores contrários ou neutros em relação à Chagnon utilizam os termos Yanonama e Yanonami. 2Notei, ao encontrar na Internet parte de uma edição recente desta mesma obra (Chagnon,2013), que o subtítulo

“the fierce people” (o povo feroz) parece não mais constar nas edições mais recentes da obra; Contudo, os criticados procedimentos de campo ainda constam no corpo do texto.

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Chagnon também realizou filmagens3 junto aos Yanonami, que ajudaram a tornar conhecida a

imagem do povo Yanonami. Borofsky também comenta que estas filmagens receberam

prêmios em festivais de cinema e deram visibilidade ao livro Yanonamö:The fierce people e

tornando-o um Best-seller4, algo raro de se ver tratando-se de uma obra antropológica.

Quanto à infâmia, esta já se nota na clara generalização no subtítulo do famoso livro: o

nível de violência é exagerado pelo autor na obra e os Yanonami são apresentados por

Chagnon como um dos povos mais primitivos da Terra, vivendo em um clima de crônica

beligerância. Conforme explica Ramos (2004, p.03), a caracterização feita por Chagnon

repercutiu não só nos meios acadêmicos, mas nos meios de comunicação de massa com uma

matéria na Time Magazine em 1976, onde modo de vida dos Yanonami é apresentado como

animalesco, comparável ao de bandos de babuínos.

Ao que parece, o status de Best seller alcançado por Yanonamö não parece algo a ser

celebrado, como uma obra etnográfica cujo sucesso não se restringiu ao meio acadêmico. Para

Ramos (2005, p.03) o “estilo Chagnon de escrever” – ágil, cômico, até arrogante e

desrespeitoso5 – não passa pelo filtro da seriedade acadêmica, mas foi bem assimilado por um

público leigo e ávido por exotismos. Em 1988 Chagnon publica um artigo na revista Science

(Chagnon, 1988) onde se intensifica a polêmica ao dar contornos estatísticos e

sociobiológicos ao que até então vinha relatando nas obras anteriores, e sobre o referido artigo

Ramos comenta:

Chagnon valeu-se de quadros estatísticos para dar legitimidade à sua interpretação segundo

a qual mais de 40% dos homens adultos Yanomami são matadores e, por terem matado e

provado sua bravura, fazem-se atraentes às mulheres e assim semeiam seus genes com mais

eficácia do que os pusilânimes da tribo. Em suma, quanto mais mortes, mais sexo,

3Segundo Borofsky (2005, p.11-12) uma das acusações de Patrick Tierney em seu livro Darkness in El Dorado é

a de que as filmagens de Chagnon não seriam o que parecem – comportamentos espontâneos habilmente capturados pelas câmeras – mas sim uma encenação, com os Yanonami desempenhando papéis preestabelecidos. 4Yanonamö: the fierce people conta com mais de três milhões de exemplares vendidos (segundo DINIZ, 2007) e

rendeu mais de um milhão de dólares em royalties para Chagnon, levantando-se a questão se não seria justo Chagnon compartilhar os royalties com os yanonami – sem os quais Chagnon não teria escrito sua obra (Borofsky, 2005, p.13). 5 Em um dos relatos sobre o trabalho de campo Chagnon (2013) fala da praticidade de se levar nas longas

caminhadas acompanhando os Yanonami bolachas e manteiga de amendoim para se alimentar, uma vez que era segundo ele de fácil preparo e uma das poucas coisas que se podia comer em paz (queixa freqüente de Chagnon). Ele percebeu que os Yanonami suspeitavam que a manteiga de amendoim fosse fezes de animal devido à sua aparência, e Chagnon não hesitou em dar por verdade a suspeita, cessando os pedidos de comida.

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quanto mais sexo, mais prole. Como se no mundo real não existisse qualquer consideração de cunho simbólico, essa redução etnográfica atrela cruamente a necessidade de violência ao imperativo da

reprodução da sociedade.(RAMOS,2005, p.04) Diniz (2007) também comenta sobre a maneira como Chagnon descreve a sociedade

Yanonami, enfatizando o discurso próximo da sociobiologia no livro Yanonamö: the fierce people e a colaboração de Chagnon com o geneticista James Neel:

O argumento do livro [...] é o de que a violência ocupa papel central nas sociedades

yanomamis. Em parceria com Neel, Chagnon defendeu a tese de que o comportamento

violento teria fundamento genético: os yanomamis seriam geneticamente propensos à

violência. Essa caracterização do povo yanomami como povo selvagem tinha duplo apelo:

por um lado, era referência à idéia, ainda vigente na época, de que as sociedades indígenas

eram grupos primitivos que representariam parte de um processo evolutivo da humanidade

e, por outro, de que os yanomamis eram selvagens pela violência estrutural. A selvageria

seria, portanto, resultado de propensão genética ao uso da força física, mas também

expressão do processo evolutivo das sociedades indígenas.(DINIZ, 2007, p.286)

Chagnon e Neel foram acusados de várias práticas antiéticas6 em seus trabalhos junto

aos yanonami, como provocar deliberadamente uma epidemia de sarampo (acusação da qual

foram inocentados); obter por meio de práticas questionáveis as genealogias dos grupos

yanonami, dando presentes em troca de informações ou instigando grupos a revelar os nomes

de membros de grupos rivais7; e o famoso escândalo envolvendo as amostras de sangue

(DINIZ, 2007, p.294-295), que foram coletadas por Neel e permanecem váriosanos estocadas

em diversas universidades– até os yanonami saberem da existência de tais amostras e

exigirem a imediata devolução das mesmas e dar a elas a correta destinação ritual. Contudo,

os cientistas (entre geneticistas e antropólogos) mostram-se contrários à devolução, alegando

sua riqueza e importância para o Projeto Genoma Humano. A polêmica do sangue yanonami

colocou em evidência a questão do consentimento das populações em participar das pesquisas

em e/ou com seres humanos (DINIZ, 2007).

6 Embora críticas já estivessem sendo dirigidas desde os anos 1970, o ápice da polemica contra Chagnon e Neel

foi o lançamento do livro Darkness in El Dorado em 2000, onde o jornalista Patrick Tierney tece sérias acusações contra os dois cientistas. A AAA (Associação Americana de Antropologia) organizou uma força-tarefa para investigar as acusações levantadas contra Chagnon e Neel (falecido alguns meses antes do lançamento de Darkness in El Dorado). Sobre a colaboração entre Neel e Chagnon e as acusações a eles dirigidas ver BOROFSKY, 2005; DINIZ, 2007 e RAMOS, 2004. 7Chagnon (1968;2013) teve muitos problemas tentando obter as genealogias dos yanonamis, pois há entre eles

um tabu relativo aos nomes, que não podem ser pronunciados em público, ainda mais os nomes de pessoas mortas. Neel também precisava de tais informações para seus estudos genéticos.

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O propósito desta introdução é fornecer um pequeno resumo do escândalo envolvendo o nome

de Chagnon e abordar as questões relativas à autoridade etnográfica e as dimensões éticas e

políticas no fazer antropológico. A autoridade etnográfica

A polêmica entorno da maneira como Chagnon representou os Yanonami em seus

escritos chama a atenção para a idéia muito presente e abordado na antropologia

contemporânea: a autoridade etnográfica.

Pode-se entender a “autoridade etnográfica” como maneiras pelas quais os

antropólogos, por meio de seus textos, se afirmam como os mais aptos a falar sobre os outros,

ou seja, os mais aptos a descrever culturas. Essa problematização acerca da autoridade

antropológica emerge no contexto da chamada “meta-etnografia”, onde a etnografia clássica

torna-se objeto de estudo – no caso da “autoridade etnográfica” o historiador James Clifford é

uma referencia dentro desta perspectiva.

A emergência da crítica acerca da autoridade antropológica está atrelada aos processos

históricos de descolonização: o modelo clássico de antropologia é o do chamado “encontro

colonial” (ASAD, 1973 apud CALDEIRA, 1988) onde geralmente os povos colonizados eram

objeto de estudo, a etnografia realizada pelo antropólogo (oriundo da metrópole) era

direcionada aos outros membros de sua sociedade.

O desmantelamento dos impérios representa, conforme explica Caldeira (1988, p.135)

uma mudança no campo da antropologia no que diz respeito à representação do outro: ao

rotular o povo estudado como “nativo” em um contexto colonial há uma conotação política

bem clara, e a atribuição de tal rótulo passa a ser um objeto de contestação em um contexto

pós-colonial. Não só os povos das ex-colônias mas as próprias sociedades complexas (as de

origem do próprio antropólogo) também passam a ser estudadas.

A representação de culturas não é algo exclusivo da antropologia, visto que existem

outras formas de representação de culturas que antecedem e coexistem com a antropologia: é

em contraste a outras formas de representação de culturas, como os relatos de viagem e

documentos de agentes das colônias que o antropólogo tende a afirmar sua autoridade.

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Pratt (1986, p.27) 8 cita a introdução de Argonautas do Pacífico Ocidental de B. Malinowsky,

onde ele celebra o advento da etnografia enquanto uma forma profissional de se representar

culturas:

O tempo onde podíamos tolerar relatos apresentando-nos os nativos como uma distorcida,

infantil caricatura de ser humano terminou” ele [Malinowsky] declara. “tal representação é

falsa, e como outras tantas falsidades, foi morta pela Ciência” (MALINOWSKY, 1961

apud PRATT,1986. tradução nossa).

Como explica Pratt (1986), é uma prática comum antropólogos colocarem a escrita

etnográfica como superior ou mesmo oposta a outros gêneros literários como os livros de

viagens, livros de memória, obras de cunho jornalístico e relatos de colonizadores,

autoridades coloniais, missionários, entre outros. Assim, é perceptível como antropólogo

reclama para si a autoridade ao se referir-se aos outros autores de relatos como “meros

viajantes” ou “observadores casuais”.

A citação anterior referente à Malinowsky alude à constituição da figura que Clifford

chama de “antropólogo cientista”: ele se define por contraste a outras formas de descrição de

culturas por se valer de técnicas como a do trabalho de campo e a observação participante,

conferindo um caráter científico à sua descrição. Assim o antropólogo se reafirma enquanto

cientista, cuja escrita deriva de uma experiência de campo, em oposição ao “observador

casual” que poderia oferecer uma descrição superficial ou enviesada. Pode-se dizer que de certa forma as outras formas discursivas concorrentes à etnografia foram

“mortas pela ciência”, mas que tal morte não representa o desaparecimento de tais tradições,

mas sim o relativo êxito da antropologia em afirmar sua autoridade. Clifford (1986, p.03)

afirma que a antropologia vem emergindo como um fenômeno interdisciplinar, no sentido de

que sua retórica e sua autoridade se espalharam em vários outros campos onde a “cultura” se

torna um objeto de descrição ou crítica.

É interessante ver como há em Chagnon vários elementos dessa etnografia típica do

encontro colonial e da figura do “antropólogo-cientista”: no capítulo referente a sua chegada

em campo em Yanonamö ele mostra-se muito preocupado em tomar notas, coletar genealogias

e termos de parentesco. Chagnon (2013, p.11-12) relata sua

8 Este artigo de Mary Louise Pratt é um interessante exemplo de abordagem da etnografia como um gênero

literário. Neste artigo em especial ela enfatiza como a etnografia tende a menosprezar outros gêneros literários, embora ela mesma seja uma herdeira de outras tradições discursivas.

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chegada aos yanonami, já com o bloco de notas à mão9, mas se depara com a visão de doze

yanonamis recém chegados de um ataque a uma aldeia vizinha, seminus, suados e nervosos

perante uma possível retaliação, e diante de tal visão Chagnon ficara parado pateticamente

com seu bloco de notas.

Apesar das críticas Chagnon é invejável no quesito “trabalho de campo”, já que passou

muito tempo em campo junto aos yanonami10 dos anos 1960 aos anos 1990. Nem todos os

antropólogos têm acesso a recursos11 ou tempo disponível para desenvolver um trabalho de

campo prolongado, ainda mais em uma localidade remota como a região onde vivem os

yanonami. Contudo, essa fixação no trabalho de campo prolongado torna-se questionável

quando se traz à tona a idéia de “presente etnográfico”, ou seja, embora o trabalho de campo

com um grupo se arraste por anos na narrativa etnográfica o grupo estudado aparece de certa

forma estático, não apresentando mudanças históricas ou estruturais ao longo do período

estudado.

Contudo, é inegável que um trabalho de campo intensivo é impactante sob a ótica da

autoridade etnográfica, já que evidencia, somado ao uso do método, que não se trata das

impressões de “um mero viajante” ou de um “observador casual”. Embora esteja bem clara a

figura do “antropólogo-cientista”, que possui um método para estudar os outros – Chagnon

mostra-se em seu artigo na revista Science (CHAGNON, 1988) preocupado em como se

poderia mensurar o nível de violência e belicosidade entre os yanonami e compará-los aos

níveis de outros grupos – a realidade yanonami é posta no mesmo escaninho junta a outras

“sociedades primitivas”, que por sua vez representariam estágios onde um dia o homem

ocidental

9 Pessoalmente acho suspeita essa fixação com o bloco de notas e preocupação em tomar anotações já na chegada. Tal atitude faz sentido num sentido weberiano, seria o esperado de um tipo ideal de antropólogo. A presença do bloco de notas mais parece um recurso retórico, para evidenciar como de certa forma suas expectativas relativas ao campo e ansiedade se tornam decepção e dúvidas após a sua “recepção” entre os yanonami – um golpe duro no “Chagnon pré-campo”, desejoso de ser adotado por seus nativos.

10 Chagnon (2013, p.08) afirma ter feito pelo menos 24 viagens a campo aos Yanonami, passado cerca de 64 meses em campo junto a eles entre 1964 e 1995. A primeira edição de Yanonamö: the fierce people (CHAGNON, 1968) é fruto de seus primeiros 17 meses de pesquisa entre os Yanonami na Venezuela.

11 Albert (2002, p.07) comenta que entre 1966 e 1972 Chagnon era uma espécie de “batedor das selvas” vinculado a um projeto de pesquisa da AEC (Comissão de Energia Atômica norte-americana), onde Neel também era vinculado. Tal projeto tinha um orçamento disponível à época de 2,5 milhões de dólares, e Chagnon era obrigado a seguir um rigoroso programa que incluía visitar diversas aldeias coletando amostras de sangue, genealogias, realizar filmagens e dar apoio logístico.

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se encontrou12

. Ou seja, parece que os “relatos distorcidos” atacados por Malinowsky não se

restringem às tradições narrativas “mortas pela ciência” – persistiram na narrativa

antropológica, que supostamente deveria ser uma descrição científica e “neutra” 13

.

Em suma, o que se quer salientar é que a antropologia goza de um reconhecimento

enquanto ciência, seus profissionais são requisitados em áreas onde “cultura” passa a ser uma

variável a ser levada em conta. Embora academicamente a discussão entorno da “neutralidade

dos discursos” tende a afirmar que discurso algum é neutro, o caso Chagnon chama a atenção

para a responsabilidade que envolve representar outras culturas. Falhas metodológicas e

reducionismos podem ter conseqüências muito mais graves do que críticas ou discussões por

parte dos demais membros da disciplina. A imagem de “povo feroz” – a descrição de uma

cultura feita um antropólogo (um cientista) para seus pares acadêmicos - foi propagada

também nos meios de comunicação . Tomada como verdade científica, tal caracterização que

teve conseqüências políticas prejudiciais a um grupo já vulnerável.

Concluindo, a discussão acerca da autoridade etnográfica não pode ficar restrita à

discussão sobre a suposta supremacia da etnografia sobre outras formas discursivas ou

possibilidade ou impossibilidade de se construir discursos neutros, mas deve também abordar

a responsabilidade e o cuidado do antropólogo ao descrever o outro.

Insinuações pertinentes: aspectos éticos na pesquisa com e em seres humanos

Abro aqui um parêntese na discussão antropológica para adentrar um pouco na

literatura para salientar uma mesma insinuação feita por dois autores nos títulos de seus

trabalhos sobre a obra de Chagnon. Refiro-me ao artigo Os Yanonami no coração das trevas

brancas de Alcida Rita Ramos e ao livro que jogou mais lenha na

12

Sobre as aldeias yanonami Chagnon escreve: “As aldeias podem ser pequenas com 40 ou 50 pessoas ou

grandes com mais de 300 pessoas, mas em todos os casos sempre há muito mais crianças e bebês do que adultos. Isto é uma realidade na maioria das populações primitivas e do nosso próprio passado demográfico. A expectativa de vida é curta.” (CHAGNON, 2013, p.06). 13

Pratt (1986) chama a atenção para a aproximação da etnografia com as demais ciências como uma estratégia

de se afirmar como um trabalho científico, uma narrativa neutra, não enviesada, retratando outras sociedades exatamente como elas são. Contudo, o ideal de discurso neutro deixou de certa forma de ser buscado – é hoje reconhecido que há relações de poder e outros vieses na etnografia tanto quanto em outras formas discursivas, em suma, é quase utópico buscar um discurso 100% neutro -

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fogueira na polêmica em 2000, Darkness in El Dorado (Trevas no Eldorado), do jornalista

Patrick Tierney, que não foi diretamente citado no presente trabalho, mas é objeto de análise

por Borofsky (2005).

Ambos os títulos me parecem uma clara referência a Hearth of Darkness (O coração

das Trevas), um dos mais conhecidos romances de Joseph Conrad (2010). O coração das trevas é uma história dentro de uma história: nela a tripulação de um navio

ancorado ouve atentamente o velho marinheiro Marlow narrar uma aventura surreal por ele

vivida no coração da África, onde comandava um barco em um rio e deveria ir ao encontro do

misterioso Sr. Kurtz, que vivia em meio aos nativos em um distante posto avançado a coletar

presas de marfim, e Marlow narra de maneira cativante os perigos enfrentados e sua

apreensão e ansiedade em conhecer Kurtz.

A ansiedade em encontrar os yanonami descrita por Chagnon (1968) e a maneira como

narra os preparativos para o encontro e suas primeiras impressões lembram em muito a

narrativa de Conrad. Borofsky (2005, p.07) comenta que Chagnon é um bom escritor, o

capítulo onde narra sua chegada e o trabalho de campo são referências dentro da disciplina e,

como dito anteriormente, sua obra alcançou um status de Best seller. Ramos (2004, p. 02-03)

descreve a obra de Chagnon (1968) como um “misto de academia com aventura”, mistura esta

infeliz, já que foi de encontro ao gosto de um público interessado na exoticidade ali descrita, e

também no gosto de jovens graduandos e “não tão jovens professores universitários”, em uma

conjuntura definida por Ramos como “pré politicamente correta”. Cito outra obra, esta

cinematográfica, onde a fala de um personagem – uma vez abstraído contexto do filme e

trazendo-a à presente discussão – convida a refletir a questão da condução ética do trabalho

etnográfico.

O filme Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, teve seu roteiro baseado na

obra O coração das trevas. A história se passa em meio à Guerra do Vietnã, onde o capitão

americano Willard recebe a missão de localizar o coronel Kurtz. Antes descrito como um

prodígio militar, Kurtz torna-se um desertor com idéias estranhas, comandando nos confins do

Camboja um exército particular de nativos que o idolatravam. Fica subentendido que Willard

deve não só localizar, mas também eliminar Kurtz, que se tornara um estorvo.

O que chama a atenção para o tema do presente trabalho é uma divagação de um dos

oficiais que colocavam Willard a par de sua missão. O militar diz “Sabe Willard, nessa guerra

as coisas ficam... confusas lá... poder, ideais, a velha moralidade e a

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necessidade militar prática... mas lá com esses nativos... deve ser uma tentação...

virar Deus”.

O que poderia significar essa “tentação de virar Deus”? Em Apocalypse now talvez

seja fazer o Kurtz faz, agir a seu bel prazer sem dar satisfações ou ser questionado – enquanto

Willard e seus superiores não podiam agir como quisessem, havia protestos contra a guerra

“em casa”, burocracias diversas, hierarquia militar, a Convenção de Genebra, etc. E aqui

chegamos ao que julgo como uma metáfora didática: pensar essa “tentação” dentro do campo

antropológico.

Dentre tantas possíveis definições de Deus, talvez a idéia de uma identidade que é

onisciente, onipresente e onipotente baste para a presente discussão. Não será possível

que em seus trabalhos de campo, coletando dados ou escrevendo seus

trabalhos não estariam alguns profissionais “caindo na tentação” e agindo como o coronel

Kurtz, abandonando ou ignorando as convenções da profissão no que diz respeito à ética,

direitos humanos, ou os interesses dos povos estudados? Ou então recorrendo a métodos

questionáveis ou antiéticos para obter informações ou dados?

Quando só após vários anos após o trabalho de campo de Neel e Chagnon os

yanonami descobrem que amostras de sangue de seu povo encontram-se guardadas em

universidades e exigem a devolução das mesmas levanta-se a questão se Neel e Chagnon

explicaram minimamente a finalidade da coleta de sangue e se os yanonami consentiram de

livre vontade ceder as amostras14

.

Davi Kopenawa15

, uma liderança yanonami conhecida internacionalmente, escreve

uma carta dirigida ao governo brasileiro exigindo a devolução das amostras. Em uma

passagem da carta Kopenawa explica:

Olha, falei com meu povo yanomami de Toototobi onde os americanos tiraram o sangue.

Os velhos falaram que estão com raiva porque esse sangue dos mortos está guardado por

gente de longe. Nosso costume é chorar os mortos, queimar corpos e destruir tudo que

usaram e plantaram. Não pode sobrar nada, se não o povo fica com raiva e o pensamento

não fica tranqüilo. Os 14

Conforme explica Diniz (2007, p.289) a justificativa para a coleta do sangue era a pesquisa para a criação de um novo protocolo de vacina para o sarampo; o problema gira em torno da estocagem permanente do sangue, que não teria sido informada por Neel e sua equipe segundo os yanonami. 15

Chagnon associa tantas críticas a ele e seu trabalho como uma ação coordenada por ONGs que disputam entre

si um por assim dizer “monopólio” da causa yanonami, que pode ajudá-las na captação de recursos (ALBERT, 2002, P.06). Chagnon também já teria menosprezado a militância de Kopenawa, segundo ele “um papagaio dos grupos de direitos humanos” (MONAGHAN, 1994 apud ALBERT, 2002)

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.americanos, esses, não respeitam nosso costume, por isso queremos de volta nossos vidros de sangue e tudo que tiraram do nosso sangue para estudar. (KOPENAWA, 2002 apud DINIZ, 2007, p.294)

Pode-se pensar a seguinte hipótese: a princípio, naquela “conjuntura pré-

politicamente correta” como se refere Ramos (2004) em que a obra de Chagnon

ganha publicidade, alguém se importaria ou questionaria (tal como Tierney fez, já nos anos

2000) se as pesquisas junto a um grupo retratado como feroz e selvagem foram conduzidas de

forma ética, respeitando os direitos do povo estudado e esclarecendo o objetivo de seus

estudos?

O público leigo prestigiou a obra de Chagnon, mas talvez seja insensato esperar algum

questionamento de ordem ética ou metodológica deste público em especial – já que o

exotismo era o atrativo. A maneira como Chagnon contorna alguns problemas como a

dificuldade de registro das genealogias devido a tabus relacionados aos nomes ou os pedidos

de comida por parte dos índios seriam, do ponto de vista leigo, geniais no sentido de que se

atingiu os fins almejados. Contudo, trazendo a narrativa para seu campo original, a

antropologia, as soluções adotadas soam desrespeitosas e pouco profissionais: subornar com

presentes e utilizar-se de brigas locais para obter os nomes das pessoas e publicá-los em total

desrespeito aos costumes do povo estudado não corresponde nem a uma postura ética de um

antropólogo e nem com o desejo que o próprio Chagnon expressa no começo de Yanonamö,

antes de seu primeiro contato:

[...] Será que eles [os yanonamis] irão gostar de mim? Isso era importante para mim; Eu

quis que eles se afeiçoassem tanto a mim que eles me adotariam em seu sistema de

parentesco e modo de vida. Eu ouvia dizer que antropólogos competentes sempre eram

adotados por sua gente. Aprendi em meus sete anos de treinamento em antropologia na

Universidade de Michigan que parentesco era equivalente a sociedade em tribos primitivas,

e que isto era um modo de vida moral, “moral” entendido como algo “bom” e “desejável”.

Eu estava determinado a me inserir dentro do sistema moral de parentesco deles e me tornar

um membro de sua sociedade – a ser “aceito” por eles. (CHAGNON, 2013, p.11. Tradução

nossa) Por mais que a conjuntura fosse alegadamente “politicamente incorreta”, já existiam

convenções éticas versando sobre a pesquisa biomédica em seres humanos e a prerrogativa do

consentimento esclarecido para realização de pesquisas: a alegação de que não seria possível

esclarecer aos yanonami a natureza das pesquisas a serem realizadas e portanto negando o

direito da população pesquisada ao consentimento esclarecido seria de certa forma descabida.

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Albert (2002, p. 03) alega que tais códigos de ética não são padrões tão atuais quanto os

envolvidos nas pesquisas junto aos yanonami insinuam – no sentido que seria injusto exigir

que profissionais seguissem prerrogativas que não estavam ainda definidas no tempo em que

realizaram as pesquisas. Albert argumenta que a questão do consentimento esclarecido já é

uma norma fundamental desde 1947 com a Conferência de Nuremberg – momento quando as

experiências conduzidas pelos médicos nazistas utilizando prisioneiros chocaram o mundo e

jogaram luz não só sobre a questão dos direitos humanos, mas sobre os direitos do pesquisado

em ser informado sobre a natureza da pesquisa e uma vez esclarecido consentir ou recusar

participar da pesquisa, ou mesmo abandonar o experimento caso deseje.

Talvez tanto quanto o episódio do sangue yanonami, as imagens dos médicos nazistas

se deixando fotografar enquanto observam quanto tempo um prisioneiro suporta ficar imerso

em água gelada retratem esse “coração das trevas” onde ética e direitos humanos aparecem

quase como obstáculos ao progresso científico – e vistos assim, como obstáculos, parecem ser

voluntariamente deixados de lado em certos lugares e contextos históricos.

As denúncias feitas por Tierney em seu livro foram muito discutidas e a veracidade de

algumas denúncias foram objeto de investigação. Apesar de muitos métodos utilizados pela

equipe de Chagnon e Neel serem eticamente questionáveis a maneira como Tierney descreveu

a epidemia de sarampo de 1968 foi apontada como exagerada e irresponsável, obrigando-o a

revisar o capítulo em que aborda a epidemia em seu livro. A idéia de que o sarampo foi

propositalmente espalhado entre os yanonami – um cenário em que pesquisa e eugenia se

misturavam – foi objeto de estudo por vários pesquisadores, e chegou-se a informação que a

epidemia já grassava aquela região antes da chegada da equipe.

Contudo alguns autores (ALBERT, 2002, p.03; BOROFSKY, 2005, p.07) ponderam

se Neel não poderia ter feito mais pelos yanonami, se ele de certa forma não estaria mais

preocupado em cumprir o protocolo de pesquisa do que imunizar as populações locais. Albert

(2002, p.03) mostra-se de certa forma cético se as amostra de sangue recolhidas foram

cruciais para salvar vidas yanonamis.

Concluindo, a insinuação e discussão visam apontar que os cientistas não podem

passar por cima dos direitos dos pacientes (no caso de pesquisas biomédicas por exemplo) ou

das populações por vezes vulneráveis ou já fragilizadas como os yanonami – pelo preconceito,

pela ação de garimpeiros e de epidemias – ou mesmo

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passando por cima dos direitos humanos como ocorrido na Segunda Guerra Mundial,

apontando como justificativa o progresso científico.

Dentro da antropologia o código de ética abrange não só as prerrogativas e direitos do

antropólogo, mas também os direitos das populações pesquisadas, que também devem ter o

direito de ser informadas quanto a pesquisa e de negar ou permitir a participação na mesma.

Zelar pelos direitos das populações pesquisadas não se confunde com “fazer política ao invés

de ciência” como Chagnon se refere aos pesquisadores e antropólogos defensores da causa

yanonami, se trata de conduzir eticamente pesquisas científicas e não buscar resultados a

qualquer custo por meio de metodologias duvidosas.

A escrita etnográfica: aspectos políticos e responsabilidade na descrição de culturas

Até o momento no presente trabalho apresentou-se os principais envolvidos na

polêmica entorno de Chagnon e seus trabalhos junto os yanonami, assim como as críticas a ele

dirigidas por outros pesquisadores da cultura yanonami e o esforço destes em desconstruir a

imagem de povo feroz, e que embora aconteçam episódios de contenda estes não seriam um

estado crônico de beligerância como descreve Chagnon. Discutiram-se também as

problemáticas envolvendo a ética nas pesquisas com e/ou em seres humanos na colaboração

entre Neel e Chagnon, assim como alguns equívocos nas acusações de Tierney.

O foco da discussão nesta parte do trabalho passa a ser as conseqüências políticas

decorrentes da caracterização de “povo feroz” que até hoje acompanha os yanonami.

Embora não fosse o primeiro a descrever os yanonami, a monografia Yanonamö: the

fierce people e suas filmagens, e depois matérias jornalísticas como na Time Magazine em

1976 e outras matérias similares nos anos 80 e 90, além do artigo de Chagnon na revista

Science em 1988 lançaram os yanonami do anonimato ao status de um povo primitivo em

crônica beligerância.

Quando tal caracterização repercute na imprensa brasileira nos anos 1970, despertando

a atenção dos militares. Albert (2002, p.05) cita um trecho de um documento militar datado de

1977 sobre os yanonami:

Vemos que ... o grupo vive em feudos, cada um com 50 a 200 índios, e que cada grupo é

hostil aos outros, levando-se a concluir que as relações físicas entre homem e mulher

ocorrem entre irmãos, pai e filhas, mãe e filhos, e

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talvez até entre netos e avós, e netas e avôs, constituindo verdadeiro incesto. E isso, através

dos séculos, tem causado a atrofia física e intelectual desse grupo indígena. (GENERAL

DEMÓCRITO DE OLIVEIRA, 1977 apud ALBERT, 2002)

Sob estas “justificativas” foi enviado um grupo de estudos a campo em março de

1978, e o relatório deste grupo serviu de base para um projeto de desmembramento do

território yanonami em solo brasileiro (já que havia aldeias em território venezuelano) em 19

“ilhas”, sob a intenção de separar e apaziguar estes grupos vistos como hostis entre si e por

fim às relações incestuosas. Estes “corredores” entre os descontínuos territórios yanonami

seriam abertos à exploração comercial (RAMOS, 2004, p.05), possibilitando a mineração de

ouro na região.

Surge nesse período a luta para o não desmembramento do território yanonami, que se

arrastou pelos anos 1980 e 1990. Em 1988 antropólogos brasileiros representados pela ABA

enviaram uma carta à AAA (sua equivalente norte-americana) informando o impacto nocivo

das obras de Chagnon, que vinha sendo usada justificativa para retalhar os territórios

yanonami e suas populações. Segundo Ramos (2004, p.05) a carta só foi publica quase um

ano depois na seção de correspondência da Anthropology Newsletter, que depois abriu direito

de resposta para Chagnon mas não para Bruce Albert (que fora citado na carta). O alerta dos

brasileiros fora de certa forma ignorado.

Curiosamente, a polêmica só ganha corpo com a publicação do livro de Tierney em

2001, ou então com a repercussão do email de Terence Turner avisando que um escândalo

estava para irromper, já que lera as provas do livro de Tierney antes da publicação do mesmo. Esse episódio da carta da ABA levanta uma questão: quando a AAA menospreza um alerta de

antropólogos brasileiros apontando sérias críticas a uma figura proeminente da antropologia

norte-americana, mas anos depois fica em polvorosa com a publicação de um jornalista

investigativo (Tierney), ao ponto de montar uma “força-tarefa” para investigar suas

denúncias, não há aqui também uma questão política? A tônica da denúncia – a visão

distorcida sobre um povo – é parecida, mas porque a denúncia emanada por um jornalista

“pesou” mais que a de seus colegas de área que a fizeram anos antes? Assim como a questão

da ética ainda não estava clara na disciplina será também a relação metrópole-colônia

permanece no seio da disciplina? Quando se faz pouco caso da carta da ABA e oferece-se

direito

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resposta à Chagnon e não a Albert é como se os antropólogos brasileiros não estivessem a

denunciar as conseqüências políticas prejudiciais aos Yanonami da obra de Chagnon, mas a

fazer um complô para difamar Chagnon – como se dissessem nas entrelinhas “quem são vocês

para criticá-lo?”.

Enquanto a disciplina se preocupava entre atacar e defender Chagnon, os yanonami

corriam risco de vida pela violência dos garimpeiros e maquinações políticas para

desmembramento de seu território.

Concluindo, fica evidente como um estudo antropológico pode ser usado como

argumento político em prejuízo do grupo estudado. Contudo, trabalhos idôneos também

podem ser usados fora de contexto para as mesmas finalidades – Albert (2002, p.05) alerta

para que se evite e que se combata que estudos antropológicos sejam voltados por terceiros

contra os grupos estudados. Considerações finais

A discussão envolvendo a polêmica os estudos de Chagnon sobre os yanonami é

labiríntica, e o presente espaço é modesto para uma correta apreciação. Recomenda-se a

visitação das obras aqui mencionadas.

Espera-se que o presente texto tenha sensibilizado no que diz respeito a necessidade

da condução ética da pesquisa, o cuidado que envolve a representação de culturas, assim

como o risco de que estudos sejam utilizados por terceiros em interesse próprio, prejudicando

de alguma forma o grupo estudado.

Espera-se também que também tenham ficado claras as problematizações acerca

relações de poder, não só entre pesquisador e pesquisados, mas entre os próprios antropólogos

e entre a antropologia e demais áreas de conhecimento.

Concluindo, o presente trabalho possui pelo seu espaço um intuito mais voltado em

fomentar o debate das questões aqui levantadas do que explaná-las satisfatoriamente, ficando

o desejo de que as questões aqui presentes sejam debatidas e melhor explanadas em outros

espaços.

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