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1 27 E 28 MARÇO 2015 TRÓIA | GRÂNDOLA AUTONOMIA DO PODER LOCAL RELATORES Alfredo Monteiro Vice-Presidente do Conselho Diretivo da ANMP e Presidente da Assembleia Municipal do Seixal Isilda Gomes Vogal do Conselho Diretivo da ANMP e Presidente da Câmara Municipal de Portimão José Manuel Bolieiro Vogal do Conselho Diretivo da ANMP e Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada

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    27 e 28 MARÇO 2015TRóiA | GRândOlA

    AUTOnOMiA dO POdeR lOCAl

    RelatoRes

    Alfredo MonteiroVice-Presidente do Conselho Diretivo da aNMP e Presidente da assembleia Municipal do seixal

    Isilda GomesVogal do Conselho Diretivoda aNMP e Presidente da Câmara Municipal de Portimão

    José Manuel BolieiroVogal do Conselho Diretivoda aNMP e Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada

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    1. A AUTONOMIA LOCAL E O SEU CONTEÚDO: ENQUADRAMENTO GERAL

    2. A CARTA EUROPEIA DA AUTONOMIA LOCAL

    3. A ESPECIFICIDADE DOS MUNICÍPIOS NAS REGIÕES AUTÓNOMAS

    4. A DEFESA DA AUTONOMIA LOCAL PERANTE O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    5. IDENTIFICAÇÃO DE CONSTRANGIMENTOS:

    5.1. a crise financeira dos estados

    5.2. a intervenção do estado Central e as intromissões na autonomia local

    5.3. a instabilidade da legislação aplicável às autarquias locais

    6. PROPOSTAS DO CONGRESSO:

    6.1. No âmbito legislativo

    6.2. a relação política

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    ÍNDICE

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    1. A AUTONOMIA LOCAL E O SEU CONTEÚDO: ENQUADRAMENTO GERAL

    a Constituição de 1976, em alternativa democrática ao profundo esvaziamento da autonomia local que se tinha verificado durante o estado Novo, proclama as autarquias locais como um centro de Poder – o Poder local. Durante 50 anos as autarquias locais não passaram de meras extensões do estado, frutos de uma ideologia au-toritária e centralizadora, em que os Municípios foram transformados em instrumentos de administração indireta do Governo, destituídos de qualquer autonomia e de recursos financeiros, processando-se a sua administração num sistema de total dependência e subordinação face ao estado Central.

    Reconhecem-se assim, em 1976, as autarquias locais como entidades autónomas do estado, com especifi-cidades suficientes para justificar uma existência protegida da ingerência do Poder Central. os conceitos de “autarquia local” e de “autonomia” são, desse modo, indissociáveis, coexistindo numa relação de interdepen-dência. ao identificar-se, na organização do estado, um conjunto de interesses públicos próprios e específicos das populações locais, a autonomia das autarquias locais é encarada como o direito e a capacidade efetiva de regulamentar e gerir, sob sua responsabilidade e com vista à satisfação dos intentos e necessidades das popula-ções, uma parte dos assuntos públicos.

    É neste quadro que o Poder local Democrático se consubstancia nas autarquias locais, quando estas são verda-deiramente autónomas, isto é, quando são suficientemente largas as suas atribuições e competências, quando são dotadas dos meios humanos e técnicos necessários, bem como dos recursos materiais suficientes para as prosseguir e exercer, e quando não são controladas politicamente pelo Poder Central.

    elemento essencial da autonomia local é, igualmente, a auto-administração, mediante órgãos próprios, demo-craticamente eleitos e constituídos no âmbito da própria comunidade local, envolvendo necessariamente a li-berdade de condução dos assuntos autárquicos na esfera das suas atribuições, estando vedado ao Poder Central exercer um controlo de mérito dos seus atos, e confinando-se o exercício da tutela administrativa ao controlo da legalidade.

    As Autarquias Locais constituem, assim, um pilar da organização democrática do Estado, confi-guradas como administração política legitimada pelo voto e assente na organização democrá-tica do poder político, assumindo-se como um instrumento ao serviço da satisfação dos interes-ses próprios das populações, no seu âmbito de intervenção.

    A existência das autarquias locais está garantida constitucionalmente. No entanto, na legislatu-ra em curso foi aprovada uma lei de reforma da administração territorial autárquica que extin-guiu inúmeras freguesias. tal foi levado a efeito desconsiderando-se o património colectivo da democracia de proximidade, impondo-se, a partir do Governo e da assembleia da República, um desenho das autarquias de freguesia que não teve em conta a história e os espaços de identidade secularmente consolidados, nem a vonta-de das populações e dos seus legítimos representantes.

    Esta reorganização territorial, realizada com a aplicação de fórmulas gerais para todo o país, não propiciou que as novas freguesias assentassem em territórios adequados à cabal repre-sentação das populações e nos quais estas se sintam freguesas, resultando ainda na extinção – rotulada de “agregação” – de centenas de freguesias, à revelia e, na maioria dos casos, em completo desrespeito pelos órgãos autárquicos democraticamente eleitos que, instados a pro-nunciar-se, liminarmente rejeitaram o processo.

    Mas se, por um lado, este processo de reorganização territorial se revelou irrefletido, apressado e, em muitos

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    casos, de efeitos desastrosos para a gestão corrente das autarquias locais, já o processo de regionalização do País, previsto na Constituição e que deveria decorrer da aplicação da lei-quadro das Regiões administrativas aprovada no já longínquo ano de 1991 e da lei de Criação das Regiões administrativas datada de 1998, mantém--se inexplicavelmente parado, pesem embora todas as referências e recomendações que a aNMP tem deixado expressas em diferentes momentos ao longo dos anos.

    A institucionalização das regiões administrativas continua a considerar-se fundamental para o reforço da cidadania e a defender-se como instrumento de efetiva descentralização do Estado, de valor acrescentado para o desenvolvimento sustentado do país e para a sua coesão territo-rial, num quadro de reforço articulado e efetivo das atribuições, poderes, competências e meios dos municípios.

    Importa, contudo, registar que por maior que seja a autonomia local, ela não quer significar a independência das autarquias locais dentro do estado. o instrumento pelo qual o estado assegura o primado da lei sobre a autonomia local é o da tutela administrativa que, no entanto, apenas se pode estender à verifica-ção do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos, encontrando-se, assim, excluída do sistema a tutela de mérito que, quando exercida, sempre visa apreciar a oportunidade ou a conveniência de práticas e de decisões das Autarquias Locais.

    os atos dos titulares e as deliberações dos órgãos municipais são sujeitos à fiscalização jurisdicional dos tribu-nais administrativos; ao controlo, prévio e sucessivo, do tribunal de Contas; à tutela inspetiva da legalidade e da gestão patrimonial e financeira exercida pela Inspeção-Geral de Finanças (IGF); à vigilância do Provedor de Justiça. Não há, em Portugal, titulares de cargos políticos mais fiscalizados que os eleitos locais.

    Num período da vida do país em que a proliferação legislativa é enorme e complexa, a aplica-ção da legislação faz-se cada vez com maior dificuldade, não havendo tempo para a sedimen-tação dos regimes jurídicos, gerando-se dúvidas permanentes, o que leva a que o quotidiano das Autarquias Locais e a atuação dos seus órgãos e agentes se tenha convertido numa tarefa de difícil execução.

    É necessário pôr fim a um quadro desarticulado, disperso e incoerente de diplomas legais. a atividade municipal não pode ser limitada por condicionalismos burocratizantes e desnecessários que, em vez de contribuírem para uma decisão rápida e eficaz, são antes causa de atrasos, limitações e incertezas na resposta, no âmbito das suas competências, às necessidades das populações e ao desenvolvimento local.

    Numerosos exemplos podem ser apontados para ilustrarem tal realidade mas destacam-se as leis de ordenamento do território e o regime de licenciamentos, sempre em mudança constan-te, e a legislação relativa aos recursos humanos que se revela um emaranhado de diplomas de difícil perceção e aplicação.

    Por outro lado, verificam-se intoleráveis excessos de tutela: as constantes autorizações de membros do Governo para a prática de determinados atos, quer no domínio do ordenamento do território, quer no foro dos recursos humanos em que se tem de pedir autorização para a contratação de um funcionário, quer ainda no financiamento local, em que existe uma complexa teia de reportes e autorizações, são medidas tutelares e profundamente restritivas da autono-mia local, inadmissíveis num Estado de Direito democrático.

    O exercício da tutela administrativa não pode deixar de ter, além disso, um âmbito pedagógico,

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    assegurando-se a sua função inspetiva mas prevenindo-se o perigo de uma eventual instrumen-talização do poder da tutela.

    a autonomia local tem também como espinha dorsal os princípios da descentralização administrativa e da subsi-diariedade. em matéria de atribuições e competências o princípio da descentralização quer dizer essencialmente uma repartição justa entre o estado e as autarquias locais, com existência de um conjunto substancial de atribui-ções próprias e exclusivas das segundas. o conceito de descentralização implica, por definição, uma perspetiva dinâmica, reclamando a transferência de atribuições do Poder Central para as autarquias locais.

    o centralismo é, em Portugal, um problema secular. se acrescermos a tal prática a burocracia ao nível da tomada das decisões, temos, num desenho bastante simples, o quadro organizatório da administração pública do nosso país. Por isso, a ANMP tem defendido, desde sempre, que para se reformar o Estado a aposta deve ser na descentralização e na subsidiariedade, devendo estas constituir-se em prioridade política e cultural nas esferas Regional e Local, tal como está consagrado na Constituição da República.

    No entanto, a descentralização administrativa não deve nem pode ser feita de qualquer forma. Acima de tudo, é de rejeitar a desconcentração de competências que, no essencial e sob a capa da subsidiariedade, as alarga na mesma proporção em que diminui a autonomia para lhes dar execução.

    acontece, também, que muitas vezes e por processos diversos, os Municípios são chamados a assumir as mais variadas funções e competências, assegurando um leque cada vez mais alargado de servi-ços que são da responsabilidade do Estado, por se tratar de matérias do interesse nacional que ao Poder Central deve caber suprir, como funções sociais do Estado.

    Com efeito, com a justificação da proximidade com as populações, aos Municípios tem sido atribuído o desempenho de um conjunto de funções que se encontram desenquadradas das atribuições e competências municipais, uma vez que o legislador não as regulamentou e, conse-quentemente, não cumpriu as regras relativas à descentralização de poderes.

    Face à incapacidade frequentemente demonstrada pela administração Central, a tendência para que os Mu-nicípios assumam responsabilidades que não são municipais, em substituição daquela e em pre-juízo da cabal exercício das competências dos mesmos, tem criado situações de cruzamento de competências propiciadoras da intervenção concreta e casuística de membros do Governo, muitas vezes em claro atropelo à autonomia local. Este tipo de situações tem-se revelado de particular gravidade em matérias de Educação, de Proteção Civil, de Saúde, de Habitação Social, de Justiça e de Rede Viária, áreas em que alguns Municípios têm vindo a exercer competências que não são suas.

    2. A CARTA EUROPEIA DA AUTONOMIA LOCAL

    Instrumento fundamental para as autarquias locais é a Carta europeia da autonomia local (Ceal). a autonomia local é elevada a princípio fundamental da organização do poder político dos estados, estabelecendo a Ceal que o princípio da autonomia local deve ser reconhecido pela legislação interna e, tanto quanto possível, pela Constituição, referindo que “Entende-se por autonomia local o direito e capacidade efectiva das autarquias locais regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade e no interesse das respectivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos”.

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    Delimita, ao mesmo tempo, uma área de intervenção municipal “Dentro dos limites da lei, as autarquias locais têm completa liberdade de iniciativa relativamente a qualquer questão que não seja excluída da sua competência ou atribuída a uma outra autoridade”, e consagra um princípio de proximidade e de respeito pelo princípio da subsidiariedade “Regra geral o exercício das responsabilidades públicas deve incumbir, de preferência, às auto-ridades mais próximas dos cidadãos. a atribuição de uma responsabilidade a uma outra autoridade deve ter em conta a amplitude e a natureza da tarefa e as exigências de eficácia e economia”.

    Em matéria de finanças locais a CEAL institui também princípios fundamentais, prescrevendo que “As autarquias locais têm direito, no âmbito da política económica nacional, a recursos próprios adequados, dos quais podem dispor livremente no exercício das suas atribuições” e dispondo que “Os recursos financeiros das autarquias locais devem ser proporcionais às atribui-ções previstas pela Constituição ou por lei”. No que respeita às estruturas administrativas das Autarquias Locais, consagra também a CEAL que “Sem prejuízo de disposições gerais estabele-cidas por lei, as autarquias locais devem poder definir as estruturas administrativas internas de que entendam dotar-se, tendo em vista adaptá-las às suas necessidades específicas, a fim de permitir uma gestão eficaz”.

    Neste contexto, o facto de Portugal ser signatário da Ceal acarreta responsabilidades, a primeira das quais se re-fere à própria existência de um sistema de organização baseado na autonomia local, que deixa de ser uma opção e passa a ser um imperativo; depois porque a mesma não se limita a consagrar um princípio de autonomia local abstrato, mas ajusta essa autonomia local a um determinado conjunto de características. assim sendo, Portugal está não apenas obrigado a adotar um modelo de descentralização com autonomia local, mas também vinculado a um modelo de autonomia local assente nos princípios da Ceal.

    Por isso mesmo, a desconformidade entre quaisquer normas legais internas e as normas cons-tantes da CEAL (como, aliás, de qualquer outra convenção internacional) pode ser sindicada pelos tribunais, havendo o dever, por parte dos destinatários da lei, de não aplicar normas que em sede jurídica se venham a revelar “ilegais”.

    3. A ESPECIFICIDADE DOS MUNICÍPIOS DAS REGIÕES AUTÓNOMAS

    os Municípios das Regiões autónomas dos açores e da Madeira enfrentam dois problemas específicos quan-do comparados com os Municípios do Continente: as matérias de descentralização implicam normalmente a transferência de poderes da administração Regional autónoma e não da administração do estado, dado que nas Regiões autónomas quase todas as competências administrativas estão regionalizadas; frequentemente os programas de apoio e incentivo aos Municípios estabelecidos pelo estado abrangem de forma implícita somente os Municípios do Continente, pelo que, se os órgãos de governo regional não replicarem esses programas, os Municípios insulares ficam em posição de desvantagem.

    salienta-se a este propósito que a proteção constitucional da autonomia regional das Regiões autónomas não prejudica a proteção da autonomia das respetivas autarquias locais, estando necessariamente fora das atribui-ções dos órgãos de governo regional as que pertençam às autarquias. Da mesma forma, sempre que haja novas transferências de competências, ao abrigo do princípio da descentralização, isso é feito à luz dos poderes admi-nistrativos do estado, no Continente, e à luz dos poderes administrativos das Regiões autónomas, nos territórios insulares.

    É entendimento da ANMP que os Municípios insulares devem beneficiar dos mesmos poderes

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    e atribuições dos Municípios continentais. Trata-se de uma decorrência elementar do princípio constitucional da igualdade. A descentralização não deve sofrer um encurtamento quando che-ga às Regiões Autónomas. A existência da autonomia regional não pode servir para justificar uma perda da capacidade de autonomia dos Municípios dos Açores e da Madeira. Por isso, quando uma lei da República procede à transferência de poderes para os Municípios não deve reservar explicita ou implicitamente o seu âmbito aos Municípios do Continente.

    os municípios insulares também devem poder beneficiar, em pé de igualdade, dos programas públicos de incen-tivo e apoio à ação dos Municípios, tanto os de origem do estado, como os de origem Comunitária. Apesar disto, a realidade atual das Autarquias Locais das Regiões Autónomas não é a mesma das Autarquias Locais do continente. Com efeito, permanece no âmbito do Poder Regional o exercício de muitas das atribuições e competências que no continente se situam no âmbito das Autarquias Locais.

    4. A DEFESA DA AUTONOMIA LOCAL PERANTE O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    os Municípios Portugueses, nos últimos anos, têm sido confrontados com normas constantes de diplomas legais que, em abstrato, são violadoras do princípio constitucional da autonomia local. simultaneamente, sentem o gravíssimo e preocupante constrangimento da ausência de um instrumento legal/processual que lhes permita re-querer, diretamente ao tribunal Constitucional, a apreciação da conformidade constitucional do conteúdo de tais diplomas legais. Com efeito, o texto constitucional apenas confere esta legitimidade, consoante as situações, a um número limitado de entidades do qual estão excluídas as Autarquias locais.

    Considerando que, como evidenciámos anteriormente, são múltiplas as situações em que os Municípios Por-tugueses têm sido confrontados com atos legislativos cujo conteúdo se tem revelado afrontador do princípio constitucionalmente protegido da autonomia local, entendemos justificar-se, assim, a criação de um me-canismo específico e destinado a ultrapassar esta limitação, atribuindo aos Municípios a legiti-midade para suscitarem, de forma ativa e direta, perante o Tribunal Constitucional, a fiscaliza-ção abstrata sucessiva da constitucionalidade.

    acresce a este aspeto, o facto de que só a extensão daquela legitimidade aos Municípios permitirá que, final-mente, se transponha e concretize no nosso ordenamento jurídico, o disposto no artigo 11.º da Carta europeia de autonomia local, que consagra o princípio de que as autarquias locais devem dispor de uma via de recurso jurisdicional para garantir o livre exercício das suas competências e o respeito pelos princípios da autonomia local consagrada na Constituição ou na lei interna.

    5. IDENTIFICAÇÃO DE CONSTRANGIMENTOS

    O Poder Local é um pilar da organização democrática do Estado que prossegue interesses pró-prios e específicos das populações locais. No entanto, nos últimos anos, por razões de vária or-dem, tem estado sujeito a um conjunto de constrangimentos que lhe têm retirado a autonomia e a eficácia na gestão, restringindo a sua capacidade realizadora e de intervenção.

    tal deve-se a alguns fatores fundamentais:

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    5.1. A crise financeira dos Estados

    a atual crise económico-financeira e de austeridade social, assim como as opções governativas no quadro dos PeC e do Programa de ajustamento, implicaram desde 2010 um exacerbado protagonismo centralista do Poder Central bem como uma intervenção mais ampla do estado, designadamente nos domínios que têm um reflexo no défice público. estas opções, restrições e condicionantes transformaram-se em razões pretensamente legítimas para a degradação da autonomia local, colocando as autarquias locais numa situação de constrangimentos extremos e de quase carência de assistência do estado, como se de entidades privadas se tratasse.

    Importa reafirmar que as autarquias locais não são entidades dependentes e assistidas financeiramente pelo estado na medida das disponibilidades deste, uma vez que o nosso quadro jurídico não concebe os recursos públicos como uma coisa originária do estado que este depois atribui às autarquias, mas antes como objeto de uma “justa repartição” entre o estado e as autarquias locais.

    Por outro lado, num tempo de emergência financeira, de recessão económica e de imposição de sacrifícios sociais, as restrições à autonomia local não encontram nem paralelo, nem equilíbrio, no que seria uma desejável repartição dos sacrifícios entre Estado e Poder Local.

    À retração da riqueza nacional produzida e dos recursos disponíveis do Estado corresponderam uma diminuição desproporcionada da participação das autarquias nesses recursos e uma exten-sa lista de limitações de diferente natureza.

    Em tal âmbito e com este quadro de fundo, tem vindo a ser implementado um conjunto de medidas que se qualificam como desastrosas para o Poder Local e que, globalmente, somando o não cumprimento da anterior Lei das Finanças Locais, aos cortes em resultado dos PEC e dos sucessivos Orçamentos de Estado, ascendia no final de 2014 a 1,436 milhões de euros. Em 2014, as autarquias locais receberam um valor inferior em 72 milhões de euros, ao que fora transferi-do no ano de 2005, quando ao mesmo tempo se registou um elevado acréscimo da carga fiscal e das receitas do Estado.

    Entre outros, este é um aspecto que potenciou o acentuar de tensões políticas na relação entre o Estado e as Autarquias Locais, desfavoráveis e penalizadoras do bem-estar dos cidadãos.

    Afirma-se que a crise financeira do Estado não deveria ter constituído razão nem fundamento para a asfixia das Autarquias Locais, apresentando-se, contudo, como o grande pretexto para tal.

    5.2. A intervenção do Estado Central e as intromissões na autonomia local

    o grau de autonomia de que as autarquias locais dispõem presentemente é o resultado de uma política gover-nativa produto de uma postura por parte da administração Central profundamente autocentrada e controladora.

    Têm sido múltiplas as situações de desrespeito por parte dos Governos para com as Autarquias Locais, colocando muitas vezes em causa a sua autonomia e desprezando as obrigações consti-tucionais e os interesses próprios das populações.

    Reafirma-se que as Autarquias Locais não são dependências ou serviços do Estado, não fazem parte da sua administração direta ou indireta, não podendo ser configuradas como instituições

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    a quem a Administração Central possa dar ordens ou diretivas nem exercer quaisquer poderes de superintendência, como parece ser a vontade dos que com sua prática política pretendem reduzir à menor expressão a autonomia das Autarquias Locais, intrometendo-se no seu quoti-diano e cerceando a sua gestão em aspetos fundamentais.

    No entanto, são muitos os exemplos em que tal tem ocorrido. Desde logo, ao nível do finan-ciamento dos municípios, as reduções de verbas destinadas às Autarquias Locais (quer prove-nientes do Orçamento do Estado, quer pela aplicação do PEC), a par de inusitadas medidas de consignação de receitas em claro incumprimento da Lei das Finanças Locais; as alterações avul-sas nos limites de endividamento municipal introduzidas nos vários Orçamentos do Estado; as isenções de impostos que constituem receita municipal, promulgadas pelo Estado; a isenção do pagamento de impostos e de taxas pelo Estado aos Municípios. Mas também em outras áreas se tem verificado a intromissão inaceitável da Administração Central: na imposição de redução dos recursos humanos dos Municípios e proibição de recrutamento de pessoal; na infundada regra do Orçamento do Estado para 2015 que estabelece 35% das receitas correntes como referência para as despesas com pessoal; na celebração dos acordos coletivos de entidade empregadora pública; na imposição de redução do número de dirigentes municipais; na imposição de reestru-turações orgânicas das autarquias com obrigação de redução do número de unidades orgânicas; nas graves restrições à autonomia da gestão municipal colocadas pela Lei dos Compromissos e Pagamentos em Atraso; na imposição, por via legal, de restrições à criação e manutenção das empresas locais; na obrigatoriedade de pagamentos ao Serviço Nacional de Saúde, relativos aos trabalhadores municipais, sem que os mesmos correspondam a serviços efetivamente pres-tados; nas áreas portuárias e zonas costeiras geridas como territórios autónomos, sem que os Municípios possam exercer sobre tais áreas as suas naturais competências.

    Muitas outras situações poderiam ser elencadas como intromissões ilegítimas e demasiado frequentes do Poder Central na atividade municipal.

    O relacionamento entre o Poder Central e o Poder Local não deve ser de intromissão permanen-te por parte daquele, nem de desconfiança regular por parte deste, mas antes assentar numa relação que propicie um trabalho de cooperação efetiva tendo como objetivo o desenvolvimen-to harmonioso e sustentado do país e o bem-estar das populações.

    Para que tal aconteça torna-se imprescindível uma articulação e uma defesa comum do interes-se público, em que não se desconsidere, de forma continuada, o papel fundamental das autar-quias e dos eleitos locais e se respeite a sua autonomia de modo efectivo.

    Este desígnio pressupõe uma mudança de paradigma no relacionamento entre os diversos ato-res políticos baseada na parceria, na responsabilidade e no respeito pelas competências de cada um. Os eleitos locais estão disponíveis para este desafio.

    5.3. A instabilidade da legislação aplicável às Autarquias Locais

    em Portugal não temos um quadro legislativo estável. em particular, o direito das autarquias locais tem sido fus-tigado por diversas reformas que lhe têm retirado a coerência e a estabilidade tão necessárias ao funcionamento destas instituições democráticas.

    o legislar casuístico e a complexidade do edifício legislativo geram graves inconvenientes, afetando a qualidade

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    e a celeridade das decisões, inviabilizando qualquer planeamento municipal, com prejuízo da segurança e da certeza que devem constituir-se como princípios norteadores da gestão pública.

    O que se verifica é a “revolução” permanente, com as leis do Orçamento do Estado a consti-tuírem-se em repositório de alterações legislativas, modificando anualmente um conjunto de regras que deveriam ser dotadas de estabilidade. Também nos domínios das finanças locais, do ordenamento do território, dos licenciamentos municipais, das atribuições e competências, da gestão de recursos humanos e da organização das Autarquias Locais e do associativismo muni-cipal, os exemplos das alterações legislativas quase quotidianas são dramáticos, impossibilitan-do o exercício de uma atividade municipal que se quer criteriosa e equilibrada.

    Torna-se, por isso, fundamental dotar as Autarquias Locais de um quadro legislativo estável, que perdure no tempo, que traga segurança e certeza jurídicas, que propicie uma gestão mu-nicipal com verdadeira autonomia, em benefício das populações e do progresso económico e social do País.

    6. PROPOSTAS DO CONGRESSO

    a autonomia local, no respeito pela Constituição e pelas leis da República, é um fator determinante do funciona-mento das instituições democráticas em Portugal. Por isso, as autarquias locais não alienam a sua capacidade de intervenção na resolução dos problemas locais, sendo certo que só com a autonomia local as necessidades das populações podem ser cabalmente asseguradas.

    o respeito pela autonomia local e a sua valorização devem constituir-se como desiderato para todos aqueles que exercem responsabilidades políticas, desde logo na assembleia da República e no Governo, importando, no calendário político que se aproxima a nível nacional, aproveitar a oportunidade para, de forma corajosa, implementar uma agenda de sentido reformador, com uma vertente legitimadora e democrática. o desafio que se coloca e o repto que se lança aos agentes políticos é o da construção de um Poder local forte, que fomente a autonomia municipal, responsabilizando, concomitantemente, as autarquias e os eleitos locais pelas suas opções gestionárias.

    Os desafios lançados pela ANMP à Assembleia da República, ao Governo e aos Partidos Políti-cos, como contributos para esta mudança de paradigma e para o reforço da autonomia local, como fator incontestável do desenvolvimento de Portugal e do aprofundamento da democra-cia, são os seguintes:

    6.1. No âmbito legislativo

    • Consagrar a matéria relativa ao estatuto das Autarquias Locais (atribuições, competências, fun-cionamento, estatuto dos eleitos locais, bem como o regime de finanças locais) como de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, significando isso que só este órgão de soberania pode legislar sobre tal problemática;

    • Estabelecer a matéria relativa ao estatuto das Autarquias Locais, incluindo o regime de fi-nanças locais, como legislação orgânica (à semelhança do que atualmente acontece com as eleições dos titulares dos órgãos do Poder local e com o regime de finanças das regiões autónomas);

    • Consagrar a possibilidade dos Municípios poderem requerer ao Tribunal Constitucional, sob certas condições, a fiscalização abstrata de constitucionalidade ou de legalidade de deter-

    337338339340341342343344345346347348349350351352353354355356357358359360361362363364365366367368369370371372373374375376377378379380381382383384

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    minados preceitos;• Garantir a estabilização do quadro legislativo no domínio das leis de atribuições e compe-

    tências e de Finanças Locais;• Assegurar a revisão de um conjunto de diplomas legais que atentam contra a autonomia

    local, designadamente: • O regime financeiro das Autarquias Locais e das entidades intermunicipais;• O regime jurídico do sector empresarial local e das participações locais; • As regras relativas à gestão de recursos humanos, colocando-se um termo às reduções

    obrigatórias de pessoal e às limitações ao recrutamento de pessoal; • O diploma relativo ao pessoal dirigente da Administração Local, garantindo aos Municí-

    pios e às Entidades Intermunicipais a liberdade de adequarem as suas estruturas orgâni-cas às atividades que desenvolvem.

    • Assegurar a revogação da legislação relativa à assunção dos compromissos e pagamen-tos em atraso, ajustando-se, se necessário, as regras do POCAL, instrumento bastante para garantir o rigor das contas municipais.

    6.2. A relação política

    o diálogo político entre o Governo, a assembleia da República e as autarquias locais deve assumir-se como um instrumento estratégico construtivo para o desenvolvimento do país e para o bem-estar das comunidades e populações.

    Para isso, é fundamental proceder a uma mudança de atitude dos diferentes intervenientes, passando a garantir o respeito mútuo pelas atribuições e competências de cada nível de poder, não se desconsiderando ou menori-zando o papel das autarquias locais e dos eleitos locais.

    A cooperação ativa entre o Poder Central e o Poder Local tem de assentar num diálogo autênti-co, numa cooperação permanente e articulada, levados a efeito com respeito pelas diferenças, com tempos adequados à análise e ponderação das questões e dos problemas que afetam as populações.

    As relações de parceria entre a Administração Central e a Local têm de assentar em regras claras, assegurando-se a universalização dos serviços públicos prestados, e a equidade nas con-dições de acesso a todos os cidadãos, no quadro das funções sociais do Estado, constitucional-mente consagradas.

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    27 e 28 MARÇO 2015TRóiA | GRândOlA