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QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO? i Autora: Flávia Ferreira Pires 1. Introdução Este artigo é resultado de uma pesquisa de campo de quase catorze meses (2000-2005) que culminou com a redação da minha tese de doutorado. O trabalho de campo foi feito na cidade de Catingueira - localizada no semi-árido nordestino, no estado da Paraíba. A cidade conta com uma população de aproximadamente 5.000 habitantes, distribuídos entre as zonas rural e urbana. Naquela cidade a religiosidade sempre se mostrou um tema pungente, cujas conexões extrapolam a esferas do “religioso”. Minha dissertação de mestrado (PIRES 2003), por exemplo, trata da Festa de São Sebastião, padroeiro da cidade, momento no qual a cidade recebe turistas e se reinventa em tradições e efervescência social sob as benções do santo e da igreja católicos. Como os chamados “crentes” e espíritas Kardecistas estão presentes nesta festa religiosa, a princípio católica, é um dos desdobramentos da dissertação. No entanto, na tese de doutorado, trabalhei com crianças dos três aos treze anos de idade, adultos e idosos, na tentativa de compor um quadro, tão completo quanto possível, sobre o entendimento e a experiência religiosa naquela comunidade. Ao fazê-lo, deparei- me com a existência de seres chamados “mal-assombros” que podem ser, em alguma medida, intitulados de religiosos, uma vez que mantém relações privilegiadas com o chamado o “outro mundo”, o mundo após a morte. Em poucas palavras, para os adultos e os idosos estes mal- assombros são almas de pessoas falecidas. Para as crianças, por sua vez, os mal-assombros são uma larga gama de seres e acontecimentos. Interessante notar que o medo dos mal-assombros, altamente enfatizado pelos adultos e idosos, não o é pelas crianças. Isto se explica pelo fato de que para os adultos e, principalmente, para os idosos todos os mal-assombros são temíveis uma vez que existe uma relação, a princípio inquestionável, entre eles e o diabo. Para as crianças as coisas não se passam desta maneira. O mal-assombro assusta menos e quando o faz, a razão não pode ser colocada na sua associação com nenhuma entidade religiosa. Crescer em Catingueira implica, dentre outros, em entender que o mal-assombro é assustador pela sua associação ao demônio. Ao

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QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?i

Autora: Flávia Ferreira Pires

1. Introdução

Este artigo é resultado de uma pesquisa de campo de quase catorze meses (2000-2005) que

culminou com a redação da minha tese de doutorado. O trabalho de campo foi feito na cidade de

Catingueira - localizada no semi-árido nordestino, no estado da Paraíba. A cidade conta com uma

população de aproximadamente 5.000 habitantes, distribuídos entre as zonas rural e urbana.

Naquela cidade a religiosidade sempre se mostrou um tema pungente, cujas conexões extrapolam a

esferas do “religioso”. Minha dissertação de mestrado (PIRES 2003), por exemplo, trata da Festa de

São Sebastião, padroeiro da cidade, momento no qual a cidade recebe turistas e se reinventa em

tradições e efervescência social sob as benções do santo e da igreja católicos. Como os chamados

“crentes” e espíritas Kardecistas estão presentes nesta festa religiosa, a princípio católica, é um dos

desdobramentos da dissertação. No entanto, na tese de doutorado, trabalhei com crianças dos três

aos treze anos de idade, adultos e idosos, na tentativa de compor um quadro, tão completo quanto

possível, sobre o entendimento e a experiência religiosa naquela comunidade. Ao fazê-lo, deparei-

me com a existência de seres chamados “mal-assombros” que podem ser, em alguma medida,

intitulados de religiosos, uma vez que mantém relações privilegiadas com o chamado o “outro

mundo”, o mundo após a morte. Em poucas palavras, para os adultos e os idosos estes mal-

assombros são almas de pessoas falecidas. Para as crianças, por sua vez, os mal-assombros são uma

larga gama de seres e acontecimentos. Interessante notar que o medo dos mal-assombros, altamente

enfatizado pelos adultos e idosos, não o é pelas crianças. Isto se explica pelo fato de que para os

adultos e, principalmente, para os idosos todos os mal-assombros são temíveis uma vez que existe

uma relação, a princípio inquestionável, entre eles e o diabo. Para as crianças as coisas não se

passam desta maneira. O mal-assombro assusta menos e quando o faz, a razão não pode ser

colocada na sua associação com nenhuma entidade religiosa. Crescer em Catingueira implica,

dentre outros, em entender que o mal-assombro é assustador pela sua associação ao demônio. Ao

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mesmo tempo, a pessoa vai se tornando católico ou evangélico ou espírita de acordo com as

experiências que leva a cabo no decorrer deste processo. É interessante ressaltar a importância do

parentesco na definição dos mal-assombros e as diferenças na percepção dos mal-assombros de

acordo com as diferentes religiões existentes na cidade. Estes temas serão aprofundados no decorrer

deste texto.

Antes de começar o artigo, gostaria de tecer alguns comentários metodológicos, que embora

rápidos, se fazem essenciais. Durante o trabalho de campo, as crianças eram incentivadas a

desenhar e escrever sobre temas livres e sobre temas propostos pela pesquisadora. Foi feito um

exercício metodológico com crianças de três a treze anos de idade com dois temas específicos (“O

mal-assombro” e “A minha religião”) nas duas escolas da cidade. Foram colhidos pelo menos vinte

desenhos e redações de cada faixa etária citada em relação a cada um destes temas. Neste artigo

trataremos, primordialmente, dos trezentos e catorze desenhos e redações produzidos sob o título

“O mal-assombro”. Após a interpretação dos mesmos pela criança, os materiais de pesquisa foram

classificados pela pesquisadora que, depois de analisá-los comparativamente, confeccionou alguns

gráficos como os que são usados neste artigoii.

2. Sobre a definição do mal-assombro

Para discutir os mal-assombros, é preciso, primeiramente, defini-los. Para um indivíduo

adulto, mal-assombro, em poucas palavras é a alma de uma pessoa que faleceu e que, por algum

motivo, estabelece contato com os vivos. Grande parte dos mal-assombros são almas que não

encontraram seu rumo depois da morte. Algumas foram vítimas de mortes trágicas e, dado o caráter

surpresa do seu falecimento, ainda não tiveram tempo para se acostumarem com a sua nova

condição. Estão perdidas no mundo dos mortos. Neste caso, as almas estão em situação de risco.

Estas almas são consideradas presas fáceis para o Cãoiii. O mal pode facilmente apoderar-se delas e

fazê-las sua companheira nas suas artimanhas. Embora as almas com tendência para a maldade

sejam as primeiras a ser recrutadas pelo Cão para agirem como mal-assombro, almas boas também

podem ser usadas pelo Mal como mal-assombro, principalmente quando se encontram perdidasiv.

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O que parece estar em jogo é um processo de diabolização ou divinização dos mal-

assombros – que seguem padrões diferentes se compararmos cada ramo do cristianismo presente na

cidade. Para os crentes, indubitavelmente, os mal-assombros são obra do Diabo. Se a alma de um

familiar falecido lhe aparece, o crente deve duvidar da aparição. Se a alma lhe pede qualquer favor,

o crente não lhe deve obedecer. Para o crente, a aparição de uma alma é um Demônio transfigurado

naquela pessoa querida, com o objetivo de fazer crer aos seus familiares, para enganá-los, para

dissuadi-los a fazer o que a alma pede. Ou seja, obedecer ao Demônio. Interessante notar que,

dentre os pedidos das almas, os mais comuns são missas e “rezas” ─ curiosamente, práticas

católicas. O fato das almas pedirem tais oferendas é uma prova de que a aparição não é do bem,

porque tais práticas “não são de Deus”, diriam eles. Outro motivo refuta a possibilidade da vinda da

alma de um morto à terra: segundo os evangélicos da Assembléia de Deus sediada em Catingueira

com os quais conversei, uma pessoa que morre fica dormindo esperando o julgamento final. Isto

prova que a aparição da alma do familiar não é o próprio, porque este deveria estar dormindo mas,

sim, o Diabo – que usa sua aparência física para fins obscuros. Além disso, muitos crentes apóiam-

se na parábola bíblica do livro de Lucas, capítulo 16, versículos 19 a 31, para contraporem-se à

possibilidade de visitas do além–túmulo. Na parábola, o mau rico, depois de morto, pede ao Pai

Abraão que mande Lázaro avisar aos seus irmãos dos males do inferno, enquanto eles ainda estão

vivos. Pai Abraão nega, dizendo que os que estão vivos têm os profetas para os orientarem. Com

isso, segundo os crentes, fica provado que os mortos não podem se comunicar com os vivosv.

Reconhece-se imediatamente, o seu pacto com o Demônio, quando as almas não têm outro

objetivo senão assombrar. Este estaria elaborando uma armadilha para desestabilizar

emocionalmente o crente que tem a visão do mal-assombro. Em uma entrevista, uma fiel da

Assembléia de Deus, de quarenta anos de idade, casada, mãe de três filhos, referiu-se ao fato como

uma tentativa do Demônio de fazer-lhe cair em depressão.

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NP.: “Uma vez… eu… (conversa paralela) uma vez tinha uma festa aí ao lado do coreto. Se fosse

uma pessoa humana andando dentro de casa você num ouvia. Uma pessoa humana andando… num

ouvia não. Eu tava naquele sono, quando a pessoa quer abrir o olho e não consegue. Aí eu ouvi

aquele arrastado pro meu lado, aquele arrastado, pro meu lado, eu digo, ‘oxente’. (F: E tinha festa

no coreto?) Era um barulho dentro de casa se uma pessoa fosse andando dentro de casa você não

conseguia ouvir uma pessoa pisando dentro de casa. Inclusive, o arrastado, se você vê, o arrastado

era “P”. Mas porque ele [o Diabo] se aproveitou que eu estava muito assim... eu cuidei muito dela

[quando “P”. estava para morrer], eu fiquei muito assim… a gente sempre fica, né, com... Mas o

jeito que ele veio foi pra me assustar, o jeito que ele veio. Pra eu me impressionar que eu tava

vendo “P”. e depois eu caí numa depressão, num é? E ele aproveitar! E ele achar uma brechinha,

aí ele entra mesmo. Aquele arrastado atrás. Eu naquele sono assim, eu queria abrir o olho e não

conseguia. Aí ela foi chegando perto de mim assim me deu um assopro tão grande no meu ouvido!

Naquele sono assim eu disse: ‘oxente, “P”. já veio pra gente fazer caminhada?’ Mas isso era bem

12 horas da noite. Ela deu aquele assopro no meio ouvido, eu me assustei.

F: E ela já tinha morrido?

NP.: Já. Aí eu olhei assim e não vi nada. ‘Oxente, o que foi isso?’ Eu disse: ‘tá repreendido, tá

repreendido, Satanás’. Aí eu me levantei, fui na cozinha, tomei água, só foi me deitar eu adormeci.

Só foi repreender… você tá pensando que eu tenho medo? Meu Deus é poderoso e não me deixa

temer”.

Para os católicos, por sua vez, o mal-assombro pode ser realmente a alma de uma pessoa

falecida ─ muitas vezes, um parente. Neste caso, a alma do parente morto interfere – para o bem ou

para o mal – na vida cotidiana da família que permanece viva. Quando uma alma interfere

positivamente no dia-a-dia dos vivos, reconhece-se que ela já se encontrou no mundo dos mortos.

Sua ação, neste caso, é intencional. Quando a alma de um parente interfere negativamente na vida

dos familiares ela é tida como um espírito ignorante das regras do além-túmulo. Considera-se que

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esta alma encontra-se perdida. Suas ações têm conseqüências nefastas, mas ela não tem controle

sobre as mesmas porque ignora como se relacionar de maneira saudável com os vivos. Reconhece-

se que este tipo de alma está em sofrimento e necessita de ajuda. A ajuda pode vir dos vivos. Eles

devem parar de chorar pelo morto para que ele possa seguir seu caminho e, ao mesmo tempo,

oferecer-lhe missas e orações. Os espíritas também mandam celebrar missa na intenção da alma de

parentes falecidos. O mesmo não ocorre com os crentes, que concebem as almas de modo bastante

díspar em relação aos católicos e espíritas.

Para os católicos e os espíritas, ao contrário dos evangélicos, os mal-assombros podem ser

obra de Deus quando, por exemplo, uma alma aparece em sonho para indicar o lugar onde enterrou

uma botija de ouro. Entende-se que Deus permitiu que ela viesse em sonho para dar a riqueza a

algum familiar. Neste caso, trata-se de uma concessão divina, uma vez que a botija enterrada pode

impedir que o seu dono entre no céu, atormentado com o desperdiço da fortuna de toda a sua vida.

Deus, na sua infinita bondade, concede que a alma venha à terra fazer o que deveria ter feito em

vida: dar o dinheiro a alguém ─ que, de outra maneira, ficaria para sempre perdido. Assim, neste

caso, a alma que aparece em sonho é um enviado de Deus, que trará o bem para quem sonha com

ela (ficará rico se seguir seu conselho) e, ao mesmo tempo, para ela própria (livrar-se-á do que o

impede de entrar no reino dos céus).

Também se entende como uma permissão divina se a alma de uma pessoa querida aparece

para dar uma notícia. Há relatos de pessoas que tomam conhecimento da morte de um familiar

próximo através da alma deste mesmo que vem lhe avisar. Muitas vezes, a alma não avisa sobre a

sua morte, mas apenas profere palavras de conforto a fim de preparar seu ente querido para a triste

notícia que está por vir. O vidente, sem entender o que se passa, indaga ao familiar morto quanto à

sua repentina aparição, sem dar-se conta de que se trata apenas da sua alma. Uma mulher me contou

que a alma da sua mãe veio lhe avisar da sua morte (da mãe). Era bem de manhãzinha, e quando ela

foi lá ao fundo do “muro” (quintal) “buscar não sei o que”, viu a sua mãe sentada em um

tamboretinho. Ela se espantou e disse: “Oxê mãinha, tão cedo a senhora aqui na minha casa! Por

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onde foi que a senhora entrou que eu não vi?”. Outra pessoa contou-me que chegou até a oferecer

comida para a alma – que, por sua vez, não aceitou, dizendo que estava com pressa e não podia

demorar-se muito. Muitas vezes, o vidente só se dá conta da morte do familiar quando chega a

notícia do seu falecimento por outras vias. Há, também, outras almas que aparecem para dar

conselhos aos vivos ou trazer conforto em situações difíceis. Além disso, se há alguma pendência

que impeça aquela alma de purificar-se o necessário para entrar no reino de céus ─ por exemplo,

uma mágoa não resolvida ─, Deus pode permitir que ela venha à terra a fim de resolver a questão.

Em um momento de necessidade, uma alma também pode ajudar a um vivo espiritualmente (dando

um conselho ou sugestão) e, até mesmo, materialmente. Pode acontecer também de Deus permitir

que a alma venha à terra somente para consolar a sua família querida e pedir que parem de chorar

por ela, assegurando que se encontra em um bom lugar. Para os católicos e espíritas, em todos esses

casos as almas são associadas ao bem. Parece-me que a aparição dos mal-assombros pode ser

pensada como uma concessão divina em função dos vivos ou dos mortos pelos católicos e espíritas.

Mas para os crentes, diferentemente, não há alma que venha fazer o bem, porque todas elas são

enviadas pelo Demônio. Mesmo que ela venha anunciando uma boa notícia, o bem vai reverter-se

em mal posteriormente. Por exemplo, no caso de uma botija de ouro, a riqueza vai ser amaldiçoada,

trará discórdia na família, será causa de brigas e desentendimentos vi.

Há, ainda, almas que vêem buscar auxílio indireto entre os vivos. Por não conhecerem outro

caminho senão aquele, elas acabam tomando o caminho da casa onde moravam quando vivos. Neste

caso, elas são comumente vistas executando tarefas cotidianas, como se ainda vivessem naquela

casa. Por exemplo, tomando café no seu lugar preferido á mesa ou costurando na sua máquina de

costura. Muitas vezes, as almas não têm interesse em assombrar. Apenas querem viver ali, como

viviam no passado vii. O problema é que não tarda a algum vivo percebê-las de alguma maneira ─

mais comumente pela visão ou por sonho. Veja o relato escrito por uma adolescente de quinze anos

de idade (FFF. 14. M) viii: “Um certo dia minha vó me contou que ela estava vindo do Rio para

Catingueira e que na metade da viagem ela passou pensando em fantasma. Ao chegar de viagem

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ela foi se deitar para descansar e passou parte do sono sonhando com fantasmas. Às três horas ela

se levanta e diz: “ainda bem que foi um sonho”. Quando ela ouve o chamado “Zumira, Zumira”!

Era a voz do falecido marido. Um ano depois se levantou para fazer café quando terminou, foi

buscar a caneca e quando voltou viu com seus próprios olhos o seu marido falecido tomando café.

Na hora ela desmaiou.[...].” Muitas vezes, no intuito de se divertir à custa do medo que provocam

nos vivos, algumas almas gostam de fazer barulhos, chamar pelo nome das pessoas, ou mover as

coisas de lugar. Este tipo de mal-assombro peralta é geralmente reconhecido como a alma de uma

criança que faleceu crescida o bastante para não poder ser considerada um “anjinho” e, ao mesmo

tempo, pequena o bastante para não poder ser corrompida pelo mal ix.

Se, no entanto, a intenção da alma é fazer o mal através do assombramento, reconhecem-se,

neste caso, segundo todas as religiões em questão, que este mal-assombro não é um enviado de

Deus. Isso ocorre, por exemplo, quando os habitantes de uma casa são repetidamente acordados

com barulhos estranhos, quando objetos mudam de lugar sem explicação, ou quando a TV ou o

rádio ligam sozinhos, causando medo demasiado. Igualmente, quando uma pessoa tem pesadelos

perturbadores e visões ameaçadoras, ou quando, sem outros motivos aparentes, torna-se agressiva,

doente, cai em depressão ou, ainda, quando em sua vida tudo parece dar errado, mesmo quando ela

está levando uma vida de acordo com o padrão socialmente aceitável. Entende-se que lugar de

morto não é em casa de vivos ─ apesar disso, muitos deles parecem gostar de viver junto da família,

no lugar onde moravam antes da sua morte. No caso em que um parente morto esteja

inoportunamente freqüentando a sua casa, os vivos devem, geralmente, rezar por ele, acender velas,

mandar celebrar missas x, visitar e cuidar do seu túmulo, ou deixar de pensar excessivamente nele.

Em casos mais extremos, pode-se pedir ao padre, pastor ou presidente do Centro espírita para ir

àquela casa a fim de benzê-la ou fazer uma oração. Pode-se também recorrer ao exorcismo, em

casos extremos. No entanto, esta é uma possibilidade remota, que parece não ter precedentes na

cidade. É interessante constatar que, como será visto adiante, algumas pessoas pedem a Deus a

oportunidade de encontrar-se com determinadas almas. Por hora, parece-me que os mal-assombros

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podem ora ser tidos como bons, ora como maus; ora associados a Deus, ora associados ao Demônio.

O mal-assombro é, então, uma entidade ambígua, que vai ser definida de acordo com as suas

relações ─ que, por sua vez, definem a sua atuação no mundo.

Como afirmei, muito comumente os mal-assombros “aparecem” para os vivos através dos

sonhos e dos sentidos. Pode-se ver, sentir, cheirar e ouvir os mal-assombros. Todavia, parece ser a

visão o mais importante dos sentidos no contato entre os vivos e os mortos. Os mal-assombros se

dão a ver principalmente em três lugares diferentes, cujos primeiros dois chamarei de “não-cidade”

─ dado que, em muitas estórias ouvidas, os fantasmas são vistos “indo para a cidade”,

“assombrando a cidade”, “invadindo a cidade”. São eles: 1) No cemitério, onde há as mais altas

taxas de aparição de mal-assombroxi constatadas na pesquisa. 2) Na natureza: em lugares ermos,

afastados das cidades, como os sítios e as florestas/matas. 3) Os mal-assombros podem aparecer

também nas casas mal-assombradas. Estas podem ser divididas em: a) casas velhas abandonadas,

algumas vezes afastadas das cidades e, b) casas onde moram os vivos. Os mal-assombros podem

fazer parte da família que ali habita ou habitava ─ mas não necessariamente. Em princípio, é

possível afirmar que o habitat dos mal-assombros é o longe, o campo, o sítio, o cemitério (que

também é, geralmente, distante da cidade), e as casas abandonadas pelos vivos. Quando

permanecem distante dos vivos, estão em paz. Eles e os vivos. O problema todo instaura-se quando

eles vêem habitar o mundo dos vivos e adentram as suas casas, tomando posse do que não mais lhes

diz respeito, mas que eles parecem ter dificuldade em compreender. Da mesma forma, quando os

mal-assombros habitam as casas abandonadas, eles parecem não incomodar demasiadamente os

vivos; todavia, começam a causar problema quando vêem habitar as casas onde os vivos moram.

Assim, parece haver uma forma de organizar o espaço dos vivos e dos mortos: os vivos ocupam o

espaço que pode ser nomeado: a casa, a cidade, o dia; enquanto os mortos ocupam os espaços

opostos aos dos vivos, como: a não-cidade, o distante, a noite enquanto ausência de luz e claridade.

A sugestão é a de que, através dos mal-assombros, os catingueirenses parecem elaborar uma

etiqueta que regula os modos de relação entre os vivos e os mortos.

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Entretanto, aos mal-assombros parece ser sempre reconhecido algum grau de humanidade.

Apesar de habitarem preferencialmente lugares distantes ou desabitados por humanos, o que

chamei de não-cidade (cemitérios, natureza e algumas casas abandonadas), ao mesmo tempo, os

mal-assombros também habitam as casas onde moram os vivos, preferencialmente membros da sua

própria família. Junte-se a este fato a evidência de que os mal-assombros são freqüentemente

representados com alguma característica humana. Note que todos os mal-assombros desenhados

pelas crianças têm pelo menos os olhos – sendo que a maioria tem, além dos olhos, a boca. Muitos

outros têm o rosto humano completo, inclusive o nariz. Outros também têm os membros superiores

e inferiores. Alguns têm as mãos, que usam para segurar armas contra os vivos ou para assustar.

Mas há um detalhe nos desenhos que me chamou a atenção: muitos mal-assombros também têm

umbigos. Ademais, alguns mal-assombros são desenhados exatamente como seres humanos, com a

mesma forma corporal de quando eram vivos (vide desenho 1 no final deste artigo). Sem falar que

aos próprios mal-assombros são imputados traços de personalidade, entre eles legais, amigos,

alegres, malvados, “prezepeiros” (travessos), horríveis, horripilantes, feios... Observe o Gráfico

Um. Nele, estão ressaltadas as características físicas dos mal-assombros segundo os

Catingueirenses de três aos quinze anos de idade, além de outros elementos destacados xii.

Detivemo-nos até o presente momento a tentar compreender etnograficamente a ontologia

dos mal-assombros e a sua relação com os vivos, o que poderíamos chamar de etiqueta de

relacionamento. É preciso deixar claro o que até então parece ter sido apenas levemente sugerido:

os vivos e os mortos parecem estabelecer entre si uma relação ambígua. Em parte, os mal-

assombros poderiam ser pensados como o ‘outro’ dos vivos. Eles habitam preferencialmente a

natureza em oposição às cidades, e quando querem assustar, vão para as cidades, onde moram as

pessoas. Além de habitar os sítios ou a natureza, eles habitam os cemitérios. Da mesma forma, são

quase sempre feios e, algumas vezes, têm características animalescas que os distinguem dos

humanos vivos. Mas, por outro lado, os mal-assombros são representados como próximos dos vivos

ou seu ‘igual’. Curiosamente, mesmo que “horríveis”, todos os mal-assombros têm traços humanos.

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Como observei acima, todos os mal-assombros têm, pelo menos, um traço do rosto humano, além

das outras características já elencadas previamente. Da mesma forma, a moradia preferencial dos

mal-assombros é, além dos campos e do cemitério, as casas. Estas casas podem ser abandonadas,

mas também podem ser casas onde moram os vivos. Observe os Gráficos Dois e Três para dar-se

conta da popularidade das casas nos desenhos das crianças. É preciso mencionar que essas são

populares em todos os temas de desenho propostos durante o trabalho de campo, e também nos

desenhos livres. Contudo, o elevado número de casas não se explica apenas pelo fato de que são

simples de se desenhar, sendo um dos primeiros desenhos que se aprende a fazer. Ao contrário,

aposto que as casas desenhadas podem ser analisadas como parte importante da ontologia dos

assombramentos, enfatizando o papel do parentesco. É interessante constatar que, recorrentemente,

essas almas aparecem nas cozinhas das casas. A cozinha é considerada, como afirmei em Pires

2007: 42, um dos ambientes mais íntimos e intrinsecamente ‘familiares’ de uma residência. Não é

sem motivo que a cozinha está localizada em direção oposta à sala, como o cômodo mais distante

da rua xiii.

O que estou querendo chamar a atenção é que, além de serem desenhados com

características humanas, os mal-assombros também residem em casas, como os humanos vivos.

Destarte, os mal-assombros têm agência humana: eles comem, dormem, conversam, vivem entre si

em famílias de mal-assombros. Além disso, existem estórias de mal-assombros, nas quais o marido

morto ciumento vem tomar satisfações com o novo companheiro da viúva. Ao mesmo tempo, ouvi

estórias de almas de esposas que ajudaram o marido viúvo a encontrar uma nova parceira para a

vida conjugal. Isso parece alertar-nos para a relação dos mal-assombros com os laços de parentesco.

No desenho de D. 9. M vemos desenhado “Gasparzinho e seus filhos” passeando pela noite (vide

desenho 2 no final do artigo). Keesing (1982: 40) parece concordar comigo, quando afirma a

relação próxima entre os desejos dos vivos e dos mortos no caso dos Kwaio: “Ancestors, as spirits,

value what humans value in life” xiv. Parece que o que torna os mal-assombros distintos dos

humanos é (apenas) o fato de estarem mortos. Poderíamos, então, indagar-nos até que ponto a morte

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cessa a humanidade ou apenas a transforma, sendo os mal-assombros, assim, reconhecidamente tão

humanos quanto os vivos. O problema é que o mundo onde os mal-assombros moravam (e ainda

teimam em habitar), não lhes reconhece mais humanidade da forma por eles requerida. Se os vivos

reconhecessem humanidade aos mortos, nenhuma destas visões seria alardeada como anormal,

coisa de outro mundo, medonha, terrível. Para os vivos, os mortos são os outros; ao contrário, para

os mortos, os vivos são seus iguais. Para os mortos, a linha que os separa dos vivos é tênue, uma

vez que todos os vivos serão mortos e que eles há pouco ainda eram vivos; no entanto, para os

vivos, a morte é um mistério, o grande “outro” xv.

A título de conclusão provisória, parece verdadeiro afirmar que os mal-assombros que

habitam as casas onde moravam quando vivos são almas cujos corpos faleceram há pouco tempo.

Em outras palavras, são almas que ainda não foram esquecidas ─ ao passo que as almas que

habitam a não-cidade são as almas indistintas, às quais ninguém reclama parentesco, para as quais

ninguém reza ou acende velas xvi. Entre a não-cidade e as casas onde moram os vivos, no meio

termo, existem as casas abandonadas (pelos vivos). As almas que habitam este espaço estão em

processo de esquecimento, mas podem ter seu passado rastreado quando se rememora a estória da

família que ali outrora habitava. De acordo com esta classificação, pode-se ter uma idéia de quão

temível é o mal-assombro em questão. Os mais horríveis e maldosos são os mal-assombros dos

cemitérios e da natureza, ou seja, da não-cidade. Depois, figuram os mal-assombros que habitam as

casas abandonadas e, por fim, temos os mal-assombros que habitam as casas dos vivos e fazem

parte da família. Aos últimos, não se deve temer e, sim, auxiliar ou receber auxílio.

Alternativamente, algumas pessoas expressam desejo de se encontrar com estes mal-assombros,

como anunciei anteriormente. Muitas pessoas almejam ter uma visão ou um sonho com um ente

querido falecido, e sentem-se frustradas porque não “têm o merecimento” de ver aquela alma.

Acredita-se que não é a qualquer pessoa que as almas podem aparecer ─ especialmente as almas

queridas. Neste caso, ter a visão de uma alma querida é tido como uma concessão divina que segue

as regras do merecimento pessoal, a respeito da qual a pessoa não pode fazer muito, a não ser seguir

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sendo uma pessoa boa e aguardar resignadamente a vontade de Deus. Ver uma alma fatalmente

torna-se assunto para a vida toda, principalmente se a alma faz parte da família. A visão é, muitas

vezes, resignificada com os passar dos anos, fazendo parte do rol de estórias dignas de se contar

para as próximas gerações.

3. Cristianização das crianças e dos mal-assombros

Até o momento, concentramo-nos especialmente no ponto de vista adulto para entender os

mal-assombros; gostaria, agora, de discutir um pouco a perspectiva infantil. As crianças concebem

um número muito mais variado de mal-assombros comparativamente aos adultos. Para as crianças,

o Vampiro, a Bruxa, o Homem do Saco, o Papa-figo, a Rasga-mortalha, a Maria Fulozinha e outros

seres são mal-assombros. Além destes, podemos citar ainda o Gasparzinho (o Fantasminha

Camarada), a Cabeça; diversos personagens da TV, como a bruxa Keka, os robôs, o Supapo, assim

como acontecimentos inexplicáveis como uma zoada estranha, um vulto, uma bandeira branca, um

pano branco, um peso na garupa da bicicleta, um clarão, uma sombra fria, uma gargalhada, a TV

mudando de canal e volume, uma tocha de fogo, um assovio, uma voz estranha, uma réstia na

parede, uma mão branca cheia de pêlos. Sem falar no Bicho Papão, no Lobisomem, na Mulher de

Branco, no Espírito de Luz, no Zumbi, na Cuca, no Esqueleto, na Mula sem cabeça, no Diabo, na

Morte e nos animais como aranha caranguejeira, morcego, barata, cobra, cobra de cinco cabeças,

rasga-mortalha, jacaré. Mal-assombro para uma criança também pode ser uma casa, um castelo, a

casa da bruxa e até mesmo um pé de juá ou de oiticica. E, por último, temos também os animais

encantados, que podem ser considerados como mal-assombros pelas crianças, como o Carneiro de

Ouro, a Gia Encantada do Olho D´água, a Rasga-mortalha xvii. Como escreveu um menino de onze

anos de idade em uma redação sobre mal-assombro: “O malassombro é uma coisa que envolve

muitas coisas, fantasmas, bruxas, vampiros, etc.” (J.P.F. 11. M). O mesmo não ocorre com os

adultos que, como vimos anteriormente, apenas reconhecem a possibilidade da existência de mal-

assombro nas almas dos mortos. (Refira-se a Pires 2007 para uma descrição detalhada dos mal-

assombros citados).

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Os adultos descartam a possibilidade da existência de quase todos os mal-assombros acima

citados e riem daqueles que acreditam nestas coisas, que eles consideram absurdas e infantis. Para

os adultos, ao contrário das crianças, esses seres são estórias para fazer medo às crianças. Segundo

eles, apenas os mal-assombros-almas parecem ser passíveis de existência. Na entrevista com NP.,

citada anteriormente, o tom da conversa era respeitoso e sério enquanto conversávamos sobre as

almas dos mortos e a possibilidade de assombramentos. Mas quando perguntei sobre a Maria

Fulozinha e outros seres como o Vampiro e o Zumbi, NP. assumiu um tom jocoso. Ela ria das

minhas perguntas, refutava os fenômenos a eles relacionados e negava insistentemente qualquer

possibilidade de realidade àqueles seres. De modo geral, essa é atitude dos adultos quando o tema

da conversa são os mal-assombros ─ digo, os mal-assombros que não sejam as almas. Para os

adultos apenas as almas são de verdade. Quanto aos outros mal-assombros, NP. afirma: “Isso não

existe! Eu acho que isso é tudo pra fazer medo as crianças” xviii. Observa-se, com o passar dos anos,

do ponto de vista do indivíduo, que aquilo que poderia ser considerado um mal-assombro vai se

restringindo. O que parece ocorrer é a redução do número das entidades plausíveis de serem

consideradas mal-assombro. Ou seja, à medida que a criança cresce, os mal-assombros vão sendo

reduzidos à alma dos mortos. Todos aqueles mal-assombros que faziam sentido quando se era

criança são destituídos do imaginário adulto. Mas é essencial notar que os mal-assombros nunca

deixam de existir xix.

Assim, em se tratando dos mal-assombros, o processo de tornar-se adulto implica em tornar

religiosos elementos antes tidos como ordinários. Implica em tornar religioso o que antes não o era;

em explicar, segundo a religião, por exemplo, acontecimentos inexplicáveis ─ como a existência de

mal-assombro. Os adultos lançam mão de explicações religiosas para entender o aparecimento dos

mal-assombros ─ o que não o fazem as crianças. Que tipo de explicação religiosa é essa? Os adultos

explicam os mal-assombros através de: 1) da sobrevida da alma após a morte do corpo, 2) através

da conceitualização do mal e do bem e, finalmente, 3) através das figuras de Deus e do Diabo.

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Uma das hipóteses deste trabalho é que, com o passar dos anos, as crianças cristianizam os

próprios mal-assombros através da restrição dos mesmos á alma dos mortos. Nos desenhos

produzidos, vimos que, até por volta dos sete anos de idade, mal-assombro não é necessariamente

alma, nem fantasma xx. Por volta desta idade, a criança ainda não parece dialogar com o conceito de

alma versus corpo. Em um desenho de uma criança com nove anos de idade, observamos uma alma

saindo de um corpo defunto quando colocado dentro da sua catacumba, donde parece possível

afirmar a diferenciação da alma e do corpo, segundo esta criança (R. 9. M. 19). A idéia da

existência da alma e da sua sobrevida após a morte do corpo é um conceito que leva algum tempo

para ser assimilado xxi ─ assim como os conceitos de bem e mal, Demônio e Deus. Interessante

notar que o Diabo foi desenhado como mal-assombro pelas crianças, mas apenas a partir dos dez

anos de idade. Os adultos associam os mal-assombros ao mal ou ao bem, como agentes do Demônio

ou de Deus. Para fazer essas associações, é necessário primeiro reconhecer a Deus e ao Demônio e

aos princípios do bem e do mal a eles relacionados. O bem e o mal, Deus e o Demônio fazem parte

do espírito cristão que predomina no universo religioso da Catingueira. Desta forma, é necessário

introjetar o espírito cristão para se esquecer de todos os outros mal-assombros infantis, restringir os

mal-assombros às almas e associá-las ao Demônio ou a Deus. Em Catingueira, nenhuma pessoa

“falha” ao restringir os mal-assombros às entidades religiosas cristãs quando se torna um adulto.

Nesse sentido, o processo de tornar-se adulto parece implicar em cristianização, na medida em que

os mal-assombros, antes entidades não-religiosas, passam a ser definidas em relação a conceitos

cristãos.

Em se tratando dos mal-assombros, este seria o limiar entre as crianças e os adultos: as

primeiras tornam-se adultas no momento em que passam a cristianizar os mal-assombros. A

cristianização dos mal-assombros coincide com a constatação de que os outros mal-assombros

(citados anteriormente) não são de fato reais e, por isso, não apresentam perigo. Eles são

reconhecidos como estória inventada pelos adultos para assustar as crianças, cuja existência só pode

ser afirmada na mente fantasiosa das crianças. Somente as crianças, porque são inocentes − isto é,

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não conhecem o mal −, acreditam nesse tipo de mal-assombro, como o Esqueleto. Para acreditar

que ele existe e atua no mundo dos vivos é necessário não ter ainda bem distinto o que é o mal e o

que é o bem. É necessário, em outras palavras, ainda não ser cristão. Além disso, pensam os adultos

que para acreditar, por exemplo, na Bruxa Keka, é preciso não ser capaz de distinguir entre fantasia

e realidade. A indistinção entre os mundos da realidade e da imaginação é característica atribuída

pelos adultos às crianças.

A primeira conclusão que podemos aventar é que o processo de crescimento parece não

culminar em secularismo. As crianças são consideradas adultas quando deixam de acreditar em

certos mal-assombros como a Cuca e o Lobisomem, e restringem o mundo dos mal-assombros a

apenas às almas. Para que ocorra esta mudança é preciso que a cristianização da própria criança já

esteja em andamento. Ao mesmo tempo, quando os mal-assombros são restritos às almas, eles

também são cristianizados, porque passam a ser concebidos como enviados do Demônio ou de Deus

– ou como o próprio Demônio. Nos dois casos, em que os mal-assombros são associados às

entidades, o processo aparentemente culmina com a cristianização dos mal-assombros ─ seja para o

bem, seja para o mal. Quando a idade adulta chega, os mal-assombros passam a ser lidos segundo a

tradição cristã. Quando o que pode ser reconhecível como mal-assombro passa a restringir-se à

alma dos mortos, eles não são reconhecidos senão com referência à moral cristã.

Mas há um porém. Para os adultos, se uma árvore não pode ser um mal-assombro, ela pode,

no entanto, estar assombrada. Assim como uma casa, uma sombra ou, até mesmo, uma pessoa. Para

a criança, diferentemente, a árvore pode ser, ela mesma, o mal-assombro. É a árvore em si mesma

ou a casa que tem agência assombradora e, portanto, o poder de assombrar. Mas isto não impede a

existência de mal-assombros que assombram casas ou árvores. Parece que, para a criança pequena,

a casa ou a árvore é o próprio mal-assombro, mas, quando cresce, ela vai imputar a esses objetos

uma força que está alhures. A diferença entre a concepção dos adultos e das crianças é que, para os

primeiros, os mal-assombros enumerados previamente não são mal-assombro em si mesmos, mas

acredita-se que estejam sob a ação de um mal-assombro. Em outras palavras, para os adultos a

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árvore em si mesma não assombra, mas serve de intermédio para outro mal-assombro ─ um mal-

assombro-alma. Diz-se que ela está e/ou é “assombrada” ou “mal-assombrada”; isto é, ela mesma é

assombrada por um mal-assombro. Da mesma maneira, uma pessoa pode estar “assombrada” se

leva um susto grande, vê algo do “outro mundo” ou tem um pesadelo. Quando um adulto aconselha:

“Não passe por aquele caminho porque aquela árvore é mal-assombrada”, ele quer dizer que um

mal-assombro vem agindo naquela árvore ou através daquela árvore. Não é a árvore mesma que

atira pedras em quem passa debaixo dela, como pensam as crianças pequenas. Segundo os adultos, a

árvore não tem agência. Quem atira pedras ou faz chover apenas debaixo daquela árvore é uma

alma que ali fez sua morada preferida. Estamos diante de uma cosmologia dos adultos na qual

casas, árvores e sombras são assediadas pela atuação de forças vindas do mundo dos mortos. O que

torna algo ou alguém mal-assombrado é a atuação das almas dos mortos. Na pequena cidade de

Catingueira, segundo os adultos, as almas dos mortos podem agir por meio das casas, caminhos,

árvores e animais.

4. Quem tem medo de mal-assombro?

Para o adulto, como vimos até agora, até mesmo o mal-assombro enviado por Deus

assombra ─ com a diferença que esse assombramento não deve perdurar. Quando um mal-assombro

é enviado por Deus, ele deve assustar somente até o momento em que se apresentar e tornar

explícitas as suas intenções. Depois disso, o mal-assombro pode até tornar-se uma companhia que

presta auxílio e proteção. Parcialmente, o medo de alma pode ser entendido pela sua ligação com o

desconhecido. Quando existe alteridade, o medo está presente, mas quando identificamos a alma

mal-assombrada e, por conseqüência, os seus objetivos, o medo tende a se dissipar. No caso dos

católicos, os mal-assombros podem ser associados ao bem se revelam-se almas de pessoas que

foram conhecidas em vida. Se conhecidas em vida, as almas serão associadas primordialmente ao

bem. Se, ao contrário, não foram pessoas conhecidas, serão tendencialmente associadas ao mal.

Assim, a alma de um familiar será mais facilmente assimilada a Deus que ao Diabo. Se esta alma

conhecida começar inexplicavelmente a fazer maldades, ficará subentendido que ela está sob as

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garras do demônio. Este é quem a induz a tomar certas atitudes inapropriadas. Estar submetida ao

Demônio sugere estar em apuros, à mercê de ajuda. Nestas condições, a ação maléfica que a alma

venha a cometer não é considerada intencional. Ao contrário de fugir da companhia dessa alma,

seus familiares vão tentar se comunicar mais eficazmente com a mesma a fim de ajudá-la ─ por

exemplo, recorrendo ao Centro espírita. Dessa forma, o medo parece ser sempre a primeira reação

frente à aparição de um mal-assombro. Mas esse medo pode ser convertido em cumplicidade se a

alma revela-se uma pessoa conhecida, com boas intenções, ou em apuros. Como afirmei, tudo isso

não é válido no caso dos crentes porque, para estes, mesmo que a alma apresente-se sob o aspecto

de uma pessoa conhecida, isso não corresponde à sua verdadeira identidade ─ dado que o demônio

pode se apoderar da aparência física de uma pessoa querida. Para os espíritas, diferentemente, as

almas vêm do outro mundo para serem doutrinadas ou para transmitir ensinamentos; dessa forma,

não se deve temê-las.

Em linhas gerais, o temor é o modo de relação que se estabelece entre os vivos e os mal-

assombros. A partir dos desenhos, das conversas e das entrevistas, percebi que, dos sentimentos

despertados pelos mal-assombros, o medo ganha em disparada. Alguns sentem-se atraídos pelos

mal-assombros, mas o número dos que os temem é incomparavelmente maior. Porém, observa-se

outras atitudes em relação ao mal-assombro, como no desenho de CM. 9. F, no qual o fantasma se

assusta com a mulher que pretendia assustar. O medo que ela sentiu foi tão grande, que os seus

cabelos ficaram em pé, assustando até mesmo o mal-assombro. No desenho de FF. 7. M, o mal-

assombro é nomeado com o nome de um dos colegas, servindo de diversão para toda a classe.

Entretanto, o temor vai apresentar-se de maneira diferente em cada faixa etária. Observe no Gráfico

Dois como o Temor foi um dos elementos mais destacados (entre três e vinte e dois anos de idade

xxii) nos desenhos e redações sobre os mal-assombros.

É preciso ressaltar que os mal-assombros fazem parte do cotidiano da cidade. Desde bebês

as crianças escutam falar neles. Aos dois anos de idade, parece que os mal-assombros não são

reconhecidos pelas crianças – ou, pelo menos, não são temidos. No decorrer do trabalho de campo

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no ano de 2005, em certa tarde de domingo, deparei-me com a seguinte cena: pessoas de todas as

idades assistem a uma partida de futebol. O time da casa enfrenta o time da cidade vizinha. F., um

menino de dois anos de idade, é impelido a ficar quieto por sua irmã mais velha, com a seguinte

exortação: “Olha o Homem do Saco!” A criança pára a sua brincadeira, olha para quem lhe dirigia a

palavra e fica em silêncio. A mocinha de catorze anos de idade, responsável por lhe “pajear”, diz

novamente: “Olha o Homem do Saco!”. F. repete-a com sua voz balbuciante: “Homem do Saco”, e

continua sua aventura pelo terreno de terra batida, sem compreender o que diabos é esse tal Homem

do Saco e, muito menos, porque ele deveria ficar quieto diante da ameaça da sua iminente presença.

Mas, se aos dois anos de idade as crianças não sabem o que é um mal-assombro, aos três

anos de idade o quadro já parece ser diferente. Presenciei situações que revelam a familiaridade das

crianças com a palavra mal-assombro aos três anos de idade. No entanto, os mal-assombros não são

tidos como almas, muito menos como enviados de Deus ou do Diabo. Apesar de que, desde o

momento em que o conceito de mal-assombro é formado, ele é tido como algo a se temer. Mas as

crianças pequenas, menores de sete anos de idade, temem os mal-assombros segundo uma lógica

própria, que difere da dos adultos e das crianças maiores. As crianças assustam-se com os mal-

assombros, mas não poderiam afirmar que eles sejam o mal ou uma armadilha dele. O medo não

vem do fato do pacto do mal-assombro com o Maligno. Para a criança, o mal-assombro assombra –

e isso é ruim. As crianças pequenas não demandam razões para temer os mal-assombros,

diferentemente dos adultos. Temem porque temem, porque o mal-assombro é terrível – e não

porque o mal-assombro vem do Demônio. Para o adulto, ele é um afiliado do mal e, por isso,

assombra. Aqui o processo em jogo é que as crianças primeiro aprendem a temer para depois

aprenderem por qual motivo devem temer.

Para as crianças, por sua vez, os mal-assombros não dizem respeito à religião e, portanto,

não podem ser explicados em relação a conceitos religiosos. Mal-assombro e religião não são, em

absoluto, dois assuntos cambiáveis, de acordo com as meninas e os meninos de Catingueira.

Observe que o número de crianças que citou elementos religiosos no tema de desenho do mal-

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assombro só vai aparecer definitivamente depois dos oito anos de idade (Vide Gráfico Quatro).

Antes dessa idade, os elementos religiosos praticamente não são desenhados. Isso mostra que para a

criança pequena, mal-assombro não necessariamente relaciona-se com o Diabo ou com o mal ─

muito menos com Deus ou com o conceito de espírito que sobrevive após a morte. Enquanto para os

adultos não existe mal-assombro neutro (ou ele é do mal ou é do bem), para as crianças pequenas é

diferente, esta questão não se coloca. Elas não se perguntam sobre as intenções de um mal-

assombro. Sua ontologia está toda definida no seu próprio nome: ele assombra e assombrar é ruim.

Sua ruindade está definida na sua ontologia assustadora, está toda dada em si mesmo e não pela sua

relação com outro ser. Os adultos precisam de causas, mas não as crianças pequenas (sobre o

processo de intelectualização da realidade vivida à medida que se cresce vide Pires 2007 :139-147 e

Toren 1999 :94-100.

Mas é preciso se indagar como as crianças sabem que o mal-assombro é algo a que se deve

temer. Como mostrei no exemplo do jogo de futebol, o menino com dois anos de idade não se

abalou com a ameaça da presença do Homem do Saco. O Homem do Saco pouco quer dizer para

aquela criança e, portanto, não amedrontaxxiii. Parece ser através das relações sociais estabelecidas

no seio mais íntimo que a criança vai tomando conhecimento dos mal-assombros. Não é apenas na

igreja, nem no colégio, nem muito menos por meio da TV ou da literatura mas, principalmente, no

cotidiano familiar e nas atividades do dia-a-dia ─ o que inclui as brincadeiras e o tempo de lazer

que a criança dispõe junto aos vizinhos e amigos. A criança vai entender que o mal-assombro pode

ser um representante do Satanás, da mesma maneira que aprende sobre a sua própria existência:

através das relações sociais cotidianas. Este processo está exaustivamente discutido em Pires 2007

(:129/153). Rita Astuti (in press 1) afirma que as crianças não aprendem sobre os ancestrais e a vida

após a morte – como os antropólogos geralmente tendem a pensar ─ ou seja, gradualmente

aprendendo sobre deuses, mágica ou espíritos. Ela afirma que as crianças aprendem que algo da

capacidade mental sobrevive á morte do corpo apenas quando entendem que a morte biológica

encerra todas as atividades físicas e cognitivas. Dessa forma, as crianças aprendem sobre a

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influência dos ancestrais no cotidiano dos Vezo quando observam seus animais de estimação

morrerem, ou quando dissecam animais. Em Catingueira, as crianças são inseridas em um mundo

onde os mal-assombros estão presentes no discurso e na prática dos seus pais e avós(ôs), na etiqueta

e nas práticas religiosas de evitação entre os vivos e os mortos (ASTUTI in press 1, vide também

Keesing (1982: 30-39).

Como mencionei, os mal-assombros são reconhecidos já aos três anos de idade; isto é, nesta

idade, a maioria das crianças já teme os mal-assombros. Mas o temor, apesar de representado nos

desenhos, aparece muito incipiente dos três aos seis anos de idade. Observando os desenhos,

constatamos que até os seis anos de idade, o temor dos mal-assombros é pouco representado nos

desenhos (índice menor que 9%). Dos dez aos treze anos de idade é que o temor está mais

representado, não antes. Aos sete anos de idade, há uma taxa de 27% de desenhos onde o temor está

desenhado. E, adiante, aos oito anos: 55%; aos nove anos, 40%; aos dez anos, 72%; aos onze anos:

82%;, aos doze anos, 83%; aos treze anos, 73%; catorze anos, 80%; quinze anos, 91%; dezesseis

anos 100% e, finalmente, dezessete - vinte e dois anos: 100%. O temor dos mal-assombros parece

ser crescente a partir dos três anos de idade, atingindo o pico dos dezesseis anos de idade em diante,

mas mantendo-se alto a partir dos dez anos de idade. O pico ocorre justamente próximo da fase dos

dez anos de idade – na qual observamos uma transição importante para a idade adulta em termos

religiosos, como vemos em Pires 2007 (:129/184). Assim, nos desenhos, o temor dos mal-

assombros só é representativo a partir dos sete anos de idade, e atinge os maiores patamares acima

dos quinze anos de idade. Observe o Gráfico Quatro.

Entretanto, estes dados podiam conduzir-nos a dois erros. Primeiro, o de pensar que criança

pequena não sabe o que é um mal-assombro e, segundo, o de acreditar que criança pequena não

teme os mal-assombros. Criança pequena reconhece e teme os mal-assombros, mas de uma maneira

distinta da do adulto. De modo geral, o temor dos mal-assombros é um dos temas mais ressaltados

nos desenhos, o que corrobora a afirmação de que mal-assombro e gente relacionam-se através do

medo, como foi visto no Gráfico Dois ─ mas com a importante ressalva, em direção oposta ao

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esperado, de que as crianças pequenas retratam o temor dos mal-assombros com menor intensidade

que as crianças maiores ou os adultos. Assim, ao contrário do senso comum, a cognição dos mal-

assombros poderia ser considerada, em primeiro lugar, como parte do imaginário dos adultos – e

não tanto das crianças. Explico-me. O bem e o mal são conceitos adultos. O mal-assombro enquanto

alma é tido como um enviado de Deus ou, mais constantemente, do Demônio. Portanto, apenas os

adultos poderiam de fato temer os mal-assombros, como alma enviada pelo mal ou pelo bem. Os

outros mal-assombros considerados infantis são temíveis, mas as crianças mesmo sabem que eles

também são de brincadeirinha. As crianças, ao contrário dos adultos, sabem inventar o mal-

assombro e o próprio medo. Sabem que criaturas amedrontadoras podem ser criadas pela

imaginação. As crianças brincam de temer, de criar o medo, de assustar-se, enquanto o adulto não

brinca com essas coisas de Demônio. No caso dos adultos, em relação aos mal-assombros, o lugar

da imaginação é restrito. Eles sabem muito bem que o mal existe e ponto final. Eles sabem que o

Demônio é real e, por isso, a alma de um morto, sendo um enviado dele, amedronta tanto quanto o

próprio. Não passa pela cabeça de um adulto brincar de inventar o medo. É divertido fazer os outros

terem medo, mas sentir medo não é nada engraçado. O medo é coisa séria para um adulto: ele não

brinca de se assustar. Os adultos inventam histórias de mal-assombro para assustar aos outros –

principalmente, as crianças (– e muitas vezes, acabam eles mesmos assustados). A diferença em

relação á criança é que elas brincam de inventar mal-assombros, ou seja, brincam de assustar-se,

enquanto os adultos brincam de fazer os outros terem medo. As crianças sabem que o Supapo existe

na TV, existe nas brincadeiras, existe na imaginação. Mas a TV, a imaginação, os sonhos que se

têm dormindo e a própria imaginação constituem para a criança parte do mundo real. As crianças

sabem que podem criar um mal-assombro com o corpo do Esqueleto, o nariz da Bruxa, os olhos da

Cuca e os cabelos de arame da Maria Fulozinha com o auxílio de um lápis e uma folha de papel.

Depois de criar este mal-assombro, a criança pode afirmar que ontem à noite ele correu atrás dela

perto da porta do cemitério. Provavelmente, esta criança nunca andou pelos lados do cemitério à

noite. Mas, para a criança, um simples desenho ou a palavra proferida faz realidade, como num

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passe de mágica. Para a criança pequena, o desenho não representa um mal-assombro; é o mal-

assombro. Uma vez, durante o trabalho de campo, uma criança desenhou um monstro-mal-

assombro dizendo-me que já o tinha visto. Perguntei onde ela tinha visto aquele mal-assombro. Ao

que ela respondeu que ali não existia monstro. Indaguei: “e como foi que você já viu um?” E ela

respondeu: “eu desenhei!” Outras crianças também me disseram já terem visto mal-assombro.

Quando pedia para explicar melhor, elas contavam-me um sonho. Interessante constatar que, para o

adulto, alguns sonhos também comportam níveis de realidade, como o sonho da botija ou o sonho

da visita de uma alma querida.

Se esses mal-assombros são criados facilmente, eles também podem ser destruídos com a

mesma facilidade. Por isso, as crianças pequenas não demonstram tanto medo dos mal-assombros,

uma vez que, em relação a elas, os mal-assombros gozam de agência relativa. Sua agência é relativa

porque é dividida com a própria criança que tem o poder de criá-lo e destruí-lo, pelo bem da

brincadeira e da diversão. Ao contrário, para o adulto, o mal-assombro tem agência absoluta na

medida em que é regulado por uma entidade religiosa. É esta entidade, em si mesma, a responsável

pela sua aparição e pelos seus assombramentos. Aos adultos não cabe mais que “se pegar com

Deus” para que eles não lhes apareçam. Se eles quiserem aparecer, não há muito mais o que se fazer

a fim de evitar a “visita”. Por isso, parece ser possível afirmar que se teme mais os mal-assombros

quando se é adulto, porque ele é visto como ser com agência total ─ ao passo que, para as crianças,

os mal-assombros, em grande medida, dependem da sua imaginação para existirem.

De toda forma, não estou afirmando que a criança não tema o mal-assombro. Afirmo apenas

que ela e o adulto temem os mal-assombros de maneiras diferentes. Também não estou dizendo que

o medo que a criança cria não seja real. A imaginação infantil é capaz de criar muitos mal-

assombros e, ao mesmo tempo, é capaz de destruí-los. Alternativamente, poderíamos pensar a partir

de Gregory Bateson (BATESON 2000 [1972]: 271-78), que a criança estabelece uma perspectiva

mais positiva em relação aos “duplos vínculos” (para uma análise do conceito de “duplo vínculo”

vide VELHO, em preparação). Para ela, o medo pode ser, ao mesmo tempo, inventado e real. A

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figura do mal-assombro pode ser, simultaneamente, fascinante e terrível. Percebe-se que, de

maneira geral, as crianças têm uma atitude subversiva em relação a algumas antinomias da

sociedade adulta. Para elas, a imaginação cria realidade, o desenho e o sonho são reais, o medo e o

fascínio andam juntos. É preciso afirmar, no entanto, que o jogo de evitação e aproximação em

relação aos mal-assombros é praticado com deleite pelas crianças. Um adolescente de quinze anos

de idade escreveu ao final de uma redação sobre os mal-assombros: “Vou confessar: gostaria de ver

esse monstrengo! E você?” (ELB. 15. M) As crianças mais corajosas, geralmente as mais velhas,

divertem-se em chamar as entidades pelo nome a fim de fazer medo nas outras crianças. Brincar de

fazer medo, principalmente se a noite se aproxima ou se se está em lugares ermos, é uma das

brincadeiras preferidas das crianças. Nestes ambientes, as estórias sobre os mal-assombros surgem

como que naturalmente. Entretanto, no decorrer do jogo, até a criança que o começou está com

medo. Esse tipo de jogo do medo ocorre também entre adultos, principalmente jovens. Como no

caso dos fe(i)tiches (LATOUR 2002b [1996]) apesar de terem sido inventadas, as entidades

exercem influência sobre aqueles que o inventaram.

Para o adulto, ao contrário, não passa pela sua cabeça inventar um Demônio. O Demônio é

algo que “está lá”, tem vida própria, existe. Na visão de um adulto ele existe em si mesmo, e não

depende da imaginação dos homens para agir em toda a sua potência. Em outras palavras, as

crianças operam com uma variedade incrível de mal-assombro e, ao mesmo tempo, podem destruir

todos eles. Os adultos, por sua vez, acreditam em apenas um mal-assombro, mas não o concebem

como sua criatura, sua invenção. Ao contrário, para os adultos, a alma dos mortos e o Demônio têm

agência independente da vontade dos humanos. É isso que os torna realmente assustadores. Em

outras palavras, em relação aos mal-assombros, as crianças têm agência; já os adultos são passivos.

Desse modo, entendemos que o medo dos mal-assombros seja muito mais substancial na idade

adulta e para as crianças maiores de dez anos de idade.

Os números apresentados – de que o temor dos mal-assombros é mais substancial quando

adulto – corroboram as evidências do trabalho de campo. Tentei computar o número das crianças

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que afirmam terem tido contato direto com mal-assombro. Os dados são os seguintes: três anos:

12%; quatro anos: 17%; cinco anos: 23%; seis anos: 32%; sete anos: 50%; oito anos: 25%; nove

anos: 40%; dez anos: 72%; onze anos: 93%; doze anos: 94%; treze anos; 91%. Se conferirmos os

dados das pessoas acima de catorze anos de idade, o número de pessoas que tiveram contato com

mal-assombro atinge a marca dos 100%. Dos desenhos de todas as idades pesquisadas, a categoria

“ter visto” um mal-assombro é um dos elementos mais ressaltados, junto com o medo desses mal-

assombros, como pode ser constatado no Gráfico Dois. Interessante notar que o medo dos mal-

assombros também cresce de maneira similar ao número dos que tiveram contato com eles, em

escala ascendente, à medida que a criança cresce. Quanto mais velha a criança, mais contatos com

os mal-assombros são afirmados e, por sua vez, mais medo parece haver. O número de crianças que

afirmam terem contato com os mal-assombros ultrapassa os 90% aos onze anos de idade, e chega a

100% depois dos catorze anos de idade. É interessante notar que as crianças maiores dizem terem

visto mais mal-assombro que as crianças menores ─ ao contrário do que se poderia pensar, uma vez

que às crianças menores é imputada uma imaginação mais fértil.

Se pensarmos no caso dos adultos, um número muito expressivo de pessoas demonstra medo

dos mal-assombros. São os adultos e, freqüentemente, os idosos, aqueles que têm mais estórias para

contar sobre os mal-assombros. Este skill lhes é reconhecido pela comunidade. Ao falar sobre as

estórias dos mal-assombros, as pessoas constantemente acrescentam que “os mais velhos” são os

maiores especialistas no assunto ─ como na redação de uma adolescente de quinze anos de idade,

cujo título era “Os fantasmas”. “Eu nunca vi mais muitas pessoas dizem que já viram. Claro que

eu não acredito, mais o povo mais velho conta muita história que deixa a pessoa apavorada. [...]

Quando falta energia fica tudo batendo, eu fico imaginando que pode ser fantasma. Eu nunca

quero ver, por que não tenho coragem suficiente” (MCNC. 15. F). Além disso, são “os mais

velhos” que sabem como melhor proceder no caso da aparição de um mal-assombro. L. 12. F. uma

vez indagou-me por que não ir à sua casa conversar com a sua mãe sobre os mal-assombros. Ela

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não entendia o motivo pelo qual priorizar a sua versão dos fatos, já que, na sua opinião, os seus pais

entendiam muito mais do assunto que ela própria.

Desta forma, fica claro que o mal-assombro não é assunto apenas de crianças ou dos adultos,

mas é assunto no qual toda a comunidade está implicada. Mas como sugeri anteriormente, os mal-

assombros enquanto almas dizem respeito principalmente aos adultos, na medida em que são estes

que distinguem o bem e o mal. Margaret Mead (1932) afirma que, entre os Manu, a crença dos

fantasmas era uma característica da sociedade adulta – a qual as crianças não apresentavam. A

antropóloga pediu às crianças que desenhassem livremente, e constatou que pouquíssimas

desenharam fantasmas ─ o que parecia ir contra a sociedade adulta, na qual os fantasmas

constituíam parte significativa das conversas entre os adultos. Naquele contexto, ela afirma que os

fantasmas eram uma pré-condição da sociedade adulta ─ exatamente o contrário da sociedade norte

americana, a qual servia como contraponto para a antropóloga. Semelhantemente aos Manu

pesquisados por Mead, os mal-assombros-alma são, em Catingueira, primeiro um apanágio do

mundo adulto, uma vez que apenas quando se compreende as antinomias Deus e Diabo, corpo e

espírito, bem e mal, é que é possível compreender os mal-assombros-alma na sua total ontologia.

Quando digo sua total ontologia, refiro-me ao mal-assombro como alguma coisa que existe em si

mesma, independente da vontade dos humanos. Ou seja, só se pode entender o mal-assombro na sua

completa ontologia quando se aproxima da idade adulta, porque só aí se dialoga plenamente com o

cristianismo. Entretanto não estou afirmando que os mal-assombros sejam apenas uma precondição

da sociedade adulta, uma vez que eles também estão presentes na vida das crianças. A satisfação

das crianças em participar da pesquisa mostra muito bem o quanto elas interessam-se pelos mal-

assombros. Em Catingueira, os mal-assombros fazem sentido para as crianças e para os adultos.

Mas existem diferenças importantes entre as concepções de mal-assombro das crianças e dos

adultos xxiv.

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5. Conclusões

Analisados todos os trezentos e catorze desenhos produzidos sob o título “O mal-

assombro”, espero ter esclarecido as diferenças entre os adultos e as crianças no que diz respeito à

ontologia dos mal-assombros e a sua etiqueta de relação com os vivos. Computando todos os

desenhos que as crianças de três a treze anos de idade produziram sobre o tema do mal-assombro,

chegamos à constatação de que gente, já vi, temor, fantasma são, nesta ordem, os elementos mais

citados (vide Gráfico Dois). A primeira observação a ser pontuada vai ao encontro da presença

maciça de gente nos desenhos. Os dados parecem fazer sentido quando os mal-assombros são

pensados em paralelo ao mundo dos vivos. A segunda observação decorre da primeira: as pessoas

vêem os mal-assombros. É primordialmente através da visão que eles se dão a conhecer pelos vivos.

Além disso, constata-se um número elevado de visões de mal-assombro, que aumenta à medida que

a criança cresce. Outra observação a ser destacada é que as pessoas relacionam-se com os mal-

assombros através do temor. O mal-assombro é algo a se temer. Por fim, a última observação é que

os mal-assombros mais citados são os fantasmas. Mal-assombros são fantasmas, fantasmas foram

gente viva. Agora, eles são almas. São desenhados, na maioria das vezes, como se fossem humanos,

com pernas, braços, cabeças, até umbigos e, freqüentemente, com um lençol que cobre todo o seu

corpo. Fecha-se o ciclo que põe em relação as almas e os vivos. A alma foi uma pessoa viva. O

morto assombra o vivo, que vai assombrar outros vivos, quando for alma.

Gostaria de, finalmente, mencionar a relação dos mal-assombros com o sistema de

parentesco, problematizando o fato de que os mal-assombros também vivem em famílias e habitam

casas. Parece-me interessante ressaltar que, entre as crianças pequenas, há uma larga heterodoxia

em relação às concepções de mal-assombro. Além disso, as casas mal-assombradas praticamente

não são desenhadas, predominando o tipo de mal-assombro que habita a “não cidade” – e,

conseqüentemente, aqueles considerados mais horripilantes. Apenas quando a heterodoxia na

concepção dos mal-assombros começa a desaparecer, temos mal-assombros habitando as casas e

mal-assombros considerados como parte da família. Parece haver uma correlação entre a dispersão

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dos lugares em que os mal-assombros podem aparecer e a heterodoxia nas suas concepções. Se, a

presença do mal-assombro vai se restringir às casas de parentes, temos um estreitamento que leva

em conta, paralelamente às crenças cristãs, a natureza da etiqueta de relação que os “mal-

assombros” estabelecem com os vivos, onde o parentesco parece ser um dos elementos primordiais:

seres invisíveis que não estão ligados à vivência do cotidiano, passam a ser desacreditados. Os mal-

assombros que habitam as casas são almas e, por isso, nunca são tão horríveis ou assombradores

quanto os mal-assombros desenhados por crianças pequenas. Além disso, os mal-assombros,

enquanto parentes falecidos que habitam a casa onde moravam com a sua família quando em vida,

são significantemente menos assustadores. Isso parece sugerir que os laços de parentesco

humanizam os mal-assombros, ao passo que a não relação (familiar) dá lugar aos monstros e aos

perversos. É possível afirmar que os mal-assombros não relacionados por laços de parentesco

tendem a ser mais assustadores que os mal-assombros reconhecidamente membros da família. A

família e os laços de parentesco parecem desempenhar papel importantíssimo na definição da

ontologia dos assombramentos. Crescer em Catingueira implica em restringir o mundo dos mal-

assombros de uma variedade imensa de seres e ocorrências a apenas um ser ─ a alma dos mortos ─

cuja ontologia (ser do mau ou ser do bem), vai ser compreendida, ao fim e ao cabo, pela relação de

parentesco que estabeleça com o sujeito que tem a visão.

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Gráfico 1

Características físicas dos M-a desenhados - 3 a 15 anos de idade

80

5854

4844

32 31 3026

20 2015 13

7

0

20

40

60

80

antropomorf o natureza Gaspar com

rosto

casa cemitério/

morte/ cruz

Gaspar rosto e

braço

cabelo em pé animalesco noite sangue/ f aca Gaspar c/ rosto,

braço, mão

Gaspar c/ rosto,

braço, perna

e/ou umbigo

dente de

v ampiro

chif re

características físicas

mero

ab

so

luto

Gráfico 2

Elementos Destacados nos Desenhos de Mal-Assombro

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

FantasmaAlm

a

M-a TV

Não identifi

cado

Bicho Papão

Monstro

Maria Fulozinha

Bruxa

Lobsomem

Vampiro

Espírito de Luz

EsqueletoCuca

MulaZumbi

DiaboMorte

Animais

Casa Mal-a

ssombrada

Não sei

Outros t

emas

Temor

Dúvida

Atração

CoragemGente

Tema relig

ioso

Tema noturno

Tema fúnebre

Tema naturalViu?

Elementos Desenhados

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Gráfico 3

Casas

0%

10%

20%

30%

40%

50%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13idade

Gráfico 4

Temor

0%

20%

40%

60%

80%

100%

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17-

22Idade

Gráfico 5

Elementos religiosos nos desenhos dos Mal-

assombros

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

3 4 5 6 7 8 9 10 11

idade

%

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Desenho 1: GVF. 8. F

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Desenho 2: D. 9. M “Gasparzinho e seus filhos”

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i Este artigo é uma reelaboração do terceiro capítulo da minha tese de doutorado recentemente defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – UFRJ, cujo título é “Quem tem medo de mal-assombro? Religião e Infância no Semi-árido Nordestino”. Sem as preciosas sugestões dos professores Otavio Velho, Christina Toren, Moacir Palmeira e Luis Fernando Dias Duarte, que acompanharam a elaboração da tese, este artigo não seria possível. Agradeço ainda às sugestões dos pareceristas anômimos da revista que escrutinaram rigorosamente este texto. ii Alguma informação metodológica será oferecida no decorrer do artigo, no entanto, convido o leitor a ler a minha tese (PIRES 2007) ou o artigo (PIRES em preparação a) para maiores detalhes. iii Ou também chamado de Demônio, Diabo, Maligno, Encardido, Satanás, O das Trevas, Inimigo, Medonho, Bicho. Algumas crianças relutavam em proferir estes nomes, com medo de que o referido lhes aparecesse. Quando as instigava a dizê-lo, fazendo-me de desentendida, elas muitas vezes diziam: “Aquele”, “O que anda pela noite”, “O malvado”. O mesmo argumento é usado pelas crianças na série de livros infanto-juvenis “Harry Potter” (ROWLING 2000a, 2000b). Os professores Dumbledore e Minerva discutem sobre o mal e Dumbledore diz a ela: "Minha cara professora, com certeza uma pessoa sensata como a senhora pode chamá-lo pelo nome. Toda essa bobagem de Você-Sabe-Quem, há onze anos venho tentando convencer as pessoas a chamá-lo pelo nome que recebeu: Voldemort.- A professora franziu a cara, mas Dumbledore, que estava separando dois sorvetes de limão, pareceu não reparar. - Tudo fica tão confuso quando todos não param de dizer "Você-Sabe-Quem". Nunca vi nenhuma razão para ter medo de dizer o nome de Voldemort. -Sei que não vê -disse a professora parecendo meio exasperada, meio admirada - Mas você é diferente. Todo mundo sabe que é o único de quem Você-Sabe... ah, está bem, de quem Voldemort tem medo” (ROWLING 2000a: 15). iv O fato aponta para a importância de noções vindas do espiritismo, principalmente kardecista. Bernado Lewgoy (2001) aponta a importância da síntese entre o catolicismo e o espiritismo kardecista na constituição de uma “cultura brasileira”. v Os espíritas kardecistas rebatem a interpretação da parábola, dizendo que o que impede a comunicação entre Lázaro e os parentes vivos do rico mau é a disparidade no que diz respeito à sua evolução moral. Lázaro é bom e, morto, foi para um bom lugar. Segundo eles, após a morte, cada alma se encaminha para um lugar condizente com o seu grau de desenvolvimento espiritual. O rico era mau e quando faleceu foi parar em um lugar de sofrimento. Estes dois mundos não são comunicáveis. O rico mau faz a primeira tentativa de comunicação quando pede a Lázaro para molhar a sua língua com um pouco de água. Mas Pai Abraão não permite, dizendo que na vida ele teve do bom e do melhor, e não dava a Lázaro nem as migalhas do seu pão. Ele tenta comunicar os mundos do bem e do mal novamente, pedindo que o Pai mande Lázaro avisar seus irmãos ricos (e maus) que estão na terra das agruras do além túmulo. Pai Abraão novamente não consente, dizendo que se os vivos não ouvem os profetas, não hão de ouvir os mortos. Segundo os espíritas kardecistas, a impossibilidade de comunicação, que vem desde o tempo em que eram vivos, é dada pela diferença na evolução moral de ambos e não, como pensam os crentes, pela impossibilidade de comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos. vi Gostaria de enfatizar que apesar de sonhos, visões de anjos, anúncios de profetas, serem admitidos como possibilidades positivas de relação com o “invisível” entre os crentes, o mesmo parece não poder ser dito em relação á aparição de um familiar já falecido ou alma no contexto pesquisado. vii O leitor poderá estar se perguntando se não haveria, neste contexto, almas consideradas “bem-assombros”. Argumento que o referido não existe porque, em princípio, a aparição de almas causa medo (o que é considerado intrinsecamente ruim). No entanto, como ficará claro a seguir, o assombramento de um familiar morto não deve perdurar, sendo possível estabelecer outras relações que ultrapassam o medo inicial. viii Os informantes são identificados da seguinte forma: Iniciais do nome, idade, sexo. Para melhor compreender o uso dos desenhos refira-se a PIRES em preparação a. ix Jean Delumeau (1996: 95), citando o etnólogo polonês L. Stomma, que trabalhou em seu país com documentos da segunda metade do século XIX, afirma que 38,6% dos casos de mortos transformados em “demônios” ou fantasmas são de crianças mortas antes do batismo. (Para maiores detalhes sobre o estatuto das crianças pequenas em Catingueira, refira-se a PIRES 2007). x Obviamente estas práticas se restringem aos católicos e kardecistas. xi Neste caso, taxa de aparição de mal-assombro refere-se aos lugares onde as pessoas, segundo as diferentes idades, afirmam terem visto mal-assombros. xii Analisando o Gráfico Um, percebe-se que os mal-assombros são largamente desenhados com características humanas. O que considerei antropomorfo foram mal-assombros desenhados segundo a forma do corpo humano ou com alguma característica humana, como cabelo, umbigo ou, por exemplo, usando chapéu. Chamo de “Gaspar” aqueles mal-assombros desenhados a la Gasparzinho, o Fantasminha Camarada, o que também poderíamos chamar de “mal-assombro-lençol”. A sua forma física corporal é desconhecida, uma vez que um lençol cobre o seu corpo ─ embora se saiba que o lençol é pensado como um artefato usado pelos mal-assombros para esconder os seus corpos deformados ou putrefatos. Há uma variedade grande de desenhos dentro do rótulo mal-assombro-lençol. Os mais simples deles têm apenas os olhos. Outros têm o rosto completo e, assim, variando com ou sem mãos, braços, pernas, pés, umbigo e cabelo. Constantemente, os mal-assombros têm os cabelos em pé ou arrepiados, resultado de um susto ou, quem sabe, para enfatizar a sua feiúra. Alguns mal-assombros são pensados na forma de animais: lobos, cavalos, coelhos, cachorro, ou apenas com características animalescas, como rabos ou orelhas avantajadas. As casas, por sua vez, são casas mal-assombradas habitadas ou não por gente, de onde, geralmente, correm as pessoas desesperadas, com medo dos mal-assombros que lá habitam ou assombram. Os mal-assombros muitas vezes estão flutuando acima das casas ou, às vezes, são pictografados dentro delas. Algumas

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vezes, os mal-assombros são desenhados com chifres ou dentes de vampiro, por onde escorre o sangue da última vítima indefesa do bicho perverso. Note que a terminologia “bicho” é usada tanto para o Demônio quanto para os mal-assombros. Também foram desenhados muitas catacumbas, cemitérios, defuntos e enterros. Estes foram incluídos na categoria cemitério/ morte/ cruz. Por fim, a noite, desenhada com o auxílio da lua e das estrelas, é o lugar preferido dos mal-assombros – que, muitas vezes, voltam para seu mundo (o outro mundo) quando a manhã vem chegando: “Amanheceu o dia e o fantasma foi embora” (LM. 7. F). xiii Poderíamos sugerir também que a cozinha é o lugar por excelência da mulher, assim como o muro (quintal), enquanto a sala seria o lugar por excelência da esfera do masculino ─ dentre outras coisas, porque os produtos do roçado, cultivado geralmente pelo pai de família, ali estão colocados. Vide Heredia (1979: 89-97) para considerações sobre a casa na área da zona da mata pernambucana. Vide também Bourdieu (1970) para uma análise sócio-antropológica da casa kabila. Vide Da Matta (1991) para reflexões sobre a casa e a rua. xiv Por exemplo, carne de porco e coco, alimentos utilizados nos sacrifícios em honra dos ancestrais e altamente apreciados pelos vivos. xv Bering (2002: 288) afirma que “In terms of the cognitive underpinnings of religion, contrary to previous accounts (cf., Boyer, 2001), most afterlife believers do not represent ghosts and spirits simply as invisible human beings, but rather as invisible human beings with a narrower range of subjective experience than living agents – experience that is delimited by the inactivation of specific psychological systems at death”. Os dados de Catingueira parecem sugerir a mim que, ao contrário, os mal-assombros são tão humanos quanto os humanos vivos, e diria até que as suas experiências são de natureza mais abrangente que a dos vivos, uma vez que eles não estão submetidos às leis da física. Há uma abundante, embora recente, literatura sobre os conceitos infantis sobre a vida após a morte a partir de uma perspectiva interdisciplinar da ciência cognitiva da religião (psicologia, lingüística, antropologia, biologia). Em um destes textos, Bering (2003: 246) se pergunta: “[…] what is a ghost but an invisible dead person with a mind?” Segundo o mesmo, a teoria de Pascal Boyer “[...] holds unequivocally that ghosts should be no different than living people when it comes to basic psychological functioning, at least as they are represented in human minds” (BERING 2002: 267). Boyer discorre sobre os fantasmas “The concept [ghost] is that of a person who has counterintuitive physical properties. Unlike other persons, ghosts can go through solid objetcs likes walls. But notice that apart from this ability, ghosts follow very stricly the ordinary intuitive concept of PERSON.” (2001: 73). xvi Estas almas estariam esquecidas se não fossem as orações das senhoras católicas em intenção das “almas” ou das “almas do purgatório”. Em algumas das igrejas católicas, encontramos o chamado “cofre das almas”, cujo dinheiro doado deve ser usado na intenção das almas, para que elas iluminem-se e encontrem o caminho do céu, através da celebração dos serviços religiosos. “Morada das almas que ainda não atingiram seu destino definitivo, o purgatório tornou-se o grande reservatório de fantasmas” (DELUMEAU 1996: 96). xvii Os animais encantados, como o Carneiro de Ouro, a Gia Encantada, a Rasga-Mortalha são, talvez, um caso a parte que parecem não se enquadrar na descrição que aqui estou tecendo. Embora não vá me deter a discutir estes seres neste artigo, discutir a ambigüidade dos encantados pode ser útil para discutir a natureza dos mal-assombros. Parece-me interessante mencionar que estes seres podem, de um lado, ser vistos por ambos ─ crianças e adultos – e, por outro lado, a sua existência independe de uma moralidade cristã ou religiosa. Neste sentido, os encantados colocam uma questão para a minha análise, na medida em que não se encaixam no modelo da cristianização dos mal-assombros que vou propor adiante. Parece-me que os encantados são uma categoria que problematiza a conceitualização dos mal-assombros, não permitindo a reificação das crianças, nem dos adultos e, ao mesmo tempo, não permitindo a reificação da própria discussão aqui apresentada. xviii É interessante chamar a atenção para a diversidade de opiniões, mas é importante ressaltar como pano de fundo uma cognição comum, como explora Otavio Velho no texto O Cativeiro da Besta-Fera (1995: 13-43). xix O fato não parece ser uma particularidade do campo de estudos com que trabalho. Como afirma Bering (2002: 269) “[…] counterintuitive concept categories such as those dealing with afterlife beliefs would spontaneously happen to appear in nearly all societies […]”. Neste caso, por “counterintuitive concept categories” o autor refere-se ao fato da atribuição de funções mentais mesmo depois da morte. Bering & Bjorklund (2004) lembram que adolescentes e adultos lotam os cinemas quando o tema dos filmes é espíritos ou fantasmas (2004: 218). Além disso, estudando as crenças do pós-morte, Bering chega a afirmar que elas são quase universais, sendo encontradas em quase todas as sociedades “[…] counterintuitive concept categories such as those dealing with afterlife beliefs would spontaneously happen to appear in nearly all societies […]” (BERING 2002: 269). xx Observe quantas crianças identificaram mal-assombro como almas (fantasmas) - o primeiro número refere-se à quantidade de crianças que desenhou o tema, e o segundo número é o total de desenhos para cada faixa etária. Três anos: 5/25, quatro anos: 1/23, cinco anos: 0/26, seis anos: 3/25, sete anos: 12/22, oito anos: 13/20, nove anos: 18/20, dez anos: 23/25, onze anos: 28/28, doze anos: 36/36, treze anos: 22/22, quatorze anos: 5/5, quinze anos: 11/11, dezesseis anos: 2/4, dezessete anos: 2/2. xxi Apesar de não trabalharem com o conceito de alma, Bering (2002, 2003, 2005), Bering & Bjorklund (2004), Harris & Giménez (2005), Astuti (in press 1), Astuti & Harris (in preparation), pesquisam como as crianças concebem a continuidade ou a cessação das atividades biológicas, psicológicas e perceptuais das pessoas após a morte a partir da perspectiva da ciência cognitiva da religião. xxii Os desenhos das pessoas acima de treze anos de idade foram coletados de maneira não intencional. Fiz essa parte da coleta dos dados nas escolas da cidade. Devido às altas taxas de repetência escolar, na turma de oitava série encontrei um

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número elevado de pessoas acima de treze anos de idade. Apesar dos dados não completarem os vinte desenhos de cada idade, eles foram úteis como termo de comparação. xxiii Podemos tecer um paralelo entre o aprendizado dos mal-assombros enquanto algo que representa perigo e deve ser temido, e a conversão na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A IURD não nega a existência das entidades dos cultos afro-brasileiros, mas, pelo contrário, “mostra” como elas são malignas e atuantes no mundo. Em um certo sentido, pode-se afirmar que a IURD depende da existência dessas entidades para levar a cabo o seu projeto de conversão. Tanto que em países onde as entidades das religiões afro-brasileiras não são conhecidas, como na Europa (onde a IURD têm expandido seus templos), os pastores devem primeiro ser capazes de provar a existência de tais entidades para, depois, em um segundo momento, combatê-las. Como no exemplo citado, primeiro os adultos “ensinam” às crianças que os mal-assombros devem ser temidos. xxiv No entanto, faz-se necessário problematizar a distinção adulto x criança com a qual estamos trabalhando aqui. Existe uma vasta literatura sobre a compreensão da morte pela criança. A grande maioria destes estudos compara o entendimento infantil da morte a partir do pressuposto de que o entendimento maduro e adulto passa pela afirmação da sua irreversibilidade: isto é, um morto não pode voltar a viver. Brent & Speece (1993) indagam-se se os adultos realmente pensam assim, e mostram que o pressuposto de que eles acreditam que a morte é irreversível é falso. De fato, o resultado da pesquisa mostra que os adultos falharam em afirmar a irreversibilidade da morte com níveis mais altos que as crianças: 44 % dos adultos e 69% das crianças afirmaram a irreversibilidade da morte (BRENT & SPEECE 1993: 207). O fato leva-nos a refletir sobre os pré-conceitos que as pesquisas podem, muitas vezes, comportar, além de indagar especificamente sobre as distinções preconcebidas entre os adultos e crianças.