reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

75
1 REFLEXÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL DE PROFISSIONAIS INSERIDOS EM CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DO ABC PAULISTA RESUMO O objetivo deste estudo foi compreender a representação de Reabilitação Psicossocial de psicólogos e psiquiatras atuantes em CAPS da Região do ABC Paulista. Da Antiguidade até a Idade Média, a “loucura” circulou livremente. Com a ascensão da Burguesia surge uma nova ordem social a partir da qual o “louco” passa a ser visto como doente, incapaz, isento de responsabilidade, devendo, portanto, ser tutelado, através do internamento. Os locais de internamento se tornaram locais de exclusão, isolamento e tratamento torturante uma vez que a medicina não possuía um saber sobre a “loucura”. Após séculos de exclusão, marginalização e de usurpação dos direitos dos portadores de sofrimento psíquico, a Reforma Psiquiátrica foi implantada no Brasil como um movimento pelos direitos dos “pacientes psiquiátricos”. A Reforma denuncia, entre outras coisas, a violência dos manicômios, e questiona o “saber psiquiátrico”, criticando o modelo hospitalocêntrico, tornando viável a proposta de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos. Dentre estes serviços, os Centros de Atenção Psicossocial são serviços que tem um papel estratégico dentro da política de Saúde Mental como articuladores de uma rede onde se dá o processo de reabilitação psicossocial, que não é uma mera implantação de serviços especializados, mas uma estratégia para aumentar as possibilidades de trocas afetivas, valorização das subjetividades, aumento do poder de contratualidade e promoção da socialização de portadores de sofrimento psíquico. Porém, as mudanças de espaços físicos e projetos não são suficientes para a consolidação da Reforma Psiquiátrica se, entre outras coisas, os profissionais não estiverem primeiramente alinhados com as mudanças das políticas de saúde mental. A apreensão do objeto de pesquisa se deu através de uma pesquisa estratégica de natureza avaliativa que utilizou um método qualitativo. A análise das entrevistas foi realizada utilizando-se o método de análise de conteúdo descrito por Bardin. Para a apropriação dos conceitos fundamentais foram estudados os autores que tratam do campo da reforma psiquiátrica, mais especificamente da Reabilitação Psicossocial. Palavras-chave: reabilitação psicossocial; centro de atenção psicossocial; profissionais

Upload: truongthien

Post on 03-Jan-2017

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

1

REFLEXÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL DE PROFISSIONAIS INSERIDOS EM CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DO ABC PAULISTA

RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender a representação de Reabilitação Psicossocial

de psicólogos e psiquiatras atuantes em CAPS da Região do ABC Paulista. Da Antiguidade

até a Idade Média, a “loucura” circulou livremente. Com a ascensão da Burguesia surge uma

nova ordem social a partir da qual o “louco” passa a ser visto como doente, incapaz, isento de

responsabilidade, devendo, portanto, ser tutelado, através do internamento. Os locais de

internamento se tornaram locais de exclusão, isolamento e tratamento torturante uma vez que

a medicina não possuía um saber sobre a “loucura”. Após séculos de exclusão, marginalização

e de usurpação dos direitos dos portadores de sofrimento psíquico, a Reforma Psiquiátrica foi

implantada no Brasil como um movimento pelos direitos dos “pacientes psiquiátricos”. A

Reforma denuncia, entre outras coisas, a violência dos manicômios, e questiona o “saber

psiquiátrico”, criticando o modelo hospitalocêntrico, tornando viável a proposta de serviços

substitutivos aos hospitais psiquiátricos. Dentre estes serviços, os Centros de Atenção

Psicossocial são serviços que tem um papel estratégico dentro da política de Saúde Mental

como articuladores de uma rede onde se dá o processo de reabilitação psicossocial, que não é

uma mera implantação de serviços especializados, mas uma estratégia para aumentar as

possibilidades de trocas afetivas, valorização das subjetividades, aumento do poder de

contratualidade e promoção da socialização de portadores de sofrimento psíquico. Porém, as

mudanças de espaços físicos e projetos não são suficientes para a consolidação da Reforma

Psiquiátrica se, entre outras coisas, os profissionais não estiverem primeiramente alinhados

com as mudanças das políticas de saúde mental. A apreensão do objeto de pesquisa se deu

através de uma pesquisa estratégica de natureza avaliativa que utilizou um método qualitativo.

A análise das entrevistas foi realizada utilizando-se o método de análise de conteúdo descrito

por Bardin. Para a apropriação dos conceitos fundamentais foram estudados os autores que

tratam do campo da reforma psiquiátrica, mais especificamente da Reabilitação Psicossocial.

Palavras-chave: reabilitação psicossocial; centro de atenção psicossocial; profissionais

Page 2: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

2

REFLEXÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL DE PROFISSIONAIS INSERIDOS EM CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DO ABC PAULISTA

Autores: Bruno Tadeu Azambuja, Ronaldo Perini, Sheila Santos Brito

Professor orientador: Vilmar Ezequiel dos Santos

Banca de examinadores: Decio de Castro Alves e Osvaldo Cleber Cecheti

Page 3: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

3

I – INTRODUÇÃO

A “loucura” é tão antiga quanto o próprio homem, tendo sido vista de formas

diferentes ao longo da história. Da Antiguidade até a Idade Média “ela” circulou livremente e

fazia parte do cotidiano, não se constituindo um problema social.

Com a ascensão da Burguesia surge uma nova ordem social a partir da qual o “louco”

passa a ser visto como doente, incapaz, isento de responsabilidade, devendo, portanto, ser

tutelado, através do internamento. Os locais de internamento se tornaram locais de exclusão,

isolamento e tratamento torturante uma vez que a medicina não possuía um saber sobre a

“loucura”.

Foi nesses locais que a psiquiatria passou a se constituir como um corpo de

conhecimento e um ramo da medicina, tornando-os locais de “cura”. Todo esse saber não foi,

porém, capaz de produzir novas práticas, permanecendo a lógica da exclusão, isolamento e

tratamentos não menos torturantes.

Ao final dos anos 70 teve início no Brasil a Reforma Psiquiátrica que preconizava

mudanças nos modelos de atenção aos portadores de transtorno mental. Três décadas após seu

início, a Reforma Psiquiátrica tem se mostrado um processo político e social muito complexo.

Ela surge como um movimento pelos direitos das pessoas em situação de sofrimento

mental, denunciando a violência dos manicômios, se constituindo numa crítica a psiquiatria e

ao modelo hospitalocêntrico de tratamento.

A crítica ao modelo hospitalocêntrico propunha a desinstitucionalização dos usuários

confinados, a redução progressiva da oferta de leitos psiquiátricos até a extinção dos

manicômios, objetivando a criação de serviços substitutivos.

Na década de 90 surgem as primeiras leis que determinam a criação de uma rede

integrada de atenção à saúde mental, sendo um importante passo da Reforma Psiquiátrica no

Brasil a assinatura da Declaração de Caracas, que culminou com a regulamentação da

implantação de serviços de atenção diária, assim como as primeiras normas de fiscalização e

classificação dos hospitais psiquiátricos.

Dentro dessa rede, os CAPS têm um papel estratégico na Reforma Psiquiátrica

Brasileira, pois passaram a demonstrar a possibilidade de substituição efetiva do hospital

psiquiátrico como forma de tratamento ao portador de transtorno mental.

Segundo o Ministério da Saúde a missão do CAPS é oferecer cuidados clínicos e de

reabilitação psicossocial aos portadores de transtornos mentais severos e persistentes,

evitando internações, promovendo cidadania e inclusão social. Para que ocorra a reabilitação

Page 4: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

4

psicossocial é necessária uma rede articulada de serviços de saúde e dispositivos sociais que

ofereçam um cuidado contínuo às pessoas em situação de cuidado, sendo o CAPS o

responsável por essa articulação.

Sendo assim, as atividades dos CAPS podem se desenvolver fora do serviço como

parte de uma estratégia terapêutica de reabilitação que se realizará na comunidade, no

trabalho e na vida social. Os projetos terapêuticos construídos junto com os pacientes devem

promover a inserção social e cidadania, respeitando as possibilidades individuais,

minimizando o estigma e a exclusão. Devem ainda promover situações adequadas onde os

usuários possam realizar suas trocas afetivas, simbólicas, materiais, favorecendo assim os

vínculos e a interação humana.

A reabilitação psicossocial se desenvolve como uma nova forma de olhar e de

compreender as pessoas que se encontram em situação diferenciada de sofrimento mental,

podendo ser entendida como um conjunto de estratégias destinadas a promover inserção

social, poder de contratualidade, autonomia e cidadania.

A apropriação e o (re)conhecimento do conceito/processo de Reabilitação

Psicossocial, e não a reprodução do discurso, por parte dos profissionais dos CAPS é, para

nós, o primeiro passo que permitiria o alinhamento de suas práticas com as políticas de Saúde

Mental no Brasil.

Sendo assim, o presente estudo insere-se como tentativa de enriquecer a discussão

sobre o processo de Reabilitação Psicossocial, com o objetivo de compreender a

representação de reabilitação psicossocial que os profissionais se afiliam e reproduzem no

cotidiano de trabalho.

O corpo do trabalho apresenta quatro capítulos principais. Iniciou-se com uma

contextualização histórica sobre a “loucura” desde a Antiguidade até o inicio da Reforma

Psiquiátrica. Depois, dedicamos um capítulo à Reforma Psiquiátrica no Brasil abordando a

criação e a função dos serviços substitutivos, em especial o CAPS. Em seguida apresentamos

o conceito de reabilitação psicossocial a partir de alguns teóricos que estão alinhados com os

pressupostos da atual política de saúde mental em curso no Brasil. E por fim, realizamos a

analise e discussão das pesquisas apresentando os resultados e as conclusões do estudo.

Page 5: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

5

II – HISTÓRIA DA LOUCURA: CONCEITOS, SIGNIFICADOS E PRÁTICAS

Podemos afirmar que a “loucura” é tão antiga quanto o próprio homem. Ela foi vista

de várias formas em diferentes épocas e alcançou vários status. Foi vista como diversidade, já

possuiu conteúdo místico, sendo alvo de exorcismos e sacrifícios, e permaneceu na penumbra

entre o natural e o extraordinário. Para Silveira e Braga (2005, p. 591), “loucura, alienação,

doença mental, transtorno mental, sofrimento psíquico não foram pensados de maneira

uniforme nem ao longo da história, nem no mesmo espaço temporal”. Para essas autoras a

loucura nem sempre foi vista de modo negativo e nem sempre foi considerada doença. Já foi

vista até como privilégio.

No entender de Erasmo de Roterdan (2003), teólogo que em 1508 escreveu o “Elogio

da Loucura”, a loucura tem sido a companheira inseparável do homem em todo o seu trajeto

histórico. Heitor Resende (2000, p. 19) explica que, [...] os homens tiveram que renunciar à loucura em nome do juízo [porém] ‘fragmentos maiores ou menores de paixão, irreflexão, esquecimento e devaneio permanecem em cada um de nós ou seria insuportável o confronto com a consciência da morte e as agruras da vida [mas] pela própria relação que os homens mantinham entre si e com a natureza, a loucura aparecia diluída imprecisamente em todos os homens, era, por assim dizer, natural.

Por toda a Antiguidade e boa parte da Idade Média, a “loucura” circulava de modo

livre fazendo parte da cena cotidiana. O Estado apenas intervinha em assuntos relacionados ao

Direito, no mais, a “Loucura” era circunscrita ao círculo privado. As famílias que podiam

mantinham seus “loucos” em casa sob a guarda de empregados ou escravos destinados a esse

fim. Já os “loucos” pobres vagavam pelas cidades e campos e sobreviviam ora da caridade

pública, ora por pequenos trabalhos prestados. Até então a “Loucura” nunca foi vista como

um problema social. Segundo afirma Gondim (2001), somente quando a sociedade européia

pré-capitalista tentou organizar o espaço social num continente que, desejoso por mudanças,

viu a necessidade de redimensionar o mundo da miséria, é que as chamadas casas de

internamento foram criadas para receber indigentes, homossexuais, epiléticos e os loucos.

Para Machado (1981), é moralmente que se pode apreender o principal significado

desta instituição. O Grande Internamento assinala uma ética de trabalho em que é moralmente

concebido como grande antídoto contra a pobreza. Força moral, portanto, mais que força

produtiva. Enfim, politicamente ele significa a incorporação de um projeto moral a um projeto

político, a integração de uma exigência ética à lei civil e à administração do Estado sob forma

da correção da imoralidade através da repressão física.

Page 6: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

6

O período da Grande Internação fracassou num curto espaço de tempo. Os Estados

Nacionais precisavam de mão de obra para a industrialização incipiente e não de casas que

recebessem ociosos. Aos poucos, vagabundos, ladrões e indigentes foram deixando esses

lugares e integrados no mundo do trabalho. Porém, os loucos ali ficaram abandonados.

Convêm, no entanto, deter-nos um pouco mais no processo de varredura da “loucura”

do cenário social porque ela se enquadra em um contexto muito claro. Para Foucault (2005),

quando a lepra desapareceu do mundo ocidental no final da Idade Média, a civilização ficou a

esperar por uma nova encarnação do mal que pudesse receber todo encantamento traduzido

em medos, necessidades purificadoras e de exclusão. Foi uma espera de quase dois séculos,

para que a loucura sucedesse a lepra no imaginário popular suscitando reações de exclusão.

Foi quando a “Loucura” passou a simbolizar uma inquietação que repentinamente se levantou

no horizonte da cultura da Europa no fim da Idade Média personificando suas maiores

ambigüidades.

Uma imagem é característica marcante dessa época: a Nau dos Loucos. Ela podia até

possuir uma característica simbólica de uma viagem à procura da razão, porém, colocar os

loucos nessa embarcação era a garantia de mantê-los afastados das cidades, sem que ficassem

vagando entre seus muros.

Contudo, a lepra havia deixado para traz de si uma série de espaços sem nenhuma

utilidade: os leprosários. Estes não existiram para suprimi-la, mas para mantê-la numa

distância segura do restante da sociedade. Nestes mesmos locais a “Loucura” passaria a ser

silenciada. “Frequentemente, nos mesmos locais, os jogos de exclusão serão retomados [...].

Pobres, vagabundos, presidiários e cabeças alienadas assumirão o papel abandonado pelo

lazarento” (FOUCAULT, 2005, p. 6).

Leis e decretos imperiais com o fim de reprimir e corrigir todos os considerados

desajustados socialmente são apoios às ações da polícia. A força repressora destas leis

encontrou grande suporte na criação de instituições afins, como por exemplo, Casas de

Correção, Casas de Trabalho e Hospitais Gerais. No século XVII surge no horizonte os

Hospitais dos Loucos Incuráveis. È o início do período conhecido como “O Grande

Internamento”. Por mais de cento e cinqüenta anos os “loucos” sofreram sob o regime do

internamento. Os “loucos”, no dizer de Antonin Artaud (1991, p. 98), “são as vítimas

individuais por excelência da ditadura social”.

“Florescem” por toda a Europa os asilos e as casas de internamento onde se

misturavam

Page 7: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

7

[...] os velhos privilégios da Igreja na assistência aos pobres e nos ritos da hospitalidade, e a preocupação burguesa de pôr em ordem o mundo da miséria; o desejo de ajudar e a necessidade de reprimir; o dever de caridade e a vontade de punir; toda uma prática equívoca cujo sentido é necessário isolar, sentido simbolizado sem dúvida por esses leprosários, vazios desde a Renascença mas repentinamente reativados no século XVII e que foram rearmados com obscuros poderes. (FOUCAULT, 2005, p. 53).

Nesses asilos não havia a preocupação de buscar um isolamento terapêutico. A única

intenção era de segregar. Havia uma distinção entre um conhecimento objetivo da “Loucura”

e a “percepção do Louco”. Nesta época [...] as instituições que recebiam os loucos, os critérios de internação, a designação do louco, sua exclusão da sociedade não dependiam de uma ciência médica mas de uma percepção do indivíduo como ser social, percepção produzida por diversas instituições da sociedade como a polícia, a justiça, a família, a Igreja, etc., a partir de critérios que não dizem respeito à medicina, mas à transgressão às leis da razão e da moralidade. (SILVA, 2003, p. 31)

Os internamentos revelavam uma grande cumplicidade entre a medicina e a

moralidade. Antes de qualquer preocupação médica, o internamento foi exigido por

preocupações bem distintas daquelas relacionadas à cura. Era acima de tudo uma questão

moral composta por várias preocupações. Porém, a loucura não era o único problema social

da civilização industrial na transição para o capitalismo. Mendigos, vagabundos e ladrões

também compunham a lista que em pouco tempo seria acrescida de homossexuais, hereges e

todos aqueles que não se enquadravam na moralidade burguesa. O internamento procurava

recolher em suas casas não àqueles que possuíam um distúrbio de saúde, mas sim do

comportamento. Bastava o não cumprimento dos códigos morais vigentes ou uma conduta

fora do razoável para que se justificasse o internamento de um indivíduo.

A revolução Burguesa e Industrial trouxe consigo a necessidade de um novo homem

onde razão, aptidão para o trabalho e a contenção dos excessos eram virtudes fundamentais.

Assim, os espaços permitidos à “loucura” foram drasticamente reduzidos. A diferenciação

entre o normal e o patológico não era mais feita dentro de uma normatividade pessoal onde o

individuo era comparado a si mesmo. Passou a ter um referencial supra-individual

comparando os indivíduos entre si.

Segundo Foucault (2005), a aptidão ou não para o trabalho e a capacidade produtiva

passaram a serem componentes importantes na determinação do normal ou anormal. A

loucura passou a ser vista como limitação humana, pois, era um elemento fundamental de

incapacidade para o trabalho. Houve uma divisão entre pobres válidos e inválidos. A primeira

1 Apostila elaborada pelo professor Márcio Silva, para a disciplina Fundamentos Epistemológicos de Psicologia cursada pelos autores da pesquisa, dentro do curso de Psicologia.

Page 8: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

8

pobreza não incapacitava para o trabalho e foi inserida no espaço social pelo mundo do

trabalho. Já a segunda, conhecida como pobreza negativa, representante da população

improdutiva passou a ser assistida pela sociedade.

Nas sociedades pré-capitalistas o trabalho acontecia na agricultura ou nos ateliês de

arte. Esses trabalhos têm por característica o respeito individual ao tempo e ao ritmo psíquico

dos trabalhadores. Resende (2000) chama à atenção o fato de não ser coincidência que os

trabalhos manuais em agricultura e artesanato são técnicas propostas para tratamento e

ressocialização de pacientes em situação de sofrimento mental. Para ele foi o declínio do

trabalho no campo e nas oficinas de artes que “vieram selar a sorte do louco e elevar a loucura

à categoria de problema social”. (RESENDE, 2000, p. 22)

A ociosidade, como a primeira e grande preocupação da burguesia, sofreu uma severa

condenação. Nos momentos de crise, manter os ociosos internados era uma proteção social

contra revoltas e agitações nas cidades. Já em tempos de prosperidade eles se tornavam uma

mão de obra barata através das “oficinas terapêuticas”. É nesses lugares da ociosidade maldita e condenada, nesse espaço inventado por uma sociedade que decifrava na lei do trabalho uma transcendência ética, que a loucura vai aparecer e rapidamente desenvolver-se ao ponto de anexá-los. (FOUCAULT, 2005, p. 73).

Se a ociosidade foi a primeira grande preocupação da burguesia como força

responsável pela pobreza, podemos dizer que não foi a única. A moral burguesa se

preocupava também com a libertinagem a partir de uma ótica religiosa. Foucault (2005) cita o

édito francês de 1656 que trazia algumas ameaças no meio de uma denúncia que era acima de

tudo moral: A libertinagem dos mendigos chegou a um ponto extremado através de um infeliz abandono a todas as espécies de crimes, que atraem a maldição de Deus sobre os Estados quando não punidos (FOUCAULT, 2005, p. 74).

Dentre os atos libertinos estava a união entre homem e mulher sem o casamento, a

falta de batismo, próprio e dos filhos, mendicância, e tudo o mais que poderia ser considerado

como falta de disciplina e frouxidão dos costumes.

Segundo Foucaut (2005) a homossexualidade também não passou incólume. Ela foi

considerada um desatino. Possuidora de liberdade de expressão na Renascença, a

homossexualidade aos pouco vai sendo silenciada e colocada sob velhas condenações de

sodomia.

Não se pode deixar de colocar entre essas preocupações o interesse burguês de manter

as posses contra qualquer membro da família que, por um desatino pudesse ser perdulário, ou

ainda, pudesse dispor de seus bens através de algum relacionamento extraconjugal. O

internamento serviu para manter de alguma forma certa ordem familiar e social. Por isso a

Page 9: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

9

família recebeu o poder de pedir e obter o internamento todas as vezes que se sentia

ameaçada. “O internamento foi colocado pela monarquia absoluta à disposição da família

burguesa”. (FOUCAULT, 2005, p. 91).

Todas essas preocupações morais fizeram do internamento a terceira força de

repressão. “Ele” prendia, julgava e executava sem nenhuma possibilidade de apelação.

Tornou-se uma forma de eliminação das pessoas consideradas a-sociais, pois [...] as medidas legislativas de repressão se complementaram pela criação de instituições, as casas de correção e de trabalhos e os chamados hospitais gerais que, apesar do nome, não tinham qualquer função curativa. Destinavam-se a limpar as cidades dos mendigos e anti-sociais em geral, a prover trabalhos para os desocupados, punir a ociosidade e reeducar para a moralidade mediante instrução religiosa e moral (RESENDE, 2000, p. 24)

Assim a Loucura foi sendo silenciada e constituída como doença antes mesmo que a

própria medicina tivesse algo a dizer sobre ela. A condenação da “Loucura” aos porões do

internamento e dos loucos à categoria de doentes só passou a existir a partir do mundo do

Trabalho e do monólogo da Razão sobre o silêncio do louco. Não se pode conceber a Loucura

como doença à parte do mundo do Trabalho e do discurso da Razão. Foi nesse contexto de

repressão moral e religiosa que a loucura acabou por ser varrida das cidades e do cotidiano da

vida das pessoas, sendo assim, confinada nos porões dos hospitais gerais. Lá, uma vez que a

medicina não possuía um saber sobre a “Loucura”, esta passou a receber tratamentos médicos

tão brutais que podem ser qualificados como tortura. Um exemplo de tais tratamentos pode

ser visto nas palavras do médico T. Monro, citadas por Foucault (2005, p. 114): Os doentes devem ser sangrados o mais tardar até o fim do mês de maio, conforme o tempo que fizer; após a sangria, devem tomar vomitórios uma vez por semana, durante um certo número de semanas. Após o quê, os purgamos. Isso foi praticado durante anos antes de mim, e me foi transmitido por meu pai; não conheço prática melhor.

São inúmeras as citações de maus tratos, das condições subumanas, com celas mal

cheirosas, camas de feno sob goteiras todas cheias de excremento. Rosa; LUZIO e YASUL

(2003, p. 56) citam Esquirol que afirma que os insanos internados, [...] são mais mal tratados que os criminosos; eu os vi nus, ou vestidos de trapos, estirados nos chão, defendidos da umidade do pavimento apenas por um pouco de palha. Eu os vi privados de ar para respirar, de água para matar a sede, e das coisas indispensáveis à vida. Eu os vi entregues às mãos de verdadeiros carcereiros, abandonados à vigilância brutal destes. Eu os vi em ambientes estreitos, sujos, com falta de ar, de luz, acorrentados em lugares nos quais hesitaria até guardar bestas ferozes, que os governos, por luxo e com grandes despesas, mantêm nas capitais.

Os alojamentos de Bicetrê, um asilo masculino destinado a doentes mentais, onde se

encontravam também presos muitos criminosos são assim descritos: [...] O infeliz, que por mobília tinha apenas esse catre coberto de palha, vendo-se espremido contra a muralha, na cabeça, nos pés ou no corpo, não podia gozar de sono sem molhado pela água que vertia dessa montanha de pedra (FOUCAULT, 2005, p. 148)

Page 10: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

10

No Hospício de Salpêtrière, um asilo feminino, as condições não eram em nada

diferentes do que em Bicetrê, pois, [...] no inverno, quando das cheias do Sena, os cômodos situados ao nível dos esgotos tornavam-se não apenas bem mais insalubres como, além disso, refúgio para uma multidão de grandes ratos que à noite se jogavam sobre os infelizes ali presos, roendo-os onde podiam; encontraram-se muitas loucas com os pés, as mãos e o rosto dilacerados por mordidas muitas vezes perigosas, muitas das quais morreram. (FOUCAULT, 2005, p. 149)

Essas condições eram incapazes de promover qualquer tipo de “cura”. Como se isso

não bastasse, os asilos e hospitais abriam suas portas ao público que podia pagar para ver os

loucos furiosos. Pressupõe-se que em 1815, o hospital Bethleem recebeu mais de 96 mil

visitas. O chamado espetáculo dos grandes insanos era uma das diversões dominicais da

burguesia francesa. (FOUCAULT, 2005).

Até o século XVIII os hospitais não possuíam de forma alguma caráter médico. Eram

instituições de caridade que abrigavam, alimentavam e assistiam religiosamente os pobres,

doentes, desabrigados e miseráveis, enfim, aqueles que eram considerados indesejáveis pela

sociedade. No período conhecido por Grande Internamento, as internações passaram a ser

determinadas pelas autoridades judiciárias e reais. As visitas médicas eram esporádicas e

visavam apenas evitar a contaminação dos presos pela tifo. Os internos eram submetidos a

tratamentos comuns a todas as doenças tais como purgação, sangrias, banhos e vomitórios. Na

verdade, podemos ressaltar, que nesse contexto o “louco” não estava em uma instituição com

finalidade médica. Somente com o passar do tempo que “o hospital foi perdendo cada vez

mais suas funções de origem de caridade e depois de controle social; na mesma proporção,

passou a assumir uma nova finalidade: a de tratar enfermos” (AMARANTE, 2007, p. 25).

Assim, o hospital passou a ser um espaço médico.

Para Resende (2000) a junção de fatores como as idéias iluministas, os valores e

princípios da Revolução Francesa e a declaração dos direitos do homem nos Estados Unidos,

fez crescer as denúncias contra as internações arbitrárias dos doentes mentais, os tratamentos

a que eram submetidos e às torturas escondidas ou não sob a insígnia medica. Na França,

Inglaterra, Itália e USA se constitui um movimento reformista que visa separar os doentes

mentais dos demais internos e concedendo-lhes um tratamento psiquiátrico sistemático.

Na França, movidos pelos ideais revolucionários de Igualdade, Liberdade e

Fraternidade, muitos médicos foram atuar nos hospitais com a finalidade de humanizá-los e

adequá-los ao novo espírito da época. Foram retirados do hospital muitos internos e foram

criadas novas instituições assistenciais tais como orfanatos, escolas normais, casas de

correção, reformatórios. Segundo Amarante (2007, p. 26),

Page 11: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

11

[...] a substituição da sociedade absolutista (monárquica, totalitária, clerical) pela sociedade disciplinar destinou um novo papel às instituições: a disciplina dos corpos, a introjeção das normas do pacto social construídos entre pares, a normalização dos cidadãos e da própria noção de cidadania.

Quando foram retirados dos asilos todos aqueles que podiam ser educados e

recuperados para o trabalho, lá ficaram apenas os “irrecuperáveis”, os insanos, os alienados.

Agrupando os doentes nos hospitais foi possível produzir um saber sobre as doenças o que era

impossível até então. A administração do hospital saiu das mãos do clero e foi para as dos

médicos; deixou de ser filantrópica e passou a ser médica.

Sendo assim a loucura passa de um assunto ligado ao poder jurídico e torna-se encargo

da medicina. Mas cabe-nos perguntar: a medicina estava preparada para esse movimento?

Segundo Castel (1978, p. 46) “o estado embrionário das práticas médicas em matéria de

loucura tornava-as, desde logo, inaptas a assumir, de um dia para o outro, um tal mandato”.

A solução médica encontrada para a loucura aparece nesse cenário como o último

recurso depois que todas as outras tentativas fracassaram. O parlamento francês instaurou

medidas para diferenciar os loucos dos transgressores da lei. Aos alienados não era mais a

repressão que era imposta, mas sim, o tratamento assistencial através da tutela como nos

mostra Nicácio (1994): O cidadão é responsável, obedece às leis, tem suas relações pautadas no contrato livre e portanto é digno de liberdade. O criminoso transgride as leis mas é culpado porque é racional e responsável e cabe-lhe outra instituição: a prisão. O louco é incapaz na relação de trocas mas é isento de responsabilidade e portanto merecedor de assistência (NICÁCIO, 1994, p. 7).

Sobre essa isenção de responsabilidade do louco, Basaglia (2005, p. 263) afirma que a

Loucura “torna-se agora objeto de uma piedade e de uma compreensão em que a

responsabilidade pelo ato é imputada a desrazão e não ao indivíduo”.

O internamento agora passou a ser uma necessidade médica. Os alienados tinham com

a instituição outra relação: a tutela. Agora se fazia necessário ordenar uma população de

alienados, perigosa e carente de razão. A psiquiatria surge no horizonte como o dispositivo

dessa ordenação constituindo-se pedra fundamental de um saber científico sobre a Loucura.

Foi nos asilos e nos hospitais que a psiquiatria desenvolveu esse saber transformando-os em

lugar de cura.

Em agosto de 1793 Fhilippe Pinel foi nomeado, por influências de amigos, médico

chefe em Bicetrê. Lá encontrou os “loucos” acorrentados em celas pequenas e úmidas, fossem

eles violentos ou não. Como já havia trabalhado em clínicas para doentes mentais com

melhores condições estruturais, Pinel possuía a experiência de que o trato diário dos

Page 12: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

12

funcionários com os pacientes era fundamental para compreender certos aspectos das doenças

mentais. (http://www.neaad.ufes.br/subsite/psicologia/obs04hg%20philippepinel.htm2)

Desta forma adotou algumas medidas as quais considerou humanitária: libertou os

loucos das correntes e passou a tratá-los como doentes comuns, usando apenas em caso de

crise ou agitações graves a camisa de força. Sua permanência em Bicetrê foi de dois anos.

Pinel separou dentro do hospital o primeiro espaço exclusivamente médico destinado aos

alienados e começou a inscrever os mais variados tipos de alienações na nosografia médica.

Em 1795 ele foi nomeado para Salpêtriére como médico chefe e ampliando as medidas

adotadas em Bicetrê. Assim foi abandonado o tratamento com sangrias, purgações e

vomitórios. (http://www.neaad.ufes.br/subsite/psicologia/obs04hg%20philippepinel.htm3)

Inicia-se um novo conjunto de medidas terapêuticas que será conhecido como

Tratamento Moral, o que será abordado mais adiante.

Há uma ambivalência entorno de Pinel. Para muitas pessoas, ele foi o libertador dos

loucos, o pai da psiquiatria. Nos manicômios era muito comum ver gravuras de Pinel soltando

os “loucos” das correntes. Para outros, no entanto, longe de ser herói, Pinel foi vilão. Ao

libertar os “loucos” das correntes que os prendiam fisicamente, ele acabou por criar um

encadeamento moral. Assim ficaram livres das correntes, mas confinados nos muros dos

asilos que se tornaram uma instância perpétua de julgamento. A violência aberta e franca foi

substituída pela violência das ameaças e privações. (RESENDE: 2000)

Foi Pinel que consolidou o conceito de Alienação Mental e a profissão do alienista.

Abandonando a idéia que as lesões cerebrais eram as causas das alienações ele abriu espaço

para que ela fosse vista como doença do espírito. Criou os primeiros hospitais psiquiátricos e

o primeiro modelo terapêutico, o já mencionado Tratamento Moral. O termo Moral deve ser

entendido de acordo com a filosofia do século XVIII que o usava para distinguir às ciências

do Espírito em oposição às ciências naturais. Segundo Resende (2000, p. 27), [...] é de se creditar, assim, a Pinel, o ter descartado as lesões cerebrais como causa principal dos transtornos mentais psíquicos e, coerentemente, ter abandonado as sangrias, as purgações e os medicamentos e recomendado que as doenças mentais eram curáveis pela atenção à mente exclusivamente.

Em que consistia o Tratamento Moral? Para Amarante (2007, p. 33), o Tratamento

Moral consiste “[...] na soma de princípios e medidas que, impostos aos alienados, pretendiam

reeducar a mente, afastar os delírios e ilusões e chamar a consciência à realidade”.

2 Acesso em 30 de Agosto de 2008.

3 Acesso em 30 de Agosto de 2008.

Page 13: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

13

O primeiro princípio do Tratamento Moral estabelecido por Pinel, que foi seguido

pelos outros alienistas: o isolamento do mundo exterior como exigência mínima para que um

alienado pudesse ser tratado adequadamente. Pode-se afirmar que o isolamento é a base do

Tratamento Moral. O Isolamento se dava através da institucionalização ou hospitalização.

Para os alienistas o hospital psiquiátrico tinha uma função de remédio. Amarante (1996, p.

51) afirma que “o asilo é o lugar do tratamento moral; é também por si próprio, o tratamento

moral”. E a lógica é simples, pois se as causas da alienação estão no meio social, a

hospitalização afasta os pacientes da exposição a elas.

Porém o isolamento faz com que a loucura da sociedade permaneça intocada. A

loucura continua sendo vista como um problema dos indivíduos e não algo gerado a partir do

modelo de sociedade vigente e suas contradições e interesses. Para Moffat (1982, p. 16), [...] esta solução para as ansiedades psicóticas coletivas é muito injusta, pois condena ao papel de loucos uma boa parcela da sociedade. Além disso, não é plenamente eficiente, pois a loucura que se deposita imaginariamente num hospício não desaparece da sociedade, e negá-la nos impede de enfrentá-la e, quem sabe, de elaborá-la ou converte-la em energia criadora.

A “libertação dos loucos” atribuída a Pinel foi, na verdade, uma ilusão de liberdade,

pois eles foram libertos das correntes, mas não do hospício. Para Amarante (1996), esta

“libertação” não diminuiu o estigma nem a violência cometida contra os loucos.

Moffat (1982) levanta muitas críticas ao espaço do isolamento do Tratamento Moral.

Entre elas queremos destacar que para ele, a deterioração dos pacientes, não é resultado da

doença, mas do próprio tratamento manicomial. Ou seja, o manicômio produz a doença a que

se propõe tratar. E isso acontece porque o espaço físico dos manicômios não reserva nenhum

espaço privado onde o interno possa manter sua identidade pessoal. A falta de privacidade

está associada também ao controle vigilante que a Instituição impõe aos seus internos. Nem

mesmo os banheiros têm portas. Fica assim desfeito o único lugar onde o paciente podia

sentir-se só consigo mesmo. Pode-se ainda falar dos quartos com muitas camas enfileiradas

lado a lado para que possam ser vigiados de modo mais efetivo. O espaço físico do

internamento é sempre o mesmo, são lugares úmidos, sem ventilação, sempre a mesma

pintura, nenhuma decoração, nenhum toque de pessoalidade. O próprio ambiente manicomial

impossibilita a “cura” e a falta de contato e interação com a vida social vai fazendo com que a

subjetividade também empobreça. Nas palavras de Moffat (1982, p. 16), “o hospício é como

um poço profundo no qual se entra rápido, mas do qual é difícil de sair”.

Outro princípio importante do Tratamento Moral é o Trabalho Terapêutico.

Lembremos que a Loucura estava entre as causas de inaptidão para o trabalho, logo, reeducar

para o trabalho era curar a loucura. Para os alienistas o trabalho terapêutico era um “excelente

Page 14: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

14

remédio contra o delírio, pois resgatava idéias falsas e chama a consciência à realidade”

(AMARANTE, 1996, p. 52).

Certamente que o trabalho terapêutico tem seu valor porque nele o tempo psíquico do

indivíduo é respeitado. O valor do trabalho terapêutico pode ser observado na experiência

brasileira do hospício Pedro II. Quando foi criado em 1852 havia uma subdivisão de classes

sociais nos serviços de assistência aos doentes mentais. A primeira classe era composta de

indivíduos brancos que faziam parte da corte, fazendeiros e funcionários públicos. A segunda

classe era composta de serviçais domésticos, lavradores. A outra era composta por pessoas de

baixa renda e escravos pertencentes a senhores importantes. A quarta e última classe era

destinada a marinheiros mercantes, indigentes, ex-escravos ou escravos de senhores que não

podiam pagar pelo tratamento. As duas primeiras classes tinham reservados quartos

individuais ou duplos e passavam o tempo com pequenos trabalhos manuais, jogos e leituras.

Já os da terceira e quarta classes trabalhavam na cozinha, manutenção jardinagem e limpeza,

mas eram justamente estes que se recuperavam com mais facilidade que os da primeira e

segunda classe. (BRASIL, 2003).

O trabalho terapêutico precisa ser como o nome diz terapêutico e não um passa tempo

ou simples ocupação. Algo que ajude a pessoa em situação de sofrimento mental a se

organizar frente à sua realidade. Precisa ter como meta o desenvolvimento da autonomia de

modo progressivo e dentro dos limites de cada sujeito constituindo valor social. Para Saraceno

(1996) o trabalho terapêutico não é um fim em si mesmo. É necessário que se passe por ele

até que se chegue a um exercício pleno da cidadania, mas não se pode estacionar nele.

Ana Pitta (1996) alerta para o fato de que quase todos os projetos de cuidado usam

como indicadores positivos a inserção no mercado de trabalho, seja ele formal ou informal.

Sendo assim [...] o homem moderno, acriticamente, persegue formas de inclusão social pelo trabalho, desconsiderando o fato desse trabalho, não ser nem tão disponível nem tão flexível para suportar as diferentes demandas individuais e coletivas que a sociedade moderna impõe (PITTA, 1996, p. 24-25).

Outro requisito importante do Tratamento Moral, segundo Amarante (1996) era a

imposição de ordem e disciplina visando dar a mente desregrada a oportunidade de “encontrar

seus objetivos e verdadeiras emoções e pensamentos”. Assim eram impostas regras,

comportamentos, horários, tudo com uma função terapêutica. Os asilos tinham uma analogia

muito forte com os estabelecimentos que visavam à educação, só que nestes casos era a

educação de uma mente desregrada e de paixões incontroláveis.

Page 15: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

15

Quando Pinel inicia em Bicetrê e depois em Salpêtrière os primeiros asilos destinados

aos loucos, ele ganha um observatório sistemático da loucura o que possibilitou fazer uma

distribuição metódica dos alienados em diversos departamentos. Isto fez com que pudesse

detectar quais medidas deveriam ser tomadas em relação ao tratamento incluindo alimentação,

limpeza, tratamento moral e físico. Lá no asilo Pinel esperava poder estudar a loucura em seu

estado mais puro, longe das influências da sociedade. Este fato é considerado o início da

Psiquiatria. (AMARANTE, 1996)

Machado de Assis, em 1882, publicou o livro “O Alienista”, uma crítica satírica contra

o alienismo. Assis (1994) parece ter percebido que a incipiente psiquiatria tinha muito pouco

a falar sobre a loucura, mas aproveitava do espaço do internamento para estudá-la à custa da

liberdade dos então chamados alienados como nos mostra a descrição de sua obra: [...] o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso , as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes de infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como não faria o mais atilado corregedor. (ASSIS, 1994, p. 14)

Na verdade o alienista de Machado de Assis criou a “Casa Verde” para estudar

profundamente a loucura e dar a elas uma classificação. Uma vez descobertas as causas,

podia-se pensar em um remédio universal.

O modelo de assistência psiquiátrica no Brasil, iniciado em meados do século XIX,

seguiu de perto o modelo francês de Pinel que é do século XVIII. Mas a principal diferença

entre eles não está na data e sim no contexto. Vimos que na França a assistência psiquiátrica

acontece em um contexto de revolução burguesa, enquanto que no Brasil tínhamos, como

refere Rosa (2003, p. 85), uma “[...] sociedade colonial, rural e escravocrata, que tinha o

trabalho como algo negativo, indigno, ‘coisa de negros’, e uma economia agroexportadora

fundada no comércio importador-exportador e numa oligarquia rural”.

Costa-Rosa, Luzio e Yasui (2003) destaca que a institucionalização no Brasil antecede

o surgimento da Psiquiatria. Desde 1543 quando a primeira casa de Misericórdia foi criada

em Santos-SP, a saúde no Brasil Colônia estava nas mãos das ordens religiosas. Porém, o

marco da assistência psiquiátrica no Brasil foi a inauguração do Hospício Pedro II em 1852

no Rio de Janeiro como anexo à Santa Casa de Misericórdia. Para Rosa (2003, p. 86), esse

hospício [...] surge como resposta à loucura e ao louco, alçado a problema social, no bojo das ameaças à ordem pública e à paz social, desencadeadas pelo crescimento do número de pessoas livres e ociosas que circulavam pelas cidades mais importantes do Império e principalmente na sede da corte.

Page 16: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

16

O hospício foi criado pelo decreto imperial 82 de 18 de Julho de 1841 sendo o

Imperador, convencido por José Clemente Pereira, Provedor da Santa Casa de Misericórdia,

que lhe propôs comemorar e marcar sua maioridade com a construção de um grande e

majestoso asilo. O dinheiro para a construção do hospício veio de loterias, doações do

Imperador e o chamado Imposto da Vaidade, que era a venda de títulos de nobreza não

hereditários. (RAMOS e GEREMIAS)

Desde então ele foi motivo de disputas entre os médicos e as religiosas. A direção

médica do hospício foi feita por um catedrático, o Dr. José Martins da Cruz Jobim, médico

legal, formado na França, berço do alienismo, que também era diretor da faculdade de

Medicina. Foi nele que Machado de Assis se baseou para criar seu personagem Dr. Simão

Bacamarte, o protagonista de “O Alienista”.

Porém a direção médica foi forçada a submeter-se a direção administrativa da Santa

Casa de Misericórdia até que em 1890, menos de um ano após a proclamação da República,

através do decreto 206-A de 15 de fevereiro de 1890, ele passou a ser chamado de Hospício

Nacional de Alienados e foi desanexado da Santa Casa.

Pode-se apreender desse fato, segundo refere Venâncio (2003), que o berço da

Psiquiatria brasileira é Medicina Legal. Essa raiz comum dessas duas especialidades não é

fortuita, pois elas influenciaram a formação da atual sociedade brasileira e ainda hoje se pode

perceber a proximidade e o conflito entre elas.

Depois do hospício Pedro II novos asilos destinados aos alienados mentais sugiram em

São Paulo, Pernambuco, Bahia, Pará, Rio Grande do Sul e Ceará. Com o advento da

República a construção de asilos se ampliou até chegar a Alagoas, Paraíba, Minas Gerais e

Paraná.

No Brasil colonial a preocupação com os chamados loucos não acontece apenas após a

criação do Hospício Pedro II. A ordem jurídica era estabelecida pelas chamadas ordenações

do Reino e nelas a loucura era conhecida com vários nomes: desassisados, sandeus,

mentecaptos, furiosos e desmemoriados. No Código Criminal do Império, de 1830, os doentes

mentais foram incluídos na designação “loucos de todo gênero”, designação esta que se

manteve no código até 1916.

Até o ano de 1830 no Brasil não havia nenhum tipo de assistência aos alienados. As

idéias de Pinel e Esquirol de certa forma contagiaram a recém criada Sociedade de Medicina

do Rio de Janeiro. Até então os loucos com posses eram mantidos escondidos em suas casas e

os pobres e indigentes ou vagavam pelas cidades ou eram mantidos nos porões das Santas

Casas. A Sociedade de Medicina se mobilizou em torno do lema “Aos loucos, o hospício!”.

Page 17: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

17

Como parte de sua persuasão ao Imperador, Jose Clemente, apresenta um relatório em 1839

onde afirma: Parece que entre nós a perda das faculdades mentais se acha qualificada como crime atroz, pois é punida com a pena de prisão, que, pela natureza do cárcere onde se executa, se converte na de morte (www.ccs.saude.gov.br/memoria%20da%20loucura/Mostra/retratos01.html)

O Dr. Luiz Vicente de Simoni, em setembro de 1839, publica na Revista Médica

Fluminense, uma descrição da condição dos alienados nos porões da Santa Casa referindo que

lá, em seus acessos de delírios, eles eram espancados com a intenção de serem acalmados.

O pensamento psiquiátrico brasileiro passa a incorporar outra característica: a teoria da

Degenerescência. Esta propunha a higienização e a disciplina da sociedade pregando a

hierarquia social onde o ápice era a raça ariana e a base era a negra. Segundo essa teoria a

raça negra era mais propensa à alienação por fatores biológicos. O agravamento das condições

sociais fortaleceu essa idéia. (PONTE, 1999)

O asilo passa a ser um símbolo emblemático da repressão e exclusão dos desordeiros.

Grande parte dos alienados ditos perigosos era da raça negra, algo que se explica pelo

contexto sócio histórico do país onde os negros sempre foram sistematicamente explorados e

marginalizados.

Algo que também é digno de ser registrado, não por sua notoriedade, mas por sua

perplexidade foi o avanço da população enclausurada no Hospício Pedro II. Em 8 de

dezembro de 1852 quando foi inaugurado sua população era de 144 asilados, já em 1894 esse

número saltou para 3201. Talvez baseado nessas estatísticas Machado de Assis faz com que o

Dr. Simão Bacamarte, protagonista de “O Alienista” repense sua teoria sobre a loucura. A

população da Casa Verde chegou a ser quatro quintos da população de Itaguaí, fato que fez o

alienista expressar o pensamento de que a loucura não era a falta de equilíbrio perfeito das

faculdades mentais, mas exatamente o contrário. Por isso mandou soltar os loucos e prender

todos aqueles que mantiveram um equilíbrio ininterrupto desde sua chegada a cidade.

Mas a realidade foi bem diferente da literatura. A superlotação fez com que os

atendimentos se degradassem e as suntuosas instalações que lhe valeu o codinome de “Palácio

dos Loucos” ficaram em estado de precariedade. Iniciou ali uma história de decadência que

foi um dos motivos da luta antimanicomial no País, tanto que para Resende (2000, p. 39) [...] remover, excluir, abrigar, alimentar, vestir, tratar. O peso relativo de cada um desses verbos na ideologia da nascente instituição psiquiátrica brasileira pendeu francamente para os dois primeiros da lista, os demais não entrando nem mesmo para legitimá-los.

Conforme levantamento histórico de VENANCIO (2003), a Psiquiatria foi instituída

no Brasil como especialidade médica através da Lei 3141 de 20 de Outubro de 1882, que

Page 18: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

18

continha regulamentação sobre o ensino da Psiquiatria no Brasil e exigia que se fizesse

concurso público para cátedra de Psiquiatria. O aprovado foi o Dr. Teixeira Brandão, que se

tornou também o diretor do hospício e permaneceu no cargo por quatorze anos. A partir daí a

psiquiatria no Brasil se fortaleceu com Teixeira Brandão, firmando suas convicções no

alienismo francês através de uma adesão incondicional ao Tratamento Moral.

O decreto 896 de 29 de Junho de 1892 instituía dois tipos de pacientes: os pensionistas

e os gratuitos. Em 1893, o decreto 1559 de 7 de Outubro criava o Pavilhão de Observação

onde eram recolhidos os pacientes gratuitos para serem observados por quinze dias até a

decisão de seu encaminhamento.

As aulas de psiquiatria eram ministradas no Pavilhão que se tornou o local de

formação de psiquiatras. Esse curso na faculdade de medicina durava apenas seis meses e

tinha como única exigência a freqüência. Era pouco o número de alunos que se apresentavam,

pois a idéia prevalente era que o louco tinha que ser “jogado” no hospício, que dificilmente se

curaria e ainda oferecia a possibilidade de rendimentos poucos vantajosos. Assim, nesse

período, tanto a “loucura” quanto a psiquiatria ficaram confinados ao Hospício.

Logo na aurora do século XX houve uma tentativa de reorganizar a relação entre

ciência e assistência. Em 1903, Juliano Moreira foi nomeado para ser diretor do hospício e lá

permaneceu até 1930. No ano de 1904 houve a separação entre a cátedra de Psiquiatria e a

direção do hospício. Aquela foi ocupada por Henrique Roxo. Esta separação trouxe a

possibilidade da criação de uma psiquiatria de certa maneira autônoma e distinta da

assistência.

Juliano Moreira não deu espaço para a Psiquiatria autônoma da academia, pois no

interior do asilo ele formou uma escola inspirada na psiquiatria alemã de Emil Kraepelin que

privilegiava as relações causais entre os distúrbios somáticos e as conseqüências mentais e

procurava sistematizar as entidades mórbidas mentais para classificações nosográficas. Era a

esperança nas pesquisas anátomo-patológicas.

Juliano não se opunha a teoria de degenerescência, mas atestava que a sociedade

brasileira poderia se pautar pelo ideal de igualdade moral dos indivíduos. Foi com ele que os

ideais preventivistas se fortalecem e estabelece campanhas, serviços abertos e ambulatórios.

Mesmo caótico o modelo asilar não foi abandonado. Por isso é correto dizer que a Psiquiatria

brasileira seguiu tanto o modelo francês de Pinel quanto o alemão de Kraepelin.

Um capítulo importante da psiquiatria brasileira foi a criação das “Colônias de

Alienados” que surgiu como tentativa de resgatar a credibilidade tanto do hospital psiquiátrico

como da própria psiquiatria. Amarante (2007) afirma que

Page 19: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

19

[...] a enorme dificuldade em estabelecer os limites entre a loucura e a sanidade; as evidentes funções sociais (ainda) cumpridas pelos hospícios na segregação de segmentos marginalizados da população; as constantes denuncias de violência contra pacientes internados, fizeram com que a credibilidade do hospital psiquiátrico e, em ultima instancia, da própria psiquiatria, logo chegasse aos mais baixos níveis”. (AMARANTE, 2007, P. 38)

Segundo Amarante (2007), a idéia da “Colônia de Alienados” surgiu baseada no relato

de uma aldeia Belga que recebia grandes quantidades de alienados por causa de uma romaria

anual e que oferecia trabalho a estes enquanto aguardavam o dia da festa da “Santa Padroeira

dos Insanos”. Para a surpresa dos alienistas muitos alienados que começaram a trabalhar com

foices e enxadas se recuperavam não tanto pelo milagre, mas pelo trabalho. Eles se puseram a

criar colônias agrícolas em grandes extensões de terras onde os alienados eram submetidos ao

trabalho terapêutico. Na gestão de Juliano Moreira foram criadas dezenas de colônias.

Quando Adauto Botelho sucedeu Moreira na Assistência Médico-Legal de Alienados, essa

idéia foi radicalizada. A colônia do Juquery, em São Paulo, chegou a ter 16 mil internos. Não

passou muito tempo e as colônias passaram a reproduzir os modelos do hospício. Enquanto,

após a Segunda Guerra, crescia a consciência pelos direitos humanos no mundo, os asilos,

hospícios, e as colônias de alienados não eram apenas formas de tratamentos desumanos, mas

desumanizantes.

Assim, nesse breve relato histórico, viu-se como a Psiquiatria se instituiu como

especialidade médica, mas não sem grandes questionamentos.

A “psiquiatria” quer nos fazer acreditar que a loucura sempre existiu. “Ela” se

justificou afirmando que as mais variadas formas como a loucura foi concebida no decorrer da

história da Humanidade apenas reflete o fato de não existir naquele momento recursos

“científicos” necessários para reconhecê-la. Segundo Amarante (1996), a História da Loucura,

de Foucault, nos ajuda a ver que a doença mental e a psiquiatria não existiram desde sempre,

mas que são situadas num dado momento histórico e que ambas são filhas de um projeto

tecnocientífico da modernidade. Baseada nos pressupostos da modernidade a psiquiatria

constituiu a doença mental como objeto de estudo isolando-a de todo o seu contexto que é

reproduzido subjetivamente dentro de culturas e conjunturas sociais.

Citando Sonenreich, Amarante (1996, p. 36) refere que “os críticos a psiquiatria

afirmam que ela pretende ser uma ciência absoluta, eterna e independente do tempo, da

cultura”. Por isso mesmo, a partir de seus conceitos e a natureza de seu objeto de estudo, ela

julga que seus pressupostos são suficientes para analisar o fenômeno da loucura antes mesmo

da sua formulação.

Page 20: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

20

Acertadamente Foucault (2005, p. 243) fala do monólogo da razão quando afirma que

“tudo é razão naquilo que a loucura pode dizer sobre si mesma, ela que é a negação da razão”.

Para este autor, a razão se faz sobre o silêncio da loucura, pois “o louco não pode ser louco

para si mesmo, mas apenas aos olhos de um terceiro” (2005, p. 186). Amarante (2007, p. 37)

refaz a pergunta de Foucault: “Como tão pouco saber pode gerar tanto poder?”.

Outra questão a ser levantada como crítica ao conceito de doença mental defendida

pela psiquiatria é o fato da constituição do individuo moderno vir da ordem burguesa que

assumiu a ciência como saber verdadeiro e instrumento da emancipação humana.

Ainda para Rosa (2003, p. 43), [...] o individuo é concebido como ser moral, racionalmente autônomo, livre e igual e estado de natureza, um valor em si mesmo. Todavia, esse indivíduo colocado como universal escamoteou a diversidade e coexistência desse individuo moderno com outras formas de vivência e percepção da individualidade.

A concepção da igualdade entre os indivíduos livres, morais e autônomos faz surgir a

necessidade de um contrato social. Mesmo sendo soberano e autônomo cada indivíduo está

sujeito a seus deveres e a des-obediência passa a ser regulada pelo Estado que define sua

liberdade. O discurso de igualdade dos ideais burgueses, por exemplo, pode ser amplamente

contestado no plano real. Como se falar de igualdade numa sociedade fundada na

desigualdade?

Nem todas as pessoas figuram da mesma maneira no espaço de ordenamento social. O

louco e a loucura questionam de forma veemente o principio essencial da sociedade burguesa

que é a razão. Nas palavras de Castel, citado por Rosa (2003, p. 45), [...] insensato, o louco não é sujeito de direito; irresponsável, não pode ser objeto de sanções; incapaz de trabalhar ou de ‘servir’ não entra no circuito regulador das trocas; essa ‘livre’ circulação de mercadorias e de homens à qual a nova legalidade burguesa serve de matriz. Núcleo da desordem, ele deve [...] ser reprimido [...] ilha de irracionalidade, ele deve ser administrado, porém, segundo normas diferentes das que designam às pessoas ‘normais’ e as sujeitam as tarefas em uma sociedade racional.

A nova ordem burguesa resolveu o problema que a loucura representava legitimando a

psiquiatria, isto é, restringiu um problema de uma dimensão política e social a um problema

médico. Ao medicalizar a loucura deu a ela um novo status: alienação ou doença. O louco

tornou-se tutelado pela Psiquiatria, podendo inclusive seqüestrar todos aqueles que eram tidos

como tais. Bastava não estar dentro do contrato social para que alguém alcançasse este status.

A partir da Segunda Grande Guerra Mundial, movido talvez pelas atrocidades dos

campos de concentração, o mundo passa a refletir mais sobre a natureza humana, tanto em

suas crueldades como na solidariedade, e surge um período propício para novas reformas no

campo da psiquiatria. A sociedade voltou seu olhar para as condições oferecidas aos doentes

Page 21: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

21

mentais e viu que os hospitais psiquiátricos não eram em nada diferentes dos campos de

concentração: havia uma total ausência de dignidade humana.

Assim nasceram as primeiras reformas psiquiátricas no mundo inteiro que, segundo

Amarante (2007), se dividiram em três grupos. O primeiro grupo é composto pela

Comunidade Terapêutica e pela Psicoterapia Institucional. Eles afirmavam que o motivo do

fracasso estava na forma de gerir o hospital psiquiátrico, sendo, portanto, necessário

introduzir mudanças na instituição. No segundo grupo estão a Psiquiatria de Setor e a

Psiquiatria Preventiva que acreditam que o modelo hospitalar está obsoleto, sendo necessária

sua substituição por serviços assistências alternativos, tais como, hospitais dia, centros de

saúde mental, até que não sejam mais necessários. E por fim, no último grupo estão a

Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática, para os quais o termo reforma é totalmente

inadequado, pois o centro da questão está no modelo cientifico psiquiátrico que é totalmente

colocado em xeque.

Podemos dizer que esses três tipos de posições permeiam as críticas a função da

Psiquiatria e dos hospitais psiquiátricos e as mudanças propostas pela Reforma Psiquiátrica no

Brasil. Passaremos agora a analisar os caminhos tomados pela Reforma Psiquiátrica no Brasil.

Page 22: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

22

III – REFORMA PSIQUIÁTRICA: POLÍTICAS E MOVIMENTOS SOCIAIS

Ao final dos anos 70 teve início no Brasil a Reforma Psiquiátrica, que preconizava

mudanças nos modelos de atenção aos portadores de transtorno mental. Três décadas após seu

início, a Reforma Psiquiátrica tem se mostrado um processo político e social muito complexo.

Ela surge como um movimento pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, [...] que passa a protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência as pessoas com transtornos mentais (BRASIL, 2005, p. 7)

É de especial importância para a Reforma o surgimento em 1987 do primeiro Centro

de Atenção Psicossocial (CAPS) na cidade de São Paulo e o processo de intervenção na Casa

de Saúde Anchieta em Santos/SP, pois com isso, pôde-se demonstrar a “possibilidade de

construção de uma rede de cuidados efetivamente substitutiva ao hospital psiquiátrico”.

(BRASIL, 2005, p. 7)

No ano de 1989 um Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado propôs a

regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos

manicômios. E, em 1992, vários estados inspirados neste projeto criam leis que determinam a

substituição dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental.

Com a assinatura da Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência

Nacional de Saúde Mental, no início da década de 90, surgem no país as primeiras leis

federais que regulamentam a implantação de serviços de atenção substitutivos – baseados nas

experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia – e normas para fiscalização e

classificação dos hospitais psiquiátricos. A partir desse momento houve um crescimento

contínuo do número de CAPS.

Com a aprovação da Lei Paulo Delgado (Lei Federal nº 10.216) em 2001 a assistência

passa a ser redirecionada “privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base

comunitária”. A partir daí são criadas linhas específicas de financiamento para os novos

serviços e em 2002 novos mecanismos para fiscalização, gestão e redução de leitos

psiquiátricos. O processo de desinstitucionalização é impulsionado nessa época com a criação

do Programa “De Volta para Casa”. (BRASIL, 2005, p. 8)

É de destaque a realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, pois ela [...] consolida a Reforma Psiquiátrica como política de governo, confere aos CAPS o valor estratégico para a mudança do modelo de assistência, defende a construção de uma política de saúde mental para os usuários de álcool e outras drogas, e estabelece o controle social como a garantia do avanço da Reforma Psiquiátrica no Brasil” (BRASIL, 2005, p. 10)

Page 23: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

23

Neste contexto de mudanças surgem os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT)

como componentes decisivos da nova política de saúde mental. São residências localizadas no

espaço urbano criadas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de

transtornos mentais graves. A inserção do usuário em um SRT é o “início de longo processo

de reabilitação que deverá buscar a progressiva inclusão social do morador” com respeito por

cada caso e ao ritmo de readaptação de cada pessoa à vida em sociedade. (BRASIL, 2005, p.

15).

Segundo o Ministério da Saúde (MS) [...] a articulação em rede dos variados serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico é crucial para a constituição de um conjunto vivo e concreto de referências capazes de acolher a pessoa em sofrimento mental. Esta rede é maior, no entanto, do que o conjunto dos serviços de saúde mental do município. Uma rede se conforma na medida em que são permanentemente articuladas outras instituições, associações, cooperativas e variados espaços das cidades. (BRASIL, 2005, p. 25)

Somente uma rede articulada dos diversos equipamentos da cidade (além dos de

saúde) é capaz de garantir resolutividade, promoção de autonomia e da cidadania das pessoas

com transtornos mentais. Tal rede é articulada dentro da noção de território que é – para além

do espaço geográfico – o local no qual as pessoas, instituições, redes e cenários dão vida a

comunidade. Assim, trabalhar no território não equivale a trabalhar na comunidade, mas a trabalhar com os componentes, saberes e forças concretas da comunidade que propõem soluções, apresentam demandas e que podem construir objetivos comuns (BRASIL, 2005, p. 26).

Sendo assim, a assistência às pessoas com transtornos mentais deve se dar numa rede

de atenção que inclua todos os recursos afetivos (relações pessoais, familiares, amigos etc),

sanitários (serviços de saúde), sociais (moradia, trabalho, escola, esporte etc.), econômicos

(dinheiro, previdência etc.), culturais, religiosos e de lazer dentro de um território. (BRASIL,

2004)

Nessa rede, o CAPS teria papel estratégico [...] tanto cumprindo suas funções na assistência direta e na regulação da rede de serviços de saúde, trabalhando em conjunto com as equipes de Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, quanto na promoção da vida comunitária e da autonomia dos usuários, articulando os recursos existentes em outras redes: sócio-sanitárias, jurídicas, cooperativas de trabalho, escolas, empresas etc. (BRASIL, 2004, p. 12)

Os CAPS são atualmente regulamentados pela Portaria nº 336/GM e [...] têm a missão de dar um atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial. (BRASIL, 2004, p. 12)

Mais adiante nos deter-se-á nos objetivos e atividades do CAPS.

Um dos principais desafios para a Reforma é a potencialização do trabalho como

instrumento de inclusão social dos usuários. Segundo o MS,

Page 24: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

24

[...] embora os diversos serviços da rede de atenção à saúde mental fomentem a criação de cooperativas e associações e realizem oficinas de geração de renda, estas experiências, mesmo que com ótimos resultados, caracterizam-se ainda por sua frágil sustentação institucional e financeira. (BRASIL, 2005, p.36)

Hoje a Economia Solidária é política oficial do Ministério do Trabalho e Emprego,

como resposta à exclusão das pessoas do trabalho por diversos fatores, entre eles a existência

de transtorno mental. “Como horizonte da Economia Solidária está a instauração da

solidariedade como norma social e a construção de empreendimentos coletivos e

autogestionários”. (BRASIL, 2005, p. 37)

É a partir do diálogo permanente dos campos da saúde mental e economia solidária

que o Programa de Inclusão Social pelo Trabalho começa a ser delineado para as pessoas com

transtornos mentais e transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas.

Em alguns municípios surgiram dispositivos concebidos no território da cultura e da

cidade que vem desempenhando papel estratégico na inclusão social das pessoas com

transtornos mentais: os Centros de Convivência e Cultura. Eles compõem a rede de atenção

substitutiva, oferecendo espaço de sociabilidade, produção cultural e intervenção na cidade.

Seu valor encontra-se no fato de serem concebidos fundamentalmente no campo da cultura, e

não da saúde. Sendo assim sua clientela é sobretudo de pessoas com transtornos mentais, mas

não exclusivamente. Nesses centros, [...] as oficinas e as atividades coletivas são o grande eixo do trabalho dos Centros,

assim como a articulação com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Centros

de Saúde, Serviços Residenciais Terapêuticos, Programa de Saúde da Família,

dispositivos da rede de assistência social, dos campos do trabalho, da cultura e da

educação. (BRASIL, 2005, p. 39)

Segundo o MS, “[...] um dos principais desafios para o processo de consolidação da

Reforma Psiquiátrica Brasileira é a formação de recursos humanos capazes de superar o

paradigma da tutela do louco e da loucura”. (BRASIL, 2005, p. 45)

Exige-se cada vez mais uma formação técnica e teórica para trabalhadores muitas

vezes desmotivados e em condições precárias de trabalho.

Nesse sentido, foi criado, em 2002, o Programa Permanente de Formação de Recursos

Humanos para a Reforma Psiquiátrica, que [...] incentiva, apóia e financia a implantação de núcleos de formação em saúde mental para a Reforma Psiquiátrica, através de convênios estabelecidos com a participação de instituições formadoras (especialmente universidades federais), municípios e estados. (BRASIL, 2005, p. 46)

Page 25: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

25

Entretanto, a sociedade de modo geral ainda coloca sobre a pessoa com transtorno

mental o estigma da incapacidade para o trabalho e a não legitimação de suas atitudes;

portanto ainda alvo de exclusão de modo geral. Segundo o MS, [...] alguns avanços no combate ao estigma foram alcançados, especialmente naquelas situações onde programas promovem concretamente a inclusão social dos pacientes, como no caso das residências terapêuticas, projetos de geração de renda e as atividades culturais promovidas pela rede de serviços. (BRASIL, 2005, p. 46)

Diversos grupos culturais (de teatro, música, rádio, etc) tem surgido e contribuído no

debate da Reforma bem como no combate ao estigma. (BRASIL, 2005).

Observando-se o processo da Reforma, verifica-se que num primeiro momento, as

associações de familiares juntaram-se ao coro de críticas ao processo de reforma. Entretanto

tal posição [...] foi mudando ao longo do tempo, e à medida que os próprios familiares iam sendo chamados a desempenhar o importante papel de “parceiros do tratamento” nos novos ambientes de atendimento: CAPS, ambulatórios, residências terapêuticas, rede básica. (BRASIL, 2005, p. 47)

Com o surgimento dos novos serviços também surgem novas críticas no ambiente

acadêmico. Entretanto a produção científica na área ainda é restrita. E é nesse contexto que

esta pesquisa se insere tendo por objetivo contribuir com a discussão no processo da Reforma

Psiquiátrica.

Os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS

O ambiente do CAPS é um ambiente aberto, acolhedor e inserido na cidade, no bairro.

Entretanto as práticas vão além de sua estrutura física. Como parte da estratégia de

reabilitação psicossocial e atenção às pessoas com transtorno mental podem articular o

cuidado clínico com atividades desenvolvidas fora do serviço - buscando uma rede social de

suporte - que se inicia ou é articulada pelo CAPS. No entanto, é desenvolvida na comunidade,

no trabalho e na vida social. Neste sentido [...] os projetos terapêuticos devem incluir a construção de trabalhos de inserção social, respeitando as possibilidades individuais e os princípios de cidadania que minimizem o estigma e promovam o protagonismo de cada usuário frente à sua vida. (BRASIL, 2004, p. 18)

Dentre as atividades dos CAPS, as oficinas terapêuticas são uma das principais formas

de tratamento. São [...] atividades que podem ser definidas através do interesse dos usuários, das possibilidades dos técnicos do serviço, das necessidades, tendo em vista a maior integração social e familiar, a manifestação de sentimentos e problemas, o desenvolvimento de habilidades corporais, a realização de atividades produtivas, o exercício coletivo da cidadania. (BRASIL, 2004, p. 20)

De um modo geral as oficinas podem ser expressivas (pintura, teatro, música, etc.), de

geração de renda (culinária, marcenaria, artesanato, etc.) e de alfabetização.

Page 26: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

26

Entre as atividades comuns dos CAPS temos: tratamento medicamentoso, atendimento

a grupo de familiares (criação de laços de solidariedade, discussão de problemas e

participação no projeto terapêutico), atendimento individualizado à famílias (orientação e

acompanhamento), orientação (assessoramento sobre um tema específico), atendimento

psicoterápico (individual ou em grupo), atividades comunitárias (com recursos comunitários

envolvendo os diversos atores sociais e instituições. ex: festas juninas, feiras, passeios),

atividades de suporte social (inserção no trabalho, atividades de lazer, obtenção de

documentos, etc.), oficinas culturais (despertar interesse pelos espaços da cultura,

promovendo integração de usuários e família com local de moradia), visitas domiciliares,

desintoxicação ambulatorial (para usuários de álcool/drogas).

A permanência do usuário no atendimento do CAPS depende de muitas variáveis que

inclui desde o seu comprometimento psíquico até o projeto terapêutico e da rede de apoio

familiar e social que se pode estabelecer. O usuário do CAPS não devem ficar dependentes

totalmente do serviço e por toda a vida. Portanto, “[...] o processo de reconstrução dos laços

sociais, familiares e comunitários, que vão possibilitar a autonomia, deve ser cuidadosamente

preparado e ocorrer de forma gradativa”. (BRASIL, 2004, p. 27)

Para isso o CAPS precisa estar inserido numa rede de serviços e organizações que

promovam um continuum de cuidados (BRASIL, 2004).

Para o MS (2005, p. 27), “[...] cabe aos CAPS o acolhimento e a atenção às pessoas

com transtornos mentais graves e persistentes, procurando preservar e fortalecer os laços

sociais do usuário em seu território”.

De fato, o CAPS é o núcleo de uma nova clínica, produtora de autonomia, que convida

o usuário à responsabilização e ao protagonismo em toda a trajetória do seu tratamento.

Segundo o MS (2004, p. 28), “o protagonismo dos usuários é fundamental para que se

alcancem os objetivos dos CAPS”. Portanto eles devem ser chamados a participar das

discussões a cerca das atividades terapêuticas. Mas, para além dos CAPS, os usuários devem

ser incentivados a participar em associações e cooperativas que promovam a discussão de

problemas comuns e soluções coletivas.

Os familiares são considerados parceiros dos CAPS, e podem participar, além de

incentivar o envolvimento do usuário no projeto terapêutico, das atividades internas do

serviço, projetos de trabalho e atividades comunitárias de integração social (BRASIL, 2004).

A articulação do CAPS com a comunidade é fundamental, pois ela é o “conjunto de

pessoas, associações e equipamentos que fazem existir a vida numa certa localidade”

Page 27: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

27

(BRASIL, 2004, p. 29). A comunidade através dos seus serviços públicos, associações,

voluntários, etc. pode ser parceira do CAPS através de doações, cessão de instalações,

prestações de serviços, instrução e treinamento de algum ofício, realização conjunta de

evento, etc. Essa parceria permite a realização de um grande número de trocas, o que é bom

para todos, pois reforça os laços sociais e afetivos e produzem maior inclusão de seus

membros.

Como já apontado anteriormente, um dos objetivos do CAPS é a Reabilitação

Psicossocial dos usuários. Porém, esse conceito não é definido claramente nos documentos do

MS, aparecendo apenas “indiretamente”, através dos conceitos gerais, práticas e estratégias

propostas, cuja fundamentação teórica não está presente nos corpo dos projetos, mas podem

ser contextualizadas dentro da literatura. Entretanto, até mesmo na literatura da área não há

consenso entre os autores a respeito do conceito de Reabilitação Psicossocial. Procurar-se-á

no próximo capítulo apresentar as discussões em torno desse conceito construindo elos com o

que está fundamentado na política oficial brasileira.

Page 28: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

28

IV – REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL: DISCUSSÕES EM TORNO DA

AMPLITUDE DO CONCEITO

Ao examinar etimologicamente os significados da palavra reabilitação observa-se uma

variação de sentidos. Segundo Ana Pitta, o prefixo latino RE evoca um movimento para traz e/ou, também, traduz a idéia de repetição, mudança de estado e realce, algumas vezes. Habilitação por sua vez, é o ato ou efeito de habilitar-se através de um conjunto de conhecimentos, aptidões, capacidades. Juridicamente, a palavra implicaria ainda nas formalidades necessárias para aquisição de um direito ou demonstração de uma capacidade legal para o desempenho de alguma atividade. [...] Quando juntos na palavra Reabilitação, impõe um sentido de recobrança de crédito, estima ou bom conceito perante a sociedade. Recupera faculdades físicas ou psíquicas dos incapacitados e é este sentido “ortopédico” de reabilitação de funções físicas o que mais facilmente acorre no imaginário brasileiro (PITTA, 1996, p. 23).

Assim, observa-se o quanto a estereotipia da palavra exerce um sentido para a

sociedade, podendo a partir daí distorcer o seu real valor.

De outro modo a Reabilitação Psicossocial [...] configura-se como um conjunto de estratégias direcionadas a aumentar as possibilidades de troca, a valorização das subjetividades e a proporcionar contratualidade e solidariedade, ultrapassando, assim, a mera implantação das redes de serviço. (PEREIRA, 2007, P. 154).

Entre outras coisas, deve proporcionar uma recuperação da capacidade de gerar

sentido, que em algum momento foi perdida, necessitando de espaços não protegidos e

abertos socialmente para que ela ocorra.

Segundo Saraceno (1996, p. 16), a reabilitação psicossocial pode ser vista como um

processo de “[...] reconstrução, um exercício pleno da cidadania, e, também, de plena

contratualidade nos três grandes cenários: habitat, rede social e trabalho com valor social”.

Para Lussi et al, [...] a reabilitação seria compreendida pelo conjunto de ações que se destinam a aumentar as habilidades do indivíduo, diminuindo, conseqüentemente suas desabilitações e a deficiência, podendo também no caso do transtorno mental diminuir o dano. Para que ocorra uma efetiva reabilitação é importante a reinserção da pessoa na sociedade. Quando a pessoa acredita que é incapaz ou impotente frente à dinâmica de sua vida, há o surgimento de um estado de inércia e diminuição de sua condição para o enfrentamento das dificuldades vividas, situação que pode ser modificada à medida que o apoio da rede social se amplia. (LUSSI et al, 2006, p. 449)

Pensar em reabilitação nestes termos nos leva a reconstrução de uma nova forma de

abordar e compreender os indivíduos com transtornos mentais, contribuindo para que haja um

exercício de incorporação destes sujeitos no processo de superação de suas dificuldades.

Neste sentido, faz-se necessário que haja nas instituições de assistência psicossocial o

direcionamento para que os cuidados produzidos sejam de fato reabilitadores e produtores de

sentido, sendo o profissional um elemento catalisador, facilitador e referência para que o

Page 29: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

29

indivíduo que necessita ser reabilitado e reinserido na sociedade possa reconstruir seus

processos subjetivos e retomar seu próprio caminho. Para isso, é importante que o profissional

se comprometa eticamente com a assistência e com seu próprio desejo, e que possa

reconstruir a cada dia o sentido da sua prática. (PEREIRA, 2007)

Pereira (2007, p. 158) afirma que “os referenciais teóricos da reabilitação psicossocial

baseiam-se em conceitos como autonomia, socialização, cidadania e contratualidade”. Tais

conceitos estão ligados a comportamentos e capacidades interdependentes, que estão

presentes em todos os indivíduos, em menor ou maior nível.

Segundo Kinoshita (2006, p. 57), autonomia é a “capacidade de um indivíduo gerar

normas, ordens para a sua vida, conforme as diversas situações que enfrente”. Não deve ser

confundida com independência ou auto-suficiência, pois todos somos dependentes de coisas e

relações em maior ou menor nível. O problema é que as pessoas que apresentam transtornos

mentais “dependem excessivamente de apenas poucas relações/coisas”, o que diminui sua

autonomia. Nossa capacidade autônoma aumenta na medida em que dependemos de tantas

mais coisas, pois isso amplia nossas possibilidades de estabelecer novas normas para a vida.

Como já assinalado, é importante o compromisso ético do profissional, sendo um

facilitador e referência para que o indivíduo em sofrimento psíquico possa reconstruir e

retomar seu próprio caminho. “Porém, esse caminho sem fim pré-determinado, terá o

percurso que o caminhante puder/quiser andar” (PEREIRA, 2007, p. 155).

Nesse sentido, pensar em autonomia enquanto objetivo no processo de reabilitação é

considerar a individualidade da pessoa, valorizando as mudanças possíveis como conquistas

alcançadas por um papel muito mais ativo diante do próprio tratamento e da vida.

Socialização e/ou inserção social dizem respeito a aspectos fundamentais dentro do

processo de Reabilitação Psicossocial e do próprio projeto e objetivo do CAPS, como

assinalado anteriormente. Como aponta Saraceno (1996, p. 14), “a reabilitação engloba a

todos nós profissionais e a todos os atores do processo de saúde-doença, ou seja, todos os

usuários, todas as famílias dos usuários e finalmente a comunidade inteira”. Nesse sentido, a

inserção e reinserção deve levar em conta o fortalecimento e criação de vínculos das pessoas

em sofrimento com à família e de uma forma mais ampla com as pessoas nos diferentes

espaços na sociedade, para que ele possa realizar os mais variados tipos de trocas materiais,

afetivas, e simbólicas.

Como exposto, também o exercício da cidadania está articulado com a reabilitação

psicossocial. Para o entendimento a respeito de cidadania, esclarecemos que a origem da

palavra vem do latim “civitas”, que quer dizer cidade. A palavra cidadania foi usada na Roma

Page 30: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

30

antiga para indicar uma situação política de uma pessoa e os direitos que essa pessoa tinha ou

podia exercer. Segundo Dalmo Dallari, [...] a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social (DALLARI, 1998, p.14).

Existe ainda a predominância de uma visão reducionista da cidadania em nossa

sociedade, o que impede um questionamento a respeito, por exemplo, da obrigatoriedade do

voto, do pagamento de impostos, entre outras coisas. Fazer coisas que nos são impostas são

vistos como algo comum a um cidadão.

Os direitos do cidadão são conquistados, porém algumas vezes são vistos

erroneamente como uma concessão. A cidadania é construída a partir da capacidade de

organização, participação e intervenção social. Construir cidadania é também construir novas relações e consciências. A cidadania é algo que não se aprende com os livros, mas com a convivência, na vida social e pública. É no convívio do dia-a-dia que exercitamos a nossa cidadania, através das relações que estabelecemos com os outros, com a coisa pública e o próprio meio ambiente. A cidadania deve ser perpassada por temáticas como a solidariedade, a democracia, os direitos humanos, a ecologia, a ética. (http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/textos/oque_e_cidadania.html4)

Para que a pessoa possa ter um nível possível de autonomia, estar inserida na

sociedade e exercer sua cidadania é importante que ela possua poder de contratualidade. Esse

poder representa a capacidade que um indivíduo possui de fazer suas trocas materiais ou

afetivas, principalmente em três espaços: casa, trabalho com valor social e rede social

(Saraceno,1996).

Para Saraceno (1996), todas as pessoas são mais ou menos habilitadas ou

desabilitadas. Isso nos permite pensar que ninguém é plenamente habilitado, assim como,

ninguém é plenamente desabilitado. Mas apesar dessa condição, todos nós temos algum nível

de contratualidade, algum poder de troca afetiva ou material.

As pessoas, dentro de suas casas, no espaço privado de suas famílias, exercitam seu

poder de contratualidade. Elas conversam entre si, fazem seus arranjos. Emprestam e tomam

emprestado. Falam e escutam. Há uma dinâmica na vida familiar que todos os seus membros

acabam por participar exercendo, com suas habilidades, o poder contratual que possui.

O cenário onde uma pessoa exerce sua contratualidade se expande para o mundo do

trabalho onde sua função é reconhecida como tendo um valor social. Tal é o caso, por

4 Texto sem autoria e data de publicação, disponível em <http://www.dhnet.org.br>, site de uma rede de pessoas que se dedicam a compartilhar e divulgar textos e conhecimentos relativos aos direitos humanos. Acesso em 18 de Agosto de 2008.

Page 31: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

31

exemplo, do projeto de geração de renda em Diadema (Informação Verbal5), onde alguns

usuários do CAPS realizam um trabalho de reciclagem do lixo, separando aquilo que pode ser

reutilizado. Numa época em que se discute a preservação do meio ambiente e o cuidado com

os recursos naturais, a reciclagem é de valor social inestimável.

A contratualidade, porém, não está apenas na execução da tarefa em si. Começa bem

antes quando a pessoa oferece sua mão de obra e aceita o trabalho que lhe é oferecido. A

partir daí, há uma série de trocas que são feitas e a pessoa usa seu poder de negociação.

O exercício do poder de contratualidade não se limita apenas a casa e ao trabalho. Ele

estende-se para a rede social mais ampla. É a pessoa que pega uma condução e paga a sua

passagem; chega ao supermercado e escolhe a marca do produto que deseja comprar; e de

repente percebe que o preço no mercado vizinho é mais barato, então deixa ali a mercadoria e

vai comprar onde lhe parece melhor. Mas ainda, a contratualidade não se limita ao mercado.

Está em todas as relações sociais, porque essa pessoa tem um saber, uma história, que lhe é

própria e pode ser compartilhada com outras pessoas. Então, pessoas idosas, jogando dominó

nas praças da cidade, contando suas histórias, partilhando seus saberes, também exercem sua

contratualidade. Para Saraceno (1996, p. 15), É dentro destes cenários que temos o desenrolar das cenas, das histórias, dos efeitos de todos os elementos: dinheiro, afetos, poderes, símbolos, etc. Cada um com seu poder de aquisição neste mundo onde, às vezes, somos mais hábeis ou menos hábeis, mais habilitados ou menos habilitados.

A Reabilitação Psicossocial de pessoas portadoras de sofrimento psíquico passa

necessariamente por variáveis que irão trabalhar a favor ou contra o aumento do poder de

contratualidade.

Pensando ainda nos usuários dos CAPS, encontramos pessoas “sem nenhum poder de

contratualidade” na casa. Isso simplesmente porque elas não têm casa. O trabalho é outra

questão muito séria. Poucos têm condições de produzir um trabalho com valor social que lhes

confira um poder contratual.

As redes sociais para essas pessoas também são limitadas. A desinformação e o

preconceito resistem não apenas ao fim dos manicômios enquanto instituições físicas, mas

acima de tudo, aos construídos nas mentes das pessoas.

O trabalho de Reabilitação Psicossocial, entre outras coisas, deve dar condições para

que as pessoas em sofrimento psíquico que já possuem algum nível de poder contratual

5 Informação veiculada por profissional psicóloga supervisora de estágio e diretora de CAPS do referido município, durante supervisão de estágio “Clínica das Psicoses” do curso de Psicologia do Centro Universitário de Santo André.

Page 32: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

32

possam aumentá-lo, e para que aquelas que não têm nenhum poder possam alcançá-lo em

algum nível.

Entretanto, essa passagem de um nível ao outro não ocorre de maneira simples, sendo

preciso antes mesmo de se pensar nas estratégias e técnicas necessárias refletir sobre a

concepção de sujeito que os profissionais que trabalham nos serviços de atenção psicossocial

possuem. Pois [...] no universo social, as relações de trocas são realizadas a partir de um valor previamente atribuído para cada indivíduo dentro do campo social, como pré-condição para qualquer processo de intercâmbio. Esse valor pressuposto é que daria-lhe o seu poder contratual. (KINOSHITA, 1996, p. 55)

Kinoshita (1996) assinala três dimensões fundamentais do poder de contratualidade:

trocas de bens, de mensagens e de afetos. Ao atribuirmos o rótulo de doente mental à pessoa,

enunciamos sua negatividade, o que invalida e torna negativo o valor pressuposto, anulando,

assim seu poder de contratualidade em relação a estas três dimensões: os bens dos loucos

tornam-se suspeitos; as mensagens incompreensíveis; os afetos desnaturados. A pessoa aqui

referida passa a ter positividade apenas na sua dimensão de doente, anulando-se, assim

qualquer valor que o assegure como sujeito social capaz de realizar trocas.

Neste sentido, Kinoshita (1996, p. 56) propõe uma reconstrução destes valores,

modificando o pressuposto de desvalor natural para um pressuposto de valor possível. Para

isso “é fundamental que se inicie pela desconstrução do dispositivo que produz e mantém

aquele desvalor, o dispositivo manicomial”. Mas não apenas o manicômio como espaço

físico, como já assinalado, mas aquele que está na mente dos atores que operam as

transformações da reforma psiquiátrica, os profissionais.

Assim, a contratualidade será determinada primeiramente pela relação da pessoa em

sofrimento psíquico com o profissional que a atende, se este é capaz ou não de emprestar o

seu poder contratual para aumentar o do primeiro. Depois pela capacidade de realizar ações

práticas que modifiquem as condições concretas de vida, de modo que se enriqueça a

subjetividade da pessoa em sofrimento, e pela contextualização das abordagens terapêuticas

dentro do projeto elaborado para cada indivíduo.

A existência de variáveis que realmente influem sobre o efeito da melhora ou piora

dos pacientes são distribuídas em dois grandes extremos: um micro e um macro. O micro está no nível da afetividade, da continuidade, e o real vínculo entre o paciente e o profissional, ou seja, o gasto de tempo, energia, afetividade, etc, que se tem nesta relação. Existe também o macro, isto é, a maneira como o serviço está organizado, se está aberto 24h ou 12h. Se está aberto a comunidade, se ele tem aprovação de seus usuários, se satisfaz minimamente às pessoas que atende e, também aos profissionais que nele se inserem, utilizando recursos vindos da comunidade, ou somente recursos institucionais. (SARACENO, 1996, p. 17)

Page 33: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

33

Uma pesquisa realizada demonstrou que “[...] as variáveis sociais influenciam mais o

sucesso ou insucesso do processo reabilitativo que as variáveis psicopatológicas e

diagnósticas” (LUSSI et al, 2006, p. 452). Neste sentido, podemos entender que os

profissionais do CAPS devem realizar atividades com os pacientes contribuindo para inserção

dos mesmos no contexto social, pois essas estariam na base da determinação social dos

processos de saúde-doença. Desta forma e a partir dessa compreensão o foco do trabalho dos

profissionais não deveria ser a doença o que lhe reduziria o ângulo de visão, mas as

capacidades que os sujeitos possuem para realizações, busca de satisfação e desenvolvimento

de maior autonomia. É diferente, no entanto, do modelo hospitalocêntrico que visa atender a

demanda da doença e não as necessidades sociais dos indivíduos.

Segundo Saraceno (1996), um desafio para os reabilitadores é pensar a palavra

entretenimento. Em italiano entretenimento significa diversão. Na sua raiz latina,

entretenimento também significa manter dentro. E aí que está o desafio da reabilitação. Entreter para manter dentro, pode ser manter dentro da hospitalização, dentro da cultura psiquiátrica, que no lugar de produzir saúde, reproduz enfermidade. (SARACENO, 1996, p. 18)

É importante lembrar que o processo de reabilitação não é pertinente somente aos

profissionais da área de saúde mental, engloba a todos profissionais e a todos os atores

(usuários, famílias e comunidade em geral) do processo de saúde-doença, como já assinalado

anteriormente. (SARACENO, 1996)

Segundo Goldberg (1996) pode-se dizer que o conceito de reabilitação, foi sendo

inserido gradativamente no CAPS. Foi necessária a sua implantação como um dispositivo

político para que as práticas e conceitos no seu interior fossem sendo transformadas. Podemos

sugerir, no entanto, que as contradições ainda permanecem, pois no cotidiano do trabalho

estão em jogo tanto as velhas como as novas práticas e conceitos reiterados pelo conjunto de

pessoas que o compõe: os usuários, os familiares, os trabalhadores e os gestores de políticas

públicas.

Portanto, o que se observa como um sinal positivo de mudança é que o foco do

trabalho realizado dentro do CAPS faz com que a equipe direcione cada vez mais seu olhar

para o indivíduo, visando o seu desenvolvimento pessoal e social, respeitando o tempo de

cada um, com o objetivo de desenvolver maior autonomia e engajamento social.

Por fim, concordamos com Ana Pitta que falar em Reabilitação Psicossocial no Brasil [...] é estar a um só tempo falando de amor, ira e dinheiro. Amor pela possibilidade de seguirmos sendo sujeitos amorosos, capazes de exercitar a criatividade, amizade, fraternidade no nosso “que fazer cotidiano”. Ira traduzida nesta indignação saudável contra o cinismo das nossas políticas técnicas e sociais para a inclusão dos

Page 34: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

34

diferentes. E dinheiro para transformar as políticas do desejo em políticas do agir, estando aqui incluída a preocupação com um destino, eticamente irrepreensível para os recursos pequeninos que devem ter a incumbência de reduzir as formas de violência que exclui e segrega um número sempre significativo de brasileiros. (PITTA, 1996, p. 26)

Page 35: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

35

V – PROBLEMA E OBJETIVO

Considerando as mudanças nas políticas de Saúde Mental no Brasil, a necessidade de

se pensar um modelo de atenção à saúde em rede – que envolve a utilização e articulação de

diferentes dispositivos de saúde, sociais e culturais –, e o conceito/processo de reabilitação

psicossocial que surge como um dos pilares para concretização dessas mudanças, a

problemática que nos guiou na presente pesquisa foi compreender e refletir sobre a concepção

de reabilitação psicossocial de profissionais atuantes em CAPS. Pois para nós, a apropriação e

o (re)conhecimento de um modelo de atenção tal como propõe as políticas é o primeiro passo

no sentido de concretização dos objetivos destas mesmas políticas.

Neste sentido, nosso objetivo foi identificar a representação de Reabilitação

Psicossocial de psicólogos e psiquiatras atuantes em CAPS da Região do ABC Paulista,

considerando a literatura existente na área e algumas diretrizes da política nacional de saúde

mental, contidas em documentos do Ministério da Saúde.

Outrossim, esperamos que esta pesquisa possa despertar outras reflexões e pesquisas

sobre avaliação e correspondência entre as políticas e a atuação dos profissionais inseridos

nestes dispositivos, contribuindo com o aperfeiçoamento e discussão do processo de

reabilitação psicossocial na perspectiva dos serviços de atenção em Saúde Mental.

Page 36: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

36

VI – PROCEDIMENTOS

Tipo de pesquisa

Para a apreensão do objeto foi utilizado método qualitativo, tendo como instrumento

uma pesquisa estratégica de natureza avaliativa. Por "Pesquisa Estratégica" entendemos aquela que se fundamenta nas teorias das ciências sociais, mas têm como principal objetivo esclarecer determinados aspectos da realidade para a ação das políticas públicas. Seus instrumentos são freqüentemente interdisciplinares e seus resultados se encaminham, para a solução de problemas. (MINAYO, 2004, p. 236).

A pesquisa avaliativa não se constitui de um pacote metodológico padronizado. Ela é

uma estratégia de investigação. A escolha das ferramentas de pesquisa depende das decisões

tomadas em cada caso. Segundo Silva (2008), A finalidade dos estudos avaliativos é contribuir para a tomada de decisões e o resultado do trabalho pode ser encaminhado e discutido com os participantes do programa, com os que financiam ou supervisionam o programa ou pessoal externo interessado (SILVA, 2008, p. 71).

Para acompanhar qualquer transformação proposta pelas políticas de saúde publica é

importante conhecer o ponto de vista dos profissionais que atuam nos programas

estabelecidos pela política oficial, uma vez que eles atuam no campo onde ocorrem as

transformações históricas das práticas de saúde, admitindo seu nível de racionalidade e

promovendo sua viabilidade.

Tendo como objeto-sujeito de seus estudos a cultura dos trabalhadores, em relação ao

fenômeno saúde-doença, essas pesquisas contrapõem ao campo da dominação, a relativização

das culturas, a lógica interna dos diferentes profissionais, sua contribuição para a sociedade,

os motivos de sua resistência ao que lhes é imposto e seu papel na mudança das instituições

que atuam.

O respeito ao ponto de vista dos sujeitos da pesquisa se dá, portanto, não como

estratégia de dominação, mas para propor modificações à lógica de simples reprodução do

modelo excludente e violador dos direitos das pessoas que apresentam diferentes necessidades

e/ou sofrimento psíquico intenso (MINAYO, 2004, p. 236).

Campo de estudo e sujeitos de pesquisa

A região do ABC foi escolhida para ser o campo dessa pesquisa não apenas por

abrigar a sede de nossa instituição de ensino, mas principalmente por ser um lócus de

implantação da reforma psiquiátrica brasileira, contando com diferentes experiências nos

vários Municípios que a compõe.

Page 37: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

37

Os sujeitos desta pesquisa, psicólogos e psiquiatras, fazem parte dos dispositivos

inovadores das políticas no campo da saúde mental, os CAPS. Sendo assim, espera-se que

estejam concatenados com os pressupostos teóricos e políticos que acompanham as mudanças

do modelo manicomial proposto pelo Ministério da Saúde através de seus documentos.

A forma de acesso aos sujeitos se deu primeiramente através das coordenações

municipais dos serviços de saúde mental, às quais foi enviado um ofício da coordenação do

curso de Psicologia, solicitando autorização e expondo os motivos da pesquisa. Com a

autorização dos coordenadores de saúde mental foram contatados os diretores dos CAPS que

permitiram o contato com os sujeitos da pesquisa para a marcação da entrevista.

O critério de escolha dos participantes seguiu primeiramente a indicação do diretor dos

CAPS e a aquiescência do sujeito em participar da pesquisa.

Das seis cidades da Região do ABC Paulista que tentamos contato para a realização da

pesquisa – Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano, Diadema, Mauá e Ribeirão

Pires –, em quatro obtivemos sucesso e conseguimos autorização. Quanto às outras duas

cidades, em uma não obtivemos sucesso em contatar o coordenador municipal, e na outra o

coordenador municipal do serviço estava de férias e não souberam informar, mesmo na

Secretaria de Saúde, quem poderia autorizar nosso contato com os profissionais.

No total foram realizadas oito entrevistas, sendo três delas com psiquiatras e cinco

com psicólogos.

Instrumento de coleta de dados

Esta pesquisa utilizou um roteiro de entrevista semi-aberta que permitiu a combinação

de perguntas fechadas e abertas, e possibilitou ao pesquisador ter vários ângulos de apreensão

do objeto. O entrevistado teve a possibilidade de se manifestar de forma espontânea diante

das perguntas, conforme refere Lang (2001). Através do depoimento oral, busca o pesquisador obter o testemunho do entrevistado sobre sua vivência em determinadas situações ou participação em determinadas instituições que se quer estudar, observando-se que, nas ciências sociais, o depoimento não tem o sentido de estabelecimento da verdade, mas de conhecimento de uma versão devidamente qualificada (LANG, 2001, p. 96).

Outras questões específicas levadas em consideração nas entrevistas foram: o tempo

de formação do profissional; se este recebeu algum treinamento específico para trabalhar nos

CAPS; e se já trabalhou ou trabalha em hospitais psiquiátricos. No entanto essas informações

somente foram utilizadas para descrever as características gerais dos sujeitos, tendo em vista

Page 38: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

38

que os dados foram insuficientes para levantar hipóteses comparativas. Para uma melhor

visualização elas foram dispostas em gráficos.

De maneira geral o roteiro das entrevistas contemplou além da caracterização do

sujeito, os seguintes aspectos: qual a função dos CAPS na opinião dos entrevistados; qual o

conceito de reabilitação psicossocial; como a sua prática contribui para esta reabilitação. Por

fim foi solicitado que o entrevistado pudesse mencionar livremente, três palavras relacionadas

com a reabilitação.

As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos profissionais entrevistados e

tiveram uma duração média de 15 minutos cada. A opção de gravar as entrevistas permitiu a

transcrição literal de seus conteúdos garantindo fidelidade ao discurso do sujeito.

Aspectos éticos

O projeto de pesquisa seguiu as diretrizes da resolução 196/96 que regulamenta as

pesquisas com seres humanos. Também foi submetido à aprovação do Comitê de Ética em

Pesquisa da Anhanguera-Unia.

Aos entrevistados foi esclarecido que a participação na pesquisa era voluntária e que

seria guardado o sigilo sobre o conteúdo disponibilizado. Ainda foi ressaltado que seriam

tomadas todas as medidas para que as identidades dos participantes fossem preservadas não

permitindo identificação, dos seus dados pessoais, e do conteúdo de sua entrevista.

O termo de consentimento livre e esclarecido foi assinado pelos entrevistados

juntamente com o pesquisador mais o professor orientador. Constou do termo: o caráter

voluntário da pesquisa; a identificação da Instituição de ensino onde a pesquisa é

supervisionada; objetivos da pesquisa; e autorização para a gravação das entrevistas.

O local da realização da pesquisa foi os CAPS onde cada sujeito participante trabalha.

Análise de conteúdo

A leitura das entrevistas foi realizada utilizando-se o método de análise de conteúdo

conforme descrito por Triviños (1994), que salienta a importância do apoio do referencial

teórico para que o pesquisador tenha clareza e domínio dos princípios básicos da teoria

norteando a leitura dos documentos como pode ser visto nas próprias palavras do autor:

Voltamos a salientar que qualquer técnica (entrevista, questionário etc.) adquire sua força e seu valor exclusivamente mediante o apoio de determinado referencial teórico. E, naturalmente, a análise de conteúdo não foge a este enunciado geral (...). A classificação dos conceitos, a codificação dos mesmos, a categorização etc. são

Page 39: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

39

procedimentos indispensáveis na utilização deste método que comentamos. Mas todos estes suportes “materiais” serão francamente inúteis no emprego da análise de conteúdo se o pesquisador não possuir amplo campo de clareza teórica. Isto é, não será possível a inferência se não dominarmos os conceitos básicos das teorias, segundo nossas hipóteses, estariam alimentando o conteúdo das mensagens (TRIVINOS, 1987, P. 159-160).

No caso desse estudo, para apropriação dos conceitos fundamentais foram estudados

os autores que tratam do campo da reforma psiquiátrica, mais especificamente da Reabilitação

Psicossocial.

A análise de conteúdo desta pesquisa também se baseia no trabalho de Bardin (2006),

que a define como:

[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens [...] é a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção (ou, eventualmente, de recepção), inferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não) (BARDIN, 2006, P. 33-34).

As entrevistas foram transcritas literalmente pelos próprios pesquisadores, e cada uma

delas lida varias vezes o que permitiu uma apreensão global dos conteúdos descritos, obtendo

primeiramente a compreensão da visão geral do entrevistado.

Em seguida, conforme assinala Bardin (2006, p. 94), foram selecionados os trechos

das entrevistas que podiam ser classificados em unidades comparáveis de categorização. Um

mesmo recorte foi usado concomitantemente para temas distintos. Para se alcançar esse

objetivo se recorreu à noção de tema referida por este autor. Na verdade, o tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo certos critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura. O texto pode ser recortado em idéias constituintes, em enunciados e em proposições portadores de significações isoláveis [...]. Fazer uma análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença ou freqüência de aparição podem significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido [...]. O objeto ou referente: trata-se de temas-eixo, em redor dos quais o discurso se organiza (BARDIN, 2006, p. 99).

Para auxiliar na compreensão da idéia central expressada pelos entrevistados optou-se

em destacar as palavras e frases que referiam relação com as categorias propostas. As

categorias de análise foram sendo constituídas a partir da leitura dos trabalhos o que

possibilitou classificar o conteúdo dos discursos nas suas semelhanças e diferenças, não

sendo, portanto definidas a priori. Como refere Bardin (2006:113) sobre o emprego da

categorização para dois processos inversos.

É fornecido o sistema de categorias e repartem-se da melhor maneira possível os elementos, à medida que vão sendo encontrados [...]. O Sistema de categorias não é

Page 40: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

40

fornecido, antes resultando da classificação analógica e progressiva dos elementos. Este é o procedimento por milha. O título conceptual de cada categoria somente é definido no final da operação. (BARDIN, 2006, p. 113).

Page 41: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

41

VII – RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise das entrevistas realizadas foi dividida em dois tipos: análise geral, onde

caracterizamos a amostra de profissionais pesquisados; e a análise do conteúdo das entrevistas

e discussão, na qual exploramos e discutimos as representações de reabilitação psicossocial

presentes nos discursos destes profissionais.

1 - Análise geral

A amostra final contou com oito entrevistas com profissionais das áreas de psiquiatria

e psicologia que atuam nos CAPS da região do ABC paulista. Neste tópico buscou-se recolher

algumas informações que pudessem mostrar distinções e similaridades entre os entrevistados.

Quanto à idade dos entrevistados houve uma distribuição diversificada dentro das

faixas etárias delimitadas, conforme demonstrado na figura 1.

Quanto ao sexo observou-se uma distribuição equitativa dos entrevistados, sendo 50%

do sexo masculino e 50% do sexo feminino.

No quesito formação, dos oito entrevistados, cinco (62,5%) são psicólogos e três

(37,5%) psiquiatras. Os psiquiatras eram todos do sexo masculino, enquanto entre os

psicólogos, um era do sexo masculino e quatro do sexo feminino.

Quatro entrevistados (50%) têm dezesseis anos ou mais de formação, dois (25%) tem

de onze a quinze anos e dois (25%) menos que cinco anos.

Esses profissionais trabalham em CAPS de quatro cidades diferentes da região do

ABC: dois no CAPS AD de São Bernardo do Campo; um no NAPS AD de Santo André; um

12

1 12

1 0123

26-30 31-35 36-40 41-45 46-50 >50Idade

Quantidade

Figura 1 Distribuição por

Page 42: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

42

no NAPS II de Santo André; dois em Diadema e dois em Ribeirão Pires, o que conferiu a

amostra relevância em termos de representação dos Municípios da região do ABC.

Na figura 2 é possível visualizar que cinco entrevistados (62,5%) trabalham nos

CAPS/NAPS a menos de cinco anos. Dois (25%) entre cinco e dez anos e um (12,5%) entre

onze e quinze anos. Esse dado denota que a inserção dos profissionais nos CAPS é recente

considerando o tempo de formação (16 anos) de 50% dos entrevistados.

A função desempenhada por esses profissionais está ligada à sua área de atuação.

Cinco (62,5%) são psicólogos e três (37,5%) psiquiatras. Dois deles (25%) em algum

momento exerceram a função de coordenador.

Dos oito profissionais entrevistados, seis deles fizeram alguma especialização ou pós-

graduação. Apenas um fez na área da Saúde Mental.

Dos entrevistados, três já trabalharam ou ainda trabalham em hospitais psiquiátricos,

ou seja, ao mesmo tempo em que compõe um serviço substitutivo mantém ou mantiveram o

vínculo com o hospital tradicional.

Dos profissionais entrevistados, cinco receberam treinamento específico para atuar no CAPS.

2 - Análise de conteúdo e discussão

Para melhor evidenciar as concepções subjacentes aos discursos dos profissionais

optou-se pela construção de algumas categorias norteadoras que possibilitasse uma análise

das diferentes formas de representação da reabilitação psicossocial. É importante assinalar

5

2 1 0246

<5 5-10 11-15 Anos

Quantidade

Figura 2 – Distribuição por

Page 43: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

43

que os discursos apresentam nuances, podendo alguns não estarem referidos diretamente com

as categorias propostas. Desta forma utilizou-se para essas situações relacionar as

representações que mantinham maior proximidade com a idéia principal do entrevistado.

2.1 - Quanto à compreensão sobre os objetivos do CAPS

Quando se buscou abstrair das entrevistas a maneira que os profissionais

compreendem e concebem os objetivos do CAPS foi possível classificar o conteúdo dos

discursos em dois grupos que marcam posições distintas.

2.1.1 - Quando os objetivos do CAPS são os de tratamento da doença

O primeiro grupo se refere aos profissionais que compreendem os objetivos dos CAPS

no sentido de substituir o hospital psiquiátrico, mas tão somente como um novo local para

atender e tratar os doentes. Este local assume, em algumas situações, as funções de fazer valer

o aprendizado de regras e normas tendo como fim último que o paciente reconheça e aceite a

sua dificuldade de inserção social como decorrente de uma doença ou distúrbio que o

incapacita de modo parcial ou global para as suas atividades cotidianas. Deste modo o CAPS

teria como função principal o tratamento, correção ou ajuste desta disfunção. Em algumas

entrevistas pode ser observada uma preocupação com a inserção social e reinserção social,

mas esta inserção se daria pelo tratamento da doença que seria o obstáculo para este objetivo.

Nesse sentido, o que determina o processo de engajamento social é a condição de doença e

não-doença, seja de ordem física ou emocional.

Abaixo se reproduz trechos das entrevistas que referem os objetivos dos CAPS

conforme assinalado acima. A doença ou condição mórbida aparece representada sobre

diferentes formas, como a dependência química, psicose, uma crise ou surto ou uma

circunstância de risco.

[...] é a Reabilitação da saúde e do bem estar físico e social para dependentes químicos, alcoólicos e de medicamentos, então a reintegração social no caso é fazer eles entenderem regras, voltarem ao campo de trabalho, voltarem à socialização familiar, reconquistar a confiança, e acho que o principal é a aceitação da doença para compreender que na verdade não tem cura, e vai ser pro resto da vida [...] (ENTREVISTA 1)

[...] ele funciona como um hospital na verdade [...] um hospital primário [...] num comporta casos tão graves assim, mas é um, um meio termo entre a doença, a reabilitação da doença [...] funciona pelo que eu vejo como um intermediário, entre

Page 44: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

44

devolver a pessoa pra sociedade e pegar uma pessoa que está funcionalmente doente também, além da doença física né. [...] Eu acredito que a doença [...] a doença psiquiátrica é a perda da criatividade, então pra mim reabilitação psicossocial é devolver a criatividade pra pessoa. E uma pessoa criativa é uma pessoa produtiva (ENTREVISTA 4).

O objetivo do CAPS é você reabilitar o paciente [...] promover uma reabilitação psicossocial. É, ele [...] vem como uma alternativa ao modelo antigo de tratamento psiquiátrico, que era o modelo hospitalar. Na onde o paciente ficava internado no hospital e [...] ele perdia o vínculo com a sociedade, ficava lá, internado, tomando medicamento [...] paciente ficava preso praticamente [...] sem nenhum trabalho de reabilitação psicossocial [...] de sua situação como ser humano [...]. Então o objetivo maior do CAPS é quebrar esse modelo hospitalar e evitar que o paciente fique segregado, fique marginalizado na sociedade. O CAPS [...] pela estrutura e dinâmica dele, ele é [...] um local aberto, onde o paciente entra e sai e existe as séries, as várias atividades, os grupos terapêuticos, as oficinas, justamente pra promover essa reabilitação psicossocial [...]. Seria mais ou menos como se fosse um hospital dia, né. Onde o paciente não fica [...] segregado da sociedade. Ele não perde o vínculo com a família, com os amigos [...] enquanto ele tá no CAPS ele continua mantendo sua atividade diária, porque ele vai pra casa todo dia, ele continua com o convívio com os familiares, os familiares participam também das reuniões [...] E tem alguns pacientes que inclusive ajudam a tomar decisões no sentido de melhorar os atendimentos no CAPS. Então tem uma ação muito mais efetiva sobre o seu tratamento, sobre o tratamento das pessoas que estão com ele ali, naquela equipe multidisciplinar que atende ele. Então o objetivo maior do CAPS no meu entender é [...] proporcionar uma reabilitação psicossocial [...] mais efetiva do paciente sem que ele fique [...] marginalizado como era feito no hospital, no modelo hospitalar antigo. É uma opção [...] de tratamento mais humana e menos [...] marginalizante [...] A reabilitação psicossocial no meu entender é, é, proporcionar ao paciente uma volta às suas atividades, a tudo aquilo que ele conseguia fazer antes dele adoecer, porque a doença mental ela pode causar um prejuízo na sua atividade psicossocial do paciente, no seu trabalho, na sua convivência familiar, no seu lazer, ela pode limitar as atividades desse paciente. E quando você busca reabilitar esse paciente pode ser que você não consiga uma reabilitação total, mas tudo aquilo, o máximo que você pode reabilitar a ele você está fazendo um trabalho de reabilitação psicossocial [...] antigamente, o paciente ficava, o paciente psiquiátrico praticamente era um incapaz, pronto e cabou, não tinha mais saída, recebia um carimbo lá de doente mental e as pessoas nem se aproximavam dele. Hoje nós temos um monte aí, a maioria dos pacientes com transtornos mentais, pacientes psicóticos (...) mas que estão trabalhando, que estão produzindo, que estão gerindo sua própria vida. Então isso é uma reabilitação psicossocial. É proporcionar ao paciente que ele consiga se inserir novamente no, na sociedade, produzir alguma coisa, se sentir produtivo, se sentir útil, ter voz, ter vez, que até pouco tempo atrás o doente mental como eu te falei era tachado de louco a cabou, não tinha mais nenhuma solução pra ele. Então a reabilitação visa a inserir, reinserir ele na sociedade de uma, pra ele continuar como uma pessoa produtiva, como um cidadão normal, como outro qualquer (ENTREVISTA 5).

É trabalhar a recuperação do dependente químico e a reinserção social [...] foco maior na recuperação emocional e física do paciente, e tentar ajudá-lo a retomar a vida lá fora. [...] A maioria dos pacientes dependentes químicos quando começam a ficar assim nesse, quando começam a se recuperar, tem uma capacidade própria de se, alguns não perderam tanto o vínculo assim com a vida, com trabalho, então eles mesmos já vão tendo iniciativa, né alguns já estão trabalhando, mas temos alguns que são bastante limitados né, ou já tem alguma questão mental mais grave, são moradores de rua, já perderam o vínculo maior com família, com a sociedade. Então na verdade o que agente começa a retomar é através das oficinas de terapia ocupacional, né, quando a gente tenta retomar a questão do cuidado pessoal, da concentração, da (...) produzir, organização de tempo, organização

Page 45: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

45

de cuidados “add” né, cuidados pessoais, né, e isso muitas vezes habilita ele ir tomando alguns aspectos da vida lá fora. Alguns casos nós encaminhamos para o núcleo de projetos da prefeitura, né, que também faz uma reinserção mais, vamos dizer, que eles tem algumas oficinas de (...) remunerados ta, oficina de marcenaria, oficina de horta, então isso muitas vezes para alguns pacientes (...) de uma transição até conseguirem tomar a vida profissional lá fora. [...] É, é o que, é ajudar a pessoa a retomar a capacidade dela de viver em sociedade, de se relacionar com as pessoas, né, capacidade de produzir, (...) propriamente de cuidar de si mesma né, se relacionar com a família, com as pessoas em volta (ENTREVISTA 6).

O CAPS na realidade ele foi aberto para que, após o fechamento do hospital, então a, os pacientes, tem vários pacientes que entram em crise, essa coisa toda e a gente não tem o retorno do hospital geral, que a gente deveria ter. Então na realidade o CAPS o que, o CAPS a gente fica aqui durante o dia com eles, aí as atividades, passeios pra gente poder avaliar o paciente no dia-a-dia, né. E quando o paciente entra em surto agente já ta perto, para a gente poder ajudar a fazer alguma coisa, e para fazer a ressociabilização, né, dele com a sociedade, dele com o outro que está aqui [...] a reabilitação, a gente vai reabilitar ele pra uma vida “normal”, entre aspas, apesar que aqui assim a gente deixa claro que eles, vocês são pessoas que tem um problema mental mas isso não impede de você viver na sociedade, porque tem muita discriminação aí fora e a gente tenta tirar isso deles [...] fazer com que ele conviva é é,é, é do jeito que ele possa conviver, com os outros lá fora (ENTREVISTA 7).

Bom, o objetivo do CAPS é atender pacientes psicóticos, seja pacientes esquizofrênicos, seja portador de distúrbio bipolar e pacientes com um certo risco devido a, a, a, a patologia. Então às vezes a gente atende pacientes não psicóticos, mas que estão com risco de suicídio, risco de se autoagredir ou agredir alguém devido ao quadro clínico que eles apresentam. Depois, esses pacientes que não são psicóticos a gente depois encaminha, mas, que estão mais estabilizados a gente encaminha para o ambulatório de saúde mental. [...] seria a inserção do indivíduo na sociedade com as características que ele tem, ou seja, sabendo que ele tem limitações. Alguns pacientes têm muitas limitações, outros a gente consegue vamos ver deixar quase sem limitações, o tratamento deixa quase “normal”, entre aspas, pode voltar a trabalhar, voltar a estudar. Alguns o simples fato de sair de casa vir para cá e conversar já é uma reabilitação, porque eles ficam isolados, não conversam com ninguém [...] Cada paciente de acordo com a patologia que ele apresenta, de acordo com o suporte social, familiar que ele tem, de acordo com o padrão de vida dele, a gente traça objetivos. Por exemplo, se ele é um morador se ele é um psicótico morador de rua, o fato de você conseguir recolocá-lo na família já é uma grande conquista, se você tem um paciente que como eu falei antes, que não sai de casa, você fazer com que ele venha pra cá, por exemplo, duas vezes por semana, ele participe de um jogo de futebol, campeonato, é uma grande conquista. Pra outros, as conquistas são maiores. Cada caso é um caso (ENTREVISTA 8).

2.1.2 - Quando os objetivos do CAPS são os de inserção e reinserção social

O segundo grupo se refere aos profissionais que compreendem os objetivos do CAPS

no sentido de substituir a lógica de funcionamento do hospital psiquiátrico por uma lógica

psicossocial, tendo como fim último a inserção e reinserção social dos usuários através do

fortalecimento e da retomada de vínculos sociais e a construção de possibilidades

diferenciadas de trabalho e modos de viver. Desta forma não se restringe ao tratamento e

Page 46: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

46

diagnóstico das “doenças”, pois a compreensão é a de que o processo saúde-doença pode

sofrer modificações não somente em função do funcionamento biológico e psicológico, mas é

primeiramente determinado por sua condição de inserção social. Nesse sentido ganha

importância a participação ativa dos sujeitos, considerados cidadãos de direito e participantes

nas mudanças das práticas e da lógica de funcionamento dos serviços e das situações de

desigualdade social. Busca-se por meio de diferentes estratégias promover a autonomia,

cidadania e o poder de contratualidade, em maior ou menor nível, conseqüentemente

possibilitando uma inserção social diferente, sobre a qual se pode pensar um processo saúde-

doença histórico determinado e contextualizado.

É um serviço substitutivo aos hospitais psiquiátricos. Que tem como objetivo, não só o tratamento e o diagnóstico das doenças psiquiatricas, das doenças mais graves, mas também de fazer um trabalho de reinserção social desse usuário [...] lendo e estudando Saraceno [...] Ele dá um exemplo que nós, por exemplo, os técnicos e os trabalhadores, nós saímos de nossas casas, de nossas famílias e lá nós tínhamos com essa família um poder de contratualidade. Com nossos amigos e com a sociedade de modo geral. Existem pessoas que tem mais poder de contratualidade e outras menos. Mais habilidade em estabelecer estes contratos e outras menos. Então eu acho que a função nossa aqui do técnico do CAPS, é pensar nesse poder desse usuário no sentido de que ele consiga, se ele não tem, que ele consiga aumentar sua rede social, aumentar seu poder de contratualidade tanto na sua família, seu habitat, o Saraceno vai falar. No trabalho e no meio social mais amplo [...] Porque daí ele vai estar exercendo sua cidadania também então é isso que eu entendo de reabilitação psicossocial. [...] Não é aquele trabalho que a gente esta acostumado a pensar quando a gente pensa em trabalho, das 8 as 5, com carteira assinada, aquele trabalho formal, mas é, vai ser um ganho do exercício dele e fora as outras atividades que são realizadas aqui nas oficinas e mesmo nos próprios grupos terapêuticos [...] Então as vezes o movimento pode não vir da gente, não pode vir só do CAPS mas acho que a gente também tem a possibilidade de orientar e de fazer a ponte para que isso aconteça. [...] As vezes o processo está acontecendo e você só tem que dar uma orientada, as vezes o processo vem de você mesmo, o inicio, sugestão e a efetivação do processo. Porque não é só a questão do trabalho mas também todas as outras relações. Então como fica a relação da família frente a este usuário, como fica, se existe a modificação de quando este usuário começa a utilizar o CAPS, como fica a administração da medicação, como a família o vê depois que o processo é aqui iniciado, porque a gente também não pode esquecer que o usuário ocupa um espaço na família e as vezes quando começa a tomar a medicação e alguns sintomas começam a desaparecer, quando o quadro começa a melhorar, as vezes não é mais interessante para a família, para algumas famílias, e aí pode haver o boicote de tudo por isso tem que estar olhando bem de pertinho, bem com cuidado, percebendo né, o movimento (ENTREVISTA 2).

Reinserção [...] Dentro deste princípio de reinserção normalmente as pessoas que chegam, no caso do CAPS que atendem as principais gravidades de saúde mental, são pessoas que passaram por perdas de todo tipo: familiares, pessoais, sociais então quando eu digo reabilitação é nesse sentido que é recolocá-la socialmente. Então é reinseri-la no trabalho, no seu contexto familiar, social, até mesmo nas questões da religião, estas coisas. A gente tenta realmente recolocá-la enquanto cidadão, enquanto pessoa. [...] a gente ouve a pessoa, individualmente, eu não olho para ela eu sou psicólogo você é o usuário. É um ser humano que está na minha frente. Eu vou te ouvir para procurar entender o que está acontecendo e junto com ela propor alguma mudança. [...] Sem determinar a vida dela [...] tudo

Page 47: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

47

acordado com a própria pessoa [...] É claro que dependendo da gravidade [...] se a pessoa tem um quadro muito grave, a autonomia dela está muito prejudicada a gente volta a considerar isso e aí vai inserir a família. [...] ali tem uma pessoa doente mas ela não é a doença, antes de ter a doença tem a pessoa. Isto que eu estou falando não é uma coisa meramente retórica, conceitual, mas ela não é a doença (ENTREVISTA 3).

2.2 - Conceito de reabilitação psicossocial

A reabilitação psicossocial conforme demonstrado nos capítulos anteriores agrega uma

amplitude de conceitos que tem por objetivo compreender e incorporar as mudanças ocorridas

na sociedade em relação aos paradigmas em disputa no campo da saúde mental. Considerando

que o conteúdo das entrevistas manifestam as posições dos profissionais dentro de um

determinado conjunto conceitual, optou-se pelas categorias que melhor refletem as diferentes

representações de reabilitação psicossocial.

2.2.1 - Concepção de saúde e sujeito

Compreende-se aqui que a forma de conceber a saúde e o sujeito reflete as diferentes

posições dos profissionais, o que resultaria em práticas também distintas. Nesse sentido

procuraram-se abstrair das entrevistas os enunciados que permitem apontar as diferentes

concepções sobre saúde e sujeito.

2.2.1.1 - Saúde como ausência de doença e sujeito adaptado

Segundo Parsons a doença “é um estado de perturbação no funcionamento normal do

indivíduo humano total, compreendendo-se o estado do organismo como o sistema biológico

e o estado de seus ajustamentos pessoal e social” (Parsons apud Minayo, 1992). Essa citação é

representativa de uma visão de saúde adaptativa, pois nesta perspectiva o restabelecimento da

saúde ocorre através do tratamento de uma disfunção, do restabelecimento de um estado

perdido, da volta a um funcionamento normal do organismo biológico e psicológico.

Condição esta que deve ser reconhecida e aceita pelo sujeito para que possa ser objeto da ação

do profissional ou serviço, que tem o saber e o poder de produzir a mudança do estado

mórbido ou disfuncional. A representação da reabilitação psicossocial neste caso significa a

adaptação ou readaptação do sujeito à sociedade. Muitas vezes se modifica a técnica ou

métodos de intervenção, porém o objetivo central é a adaptação e/ou readaptação. Desta

Page 48: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

48

forma os usuários dos CAPS não são reconhecidos nas suas capacidades e diferenças, pois

todos se tornam passivos e iguais perante a condição de doente.

Esta visão não coloca em evidência as determinações e representações sociais do

processo saúde-doença e o sujeito como ser constituído historicamente. O sujeito tem que

reconhecer e aceitar o seu lugar de doente que significa passividade e o reconhecimento da

submissão ao saber dos técnicos e das instituições sociais. Também não se consideram as

diferentes formas de inserção social e dos contextos dos indivíduos e grupos sociais. Por mais

que as intervenções se apresentem como criativas, e diferentes, o objetivo final é o da “cura” e

adaptação do sujeito.

Abaixo são reproduzidos trechos das entrevistas que indicam que a representação

psicossocial, nestes casos, perpassa pelo conceito de saúde como ausência de doença, no qual

o sujeito é visto como alguém adaptado, ou que deveria sê-lo.

Sair e acho que o principal é a aceitação da doença para compreender que na verdade não tem cura, é, vai ser pro resto da vida [...] Se ele não conseguir perceber que ele tem uma dificuldade de doença ele não volta pra sociedade ele volta sempre recaindo. [...] Primeiro é a pessoa reconhecer os seus limites, reconhecer uma sociedade funcional então ela precisa se adaptar ao meio [...] Por isso a gente coloca para eles mesmo que primeiro eles lidam com eles mesmos para depois lidar com as regras sociais [...] é um auto conhecimento de limites e de impotência [...] Então pouquíssimos que chegam aqui semi preparados para voltar, a maior parte vem aqui (...) é sub humano né? [...] aqui eu já presenciei pessoas que conseguiram mesmo encarar a sociedade, encarar como ser humano [...] pré-contemplação é uma fase em que a pessoa não acredita que é doente. Então nessa fase a gente pega para colocá-los a acreditar que são doentes (ENTREVISTA 1).

Reabilitação psicossocial [...] é [...] tornar a pessoa produtiva [...] Eu acredito que a doença [...] a doença psiquiátrica é a perda da criatividade [...] reabilitação psicossocial é devolver a criatividade pra pessoa. E uma pessoa criativa é uma pessoa produtiva [...] sou terapeuta corporal, e eu utilizo a dança como recurso [...] justamente por esse fato de resgatar a criatividade [...] da mesma forma que você consegue transformar uma pessoa né pela conversa pelo verbo a gente consegue também transformar pelo corpo porque o corpo é uma expressão da mente [...] você ir pro corpo você tem acesso a verdades da pessoas [...] as pessoas têm vários mecanismos [...] que são os mecanismos de defesa pra não entrar em contato com alguma questão [...] toda vez que você vai pro corpo [...] você acessa isso a pessoa querendo ou não a pessoa expressa isso, então é uma forma de consciência também, de trazer consciência pra pessoa. E aí indo nesse caminho [...] de resgatar a criatividade [...] a criatividade é a habilidade que a pessoa tem de lidar com as suas coisas, de lidar com as diferentes situações. E a dependência química, por exemplo, é uma perda dessa habilidade, que ela lida com todas as situações da mesma forma [...] é uma forma de escravidão [...] E o meu trabalho é um trabalho pra tentar resgatar a pessoa desse sistema de escravidão [...] Porque se ela aprende a ter domínio do corpo dela [...] aprende a ter consciência e domínio mesmo do corpo, domínio dos movimentos do corpo, etc., ela inevitavelmente vai ter domínio na vida dela, vai ter controle na vida (ENTREVISTA 4).

Page 49: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

49

A maioria dos pacientes dependentes químicos quando começam a ficar assim nesse, quando começam a se recuperar, tem uma capacidade própria de se, alguns não perderam tanto o vínculo assim com a vida, com trabalho, então eles mesmos já vão tendo iniciativa, né alguns já estão trabalhando, mas temos alguns que são bastante limitados né, ou já tem alguma questão mental mais grave, são moradores de rua, já perderam o vínculo maior com família, com a sociedade [...] na medida que a pessoa reflete é capaz de começar a fazer mudanças, é capaz de se ver como uma pessoa diferente, formar uma nova auto-imagem, ela vai estar se reabilitando para lidar com a vida dela como ela achar melhor (ENTREVISTA 6).

[Reabilitação Psicossocial] eu acho que é a convivência com o outro, é [silencio], como é que eu posso, é mais a convivência no dia-a-dia, ele poder lidar com uma outra pessoa, ele poder discutir o caso dele com uma outra pessoa, ele poder é assim ter atividades físicas com um outro, com uma outra pessoa que não seja do mesmo problema, entendeu? Fazer o contato do, do, do, do paciente doente mental com o paciente “normal” [...] Na realidade é, a reabilitação, a gente vai reabilitar ele pra uma vida “normal”, entre aspas, apesar que aqui assim a gente deixa claro que eles, vocês são pessoas que tem um problema mental mas isso não impede de você viver na sociedade [...]ele mostrando que ele uma pessoa capaz de fazer qualquer coisa [...] eu tenho paciente que tem problema em vir a primeira vez, depois que vem a primeira vez aí acompanha o tratamento e quando eles recebem alta mesmo quando a gente quer dar alta, eles não querem ir embora [...] tudo que eles me pedem, pedem, eu tento fazer de qualquer forma. Fora a escuta né, que eu tô ali para escutar, pra ajudar, pra direcionar (ENTREVISTA 7).

Nos relatos abaixo se observa que apesar de se manter a perspectiva de uma doença ou

limitação os pacientes são percebidos com possibilidades de engajamento social a partir das

particularidades do seu problema bio-psíquico e das condições familiares e sociais favoráveis

ou desfavoráveis do seu entorno. No entanto o sujeito não é considerado na sua cidadania e na

sua condição de diferente.

A reabilitação psicossocial no meu entender é, é, proporcionar ao paciente uma volta às suas atividades, a tudo aquilo que ele conseguia fazer antes dele adoecer, porque a doença mental ela pode causar um prejuízo na sua atividade psicossocial do paciente, no seu trabalho, na sua convivência familiar, no seu lazer, ela pode limitar as atividades desse paciente. E quando você busca reabilitar esse paciente pode ser que você não consiga uma reabilitação total, mas tudo aquilo, o máximo que você poder reabilitar a ele você está fazendo um trabalho de reabilitação psicossocial. Se ele entra numa crise psicótica e por causa disso ele perde o emprego, ele também se isola, ele não consegue mais se comunicar com as pessoas, e ele faz um tratamento, vem pro CAPS, começa a fazer o tratamento, começa a, a, a ter uma atenção, começa a compreender melhor a si mesmo, todo o processo dele, mesmo que ele continue com alguma limitação na vida dele, ele pode muito bem continuar fazendo outras coisas que, é, não o tornam totalmente incapaz. Enquanto que não havia essa preocupação antigamente, o paciente ficava, o paciente psiquiátrico praticamente era um incapaz, pronto e cabou, não tinha mais saída, recebia um carimbo lá de doente mental e as pessoas nem se aproximavam dele. Hoje nós temos um monte aí, a maioria dos pacientes com transtornos mentais, pacientes psicóticos [...] mas que estão trabalhando, que estão produzindo, que estão gerindo sua própria vida. Então isso é uma reabilitação psicossocial. É proporcionar ao paciente que ele consiga se inserir novamente no, na sociedade, produzir alguma coisa, se sentir produtivo, se sentir útil, ter voz, ter vez, que até pouco tempo atrás o doente mental como eu te falei era tachado de louco a cabou, não tinha mais nenhuma solução pra ele. Então a reabilitação visa a

Page 50: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

50

inserir, reinserir ele na sociedade de uma, pra ele continuar como uma pessoa produtiva, como um cidadão normal, como outro qualquer. [...] Pacientes que estavam às vezes já no hospital há muitos anos, vieram pra esse novo modelo, né, começaram a adquirir uma nova consciência, uma nova visão de si mesmo, do mundo, começaram a reacreditar em si mesmos e retomar algumas coisas que tinham parado, que tinham perdido, que estavam se perdendo. E interessante que em alguns casos até a própria família também começa a participar dos processos [...] no processo de orientação, junto com o psicólogo, para ele adquirir uma autoconsciência do seu problema [...] a reabilitação possibilita ele adquirir a autoconfiança dele e sair daquele situação que eles mesmos se colocam por, pelo preconceito que eles sofrem mesmo, da grande maioria das pessoas [...] (ENTREVISTA 5).

[...] o objetivo do CAPS é atender pacientes psicóticos [...] A Reabilitação Psicossocial seria a inserção do indivíduo na sociedade com as características que ele tem, ou seja, sabendo que ele tem limitações. Alguns pacientes têm muitas limitações, outros a gente consegue vamos ver deixar quase sem limitações, o tratamento deixa quase “normal”, entre aspas, pode voltar a trabalhar, voltar a estudar. Alguns o simples fato de sair de casa vir para cá e conversar já é uma reabilitação, porque eles ficam isolados, não conversam com ninguém, ficam agressivos, não querem toma banho, não querem [...] Então o fato de vir para cá e fazer as atividades já é uma reabilitação. O objetivo é muito individual. Para cada paciente a gente tem um objetivo. [...] Se você tem a expectativa que todos vão ser “cidadãos”, entre aspas, também, né. Ou seja, todos trabalhando, casando, tendo filho, estudando, levando uma vida totalmente normal, você ta iludido , não é não é isso que a gente consegue. Cada paciente de acordo com a patologia que ele apresenta, de acordo com o suporte social, familiar que ele tem, de acordo com o padrão de vida dele, a gente traça objetivos. [...] alguns pacientes tem um vínculo muito forte e seguem as minhas orientações [...]. E a partir daí a gente consegue, digamos assim, empurrar o paciente pra frente, fazer com que ele progrida no sentido da sua ressocialização (ENTREVISTA 8).

2.2.1.2 - Saúde-doença como processo e sujeito histórico determinado

Nesta perspectiva a saúde-doença é um processo determinado socialmente a partir das

condições históricas a que estão submetidos os indivíduos e grupos sociais. Estar doente não

significa uma condição de desadaptação às normas ou padrões sociais, pois estes também são

parâmetros constituídos e reproduzidos socialmente. Ter saúde também não significa não

estar doente ou atingir um estado de completo bem estar bio-psico-social idealmente

projetado. Significa antes o reconhecimento das diferentes condições sociais onde se dá o

processo bio-psico-social e a proposição de diferentes possibilidades de cuidado e inserção

social. Tem um caráter político na transformação das condições mais globais de vida e não

somente intervir nos processos individuais. A participação ativa das pessoas, enquanto

cidadãos, em todo seu percurso no serviço são de suma importância para o processo de

reabilitação psicossocial.

Page 51: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

51

Nesta visão, o objetivo do cuidado é o reconhecimento das capacidades e habilidades

dos sujeitos visando a sua inserção e reinserção social. Reconhece o processo histórico social

de constituição das respostas sociais ao sofrimento mental tecendo uma crítica social aos

modelos excludentes e estigmatizantes que produzem a marginalização social e o preconceito

em relação à pessoa em grave sofrimento mental. Desta forma propõe novos modelos de

atenção que reconheçam as diferentes formas de inserção social dos sujeitos e a construção de

novas possibilidades de inclusão na sociedade considerando as diferentes necessidades dos

indivíduos. O sujeito é reconhecido como cidadão de direitos e participante ativo no processo

de constituição de possibilidades de maior autonomia e engajamento social.

[...] lendo e estudando Sarraceno [...] Ele vai falar do poder de contratualidade [...] Existem pessoas que tem mais poder de contratualidade e outras menos [...] acho que a função nossa aqui do técnico do CAPS, é pensar nesse poder desse usuário no sentido de que ele consiga, se ele não tem, que ele consiga aumentar sua rede social, aumentar seu poder de contratualidade tanto na sua família, seu habitat [...] Porque daí ele vai estar exercendo sua cidadania também então é isso que eu entendo de reabilitação psicossocial. Fazer uma ponte para que isso aconteça. [...] Pessoas que não tinham nenhuma renda, agora vão ter através do próprio trabalho. Não é aquele trabalho que a gente esta acostumado a pensar quando a gente pensa em trabalho, das 8 as 5, com carteira assinada, aquele trabalho formal, mas é, vai ser um ganho do exercício dele e fora as outras atividades que são realizadas aqui nas oficinas e mesmo nos próprios grupos terapêuticos (ENTREVISTA 2).

A gente tenta realmente recolocá-la enquanto cidadão, enquanto pessoa [...] É um ser humano que está na minha frente [...] ouvir para procurar entender o que está acontecendo e junto com ela propor alguma mudança [...] sem determinar a vida dela [...] que a gente faz uma proposta, tudo acordado com a própria pessoa [...]ali tem uma pessoa doente, mas ela não é a doença, antes de ter a doença tem a pessoa. Isto que eu estou falando não é uma coisa meramente retórica, conceitual, mas ela não é a doença [...] A gente sabe o paciente aí pelo nome, a gente conhece a família, a gente vai na casa da pessoa, a gente vai fazer resgate nas casas das pessoas [...] porque aqui tem está parte boa que a gente vê a melhora do usuário, mas tem paciente que você vê que não responde, há um limite, tem pacientes que recebemos aqui com trinta anos de internação, gente que veio do Juqueri e de lugares até piores. Cronificados. Institucionalizados. Você vai até conseguir alguma melhora mas certamente não tão grande como aqueles que chegam hoje que não passaram esse tempo todo em internação. Muitas coisas tem que ser consideradas em relação a saúde mental [...] qualquer tratamento que se baseie somente na figura do profissional não dá certo, se não incluir a pessoa, a família, o usuário, o tratamento não da certo (ENTREVISTA 3).

2.2.2 - Relação com o serviço e com profissional

Page 52: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

52

A concepção de saúde e sujeito, bem como a compreensão dos objetivos do CAPS

interferem diretamente no modo de relação que o profissional e o serviço como um todo

estabelecem com o sujeito que necessita de atenção psicossocial.

2.2.2.1 - Relação de dependência com o serviço e com o profissional

Esta visão pôde ser relacionada ao objetivo do CAPS enquanto tratamento de doença e

com a visão de saúde como ausência de doença e sujeito adaptado. Compreende que o sujeito

consegue “a adaptação desejada” a partir das condições oferecidas pelos profissionais e pelo

serviço, algumas vezes sendo esta essencial, outras vezes imprescindível, apresentando-se

como um objetivo definido a priori. O sujeito é considerado passivo e inexiste na sua

subjetividade (às vezes justificadas por uma certa gravidade do caso), pois somente consegue

a adaptação por intermédio das prescrições e condutas institucionais que devem ser seguidas.

Assim ele não é propositivo do seu processo das mudanças das relações institucionais e das

terapêuticas.

Abaixo seguem os trechos das entrevistas que demonstram dependência do sujeito de

cuidados na relação com o profissional e com o serviço que o atende.

[...] a reintegração social no caso é fazer eles entenderem regras, voltarem ao campo de trabalho, voltarem à socialização familiar, reconquistar a confiança, e acho que o principal é a aceitação da doença para compreender que na verdade não tem cura [...] Por isso a gente coloca para eles mesmo que primeiro [...] o tratamento dura só seis meses, então é um auto conhecimento de limites e de impotência, trabalhar com frustração e motivação para depois colocá-los novamente em sociedade [...] quando ele aceita essa doença que é o que agente tenta promover na medida do possível, através do trabalho de grupo, através da fala do outro, mostra que se houverem várias recaídas, as recaídas vão formar novamente aquele uso abusivo da substância [...] Então a gente vão trabalhar no treinamento de habilidades onde a gente vai mostrando para eles o repertório de uso, o repertório de trabalho, mostrando a vida social, com as frustrações, então é automático, tudo o que tem na vida eu mostro onde tem a frustração e ai gente motiva para perceber os pontos positivos [...] mostrando na verdade para eles [...] (ENTREVISTA 1).

Reabilitação psicossocial [...] é [...] tornar a pessoa produtiva [...] Eu acredito que a doença [...] a doença psiquiátrica é a perda da criatividade [...] reabilitação psicossocial é devolver a criatividade pra pessoa. E uma pessoa criativa é uma pessoa produtiva [...] sou terapeuta corporal, e eu utilizo a dança como recurso [...] justamente por esse fato de resgatar a criatividade [...] da mesma forma que você consegue transformar uma pessoa né pela conversa pelo verbo a gente consegue também transformar pelo corpo porque o corpo é uma expressão da mente [...] você ir pro corpo você tem acesso a verdades da pessoas [...] as pessoas têm vários mecanismos [...] que são os mecanismos de defesa pra não entrar em contato com alguma questão....toda vez que você vai pro corpo [...] você acessa isso a pessoa querendo ou não a pessoa expressa isso, então é uma forma de consciência também, de trazer consciência pra pessoa. E aí indo nesse caminho [...] de resgatar a criatividade [...] a criatividade é a habilidade que a pessoa tem de lidar com as suas

Page 53: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

53

coisas, de lidar com as diferentes situações. E a dependência química, por exemplo, é uma perda dessa habilidade, que ela lida com todas as situações da mesma forma... é uma forma de escravidão [...]. E o meu trabalho é um trabalho pra tentar resgatar a pessoa desse sistema de escravidão [...]. Porque se ela aprende a ter domínio do corpo dela...aprende a ter consciência e domínio mesmo do corpo, domínio dos movimentos do corpo, etc., ela inevitavelmente vai ter domínio na vida dela, vai ter controle na vida [...] (ENTREVISTA 4).

A maioria dos pacientes dependentes químicos quando começam a ficar assim nesse, quando começam a se recuperar, tem uma capacidade própria de se, alguns não perderam tanto o vínculo assim com a vida, com trabalho, então eles mesmos já vão tendo iniciativa, né alguns já estão trabalhando, mas temos alguns que são bastante limitados né, ou já tem alguma questão mental mais grave, são moradores de rua, já perderam o vínculo maior com família, com a sociedade. Então na verdade o que agente começa a retomar é através das oficinas de terapia ocupacional, né, quando agente tenta retomar a questão do cuidado pessoal, da concentração, da (...) produzir, organização de tempo, organização de cuidados “add” né, cuidados pessoais, né, e isso muitas vezes habilita ele ir tomando alguns aspectos da vida lá fora. Alguns casos nós encaminhamos para o núcleo de projetos da prefeitura, né, que também faz uma reinserção mais, vamos dizer, que eles tem algumas oficinas de (...) remunerados ta, oficina de marcenaria, oficina de horta, então isso muitas vezes para alguns pacientes (...) de uma transição até conseguirem tomar a vida profissional lá fora. [...]É, é o que, é ajudar a pessoa a retomar a capacidade dela de viver em sociedade, de se relacionar com as pessoas, né, capacidade de produzir, (...) propriamente de cuidar de si mesma né, se relacionar com a família, com as pessoas em volta. [...]Bom, eu não trabalho com as oficinas, eu trabalho com os grupos. E nos grupos o que agente faz é na verdade o tempo inteiro isso, né, ajudar a pessoa, não só a refletir e formar novos conceitos sobre a vida dela, sobre a relação que ela tem com a substância, mas principalmente sobre a, o como ela lida com as questões da vida. Então, acho que na medida que a pessoa reflete é capaz de começar a fazer mudanças, é capaz de se ver como uma pessoa diferente, formar uma nova auto-imagem, ela vai estar se reabilitando para lidar com a vida dela como ela achar melhor. (ENTREVISTA 6).

[...] eles vem pra cá, eles não querem mais ir embora [...] mesmo quando a gente quer dar alta, eles não querem ir embora [...] Então, eles falam que eu sou muito mãe né, é assim, tudo que eles me pedem, pedem, eu tento fazer de qualquer forma. [...] Então a minha contribuição assim é assim é totalmente voltada para eles mesmo. Então eles comentam assim, eles tem uma segurança muito grande na equipe inteira, mas mais em mim, porque assim, eu sou muito aberta, entendeu é, eu assim mesmo, as vezes eu to ocupada eu largo pra fazer, pra atender eles, eu não deixo eles esperando, eles tem acesso livre na minha sala (ENTREVISTA 7).

[...] o tratamento deixa quase “normal” [...] Para cada paciente a gente tem um objetivo. [...] se ele é um psicótico morador de rua, o fato de você conseguir recolocá-lo na família já é uma grande conquista, se você tem um paciente que como eu falei antes, que não sai de casa, você fazer com que ele venha pra cá [...] alguns pacientes tem um vínculo muito forte e seguem as minhas orientações, confiam em mim, eles se abrem, eles falam o que estão sentindo. E a partir daí a gente consegue, digamos assim, empurrar o paciente pra frente, fazer com que ele progrida no sentido da sua ressocialização, no sentido de levar uma qualidade de vida melhor, né? (ENTREVISTA 8).

Page 54: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

54

A entrevista abaixo apresenta uma variação em relação às mencionadas acima,

podendo-se observar que o sujeito só é considerado na condição de “ativo” no seu processo de

recuperação de uma doença ou de uma condição disfuncional aceitando as prescrições e

condutas. Ou seja, o resultado da relação do sujeito com o serviço é condicionado à

capacidade do primeiro assimilar as terapêuticas do segundo.

A reabilitação psicossocial no meu entender é, é, proporcionar ao paciente uma volta às suas atividades, a tudo aquilo que ele conseguia fazer antes dele adoecer [...] o máximo que você poder reabilitar a ele você está fazendo um trabalho de reabilitação psicossocial [...] proporcionar ao paciente que ele consiga se inserir novamente no, na sociedade, produzir alguma coisa, se sentir produtivo, se sentir útil, ter voz, ter vez [...] Como médico a minha atuação é: diagnosticar o paciente, examinar, diagnosticar, medicar, e orientar [...] no processo de orientação, junto com o psicólogo, para ele adquirir uma autoconsciência do seu problema [...] (ENTREVISTA 5).

2.2.2.2 - Relação de participação ativa e exercício da cidadania

Esta visão compreende que os sujeitos são dotados de uma condição diferente de

inserção no mundo e em função do seu processo histórico e social constituíram modos

diferentes de busca de satisfação de suas necessidades. São considerados cidadãos e sujeitos

de direitos com graus de autonomia e poder de contratualidade variados o que requer também

o desenvolvimento da capacidade criativa dos serviços para a construção de alternativas

conjuntas de inserção social. Nesse sentido os projetos terapêuticos são construídos de

maneira coletiva e pactuados entre profissionais e usuários, tendo estes últimos um papel mais

ativo diante das mudanças em relação aos modos de inserção social e satisfação dos desejos

pessoais.

Existem pessoas que tem mais poder de contratualidade e outras menos [...] a função nossa aqui do técnico do CAPS, é pensar nesse poder desse usuário no sentido de que ele consiga, se ele não tem, que ele consiga aumentar sua rede social, aumentar seu poder de contratualidade tanto na sua família, seu habitat, o Sarraceno vai falar. No trabalho e no meio social mais amplo [...] É difícil e é muito particular de cada caso, tem casos que isso é mais fácil de ser trabalhado e tem casos que não, demora anos para que algum outro contrato seja exercido, seja iniciado [...] estamos passando por um processo [...] o inicio de um projeto de geração de renda. Então estes usuários estão indo até um convênio que foi realizado, num centro de coleta da prefeitura e estão fazendo parte do processo de separação do material a ser reciclado e isso depois vai gerar uma renda para estes usuários. Então essa é a prática de um inicio de reabilitação. Pessoas que não tinham nenhuma renda, agora vão ter através do próprio trabalho. Não é aquele trabalho que a gente esta acostumado a pensar quando a gente pensa em trabalho, das 8 as 5, com carteira assinada, aquele trabalho formal, mas é, vai ser um ganho do exercício dele e fora as outras atividades que são realizadas aqui nas oficinas [...] (ENTREVISTA 2).

Page 55: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

55

Recolocá-la enquanto cidadão [...] sem determinar a vida dela [...] tudo acordado com a própria pessoa [...] se a autonomia dela está muito prejudicada a gente volta a considerar isso e aí vai inserir a família [...] a gente sabe o paciente pelo nome [...] A gente vê melhora no usuário, mas tem paciente que você vê que não responde, há um limite (ENTREVISTA 3).

VIII – CONCLUSÃO

A Reforma Psiquiátrica trouxe uma proposta de novos olhares e novas práticas de

assistência em Saúde Mental para as pessoas em sofrimento psíquico. Este trabalho permitiu

apreender a representação de Reabilitação Psicossocial dos profissionais entrevistados

evidenciando que mesmo trinta anos após o inicio da Reforma, a lógica manicomial ainda se

encontra presente, cristalizada, em maior ou menor grau, no pensamento e nas práticas de

setenta e cinco por cento dos profissionais entrevistados.

A representação desses profissionais apontou para uma concepção de saúde como

ausência de doença, na qual o sujeito não está adaptado para a vida em sociedade em virtude

de uma disfunção. Nessa perspectiva para que o sujeito possa inserir-se o tratamento visa o

ajuste da disfunção, onde a aceitação de sua condição de doente é importante para que ele

possa se adaptar. A relação do profissional e do serviço com o sujeito é de dependência e

tutela, na qual o profissional tem o saber sobre o sujeito passivo e quase que inexistente na

sua subjetividade, para o qual existe um rol de técnicas e conhecimentos que são utilizados e

devem ser aceitos pelo sujeito para passá-lo, conforme refere Saraceno (1996), de um estado

de desabilidade para um estado de habilidade.

Numa outra perspectiva, mais alinhada com a política de Saúde Mental atual, vinte e

cinco por cento dos profissionais representam a Reabilitação Psicossocial com uma nova

forma de olhar a pessoa em sofrimento, por uma lógica psicossocial. Nesta visão, a concepção

de saúde-doença é entendida como um processo histórico-social determinado, a partir do qual

cada pessoa atingiu, em maior ou menor nível, possibilidades de inserção social diferenciadas.

Neste sentido, a assistência objetiva a inserção e reinserção social da pessoa com as

características e de acordo com as necessidades e desejos que possui, promovendo o

fortalecimento e retomada de vínculos, e possibilitando ao indivíduo desenvolver ou aumentar

seu poder de contratualidade e autonomia. Dentro desse processo, a relação de assistência que

o profissional e o serviço mantêm com a pessoa em situação de cuidado visa promover o

exercício de cidadania e autonomia possível, onde o protagonismo e a participação do usuário

Page 56: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

56

no serviço de assistência são colocados em primeiro plano, como aspectos fundamentais, e o

profissional tem um papel facilitador nessa inserção e reinserção social.

Considerando o papel estratégico dos CAPS como serviço substitutivo e articulador de

uma rede de cuidados contínuos, entendemos que esta pesquisa sinaliza que mudanças de

espaços físicos e projetos não são suficientes para a consolidação da Reforma Psiquiátrica se,

entre outras coisas, os profissionais não estiverem primeiramente alinhados com as mudanças

das políticas de saúde mental. A partir desta pesquisa observa-se a necessidade da realização

de outros estudos para verificar tanto a correspondência das práticas com as políticas

nacionais para o campo da Saúde Mental quanto à capacidade destas mesmas políticas darem

resolutividade às diferentes necessidades colocadas pelo indivíduo no seu processo de

engajamento social.

Page 57: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

57

IX – REFERÊNCIAS

AMARANTE, Paulo. O homem e a serpente. Rio de Janeiro: Fio cruz, 1996. 141p.

AMARANTE, Paulo. Saúde mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. 120p.

ARTAUD, Antonin. Carta aos médicos-chefes dos manicômios. In: DELGADO, Jaques (Org.). A Loucura na sala de Jantar. São Paulo: Resenha. 1991. 97-98p.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O Alienista. São Paulo: Atica, 1994.

BARDIN, Laurence. Analise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2006. 223p.

BASAGLIA, Franco. Escritos selecionados. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 237p.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. CENTRO CULTURAL DA SAÚDE. Mostra Memória da Loucura. Brasília: 2003. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/memoria_loucura1.pdf>. Acesso em 25 de Agosto de 2008.

BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasilia: 2004. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/ManualCapsFinal.pdf>. Acesso em 2 de Agosto de 2008.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília: 2005. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/Relatorio15%20anos%20Caracas.pdf >. Acesso em 2 de Agosto de 2008.

CASTEL, R. Ordem Psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro: Graal. 1978. 274p.

DALLARI, Dalmo. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1998. 112 p.

Page 58: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

58

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. 8ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 551p.

GOLDBERG, Jairo Idel. Reabilitação Como Processo – O Centro de Atenção Psicossocial. In: PITTA, Ana (Org.). Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. pp. 33- 47. (Série SAÚDELOUCURA).

GONDIM, Denise S. Maciel. Análise da Implantação de um Serviço de Emergência Psiquiátrica no Município de Campos: Inovação ou Reprodução do Modelo Assistencial?. 2001. 125f. Dissertação [Mestrado em Saúde Pública] Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Osvaldo Cruz.Rio de Janeiro, 2001.

KINOSHITA, Roberto Tykanori. Contratualidade e Reabilitação Psicossocial. In: PITTA, Ana (Org.). Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. pp. 55-59. (Série SAÚDELOUCURA).

LANG, A. B. S. G. História oral: procedimentos e possibilidades. In: LANG, A. B. S.G (Org.). Desafios da pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: CERU; 2001. p. 91-112.

LUSSI, Isabela Aparecida de Oliveira; PEREIRA, Maria Alice Ornellas e JUNIOR, Alfredo Pereira. A proposta de Reabilitação Psicossocial de Saraceno: um Modelo de Auto-Organização?. Revista Latino Americana de Enfermagem. v. 14, n 3, maio-junho 2006, pp. 448-456. [Versão Eletrônica]. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/rlae/v14n3/v14n3a21.pdf>. Acesso em 1 de Setembro de 2008.

MACHADO, R. Ciência e saber: A Trajetória da Arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Graal. 1981.

MINAYO, M. C .S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8ª ed. São Paulo: Hucitec Abrasco; 2004.

MOFFAT, Alfredo. Psicoterapia do Oprimido. 4ª ed. São Paulo: Cortez , 1983. 246p.

NICÁCIO, M. F. O Processo de Transformação da Saúde Mental em Santos: Desconstrução de Saberes, Instituições e Cultura. 1994. 155 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1994.

PEREIRA, Maria Alice Ornellas. A reabilitação psicossocial no atendimento em saúde mental: estratégias em construção. Revista Latino-Americana de Enfermagem. v. 15, n. 4, julho-agosto 2007, pp. 153-159. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n4/pt_v15n4a21.pdf. Acesso em 15 de Agosto de 2008.

PITTA, Ana. O que é Reabilitação Psicossocial no Brasil, hoje?. In: PITTA, Ana (Org.). Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. pp. 19-26. (Série SAÚDELOUCURA).

PONTE, Carlos Fidelis da. Médicos, psicanalistas e loucos: uma contribuição à história da psicanálise no Brasil. 1999. 205f. Dissertação [Mestrado em Saúde Pública]. Escola Nacional

Page 59: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

59

de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 1999. Disponível em <http://portalteses.icict.fiocruz.br/transf.php?script=thes_cover&id=000080&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 25 de Agosto de 2008.

RAMOS, Fernando A. da Cunha e GEREMIAS, Luiz. Instituto Philippe Pinel: origens históricas. Documento eletrônico disponível em http://www.sms.rio.rj.gov.br/pinel/media/pinel_origens.pdf>. Acesso em 31 de Agosto de 2008.

RESENDE, Heitor. Política de Saúde Mental no Brasil: uma visão histórica. In: TUNDIS, Silvério Almeida; COSTA, Nilson do Rosário (Organizadores). Políticas de Saúde Mental no Brasil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. pp. 15-73.

ROTERDAN, Erasmo de. [Desidério Erasmo]. O Elogio da Loucura. Trad.: Paulo Neves. Porto Alegre: Editora L&PM, 2003. 144p.

COSTA-ROSA, Abílio; LUZIO, Cristina Amélia; YASUL, Silvio. Atenção Psicossocial: Rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: AMARANTE, P. (Org). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau, 2003. pp. 13-44.

ROSA, Lúcia. Transtorno Mental e o Cuidado na Família. São Paulo: Cortez, 2003. 367p.

SARACENO, Benedetto. Reabilitação Psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: PITTA, Ana (Org.). Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. pp. 13-18. (Série SAÚDELOUCURA).

SILVA, S. M. A. Unidade de Redução de Danos do município de Santo André: Uma Avaliação. 2008. 204f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem). Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

SILVEIRA, Lia Carneiro e BRAGA, Violante Augusta Batista. Acerca do conceito de loucura e seus reflexos na assistência de saúde mental. Revista Latino-Americana de Enfermagem. v. 13, N. 4, jul-ago 2005, pp. 591-595. [Versão Eletrônica]. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n4/v13n4a19.pdf>. Acesso em 31 de Julho de 2008.

TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. 3ª ed. São Paulo: Atlas; 1992.

VENANCIO, Ana Teresa A. Ciência psiquiátrica e política assistencial: a criação do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. v. 10, n. 3, set/dez 2003, pp. 883-900. [Versão Eletrônica]. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v10n3/19304.pdf>. Acesso em 10 de Agosto de 2008.

Page 60: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

60

X – ANEXOS

Transcrições das entrevistas

ENTREVISTA N.º 1

1) Identificação:

Idade: 18-25 ( ) 26-30 ( ) 31-35 ( x ) 36-40 ( )

41-45 ( ) 46-50 ( ) > 50 ( )

Sexo: Masculino ( ) Feminino ( x )

Formação: Psiquiatria ( ) Psicologia ( x )

Tempo de formação: < 5 anos ( ) 5-10 anos ( x ) 11-15 ( )

16-20 ( ) > 20 ( )

Tempo de atuação no CAPS/NAPS:

<5 anos ( x ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( ) 16-20 ( ) > 20 ( )

Função/Cargo que ocupa no CAPS: Psicóloga

Pós Graduação: Sim ( ) Não ( x ) Mestrado ( ) Doutorado ( )

Especialização: Qual?

2) Já trabalhou em hospitais psiquiátricos?:

Sim ( ) Não ( x )

3) Recebeu capacitação/treinamento para atuar no CAPS/NAPS?:

Sim ( ) Não ( x )

4) Qual o objetivo do CAPS?

Na verdade é a Reabilitação da saúde e do bem estar físico e social para dependentes químicos, alcoólicos e de medicamentos, então a reintegração social no caso é fazer eles entenderem regras, voltarem ao campo de trabalho, voltarem à socialização familiar, reconquistar a confiança, e acho que p principal é a aceitação da doença para compreender que na verdade não tem cura, é, vai ser pro resto da vida, se observando, pra daí poder

Page 61: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

61

voltar realmente para a sociedade. Se ele não conseguir perceber que ele tem uma dificuldade de doença ele não volta pra sociedade ele volta sempre recaindo.

Aqui a gente trabalha na perspectiva da abstinência. Outros caps trabalham com a redução de danos, não é uma coisa obrigatória mas aqui nós trabalhamos a abstinência.

5) O que você entende por Reabilitação Psicossocial?

Primeiro é a pessoa reconhecer os seus limites, reconhecer uma sociedade funcional então ela precisa se adaptar ao meio, que ela vive sabendo principalmente lidar com suas frustrações e angustias porque a vida não e só de flores. Por isso a gente coloca para eles mesmo que primeiro eles lidam com eles mesmos para depois lidar com as regras sociais. Então o que a gente coloca, o que gente entende mesmo é um auto conhecimento, por mais simples que seja, por que o tratamento dura só seis meses, então é um auto conhecimento de limites e de impotência, trabalhar com frustração e motivação para depois coloca-los novamente em sociedade. O que que a gente faz para coloca-los em sociedade, que a gente acredita que é a melhor forma, não só o Caps acredita, mas eu acredito muito, é o voluntariado. Então uma das formas da gente colocá-los de novo em contato de novo com a sociedade é através do voluntariado e isso facilitando para eles respeito, cooperação, até na verdade uma entrega emocional total, né? Que seria quase de amor incondicional.

6) Você acredita na Reabilitação Psicossocial dos usuários?

Acredito.Acredito até porque, é assim, por ter presenciado, apesar de estar pouco tempo aqui eu já presenciei pessoas que conseguiram mesmo encarar a sociedade, encarar como ser humano. Eles vem muito degradados, sem perspectiva de vida nenhuma. Então pouquíssimos que chegam aqui semi preparados para voltar, a maior parte vem aqui (...) é sub humano né? E ai eu já presenciei na verdade uma pessoa que conseguiu através do voluntariado ser contratado num serviço, já mudou para outro, está muito bem, já reconquistou a casa que ele tinha, reconquistou a confiança familiar. Então acredito sem sombra de dúvidas.

7) Como sua prática contribui para a Reabilitação Psicossocial dos usuários deste serviço?

Na verdade, a prática da psicologia, primeiro a gente tem que trabalhar aceitação da doença. Eu trabalho literalmente com o que eles pedem mesmo anh a contemplação. Dentro da literatura de drogadição anh trabalha muito a terapia comportamental, anh já pré-contemplação é uma fase em que a pessoa não acredita que é doente. Então nessa fase a gente pega para colocá-los a acreditar que são doentes. Então é exatamente isso que a gente faz no começo. Quando ele se acredita com doente, mas não doente para usar como desculpa para a drogadição, mas quando ele se acredita como doente, ele aceitou a doença . Porque ele primeiro acredita e depois aceita, quando ele aceita essa doença que é o que agente tenta promover na medida do possível, através do trabalho de grupo, através da fala do outro, mostra que se houverem várias recaídas, as recaídas vão formar novamente aquele uso abusivo da substância. Eles começam a perceber através do grupo que não dá para ter o beber social, o uso social. Então a gente vão trabalhar no treinamento de habilidades onde a gente vai mostrando para eles o repertório de uso, o repertório de trabalho, mostrando a vida social, com as frustrações, então é automático, tudo o que tem na vida eu mostro onde tem a frustração e ai gente motiva para perceber os pontos positivos. Não é tão simples como quando a gente está falando, porque como é grupo emerge muita coisa, então a gente às vezes trabalha com angústia, num determinado momento com a frustração financeira. Uma questão que vem sendo muito trabalhada ultimamente é a auto-estima, né?, porque ela é zero. Eles têm o desejo de auto-destruição. Primeiro eles aceita a doença, depois a gente entra na auto-estima, anh, para eles pararem de se punir, eles se punem muito, então qualquer coisa que der errado eu vou me punir; e o processo de vitimização, onde a gente não permite, mostrando na verdade para eles, que eles não deve se permitir se sentirem culpados, responsáveis sim, culpados pelo comportamento. Então tem a fase da pré-contemplação onde eles estão vindo mais por vir, onde eles mais ou menos perceberam que eles tem um problema, que eles são doentes. Então eles vão para a contemplação onde eles percebem que são doentes mesmos, eles aceitam que são doentes e mesmo doentes a gente vai mudando as fases. Ai a gente vai para a fase da ação, onde eles tem que começar a mudar os conceitos internos, perceber que a sociedade é uma sociedade funcional, que tem que fazer parte dela. Então é bem complexo na verdade. E em seis meses a gente até consegue trabalhar, mas depende muito do limite de cada pessoa.

Page 62: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

62

8) Você gostaria de falar mais alguma coisa?

ENTREVISTA N.º 2

1) Identificação:

Idade: 18-25 ( ) 26-30 ( ) 31-35 ( X ) 36-40 ( )

41-45 ( ) 46-50 ( ) > 50 ( )

Sexo: Masculino ( ) Feminino ( X )

Formação: Psiquiatria ( ) Psicologia ( X )

Tempo de formação: < 5 anos ( X ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( )

16-20 ( ) > 20 ( )

Tempo de atuação no CAPS/NAPS:

<5 anos ( X ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( ) 16-20 ( ) > 20 ( )

Função/Cargo que ocupa no CAPS: Psicóloga

Pós Graduação: Sim ( X ) Não ( ) Mestrado ( ) Doutorado ( )

Especialização: Qual Gestão em Pessoas

2) Já trabalhou em hospitais psiquiátricos?:

Sim ( ) Não ( X )

3) Recebeu capacitação/treinamento para atuar no CAPS/NAPS?:

Sim ( X ) Não ( )

4) Qual o objetivo do CAPS?

É um serviço substitutivo aos hospitais psiquiátricos. Que tem como objetivo, não só o tratamento e o diagnóstico das doenças psiquiatrias, das doenças mais graves, mas também de fazer um trabalho de reinserção social desse usuário.

5) O que você entende por Reabilitação Psicossocial?

Eu vou tentar dizer o que eu aprendi lendo e estudando Saraceno. Benedito Saraceno. Ele, ah... na verdade o que ele fala é o que eu vi na prática. Ele vai falar do poder de contratualidade. Ele dá um exemplo que nós, por

Page 63: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

63

exemplo, os técnicos e os trabalhadores, nós saímos de nossas casas, de nossas famílias e lá nós tínhamos com essa família um poder de contratualidade. Com nossos amigos e com a sociedade de modo geral. Existem pessoas que tem mais poder de contratualidade e outras menos. Mais habilidade em estabelecer estes contratos e outras menos. Então eu acho que a função nossa aqui do técnico do CAPS, é pensar nesse poder desse usuário no sentido de que ele consiga, se ele não tem, que ele consiga aumentar sua rede social, aumentar seu poder de contratualidade tanto na sua família, seu habitat, o Saraceno vai falar. No trabalho e no meio social mais amplo. E vendo a realidade aqui do CAPS a maioria deles, o universo do trabalho ainda está muito distante então como a gente pode aos poucos inserir este poder, por que não este poder para ele? Porque daí ele vai estar exercendo sua cidadania também então é isso que eu entendo de reabilitação psicossocial. Fazer uma ponte para que isso aconteça. É fácil fazer isso? Não. É difícil e é muito particular de cada caso, tem casos que isso é mais fácil de ser trabalhado e tem casos que não demora anos para que algum outro contrato seja exercido, seja iniciado.

6) Você acredita na Reabilitação Psicossocial dos usuários?

Acredito. Acredito porque vejo na prática. Eu não sei se eu posso dizer de exemplos. Exemplos daqui por exemplo nós estamos passando por um processo, aqui em Diadema, o inicio de um projeto de geração de renda. Então estes usuários estão indo até um convênio que foi realizado, num centro de coleta da prefeitura e estão fazendo parte do processo de separação do material a ser reciclado e isso depois vai gerar uma renda para estes usuários. Então essa é a prática de um inicio de reabilitação. Pessoas que não tinham nenhuma renda, agora vão ter através do próprio trabalho. Não é aquele trabalho que a gente esta acostumado a pensar quando a gente pensa em trabalho, das 8 as 5, com carteira assinada, aquele trabalho formal, mas é, vai ser um ganho do exercício dele e fora as outras atividades que são realizadas aqui nas oficinas e mesmo nos próprios grupos terapêuticos. Por exemplo tem uma paciente que no grupo foi sugerido, ela sempre falando da questão social da família dela, da preocupação dela, mesmo porque ela teve o benefício do INSS que era o bolsa, o auxílio doença, foi cortado e isso tem mais de 6 meses que foi cortado. Ela sempre colocava está questão, ela passou por um momento familiar bastante delicado, o marido desempregado, os filhos desempregados e foi sugerido no grupo que ela começasse a vender gelinho. Isso por meses, os colegas iam sugerindo. Eu não sugeri nada, fui só ali acompanhando. Ela começou a vender gelinho e ali no momento difícil da família dela ela conseguiu comprar os alimentos e conseguiu dar o que comer para a família. Hoje a situação já está diferente, o marido está empregado, os filhos estão empregados e até o marido falou “Não, você não vai mais vender gelinho porque vêm muita gente aqui no portão e podem ficar depois perturbando os vizinhos” Foi até ontem este atendimento que ela contou que o marido contou isso. Mas naquele momento o vender gelinho para ela teve uma importância, um significado bastante interessante. Então as vezes o movimento pode não vir da gente, não pode vir só do CAPS mas acho que a gente também tem a possibilidade de orientar e de fazer a ponte para que isso aconteça. Então é muito gostoso trabalhar com isso e ver isso acontecer.

7) Como sua prática contribui para a Reabilitação Psicossocial dos usuários deste serviço?

Acho que acabei de falar um pouquinho sobre isso. Acho que ela pode ser ampla e pode ser um pouco mais pessoal, na medida em que um grupo quando você está participando em uma oficina, ai é com o grupo todo né? Na assembléia ou na psicoterapia grupal ou individual que as vezes também acontece, a pessoa tem uma questão quer participar da psicoterapia mas não quer se expor ao grupo se tem horário ela acontece. Mas é como uma ponte, não só o psicólogo mas todo técnico aqui do CAPS acaba sendo uma ponte para que isso aconteça. As vezes o processo está acontecendo e você só tem que dar uma orientada, as vezes o processo vem de você mesmo, o inicio, sugestão e a efetivação do processo. Porque não é só a questão do trabalho mas também todas as outras relações. Então como fica a relação da família frente a este usuário, como fica, se existe a modificação de quando este usuário começa a utilizar o CAPS, como fica a administração da medicação, como a família o vê depois que o processo é aqui iniciado, porque a gente também não pode esquecer que o usuário ocupa um espaço na família e as vezes quando começa a tomar a medicação e alguns sintomas começam a desaparecer, quando o quadro começa a melhorar, as vezes não é mais interessante para a família, para algumas famílias, e aí pode haver o boicote de tudo por isso tem que estar olhando bem de pertinho, bem com cuidado, percebendo né, o movimento.

8) Você gostaria de falar mais alguma coisa?

Page 64: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

64

Eu acho muito interessante que vocês, na graduação, tenham está maturidade de perceber a importância deste tema, de estar pesquisando isso, acho muito bacana que estudantes preocupados com isso. E desejar boa sorte na análise do discurso, com Bardin e espero que não tenha me prolongado muito.

ENTREVISTA N.º 3

1) Identificação:

Idade: 18-25 ( ) 26-30 ( ) 31-35 ( ) 36-40 ( X )

41-45 ( ) 46-50 ( ) > 50 ( )

Sexo: Masculino ( X ) Feminino ( )

Formação: Psiquiatria ( ) Psicologia ( X )

Tempo de formação: < 5 anos ( ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( X )

16-20 ( ) > 20 ( )

Tempo de atuação no CAPS/NAPS:

<5 anos ( ) 5-10 anos ( X ) 11-15 ( ) 16-20 ( ) > 20 ( )

Função/Cargo que ocupa no CAPS: Psicólogo

Pós Graduação: Sim ( X ) Não ( ) Mestrado ( ) Doutorado ( )

Especialização: Qual? Psicodrama e Psicossomática

2) Já trabalhou em hospitais psiquiátricos?:

Sim ( ) Não ( X )

3) Recebeu capacitação/treinamento para atuar no CAPS/NAPS?:

Sim ( X ) Não ( )

4) Qual o objetivo do CAPS?

Reinserção

5) O que você entende por Reabilitação Psicossocial?

Dentro deste princípio de reinserção normalmente as pessoas que chegam, no caso do CAPS que atendem as principais gravidades de saúde mental, são pessoas que passaram por perdas de todo tipo: familiares, pessoais, sociais então quando eu digo reabilitação é nesse sentido que é recolocá-la socialmente. Então é reinseri-la no trabalho, no seu contexto familiar, social, até mesmo nas questões da religião, estas coisas. A gente tenta realmente recolocá-la enquanto cidadão, enquanto pessoa.

Page 65: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

65

6) Você acredita na Reabilitação Psicossocial dos usuários?

Integralmente.

7) Como sua prática contribui para a Reabilitação Psicossocial dos usuários deste serviço?

Então, enquanto psicólogo, a gente na verdade, na graduação não tem uma formação para este tipo de trabalho. Isso é uma coisa requer prática diária... a graduação não traz isso. A graduação é aquela coisa sistemática de consultório. Hoje é que há uma evolução na própria psicologia e a gente tem encontrado estas possibilidades aqui de estar hoje com vocês. Estamos aqui na casa cheios de estagiários, inclusive da própria UNIA, para ver, então a nossa prática é aquela coisa né quando você chegou eu estava atendendo fazendo o que a gente chama de acolhimento não é uma triagem, triagem é A B ou C, não eu estou ouvindo a história invisto tempo na pessoa, não tem um julgamento do que está acontecendo, ela é ouvida, a gente faz uma proposta... o que esta acontecendo com você, quer dizer quais foram as suas perdas, o que está acontecendo então acho que a minha prática é exatamente essa, a gente ouve a pessoa, individualmente, eu não olho para ela eu sou psicólogo você é o usuário. É um ser humano que está na minha frente. Eu vou te ouvir para procurar entender o que está acontecendo e junto com ela propor alguma mudança. A pessoa que eu estava atendendo antes é um caso bem simples de ansiedade, uma pessoa perdida então eu não cheguei pensando em remédio com ela eu fui tentando “olha ta assim, ta assado” ela com medo de tomar remédio, vamos tentar outra coisa, o caso dela nem é para o caso CAPS, é um caso para ambulatório mas se eu olho e digo seu caso não é para nós, ela simplesmente não foi ouvida, que é o medo dela então eu a ouvi, a ouvi tranquilamente e falei “oh, por via das dúvidas volta daqui um mês para ver como você está”. Ela disse: Ah eu não queria fazer psicoterapia porque eu tenho que falar” Eu falei ta bom mas vamos começar pela parte que é mais fácil. Sem determinar a vida dela, porque eu posso... a gente vai ouvi-la, ela disse que já fez psicoterapia... Vamos tentar diferente desta vez, proponho para ela, é o que a gente faz uma proposta, tudo acordado com a própria pessoa. É claro que dependendo da gravidade, no caso dela não teve problema, mas se a pessoa tem um quadro muito grave, a autonomia dela está muito prejudicada a gente volta a considerar isso e aí vai inserir a família. Levando em conta que a família que chega aqui para a gente chega extremamente cansada, quando chega aqui no NAPS, neste serviço a pessoa já bateu em tudo que é porta então ela chega como se fosse mais um lugar aí de repente ela vê que ela também é ouvida, que o filho dela não é um problema, que ali tem uma pessoa doente mas ela não é a doença, antes de ter a doença tem a pessoa. Isto que eu estou falando não é uma coisa meramente retórica, conceitual, mas ela não é a doença (...)

A gente sabe o paciente aí pelo nome, a gente conhece a família, a gente vai na casa da pessoa, a gente vai fazer resgate nas casas das pessoas (...) Nós tivemos recentemente aí uma fatalidade de um galho de árvore no Parque Celso Daniel, daquela Figueira centenária que atingiu uma usuária Nós fomos lá na casa dela para ver o que tava acontecendo e como a gente iria ajudar (...) Não se trata no caso da psicologia de se sentar atrás de uma mesa, a gente participa da vida das pessoas, o tempo todo, não da para reunir a nossa prática (...) Estas vivências que as pessoas da faculdade estão promovendo junto com a rede de serviços como este, acho que são realmente muito importante, a pessoa vê, vê acontecer não é uma ou duas vezes que a gente recebe estagiários que chega sem saber o que vai acontecer e que quando sai, sai abraçando, faz uma festinha de despedida, interage. Agora foi retira, não tinha aonde por o painel de foto dos estagiários. Aí você vê a interação. Não que nós não tenhamos problemas mas esta é a diferença. Um dia um paciente veio apagar o cigarro aqui em mim e uma pessoa me perguntou o que fez com ela, eu tirei a mão dela, o que eu ia fazer? Ia bater nela? Só não ia deixar ela me queimar. Não foi ao Rogério que ela estava tentando atingir. Trabalhar em saúde mental com pessoas com este tipo de gravidade tem que ser uma coisa de identificação, tem que gostar porque aqui tem está parte boa que a gente vê a melhora do usuário, mas tem paciente que você vê que não responde, há um limite, tem pacientes que recebemos aqui com trinta anos de internação, gente que veio do Juqueri e de lugares até piores. Cronificados. Institucionalizados. Você vai até conseguir alguma melhora mas certamente não tão grande como aqueles que chegam hoje que não passaram esse tempo todo em internação. Muitas coisas tem que ser consideradas em relação a saúde mental

8) Você gostaria de falar mais alguma coisa?

Não, mas dizer que estas iniciativas, este trabalho que vocês vão fazer na verdade está representando uma mudança de modelo mesmo, porque antes nem se falava. Era um movimento psiquiátrico mesmo, internação (...) Hoje a gente não interna, a gente trata objetivando a reabilitação e o tratar não é o remédio, o remédio é um

Page 66: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

66

instrumento, só isso. Mas é tomando a própria família, a pessoa e tudo o que é feito aqui. Então qualquer tratamento que se baseie somente na figura do profissional não dá certo, se não incluir a pessoa, a família, o usuário, o tratamento não da certo, porque não tem eco dentro da pessoa, porque se ela já passou por internação fechada vai com certeza fazer uma ligação direta com o passado.

ENTREVISTA N.º 4

1) Identificação:

Idade: 18-25 ( ) 26-30 (x ) 31-35 ( ) 36-40 ( )

41-45 ( ) 46-50 ( ) > 50 ( )

Sexo: Masculino ( X ) Feminino ( )

Formação: Psiquiatria (X ) Psicologia ( )

Tempo de formação: < 5 anos ( x ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( )

16-20 ( ) > 20 ( )

Tempo de atuação no CAPS/NAPS:

<5 anos ( x ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( ) 16-20 ( ) > 20 ( )

Função/Cargo que ocupa no CAPS: Psiquiatra e sou terapeuta também né, faço psicoterapia.

Pós Graduação: Sim ( ) Não (x ) Mestrado ( ) Doutorado ( )

Especialização: Qual?

2) Já trabalhou em hospitais psiquiátricos?:

Sim (x ) Não ( )

Trabalho.

3) Recebeu capacitação/treinamento para atuar no CAPS/NAPS?:

Sim ( ) Não ( x )

Durante a residência eu fiz um estágio num CAPS em São Paulo.

4) Dr. qual o objetivo do CAPS?

O objetivo do CAPS é, pelo que eu vejo, ele funciona como um hospital na verdade. Só que dentro da, da, da área de saúde mental chamasse CAPS. Mas ele funciona como um hospital primário né, que agente diz, que num, num, num, num comporta casos tão graves assim, mas é um, um meio termo entre a doença, a reabilitação da doença né, que muitas doenças não tem cura, e a vida do, do, do, da pessoa né, ele está, um, um, ele funciona pelo que eu vejo como um intermediário, entre devolver a pessoa pra sociedade e pegar uma pessoa que está funcionalmente doente também, além da doença física né.

Page 67: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

67

5) O que que o Sr. entende por Reabilitação Psicossocial?

Reabilitação psicossocial pra mim é a, tornar a pessoa produtiva, mas não só no sentido da, ter uma profissão e ganhar dinheiro né. Eu acredito que a doença, isso foi uma definição que eu vi enquanto eu tava na na formação né, tinha uma frase que minha (...) falou pra mim, ela dizia que a doença psiquiátrica é a perda da criatividade, então pra mim reabilitação psicossocial é devolver a criatividade pra pessoa. E uma pessoa criativa é uma pessoa produtiva. Então eu acredito que vai por esse caminho. Até por causa disso né uma das formas que eu atuo como terapeuta, né eu sou, além de ser psicoterapeuta, eu sou terapeuta corporal, e eu utilizo a dança como recurso pra, terapêutico, né, e justamente por esse fato de resgatar a criatividade.

6) Então o senhor acredita na Reabilitação Psicossocial dos usuários do CAPS?

Acredito, senão não estaria aqui.

7) Como que a sua prática especificamente contribui para a Reabilitação Psicossocial?

Então, eu é, pro e, por esse caminho de, de, de ser terapeuta corporal é, porque, porque pra mim isso uma, uma outra ferramenta que agente tem além do recurso verbal, na verdade eu faço as duas coisa né, eu utilizo o corporal e o verbal, porque da mesma forma que você consegue transformar uma pessoa né pela conversa pelo verbo agente consegue também transformar pelo corpo porque o corpo é uma expressão da mente. Isso é uma premissa aí da, uma das linhas da terapia corporal, que o corpo é uma expressão da mente. E o corpo ele não mente, nunca. Então você ir pro corpo você tem acesso a verdades da pessoa né, que muitas vezes verbalmente as pessoas têm vários mecanismos né, que são os mecanismos de defesa pra não entrar em contato com alguma questão. E no corpo isso fica muito evidente, toda vez que você vai pro corpo você é, você acessa isso a pessoa querendo ou não a pessoa expressa isso, então é uma forma de consciência também, de trazer consciência pra pessoa. E aí indo nesse caminho que eu falei anteriormente né da, de resgatar a criatividade, né, que a criatividade é a habilidade que a pessoa tem de lidar com as suas coisas, de lidar com as diferentes situações. E a dependência química, por exemplo, é uma perda dessa habilidade, que ela lida com todas as situações da mesma forma né, é uma coisa que eu sempre falo pros pacientes, que é uma forma de escravidão, né. E o meu trabalho é um trabalho pra tentar resgatar a pessoa desse sistema de escravidão, trazendo, utilizado até a recursos artísticos para resgatar a pessoa desse, desse (...) Porque se ela aprende a ter domínio do corpo dela, né, aprende a ter consciência e domínio mesmo do corpo, domínio dos movimentos do corpo, etc., ela inevitavelmente vai ter domínio na vida dela, vai ter controle na vida, então vai por aí.

8) O Sr. gostaria de falar mais alguma coisa a respeito da reabilitação?

Chega, acho que não, acho que é mais isso mesmo que eu falei. Se você tiver mais alguma pergunta pra me dar.

ENTREVISTA N.º 5

1) Identificação:

Idade: 18-25 ( ) 26-30 ( ) 31-35 ( ) 36-40 ( )

41-45 ( ) 46-50 ( ) > 50 ( x )

Sexo: Masculino ( X ) Feminino ( )

Formação: Psiquiatria (X ) Psicologia ( )

Page 68: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

68

Tempo de formação: < 5 anos ( ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( )

16-20 ( ) > 20 ( x )

Tempo de atuação no CAPS/NAPS: Na Saúde Mental desde 1989

<5 anos ( x ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( ) 16-20 ( ) > 20 ( )

Função/Cargo que ocupa no CAPS: Psiquiatra

Pós Graduação: Sim ( x ) Não ( ) Mestrado ( ) Doutorado ( )

Especialização: Saúde Mental

2) Já trabalhou em hospitais psiquiátricos?:

Sim ( x ) Não ( )

3) Recebeu capacitação/treinamento para atuar no CAPS/NAPS?:

Sim ( x ) Não ( )

4) Qual o objetivo do CAPS?

O objetivo do CAPS é você reabilitar o paciente, numa, promover uma reabilitação psicossocial. É, ele vem como uma, o CAPS vem como uma alternativa ao modelo antigo de tratamento psiquiátrico, que era o modelo hospitalar. Na onde o paciente ficava internado no hospital e (...) ele perdia o vínculo com a sociedade, ficava lá, internado, tomando medicamento. Alguns hospitais se preocupavam um pouquinho mais, faziam alguma atividade com os pacientes (...). Outros não faziam nenhum tipo de atividade, só ficava em medicamento, medicamento (...) paciente ficava preso praticamente sem nenhuma, sem nenhum trabalho de reabilitação psicossocial, de sua, de sua situação como ser humano né. Então o objetivo maior do CAPS é quebrar esse modelo hospitalar e evitar que o paciente fique segregado, fique marginalizado na sociedade. O CAPS ele já é um, pela estrutura e dinâmica dele ele é, uma, uma, um local aberto, onde o paciente entra e sai e existe as séries, as várias atividades, os grupos terapêuticos, as oficinas, justamente pra promover essa reabilitação psicossocial. né. Seria mais ou menos como se fosse um hospital dia, né. Onde o paciente não fica, é, segregado da sociedade. Ele não perde o vínculo com a família, com os amigos, ele não fica, enquanto ele ta no CAPS ele continua mantendo sua atividade diária, porque ele vai pra casa todo dia, ele continua com o convívio com os familiares, os familiares participam também das reuniões, né. E tem alguns pacientes que inclusive ajudam a tomar decisões no sentido de melhorar os atendimentos no CAPS. Então tem uma ação muito mais efetiva sobre o seu tratamento, sobre o tratamento das pessoas que estão com ele ali, naquela equipe multidisciplinar que atende ele. Então o objetivo maior do CAPS no meu entender é, deixa eu ver, é ca, proporcionar uma reabilitação psicossocial mais, mais efetiva do paciente sem que ele fique, é, marginalizado como era feito no hospital, no modelo hospitalar antigo. É uma opção, né, de tratamento mais humana e menos, é, margina, menos marginalizante, menos (...).

5) O que você entende por Reabilitação Psicossocial?

A reabilitação psicossocial no meu entender é, é, proporcionar ao paciente uma volta às suas atividades, a tudo aquilo que ele conseguia fazer antes dele adoecer, porque a doença mental ela pode causar um prejuízo na sua atividade psicossocial do paciente, no seu trabalho, na sua convivência familiar, no seu lazer, ela pode limitar as atividades desse paciente. E quando você busca reabilitar esse paciente pode ser que você não consiga uma reabilitação total, mas tudo aquilo, o máximo que você poder reabilitar a ele você está fazendo um trabalho de reabilitação psicossocial. Se ele entra numa crise psicótica e por causa disso ele perde o emprego, ele também se isola, ele não consegue mais se comunicar com as pessoas, e ele faz um tratamento, vem pro CAPS, começa a fazer o tratamento, começa a, a, a ter uma atenção, começa a compreender melhor a si mesmo, todo o processos

Page 69: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

69

dele, mesmo que ele continue com alguma limitação na vida dele, ele pode muito bem continuar fazendo outras coisas que, é, não o tornam totalmente incapaz. Enquanto que não havia essa preocupação antigamente, o paciente ficava, o paciente psiquiátrico praticamente era um incapaz, pronto e cabou, não tinha mais saída, recebia um carimbo lá de doente mental e as pessoas nem se aproximavam dele. Hoje nós temos um monte aí, a maioria dos pacientes com transtornos mentais, pacientes psicóticos (...) mas que estão trabalhando, que estão produzindo, que estão gerindo sua própria vida. Então isso é uma reabilitação psicossocial. É proporcionar ao paciente que ele consiga se inserir novamente no, na sociedade, produzir alguma coisa, se sentir produtivo, se sentir útil, ter voz, ter vez, que até pouco tempo atrás o doente mental como eu te falei era tachado de louco a cabou, não tinha mais nenhuma solução pra ele. Então a reabilitação visa a inserir, reinserir ele na sociedade de uma, pra ele continuar como uma pessoa produtiva, como um cidadão normal, como outro qualquer.

6) Você acredita na Reabilitação Psicossocial dos usuários?

Eu acredito porque eu vejo isso, diariamente. Vejo isso diariamente. Pacientes que estavam às vezes já no hospital há muitos anos, vieram pra esse novo modelo, né, começaram a adquirir uma nova consciência, uma nova visão de si mesmo, do mundo, começaram a reacreditar em si mesmos e retomar algumas coisas que tinham parado, que tinham perdido, que estavam se perdendo. E interessante que em alguns casos até a própria família também começa a participar dos processos. Nós temos hoje pacientes que vem aqui, que produzem (...) que começam a, a voltar pro seu lado criativo novamente. Então eu acredito sim na reabilitação psicossocial, acho que é uma, uma, uma atividade, uma matéria, uma, uma ciência muito importante, dentro do modelo do CAPS, é o profissional, né, porque (...) super importante e que tem, tem efeito, tem, tem uma, proporciona uma resposta positiva ao paciente no trabalho de reabilitação psicossocial.

7) Como que a sua prática contribui para a Reabilitação Psicossocial dos usuários deste serviço?

Como médico a minha atuação é: diagnosticar o paciente, examinar, diagnosticar, medicar, e orientar. É, nesse processo de avaliação, diagnóstico, medicação, orientação, muitas vezes você, é, usa uma dose maior de remédio, uma dose menor de remédio, em alguns casos você medica (...) necessidade, o paciente muito agitado, naquele surto psicótico, você usa uma medicação que seda o paciente, até ele sair do surto. Então você aí, quando você percebe que o paciente está mais estável, você começa a reduzir a dose da medicação, dando condições de ele estar se soltando mais, pra ele fazer todas as atividades que é necessário. E no processo de orientação, junto com o psicólogo, para ele adquirir uma autoconsciência do seu problema. Então, é, a psiquiatria ela deve, ela pode e deve trabalhar junto com o trabalho de reabilitação, porque muitas vezes um paciente está tomando uma medicação muito excessiva pode estar atrapalhando, um trabalho que ele possa estar fazendo no seu tratamento, (...) terapêutico. E na medida em que você percebe que o quadro psíquico, psiquiátrico está mais compensado, você já pode trabalhar com a redução da medicação. Nesse sentido dá pra trabalhar (...) com a reabilitação psicossocial, trocando opiniões, né, acompanhando a evolução do paciente, né, adequando mais a medicação, pra, pra o trabalho reabilitador.

8) Você gostaria de falar mais alguma coisa?

É, eu a, eu vejo, eu vejo, como positiva essa transição do modelo antigo, hospitalar né, que eles falam hospitalo, que era hospitalocêntrico, que era tudo voltado pro hospital, esse modelo novo, eu vejo como positivo, muito bonito, muito bom. E na prática ajuda muita gente. Porém, eu acho que ainda precisa mais investimentos, né. Para que o CAPS realmente cumpra o seu papel. Se você for andar pelos CAPS da região, todos, fora da região também, você vai ver a grande deficiência que, que eles têm de verba, né, pra poder implantar tudo aquilo que o programa pede. Então se for por, fazer tudo que está escrito no papel mesmo, nossa, é maravilhoso, nem, num precisa retocar nada, o grande problema é que no papel tá bonito, mas a maioria dos gestores ainda não tão investindo com aquela força que realmente precisa haver. Então, agente vê muitos CAPS que faltam profissionais, né, mais profissionais, equipamentos, instalações adequadas, né, mas não deixa de ser um grande passo. É assim que começa. Nós ainda nós estamos nessa transição. Eu vejo como positivo, mas a minha crítica é que precisa receber mais verbas, pra que realmente concluísse esse processo de transição. Nós fechamos o hospital psiquiátrico, e não conseguimos ainda consolidar o CAPS como ta proposto no papel, como ta projetado, como ta idealizado. Nós estamos atravessando a ponte, estamos em cima da ponte. Então, algumas coisas ... essas são minhas palavras, assim, né, finais. Eu acho que precisa de mais investimentos para concluir o processo, mais recursos que até agora.

Page 70: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

70

ENTREVISTA N.º 6

1) Identificação:

Idade: 18-25 ( ) 26-30 ( ) 31-35 ( ) 36-40 ( )

41-45 ( ) 46-50 ( x ) > 50 ( )

Sexo: Masculino ( ) Feminino ( x )

Formação: Psiquiatria ( ) Psicologia ( x )

Tempo de formação: < 5 anos ( ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( )

16-20 ( ) > 20 ( x )

Tempo de atuação no CAPS/NAPS:

<5 anos ( ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( x ) 16-20 ( ) > 20 ( )

Função/Cargo que ocupa no CAPS: Psicóloga. Às vezes gerente.

Pós Graduação: Sim ( ) Não ( x ) Mestrado ( ) Doutorado ( )

Especialização: Qual? Cursos de especialização em psicodrama e em dependência química.

2) Já trabalhou em hospitais psiquiátricos?:

Sim ( ) Não ( x )

3) Recebeu capacitação/treinamento para atuar no CAPS/NAPS?:

Sim ( x ) Não ( )

Já trabalhava há uns 5/6 anos quando foram fornecidos alguns cursos em dependência química. Logo quando entrou que ainda não era NAPS, o treinamento foi com os próprios colegas. Só depois quando começou a mudar para NAPS que nós começamos a receber cursos.

4) Qual o objetivo do CAPS?

É trabalhar a recuperação do dependente químico e a reinserção social.

Entrevistador: E como que isso se dá? Essa reinserção social?

È, nós temos alguns limites. Primeiro (...) foco maior na recuperação emocional e física do paciente, e tentar ajudá-lo a retomar a vida lá fora. A maioria dos pacientes dependentes químicos quando começam a ficar assim nesse, quando começam a se recuperar, tem uma capacidade própria de se, alguns não perderam tanto o vínculo assim com a vida, com trabalho, então eles mesmos já vão tendo iniciativa, né alguns já estão trabalhando, mas

Page 71: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

71

temos alguns que são bastante limitados né, ou já tem alguma questão mental mais grave, são moradores de rua, já perderam o vínculo maior com família, com a sociedade. Então na verdade o que agente começa a retomar é através das oficinas de terapia ocupacional, né, quando agente tenta retomar a questão do cuidado pessoal, da concentração, da (...) produzir, organização de tempo, organização de cuidados “add” né, cuidados pessoais, né, e isso muitas vezes habilita ele ir tomando alguns aspectos da vida lá fora. Alguns casos nós encaminhamos para o núcleo de projetos da prefeitura, né, que também faz uma reinserção mais, vamos dizer, que eles tem algumas oficinas de (...) remunerados ta, oficina de marcenaria, oficina de horta, então isso muitas vezes para alguns pacientes (...) de uma transição até conseguirem tomar a vida profissional lá fora.

5) O que você entende por Reabilitação Psicossocial?

É, é o que, é ajudar a pessoa a retomar a capacidade dela de viver em sociedade, de se relacionar com as pessoas, né, capacidade de produzir, (...) propriamente de cuidar de si mesma né, se relacionar com a família, com as pessoas em volta.

6) Você acredita na Reabilitação Psicossocial dos usuários?

Acredito.

7) E como que a sua prática contribui para a Reabilitação Psicossocial dos usuários deste serviço?

Bom, eu não trabalho com as oficinas, eu trabalho com os grupos. E nos grupos o que agente faz é na verdade o tempo inteiro isso, né, ajudar a pessoa, não só a refletir e formar novos conceitos sobre a vida dela, sobre a relação que ela tem com a substância, mas principalmente sobre a, o como ela lida com as questões da vida. Então, acho que na medida que a pessoa reflete é capaz de começar a fazer mudanças, é capaz de se ver como uma pessoa diferente, formar uma nova auto-imagem, ela vai estar se reabilitando para lidar com a vida dela como ela achar melhor.

8) Você gostaria de falar mais alguma coisa?

Acho que não.

ENTREVISTA N.º 7

1) Identificação:

Idade: 18-25 ( ) 26-30 ( ) 31-35 ( ) 36-40 ( )

41-45 ( x ) 46-50 ( ) > 50 ( )

Sexo: Masculino ( ) Feminino ( x )

Formação: Psiquiatria ( ) Psicologia (x )

Tempo de formação: < 5 anos ( ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( )

16-20 ( x ) > 20 ( )

Tempo de atuação no CAPS/NAPS:

Page 72: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

72

<5 anos ( x ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( ) 16-20 ( ) > 20 ( )

Função/Cargo que ocupa no CAPS: Psicóloga / Coordenadora

Pós Graduação: Sim ( ) Não (x ) Mestrado ( ) Doutorado ( )

Especialização: Psicologia Hospitalar

2) Já trabalhou em hospitais psiquiátricos?:

Sim ( x ) Não ( )

3) Recebeu capacitação/treinamento para atuar no CAPS/NAPS?:

Sim ( ) Não (x )

Veio com a experiência do hospital.

4) Qual que é o objetivo do CAPS?

O CAPS na realidade ele foi aberto para que, após o fechamento do hospital, então a, os pacientes, tem vários pacientes que entram em crise, essa coisa toda e a gente não tem o retorno do hospital geral, que agente deveria ter. Então na realidade o CAPS o que, o CAPS agente fica aqui durante o dia com eles, aí as atividades, passeios pra agente poder avaliar o paciente no dia-a-dia, né. E quando o paciente entra em surto agente já ta perto, para agente poder ajudar a fazer alguma coisa, e para fazer a ressociabilização, né, dele com a sociedade, dele com o outro que está aqui. Só que todo CAPS geralmente, geralmente não, é (...) Porque tinha o hospital, agente internava e esquecia lá, agora não, fechou o hospital, então alguém tem que dar um parâmetro pra mim, uma alternativa quando o paciente entra em surto então. O que acontece, o paciente fica com a gente durante o dia, apesar que vários CAPS, vários CAPS usam é vinte e quatro horas. Agente ta tentando virar o nosso vinte e quatro também, pra agente poder ficar com o paciente dia e noite, porque agente ta tendo muita dificuldade quando o paciente entra em surto, porque agente não tem um local para ficar com ele aqui. Aí agente tem que mandar pro hospital geral e o hospital geral não quer. Geralmente não tem é, é, equipe treinada pra isso, não tem um leito adequado para os pacientes psiquiátricos, entendeu. Então na realidade o que CAPS é para isso, fazer a reabilitação psicossocial dele mesmo na sociedade, com os outros, no município né.

5) O que você entende por Reabilitação Psicossocial?

Ah, eu acho que é a convivência com o outro, é [silencio], como é que eu posso, é mais a convivência no dia-a-dia, ele poder lidar com uma outra pessoa, ele poder discutir o caso dele com uma outra pessoa, ele poder é assim ter atividades físicas com um outro, com uma outra pessoa que não seja do mesmo problema, entendeu? Fazer o contato do, do, do, do paciente doente mental com o paciente “normal”, vamos dizer, entre aspas, assim separando.

Na realidade é, a reabilitação, a gente vai reabilitar ele pra uma vida “normal”, entre aspas, apesar que aqui assim a gente deixa claro que eles, vocês são pessoas que tem um problema mental mas isso não impede de você viver na sociedade, porque tem muita discriminação aí fora e a gente tenta tirar isso deles, entendeu? Então na realidade a reabilitação psicossocial é justamente isso, fazer com que ele conviva é é,é, é do jeito que ele possa conviver, com os outros lá fora, é, é então fazer ter um bom contato é é saber é, que nem a gente tem paciente que faz parte da, ah esqueci, do conselho municipal, orienta ele lá dentro, então isso é uma reabilitação psicossocial, entendeu?. Ele alí fora, fora do mundinho dele, então ele mostrando que ele uma pessoa capaz de fazer qualquer coisa.

6) Você acredita na Reabilitação Psicossocial dos usuários?

Page 73: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

73

Com certeza. Com certeza olha tem muito paciente meu que a gente já, assim, é, a gente está super feliz, apesar que assim que nem eu falo, eles vem pra cá, eles não querem mais ir embora. Aí eu tenho paciente que tem problema em vir a primeira vez, depois que vem a primeira vez aí acompanha o tratamento e quando eles recebem alta mesmo quando agente quer dar alta, eles não querem ir embora, entendeu? Então é lógico que a gente tem que ter a ajuda deles, da família deles, da sociedade, mas com certeza acredito, eu tenho muito paciente que teve.

7) E como que a sua prática contribui para a Reabilitação Psicossocial dos usuários deste serviço?

Então, eles falam que eu sou muito mãe né, é assim, tudo que eles me pedem, pedem, eu tento fazer de qualquer forma. Fora a escuta né, que eu tô ali para escutar, pra ajudar, pra direcionar. Então tudo eles vem comigo, eles tem que marcar medico eles pedem para mim. Ai L. eu preciso ir no dentista eles pedem pra mim. Eu tento fazer o maximo que eu posso, então ai a equipe até fala que eu sou um pouco mãe, que eu tenho que saber disti, é , distinguir um paciente do outro, pra ver, porque as vezes tem paciente que pode fazer isso sozinho, eu acabo cortando né (ri), eles vem me pergunta, Você marca? Ai eu falo não. Você não tá tentando fazer a sua vidinha tal, vai lá e você e marca, chega lá no no ambulatório de saúde e fala que voce que passar no dentista, as vezes eu corto.

Então a minha contribuição assim é assim é totalmente voltada para eles mesmo. Então eles comentam assim, eles tem uma segurança muito grande na equipe inteira, mas mais em mim, porque assim, eu sou muito aberta, entendeu é, eu assim mesmo, as vezes eu to ocupada eu largo pra fazer, pra atender eles, eu não deixo eles esperando, eles tem acesso livre na minha sala, entendeu? Eles chegam a hora que eles querem, não sei se é porque eu também sou coordenadora então eu acho que eu que eu acabo o abrindo mais o espaço, entendeu? Então qualquer problema que ele tiver ele vem na minha sala. Então a minha participação é acho importante nisso, na, na, na, na troca, o que eles precisam de mim, com certeza eles conseguem, e na escuta que é o que mais eles precisam.

8) Você gostaria de falar mais alguma outra coisa?

O que eu queria fala é assim é, o que a gente fala, pra você trabalha com doente mental você tem que gosta. Então assim, isso é uma dica pra, pra, pras pessoas que estão se formando. Eu passava na época do da que estudava perto da clínica onde eu trabalhei e falava que era o ultimo lugar que eu ia caí, né. Eu falava pra todo mundo, o pessoal falava olha L. quando cê se formar você vai vir para aqui e eu magiiina!, é o ultimo lugar que eu vou cair, Deus que me perdoe. E foi onde eu caí, onde eu me identifiquei, onde eu não consigo larga, que você assim, você fica de ferias um mês você fica nossa, parece que falta alguma coisa no seu ar, porque cê tem tanta ligação com eles quer você não consegue se desvencilhar entendeu?! Então assim, o que eu queria dizer trabalha com doente mental tem que gosta, eu amo o que eu faço, espero que venham mais pessoas pra isso ce entendeu? Que o que eles precisam é mais isso mesmo, numa equipe multidisciplinar, apesar que no CAPS é uma equipe multidisciplinar, mas o que eles mais confiam aqui eu não sei se é porque o psicólogo tem a escuta tem o, o, o poder de estar direcionando tem essa coisa toda, mas eles querem o psicólogo, às vezes eles não querem falar com o T.O eles não querem falar com, o assistente social apesar que agente trabalha em equipe só que eles querem fala com o psicólogo. Então quanto mais psicólogos vir para trabalhar com o doente mental isso vai ser muito bom, mas tem que gosta, deixa claro. Não adianta você conseguir trabalhar com o doente mental e não querer. Se você não gosta, você adoece, você não consegue toca seu barquinho! Só isso!

ENTREVISTA N.º 8

1) Identificação:

Idade: 18-25 ( ) 26-30 ( ) 31-35 ( ) 36-40 ( )

41-45 ( ) 46-50 (x ) > 50 ( )

Page 74: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

74

Sexo: Masculino ( X ) Feminino ( )

Formação: Psiquiatria (X ) Psicologia ( )

Tempo de formação: < 5 anos ( ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( )

16-20 ( x ) > 20 ( )

Tempo de atuação no CAPS/NAPS:

<5 anos ( ) 5-10 anos ( ) 11-15 ( x ) 16-20 ( ) > 20 ( )

Função/Cargo que ocupa no CAPS: Psiquiatra

Pós Graduação: Sim ( ) Não (x ) Mestrado ( ) Doutorado ( )

Especialização: Lato sensu em Saúde Pública

2) Já trabalhou em hospitais psiquiátricos?:

Sim ( x ) Não ( )

3) Recebeu capacitação/treinamento para atuar no CAPS/NAPS?:

Sim ( ) Não (x )

4) Qual o objetivo do CAPS?

Bom, o objetivo do CAPS é atender pacientes psicóticos, seja pacientes esquizofrênicos, seja portador de distúrbio bipolar e pacientes com um certo risco devido a, a, a, a patologia. Então as vezes a gente atende pacientes não psicóticos mas que estão com risco de suicídio, risco de se alto agredir ou agredir alguém devido ao quadro clínico que eles apresentam. Depois, esses pacientes que não são psicóticos agente depois encaminha, mas, que estão mais estabilizados agente encaminha para o ambulatório de saúde mental.

5) O que você entende por Reabilitação Psicossocial?

São, são aqueles termos que parece que todo mundo entende, mas na verdade cada um entende uma coisa né, mas do meu ponto de vista seria a inserção do indivíduo na sociedade com as características que ele tem, ou seja, sabendo que ele tem limitações. Alguns pacientes têm muitas limitações, outros agente consegue vamos ver deixar quase sem limitações, o tratamento deixa quase “normal”, entre aspas, pode voltar a trabalhar, voltar a estudar. Alguns o simples fato de sair de casa vir para cá e conversar já é uma reabilitação, porque eles ficam isolados, não conversam com ninguém, ficam agressivos, não querem toma banho, não querem (...) Então o fato de vir para cá e fazer as atividades já é uma reabilitação. O objetivo é muito individual. Para cada paciente agente tem um objetivo.

6) Você acredita na Reabilitação Psicossocial dos usuários?

É o que eu tava falando. Eu acredito desde que você se acostume a trabalhar com expectativas baixas. Se você tem a expectativa que todos vão ser “cidadãos”, entre aspas, também, né. Ou seja, todos trabalhando, casando, tendo filho, estudando, levando uma vida totalmente normal, você ta iludido , não é não é isso que a gente consegue. Cada paciente de acordo com a patologia que ele apresenta, de acordo com o suporte social, familiar que ele tem, de acordo com o padrão de vida dele, a gente traça objetivos. Por exemplo, se ele é um morador se ele é um psicótico morador de rua, o fato de você conseguir recolocá-lo na família já é uma grande conquista, se

Page 75: reflexões sobre a representação de reabilitação psicossocial de

75

você tem um paciente que como eu falei antes, que não sai de casa, você fazer com que ele venha pra cá, por exemplo, duas vezes por semana, ele participe de um jogo de futebol, campeonato, é uma grande conquista. Pra outros, as conquistas são maiores. Cada caso é um caso.

7) Como que a sua prática contribui para a Reabilitação Psicossocial dos usuários?

A minha prática, bom , agente, cada um aqui no CAPS tem as suas funções, mas ao mesmo tempo todos nós somos multi multifunções, todos os profissionais porque, porque às vezes o vinculo que o paciente faz é muito pessoal. Quer dizer, às vezes eu trato um paciente que não vai com a minha cara, num, que a gente não consegue desenvolver muito e o psicólogo ou o terapeuta ocupacional, o assistente social, ou a enfermeira, ou até o porteiro, a funcionário da cozinha, faz um vínculo melhor e consegue coisas que eu, eu como médico não consigo. Por outro lado eu alguns pacientes tem um vínculo muito forte e seguem as minhas orientações, confiam em mim, eles se abrem, eles falam o que estão sentindo. E a partir daí agente consegue, digamos assim, empurrar o paciente pra frente, fazer com que ele progrida no sentido da sua ressocialização, no sentido de levar uma qualidade de vida melhor, né. E cada caso é diferente. Que nem eu falei, tem pacientes que embora estejam sem sintomas psicóticos muito proeminentes no começo eles freqüentam o CAPS todo dia. Porque, porque se ficar em casa, devido a sua família, eles, ou os pais brigam com eles, ou eles brigam com os pais e fica uma situação insuportável. Eu tenho pacientes que vem todos os dias, almoçam aqui, tomam remédio aqui e isso, é, pra evitar os conflitos que podem muitas vezes resultar em internações que poderiam ter sido evitadas. É, a, vamos ver, a parte do médico, além da parte de fazer o diagnostico, nosso forte vai, fazer um plano de tratamento, muitas vezes também é orientar um familiares, que às vezes precisam de, às vezes uma palavra de orientação (...) melhora muito a situação de uma família, começa a entender o que está se passando com o paciente. Às vezes agente fica também totalmente sem ter o que fazer, porque a situação é tão difícil, a família é tão difícil que você não consegue fazer nada.

8) Você gostaria de falar mais alguma coisa?

Eu gostaria de falar, que é, o CAPS ele é uma, vamos dizer, é um, é uma parte do tratamento do paciente psiquiátrico. Eu tenho a impressão de que às vezes o Ministério da Saúde, a Secretaria da Saúde, muita gente do meio da saúde mental têm uma ilusão que o CAPS pode resolve tudo. Não, ele é uma parte de uma rede de tratamento, e às vezes vem muitos pacientes para cá que não, não, não deveriam vir pra cá, porque acabam atrapalhando o tratamento dos outros que pra qual, para os quais o tratamento é mais indicado. Então agente tem, por exemplo, às vezes usuários de drogas que começam a freqüentar aqui e acabam atrapalhando muito o tratamento, porque, até porque existi um outro local que é específico para usuários de drogas. É, existe pessoas portadoras de transtorno de personalidade, que é muito difícil, porque não se resolve com remédio e acabam também atrapalhando, acabam, é, jogando os pacientes contra eles mesmos, contra os profissionais. Então, é muito difícil o nosso trabalho. Eu chamo de um trabalho antigravitacional, tem que ir contra a lei da gravidade, né. É difícil mesmo.