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ARTIGO ARTICLE 165 1 Universidade Luterana do Brasil, Unidade Universitária de Gravataí. Av. Itacolomi 3.600, São Vicente. 94170-240 Gravataí RS. [email protected] Autonomia e cidadania na reabilitação psicossocial: uma reflexão Autonomy and citizenship in psychosocial rehabilitation: a reflection Resumo Este artigo aborda a autonomia e cidada- nia no processo de reabilitação psicossocial. A revi- são bibliográfica aborda conceitos de desinstitucio- nalização e reabilitação de autores da tradição ba- sagliana, assim como autores americanos e ingleses que discutem a questão da reabilitação/trabalho/ saúde mental. Os resultados apontam que enquanto os primeiros adotam um estilo de trabalho mais fle- xível, em que o sentido de produção de vida supera a vida produtiva, os autores ingleses e americanos apre- sentam modelos em que o objetivo é a normalização dos pacientes psiquiátricos através dos confrontos com o mercado de trabalho. Observa-se que ambos os modelos trazem consigo variáveis determinantes – o estigma, as expectativas, a intolerância –, que denunciam formas de exclusão social do trabalho para segmentos marginalizados da população. Con- clui-se que um dos maiores obstáculos diz respeito à inserção no mercado de trabalho formal, em razão da competitividade e da necessidade do estabeleci- mento de uma nova perspectiva na relação doença mental e sociedade. Palavras-chave Saúde mental, Atividades cotidia- nas, Autonomia pessoal Abstract This article approaches autonomy and citizenship in the psychosocial rehabilitation pro- cess. The bibliographical review approaches concepts such as de-institutionalization and rehabilitation used by authors following the tradition of Basaglia, as well as American and British authors discussing the question rehabilitation/work/mental health. The results show that while the first are adopting a more flexible style, in which production of life is more important that productive life, American and Brit- ish authors present models whose objective is the normalization of psychiatric patients by confront- ing them with the labor market. Both models bring along determinant variables – stigma, expectations, intolerance - denouncing forms of social exclusion from work for marginalized segments of the popula- tion. It is concluded that one of the biggest obstacles for rehabilitation is the inclusion in the formal la- bor market due to its competitiveness and to the need for a new perspective of the relation of mental health and society. Key words Mental health, Activities of daily living, Personal autonomy Alice Hirdes 1

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    1 Universidade Luterana doBrasil, UnidadeUniversitria de Gravata.Av. Itacolomi 3.600, SoVicente. 94170-240Gravata [email protected]

    Autonomia e cidadania na reabilitao psicossocial: uma reflexo

    Autonomy and citizenship in psychosocial rehabilitation: a reflection

    Resumo Este artigo aborda a autonomia e cidada-nia no processo de reabilitao psicossocial. A revi-so bibliogrfica aborda conceitos de desinstitucio-nalizao e reabilitao de autores da tradio ba-sagliana, assim como autores americanos e inglesesque discutem a questo da reabilitao/trabalho/sade mental. Os resultados apontam que enquantoos primeiros adotam um estilo de trabalho mais fle-xvel, em que o sentido de produo de vida supera avida produtiva, os autores ingleses e americanos apre-sentam modelos em que o objetivo a normalizaodos pacientes psiquitricos atravs dos confrontoscom o mercado de trabalho. Observa-se que ambosos modelos trazem consigo variveis determinantes o estigma, as expectativas, a intolerncia , quedenunciam formas de excluso social do trabalhopara segmentos marginalizados da populao. Con-clui-se que um dos maiores obstculos diz respeito insero no mercado de trabalho formal, em razoda competitividade e da necessidade do estabeleci-mento de uma nova perspectiva na relao doenamental e sociedade.Palavras-chave Sade mental, Atividades cotidia-nas, Autonomia pessoal

    Abstract This article approaches autonomy andcitizenship in the psychosocial rehabilitation pro-cess. The bibliographical review approaches conceptssuch as de-institutionalization and rehabilitationused by authors following the tradition of Basaglia,as well as American and British authors discussingthe question rehabilitation/work/mental health. Theresults show that while the first are adopting a moreflexible style, in which production of life is moreimportant that productive life, American and Brit-ish authors present models whose objective is thenormalization of psychiatric patients by confront-ing them with the labor market. Both models bringalong determinant variables stigma, expectations,intolerance - denouncing forms of social exclusionfrom work for marginalized segments of the popula-tion. It is concluded that one of the biggest obstaclesfor rehabilitation is the inclusion in the formal la-bor market due to its competitiveness and to theneed for a new perspective of the relation of mentalhealth and society.Key words Mental health, Activities of daily living,Personal autonomy

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    Introduo

    Na prtica, desde o advento das discusses sobredesinstitucionalizao, muito se tem falado sobrereabilitao psicossocial. Via de regra, os serviosque trabalham na perspectiva da reforma psiqui-trica intitulam-se reabilitadores. Os princpios,objetivos e pressupostos da reforma psiquitricaorientam as prticas nos servios. Da mesma ma-neira, existem princpios, objetivos e valores queorientam o trabalho de reabilitao psicossocial.Da observncia destes, aparentemente fceis numprimeiro olhar, revelar-se- a concretude das aesdos trabalhadores em sade mental.

    Para Rotelli1, a base da instituio inventada apartir dos projetos de desinstitucionalizao resi-de na ruptura da causalidade linear doena-cura,problema-soluo e na reconstruo do objetoenquanto sujeito histrico. O autor ressalta que asnovas instituies devero estar altura da com-plexidade da tarefa de intervir na sua existncia sofrimento, remetendo ao processo da constantereconstruo deste sujeito. Nestes novos servios,o que se convencionou chamar de Cultura deAvaliao tem que estar presente o tempo todopara que ns no nos percamos em linguagem,em saberes, em prticas ou em modelos que noso bem aquilo que se prope2. A nica forma,segundo este autor, que temos para controlar estaderrapagem a preocupao com a qualidade.

    No Brasil, as prticas desenvolvidas nos servi-os superam a produo cientfica na rea. Nopodemos simplesmente importar um modelo an-glo-saxo (eqidistante da realidade, pragmtico)ou italiano (mais prximo em termos de estilo detrabalho), temos que construir um referencial ba-lizador prprio. Para Silva Filho3, a reabilitao noBrasil e em outras partes da Amrica Latina teve ofoco compulsivo no trabalho desempregado, so-bretudo, na construo e na restituio dos direi-tos humanos dos portadores de doenas mentais.

    O modelo anglo-saxo de reabilitao vocaci-onal (vocational rehabilitation) e o modelo fran-cs de readaptao (readaptation) representammodelos em que o objetivo o da normalizaodos pacientes psiquitricos desabilitados atravsdos confrontos com o mercado de trabalho. E asua reinsero, segundo uma lgica pragmtica,na qual as expectativas no devem ser nem altas enem baixas demais4. O autor menciona as dificul-dades de interao social como os maiores obst-culos nesse tipo de intervenes. Alm dessa, des-creve as dificuldades dos programas: em alguns, oque denominado reabilitao na realidade en-tretenimento; e a no-preparao dos ambientes

    para receber pessoas desabilitadas o estigma as-sociado doena mental. Faz uma crtica a estesmodelos de reabilitao por no estar claro o sen-tido que atribudo ao trabalho nesse processo se entretenimento, adestramento ou reinsero.Estabelece uma analogia entre programas de socialskills training (treinamento de habilidades sociais)e programas de reabilitao laborativa: enquantono primeiro so apresentadas dificuldades quanto aplicao das habilidades adquiridas fora do set-ting, o segundo apresenta uma distncia entre osservios e o mundo externo.

    Sociedade, trabalho e loucura

    A insero social do homem no mundo do traba-lho se constitui quase na nica possibilidade de seraceito, amado e compreendido em nossa socieda-de. A modernidade exclui um contingente cada vezmaior, expondo a precariedade de laos, a vulne-rabilidade s agresses, a segregao e excluso.Denuncia que as formas de incluso social pelotrabalho no so e no esto disponveis e nemflexveis para as diferentes necessidades individuaise coletivas dos homens5.

    Demo6, ao abordar os dilemas que o neolibe-ralismo impe, analisa que o principal dilema con-siste na incapacidade de a cidadania ser posta aci-ma das relaes de mercado. Visualiza o mercadocomo de absoluta relevncia. Porm, situa que odilema advm de as relaes de mercado situarem-se como fim, e no como meio, estabelecendo umaordem de inverso de valores humanos e ticos.Outro dilema, segundo o autor, reflete a tendnciapara gerar empregos. Explica que h uma inversoentre investimento em conhecimento e postos detrabalho, estabelecida pela competitividade. Co-menta as mutaes estruturais pelas quais o tra-balho passa, de fora de trabalho, num contextode mais-valia, para inteligncia do trabalho. O ca-pitalismo competitivo transformou o trabalho emconhecimento inovador. Dessa forma, o saberfazer passa a transcender o fazer.

    Para Demo6, uma das mais importantes con-quistas do final do sculo diz respeito ao reconhe-cimento da cidadania como o componente funda-mental do desenvolvimento, ficando reservada aomercado a funo indispensvel de meio. Salientaque composio de mercado e cidadania constitu-em um desafio e tambm um dilema, sobretudonuma sociedade capitalista. O autor pontua quecidadania e economia so colunas mestras do de-senvolvimento; enquanto uma fim, outra meio.O processo de desenvolvimento denominado pelaOrganizao das Naes Unidas (ONU) de huma-

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    no e sustentvel traz conquistas como a percepoestratgica, que resulta da integrao entre o sociale o econmico; o predomnio dos fins sobre osmeios; a prioridade estratgica para educao econhecimento e a promoo do bem-estar comume dos direitos humanos. Coloca a cidadania na raizdos direitos humanos e da emancipao das pes-soas, refletindo o progresso democrtico possvel.

    A centralizao decorre do reconhecimento con-sensual de que o desenvolvimento no se restringe questo do mercado, ainda que seja meio indis-pensvel, mas considera os fins comuns da socie-dade, como qualidade de vida, eqidade e justiasocial. Avanos decorrem destas propostas, nomomento em que so reintegrados meios econ-micos e fins sociais. Ressalto que cidadania e eco-nomia no podem ser visualizadas de maneira se-parada, ambas so colunas mestras do desenvolvi-mento, a cidadania remetendo ao fim, enquanto aproduo meio6. O autor alerta, porm, que nose pode reduzir desenvolvimento cidadania. En-tende que o desafio e dilema das sociedades capita-listas consistem em compor mercado e cidadania.

    O autor traz as conceituaes de cidadania tu-telada, assistida e emancipada. A cidadania tutela-da a decorrente do clientelismo e paternalismo,cultivada pela elite econmica e poltica de direitacomo ddiva ou uma concesso de cima. Este tipode cidadania se configura como resultado, na re-produo histrica da mesma elite, atravs da ne-gao/represso. A cidadania assistida expressa umrelativo conhecimento poltico, o do direito as-sistncia. Esta tambm trabalha na reproduo dapobreza poltica, ao no se comprometer em equa-lizar as oportunidades, identificada com correntesde esquerda. Nesse caso, temos a populao atre-lada ao sistema de benefcios estatais. Enquanto acidadania emancipada remete condio de, atra-vs da competncia, fazer-se sujeito histrico e as-sumir a conduo do destino. Nesse processo, estimplicada a superao da pobreza poltica, quecapacitar superao da pobreza material. Oautor lembra que no h emancipao que noperpasse pelas relaes de mercado. Entretanto,na cidadania emancipada, o mercado se situa comoum instrumento e a cidadania, como um fim6.

    O binmio trabalho e sade/doena mental supersimplificado e idealizado, respectivamente,porque no so considerados os amplos contex-tos nos quais o trabalho ocorre no que tange aosaspectos social, pessoal e econmico; e idealizadoporque nega as contradies que emergem destecontexto7. O autor situa variveis determinantes,quais sejam: a explorao e a inflexibilidade na or-ganizao do trabalho no que concerne ao contex-

    to econmico; s expectativas, o estigma e intole-rncia em relao ao contexto social e valoriza-o que o trabalho traz no que diz respeito ao con-texto pessoal.

    O processo de desinstitucionalizao, a avalia-o crtica da ergoterapia e a crise do welfare seconstituem como elementos de anlise dos fen-menos sociais e polticos que apresentam conexocom a assistncia psiquitrica. Destaca dentre es-ses a desinstitucionalizao como a que possibilitaa recuperao da contratualidade, ou seja, atravsdas trocas sociais, a obteno da cidadania social.Entende que da ergoterapia manicomial s coope-rativas fora do manicmio foram construdos sa-beres e prticas que permitiram a compreensodos mecanismos anti-institucionais do trabalho.Visualiza as cooperativas como lugares de promo-o da autonomia e de proteo, caractersticasque deveriam ser prprias de um bom servio desade mental4.

    De acordo com o autor4, o estabelecimento deprticas de negociao e de troca ocorre atravs dotrabalho como base concreta de comunicao.Coloca no cerne da questo a relao com o mer-cado de trabalho. Nesse, estabelece parmetros eavaliaes dos riscos e benefcios entre as situa-es: trabalho no protegido em mercados prote-gidos versus trabalho protegido em mercados noprotegidos. Em relao primeira situao, traba-lho no protegido em mercados protegidos, visu-aliza que esta ser uma experincia mais verdadei-ra, dentro de um setting real, mas que, provavel-mente, neste contexto, o paciente ser admitidoem um cargo protegido, com pouca remunerao,do ponto de vista da auto-estima, com os pacien-tes mais graves sendo excludos do processo deseleo. Nas situaes em que se configurarem pro-duo e mercado mais protegidos, os pacientessero menos selecionados e a produo do traba-lho ser mais significativa por si mesma e coerente.

    A modernidade traz conflitos como a compe-titividade e a gerao de empregos, provocandouma crescente excluso do mercado de trabalho.Como ento, podemos projetar trabalho para pes-soas que tm uma dificuldade de competir, umavez que o paradigma da modernidade a competi-tividade desenfreada? Ou antes, de concorrer nomercado em uma situao j em desvantagem? Asuperao dos obstculos no se dar atravs detcnicas mais refinadas de adestramento ao traba-lho, mas sim, do enfrentamento da relao doenamental e trabalho segundo uma outra perspectiva,atravs de uma recomposio radical do campo4.

    Estas alternativas podem se constituir em coo-perativas, lugares de promoo da autonomia bem

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    como de proteo, assim como de empresas soci-ais. No podemos pensar que a reabilitao psi-cossocial consiste no processo de adaptar os fracosao mundo dos fortes, mas mudar as regras do jogo,para que os fortes possam compartilhar do mes-mo cenrio dos mais fracos4. Esta perspectiva pre-v uma reestruturao do modo de a sociedadeenxergar seus membros mais frgeis. Isso requeratitudes concretas que produzam possibilidadesreais, e no a adoo de medidas tranqilizadorasda boa conscincia. So estes os movimentos ne-cessrios que permitem passar de uma atitude deimobilidade para a produo de sentido, de vida,de incluso, de dignidade, de direito e justia.

    O papel exercido pela sociedade refere-se acei-tao, ao acolhimento em relao ao portador desofrimento psquico. O papel da sociedade podeser expresso em termos subjetivos e objetivos. Oprimeiro, anteriormente abordado, remete di-menso afetiva com que recebe, convive e estabele-ce relaes com os diferentes. O papel objetivo avalidao do primeiro, atravs de aes concretasque podero trazer benefcios palpveis vida daspessoas, em termos de acesso ao trabalho, ao lazer,a espaos sociais, contratualidade.

    A cidadania uma construo histrica resul-tante das problematizaes concretas que cada so-ciedade produz8. Esse conceito de cidadania remetea um processo atravs do qual a sociedade necessi-ta estar envolvida ativamente na luta pela emanci-pao de seus elementos mais frgeis, por interm-dio de sua problematizao. Isso envolve uma to-mada de conscincia em relao aos excludos emgeral e, em particular, sobre a situao dos porta-dores de sofrimento psquico. Estas transforma-es se do atravs das pequenas lutas cotidianasque restabelecem o poder contratual aos usurios,estes movimentos conduzem a mudanas qualita-tivas que levem real insero dos portadores detranstornos mentais.

    A vulnerabilidade a partir da precariedade dotrabalho e da fragilidade relacional analisada porum socilogo9 que analisa que a vulnerabilidade nopode ser atribuda unicamente dimenso econ-mica da crise, mas atravs da produo da catego-ria da precariedade. Para esse autor, a desagregaoda integrao social, para uma populao que dei-xou de ser marginal ou residual, nasce do fenme-no da instabilidade do trabalho. Observa que a in-sero relacional menos evidencivel em virtudede no apresentar a homogeneidade que a integra-o pelo trabalho comporta. Aponta que o retrai-mento das redes familiares inflige um crescente em-pobrecimento dos suportes relacionais. Situa as va-riveis familiar e cultural como esteios reguladores

    da fragilidade relacional e da instabilidade profissi-onal. Essas variveis constituem o que o autor de-nomina de proteo aproximada.

    Outro autor10, em sua anlise antropolgicaurbana dos territrios marginais, ressalta a im-portncia da noo de territorialidade/desterrito-rializao, que se revela atravs da afluncia dasmassas cidade. Esse processo impunha um hia-to, atravs dos cortes nos laos primrios e secun-drios, que acabava por afrouxar as rdeas de so-ciabilidade. Essa fragmentao do sujeito urbanoacarretava a fragmentao do ego, enquanto cen-tralizao unitria. Esta fragmentao resultantedo processo de desterritorializao correspondia perda de laos primrios, familiares, domsticos,enquanto no processo de reterritorializao recom-punha-se a noo de identidade.

    Evidncias tm demonstrado que a histria detrabalho no passado o melhor preditivo de suces-so vocacional ou educacional. Ou seja, as pessoasque, de alguma forma, j estiveram inseridas nomercado tm mais chances de realiz-lo novamen-te de maneira satisfatria11. Estudos12 estabelecemuma viso global dos problemas que confrontamas pessoas com prolongadas desordens psiquitri-cas e a sua experincia para entrar no mercado detrabalho. Atravs do entendimento da natureza edo escopo desses problemas, os reabilitadores pode-ro traar intervenes estratgicas que ajudem osportadores de distrbios mentais a alcanar suces-so na reabilitao. Dentre os problemas aponta-dos, esto dficits de ego que desempenham umpapel crtico na inabilidade das pessoas com doen-as mentais crnicas para funcionarem efetivamentee manterem o emprego. A falta de auto-estima eautoconfiana, a inabilidade para tolerar frustra-o, o temor de falhar manifestado como baixamotivao, a ansiedade elevada e a inabilidade de irjunto com outros so apontados como fatores psi-colgicos que contribuem para uma reabilitaopobre. Os problemas de ordem social e vocacionalso: imaturidade vocacional, manifestada atravsde expectativas irrealistas, falta de experincia desucesso vocacional, inabilidade para viver indepen-dentemente, perda de adequado suporte pessoal erede social.

    Castel9, abordando a precariedade do trabalhoe a vulnerabilidade social, traz tona a excluso e adesfiliao. Aponta que cada vez mais pessoas es-to ficando margem da sociedade e que a moder-nidade mudou o cenrio e os personagens, antescentrados nos mendigos e vagabundos. A partirdos eixos da relao trabalho e da relao inserorelacional classifica zonas de espao social de acor-do com o grau de coeso entre elas. A zona de inte-

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    grao, na qual esto situados os indivduos comgarantias de trabalho permanente e slidos supor-tes relacionais; a zona de vulnerabilidade, onde es-to associadas precariedade do trabalho e fragili-dade relacional; a zona de desfiliao, onde se en-contra ausncia de trabalho e isolamento social; azona da assistncia, representada pelo no-traba-lho, em razo de incapacidade versus forte inserosocial. O cruzamento dos eixos trabalho e inserorelacional define modalidades de existncia social,que vo do plo da autonomia ao plo de depen-dncia ou, ainda, conforme o autor, da estabilidade turbulncia mxima.

    A classificao permite situar os portadores desofrimento psquico em duas zonas: na zona devulnerabilidade e na zona de desfiliao. Entende-se que grande parte dos portadores de distrbiospsquicos do pas situe-se na zona de desfiliao.Esse o grande desafio dos reabilitadores: cons-truir redes de suporte em relao ao trabalho e insero relacional, atravs das quais se possa di-minuir as fronteiras entre as zonas, considerando-se que so transponveis, porosas, no cimenta-das. Esses so os movimentos necessrios que le-vam integrao, filiao, insero social.

    O perigo existe quando a sociedade se resigna eaceita a precariedade e a vulnerabilidade como es-tados de fato9. O autor v vulnerabilidade, preca-riedade, desfiliao, desvio, marginalidade, pobre-za como processos e no como estados. Esta pers-pectiva permite lanar mo de instrumentos deinterveno nas situaes, medidas concretas deinsero, antes do congelamento das situaes emdestino. Prope como proposta uma dupla polti-ca social: uma preventiva, destinada a controlar azona de vulnerabilidade, e outra reparadora, queteria a funo de diminuir a zona de desfiliaoatravs de intervenes concretas de insero.

    Brant e Gomez13, investigando o sofrimento detrabalhadores, gestores e profissionais da sade deuma empresa pblica de grande porte de Belo Ho-rizonte, constataram um processo de sofrimentoem adoecimento, configurado pela medicalizao,somatizao, psiquiatrizao, licena mdica, inter-nao hospitalar e aposentadoria. Os pesquisadoresentendem, diante das exigncias atuais dos proces-sos produtivos e de organizao do trabalho, a ne-cessidade do sofrimento manifestado no trabalhoser escutado e acolhido. Enquanto o mercado deproduo tende cada vez mais a fragmentar, excluir,objetalizar, de outro lado, outros tendem a recons-truir, juntar os fragmentos, subjetivizar, reconstruiro ser humano na sua totalidade e complexidade.Construir e reconstruir novas formas de intervirno sofrimento, a partir da contextualizao deste

    sujeito enquanto histrico, socialmente determina-do pelo momento histrico em que vive.

    A reabilitao psicossocial vista, tambm,como um processo de normalizao, de retorno auma situao anterior instalao da doena. Adificuldade de obteno da cidadania dos que noforam oficialmente excludos pelo Estado, temosos que a tiveram tutelada por dcadas: a populaoconfinada nas instituies totais. Como compati-bilizar cidadania e loucura em nossa sociedade jpor si excludente?

    Trata-se de construir uma outra forma de asociedade lidar com a loucura14. A desconstruodo manicmio implica a reinveno da sociedadeem que vivemos. A transformao de uma realida-de histrica no poder se dar pela tcnica, masatravs da revelao dos pontos de sustentao quea prpria sociedade impe. Os iderios de liberda-de, igualdade e fraternidade postulados pela Revo-luo Francesa no so uma obviedade consensu-al, variam enormemente entre as sociedades e estolonge de ser hegemonicamente aceitos. O cidadonasce de uma subjetividade fundada na razo. Aquesto paradoxal apresentada como conciliar areivindicao de cidadania ao louco, se este se en-contra despossudo de razo. O autor pontua quea democracia e a concepo de cidado no soconceitos unvocos, que so determinados peloscontextos histricos analisados. Situa que a ques-to da cidadania do louco encontra na construodas sociedades dificuldades em virtude de o voca-bulrio imprimir uma tradio racional universa-lista que identifica cidadania com razo. Ao enten-dimento da histria humana como a razo sobre ano-razo prevalecer o preconceito. Entretanto,se for visualizado como o alargamento da liberda-de sobreposto coero, levar solidariedade e afirmao de valores ticos.

    A convivncia como cidado na sociedade no o nico atributo desejvel. Mas a convivncia des-provida do preconceito que paira sobre a doenamental ainda nos dias de hoje aparece como umideal a ser conquistado. A conquista desse ideal passanecessariamente por vrias instncias, legislativa,poltica, de organizao de servios. Entretanto, adesmitificao da loucura precisa ser pensada nosomente em termos macro, mas a partir dosmovimentos, das aes que so desenvolvidas noplano micro que se daro as mudanas mais signi-ficativas na vida dos portadores de sofrimento ps-quico e estas conduzirem a saltos dialticos que seexpressam em transformaes qualitativas na con-cretude da vida das pessoas. Dessa forma, poderser visualizado o desenvolvimento em espiral, queconduzir superao dialtica.

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    Apostar nas pessoas remete a acreditar na po-tencialidade dos portadores de distrbios psqui-cos para a mudana de padres e comportamen-tos e aquisio de habilidades que lhes permitamviver e interagir em sociedade. Este viver pode dar-se atravs da insero real no mercado de traba-lho, como tambm, pelo mnimo gerenciamento o cuidado consigo mesmo, do seu tratamento, doambiente, das suas relaes interpessoais, de quefor capaz. Torna-se, assim, importante concedercrdito s pessoas, a fim de que a sua autonomia esua capacidade possam encontrar uma ocasio deexpresso e de crescimento, na convico de que overdadeiro problema o de fazer com que consigamse tornar empreendedores com respeito a si mesmos4.

    Alguns autores11 apontam o estigma como amaior barreira para o emprego de pessoas com de-sabilidades psiquitricas. Discutem que uma dasmaiores origens do estigma a freqente caracteri-zao negativa das pessoas com doena mental pe-los meios de comunicao de massa. A falsa caracte-rizao dos portadores de distrbios mentais comoemocionalmente instveis, irracionais e perigososreflete as atitudes das pessoas leigas com os mes-mos. Outra forma de estigma abordado pelos auto-res o estigma sutil que reflete as crenas de os pro-fissionais considerarem a habilidade das pessoas comdesabilidades psiquitricas para trabalhar ou traba-lhar em qualquer atividade, mas na maioria traba-lhos domsticos. Denunciam que a forma mais insi-diosa de estigma existe dentro das prprias pessoascom doenas mentais. Este estigma advm da redu-o do acesso a bons trabalhos e atravs das mensa-gens sutis ou abertas transmitidas pela equipe, duvi-dando da habilidade das pessoas para a performanceno trabalho. A internalizao dessas crenas negati-vas resulta no auto-estigma, que se revela como omais duro estigma e mais difcil a ser superado.

    Consideraes finais

    Atravs das consideraes levantadas pelos auto-res, convergentes em alguns aspectos, o grandedesafio imposto para a desmitificao e aceitaodos portadores de distrbios psiquitricos nomercado de trabalho dever ser travado com asociedade. Esta perspectiva necessita de mltiplasestratgias para o enfrentamento da relao lou-cura e cidadania, loucura e mercado de trabalho.

    Estes movimentos, saltos dialticos, remetem a umasociedade que inclua, acolha, estabelea valoreshumanos pautados na tica com os mais frgeis.

    A reforma psiquitrica introduziu no campo anoo de cidadania dos doentes mentais. Dessa for-ma, as aes coerentemente devero ser centradasna busca dessa cidadania pelos profissionais e usu-rios. Este conceito de cidadania poder se dar emtermos de produo, como tambm em termos daqualidade de vida alcanada com o processo reabi-litativo, mas, sobretudo, quando as pessoas se re-conhecerem como sujeitos histricos que podemintervir para mudar a realidade. O diferencial entreproduo de vida e vida produtiva deve ser consi-derado. Da cidadania francamente tutelada cida-dania emancipada sobrepem-se desafios ticosque devero ser respondidos pela construo deuma sociedade mais tolerante, em que a possibili-dade venha substituir a centralizao na razo.

    necessrio apreender a complexidade do pro-cesso, no momento em que um conjunto de vari-veis so colocadas em campo. s respostas a essasvariveis necessitam corresponder intervenes emvrias reas: casa, famlia, trabalho, rede social. Paraalcanar este grau de reabilitao, diversos eixosprecisam ser trabalhados: o eixo casa, trabalho, fa-mlia e rede social. De todos os eixos citados, o tra-balho se revela como um dos pontos frgeis e dif-ceis de ser operacionalizado. Principalmente o tra-balho formal, que requer a insero no mercado detrabalho extremamente competitivo. Alternativasque remetam insero no mercado e possam darconta do vcuo trabalho na vida dos portadores dedistrbios mentais necessitam ser estudadas. Essasalternativas podero vir de setores empresariais maiscomprometidos com a questo social, atravs doestabelecimento de parcerias. Nestas parcerias, nopoder faltar o suporte dos profissionais, tanto aosusurios como aos empregadores.

    Neste sentido, devero ser realizados movimen-tos que contemplem a complexidade e as deman-das particulares de cada pessoa. Isso remete aoestabelecimento de prticas dinmicas num cons-tante processo de reconstruo/superao, no qualso produzidas possibilidades sempre novas e plu-rais. A estagnao resulta em institucionalismo,cronicidade. Fazer as pessoas tornarem-se empre-endedoras e sujeitos da prpria histria dever seconstituir, por excelncia, num compromisso pri-mordial assumido pelos reabilitadores.

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    Referncias

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    Artigo apresentado em 21/03/2006Aprovado em 13/12/2006Verso final apresentada em 04/01/2007

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