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CENTRO UNIVERSITÁRIO LA SALLE EUNICE MACHADO GAZZO AUTORES DA CASA DO POETA DE CANOAS: OS PROCESSOS DE MEMÓRIA NA PRODUÇÃO LITERÁRIA EM BUSCA DA INFÂNCIA CANOAS, 2011

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Page 1: AUTORES DA CASA DO POETA DE CANOAS: OS PROCESSOS DE ... · sem exigência destes amados que preencheram muitos sábados, domingos e tantos dias num convívio agradável. Aos amigos

CENTRO UNIVERSITÁRIO LA SALLE

EUNICE MACHADO GAZZO

AUTORES DA CASA DO POETA DE CANOAS: OS PROCESSOS DE MEMÓRIA NA PRODUÇÃO LITERÁRIA EM BUSCA DA INFÂNCIA

CANOAS, 2011

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EUNICE MACHADO GAZZO

AUTORES DA CASA DO POETA DE CANOAS: OS PROCESSOS DE

MEMÓRIA NA PRODUÇÃO LITERÁRIA EM BUSCA DA INFÂNCIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Strictu Sensu do Centro

Universitário La Salle – Unilasalle, como

exigência para a obtenção do grau de Mestre

em Memória Social e Bens Culturais.

ORIENTADORA: DRA. ZILÁ BERND COORIENTADOR: CÍCERO GALENO LOPES

CANOAS, 2011

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EUNICE MACHADO GAZZO

AUTORES DA CASA DO POETA DE CANOAS: PROCESSOS DE

MEMÓRIA NAS PRODUÇÕES LITERÁRIAS EM BUSCA DA INFÂNCIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu do Centro Universitário La Salle – Unilasalle, como exigência para a obtenção do grau de Mestre em Memória Social e Bens Culturais.

Aprovado pela banca examinadora em 15 de abril de 2011.

BANCA EXAMINADORA:

Profª Dr. Zilá Bernd - Presidente

____________________________________ Unilasalle

Profª Dr. Nádia Maria Weber Santos

_____________________________________ Unilasalle

Profª Dr. Raquel Rolando Souza

_______________________________________ Furg

Prof. Dr. Lucas Graeff

_______________________________________ Unilasalle

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À memória de meu pai João Joaquim Machado À minha mãe Domingas que em suas muitas orações velou por mim

Ao meu marido André e sua presença amorosa e marcante

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Agradecimentos A Deus, rocha minha, em que me refugio.

À amiga Dr. Cleusa Graebin por sua conduta exemplar e motivadora.

À minha orientadora, professora Dr. Zilá Bernd que com sua incomparável

sabedoria e simplicidade ajudou-me a ampliar meu horizonte de expectativa e ir

adiante em busca de uma nova etapa da vida.

Ao professor Dr. Cícero Galeno Lopes por tanta dedicação na coorientação,

pelo excelente nível de exigência e paciência que em muito foi aporte para meus

estudos serem ampliados para além do que eu pensava ser capaz.

Aos demais professores que compunham nosso mestrado pela contribuição

com suas habilidades e conhecimento.

As minhas irmãs, Vera, Isabel e Berenice, “garotas notáveis” e grandes

incentivadoras da minha nova jornada.

Em especial ao Zico e a Bere que proporcionaram a mim o desafio de um

novo mundo profissional.

Aos amigos Cláudio e Fabi que souberam entender minha luta. Foi a amizade

sem exigência destes amados que preencheram muitos sábados, domingos e tantos

dias num convívio agradável.

Aos amigos do Pareci Novo pelas orações e momentos felizes que superam

qualquer vontade louca de sair correndo.

Aos autores da Casa do Poeta que se tornaram grandes amigos.

Aos meus filhos Samuel e André Filipe que conviveram dias com uma mãe

rabugenta e que se “ausentou”, em determinados instantes. Tudo que se quer

galgar tem um tanto de sacrifício. Para mim foi a pior parte.

Ao meu marido reservo esta última linha como a mais importante pois sem

ele, sem o seu dinamismo, sem o seu amor seria impossível.

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Queria que todos soubessem de onde saiu o homem que sou. José Saramago

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RESUMO

Este trabalho tem como intuito a investigação analítica de produções literárias cuja temática recorrente são as memórias de infância de dez autores da Casa do Poeta de Canoas: Adilar Signori, Ancila Dani Martins, Demétrio Leite, José Héber Aguiar, Neida Rocha, Nelsi Inês Urnau, Maria Luci Leite, Maria Rigo, Mari Regina Rigo e Marlise Pozzatti. A partir dos registros textuais analisam-se as estratégias de resgate memorial, ativado pelos processos voluntários e involuntários (BERGSON, 1990) da memória. Em consequência serão demonstrados em que medida esse resgate memorial contribui para a afirmação identitária dos escritores e para a reconstrução de si. Assim cada reminiscência, na proposta de fusão dos acontecimentos reais e ficcionais ganha contornos textuais percorrendo o caminho da criatividade, passando pela subjetividade e deixando-se modelar pelas experiências da coletividade na formação integral do sujeito. Os discursos foram dispostos para análise em dois blocos: textos em prosa e poemas. Quanto às narrativas será avaliada a possibilidade de serem textos autoficcionais, e no que concerne às composições poéticas, apurar o caráter autobiográfico. As produções literárias, enfim, constatam a intrínseca relação entre memória e Literatura no refazimento de uma retrospectiva de vida enlaçada à memória social. A vida em sociedade, reduto das interrelações pessoais, origina um espaço autobiográfico, solo propício para as escritas de si.

Palavras-chave: memória social, subjetividade, escritas de si, autoficção e espaço autobiográfico.

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ABSTRACT

The aim of this work is to make an analytic investigation of literary works that have as common subject matter the childhood memories of ten authors from Casa do Poeta de Canoas: Adilar Signori, Ancila Dani Martins, Demétrio Leite, José Heber Aguiar, Neida Rocha, Nelsi Inês Urnau, Maria Luci Leite, Maria Rigo, Mari Regina Rigo e Marlise Pozzatti. From the written registers we analyze the strategies of memorial recovery, activated by voluntary and involuntary processes (BERGSON, 1990) of memory. In consequence we show how this memorial recovery contributes to the authors’ affirmation of identity and to a reconstruction of the self. This way each reminiscence, on the proposal of a fusion between real facts and fiction, gains textual outlines going through the creativity way, passing through subjectivity and being modeled by group experiences on the comprehensive formation of the subject. The discourses were put on to analysis into two sections: proses and poems. As for the narratives the possibility of being autofictional will be analyzed and for the poetic works their autobiographical aspect will be investigated. At last the literary works show the intrinsic relation between memory and literature in remaking a retrospective of life tied to a social memory. Life in society, place for personal interrelations, origins an autobiographical space, perfect ground for self-writings. Word-keys: Social memory, subjectivity, self-writings, autofiction, autobiographical space.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 Desenvolvimento da personalidade da criança.........................................15

Quadro 2 Autores e obras analisadas......................................................................19

Ilustração 1 Os escritores na Câmara Municipal de Canoas ...................................18

Ilustração 3 O texto de Mari Regina Rigo em pôster exposto..................................69

Ilustração 4 O brinquedo, objeto de referencialidade da infância ............................70

Ilustração 5 Ancila D. Martins e as imagens significativas de infância.....................71

Ilustração 6 O casarão onde viveram os avós de Ancila Dani .................................71

Ilustração 7 Brinquedos artesanais, bilboquê e estrela para montar .......................72

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................10

1.1 Um olhar sobre a criança................................................................12 1.2 Casa do Poeta de Canoas..............................................................16 1.3 Origem do corpus e objetivos da pesquisa .....................................18

2 MEMÓRIA INDIVIDUAL, MEMÓRIA COLETIVA..................................23 2.1 Do olhar interior à intersubjetividade...............................................25 2.2 Literatura e memória.......................................................................28

2.2.1 Desejo de memória e abordagem de si....................................32 2.2.2 Autobiografia ............................................................................33 2.2.3 Autoficção ................................................................................36

3 INFÂNCIA E REMEMORAÇÃO.............................................................43 3.1 Prosa e construção do sujeito.........................................................44

3.1.1 Reencontro com o lugar de infância de Adilar Signori..............45 3.1.2 Marcas identitárias de Ancila Dani Martins ..............................48 3.1.3 Reflexão sobre a maturidade de Demétrio Leite ......................51 3.1.4 Objeto de lembrança de José Heber de Aguiar .......................54 3.1.5 Sensações e sabores da infância de Mari Rigo .......................55

3.2 Emergência da subjetividade no poema .........................................58 3.2.1 Sujeito bipartido de Nelsi Urnau...............................................59 3.2.2 Tempo e correnteza do rio no poema de Maria Rigo ...............62 3.2.3. Menina-mulher de Marlise Pozzatti .........................................63 3.2.4 Alteração do espaço e maturidade de Neida Rocha ................65 3.2.5 Passado e presente nos versos de Maria Luci Leite................66 3.2.6 Autores, obras e evidência.......................................................68

3.3 Exposição: Poéticas da infância .....................................................68 4 CONCLUSÃO.........................................................................................74 ANEXOS....................................................................................................89 APÊNDICES.............................................................................................122

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INTRODUÇÃO Lembranças... elas surgem. Apontam à medida que buscamos por elas ou,

em um determinado momento, podem brotar numa imagem que desencadeia uma

sequência de pensamentos recolhidos de instantes do passado. A escolha deste

trabalho assim ocorreu e se fortaleceu em meio a uma criação literária que fiz

enquanto tomava um café, olhando para uma foto antiga. Aquela imagem foi

propícia para a fruição de uma lembrança de infância: meu pai, pela manhã,

preparando o “nosso” café. Não só a recomposição do quadro de memória, mas a

sinestesia presente no cheiro do café veio a colaborar para o resgate do passado. O

exercício do corpo textual dos meus escritos foi buscar as questões de experiência

vivida, da memória, da sinceridade em relação aos fatos e da beleza poética

daquele momento. Selecionei o instante pela prática sensorial como Marcel Proust e

a madeleine (1992): um olhar e um lembrar a partir do cheiro do café.

Olho para o foto dele. Não quero chorar, mas choro. Não o perdi, guardei-o na memória. Fui resgatá-lo hoje, recolhendo fragmentos do tempo, dia que foi manhã, uma música inesquecível, “canhanca, nanã, canhanca” que talvez só ele cantasse e a cantava para mim enquanto preparava o nosso café. E eu aguardava aquele momento, sentada em um banquinho. Depois sorvia vagarosamente em seu colo o “caié” desejando que o momento não terminasse. Em seguida ele arrumava sua velha pasta de trabalho, devagarzinho, não querendo ir, porém partia. Naquele mesmo dia alguns tijolos eram sobrepostos na construção da grande Porto Alegre que se erguia. Hoje só saudade, saudade de um doce café de pai (GAZZO, inédito).

Assim parti para o enfoque desta pesquisa na Casa do Poeta de Canoas e a

produção escrita associada à memória de alguns de seus escritores. Esses escritos

estão ancorados em lembranças que se desenrolaram a partir de imagens passadas

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que surgiram por conta de um signo desencadeador (involuntárias) ou que foram

evocadas pelo esforço do autor (voluntárias) em recuperar fragmentos do vivido,

proposições teorizadas por Henri Bergson (1990). M. Proust (1992) aproveitou bem

o papel da memória involuntária na obra Em busca do tempo perdido e destacou a

importância da recuperação da infância como um tempo perdido, fazendo o uso dos

sentidos como molas propulsoras que ejetam as memórias.

H. Bergson foi um dos pioneiros a privilegiar teoricamente o sujeito em seus

estudos. Conjeturou acerca do processo de construção da memória como lembrança

aprendida e lembrança espontânea, baseando-se na matéria como um conjunto de

imagens e na sua relação com a interioridade e a exterioridade do sujeito, o corpo e

suas interrelações a que ele nomeia percepção da matéria como uma ação do

cérebro. O sociólogo francês fundamenta a sua explicação sobre memória

utilizando os elementos da biologia, o funcionamento do cérebro e seu movimento, a

percepção, a lembrança, a matéria e a imagem como essenciais para o

entendimento dos processos de memória: e cujo resultado final a respeito das duas

memórias (a involuntária e a voluntária) como referenciava o autor: “uma imagina e a

outra repete” (BERGSON, 1990, p. 63).

Cheguei à instituição Casa do Poeta em busca do sujeito escritor e sua

interrelação com aquilo que lhe era interno e externo e que foi aproveitado como

influxo na produção textual. Destaquei a produção escrita que estivesse apontando

para o resgate de memórias, com um recorte delimitado à infância e que essas

produções pudessem contribuir para meus estudos, relacionando-as com a

subjetividade do escritor e a formação identitária.

Convém aqui um breve esclarecimento acerca do motivo pelo qual usei o

enfoque sobre a infância: Um ano antes, havia lido Gaston Bachelard (1996), A

poética do devaneio, e a afirmação de que o devaneio em relação ao mundo infantil

“nos dá o mundo de uma alma, que uma imagem poética testemunha, uma alma que

descobre o seu mundo, o mundo onde ela gostaria de viver, onde ela é digna de

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viver” (p.15). Quando escrevi sobre a minha infância o fiz no intuito de recuperar um

momento feliz, mas perdido, e que confirma que a infância é um estágio, para alguns

escritores, privilegiado e quando acontece o “retorno” se compara ao mundo dos

devaneios como que a buscar o paraíso perdido ou no dizer de Leonor Arfuch (2010)

“uma evocação idealizada de figuras ou situações emblemáticas” (p.199):

O biografema da infância, alimentado até a exaustão pelas vertentes psicanalíticas, não só busca o detalhe peculiar, ilustrativo, mas também opera como uma espécie de eterno retorno, a volta sobre um tempo nunca insignificante, cujo conhecimento é necessariamente iluminador (ARFUCH, 2010, p. 199).

Foi um quadro de minha infância o alavancador desta proposta de trabalho, o

retorno infantil de um dia alegre com meu pai permitindo a causalidade entre

vontade e realização. Assim como vem a ser em muitos escritos literários a infância

um paradouro, um ponto de apoio e retorno aos tempos idealizados e o motivo de

biografemas. 1

1.1 Um olhar sobre a criança Mas o que vem a ser a infância e qual sua importância nas escritas memoriais

dos escritores da Casa do Poeta de Canoas?

O reconhecimento da infância com valorização da criança como ser social é

uma “descoberta” segundo Philippe Ariès (1981) na proposição de estudos

sociológicos e antropológicos da atualidade.

A tomada de consciência da infância é interpretada sob o ponto de vista social

nos estudos do mesmo autor, permitindo assim um exame histórico a partir das

sociedades tradicionais da idade Média. Neste período revela a insignificância da

1 Biografema: Roland Barthes, em 1971, criou este neologismo a fim de dar conta da imagem fragmentada do sujeito contemporâneo através de biografia, autobiografia ou outra escrita que expresse em múltiplas significações a vida de um biografado.

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criança que prossegue até o início do século XIX, com o advento das sociedades

industriais e o princípio do “sentimento de infância2” (p.159). A partir de então é que

surge um despontar concedendo a importância devida à criança, reconhecendo-a

como ser socialmente ativo. Ph. Ariès ao examinar referenciais teóricos para a

análise antropológica de seu trabalho encontrou a importante citação sobre esse

novo olhar para a criança: “ela é uma pessoa, um processo, uma história, que os

psicólogos tentam reconstituir, um termo de comparação” (BESANÇON, apud

ARIÈS, 1981, p. 13).

Como observa Ph. Ariès, a escolarização e as mudanças estruturais da

sociedade e família foram trazendo mudanças e valorização infantil:

A preocupação em humilhar a infância para distingui-la e melhorá-la se atenuaria ao longo do século XVIII, e a história da disciplina escolar nos permite acompanhar a mudança da consciência coletiva nessa questão (ARIÈS, 1981, p. 181).

Um período marca esse tempo de vida. Preza-se aqui a escolha de estágios

conforme a teoria de Henri Wallon (2007) que compreende a infância como um

período identificável em sucessivas idades, com a apresentação de cinco estágios

para identificar o desenvolvimento da personalidade da criança.

O quadro de H. Wallon apresenta a criança que passa por estágios evolutivos

da personalidade, estimulados por atividades importantes como o brincar, por

desenvolver hábitos como a linguagem, a imitação nas práticas sociais, o progredir

da afetividade num crescimento contínuo até alcançar a idade adulta.

Estágio Nomeação idade

2 Sentimento de infância: Consciência da particularidade infantil que distingue a criança do adulto com as distinções como o vestir, as brincadeiras, a consideração, o cuidado, o carinho, as leis que promulguem os direitos e o respeito que a criança merece.

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Estágio 1 Impulsivo

emocional

0 a 3 meses

3 meses a 1 ano

Estágio 2 Sensório-motor

Projetivo

1 ano a 18 meses

3 anos

Estágio 3 Personalismo

- Crise de oposição

- idade da graça

- imitação

3 a 6 anos

3 a 4 anos

4 a 5 anos

5 a 6 anos

Estágio 4 Categorial 6 a 11 anos

Estágio 5 Adolescência A partir de 11 anos

Quadro 1 Desenvolvimento da personalidade da criança Fonte: Wallon, 2007

Conforme H. Wallon para a criança, só é possível viver a sua infância.

Conhecê-la compete ao adulto. Levada por essa afirmação e pautando a direção

deste trabalho que busca as lembranças do tempo de criança considerei as

colocações do psicólogo francês de que “nossas lembranças variam com a idade em

que são evocadas, e que toda lembrança trabalha em nós sob a influência de nossa

evolução psíquica, de nossas disposições e das situações” (p.12). Assim cada

rememoração “é muito mais provável que seja a imagem do presente e não do

passado” (p.13), pois a ótica do adulto revitaliza aquilo que foi vivido no passado.

Quando o poeta busca a infância ele procura por um tempo de restituição,

pois através do devaneio consegue-se “descer tão profundamente em nós mesmos”

(BACHELARD, 1996, p. 93), na intenção de encontrar uma sensibilização poética

que possa expressar os mais profundos sentimentos e as remotas lembranças.

Assim como no enunciado de G. Bachelard de que “a criança conhece a

ventura de sonhar, que será mais tarde a ventura dos poetas” (p. 94), surgiu a

oportunidade de conhecer os sonhos (devaneios) dos poetas de Canoas, descritos

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em seus versos, suas criações poéticas e como eles caracterizaram o ser infantil

que haviam sido em suas obras.

O poema Deus (1859) de Casimiro de Abreu deu início ao diálogo da

pesquisadora com o grupo. Convém pautar que não é o subjetivismo romântico o

interesse desta pesquisa, mas a temática da infância e a afirmação do verso “eu me

lembro” uma ponte para o desenvolvimento da investigação que buscava produções

literárias arquitetadas em lembranças dos tempos de pequeno.

Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno E brincava na praia: o mar bramia E erguendo o dorso altivo sacudia A branca espuma para o céu sereno. E eu disse a minha mãe nesse momento: Que dura orquestra! Que furor insano! Que pode haver de maior do que o oceano Ou que seja mais forte do que o vento? Minha mãe a sorrir, olhou pros céus E respondeu: - Um ser que nós não vemos, É maior do que o mar que nos tememos Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus. ( ABREU, 2009)

Neste poema do Romantismo o poeta usa a matéria da infância em algumas

recordações que foram facilitadoras do abrir caminhos para o que desejava

percorrer a trajetória dessa investigação. Do que eles lembravam de suas infâncias?

O que eles haviam produzido sobre a infância? Decidiu-se não se fazer

questionários ou entrevistas, pois a intenção era conhecê-los através dos textos, já

que o trabalho incorreria em expressões da subjetividade através da produção

textual e a construção do sujeito na interação social. Assim as marcas identitárias

poderiam estar na produção escrita e nas memórias circulariam as rememorações e

comemorações do sujeito social.

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A partir de então começaram os trabalhos e as visitas à Casa do Poeta de

Canoas para a interação dos estudos com as obras avaliadas e contato com o

grupo.

1.2 Casa do Poeta de Canoas A Casa do Poeta de Canoas é filiada a Casa do Poeta do Brasil e foi criada

em 19 de setembro de 2002 num sarau inaugural realizado no Instituto Pestalozzi

que sediou a entidade em seu início. A formalização de pessoa jurídica se deu em

19 de maio de 2004 e a partir de então passou a ser uma entidade cultural que visa

divulgar, incentivar e promover os talentos literários locais.

Em 2003 foi lançada a I Coletânea Casa do Poeta reunindo textos de gêneros

diversificados de seus associados e assim a cada dois anos promove nova edição.

No mais, a entidade realiza eventos concernentes à cultura e a arte em geral. A

abrangência de suas atividades não se restringe só ao município, mas

eventualmente os associados participam de eventos culturais em outros municípios

ou estados. A casa realiza apresentações artísticas e promoções literárias pois seus

integrantes são em grande parte artistas plásticos, músicos, escritores, intelectuais,

estudantes, enfim todos aqueles que têm afinidades com a arte e a literatura. Os

participantes do grupo em questão direcionam suas atividades ao público em geral,

mas o maior envolvimento tem sido com a rede de ensino, em escolas públicas e

privadas, através de caravanas culturais, visitas, exposição de livros, oficinas,

palestras e concursos literários. A instituição formaliza e divulga suas apresentações

através de um sítio na internete. A entidade já conta com quatro coletâneas editadas

e em nove anos de realizações contribuiu para o desenvolvimento cultural de

Canoas. Atualmente a entidade possui 42 associados ativos.

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Os sujeitos desta pesquisa são 10 escritores, moradores de Canoas,

associados à casa do Poeta e com idades variadas entre 26 e 74 anos, de diferentes

formações: Maria Rigo que é a atual Presidente do grupo, natural de Triunfo, é

cofundadora da Instituição, líder ativa e professora aposentada, a sua poesia

Saudade foi premiada e lançada na II Coletânea Casa do Poeta de 2003. Mari

Regina Rigo é graduada em Letras pelo Unilasalle e atual integrante do Conselho

Municipal de Cultura, possui participação em todas as coletâneas da Casa do Poeta

e participa com a crônica inédita Sensações e sabores da infância. Nelsi Inês

Urnau, patronesse da 26ª Feira do Livro de Canoas, possui diversas obras editadas

entre elas o romance Loucos e não insanos (2005), premiada em diversos certames

literários, participante de antologias em todo Brasil; fez a exposição “Cores do Brasil”

em Açores, Portugal e vem se destacando na construção poética, de seu repertório

será analisado o seu poema Saudade doce que ainda não consta edição. José

Heber Aguiar, irmão lassalista e animador vocacional das dioceses de Santa Cruz

do Sul e Montenegro, além de poesias, escreve contos e crônicas. O autor

apresenta a crônica Guarda-chuvas (2009). Neida Rocha, pós-graduada em Letras

pela Universidade Regional de Blumenau, escritora, com produção diversificada em

expansão nacional, da qual se destaca o poema Vila Harmonia (2007). Adilar

Signori, cronista histórico premiado recentemente no concurso literário promovido

pelo Sport Clube Internacional e no concurso de crônicas da Univates de Lajeado

revela seu talento com o texto Meu pé de jasmim (2009). Marlise Pozzatti,

professora universitária, pesquisadora especializada em estudos francófonos pela

UFRGS, participa com o poema, inédito, Pica-pau. Ancila Dani Martins, natural de

Flores da Cunha, autora do conto Uma estrela em movimento (no prelo), é graduada

em História pela Unisinos, pós-graduada em Métodos e Técnicas de Ensino de

História do Rio Grande do Sul pelo CELES. Maria Luci Leite, natural de Gravataí,

ganhou prêmio de melhor tema-letra do Festival Nativista de Fontoura Xavier/RS.

Autora do livro Expressões d’alma (2008) participa da análise com seu poema

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Recordando. Demétrio Leite, historiador, pesquisador, genealogista e professor,

desenvolve estudo sobre terras e sesmarias e genealogia açoriana e portuguesa,

cerne de sua crônica, Gado de osso lançada na Revista Eletrônica Costa Leite

(2010). Os dados dos autores foram extraídos de nota biográfica presente nas obras

editadas ou em registro constante em ficha de associado à Casa do Poeta.

Ilustração 1 Os escritores na Câmara Municipal de Canoas

Fonte: Adilar Signori, 2009

1.3 Origem do corpus e objetivos da pesquisa

Demonstra-se no presente estudo a análise da produção literária dos autores

da Casa do Poeta de Canoas quanto aos processos (voluntário e involuntário) de

memória (BERGSON, 1990) utilizados nas escritas que rememoram a infância. Para

resgatar as vivências da infância cada autor se utilizou de recursos variados da

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memória e recorreu a um formato textual (prosa ou poema) para registrar sua

criação.

Os textos dos autores são apresentados em fragmentos na análise e na

íntegra como anexo.

AUTORES TEXTO OBRA/ANO CATEGORIA

Adilar Signori Meu pé de jasmim Escritos, escritores/2009 crônica Ancila Dani

Martins Estrela em movimento

No prelo conto

Demétrio Leite Gado de osso Revista Costa Leite/2010 crônica José Heber

Aguiar Guarda-chuvas Crônicas para um dia de

domingo/2009 crônica

Maria Rigo Saudade I Coletânea Casa do Poeta/2003

poema

Maria Luci Recordando Expressões d’alma / 2008 poema Mari Regina

Rigo Sensações e

sabores da infância Texto inédito crônica

Marlise Pozzatti Pica-pau Texto inédito poema Neida Rocha Vila Harmonia III Coletânea Casa do

Poeta/2007 poema

Nelsi Urnau Saudade doce Texto inédito poema

Quadro 2 Autores e obras analisadas Fonte: a mesma autora, 2011

Em cada obra literária são detectados mecanismos de criação e invenção que

possibilitam a (re)construção do vivido. Assim são analisados os artifícios utilizados

para preencher as lacunas de memória no resgate do passado e a capacidade de

rememoração dos autores.

Torna-se pertinente a abordagem da relação entre resgate memorial e a

construção identitária, pois o sujeito nas suas experiências vivenciais, vai formando

uma identidade a partir das experiências relacionais com um “grupo” (HALBWACHS,

2006).

O corpus divide-se em duas partes: textos em prosa e poesias. Efetua-se esta

classificação tendo em vista a especificidade de cada um destes gêneros. A

investigação analítica procura destacar nestes textos a emergência da subjetividade.

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Busca-se avaliar as características de autoficção presentes nos textos, pois na

criação literária o elemento ficcional associado ao sujeito e sua memória desvela a

invenção/imaginação em torno da concepção de si e de sua visão de mundo.

Com base nesse conjunto de textos, a pesquisa procura responder as

seguintes perguntas norteadoras: Como ressurge o passado através das

lembranças voluntárias e involuntárias? Nos textos seria possível perceber o sujeito

que refaz a construção de uma temporalidade passada, reveladora de um imaginário

social e individual evidenciada pela produção textual? Até que ponto essa

reconstrução de si no tecido textual, devido à tipologia de textos (narrativo e poético)

admite a constituição de uma escrita autoficcional?

Até o presente momento para a crítica literária as autoficções pertencem ao

gênero narrativo e, na lírica, as expressões que remetem à existência do sujeito têm

sido caracterizadas como poesia autobiográfica. Existiria uma poesia autoficcional?

A própria etimologia dos substantivos autoficcional e autobiográfico as tornam

palavras avizinhadas no sentido mais amplo do que Ph. Lejeune considera como o

espaço autobiográfico.

Já na análise dos poemas é avaliada a emergência da subjetividade. Como

confirmar a percepção do sujeito lírico diante das representações que o circundam?

Seria possível evidenciar as expressões que remetem a uma existência do sujeito

nas transcrições de uma realidade já vivida, configurando-se assim o caráter

autobiográfico do ser poético?

Em todos os textos, o interesse é perceber o sujeito que (re)configura o

vivido. No corpus poético (análise dos poemas) é considerada a percepção deste

sujeito lírico diante das representações que o circundam. Nos textos em prosa,

aprecia-se a afirmação de um sujeito em relação a sua existência nas transcrições

de uma realidade já vivida.

Dando continuidade a pesquisa e para atender a uma prática do mestrado

profissional apresenta-se como objetivo de ação uma exposição: As poéticas da

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infância que tem o intuito de promover a interação entre a comunidade canoense e a

produção textual dos autores analisados. A amostragem dispunha de 10 painéis

com excertos dos escritos literários, fotos referentes à infância e diversos brinquedos

que pertenciam aos autores.

Na introdução desta dissertação busca-se: 1) esclarecer sobre os motivos que

nos levaram a delimitar o caráter autobiográfico da produção poética dos autores da

Casa do Poeta de Canoas, à temática da infância; 2) apresentar os autores

selecionados para a presente pesquisa; 3) apontar o referencial teórico que a

norteou.

Na segunda seção é teoricamente abordado o conceito de memória individual

e seu desenvolvimento tendo como ponto de partida o reconhecimento do sujeito

(BERGSON, 1990), um exame sobre subjetividade, visitando as noções do olhar

interior à intersubjetividade (RICOEUR, 2007) até a compreensão de memória

coletiva (HALBAWACHS, 2006) a fim de contemplar a noção de que todas as

experiências do sujeito são vivenciadas no âmbito da coletividade. Essas

experiências quando rememoradas através do trabalho da memória, vão

constituindo o identitário. Ainda nesta seção apresenta-se a relação entre a memória

e a literatura em recentes estudos sobre autobiografia (LEJEUNE, 2009) e

autoficção desde seu conceito fundante, em 1977, a partir dos estudos pioneiros de

Serge Doubrovsky, e das teses doutorais de Diana Kingler (2007) e Kelley Duarte

(2010) entre outros.

Na terceira seção passa-se a fazer a análise dos textos dos autores da Casa

do Poeta e a traçar um paralelo entre a temática da infância e da rememoração

como sendo a recuperação de um tempo perdido (PROUST, 1992). Focaliza-se a

temática da infância como matéria de criação, usando-se como abordagem

pragmática excertos das obras de Nélida Piñon, Coração andarilho (2010) e de José

Saramago, Pequenas memórias (2006) que amplamente se valeram da infância

como fomento para suas criações literárias. As obras de ambos os autores

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constituem-se como paradigmas de trabalho de rememoração da infância, devendo

guiar de certa forma a leitura dos autores que formam nosso corpus. Os processos

de construção da memória voluntária e involuntária (BERGSON, 1990) são

analisados bem como o resgate das reminiscências que reconfigurem o passado no

presente vivido entre a ficção e a realidade. O misto do real e do imaginado é o

terreno profícuo onde o sujeito se (re)constrói na subversão dos gêneros

tradicionais, nas novas formas discursivas ou hibridações (ARFUCH, 2010). A

coleta do corpus apresenta a forma textual que os autores deram a seus textos. O

exercício de tecer-se a si mesmo pode ser a expressão do eu-lírico em poemas ou

ser o eu-autoral em prosa. Enfim, o construto textual foi definido pelo gênero e a

complexidade de recursos criativos da escolha dos autores e pelo grau de

ficcionalidade que irão imprimir em suas criações.

Na conclusão procura-se estabelecer as relações entre a teoria e prática,

tecendo um fechamento com a abordagem teórica referente aos conceitos de

memória individual e coletiva, e ao caráter autoficcional e ou autobiográfico das

produções considerando a análise dos textos dos autores da Casa do Poeta de

Canoas como sinalizadores de que a memória coletiva preservada em textos, que

referenciam a infância no entrecruzamento da sociedade e seus sujeitos são

elementos constitutivos da identidade do autor. Ainda mais: o discurso em torno de

si recorre a estratégias para a reconstrução do passado, pautadas na mistura da

ficção e da realidade. Todos esses aspectos levam à apresentação do espaço

autobiográfico como sendo o lugar instável, em tempos de mobilidade, dos termos

autoficcional/autobiográfico no que tange aos escritos literários. Também se reforça

que os processos de memória recuperam e revitalizam a existência do sujeito ao

perfazer a recriação de si através da escrita na busca pelo fortalecimento da

identidade.

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2 MEMÓRIA INDIVIDUAL, MEMÓRIA COLETIVA

O conceito de memória, ao longo dos anos, veio sendo constantemente

modificado, variando conforme as complexas visões do momento histórico e cultural.

Considerando as contribuições do artigo da Revista Morpheus de Claudia

Rosário (2000) de que na Antiguidade a concepção de memória era ligada

unicamente à imaginação e conservava um caráter místico ao representar-se pela

presença da divindade grega Mnemosine que doava aos poetas o dom da memória.

Os poetas eram os únicos homens privilegiados como intérpretes das lembranças e

das passagens dos tempos. Na mitologia grega antiga recordar tinha o mesmo

significado que trazer de volta o passado, fazendo aparecer as coisas que já haviam

desaparecido.

No contexto mítico, recordar significa resgatar um momento originário e torná-lo eterno em contraposição à nossa experiência ordinária do tempo como algo que passa que escoa e que se perde. A recordação, como resgate do tempo, confere desta forma imortalidade àquilo que ordinariamente estaria perdido de modo irrecuperável sem esta re-atualização. Traz de novo a presença dos Deuses, os feitos exemplares que forjam os Heróis e que perseguimos ainda hoje como modelos exemplares, nos coloca novamente em presença das tradições dos Antepassados que nos tornaram o que somos (ROSARIO, 2000, p. 3).

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Os perigos do esquecimento também ficavam por conta de uma figura

mitológica: o rio Lethes que lado a lado com a fonte da memória de Mnemosine

formulava a eterna dialética entre a memória e o esquecimento. Na mitologia, a

memória era divina, o esquecimento considerado como profano. Aquilo que não

agradava poderia passar pelas águas do rio Lethes e ser esquecido, mas o que

atraía como lembrança seria ajudada pela divindade grega a se fortalecer como

memória.

Com o decorrer das épocas a memória foi tida como uma capacidade

individual de retenção dos acontecimentos passados, como a interiorização de

Santo Agostinho citando a metáfora “palácios da memória” (RICOEUR, 2007, p. 109)

como referenciava, em busca de suas lembranças perdidas, num resgate temporal

em direção ao passado, cuja intenção maior era uma ligação a Deus.

Por fim, no final do século XIX, os estudos acerca da memória conceberam-

na a partir do sujeito e suas interações sociais. A ênfase no aspecto social focalizou

o sujeito como ator social e a memória como processo:

É com o surgimento da categoria do sujeito, na modernidade que a recusa do tempo se arrefece, pois o sujeito tem uma dimensão finita: ele passa e se transforma com o tempo. Assim, foi preciso que a infinitude perdesse sua sustentação filosófica para que no século XIX, o tempo se tornasse realmente um problema investido pelos filósofos e cientistas da modernidade, passando a ter por referência não mais a eternidade divina, e sim o sujeito finito. O homem com seus limites, sua história, seus valores sociais, pôde se tornar objeto de investigação. Foi esse momento de surgimento das ciências humanas e sociais e também aquele em que a memória se tornou uma construção humana finita, e, portanto, uma construção do tempo (DODEBEI, 2005, p. 19).

H. Bergson precedeu a uma análise interna da memória que mais tarde

levaria aos estudos que ligariam a memória às representações sociais. O autor de

Matéria e memória traz a contribuição de que “a memória estaria associada ao lado

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subjetivo do conhecimento que o individuo tem acerca das coisas, tornando-se o elo

entre a matéria e o espírito” (RIBEIRO, 2009).

Ecléa Bosi sintetiza o pensamento de H. Bergson:

A lembrança é a sobrevivência do passado. O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens-lembrança. A sua forma pura seria a imagem presente nos sonhos e devaneios. Assim pensava Bergson, que, como vimos se esforçou para dar a memória um estatuto espiritual diverso da percepção. Ora, é justamente a importância dessa distinção, e tudo quanto ela comporta de ênfase na pureza da memória, que vai ser relativizado por Maurice Halbwachs (BOSI, 2004, p .53).

A partir das postulações teóricas de H. Bergson novos estudos foram

aprofundados por M. Halbwachs que se dedicaria a fazer a distinção entre

percepção e pureza da memória, desenvolvendo assim a teoria psicossocial da

memória em condicionantes sociais (quadros sociais da memória).

Os postulados de M. Halbwachs tornaram-se marco para a compreensão de

uma memória concebida a partir do sujeito e as interações sociais propostas através

de seus “quadros sociais da memória” (HALBWACHS, 2006, p. 117) que foram

relevantes para a ampliação do conceito de memória coletiva, identidade e memória

compartilhada. Para o sociólogo francês, a memória do sujeito dependeria da sua

interação com a família, a classe social, a escola, enfim dos grupos de referência e

pertencimento do indivíduo. A memória coletiva passa a ser entendida como um

processo de construção grupal.

2.1 Do olhar interior à intersubjetividade

Uma pergunta repercute na linha do tempo, a cujas reflexões teóricas

pretendem responder e serve para dar continuidade ao “dilema paralisante: a

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memória é primordialmente individual ou coletiva?” Com esse questionamento P.

Ricoeur (2007, p.105) lança seu estudo sobre a tradição do olhar interior referindo-

se à problemática da subjetividade que ainda mantém viva as discussões acerca de

a memória ser individual ou coletiva. Indagações para as quais o filósofo propõe

lançar uma ponte entre os dois discursos “de uma constituição distinta, porém mútua

e cruzada” (p.107) e que há muito vêm sendo postas em confronto.

Essa indagação remete aos estudos iniciais de entendimento de memória

com a parcela de contribuição social como a proposta por M. Halbwachs: valer-se

das memórias compartilhadas para rememorar. A ideia de que as lembranças se

fortificam graças às “narrativas coletivas” (HALBWACHS, 2006, p. 117) indica que

muitos acontecimentos do passado são reavivados por outras pessoas que

pertencem ao grupo de convívio.

P. Ricoeur aprofundou-se no estudo das diversas linhas de pensamento de

filósofos de diferentes épocas considerando o termo memória e fazendo um exame

do funcionamento interno de cada um dos discursos desses teóricos para chegar a

um caminho que pudesse conduzir ao ponto de partida da conceituação de memória

de alguns teóricos do século XIX que abordam a temática a partir da subjetividade

do indivíduo. A ideia da pesquisa de P. Ricoeur era delinear uma noção de sujeito

enquanto definição ou apreensão de si mesmo, não se tratando de uma

subjetividade solipsística, fechada em si mesma, mas uma subjetividade que iria se

encaminhando para o relacionamento com o outro.

De acordo com P. Ricoeur, Santo Agostinho (354) é apontado como precursor

do olhar interior: “Pode-se dizer dele que inventou a interioridade sobre o fundo da

experiência cristã” (RICOEUR, 2007, p.109). Para o bispo de Hipona, pelo viés

cristão, a memória feliz só seria possível a partir da lembrança de Deus. Neste caso,

não havia interesse em firmar uma identidade, mas apenas o si e a memória numa

relação de busca da interioridade. Nessa ótica, o medo do esquecimento resultaria

no próprio esquecimento de Deus e a perda do vínculo da alma (anima) como fonte

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da memória. Sobre John Locke (1632 -1704) e a tomada de consciência de “si

próprio” (RICOEUR, 2007, p.110), P. Ricoeur afirma que este filósofo ignorou o

sentido da palavra “sujeito”, mas, iniciou os estudos sobre a “equação entre a

identidade, o si e a memória” embora permaneça no “caráter egológico de uma

filosofia da consciência e memória” (RICOEUR, 2007, p.114). Já na fenomenologia

de Husserl (1859 -1938) há “o surgimento de uma passagem da egologia à

intersubjetividade” (RICOEUR, 2007, p.115) devido à preocupação com a

consciência, o sujeito, o fluxo temporal e a memória intencional que fornece

significado às coisas. Somente no final do século XIX a memória passou a ser vista

e estudada como uma construção social e M. Halbwachs (1877-1945) inaugurou a

linha de pensamento que consiste em associar a memória diretamente a uma

entidade “coletiva” que ele chama de “grupo ou sociedade” (HALBWACHS, 2006, p.

116). Para M. Halbwachs, explicando a teoria dos quadros sociais, a memória não

se relacionava apenas com a capacidade isolada do indivíduo, mas trata-se de uma

construção social. O sujeito guardaria partes de experiências vividas que eram

inscritas em quadros coletivos, e outras experiências que não tivesse lembrança

seriam despertadas pelo próprio grupo de convivência. O estudioso francês afirmava

que lembrar não consistiria em reviver, mas refazer, reconstruir com as ideias do

presente os acontecimentos de passado, se valendo principalmente das

experiências compartilhadas.

Colaborando com a abordagem da memória coletiva, Zilá Bernd interpreta o

pensamento de M. Halbwachs:

É bastante instigante a relação entre memória individual e coletiva, pois são os indivíduos que se lembram na medida em que fazem parte de um grupo. Mas as lembranças não aparecem da mesma forma a cada um deles mesmo que as vivências tenham sido semelhantes, na medida em que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva” (BERND, 2009, p. 71).

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A memória coletiva está diretamente ligada à capacidade com que os

indivíduos estabelecem relações sociais, compartilham conhecimentos, evoluem

dentro de uma comunidade. O compartilhamento das informações, das ideias

fortalece os laços e a manutenção da memória coletiva. A representação daquilo

que é cultivado entre essa comunidade é passado à próxima geração. Os indivíduos

pertencentes a esses grupos criam formas de preservar a memória contra o não

esquecimento daquilo que é importante como marca identitária entre eles.

Na conclusão de seus estudos relativos à memória social, Zilda Kessel

destaca que memória individual e coletiva “se interpenetram e se contaminam”:

Memória individual e coletiva se alimenta e tem pontos de contato com a memória histórica e tal como ela, são socialmente negociadas. Guardam informações relevantes para os sujeitos e tem por função primordial garantir a coesão do grupo e o sentimento de pertinência entre seus membros (KESSEL, 2003, p. 63).

Reconhece-se a memória como individual, por ser um modelo de “minhadade”

(RICOEUR, 2007, p. 107), de possessão privada para todas as experiências do

sujeito, mas como o homem é um ser social, não vive isoladamente desde o seu

primeiro dia de existência, vive dentro de uma coletividade, assim o somatório desta

vivência, das experiências relacionais é que tecerão a sua formação de identidade.

2.2 Literatura e memória

Tecer uma história reconstruindo uma identidade, juntando os fios de

situações que envolvam lembranças, sentimentos, pessoas, tempos, espaços, é um

desafio para alguém que decida escrever fatos de sua trajetória de vida.

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Na atualidade, abarcando uma grande constelação de escritas que retratam a

vida estão: cartas, diários, testemunhos, ensaios autobiográficos, autobiografias,

memórias, autoficções, cuja intenção é reconstruir a vida através da escrita, mas

cada qual conservando peculiaridades distintas.

A relação entre linguagem, memória e história é amplamente aproveitada pela

Literatura, pois na fusão desses elementos engendram as práticas discursivas que

falam de si.

As transcrições das formas discursivas, ao serem escritas em primeira pessoa

(já que a maioria dos textos memoriais utiliza a primeira pessoa), também passam

por essa mesma sequência e combinadas entre si, no instante da criação se

deparam com a liberdade imaginativa.

A narração de memórias aberta à “intuição do sensível” (RICOEUR, 2007, p.

133) situa-se entre o tempo da escrita que é o presente e o tempo narrado entendido

como passado e estará sempre sujeita à dúvida do acontecimento, propensa aos

equívocos, bem como a problemática do esquecimento.

No processo de criação de seus contos em Memória e invenção, Lygia

Fagundes Telles (2000) faz a evocação de cenas da infância, num misto de

realidade e ficção: “Chão de infância. Algumas lembranças me parecem fixadas

nesse chão movediço...” (p. 9). Com essa incerteza a escritora brasileira abre seu

conto Que se chama solidão com o intuito de mostrar a interface entre memória e

infância e a construção da narrativa com alguma garantia de realidade, mas ao

mesmo tempo, construídas muito mais pelas malhas da invenção. Na página que

precede o mesmo livro há uma citação de Paulo Emilio Salles Gomes: “Invento, mas

invento com a secreta esperança de estar inventando certo” (TELLES, 2000, p. 7).

Demonstra o fragmento de texto a fragilidade daquele que escreve diante da

realidade ser de fato recriada.

Costa Lima diferencia o autor de Memórias (gênero) do autor de ficção e

defende o ponto de vista de que o autor memorialista está ciente de sua intenção de

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apresentar um testemunho de boa fé, que tenha compromisso com a verdade: “Em

relação ao ficcionista, o memorialista se encontra mais limitado, pois ele não pode

inventar o que se tenha passado” (COSTA LIMA, 1986, p. 302). A articulação do

discurso, mesmo neste tipo de produção que parte do referencial da realidade,

passará pela “mímesis, que é a natureza da Literatura” (COSTA LIMA, 2003, p. 168).

Nada do que se pretende narrar será totalmente fiel à representação da realidade.

Para Emil Staiger (1972) os gêneros não conservam mais a pureza. A

garantia da autenticidade fica apenas na intenção do autor em comprometer-se com

a verdade dos fatos. Não há rigidez que delimite a fuga do autor autobiográfico para

a ficção, mesmo que o objetivo principal do narrador seja de mostrar a sua leitura do

mundo e o comprometimento com o contexto histórico.

Na contemporaneidade não há mais lugar para o gênero puro [há quem diga

que não há distinção por si mesmos entre eles], como sugere L. Arfuch no prefácio

de seu livro O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea, pois “a

hibridização geral das categorias e distinções que dominaram o que se chamou

modernidade e que acompanharam a transição a uma era pós-moderna” (ARFUCH,

2010, p.10) levou a exploração do espaço múltiplo da narrativa autobiográfica. A

autora teoriza sobre a contemporaneidade do sujeito e as formas discursivas

híbridas que adquirem somente a categoria de valor biográfico (p.11) na amplitude

do espaço biográfico (p. 16).

O autor ao escrever aquilo que vivenciou percebe o mundo pela experiência

da sensibilidade e retorna esta experiência em uma obra não distante da concepção

da realidade, mas em parte alterada pela impossibilidade da fidedignidade da

memória e pelo uso da imaginação presente no processo de criação.

Emilia,3 ao reconstruir suas memórias enredou-se nos fios de suas invenções

tal como os personagens de Narradores de Javé,4 que queriam expor as versões

3 Emilia, a boneca personagem de Monteiro Lobato que decide narrar suas memórias e elege o visconde de Sabugosa para ser o seu relator.

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épicas na formação de suas próprias identidades. Tratam-se de exemplificações a

título de reforçar a incapacidade da memória em relação à fidegnidade dos fatos

ocorridos. Embora não sejam personalidades concretas, esses personagens fictícios

demonstram o quanto de imprecisão há na transposição da memória para a

textualidade.

As escritas que evidenciam o eu são em sua maior parte narradas em

primeira pessoa com o intuito de reforçar a ideia autoral:

O sujeito que lembra, nas memórias escritas, é um controlador da autoria, da estruturação dos fatos, mas é muito mais um manipulador da função estética, dramática e lírica de todas as suas lembranças, em torno do desdobramento do sujeito que viveu, agora, seu personagem. O autor-escritor-narrador passa a ser muito mais o sujeito do verbo das lembranças: eu me lembro, recordo bem, ou passa a ser objeto direto ou indireto de pessoas, coisas e fatos lembrados, pronome possessivo ou oblíquo (RAMOS, 2004, p. 2).

O sujeito que narra suas vivências é aquele que ”verbaliza cenas e fatos”

(RAMOS, 2004, p. 3) passados, potencializa as experiências do vivido através do

imaginário criando as novas possibilidades:

O fato de ser a primeira pessoa a estruturar a narrativa, através de verbos rememorativos, garante o presente narrativo, estruturador e selecionador das lembranças, no que se pode chamar de tutela histórica. As memórias sempre trabalham esteticamente com as lembranças de um sujeito que é exclusivo (RAMOS, 2004, p. 3).

4 Narradores de Javé é um filme brasileiro de 2003, dirigido por Elaine Caffé que ilustra o drama dos moradores de Javé que recorrem ao personagem Biá, único que domina a escrita para registrar a historia do povoado. Aponta este filme para o desafio entre oralidade, escrita e memória.

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2.2.1 Desejo de memória e abordagem de si

Perpetuar a memória é algo que acompanha o homem desde a antiguidade.

O querer deixar legado, ensinamentos, a inscrição de seu nome para a história

prevalece na era pós-moderna. O desejo de memória referenciado por Pierre Nora

(NORA, 2006, p. 9) fica também evidenciado na produção textual contemporânea a

respeito de si mesmo.

A produção de textos que falam de si é crescente e desejam o registro do eu:

Embora se possa considerar que toda escrita de si deseja reter o tempo, construindo-se um “lugar de memória” cabe observar que certas circunstâncias e momentos da história de vida de uma pessoa ou de um grupo estimulam essa prática. É o caso dos textos – sejam eles diários, memórias ou cartas – que se voltam para o registro de uma vida, como viagem, estada de estudo e trabalho, experiências de confrontos militares, prisão, enfim em períodos percebidos como excepcionais (GOMES, 2007, p. 22).

Nesta seção, considera-se apenas como escrita de si duas modalidades que

abordam o eu: autobiografia, que se pode configurá-la como ponto de partida, e

autoficção, como processo evolutivo da escrita de si. A intenção de ambas é contar

a vida, mas cada qual conservando suas particularidades.

Confissões de Jean-Jacques Rosseau que foi publicada em 1782, após a

morte do autor, principiou o gênero da escrita comprometida com a realidade entre a

história de vida, cujo autor e narrador sejam a mesma pessoa, e os fatos narrados

sejam verossímeis e de acordo com o comentário de José Oscar de Almeida

Marques:

A vida e obra do autor se entrelaçam a ponto de servir de guia para a literatura íntima da modernidade, pois se trata de uma reconstrução imaginativa de uma vida particular, [...] que ele como filósofo buscou

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mostrar ao leitor o que há de mais profundo e universal na natureza humana (MARQUES, 2002, p.12).

A partir de estudos de textos autobiográficos de autores consagrados

(Rosseau, Jean Paul Satre, André Gide), Phillipe Lejeune chegou ao conceito inicial

de pacto autobiográfico (1975) como a afirmação da identidade do autor no texto e a

aceitação do leitor na integridade do que irá ser lido como a vida do proponente do

pacto. A partir de então seguiu na ampliação do corpus de sua investigação (passou

a estudar relatos de pessoas comuns) buscando a “democratização” (LEJEUNE,

2008, p. 8) de suas pesquisas, para chegar ao entendimento de que muitas águas

rolaram e as reformulações de seu livro comportam as mudanças ocorridas desde

Rosseau até os processos tecnológicos da atualidade e o autor na Internet. Serão

ainda considerados na continuidade desse capítulo, os resultados desse processo

que acarretaram na revitalização da escrita de si, chegando a novos tons e novos

discursos.

2.2.2 Autobiografia

Phillipe Lejeune legitimou a autobiografia, elevando-a a categoria de

gênero. Estudou profundamente as nomenclaturas que se avizinhavam a

autobiografia e conseguiu estabelecer diferenças definidoras nas relações entre

biografia, autobiografia e romance e autobiografia. Em 1975, ele escreveu o texto

teórico Le pacte autobiographique que deu prosseguimento aos estudos do estilo

autobiográfico. O especialista do termo homem-narrativa define a autobiografia

como uma relação pactual entre leitor e autor. Na apresentação inicial de sua página

virtual Autopacte reafirma esse compromisso.

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É o compromisso que toma um autor de contar diretamente a sua vida (ou uma parte, ou um aspecto da sua vida) num espírito de verdade. O pacto autobiográfico opõe-se ao pacto de ficção. O autobiógrafo promete que vai dizer o que é verdadeiro, ou, pelo menos, crê que é verdadeiro. Comporta-se como um historiador ou um jornalista, com a diferença que o assunto sobre o qual promete dar uma informação verdadeira, é sobre ele mesmo (AUTOPACTE, 2008).

Ao tentar definir autobiografia em meio ao corpus de seu estudo que eram

inicialmente as narrativas de vida de personalidades francesas, Ph. Lejeune assim a

definiu: “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria

existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua

personalidade” (2008, p. 14).

A identidade narrador-personagem principal presente na autobiografia é em

sua maior parte marcada pelo emprego da primeira pessoa no discurso, mas nada

impede que haja registro pessoal em terceira pessoa. Sendo assim a autobiografia

clássica é autodiegética:

A autobiografia (narrativa que conta a vida do autor) pressupõe que haja identidade de nome entre o autor (cujo nome está estampado na capa), o narrador e a pessoa de quem se fala. Esse é um critério muito simples, que define, além da autobiografia, todos os outros gêneros da literatura íntima (diário, autorretrato, autoensaio) (LEJEUNE, 2008, p. 24).

Pode-se então entender a autobiografia sob quatro ângulos distintos e

definidores:

1. Forma de linguagem: a) narrativa; b) em prosa

2. Assunto a ser tratado: a vida individual, a história de uma personalidade.

3. Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remeta a uma pessoa real) e do

narrador sendo a mesma.

4. Posição do narrador: a) identidade do narrador e do personagem; b) perspectiva

retrospectiva da narrativa.

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O compromisso maior da autobiografia com a declaração da verdade foi

sempre o principal ponto para Ph. Lejeune. Em oposição à ficção, a autobiografia se

afirma como o discurso de uma realidade externa que se sujeita a uma “prova de

verificação”, portanto o pacto referencial predispõe-se a um propósito: “Seu objetivo

não é a verossimilhança, mas a imagem do real” (LEJEUNE, 2008, p. 36).

Para as escritas segundo Ph. Lejeune que tenham um cunho autobiográfico

utilizarão justamente o adjetivo autobiográfico para diferenciá-las da autobiografia,

devido a um elemento ou outro que lhes falta para serem reconhecidas como

autobiografia. Como exemplo pode-se citar o diário que faltaria a categoria 4 no item

b. O que não dispensaria o uso de nomeá-lo de diário autobiográfico. Assim como

poderemos encontrar poemas autobiográficos, sem contudo serem autobiografias

por lhes faltar a categoria 1 da forma de linguagem no item b.

Dentre essas categorias duas seriam imprescindíveis a um texto ser

reconhecido como autobiografia: a identidade do autor-narrador serem a mesma

pessoa (categoria 3) e a posição do narrador quanto à identidade como personagem

principal (categoria 4).

Mesmo depois de reconsiderar vários pontos soltos na conceituação de

autobiografia, Ph. Lejeune permaneceu com o conceito principal e legitimador da

autobiografia que é o pacto autobiográfico, que numa releitura abre novas

discussões a partir dos estudos de Leonor Arfuch (2010).

A especificidade da autobiografia que era a aproximação entre autor e

narrador já não dava conta da inteireza no plano de construção do sujeito:

O autor desloca-se, como o personagem, para o plano da construção: passa a ser uma imagem do autor, construída e gravada nas linhas do livro. Desse modo, é possível dizer, como Vargas Llosa, que o narrador de uma história é sempre uma invenção, mesmo que essa história seja aquela do "microtempo fundamental" que o autor protagoniza (ALBERTI, 1991, p. 68).

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Pode-se afirmar que a falha da autobiografia levou a recorrência às múltiplas

formas de escritas de si que abriram espaço à ambiguidade:

Se é no limitado espaço da semelhança que se move o "eu" autobiográfico e se, nessa movência, ele produz uma imagem mítica de si mesmo, fixando-se como "eu para si" e "eu para os outros", de outro lado, contudo, essa construção da identidade não se faz sem ambigüidades. E se não se pode dizer que o escritor de autobiografia é "possuído" por, ou se "metamorfoseia" no imaginário, de alguma forma é possível reconhecer, em seu afã de expressar e resgatar a experiência de vida, uma tentativa de suplantar as descontinuidades que o separam do sujeito do enunciado (ALBERTI, 1991, p. 67).

Em estudo doutoral, analisando os aspectos autobiográficos presentes nas

obras de Caio Fernando de Abreu, Nelson L. Barbosa (2008) chega à seguinte

conclusão quanto às intenções do (auto)biográfico:

São mesmos insondáveis os desígnios de um autor, como de resto do próprio homem, sua forma de ver e conceber a vida, as dores e as alegrias, especialmente a morte, como também são ilimitados os recursos para expressá-los, e a literatura há muito, nos tem dado provas incontestes disso (BARBOSA, 2008, p. 382).

2.2.3 Autoficção

O surgimento da preocupação com o estudo da espécie autoficção se deu a

partir de 1977, após S. Doubrovsky escrever um romance sobre si mesmo, Fils.

Estava estabelecida a diferenciação entre a autoficção e a autobiografia no desafio

do uso da vida real e da ficção para escrever o seu romance.

Autobiografia? Não, isto é um privilégio reservado aos importantes deste mundo, no crepúsculo de suas vidas e em belo estilo. Ficção, de acontecimentos e fatos estritamente reais, e se quiser, autoficção, por ter

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confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo, encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda autoficção, paciente onanista que espera agora compartilhar seu prazer (DOUBROVSKY apud FIGUEIREDO, 2007, p. 21).

Em recentes estudos K. Duarte apresenta a evolução do termo a partir de S.

Doubrovsky. O conceito inicial foi sendo alterado até chegar à “desconstrução e à

hibridação”, na qual, “a autoficção apresenta novas estratégias que serão

experimentais à reorganização dos fragmentos da memória do sujeito

contemporâneo” (DUARTE, 2010, p.43):

Com o passar dos anos, teóricos e críticos da literatura e da mídia culta francesa tentaram explicar e entender a projeção e mobilidade desse termo através de sinônimos e expressões que pudessem abarcá-lo ou, quem sabe, superá-lo. São alguns deles: não-ficção; mot-valise; aventura teórica; autobiografia mentirosa; gênero litigioso; novo naturalismo da intimidade; ego-literatura; romance do eu; romance autobiográfico; narrativa indecisiva; romance falso; mau gênero; fabulação de si; ficção de si biográfico; idioleto; inseto proteiforme; laboratório da escrita do eu; gênero híbrido indefinido; estenografia do real; avatar do romance autobiográfico ou avatar pós-moderno da autobiografia; estética moral da errância; postura enunciativa; AGM (Autobiografia Geneticamente Modificada); desvio fictício da autobiografia; autobiografia descontrolada; plano-marketing; mitomania literária; etc (DUARTE, 2010, p. 28).

Para Vincent Collona (apud FIGUEIREDO, p. 22) a autoficção é a mitomania

literária ou ficcionalização de si mesmo. Para ele, na ficcionalização de si o autor

inventa uma personalidade ou uma existência literária. Considerando que o narrador

ao falar de si, vai lembrando sequências fragmentadas da memória, pode-se dizer

que aqueles fatos em que houve lacunas nas lembranças são preenchidos por uma

ficção. O teórico literário e romancista argelino ainda afirma que o autor que se

utiliza de recursos criativos autoficcionais estaria desse modo reinventando suas

experiências vivenciais: “o escritor fabula a sua existência a partir de fatos reais,

permanece o mais perto do verossímil dando a seu texto pelo menos uma verdade

subjetiva” (COLLONA apud FIGUEIREDO, 2007, p. 27).

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Para realizar o processo de ficcionalização de si, o autor transmuta-se em

seus textos e como narrador pode usar “o apelido familiar como assinatura - e

mesmo personalidade, batismo como artista -como pseudônimo (uma forma de

disfarce, na origem) a fazer-se personagem, sob as mais variadas existências e

vivências ficcionais” (PIMENTEL, 2006, p. 24). A autoficção se vale da capacidade de revitalização, interpretação e

preenchimento das lacunas de memória postas em esquecimento. O autor de

autoficção tem a possibilidade de recriar a história e se diferencia da autobiografia

justamente neste detalhe quando se descompromete com acontecimentos

estritamente verdadeiros. A autoficção rompe o compromisso com a verdade e

assume o preenchimento das lacunas da memória com o aspecto inventivo.

A recorrência à ficção para preencher as lacunas da memória mistura

memória individual e memória coletiva e por vezes se aproxima da narrativa histórica

ao fornecer dados precisos sobre a História. A esse recurso chama-se de movência

narrativa, muito presente na autoficção. É o reforço da caracterização de um fato ser

verdadeiro como assinala E. Figueiredo (2007, p.56) ao referenciar em seus artigos

os autores migrantes que usam essa estratégia da autoficção como Dany Laferrière

e Régine Robin que são exemplos bem conhecidos dessa modalidade. Eles

exemplificam o contato com uma nova cultura passando pela experiência da

desterritorialização, acionando as lembranças de um lugar distante que possa

reconstituir a identidade perdida ou deixada. É uma característica da transculturação

e da heterogeneidade do evocação de lembranças de marco histórico ou resgate da

identidade homem pós-moderno.

Um ponto a ser ressalvado nos estudos de K. Duarte é que os principais

autores de autoficção são de origem judaica e de alguma forma suas vidas são em

contrapartida reflexos de vivências de situações dramáticas como a II Guerra

Mundial ou a Shoah.

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A proximidade entre a temática da II Guerra e a escrita autoficcional torna evidente uma outra relação que pode ser aqui estabelecida: não é por acaso que três dos autores referidos neste estudo, Jerzy Kosinski, Serge Doubrovsky e Régine Robin são judeus, migrantes na América e cujas produções autoficcionais reúnem pedaços da memória e de identidades pulverizadas e fragmentadas (DUARTE, 2010, p. 33).

O reforço da ideia de herança estrangeira nos escritos de Tatiana Salem

Levy, escritora que usa a autoficção, denota a busca da identidade, num processo

de reconstrução de si (migração/movimento):

É o jogo da ficção que torna possível a apropriação do fantasma em benefício da escrita. Quando meus antepassados se tornam personagens, eles se tornam personagens da minha escrita e, portanto, sou eu quem decide que caminho dar a eles. Nesse sentido, o fantasma é a minha própria arma, eu me utilizo dele para enfrentá-lo. (LEVY, 2007, p. 7)

R. Robin, expoente da nova modalidade explica que a memória cultural

representa o passado a partir de relatos familiares, genealogias, traços de leitura e

informações históricas. Para ela as lembranças estão em torno das imagens que

alguém presenciou na sequência temporal de vida, por qualquer traço marcante

vivido. Segundo a autora, pela valorização do eu, do nós e dos outros se dá a

possibilidade narrativa da trajetória de vida em fragmentos.

Representar todos os outros que estão em mim, me transformar em outro

dar livre curso a todo processo de viver outro, viver seu próprio ser de ficção, o mais exatamente, esforçar-se para experimentar no texto a ficção da identidade, tantas tentações fortes, quase a nosso alcance e que saem atualmente do domínio da ficção (ROBIN, apud FIGUEIREDO, 2007 p. 23).

Ressignificando as palavras de R. Robin, a pesquisadora K. Duarte

acrescenta que os escritores contemporâneos estão impulsionados a enredar

romance e autobiografia, a tal ponto de tornarem híbridas as fronteiras entre um e

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outro, motivando o surgimento de um “eu que se divide em vários personagens

fictícios” (DUARTE, 2010, p. 35).

Silviano Santiago baseia-se nos alicerces autobiográficos para compor a sua

autoficção, mas distingue bem a diferença entre as duas possibilidades de relatos de

si mesmo e opta pela contaminação, que seria o misto de realidade e ficção, de

verdadeiro e falso. Santiago apresenta o texto híbrido da autoficção como uma

escrita renovada, comparada ou cruzada com outra gerando um novo texto.

No meu caso, cheguei à autoficção através de um longo processo de diferenciação, preferência e contaminação. Falo primeiro da diferenciação e da preferência. Parti da distinção entre discurso autobiográfico e discurso confessional. Os dados autobiográficos percorrem todos meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando por terra a expressão meramente confessional. Os dados autobiográficos servem de alicerce na hora de idealizar e compor meus escritos e, eventualmente, podem servir ao leitor para explicá-los (SANTIAGO, 2009, p. 3).

Pode-se diferenciar a autoficção da autobiografia por não estar presa à

retrospectiva de uma narrativa. O passado e o presente se mesclam. Não se trata de

uma recapitulação histórica conforme explica E. Figueiredo o pensamento de S.

Doubrovsky:

Em entrevista a Philippe Vilain, Doubrovsky explica que diferentemente da autobiografia ou do romance autobiográfico que se referem ao passado de quem escreve, “a autoficção é a escrita do presente. Além disso, ele engaja diretamente o leitor, como se o leitor quisesse compartilhar com ele suas obsessões históricas” (DOUBROVSKI apud FIGUEIREDO, 2007, p.55).

A autoficção segundo o criador de Fils “deve considerar o conceito de

verdade literal, discurso histórico com coerência e fragmentos de memória”

(DOUBROVSKY apud FIGUEIREDO, 2007, p. 56) e que na atualidade está sendo

largamente usada chegando a ser seu uso banalizado. Tais afirmações se prendem

devido a um exagero de ocorrências de escritas intimas com pouco ou nada de valor

literário.

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A proliferação de narrativas vivenciais como atrativo mercadológico crescente

de memórias, biografias, autobiografias, ou programas de talk shows e reality shows

é um dos enfoques sobre o qual D. Kingler se ocupa em sua tese de doutorado. Tais

práticas, segundo a autora levam a uma espetacularização do sujeito, uma

característica da sociedade pós-moderna como afirma:

o avanço da cultura midiática do fim do século oferece um cenário privilegiado para a afirmação desta tendência. Nela se produz uma crescente visibilidade do privado, uma espetacularização da intimidade e a exploração da lógica da celebridade que se manifesta numa ênfase tal do autobiográfico, que é possível afirmar que a televisão, se tornou um substituto secular do confessionário eclesiástico e uma versão exibicionista do confessionário psicanalítico (KINGLER, 2007, p. 22).

É preciso levar em conta, de acordo com D. Kingler, a aproximação da escrita

de si a essas outras formas discursivas não-literárias, inscrevendo a literatura íntima

contemporânea “no espaço interdiscursivo” (p. 23).

A visibilidade do privado, aberto ao público como afirma L. Arfuch é uma

tendência da sociedade pós-moderna e a Literatura como discurso está cada vez

mais aberta ao “espaço biográfico” (2010, p. 16).

Phillipe Villain5 que veio ao Brasil em 2007, Rio de Janeiro, no ciclo de

palestras da Associação de Cooperação e de Ação Cultural, declarou que “narcisos

somos todos nós” (RIOSCOPE, 2007) para explicar que por trás do narcisismo

poderá resultar uma literatura de qualidade que vai além da expressão do eu,

deixando de lado o olhar negativo que procura ver na escrita intima uma razão ao

voyerismo, fetichismo, ou outras formas que acarretassem a perda de valor literário.

O que se pode constatar nas criações autoficcionais recentes é uma

hibridação a partir da perspectiva subjetiva. A literatura se encaminha para uma 5 Phillipe Villain é autor francês do ensaio Défense de Narcise. É Doutor em Letras Modernas pela Universidade Sorbonne/Nouvelle

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construção de identidade em que o autor se constrói ou desconstrói, uma

característica do sujeito pós-moderno.

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3 INFÂNCIA E REMEMORAÇÃO

A infância serviu de impulsão criativa para os textos que reconstroem as

experiências vividas dos autores da Casa do Poeta de Canoas. Sejam os escritos

construídos em prosa ou em versos, eles permitem ao leitor saber uma parcela da

vida daquele que escreve. Mesmo que de uma forma descontínua, a infância se

revelou nas interrelações travadas. Os autores com base no conhecimento de si

puderam se valer da literatura e da memória para recompor parte de vivências e

desta maneira se fazerem conhecidos aos outros, pois como afirma Humberto

Maturana: “Viver é um processo cognitivo” (MATURANA apud OLMI, 2006, p. 137).

Para a análise dos textos foi necessário apropriar-se do conceito de que

memória é tudo aquilo que se guarda durante a vida, de forma permanente ou

temporária, fatos selecionados a partir dos interesses e graus de importância que se

atribuí à vida (RICOEUR, 2005, p. 5). A memória do ponto de vista individual é

seletiva, por isso só é guardado o que é importante para cada um, e que ressurge à

medida que se recolhem os fragmentos do que é passado a fim de remodelá-los no

presente vivido.

E quanto aos escritores da Casa do Poeta de Canoas? Quais foram as

passagens significativas de suas vidas que mereceram destaque na escrita?

Os dez escritos coletados foram divididos nesta pesquisa em dois blocos

prosa e poema: quatro crônicas, um conto, e cinco poemas. Nas obras, os autores

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fizeram uso das lembranças pessoais, ficcionalizando-as. As crianças que surgiram

se assemelham a anjos, aventureiros e aprendizes e os adultos que rememoram são

experientes, fortalecidos e saudosos.

A partir da produção textual apresentada pelos autores estudados, que tinham

como referencial a infância, foi feito um estudo comparativo com o uso de excertos

da obra Coração andarilho de N. Pinõn para elencar alguns quesitos importantes

que se assemelhassem aos utilizados pelos autores na (re)construção de si.

Fizeram parte dos tópicos abordados pela autora N. Piñon na composição das

lembranças da infância os seguintes itens:

a) a fragmentação na reconstrução do vivido;

b) memória e invenção na reconstrução do texto;

c) a lembrança do círculo familiar e de pessoas próximas;

d) os objetos que evocam a memória;

e) os lugares que ficaram no registro da memória (escola, ruas, bairros, locais,

trajetos, paisagens da natureza, dos animais);

f) os efeitos sensoriais e sinestésicos que liberam lembranças através de cheiros,

sabores, toques, cores, sons.

3.1 Prosa e construção do sujeito

Toda literatura centrada no sujeito pretende um ato de confissão ao falar de

um eu, “de uma pessoa viva que ali se encontra e que diante do leitor desnuda sua

vida, estabelecendo-se, então uma perfeita união entre autor e leitor” (REMÉDIOS,

1997, p.7). Ao ser o sujeito de seu próprio discurso, o autor de uma história pode

“explicar seu passado e seu presente, aventurando-se sobre seu futuro, pode

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justificar, responsabilizar, ser verdadeiro ou mentir” (VILLANUEVA apud

REMÉDIOS, 1997, p. 8).

Nos textos em prosa analisados, a escrita imita o sistema referencial real e a

emergência da subjetividade mostra o eu não só ao nível do discurso, mas também

a recriação narrativa em que “a memória e imaginação combinam-se” (REMÉDIOS,

1997, p. 15).

Misturar ficção e realidade é o que aponta N. Piñon para ordenar ideias e

construir a sua história: “Misturo a colheita da memória com a invenção, porque é

tudo que sei fazer” (p. 13). Selecionar as memórias dentro do horizonte pessoal é

estar ciente da imprecisão dos dados, da margem de erros pelo do uso da

impressão subjetiva ao relembrar cenas do cotidiano.

O eu que cada autor revela ao construir uma parcela fracionada da vida é o

“testemunho impreciso” (PIÑON, 2009, p.13) do qual menciona a escritora brasileira.

Quando o assunto são lembranças remodeladas no presente os autores

selecionam suas memórias de acordo com as lembranças que surgem de forma

espontânea ou aquelas em que há a laboriosa evocação (BERGSON, 1990, p. 61),

referenciados neste trabalho como memória involuntária e memória voluntária.

3.1.1 Reencontro com o lugar de infância de Adilar Signori6

Examinar as origens como forma de interpretar o mundo é a forma

encontrada de Adilar Signori rememorar as cenas permeadas de impressões

culturais da meninice em Meu pé de jasmim. Voltar ao lugar de origem representado 6 Adilar Signori nasceu em Roca Sales em 10 de janeiro de 1947 e reside em Canoas desde 1963. Aposentado como contador e procurador. Escreve contos e crônicas desde 2008. Participa de coletâneas e concursos nos quais tem recebido destaque como escritor, embora o mesmo se considere apenas um “contador de histórias”. Neste curto período de criação já produziu 110 textos e obteve 20 premiações.

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pelo casarão tecido em lembranças, torna o lugar do passado um momento para a

reflexão de si, o eu repensa e decide:

Confesso que não tive a coragem de entrar. Tive receio de não mais encontrar meu querido pé de jasmim. Poderia ficar frustrado se não o encontrasse e daí imaginar que todos aqueles bons momentos desapareceram. Tomei uma decisão firme: não me confrontar com a possibilidade dessa realidade. Porque a gente sempre tem apego pelo lugar em que foi feliz (SIGNORI, 2009, p.42).

As andanças como cita A. Signori representam as mudanças, a circulação do

menino de Roca Sales a outros lugares, mas preso às origens do tempo feliz, das

brincadeiras criativas das crianças como ele.

Era menino empunhando o arco, atirando com o bodoque e jogando bolinha de gude. Tempos em que alguns brinquedos eram feitos pela própria gurizada. E como era salutar tudo aquilo! Ficávamos contentes e tinha valor para nós de poder utilizar a criatividade para inventar os mesmos (SIGNORI, 2009, p.42).

Resgatar os tempos de menino na narrativa de A. Signori é o retorno às

primeiras vivências. Isto decorre porque no presente, motivado pelas cenas que

reencontra, há o suscitar de lembranças do tempo remoto. Além disso, é próprio do

ser humano o querer salvar da morte a sua existência. G. Bachelard compara a vida

às estações do ano, sendo o outono o “recrudescimento do devaneio” apontando

para o ”declive das lembranças” (BACHELARD, 2006, p.96). Nessa fase de vida

madura é maior o desejo de retornar a infância na intenção de recuperar a vitalidade

(própria das crianças). Muitas passagens do texto representam a intensidade de vida

do menino que brinca, que corre.

A escrita de si de A. Signori vai costurando pontos soltos da felicidade nos

jogos infantis: ovo podre, caçador, esconde-esconde. Ou nos brinquedos: carrinho

de lomba, arco, bodoque, bolinha de gude.

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O destaque dado ao pé de jasmim no texto é fundamental, foi ele o elemento

que destravou o leque de lembranças: a escola, a praça, as brincadeiras, as

pescarias de verão, os banhos no rio Taquari.

A imagem do jasmim é concordante com a lembrança involuntária

(BERGSON p.61) que pôde surgir espontaneamente suscitada por algum

sentimento e foi “capaz de revelar-se por clarões repentinos” (BERGSON, p.68).

O cheiro foi o elemento sensorial que principiou o instante criador de A.

Signori. Ah! E que sensação indescritível daquele cheiro no ar. Eu apreciava mais profundamente com os olhos fechados. Aquele cheiro agradável, característico das suas flores, me faz recordar da minha vida de guri. Para as pessoas em geral, existem situações e coisas diversas (músicas, animais, flores) cujo cheiro ou imagem ficam impregnados na mente e ativá-los faz com que voltem ao passado distante (SIGNORI, 2009, p. 42).

Para recompor o cenário do passado é necessário recorrer aos diferentes

recursos para o chamamento das lembranças, principalmente os sensoriais e

sinestésicos, assim como M. Proust (1992) frente às situações que remetem a

sentimentos e sensações que possam recuperar o tempo perdido. Nesse sentido a

exploração do recurso do cheiro do jasmim é bem aproveitado pelo autor

rocasalense.

O tempo de menino, o lugar que marcou a infância, são resquícios de dias

felizes pois o autor afirma “a gente sempre tem apego ao lugar em que foi feliz”

(SIGNORI, 2009, p. 43).

O casarão descrito é centenário. Nesses muitos anos decorridos até o

reencontro do adulto com o lugar do passado havia a possibilidade de não mais

existir o pé de jasmim dos tempos de menino. A tensão reflexiva presente no texto é

a mesma que o autor tem em frente ao casarão na dúvida se existiria ou não o

objeto de felicidade. A simples ideia de não encontrá-lo implicaria na permanência

da imagem que “não me saiu da memória” (SIGNORI, 2009, p. 43). Por isso ele

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decide não procurar o pé de jasmim, pois não reencontrá-lo seria como desfazer o

ideal de felicidade ligado à infância e perenemente à vida.

3.1.2 Marcas identitárias de Ancila Dani Martins7

Ancila Dani Martins faz um elo entre a sua vida e a dos antepassados pelo

traço da tradição italiana, marca identitária que funciona como um destaque. A

escritora de Flores da Cunha ao rememorar a criança que foi busca nos contornos

da subjetividade provar a sua existência no coletivo:

Quando vovó nos avistou de sua varanda do sobrado de madeira, disse: “Oh, bambine del mio cuore veni su quá belle!” Deixou pra trás a cadeira balançando, levantou-se para nos abraçar e beijar. Preocupada com nossa caminhada de dois quilômetros, foi se dirigindo para a cozinha e nós duas a seguíamos, como que a ampará-la, na sensação de que éramos anjos protetores (MARTINS, 2011, p. 27).

A autora sintetiza a característica do sujeito pós-moderno que se vale do

espaço autobiográfico para “traçar o limiar entre o público e o privado e

consequentemente, a nascente articulação entre o individual e o coletivo” (ARFUCH,

2010, p. 83) no uso do elemento etnológico. A exteriorização do intimo é lançado

como referencial histórico e cultural: a colonização italiana no Rio Grande do Sul.

Por esse elemento periférico o leitor é convidado a repensar datas e aproximações

de tempo cronológico entre os anos 1950 e 1960 como o tempo de infância da

autora.

7 Ancila Dani Martins é natural de Flores da Cunha e reside em Canoas desde os anos 60. Formada em História pela Unisinos e pós-graduada em Métodos e Técnicas de Ensino de História do Rio Grande do Sul pelo CELES. Escreve contos, crônicas e poemas. Obteve o 1° lugar na categoria poesia dos 50 anos do Clube CSSGAPPA.

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Percebe-se na narrativa a consideração à “tríplice atribuição da memória: a si,

aos próximos e aos outros” (RICOEUR, 2007, p.142). Aparecem na narrativa os

familiares, ou seja, “os próximos” (RICOEUR, 2007, p. 42) que figuram como as

primeiras relações de grupo social dos tempos de menina: a irmã Marilene, o pai, a

mãe, o vovô Dani, a vovó.

Há uma necessidade de associar à história datas e fatos políticos para dar a

devida veracidade na narrativa.

Vovô adorava política, foi vereador, líder sindical no período de Getulio Vargas e também já tinha sido conselheiro da Cooperativa Santo Antônio de Vinhos de Flores da Cunha. Ouvíamos muitas histórias de seus calorosos debates políticos entre UDN, PSB, e o PTB de João Goulart, seu candidato (MARTINS, 2011, p. 27).

O uso de referências dos velhos partidos como a União Democrática Nacional

(1945/1965), o Partido Socialista Brasileiro (1947) e o Partido Trabalhista Brasileiro

nos tempos de João Goulart (1946) para exemplificar as vivências do vovô Daniel

em oposição ao populismo de Getulio Vargas, permitem a aproximação de um

marco histórico. A impressão dessas memórias (na criança) fica como a acentuação

daquilo que a autora selecionou como importante. A ideia de que as lembranças se

fortificam graças às “narrativas coletivas” (HALBWACHS, 2006, p.117) se consolida

nesta parte socialmente compartilhada.

O conto percorre um caminho de enigma: Quem será a estrela ? A autora

elabora a expectativa de chegada a um lugar onde encontrará a estrela. A série de

acontecimentos ocorre no seguinte escopo:

1° a intenção de ver a estrela

2° o percurso até a estrela

3° a chegada até a estrela (a decifração do enigma estrela: a vovó)

4 o movimento pela casa (com a estrela)

5° a satisfação do retorno (com a estrela para sempre na memória)

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E no trajeto percorrido pelas crianças até a casa dos avós não há receios nem

temores, apenas aventuras pela frente, alegria e despreocupação.

A temática do conto é a recordação de um quadro (social) da memória

(HALBWACHS, 2006, p. 117), com um referencial simbólico de bondade (mítico

infantil): a vovó, a estrela em movimento. As crianças também, elas são anjos de

bondade. Como são as “bambine del cuore” recebem por serem boas meninas as

guloseimas da vovó: pão corneto, mel, gemada, vinho doce e uma tarde repleta de

paparicações e muito aprendizado com a estrela. Há a passagem de valores da avó

para as meninas, ensinando a preparar a gemada, fazer pão e o cuidado com a

horta. A mesma é responsável por ensinar valores morais como referenciar os

antepassados, preservados nas fotos de familiares na parede, um culto ao não-

esquecimento. Também é ela que ensina a devoção cristã, puxando a reza à Virgem

da Saúde.

O vovô fuma e fica na marcenaria e ferraria, fazendo móveis e ferramentas

que são tarefas para homens, das quais as meninas não participam. Existe a

diferença de atividades femininas e masculinas. Vovó cozinhava, costurava,

caseava, o serviço compartilhado do casal era a horta. Vovô plantava e vovó

ajudava a cuidar a horta. A figura masculina é patriarcal e fortemente demarcada

pela hora sagrada da sesta do homem que descansa e não pode ser incomodado,

depois disto vai trabalhar no seu local devido sem a companhia das meninas que

seguem a vovó.

Ao diferenciar as atividades laboriais, A. Martins dá o molde social relativo às

diferenças de seu tempo em contrapartida ao tempo dos avós:

Nesse momento vovô Dani desceu, atravessou o quintal e foi para a sua oficina, onde também era a ferraria e a marcenaria. Ele adorava produzir ferramentas, moldadas na bigorna. Ele fazia armários, bancos, cadeiras e mesas. Intercalava tudo isso montando um caprichado cigarro de palha de milho (MARTINS, 2011, p. 27).

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A passagem do tempo no texto demonstra a mudança de valores: a avó das

crianças ainda costura, a mãe das meninas já não consegue mais costurar, tem

outros afazeres e filhos para cuidar.

A autora cultua a origem, os ensinamentos, as relações do circulo familiar

como um patrimônio afetivo a ser preservado e o registro através da escrita, a

salvaguarda do mesmo. As palavras amor, beijos, abraços, e ternura, facilitam a

compreensão dos laços de afetividade familiar forte e permanente.

A narrativa avança em ações e descrições. Descrições das sequências de

locais percorridos pelas crianças e a vovó: a casa, a sala, a janela, a horta, o poço, o

jardim. São os lugares que revigoram a infância. Os únicos discursos diretos são as

palavras da vovó. Subtende-se no texto, a ideia de transposição de limites: passar a

porteira, cruzar o vale, atravessar o pontal. Nas distâncias que foram percorridas

pelas crianças há a associação de crescimento através do aprendizado que culmina

no fechamento do conto em que a narradora afirma que ela e a irmão saíram da

casa dos avós mais ricas com a ternura e o esplendor daquele ambiente.

A constatação de que cresceu o ser humano com a experiência é uma análise

do adulto diante da experiência infantil.

3.1.3 Reflexão sobre a maturidade de Demétrio Leite8

Na crônica Gado de osso de Demétrio Leite nota-se a presença de um eu-

reflexivo, em que o autor está conhecendo-se a si mesmo, em um mundo que lhe

serviu como um lastro de aprendizagem. Repensa a sua condição de menino e

8 Demétrio Leite nasceu em 05 de janeiro de 1950 em Alegrete/RS. Reside em Canoas onde estudou e se formou em História pelo Unilasalle. É pesquisador de genealogia açoriana e portuguesa. Escreve crônicas históricas e ensaios sobre estudos culturais.

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homem que se tornou. Em sua escrita são traduzidas os sonhos de guri frustrados

pela severidade da vida mas a compensatória das mudanças, ao adquirir

experiências nos bancos escolares e o conseqüente amadurecimento do autor-

personagem-narrador.

Nos bancos escolares e investindo nas bruacas do conhecimento: os livros foram os recursos alavancados para construir um patrimônio futuro. Formação pessoal e profissional foram os bens adquiridos para tropear a vida e engordar conhecimentos nos campos da realização do cidadão alegretense, nascido em Jacaguá (LEITE, 2010).

Na escrita de D. Leite há relatos de fragmentos de vivências da infância cujo

exercício de memória involuntária foi bem aproveitado para construir os textos sobre

os temas cotidianos e à ligação da memória aos sentidos, às percepções e à

intuição do sensível.

Os costumes, as tradições do campo imprimem no menino o apego ao chão,

representado pela localidade chamada Jacaguá onde transcorreu a sua fase de guri

de campanha.

No imaginário rico de conhecimentos e detalhes ele vai crescendo e

desejando ser um rico estancieiro. O menino pobre encontra no lixo os seus

brinquedos criativos: taquara, galhos, tocos, latas e ossos de animais mortos.

Cada ossinho ou objeto representa um elemento ou um animal e variedade de objetos, o guri fazendeiro é proprietário de sua estância e seu gado, pois grande é o número de bois, touros e vacas, terneiros e cavalos, petiços, ovelhas, capões, carneiros, cordeiros, etc (LEITE, 2010).

No texto produzido pelo cronista percebe-se a gama de incursões ao coletivo.

Muitas das reminiscências são frutos da colheita da memória social: o autor foi

buscar a legitimidade das lembranças no Arquivo Histórico e Público do Estado Rio

Grande do Sul.

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Por isso, já adulto, indaguei, vasculhei baús antigos a procura de papéis, fotografias referente ao Rincão dos Costa Leite, bisbilhotei catálogos, códices, arquivos, caixas, maços, livros no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, em busca de retalhos e de história da sesmaria de Santo Inácio ou Isabel e da gente da localidade de Jacaguá (LEITE, 2010).

A ligação homem-terra é acentuada pelo desejo de se encaixar como o guri

de campanha e o cidadão alegretense. As marcas de identidade funcionam como “a

afirmação ontológica das diferenças identitárias” (ARFUCH, 2010, p. 84). Cada

sujeito pertence a um grupo que quer visibilidade:

Essa necessidade de exteriorização do íntimo – apenas uma das facetas da visibilidade democrática – essa formatação da experiência que os gêneros autobiográficos vinham justamente inaugurar, supunha já, no entanto, a salvaguarda da conduta, mecanismo regulador, pelo qual a sociedade tende a normalização de seus membros através de códigos de comportamento (ARFUCH, 2010, p. 86).

Para o autor a escrita funciona como exercício contra o esquecimento:

A lembrança do guri criado e nascido em Jacaguá não ficou só nos brinquedos embaixo dos arvoredos, mas a recordação do lugar em que nasci obrigou-me a “reculutar no peçuelo” da memória para rebuscar reminiscências nas bruacas do esquecimento, pra apresentar uma história verdadeiramente documentada (LEITE, 2010).

O menino não realiza o seu sonho de guri, e mesmo deserdado pelo destino

em termos financeiros, se considera um homem feliz e rico pelas experiências

adquiridas na formação pessoal e profissional: torna-se um historiador e o

conhecimento é o seu maior legado.

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3.1.4 Objeto de lembrança de José Heber de Aguiar9 Há objetos que funcionam como objeto-lembrança como afirma G. Bachelard

ao trabalhar o conceito lembrança-imagem: “Memória e imaginação não se deixam

dissociar. Ambas trabalham para seu aprofundamento mútuo. Ambas constituem, na

ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem” (BACHELARD, 1993,

p. 25).

Assim é a imagem do guarda-chuva que o cronista utiliza como uma chave

para a liberação de lembranças remotas, dos tempos de escola e o convívio com a

família.

Em minha memória de criança escondem-se vários guarda-chuvas. Nas brechas de meus pensamentos, vez por outra, me aparece uma belíssima cena acompanhada por um desses. Gosto muito de uma em que, em dias de chuva, eu e minha irmã íamos para casa debaixo de nosso teto ambulante, para nos proteger daquele mar que desabava (AGUIAR, 2009).

Os detalhes sinestésicos facilitam a lembrança do passado, a presença da

musicalidade nas canções que ele guarda da infância, principalmente as estrofes

melódicas e de versos atraentes da canção “era uma casa muito engraçada, não

tinha teto não tinha nada” (AGUIAR, 2009) transportam-no ao mundo ingênuo e

saudoso da infância. O narrador afirma que ele, quando criança, estava alheio ao

que a música de Vinicius de Morais poderia representar em termos de interpretação

de um tempo de repressão social e política. Na mente da criança apenas brotava a

imaginação, na imagem de um guarda-chuva e não de uma casa. Já na reflexão do

adulto que ressignifica a vida, a letra da canção assume outro significado: “essa

9 José Heber Aguiar nasceu em 26 de junho de 1984 em Itinga do Maranhão. Filho de José e Maria, laços fortes que conservam religiosidade na qual vive o estudioso das vocações diocesanas. É membro da Casa dos Poetas de Canoas, embora esteja atualmente morando em Estrela/RS, onde é animador vocassional e irmão lassalista em comunidades assistidas pela instituição em Santa Cruz do Sul/RS e Montenegro/RS.

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gente violentada era para mim, os moradores da casa, sem teto, sem parede, sem

chão, e sem endereço” (AGUIAR, 2009).

Na narrativa, considerando-se a “tríplice atribuição da memória”: a si, aos

próximos e aos outros (RICOEUR, p.142), há um memorial dedicado a pessoas: a

professora Sandra, a irmã mais velha, o pai e a mãe. São as pessoas que deixaram

impressões fortes e que povoam seus pensamentos nas horas em que a saudade

aperta, principalmente da irmã, e que preenchem os espaços vazios do texto a ser

criado. Na narrativa relembra o trajeto de volta da escola com sua irmã que era

muitas vezes marcado por travessuras, confidências, afetividade e chuvas intensas.

São as lembranças embaixo de um guarda-chuva que modelam a história do

menino, franzino, de origem humilde e que revelam o homem maduro e cheio de

saudade do passado distante.

3.1.5 Sensações e sabores da infância de Mari Rigo10

Em pauta estão as lembranças da autora fixadas nas experiências sensoriais

que a cada recorte em sua infância resgatam as cores, os sabores, as delícias de

um período de férias com os avós. O registro da memória afetiva (BACHELARD,

1993, p. 25) presente em sua história:

Gostávamos de subir nas goiabeiras, ficávamos ali conversando e planejávamos as outras brincadeiras comendo as frutas até à hora do almoço, pontualmente ao meio-dia. A vó Lili fazia uma galinha ao molho

10 Mari Regina Rigo nasceu em Porto Alegre no dia 05 de março de 1955. Formada em Letras pelo Unilasalle e pós-graduada em Leitura e produção textual. É membro do Conselho Municipal de Cultura de Canoas/RS. Escreve e incentiva seus alunos a escrita pois é professora de Língua Portuguesa na Escola Municipal Castelo Branco, no bairro Igara, onde é moradora e mantenedora da Biblioteca Monteiro Lobato.

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pardo como ninguém. Ah! E a sobremesa! Essa não tinha igual. Era um doce de abóbora em calda tão bom que meu irmão o chamava de “tentação” (RIGO, inédito).

O cheiro da fumaça do trem, o ruído telec, telec, o balançar dos vagões, o

vento no rosto são emoções retornáveis pela sensação de reviver o passado para M.

R. Rigo, e reproduzíveis na escrita pela percepção do presente. As lembranças são

do passado, mas a percepção é do futuro como afirmava H. Bergson (1996, p. 69), o

que torna possível a reedição das imagens e sensações revigoradas para o presente

e para o futuro no desenvolver da história de uma ida à casa dos avós.

A memória voluntária para H. Bergson é aquela construção da memória como

lembrança aprendida (voluntária) que tem todas as características de um hábito

(BERGSON, 1996, p.61) e a lembrança involuntária pode surgir espontaneamente

suscitada por algum sentido. E ainda mais afirma o autor de Matéria e memória

sobre as duas formas de memórias:

A primeira, conquistada pelo esforço, permanece sob a dependência de nossa vontade; a segunda, completamente espontânea, é tanto volúvel em reproduzir quanto fiel em conservar (BERGSON, 1996, p. 69).

Nesse formato de elaboração por memória involuntária é que se tecem os

relatos de fragmentos de vivências da infância da autora. O exercício das

lembranças espontâneas foi bem aproveitado para construir o texto sob o tema

cotidiano (férias) e à ligação da memória aos sentidos, às percepções e à intuição

do sensível.

No texto estão presentes todos os sentidos:

a) Visão: a imagem do rio Taquari, a estação de Augusto Pestana, a estação

Fanfa, o interior de Triunfo, a casa da tia Ana, constituem-se nas as

paisagens percorridas pela criança.

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b) Audição: o som do apito do trem, o coaxar dos sapos, as algazarras na beira

do rio.

c) Olfato: o cheiro da galinha ao molho pardo, vovô Zezé fumando palheiro.

d) Paladar: o sabor das pitangas, comer goiabas no pé de goiabeira, as

sobremesas da vovó Lili.

e) Tato: os abraços dos parentes, o vento batendo no rosto, o calor das tardes

ensolaradas.

Está presente na narrativa o sentimento de coletividade, pois a autora inclui

as sensações obtidas ao irmão que participava com ela das delicias dos dias de

férias na casa dos avós. Podemos associar a esse fato o exercício das memórias

compartilhadas (HALBWACHS, 2006, p.117). Além de o universo infantil ser

distante, pertence ao passado remoto, as lembranças se perdem, são esquecidas,

distorcidas e em alguns casos necessitam da elaboração por compartilhamento para

que ressurjam. Já não são as memórias do autor, mas são as memórias dos outros.

M. R. Rigo ao escrever seu texto usa a primeira pessoa do plural para indicar

que as memórias pertencem a ela e ao irmão, ambos escutavam as histórias do avô.

É como se o irmão estivesse presente na hora da criação literária:

Não havia luz elétrica no sítio e o vovô acendia o lampião e o deixava clareando a cozinha onde a vó Lili estava. E nós íamos para a rua atrás dele que se acomodava em uma cadeira preguiçosa e ali enquanto fumava um palheiro ia contando “causos”. Escutávamos atentos e quando ele parava um pouco para aumentar o suspense, só ouvíamos os ruídos da noite, quase um silêncio não fosse o coaxar dos sapos (RIGO, inédito).

“Eram tão felizes os dias” e “íamos dormir como anjos sem distinguir realidade

de sonho” (RIGO, inédito) é a síntese de tudo para a autora que ao escrever

pretendeu deixar registrado o que pôde extrair de seus quadros de memória de dias

felizes de criança.

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3.2 Emergência da subjetividade no poema

O lirismo ao expressar a subjetividade do autor, pode dar as nuances não só

do eu-lírico, mas do eu-autoral que fala de si, pois ocorre que o ato autobiográfico

deixou de estar vinculado apenas às produções narrativas em prosa para ser

também um espaço da construção de si nos poemas. Isto posto porque as criações

literárias, principalmente do século XX abriram suas fronteiras para inovações e já

não há espaço para uma “categorização enrijecedora” (SOUZA, 2002, p.13) e,

portanto admitem inovações na conscientização da fragmentação de tudo. Pode-se

afirmar que o eu-lírico da pós-modernidade é uma “entidade suscetível de ser

aproximada do elemento autobiográfico mais marcante, ou seja, o eu enquanto

sujeito da enunciação e enquanto objeto dessa mesma enunciação” (SOUZA, 2002,

p. 27). No discurso poético a emergência da subjetividade pode se configurar no ser

autobiógrafo que vai construindo uma performance, arquitetando-a a partir das

vivências.

Raquel Rolando Souza ao examinar a série Boitempo de Carlos Drummond

de Andrade se debruça sobre um enfoque inovador na consideração de caráter

autobiográfico conferido a obra drummondiana que não se submeteu às “ideologias

sistematizadoras” e se insurgiu numa “deliberada não-observância ao padrões

canonizadores dos gêneros” (SOUZA, 2002, p. 17) deflagrando a subjetividade nas

expressões mais corriqueiras do cotidiano. Na explanação que indaga ser o eu-lirico,

“verdade ou mentira” (p.17), R. Souza afirma que a poesia pós-romântica adotou

novas concepções e possibilidades. O poeta de carne e osso do romantismo, o dado

concreto, já na se sustentava mais, o poeta pós-romântico passa a imaginar a sua

existência. O caráter ficcional, estritamente ligado a prosa passa a fazer parte da

lírica. Ainda cita a autora: “não se trata de formular mentiras ou falsidades via

poesia, mas fundamentalmente de criar ilusões de realidade” (SOUZA, p.17).

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Segundo Ph. Lejeune, escrever a vida em versos é “um caminho original” (p.

89) e revisa com tal afirmação seu próprio conceito de autobiografia para alargar o

terreno que rompe as fronteiras e leva à abrangência ilimitada das formas de

expressão do “eu”. Ainda cita: “Em Le pacte autobigraphique, afirmei – heresia! –

que a autobiografia era “em prosa”, em 99% dos casos ela é de fato, mas não

certamente de direito” (LEJEUNE, 2007, p. 86). Com essa declaração o autor do

pacto autobiográfico reconsidera seus estudos acerca do espaço autobiográfico para

dispensar atenção às composições líricas (mesmo que em porcentagem tão mínima)

em que o poeta possa explicar ou confidenciar a sua existência. Essa considerações

de Ph. Lejeune se embasaram em estudos críticos de grandes poetas como

Raymond Queneau, Robert Baratte, George Perros e William Cliff, ao admitir que as

escritas autobiográficas em todas as suas diferenças possuem ao mesmo tempo

muitas intersecções. A poesia autobiográfica, portanto, não estaria excluída do rol

deste espaço renovador das escritas de si.

3.2.1 Sujeito bipartido de Nelsi Urnau11 No texto poético de Nelsi Urnau o cotidiano se apresenta descrito em

atividades infantis, além dos cenários que funcionam como verdadeiros quadros da

memória:

Dos sonhos doces, da família reunida, do chimarrão... das tardes de domingo, do perfume dos laranjais, das flores dos pessegueiros... Que saudade!

11 Nelsi Urnau é gaúcha de Boa Vista do Buricá. Vive em Canoas desde 1987. É escritora de contos, crônicas e poemas. Lançou seu primeiro romance Loucos não insanos em 2009. Também escreve livros infantis e é coletora de diversos prêmios em certames literários nacionais e internacionais.

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Das carroçadas de soja pés e vagens pra trilhadeira, virando a noite enluarada antecipando-se à chuvarada. Milho em espigas, pasto e feno como era bom ser pequeno! (URNAU, inédito)

A criança do interior ressurge nas descrições das atividades da vida do

campo, aquela criança que toma banho de chuva, que corre pelo prado, que

trabalha limpando a prensa, que faz doces, que ordenha vacas e cuida dos animais

de um sítio.

Morreram meus gatinhos tão fofos, tão mansinhos! Pintinhos piando de penetra na horta e no jardim. Dos patinhos que cresceram Guardei penas para mim. São elas que me aquecem Neste inverno sem fim. Os cães que eu tratava, será que ainda me reconhecerão? Oh, canários! Oh, cardeais! Tão longe ficaram seus cantos... e naquela janela antiga, já não têm de me acordar (URNAU, inédito).

A figura da mãe, das comidas, dos cheiros, as lembranças do mundo

simbólico infantil e os efeitos sensoriais:

Ah, comidinha gostosa que ninguém faz como mamãe: aipim frito e feijão, pão de milho e requeijão. E o caldo de cana... Garapa em demasia, desarranjo e azia açúcar mascavo e melado... (URNAU, inédito)

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O código ideológico desse poema perpassa a esfera do colono que veio para

a cidade, que sofre, que sente a falta da vida do interior (o quarto solitário é o eu

solitário). Existe a dualidade lá dentro/lá fora para explicitar interno e o externo ao

poeta. O barulho lá fora é a diferença de um centro para outro, a cidade agitada em

contraste com a tranqüilidade do interior. O vento gélido e a chuva fria acontece no

exterior, mas também está ocorrendo no interior do poeta (lá dentro da alma, do

coração). O poeta-enunciador vive lá fora e lá dentro, a reflexão do adulto, a

saudade da criança. Lá fora é a cidade, lá dentro é o interior.

A chuva fria, o vento gélido, o quarto solitário, o barulho lá fora... A angústia da vida, a amarga sobrevivência, a saudade (URNAU, inédito)

O poema apresenta dois tempos e dois espaços e um sujeito bipartido: o

passado e o presente, o interior, a cidade o sujeito interiorano que vive na cidade, a

criança que era feliz no sitio, o individuo adulto que sofre na solidão de seu quarto.

São diversos os lugares rebuscados pela memória: a escola, os passeios e

lugares visitados, a casa, um lugar secreto como considera a autora Nelsi Urnau: “lar

que foi meu casarão escondido do mundo/ na beira do rio” (URNAU, inédito).

A recordação é pontuada pela fusão de sentidos que reconstroem os cenários

e os dias felizes dos quais só restaram lembranças doces que margearam os versos

da poetisa.

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3.2.2 Tempo e correnteza do rio no poema de Maria Rigo12

As transformações ocorridas entre dois tempos é a base do poema

Saudades. Os referenciais simbólicos da infância na figura do rio, do pé de

guabiroba, figuram como sinalizadores de mudança de uma etapa e outra.

Saudades da minha infância Saudades das minhas tranças Saudades dos banhos de rio Ia colher guabiroba E andava de pé no chão (RIGO, 2003, p.102)

O vazio do adulto em relação a ausência da infância em atitudes de

simplicidade como pés descalços, passeios pela margem do rio. O eu-poético,

encara a infância como um bom período, mas consciente de que ela se foi e não

retorna mais. A criança escapa no tempo, fluindo, como as correntezas do rio.

As tranças cortei O pé de guabiroba morreu O sapato calcei No rio não mais voltei E agora em meu coração um vazio Só restou da minha infância aquelas boas lembranças das correntezas do rio (RIGO, 2003, p. 102)

Ao transpor a imagem do rio para seus versos a poetisa renova a sua carga

emocional e ressignifica a vida. O que vem a calhar com uma passagem do livro

Pequenas memórias de José Saramago que as paisagens que ele guardava da

12 Maria Rigo nasceu em Triunfo, em 05 de março de 1936. É formada em Teologia e é professora aposentada. Cofundadora e presidente atual da Casa do Poeta de Canoas.

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infância trouxeram ao adulto uma nova significação que o ser infantil sequer havia

imaginado no passado:

A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: «Que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!» Naturalmente, quando subia ao campanário da igreja ou trepava ao topo de um freixo de vinte metros de altura, os seus jovens olhos eram capazes de apreciar e registrar os grandes espaços abertos diante de si (SARAMAGO, 2006, p. 23).

Diante da poetisa estão as paisagens da infância que o instante criador

retoma nos versos: os banhos no rio Taquari, a menina de tranças que foi, os pés

descalços, e a imagem do pé de guabiroba. Estes eram os espaços abertos diante

dela e que foram retidos na memória. Nos versos a paisagem se tornou criação

literária.

3.2.3. Menina-mulher de Marlise Pozzatti13

O universo infantil, a ótica da criança, o reconhecimento da fragilidade e o

devotar gratidão à formação de si ao pai são pontos que são postos em relevo no

poema de Marlise Pozzatti. Tudo era imenso, imenso... Meus olhos não atingiam à distância, não abrangiam a totalidade... meu pai me ajudava a enxergar mais longe... conduzindo-me a ultrapassar os limites de minha visão (POZZATTI, inédito)

13 Marlise Pozzati é natural de Santa Maria/RS. É formada em Letras, com mestrado em Estudos francófonos pela UFRGS. Atualmente é professora da Faculdade IPUC.

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O desejo de retorno à infância como um período feliz surge nos versos:

ouvir pássaros, sentir a natureza, percorrer rios... Ah! Que saudade do pica-pau: saudade de retornar a um outro mundo: a infância que a todo instante em mim renasce... é uma planta que não cessa de dar frutos, freqüentemente corto alguns galhos... para que renasçam de forma diferente (POZZATTI, inédito)

A delineação de um ser em formação, que mudou sustentado pelas raízes da

criança feliz que foi:

Muitas vezes, desejo modificar toda a planta, porém jamais conseguirei eliminar suas raízes; elas sustentam o ser mulher em que me transformei

(POZZATTI, inédito)

Para a poetisa há uma reflexão pautada no aprendizado e na figura do pai

como aquele que instrui ao mesmo tempo o reforço de que ficam fortemente

impressas as relações do círculo familiar como o primeiro grupo social de contato da

infância seguindo as noções de M. Halbawachs (2006, p.116) de referenciais grupais

e que brotam nos textos como a guarda do patrimônio afetivo registrada pela escrita.

Um cenário da natureza, os pássaros, os rios, as árvores remetem a ligação

do passado com a vida simples e natural e o aproveitamento desses elementos para

a criação poética. A comparação entre o ser e a planta, imputa às raízes todo o

legado da vida, do que aprendeu e daquilo que viveu. A menina se transformou em

mulher a custa das boas experiências e tem saudades demonstradas no desejo de

retorno proustiano aos tempos da infância.

M. Pozzatti aproveita-se das heranças aprendidas com o pai para o ato da

criação literária: Hoje sua presença imaginária, ainda aguça meus sentidos/ minha

sensibilidade/minha criatividade (POZZATI, inédito).

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3.2.4 Alteração do espaço e maturidade de Neida Rocha

No poema Vila Harmonia a poetisa relembrará de seu passado pela

exploração de um espaço que existe só na interioridade da alma, e que irá surgir

pela sensibilidade poética em restos, fragmentos da vila, da casa, dos amigos que

partiram. A casa 456 da Irmão Florêncio não existe mais. O cinamomo foi cortado. Só restaram lembranças. A infância foi embora, enquanto os amigos se mudavam. (ROCHA, 2007, p. 87)

A consciência de que muitos destes lugares já não existem mais a não ser na

memória permeiam os escritos. A casa como ponto de contato pertence ao passado

e já não é possível encontrá-la:

A casa 456 da irmão Florêncio não existe mais. O cinamomo foi cortado. Só restaram lembranças (ROCHA, 2007, p. 87)

A figura do cinamono cortado indica que a vida vai impondo limites e que os

espaços mudam. O lugar da infância, já não existe mais, mas a lembrança através

das imagens perduram com o tempo.

A reconstrução verbal do adulto formula o texto já alterado pela intuição do

sensível e enxerta às experiências sociais na elaboração de seu horizonte pessoal.

A relação com os amigos faziam parte deste social mudado na infância que vai

embora juntamente com os amigos que a representam.

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A alteração do tempo é captada pela poetisa, como a mudança do espaço e

do ser (a menina também foi alterada pelo tempo).

A Harmonia da infância mudou. A Vila Harmonia que a menina conhecia, não existe mais. A menina cresceu. A Harmonia também cresceu. A Vila terminou. A Harmonia aumentou. A menina criou a Harmonia entre a infância e a maturidade (ROCHA, 2007, p. 87)

O trocadilho com o nome do bairro onde decorreu a infância denota que há

uma compreensão harmoniosa da autora em relação a passagem do tempo e da

vida, entre infância e maturidade.

3.2.5 Passado e presente nos versos de Maria Luci Leite

No poema Lembranças de Mari Luci Leite há o reconhecimento de que a

infância faz parte de um passado que não retorna, e há em relação ao tempo que

passou um sentimento de perda:

Minha morada querida que agora está na saudade. Lá deixei muita amizade e um pouco de minha vida. Deixei minha infância distante, momentos de tristeza também! (LEITE, 2008, p. 33)

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A evocação dos objetos de infância, das brincadeiras resgatam pedaços de

um tempo feliz. A autora também faz uso das paisagens através do legado visual

das imagens emolduradas pela memória: os brinquedos artesanais, os banhos de

açude são as lembranças recolhidas da infância:

Lá brinquei de sapata, cinco Marias, boneca de pano... Tomei banho de açude, soltei pandorgas no campo, andei de perna de pau. (LEITE, 2008, p 33)

É no contraste entre o passado e o presente que a poetisa define seus

sentimentos em relação ao futuro, um misto de tristeza e saudade.

Hoje nada mais me resta a não ser ver televisão. Só programas violentos, só brinquedos eletrônicos, tudo caro e importado. Meu Deus que saudade eu tenho Do meu cantinho, meu pago. (LEITE, 2008, p. 33)

A diferença entre dois tempos registra a saudade da poetisa do cantinho

aconchegante do passado que não existe mais.

A sensibilidade da poetisa traz em tons de melancolia as imagens perdidas do

passado.

A comparação entre os brinquedos artesanais e motivadores das brincadeiras

frente aos brinquedos eletrônicos redefinem os novos tempos. E o poema assume

tom de queixa, na saudade das épocas passadas consideradas melhores.

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3.2.6 Autores, obras e evidência

Em face das análises, compreende-se que cada etapa da vida tem sua

importância acentuada pela ordem de significância que se dá a fatos ocorridos ao

longo de uma existência. A infância é um período, para alguns escritores, marcado

pelas experiências sensoriais, míticas e cuja trajetória é sinalizada por objetos,

cores, expressões, imagens, cheiros e que é singular a cada um. Na literatura dos

autores da Casa do Poeta de Canoas encontramos uma parcela deste recorte cujo

tema aponta para as memórias de infância em que os autores buscaram no passado

uma forma de ressemantizar a vida nas experiências coletivas e na busca da própria

identidade pela produção textual

Após fase de reconhecimento das obras e aproveitando os recursos

disponibilizados na disciplina cursada de Memória e instituições, onde se elaborou

exercícios de amostragem através de materiais expositivos, convinha passar à

prática na realização de uma exposição dos textos unidos a outros objetos que

remetessem à experiência vivenciada pelos escritores.

3.3 Exposição: Poéticas da infância

Aproveitando a produção textual em torno das experiências vividas, os

autores puderam unir aos seus escritos, as imagens e objetos que indicassem como

haviam sido suas infâncias.

No período de 15 a 30 de junho de 2010 no salão 15 do Unilasalle, Canoas foi

realizada a exposição Poéticas da Infância, visando a busca da congruência entre

imagem, objeto e texto para melhor captar o período da infância, associando o texto

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ao brinquedo e à fotografia dos tempos de criança do grupo de escritores da Casa

do Poeta de Canoas.

Ilustração 2 O texto de Mari Regina Rigo em pôster exposto

Fonte: Adilar Signori, 2010

A exposição teve por objetivos buscar a interação do autor com o público

através da exteriorização da subjetividade proposta na temática da infância; resgatar

as memórias de infância através dos brinquedos que pertenciam aos autores, da

fotografia dos mesmos e da construção textual que ressemantizasse a vida através

do discurso escrito e da proposta dialógica dos objetos expostos.

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. Ilustração 3 O brinquedo, objeto de referencialidade da infância

Fonte: Adilar Signori, 2010

A exposição da imagem através da fotografia, do objeto de infância que é o

brinquedo e da criação literária no entorno desta temática foram os elementos

formadores do corpus que os autores apresentaram para compor o evento. Foram

destacados 10 painéis com excertos das obras, fotografias dos autores quando

crianças e seus brinquedos ou pertences que relembravam a infância. Durante a

exposição observou-se uma real interação entre os autores da casa do Poeta e o

público canoense, pois o evento foi veiculado pela Secretaria Municipal de Cultura

como uma das programações da 26ª feira do Livro de Canoas. Visitaram o local

cerca de 800 pessoas, entre adultos, crianças, grupos de escolas e os escritores

envolvidos. Foi feito registro fotográfico do ocorrido e surtiu uma nota como evento

cultural inédito no jornal Diário de Canoas do dia 29 de junho/2010.

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Ilustração 4 Ancila D. Martins e as imagens significativas de infância

Fonte: Adilar Signori, 2010

Ilustração 5 O casarão onde viveram os avós de Ancila Dani

Fonte: Ancila Martins, 2008

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A revista Símbolo de Canoas concedeu, em junho de 2010, um prêmio à

organização do evento como destaque cultural canoense pela iniciativa em divulgar

o artista canoense, pela manifestação de interesse do público e pelo retorno em

repercussão que teve o evento. Em solenidade no Clube Cultural Canoense, em 10

de dezembro de 2010, promovida pela mesma instituição, a pesquisadora recebeu o

troféu Giacomazzi.

Ilustração 6 Brinquedos artesanais, bilboquê e estrela para montar

Fonte: Adilar Signori, 2010

Pode-se concluir que a exposição realmente atingiu seus objetivos uma vez

que, tal como M. Proust expressa na obra Em busca do tempo perdido (1992), os

escritores valeram-se das lembranças dos tempos passados, e, ao rememorarem foi

ativada a memória em busca das reminiscências, do resgate do já vivido através de

um processo de seleção voluntária ou involuntária (BERGSON, 1990). A técnica de

exposição se mostra como instrumento positivo, adequado para tal tipo de propósito,

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desde que seja construída e adequada ao contexto, na ocasião viabilizada pela

produção textual que promoveu a subjetividade do autor, ao mesmo tempo em que

compartilhava aspectos da coletividade, numa proposta dialógica com o público.

Embora as experiências fossem da individualidade de cada autor elas dialogaram

com as expectativas dos visitantes, pois cada lembrança do ser criança pôde ser

partilhada.

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4 CONCLUSÃO

A experiência singular do sujeito diz respeito a sua individualidade, algo que

somente ele viveu. Observa-se, contudo, que esta construção é também fruto de sua

pertença aos diferentes grupos dos quais ele participou e que culmina nas

experiências relacionais postuladas por M. Halbwachs (2006).

Reconsiderando a proposta desta pesquisa: analisar os escritos de dez

autores da Casa do Poeta de Canoas que relatavam suas infâncias pautadas em

lembranças desencadeadas a partir de elementos evocados pelos processos

voluntário ou involuntário da memória (BERGSON, 1990), foi preciso situar-se no

limiar do entrecruzamento das relações sociais entre o individual e o coletivo. Assim

atinge-se a compreensão de que as experiências do sujeito na coletividade

contribuíram para a criação de um texto literário acerca de si, mas profundamente

relacionado com a vida em comunidade, que é o espaço circundante e vital em que

se instaura a relevância de uma memória social.

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Desse mesmo modo, a vida como uma escrita de si dos autores da Casa do

Poeta de Canoas associada à memória e pautada em lembranças dos tempos de

criança foi um verdadeiro fio condutor das emoções vividas no seio da família e da

sociedade, revelando, ao mesmo tempo, suas individualidades e aspectos da vida

junto aos diferentes grupos dos quais participaram. Ao longo das produções

literárias houve o resgate de fragmentos que redefiniam a vida dos autores

envolvidos. A base de estudos era relativa a um período da vida, a infância, e nessa

fase o que veio a ser rememorado remontou a fatos e cenas com pessoas e

sensações revigoradas pela capacidade de “criar ilusões de realidade” (SOUZA,

2003, p. 35) através da escrita.

Os autores que constituem o corpus desta pesquisa ao escreverem aquilo

que vivenciaram na infância perceberam o mundo pela experiência da sensibilidade

e a retornaram em uma obra não distante da concepção da realidade, mas em parte

alterada pela impossibilidade da fidedignidade da memória e pelo uso da imaginação

presente no processo de criação.

Volta-se à epígrafe do escritor português José Saramago (2006), desejoso de

mostrar ao leitor o alvo: aventurar-se sobre sua própria história e ressignificar a vida

para que os outros soubessem quem ele havia sido. Assim também se desenrolam

as propostas textuais dos autores da Casa do Poeta de Canoas, que na intenção da

(re)construção de si revelaram suas especificidades. A suma da invenção em torno

de si é que os sujeitos na pressuposição de recuperarem a narrativa de vida criaram

uma obra ficcional que brotou dos interstícios criados entre memória e

esquecimento, contemplando pelo viés literário, a efemeridade e a inconsistência da

memória bem como a inatingível verdade dos fatos.

O modelo das lembranças da obra Coração andarilho de N. Piñon (2010)

forneceu um aporte comparativo para as experiências de criação em torno do

resgate do vivido em face da subjetividade do autor e da escolha do que é matéria

de criação na hora da escrita.

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Uma das sequências seguidas desse molde foi a fragmentação na

reconstrução do vivido que deu uma dimensão da complexidade de recriar-se a si

mesmo, envolvendo percepção, memória, identidade, coletividade num conjunto

sem-fim de relações e ações que não obedecem a um esquema prévio, devido à

liberdade da invenção e da imaginação autoral. Por isso a escrita tende a ser

descontínua, emergente de qualquer faísca de lembrança.

Como exemplo de (re)construção das cenas do vivido no texto pode-se citar o

objeto-lembrança. Esse objeto-lembrança foi para o autor José Heber Aguiar

representado pela imagem de um guarda-chuva; para Ancila D. Martins, uma

imagem da Virgem da Saúde; para Neida Rocha um pé de cinamomo e para Marlise

Pozzatti a figura do pica-pau. Na narrativa de Adilar Signori passa a existir a figura

representativa de um jasmim. Todos esses elementos foram propulsores de criações

literárias que reconstituíram parcelas da infância. Tais lembranças foram pela

memória acionadas em um instante inesperado. Conforme H. Bergson (1990, p. 23),

tais recordações surgem depois de longos intervalos, sem que ao menos sejam

guiadas pela razão e nem sequer invocadas pelo esforço da vontade. Essas

contribuições da memória involuntária foram, desse modo, propícias para a criação

poética.

Os textos registram os lugares emoldurados na memória que povoaram o

imaginário infantil: a escola, as ruas, os bairros, trajetos percorridos e paisagens

encontradas. A natureza foi um dos elementos mais evocados, como a lembrança

de frutas, campos, rios e cheiros característicos como o da chuva ao molhar a terra,

o cheiro de flores, um lugar de refúgio entre tantos cenários que recompunham as

imagens do passado. O lugar de origem também foi evocado como o espaço

estabelecedor das ligações entre os agentes e suas respectivas estruturas sociais.

Por ocasião aparecem as cidades de Canoas, Triunfo, Taquari, Otavio Rocha, Roca

Sales, as localidades interioranas como o Travessão do Pinhal, Rincão dos Costa

Leite, a vila Harmonia, o distrito de Jacaguá entre outros locais. No espaço que

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incorpora a natureza também figuram os animais: pintinhos, cães, passarinhos, o

gado no campo, os grilos, os sapos, o pica-pau, animaizinhos quase sempre

inerentes ao universo do infante.

As pessoas lembradas em geral foram aquelas do circuito familiar,

considerando o estágio infantil em que a visão é limitada pela proximidade das

relações (WALLON, 2003, p.127), por isso as pessoas mais lembradas são aquelas

do âmbito familiar: pai, mãe, irmãos, parentes próximos e professores.

A memória involuntária foi a de maior utilidade para a reconstrução das

memórias confirmando as noções de H. Bergson e a herança proustiana de memória

por processos voluntários e involuntários. A criação literária em muito resulta da

percepção sensível do autor em relação às coisas que o rodeiam. Muitas

lembranças surgem espontaneamente, sem esforço consciente.

A visão ricoeuriana de memória seletiva (RICOEUR, 2005, p. 6) comportou

bem as escolhas pelas quais se estruturou o arcabouço da infância. A memória do

autor, a guardiã dos fatos ocorridos ao longo do tempo, pôde na rememoração

liberar lembranças dos acontecimentos mais recuados no tempo. Assim ocorreu a

vazão da memória intransferível e pessoal dos sujeitos envolvidos. Eles eram os

únicos detentores das lembranças que foram remodeladas e cruzadas com a

memória coletiva no processo de sua construção. Na impossibilidade de guardar

todas as memórias os autores as selecionaram de acordo com o que queriam

lembrar ou narrar. O que majora nesta seleção de memórias é a vontade de registrar

a existência, a luta contra o esquecimento e o preenchimento das lacunas de

memória com estratégias diversificadas para retomar o passado. A escolha dos fatos

significativos é um exercício da memória voluntária.

Em todos os textos sobre a infância houve a tentativa de recuperar momentos

felizes, mas perdidos. O “retorno” proposto por M. Proust concedeu a cada escritor a

entrada no mundo do devaneio. G. Bachelard afirma que “o devaneio não conta

histórias” (p. 14), mas alavanca uma série de combinações psicológicas que irão ser

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úteis no momento da criação. O paraíso perdido da infância e seus inúmeros

cenários se tornaram as “situações emblemáticas” (ARFUCH, 2010) que cada autor

vivenciou e que formou um conjunto de imagens que eles guardaram, mas que só

ressurgiu nos momentos favoráveis, no instante de imaginação e criação . Podemos

considerar o “retorno” como um artifício de criação literária.

Em face das análises procurou-se responder a questão: essa reconstrução de

si no tecido textual constituí-se em uma escrita autoficcional?

Seria o bastante dizer que a liberdade imaginativa permite a ficcionalização

de si conforme pesquisa de V. Collona (2007) e que tal recurso pode ser utilizado

como um trampolim para inventar personagens performados em si mesmo. Nesse

ponto entra o detalhe: os autores analisados não são célebres, ao contrário, são

pouco conhecidos do público geral devido ao caráter local de suas publicações. Não

há como confrontar as memórias de cada um para saber quando de fato ocorreu a

performance de si. Nossa intenção ao empreender a presente pesquisa foi a de

conhecê-los pela evidência textual. E nesse quesito, devido à especificidade dos

textos que não comportam uma nomenclatura em termos de gênero que seja

abrangente delimitamos um espaço por onde as memórias circulam: o espaço

autobiográfico.

Embora tenhamos apreciado as contribuições teóricas profundamente

relevantes de L. Arfuch no plano da interdiscursividade, ainda permaneceremos no

caráter da literariedade e da valorização dos termos autoficcional e autobiográfico

para nivelar o resultado da análise textual. Não com isso desmerecemos a amplitude

do termo espaço biográfico que engloba os discursos de valor biográfico para além

da Literatura. Alguns tópicos foram primordiais para esta escolha:

1. Os textos analisados são discursos literários;

2. os textos pertencem a Gêneros Literários distintos: prosa e poesia;

3. o elemento unificador entre todas as escritas de si foi o caráter autobiográfico;

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4. a tênue margem entre um estilo e outro das escritas de si (por vezes se

entrecruzam) ou hibridizam-se;

5. a existência da poesia autobiográfica no corpus;

6. a inserção destes dois discursos literários no sítio abrangente chamado espaço

autobiográfico.

Há que se considerar os tempos de mobilidade, em que as expectativas

quanto aos cânones literários prenunciam mudanças vertiginosas nos estudos

discursivos, não só que burle os limites estabelecidos, mas que de fato tragam a

reflexão para os campos que traçam os dilemas da subjetividade contemporânea

conforme aponta a critica argentina L. Arfuch.

Em conclusão, após abordagem analítica dos processos de memória

presentes no discurso literário apresentamos os seguintes resultados:

a) Para textos em prosa:

S. Doubrovsky, que foi o introdutor do termo autoficção, definiu-a

“literalmente e literariamente” como “uma reinvenção” (DOUBROVSKY, apud

DUARTE, p. 28). Assim também foi a fórmula de reinvenção de si o formato

encontrado para os autores estudados se reinventarem na reconstrução de suas

histórias . No momento criativo os textos foram modelados no misto de ficção e

realidade. A prioridade que buscamos encontrar nas produções foi o resgate

memorial em relação às lacunas do passado e para as quais a imaginação preenche

as áreas do esquecimento.

Foi possível evidenciar a presença de autoficcionalidade nas composições

narrativas que entendem o autor como o narrador e portador das memórias ali

dispostas na proposta de fusão do real e do imaginado pela impossibilidade da

estrutura textual ser o depósito fiel das imprecisões da memória. Os espaços

intervalares da memória foram em parte preenchidos com o exercício da

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rememoração na exploração do ambiente que o passado forneceu, de cenários e

paisagens presenciadas, imagens representativas, evocação de objetos que

ativavam a memória em busca do instante criador no resgate das reminiscências. O

texto fragmentado diz por si da impossibilidade do retorno integral do passado e

cujos vazios são atestados pela ficção.

b) Para os textos poéticos:

E quanto aos poemas a emergência da subjetividade sugerida pelo eu-lírico

pôde expressar os aspectos da vida do poeta, a ponto de reconhecê-los como um

ser autobiográfico (SOUZA, 2003). Sob esse prisma podemos afirmar, que se trata

de poemas autobiográficos. A relevância do poema não é a sinceridade subjetiva do

poeta e sim a sua percepção sensível em expressar as vivências. E nisto cada

poema apresentado foi um celeiro atulhado de lembranças dos tempos felizes de

criança, onde os brinquedos, o desfrutar de prazeres em atividades infantis

conduziram às rememorações. Em todas as composições poéticas há o ato

comparativo entre o ser criança e o ser que se tornou adulto. Isto demonstra a

reflexão do adulto frente aos sentimentos definidores da infância que ressignificam a

vida, mesmo que na ilusão do imaginado.

Entendemos que as cargas etimológicas dos substantivos autoficcional e

autobiográfico se equivalem enquanto compreendem o mesmo objetivo: trazer o

registro de uma existência. O prefixo auto (que remete ao eu) + o adjetivo ficcional,

resultaria no sujeito fictício que deseja revelar-se como o sujeito da enunciação. E o

auto + biográfico, seria o resultado do eu + vida escrita, ou seja, o sujeito que vai

escrever motivado pela própria vida. Ambas as apreciações sintetizam nas obras

avaliadas o “contar a vida”. Através da autoficção ou da poesia autobiográfica,

surgem os contornos expressivos na malha textual.

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Os escritos que apontavam para a infância repercutiram na demonstração da

formação identitária do sujeito que se desvenda na apropriação das representações

da coletividade. Nesse ponto, pode-se afirmar que a Literatura tornou-se o espaço

para o registro das interações ocorridas entre o individuo e os grupos com os quais

ele travou suas relações. Cada criação foi marcada pelas visões de mundo, pelos

acontecimentos de significância peculiar a cada época e muitas dessas produções

vieram a refletir a afirmação do autor como sujeito no espaço autobiográfico.

Um ponto considerável desse trabalho foi a constatação de que mesmo com

toda a inserção no entorno da cultura do município de Canoas, a Casa do Poeta,

seus autores e seu acervo ainda não haviam sido estudados. Acreditamos na

relevância da presente pesquisa no sentindo de divulgar o trabalho sério e

competente efetuado pelo grupo que se reúne em torno da Casa do Poeta de

Canoas. Nossa pesquisa deverá funcionar como um sinalizador de que a Literatura

é um bem material a ser avaliado e valorizado pela comunidade e pelos que se

interessam pelos estudos na área de Memória Social e Bens Culturais. A memória e

sua proeminência social e cultural foram registradas nestes textos, principalmente no

que tange ao recorte temático voltado à infância, pela significação da expressão

individual que se inscreve no coletivo e sob esse prisma foi desenvolvido o plano da

presente investigação,

Na expressão de si e dos fragmentos vivenciais (nestes fragmentos se

concentram também os esquecimentos, as omissões, os silêncios, os desvios)

próprios da infância pôde-se tomar conhecimento do caráter social da memória e da

literatura. Nesse sentido, consideramos que a aplicação dessa dissertação poderá

ser de grande relevância na valorização da memória que retornou como evidência

em escritos que serviram como memoriais descritivos de um grupo de escritores.

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ANEXOS ANEXO A – Texto 1 Meu pé de jasmim

Atrás de um casarão de dois andares, quase centenário, entre um canteiro de

dálias e antes de uma escadaria de pedras, estava localizado um verdejante pé de

jasmim. O meu pé de jasmim, que foi cultivado naquela ponta do canteiro, ficava

carregado de flores de tonalidade branca que exalavam um forte perfume que

envolvia a todos. Isto foi uma dádiva do nosso Criador. Tanto é que até hoje ele não

me saiu da memória.

Ele tinha em torno de dois metros de altura. Quando menino, dava para subir

no seu tronco. Ficava bem pertinho, para apreciar a beleza das folhas bem

desenhadas e das suas flores branquinhas. Aproveitava algumas pétalas macias

das flores que caíam para pôr nas páginas dos livros como marcadores.

Ah! E que sensação indescritível daquele cheiro no ar. Eu apreciava mais

profundamente com os olhos fechados. Aquele cheiro agradável, característico das

suas flores, me faz recordar da minha vida de guri. Para as pessoas em geral,

existem situações e coisas diversas (músicas, animais, flores) cuja imagem ou

cheiro ficam impregnadas na mente e ativar esta, as faz voltarem ao passado

distante. Pois, para mim, isto sempre acontece com o jasmim que me transporta ao

tempo daquele primeiro pé que está fixado claramente na minha memória, como

uma fotografia. Existem centenas de espécies conhecidas. Ao contrário do que se

pensa, nem todas possuem perfume, mas todas possuem flores.

Interessante que, durante as andanças por aí, tive poucas oportunidades de

encontrar outros pés de jasmim. Quando vejo um no jardim de alguma residência ou

num parque, paro para sentir o bálsamo que exala. Nessas poucas vezes, sempre

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relembro minha infância. Por isto, esta descrição tem um significado especial para

mim. Quando isto acontece, surgem de repente aquelas saudosas lembranças...

Eu até hoje estou envolvido pela saudade dos jasmins de minha infância, dos

meus tempos de menino... Eu era o menino jogando futebol com bola de meia na

praça, em frente à igreja. No verão, era o guri pescando ou tomando banho no rio

Taquari, brincando de ovo podre, caçador e de esconde-esconde, andando de

carrinho de lomba com rodinhas de madeira e descendo a ladeira. Eu era a criança

empunhando o arco, atirando com o bodoque e jogando bolinha de gude. Tempos

em que alguns brinquedos eram feitos pela própria gurizada. E como era salutar

tudo aquilo! Ficávamos contentes e tinha valor para nós de poder utilizar a

criatividade para inventar os mesmos.

Recentemente, visitando Roca Sales, a minha terra natal, reencontrei aquele

velho casarão, já deteriorado pelo tempo e pela má conservação. Independente

disto, o que interessava para mim, era verificar se aquela árvore encantadora ainda

lá se encontrava. Desde a rua, deu apenas para visualizar várias palmeiras, que na

minha época não existiam.

Confesso que não tive a coragem de entrar. Tive receio de não mais encontrar

meu querido pé de jasmim. Poderia ficar frustrado se não o encontrasse e daí

imaginar que todos aqueles bons momentos desapareceram. Tomei uma decisão

firme: não me confrontar com a possibilidade dessa realidade. Porque a gente

sempre tem apego pelo lugar em que foi feliz.

Acho que foi melhor assim. Estando lá o pé de jasmim ou não (prefiro acreditar

que sim), o certo é que aquele perfume inconfundível ficará marcado para sempre,

pois traz felicidades. Enquanto isso busco a sorte de encontrar outros pés de

jasmim, com aquelas flores brancas perfumadas, que tanto me fazem sonhar. Pois,

isto me faz bem ao coração.

(SIGNORI, Adilar. Escritos, escritores. Lajeado: Alivat, 2009)

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ANEXO B – Texto 2

Uma estrela em movimento

O sol acordou forte e belo no horizonte entre eucaliptos e pinheiros. Para

Otavio Rocha prometia calor apesar da brisa fresca que soprava do vale com a

proximidade do inverno.

Pensava comigo, hoje subirei a colina atravessarei potreiros, riachos, cruzarei

por parreirais. Vou visitar minha estrela!

A saudade dela era tanta que da encosta do vale me sentia despencando.

Porem a certeza de seu amor envolvia-me e me deixava forte no simples fato de

voltar a sentir seus abraços, poder beijá-la novamente.

Falei com mamãe sobre minha vontade e esta aproveitou a oportunidade para

que eu levasse um importante recado de meu pai.

Combinei então com Marilene minha irmã menor, mas de muita energia que

após o almoço iríamos campo adentro. Para nós era tudo emoção no nosso

Travessão Pinhal.

Mamãe nos deu uma mochila de roupas para entregá-la a minha estrela. Ela

se entreteria caseando, restaurando, pois tempo para mamãe que tinha uma penca

de filhos não sobrava para essa tarefa.

Quando vovó nos avistou de sua varanda do sobrado de madeira, disse: “ Oh,

bambine del mio cuore veni su quá belle!” Deixou pra trás a cadeira balançando,

levantou-se para nos abraçar e beijar. Preocupada com nossa caminhada de dois

quilômetros, foi se dirigindo para a cozinha e nós duas a seguíamos, como que a

ampará-la, na sensação de que éramos anjos protetores.

“Vocês me pegaram, sem biscoitos, disse ela”. Sei que Marilene adora meus

biscoitos de polvilho, vamos ver se encontramos pão e mel nestas latas.

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Surgiu um lindo corneto, em suas mão - pão sovado e assado em forno a lenha - e

um pote de mel. “Flores da colônia”, disse ela se referindo ao mel. A meus olhos

parecia ouro liquido. Num gesto de devoção a estrela colocou num pires algumas

colheradas de mel. Marilene logo destacando porções do corneto, encostava-o de

mansinho no pires e na boca e se lambuzava de prazer. “Sentem aqui, vamos

comer”, chamava ela. E nos sentávamos nos rústicos banquinhos feitos por vovô

José Dani, e que ainda seriam aprimorados, segundo ela explicava.

Novamente ela levantou-se, foi até o armário, e dum compartimento com tela

verde bem fina tirou salame, queijo e copa. Numa xícara colocou uma gema mel e

canela em pó. Pediu-nos que batêssemos até ficar esbranquiçada. “passem no pão,

é vitamina para continuarem fortes e bonitas.” Ela perguntou o eu queríamos beber e

eu disse que queríamos vinho tinto misturado com água. De volta a mesa,

conversávamos e desfrutávamos o momento mágico.

Marilene quis saber onde estava o vovô Dani. Ela disse que ele estava

terminando o cochilo sagrado. Eu sabia que depois do cochilo ele iria ler o jornal, era

atento nas noticias do sindicato nos qual fora sempre envolvido. Vovô adorava

política, foi vereador, líder sindical no período de Getulio Vargas e também já tinha

sido conselheiro da Cooperativa Santo Antônio de Vinhos de Flores da Cunha.

Ouvíamos muitas histórias de seus calorosos debates políticos entre UDN, PSB, e o

PTB de João Goularte, seu candidato.

Marilene curiosa deu uma escapada e foi de mansinho dar uma espiada para

ver se vovô já havia acordado. Logo volta e dispara casa adentro.

Eu circulava pela varanda quando lembrei do tal recado de mamãe, ou

melhor, de papai. Dei o recado. Mas até hoje se puxar da memória não sei qual

recado era. O que importava era estar perto de minha estrela.

Cheguei junto à janela e me deparei com exuberante horta - aquela era a

pupila dos olhos dela – exclamei pelo espetáculo da visão das alcachofras que

minha mãe adorava.

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Vovó nos conduziu pelos fundos da casa. Desce escada, sobe escada e lá

chegamos numa porteira de tela. Entramos – que emoção desfilar entre as hortaliças

em canteiro que vovô Dani preparava, semeava e vovó e transplantava e cuidava

diariamente.

Nesse momento vovô Dani desceu, atravessou o quintal e foi para sua oficina,

onde era sua marcenaria ferraria. Ele adorava produzir ferramentas, moldadas na

bigorna. Ele fazia armários, bancos, cadeiras e mesas. Intercalava tudo isso

montando um caprichado cigarro de palha de milho. Tirava lascas de um rolo de

fumo, triturava em seus dedos e montava o cigarro. Marilene o seguia.

Vovó colheu alcachofras e disse que eram presentes para minha mãe.

Enquanto ela circulava pela horta, conclui: minha estrela é uma estrela em

movimento. Depois brincamos com a bomba d’água, tiramos água do poço e

molhamos as plantas do jardim.

Quando retornarmos a casa, deparei-me com a galeria de fotos na parede da

sala. Minha estrela disse que era virtude cultuar, amar e reverenciar os

antepassados, familiares e amigos. No canto da sala beijada pelo sol da tarde uma

begônia enfeitava o ambiente com suas flores cor-de-rosa. O sol declinava sobre ela

e me dei por conta que já era hora de voltar.

Ao entender que já íamos minha avó pediu que rezássemos uma ave-maria

junto a capelinha com a virgem da Saúde que estava acostada a parede divisória.

Uma lampadinha com pavio de barbante preso a rodela de cortiça sobre água e óleo

a iluminava com flores em seu redor. Rezamos juntas com devoção e amor.

O rosto da bisa era radiante neste dia, e eu e Marilene saíamos dali mais

ricas com sua ternura e o esplendor daquele ambiente.

(MARTINS, Ancila Dani. V Coletânea Casa dos Poetas de Canoas. Canoas: Tecnocópias,

2011. No prelo)

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ANEXO C – Texto 3

Sensações e sabores da infância

Morávamos na cidade de Canoas e no período de férias íamos meu irmão e

eu para a casa de nossos avós no interior de Triunfo. Subíamos no trem Maria

Fumaça na Estação Augusto Pestana e seguíamos lépidos e faceiros à casa deles.

Na viagem íamos olhando tudo e ouvindo telec-telec do trem. Parece que sinto

agora o cheiro da fumaça e o balançar dos vagões e lembro o pedido que fazíamos

a nossa mãe:

- Podemos sentar perto da janela?

Ao que ela respondia:

- Claro. Assim quando passarmos em frente à casa da vó Lili e da tia Ana

podemos abanar para elas.

E assim seguíamos a viagem sentindo o vento no rosto e felizes com o

encantamento da paisagem. Descíamos na estação Fanfa. Íamos caminhando pelos

trilhos até chegar aos braços de nossos avós. Com eles os dias passavam

rapidamente e ficávamos com gosto de quero mais.

Gostávamos de subir nas goiabeiras, ficávamos ali conversando e

planejávamos as outras brincadeiras comendo as frutas até à hora do almoço,

pontualmente ao meio-dia. A vó Lili fazia uma galinha ao molho pardo como

ninguém. Ah! E a sobremesa! Essa não tinha igual. Era um doce de abóbora em

calda tão bom que meu irmão o chamava de “tentação”.

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Vovô era conhecido por todos como Zezé da “venda”, um armazém de

secos e molhados. Lá tinha de tudo e eu pequena ainda, brincava de ajudante dele

pesando os alimentos naquelas antigas balanças com pesos de ferro.

A hora do dia que eu mais gostava era à tardinha. Vovô ia buscar o gado eu

havia deixado no pasto pela manhã a beira do rio. Nós corríamos a frente para ver

quem chegava primeiro. Sabem para quê? Enquanto vovô Zezé recolhia o gado,

nós comíamos pitangas. Que delicia! Sentíamos-nos os donos do mundo

saboreando as maravilhas que a natureza nos proporcionava e por estarmos perto

de pessoas tão queridas nos sentíamos seguros frente aos riscos que esse passeio

poderia ter. Tanto o rio como os animais já estavam habituados à nossa algazarra e

seguiam seu curso natural nas tardes ensolaradas.

As noites daquelas férias pareciam encantadas. Não havia luz elétrica no

sítio e meu avô acendia o lampião e o deixava clareando a cozinha onde a vó Lili

estava. E nos íamos para a rua atrás dele que se acomodava em uma cadeira

preguiçosa e ali enquanto fumava um palheiro ia contando “causos”. Escutávamos

atentos e quando ele parava um pouco para aumentar o suspense, só ouvíamos os

ruídos da noite, quase um silêncio não fosse o coaxar dos sapos. Víamos a brasa do

palheiro e um ou outro vaga-lume passarem cintilando no escuro. Em seguida ele

prosseguia narrando algo engraçado...

Íamos dormir como anjos sem distinguir realidade de sonho e fazer tudo de

novo no outro dia. Eram tão felizes os dias que os pendurei nos quadros de minha

memória e nas linhas desta história.

(RIGO, Mari Regina. Texto inédito)

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ANEXO D – Texto 4 Guarda-chuvas

Sempre, quando criança, pegava-me cantando uma música que havia

aprendido, acho que na primeira série com a professora Sandra. Era

sensacionalmente linda. Simples nas estrofes e atraentes nos versos. E assim

recitava: “era uma casa muito engraçada, não tinha teto não tinha nada...” era uma

música que eu amava. Gostava de suas rimas o que facilitava a lembrança contínua

de seus versos. O que mais me tocava nessa música era a historinha. Imaginava,

mesmo com tão pouca idade, que retratasse a história de uma pessoa solitária que

morava sob um guarda-chuva. Esquecia do teto, e levava em conta o fato de que

não tinha parede, chão, porta, janela, endereço... Depois, já grande, entendi tratar-

se de uma espécie de ironia. O poeta – grande Vinícius - queria retratar a realidade

das pessoas que não tinham casa. Talvez um mendigo. Pensava na possibilidade de

a letra da música retratar a realidade de um povo sofrido expulso de suas terras por

grileiros e fazendeiros. Essa gente violentada era, para mim, esses moradores da

casa, sem teto, sem parede, sem chão e sem endereço.

O que me perseguia sempre era a idéia do guarda-chuva. Tenho paixão por

eles. Acho-os misteriosos. Penso que esse sim é um grande amigo de nós

humanos. Talvez até o maior. Como as pessoas, por deveras vezes, também nos

trai. Esquece de nossa existência deixando-nos a mercê dos tempos e ventos. Em

seu colorido hipnotizante ou em seu preto magistral esconde-se um ar de

superioridade. Está acima da cabeça dos seres humanos. Protege seus corpos e

seus pensamentos em sol ou chuva. Isso, de certa forma, o torna especial.

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Em minha memória de criança escondem-se vários guarda-chuvas. Nas brechas de

meus pensamentos, vez por outra, me aparece uma belíssima cena acompanhada

por um desses. Gosto muito de uma em que, em dias de chuva, eu e minha irmã

íamos para casa debaixo de nosso teto ambulante, para nos proteger daquele mar

que desabava. Andávamos pelo menos um quilômetro e meio da Escola até nossa

casa. Nesse percurso passávamos por aquelas ruas esburacadas onde as

enxurradas mostravam seu potencial de voz. Cantavam em tom grave. Um som

confuso entre barítono e baixo. Em nossa sorte, por vezes, passavam carros e

motos que nos lançavam lama. Dava a impressão que, quando viam pessoas sob a

chuva, aceleravam de propósito e então se aproximavam das pessoas e lhes

banhavam.

E lá íamos nós. Eu estudava na terceira série. Era fininho. Tinha o cabelo

preto igual de índio. Na verdade parecia um. Devia ter uns dez anos. Já minha irmã

era um pouco mais alta e tinha três anos a mais. Em seu cabelo desarrumado pelo

vento se escondiam umas tímidas mechas loiras. Seus olhos verdes se perdiam

debaixo de nosso guarda chuva. Era um pouco mais fina que eu. Isso não lhe

impedia de me bater em casa, quando a mãe saia. Fazíamos aquele percurso sob

nosso fiel protetor. Como eu estava em fase de crescimento, nos abraçávamos para

que não ficasse nenhum de nós à mercê da chuva. Era magnífico aquele momento.

Ali esquecíamos as constantes brigas de casa. Deixávamos de lado os diversos

momentos que ela me batia e eu corria atrás dela com o cabo de vassoura. Não

levávamos em conta os fuxicos que fazíamos um contra o outro quando José e

Maria, nossos pais, chegavam de seus trabalhos. Debaixo daquela proteção nos

perdoávamos. Era como se fosse um confessionário, mas sem precisar de palavras,

pois tudo acontecia naturalmente.

(AGUIAR, José Heber. Crônicas para um dia de domingo. 2009. Disponível em

http//www,joseheber.blogspot.com).

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ANEXO E – Texto 5

Gado de osso

As atividades na vida do homem da região da campanha, sempre foram

direcionadas e relacionadas a terra e ao gado. Os costumes, as tradições

desenvolveram no vivente do campo, o apego ao chão, aos animais domésticos. A

destreza no manejo do gado e da terra extraíram não só o sustento da família, mas

viablidade da manutenção produtiva do estabelecimento rural.

O guri da campanha, criado no campo, sempre procurara imitar os adultos

nos atos e nas tarefas.

A criatividade e a imaginação leva o guri, a vasculhar os monturos do terreiro

das casas, à procura de material para montar seu brinquedo macanudo. Ajuntava

taquara, galhos, tocos, latas, pedras e ossos de animais mortos em quantia.

No imaginário rico de conhecimento e detalhes, os pobres monturos achados

no lixo, nas mãos habilidosas do guri de campanha são montados e transformados

em brinquedos criativos. Seguindo sua imaginação e entendimento surgem

mangueiras, bretes, banheiros, galpões e casas. E os ossos em quantidade

representam o povoamento dos campos com os animais e a personalização do

sonho do guri em ser um abastado estancieiro.

Cada ossinho ou objeto representa um elemento ou um animal e na variedade

de objetos o guri fazendeiro é proprietário de “sua estância e seu gado”, pois grande

é o número de bois, touros e vacas, terneiros, cavalos, petiços, ovelhas, capões,

carneiros, cordeiros, etc.

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Assim em cada região, os ossos são objetos de representação de

determinado tipo de animal. Os símbolos variam de região para região, mas o

imaginário campeia no universo e na criatividade do guri criado no campo.

Os peões? Estes são os sabugos ou pilhas da lanterna e do rádio. E tem

carretas, carroças, charretes, arado para a condução da produção e transporte das

pessoas.

De estância montada, o guri tornou-se fazendeiro. O estancieiro precisa tocar

o estabelecimento, as atividades de sua propriedade não podem parar: há a

necessidade de “parar rodeio”, banhar o gado, vacinar, marcar, e “descornear” a

terneirada. Grandes marcações e castrações são programadas. Domam-se os

potros para montarias e amansam-se os bois de canga. É época de “esquila”,

tosquia-se o rebanho de ovinos. Precisa-se carretear o charque e tropear os bois

para o abatedor. A vida do estancieiro não é brincadeira, não pode parar nem na

imaginação do guri, e a criatividade dá asas e vai aos negócios com os vizinhos

“lindeiros”. Então surgem os arremates, os grandes negócios com o rebanho e a

realização do homem rural.

O sonho do estancieiro abastado foi desmoronando com a venda dos campos

por motivo de doença do seu pai. Deserdado pelo destino e sem recursos

financeiros para tocar os projetos de piá, os rumos e os devaneios de infância foram

substituídos por projetos palpáveis e realizáveis dentro dos parcos recursos de

menino de várzea, criado nos arredores do povoado.

Nos bancos escolares e investindo nas bruacas do conhecimento: os livros

foram os recursos alavancados para construir um patrimônio futuro. Formação

pessoal e profissional foram os bens adquiridos para tropear a vida e engordar

conhecimentos nos campos da realização do cidadão alegretense, nascido em

Jacaguá.

Fui guri de campanha. Brinquei muito com gado de osso na infância. A

lembrança de guri nascido e criado no Jacaguá não ficou só nos brinquedos

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embaixo dos arvoredos, mas, a recordação do lugar em que nasci obrigou-me a

“reculutar no peçuelo” da memória para rebuscar reminiscências nas bruacas do

esquecimento, pra resgatar e apresentar uma história verdadeiramente

documentada. Por isso já adulto indaguei, vasculhei baús antigos a procura de

documentos, papéis, fotografias referente ao “Rincão dos Costa Leite”, bisbilhotei

catálogos, códices, arquivos, caixas, maços, livros no Arquivo Histórico e Público do

Estado do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, em busca de retalhos e de história

da Sesmaria de Santo Inácio ou Isabel e da gente da localidade de Jacaguá, no

segundo distrito de Passo Novo, no município de Alegrete, no estado do Rio Grande

do Sul.

(LEITE, Demétrio. Revista Eletrônica Costa Leite. 2009)

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ANEXO F – Texto 6 Saudade doce

A chuva fria, o vento gélido, o quarto solitário, o barulho lá fora... A angústia da vida, a amarga sobrevivência, a saudade... Dos sonhos doces, da família reunida, do chimarrão... das tardes de domingo, do perfume dos laranjais, das flores dos pessegueiros... Que saudade! Das carroçadas de soja pés e vagens pra trilhadeira, virando a noite enluarada antecipando-se à chuvarada. Milho em espigas, pasto e feno como era bom ser pequeno! Na geada... fogão a lenha... waffers com schmia e nata Ah, saudade que quase mata! Pés sujos de terra da roça recém arada, da plantação verdejante crescendo... eu agora remoendo: já nada é igual... Que saudade das noites de natal! Oh, como bate no coração

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esta doce saudade esta louca vontade

de voltar... Lar que foi meu casarão escondido do mundo na beira do rio. Quem hoje fará, aquele pasto de flores amarelinhas cujo nome em português não aprendi a dizer? Morreram meus gatinhos tão fofos, tão mansinhos! Pintinhos piando de penetra na horta e no jardim. Dos patinhos que cresceram Guardei penas para mim. São elas que me aquecem Neste inverno sem fim. Os cães que eu tratava, será que ainda me reconhecerão? Oh, canários! Oh, cardeais! Tão longe ficaram seus cantos...

e naquela janela antiga, já não têm de me acordar. Ah, comidinha gostosa que ninguém faz como mamãe: aipim frito e feijão, pão de milho e requeijão. E o caldo de cana...

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Garapa em demasia, desarranjo e azia açúcar mascavo e melado...

Ah, manhãs frias de inverno!... limpando e prensando a cana, eu, de botas grandes pros pés, com um relho, os bois a tocar. Depois, ao fogo quentinho, o caldeirão de garapa, em schmia a se transformar. À tardezinha buscar o pasto para as vacas, e ordenhar. Quis o destino, um dia parti... Esta vida já não bastava, eu queria algo mais. Corri atrás de um futuro um sonho a me alimentar. Muito corri, muito conquistei... Mas, esta saudade doce, sempre por mim será querida, por mais longe que eu vá!

(URNAU, Nelsi Inês. Texto inédito)

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ANEXO G – Texto 7

Saudades

Saudades da minha infância.

Saudades das minhas tranças

Saudades dos banhos de rio

Ia colher guabiroba

E andava de pé no chão.

As tranças cortei.

O pé de guabiroba morreu.

O sapato calcei.

No rio não mais voltei.

E agora em meu coração um vazio.

Só restou da minha infância.

Aquelas boas lembranças

Das correntezas do rio.

(RIGO, Maria Santos. I Coletânea Casa do Poeta. Canoas: Tecnocópias, 2003.)

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ANEXO H – Texto 8

Pica-pau

Ah! Que saudade do pica-pau:

árvores, animais, cidades, céu, mar...

Tudo era imenso, imenso...

Meus olhos não atingiam à distância,

não abrangiam a totalidade...

meu pai me ajudava a enxergar mais longe...

conduzindo-me a ultrapassar os limites de minha visão.

Hoje, sua presença imaginária, ainda aguça meus sentidos,

minha sensibilidade, minha criatividade...

ouvir pássaros, sentir a natureza, percorrer rios...

Ah! Que saudade do pica-pau:

saudade de retornar a um outro mundo: a infância

que a todo instante em mim renasce...

é uma planta que não cessa de dar frutos,

freqüentemente corto alguns galhos...

para que renasçam de forma diferente.

Muitas vezes, desejo modificar toda a planta,

porém jamais conseguirei eliminar suas raízes;

elas sustentam o ser mulher em que me transformei.

(POZZATI, Marlise. Texto inédito)

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ANEXO I – Texto 9

Vila Harmonia

A casa 456

da Irmão Florêncio

não existe mais.

O cinamomo foi cortado.

Só restaram lembranças.

A infância foi embora,

enquanto os amigos

se mudavam.

Hoje a Vila é uma cidade,

dentro da cidade.

A Harmonia da infância mudou.

A Vila Harmonia

que a menina conhecia,

não existe mais.

A menina cresceu.

A Harmonia também cresceu.

A Vila terminou.

A Harmonia aumentou.

A menina criou a Harmonia

entre a infância

e a maturidade

(ROCHA, Neida. III Coletânea Casa do Poeta. Tecnocópias. Canoas: 2007.)

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ANEXO J – Texto 10 Recordando

Minha morada querida

Que agora está na saudade

Lá deixei muita amizade

e um pouco da minha vida

Deixei minha infância distante,

momentos de tristeza também!

Lá brinquei de sapata,

cinco Marias, boneca de pano...

Tomei banho de açude,

soltei pandorgas no campo,

Andei de perna de pau.

Hoje nada mais me resta,

a não ser ver televisão.

Só programas violentos,

só brinquedos eletrônicos,

Tudo caro e importado

Meu Deus, que saudade eu tenho

do meu cantinho, meu pago

(LEITE, Maria Luci. DUTRA, Círio. Expressões d’alma. Canoas: Tecnocópias, 2008.)

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ANEXO K – Capa da coletânea editada em 2003

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ANEXO L – Capa da coletânea editada em 2005

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ANEXO M – Capa da coletânea editada em 2007

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ANEXO N – Capa da coletânea editada em 2009

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ANEXO O – Capa do livro de Maria Luci Leite

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ANEXO P – Destaque cultural concedido pela revista Símbolo à pesquisadora

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ANEXO Q – Participação como evento da 26ª Feira do Livro de Canoas

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ANEXO R – Nota publicada pelo Diário de Canoas em 29/06/2010 sobre a exposição que foi evento da 26° Feira do Livro de Canoas

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ANEXO S – Excertos da obra Coração andarilho de Nélida Piñon

Toma-se o molde das impressões sobre a infância e outras vivências da

autora Nélida Piñon para um aporte comparativo aos textos analisados dos autores

da Casa do Poeta de Canoas. Os excertos são relativos aos processos de memória

voluntária e involuntária numa obra autoficcional.

a) a fragmentação na reconstrução do vivido

A autora começa seus textos com detalhes arrebatadores da infância.

Fragmentos da juventude são lembrados, a carreira de escritora e a aproximação de

uma idade madura com a reflexão acerta de princípios familiares que orientaram em

grande parte sua conduta de vida.

Veja parte da vida adulta:

Minha jornada é intensa. Leio e escrevo em casa, nos aviões, nos hotéis. Roubo tempo do tempo. Os livros e os jornais me trazem o mundo. Mediante estes recursos ganho alento, forneço fagulhas à mente para que reflita. (PINÕN, 2009, p. 37)

b) memória e invenção na reconstrução do texto:

Meu testemunho é impreciso. Misturo a colheita da memória com a invenção porque é tudo o que sei fazer. Os episódios que aqui registro, de teor familiar e cotidiano emergem da minha modéstia e dos meus desacertos (ibidem, p. 7).

c) a lembrança do círculo familiar e de pessoas próximas;

A seleção que faço da família, dos amigos, dos pensamentos vagos, compõe o meu horizonte pessoal. Sem dúvida, arbitrária, apresenta alto grau de subjetividade. Evito ser minuciosa para reduzir a margem de erros e

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porque as versões que guardo dos fatos narrados são em si contraditórias. (ibidem, p. 7)

d) os objetos que evocam a memória;

As roupas, as fotografias, os livros; os presentes, filmes, cartões postais

fazem parte dos objetos destacados na narrativa:

Outra vez destacavam-se nos trajes que a mãe e eu usávamos, as joaninhas de sempre. Traziam também os sapatos brancos que luziam impecáveis, limpos por ela com o giz inglês que fazia vir do Mappin, de São Paulo. Estava certa de que, com tais complementos, os retratos, além de eternizarem a infância da filha em sua memória, expressariam a vida familiar (ibidem, p.39).

e) os lugares que ficaram no registro da memória (escola, ruas, bairros, locais,

trajetos, paisagens da natureza, dos animais).

As descrições destes lugares são ricas em detalhes e fulguram entre os locais

a barca da Cantareira, a bahia de Guanabara, o colégio Santo Amaro, a casa em

Vila Isabel, a viagem de trem do Rio de Janeiro a São Lourenço com o avô Daniel.

São lugares que a menina assentou na memória.

Eis um exemplar:

Tomar a barca da Cantareira na para XV, em meio ao tumulto da multidão, constituía uma aventura para a menina da zona norte aflita por subir ao tapete mágico, pronto a conduzi-la para onde fosse. A barca similar àquela dos filmes passados no rio Mississipi, exigia, por conta da proa mal ajustada ao cais, que se pulasse com cautela para o interior da embarcação (ibidem, p.37).

f) os efeitos sensoriais e sinestésicos que liberam lembranças através de cheiros,

sabores, toques, cores, sons.

Entre cores, sons e sabores a família da autora é convocada a comparecer

em seus escritos. É no entorno dos rumores da casa que Nélida Pinõn reconstrói

suas lembranças: os sanduíches de queijo prato servidos pela mãe, o bolo de

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mármore, suco de tamarindo, as refeições com os parentes “em meio a brados e

murmúrios da família” (p.65), a autora restitui a si mesma a sensação de estar num

almoço em família regado a frango e macarronada.

“A cozinha da minha casa é a fantasia do corpo. Ali afloram tradições brasileiras que exaltam os sentidos. Em meio aos olores e sabores, rastreia-se a genealogia da nossa gente, certifica-se o grau de progresso econômico. É forçoso dizer que a vida, em torno do fogão, ganha densidade. E porque não ser assim, se a imaginação tropical, intensa e desbragada, emerge das panelas de feijoada, da sensualidade que apura o paladar?” (ibidem, p.63)

Guiados por esses mediadores cruzou-se as variáveis com as leituras dos

autores analisados para elencar, em parte, uma modelagem para o estudo das

escritas de si baseados em memórias dos tempos da infância.

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ANEXO T – Comentário de Eunice Machado Gazzo sobre a obra Pequenas memórias de José Saramago

De onde saiu J. Saramago? De um povoado simples chamado Azinhaga. Vindo de

uma família pobre, sofrida, da relação de poucos afetos entre o pai e a mãe. Da mãe

lhe restou a lembrança frágil, fazendo sopa. Tentou criar de si um autorretrato já que

não possuía nenhuma imagem ou fotografia que fosse para lembrar as feições do

menino que fora. Então, resolveu escrever suas memórias, para que as lembranças

não se esvaíssem, mas permanecessem registradas para nos fazer lembrar de

quem ele havia sido. Lembrou com saudade da pequena escola chamada Gil

Vicente, quando ele ainda ignorava quem era o grande dramaturgo para o teatro

português. Recordou os arroubos de menino-moço que se enamorou pela primeira

vez de uma menina cuja alcunha era “bacalhau”. Rememorou com saudades dos

avós, dos primos e tios. Não eram tão íntimos, mas eram importantes na formação

do menino que sonhava com um futuro melhor, longe da escassez. Era enamorado

das paisagens que o envolvia, dos morros, das pequenas ruelas, das igrejas, dos

campanários, dos olivais. Os olivais acompanharam a vida de Saramago, tanto que

os cultivou ao redor de um mundo particular que o adulto emoldurou para sempre na

memória.

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ANEXO U – Troféu Giacomazzi recebido em dezembro/2010 concedido à pesquisadora pela Revista Símbolo e Casa do Poeta de Canoas

Troféu Giacomazzi

Fonte: Samuel Gazzo, 2010

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APÊNDICES APÊNDICE A – Autorizações para publicação

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APÊNDICE B – Autorizações para publicação

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APÊNDICE C – Autorizações para publicação

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APÊNDICE D – Autorizações para publicação

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APÊNDICE E – Autorizações para publicação