auto de natal todo menino È um rei

23
AUTO DE NATAL TODO MENINO É UM REI POR JACQUELINE PINZON Personagens por Ordem de Entrada Antônio, peão da fazenda- Dejayr Ferreira José, peão da fazenda- Paulo Adriane Isabel, prima de Maria - Sandra Loureiro Lavadeiras- Maria, empregada da fazenda, noiva de José- Sayonara Sosa Dona Anja, benzedeira e parteira do local- Jacqueline Pinzon Coronel Herodes, estancieiro- Dejayr Ferreira Golondrina, menina empregada da casa do Coronel- Jacqueline Pinzon Açoriano, Castelhano e Vinuta, artistas mambembes, formam o Terno de Reis Açoriano- Fábio Cuelli Castelhano- Airton de Oliveira Vinuta- Sandra Loureiro Bolicheiro, dono de venda – Airton de Oliveira Mulher, china do bolicho- Sandra Loureiro Zarolho, menino agregado do bolicho, mudo – Dejayr Ferreira

Upload: jacqueline-pinzon

Post on 04-Feb-2016

11 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Texto de Auto de Natal que passa no interior do Rio Grande do Sul no século XVII.

TRANSCRIPT

Page 1: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

AUTO DE NATALTODO MENINO É UM REI

POR JACQUELINE PINZON

Personagens por Ordem de Entrada

Antônio, peão da fazenda- Dejayr FerreiraJosé, peão da fazenda- Paulo AdrianeIsabel, prima de Maria - Sandra Loureiro Lavadeiras- Maria, empregada da fazenda, noiva de José- Sayonara SosaDona Anja, benzedeira e parteira do local- Jacqueline PinzonCoronel Herodes, estancieiro- Dejayr FerreiraGolondrina, menina empregada da casa do Coronel- Jacqueline PinzonAçoriano, Castelhano e Vinuta, artistas mambembes, formam o Terno de Reis Açoriano- Fábio CuelliCastelhano- Airton de OliveiraVinuta- Sandra LoureiroBolicheiro, dono de venda – Airton de OliveiraMulher, china do bolicho- Sandra LoureiroZarolho, menino agregado do bolicho, mudo – Dejayr FerreiraMulheres do bolicho

A Ação se passa na região compreendida entre o planalto e a depressão central do estado do Rio Grande do Sul, no ano de 1754, na época o local era conhecido como Continente de São Pedro.

Page 2: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

CENA 1 - ABERTURA

(De um canto do palco surge o Terno de Reis (Açoriano, Castelhano e Vinuta) com seu canto de louvor. Aos poucos, a cena é ocupada pelos habitantes da Estância Jerusalém. Peões, roçadeiras, lavadeiras, é o povo da Estância em seus afazeres diários.)

ABERTURA (todo elenco canta)

Letra: Jacqueline Pinzon ( e parte recolhida do folclore gaúcho)Música Pablo Capalonga

Agora mesmo chegamos Na beira do seu terreiro Para tocar e cantar Licença peço primeiro. Essa história aconteceu Numa estância de gado, Continente de São Pedro Era o nome do Estado Muita terra, pouca gente Povo pobre e mal pago E o menino Deus nasceu De um casal afortunado

CENA 2 - AS LIDES DO CAMPO

(José e Antônio secam e empilham couro de gado para a venda.)

ANTÔNIO - E agora reunimos alguns homens e vamos até o paço requerer cartas de sesmarias.JOSÉ - Antônio, tu achas que a Comandância do Continente vai receber uma tropilha de peões? Vão botar pra correr como se fosse um bando de castelhanos malvados. ANTÔNIO - Aqui todo dono de estância foi um dia bandoleiro que preava gado solto sem marca, e até bicho marcado eles levavam. Mesmo assim ganharam terra.JOSÉ - Eu não preciso de sesmarias, já tenho meu pedaço.ANTÔNIO - Que está na mão do Coronel Herodes.JOSÉ - Mas é por pouco tempo. Até que eu pague a dívida. ANTÔNIO - Mas tu és um só. Tua irmã cega e tua mãe é que não podem te ajudar. E dívida de terra cresce rápido, José.

2

Page 3: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

JOSÉ - Sou homem de honrar meus compromissos.ANTÔNIO - Mas teu compromisso com Maria ainda está dependurado.JOSÉ - Com minha noiva me acerto eu. Ela anda meio chucra só porque eu adiei de novo a data do casamento. Se terminarmos a capela, já se pode ter festa no verão.ANTÔNIO - Não sem antes pagar a dívida com o patrão.(Ri.) Precisas mesmo é de terras novas e animal gordo no pasto.JOSÉ - Em breve, eu e Maria teremos nosso rancho, e te servirei churrasco gordo, enquanto Maria vai cuidar de nossas crias.

CENA 3 - NO LAJEADO

Canção Para Maria ( Açoriano\Isabel)Letra adaptada do folclore popularMúsica: Pablo Capalonga

E no seio imaculado Concebeu o redentor Rosa mística Maria, mãe de Deus A ti eu dou o meu amor

(Mulheres lavam suas roupas. Movimento, conversas, risos. Ao longo da cena, Maria revela sinais de cansaço. Isabel e Maria conversam.)

ISABEL - . . . E ele ficou ardendo em febre toda a noite. Mas na madrugada, depois que as ervas e as compressas pegaram efeito, a febre baixou. Logo, logo, aqueles olhinhos grandes iluminaram toda a casa.MARIA - É. Criança é bicho forte. Reage sempre, diferente da gente.ISABEL - Que foi, Maria? A doença do meu filho te deixa triste?MARIA - Claro. É teu filho. É meu primo também. É que eu ando meio desencantada.ISABEL - Moça bonita, e noiva, não tem precisão de ficar amuada.MARIA - Isabel, eu também queria ter um filho nos braços, uma casa e um marido pra cuidar. Mas não. Trabalho como empregada numa estância, lavando a roupa dos outros. ISABEL - Mas eu sou casada e ainda trabalho aqui neste lajeado, como tu.MARIA - Mas teu marido não tinha terra de herança. Isso é que eu não me conformo.ISABEL - Maria, aquieta o coração. Logo José vai dar um destino pra isso tudo, ele paga a dívida com o coronel Herodes e recupera o pedaço de terra. Quando tu

3

Page 4: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

levantares a cabeça, vais ver o roçado e teus filhos brincando com as reses pelo pátio.MARIA - (Fisicamente abatida.) Se ao menos eu tivesse uma certeza.ISABEL - Tu tens que acreditar, minha prima.MARIA - Se não fosse por minha fé, Isabel, o sorriso já me tinha ido embora há muito tempo.ISABEL - Pois então te apiana.MARIA - Eu me apiano. E peço. Peço que Deus não me desampare.ISABEL - Por que este desassossego, minha prima?MARIA - Em sonhos, enxergo eu e José caminhando, caminhando numa estrada comprida. Mais adiante vejo uma criança com uma cara que parece um sol, logo depois a criança foge de meus braços e eu me acordo chorando.ISABEL - Toma um chá de maçanilha antes de dormir, Maria, que este sentimento vai embora. Logo vem o casamento, a casa, e a segurança volta de novo ao teu peito.MARIA - Mas se o Coronel Herodes se zangar, se José não pagar o que deve , se não levantar as paredes da casa, se eu e José...ISABEL - (Interrompendo.) Se, se. Não te judia tanto, minha prima, te concentra na lida.(Um tempo. As mulheres voltam ao trabalho, a tarefa se intensifica, Maria perde os sentidos.)ISABEL - (Percebendo.) Maria... Maria! Pelo amor de deus, Maria. (Para as mulheres.) Acudam aqui, acudam. Maria caiu. (Mulheres ficam à volta de Maria que está caída.)

ISABEL - Chamem Dona Anja. Alguém traga a benzedeira.

CENA 4 - A ANUNCIAÇÃO

(Maria desfalecida. Mulheres à sua volta tentam reanimá-la. Entra Dona Anja. Traz consigo um terço e uma botelha d’água.)DONA ANJA - Permiso, permiso. Deixem passar. (Tentando reanimá-la.) Maria, Maria. (Diz uma reza, joga-lhe água.)ISABEL - Agorinha mesmo ela conversava e. Acho que foi o sol.DONA ANJA - Pois é. Nem tudo se explica, minha filha. (Examinando Maria.)

(Mulheres amontoam-se em volta.)

DONA ANJA - Vamos, vamos, voltem pra lida. Eu cuido dela.MULHERES - Vamos avisar José. (Saindo.) Vamos, isso.MARIA - (Restabelecendo-se.) Tudo ficou preto de repente, minha boca secou, as pernas afrouxaram. Não vi mais nada.DONA ANJA - Estou entendendo, filha. Não é a primeira vez que isto acontece, é?MARIA - Outro dia foi a mesma coisa. Lembra. Eu fui até sua casa.

4

Page 5: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

DONA ANJA - E eu te fiz um chá de folha de laranjeira.MARIA - Foi. Eu tinha esse mesmo gosto amargo na boca.DONA ANJA - Desde aquele instante não tirei mais os olhos de ti, filha.MARIA - De mim?DONA ANJA - E agora o sinal se confirma.MARIA - (Desconfiada.) A senhora acha que eu estou doente, não acha? Eu sei que sim. À noite, visões atacam meu sono. Eu sinto que vou morrer.DONA ANJA - Não, Maria. Tu nunca estiveste tão cheia de vida. De todas as mulheres desta estância, tu és a mais abençoada.MARIA - Sou abençoada só com o trabalho, passo os dias mourejando de sol a sol. Como paga tenho apenas a roupa do corpo e a bolsa vazia. Mas quando chego aqui no lajeado, vejo a água correndo, Honorina e Isabel batendo a roupa na cadência, parece que é uma música. Então me vem um sorriso. E quando avisto José lidando no campo, parece que meus pés levantam do chão. Se isto é bênção, eu sou mesmo abençoada.DONA ANJA - Nem jóias, cabeças de gado ou baixelas de prata se igualam à tua alegria de viver, Maria. E é por isso que tu vais ter um filho.MARIA - Mas como pode ser? Este tempo todo espero José, meu noivo. Eu nunca fui de homem nenhum, lhe juro. Nunca me deitei com ninguém.DONA ANJA - Filha, eu lido com as ervas e as rezas. O mato, a lua e as águas são meus companheiros. Conheço essas trilhas e cada um que anda sobre elas. A criança será linda, um verdadeiro Rei.MARIA - Dona Anja, por Deus, eu sou moça direita. Só faço trabalhar. A senhora perdeu a tramontana.DONA ANJA -Eu não erro o pealo, Maria. O Espírito Santo desceu sobre ti. Tu serás mãe do filho de Deus. E teu filho terá uma dó e um amor sem fim para cada vivente desta terra. Será cheio de vida e luz, como tu. E quem tiver precisão de ajuda, dele vai receber uma palavra.MARIA - Dona Anja. (Abraçam-se.) (Dando-se conta.) E José, José não vai mais me querer. Deus me dá o filho e me tira o marido.

(Aparece José ofegante.)

JOSÉ - Honorina me avisou, vim um pé lá outro cá. (Para Maria.) Ô, minha prenda, o que te aconteceu?

(Maria rechaça-o.)

JOSÉ - (Rindo.) (Para Dona Anja.) Eu acho que ela já tá é bem boa. Tá corcoveando, a minha bezerrinha.

(Maria junta sua bacia e sai correndo.)

JOSÉ - Êla chucra. (Para Dona Anja.) Deixa, eu sei o que está acontecendo. Depois que eu tive que adiar o casamento, ela ficou assim, ressabiada.

5

Page 6: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

DONA ANJA - José, Maria não está ressabiada, está prenhe.JOSÉ - Isso é alguma broma?DONA ANJA - (Sem paciência.) Não tem broma nenhuma. Maria está grávida. JOSÉ - Ela não pode estar grávida do vento.Quero saber quem foi?DONA ANJA - José, tu conheceste o velho Isaías, ele era um índio largado de uma dessas missões. Era temente ao nosso Deus, e dominava as artes de ver o futuro. JOSÉ - Não faz conversa comprida. Eu só quero o nome. Só preciso do nome. DONA ANJA - O velho Isaías sempre falou, que aqui no Continente de São Pedro, nas “ terras de ninguém” nasceria um Rei Menino, aquele que viria para nos salvar. JOSÉ - E tu achas que um rei pode nascer aqui, entreverado com todo o tipo de gente? Almas que de Deus só ouviram o nome. DONA ANJA - José, escuta com atenção. Ele não virá para salvar os justos, os justos não precisam de salvação. JOSÉ - A senhora pensa que pode andar por aí falando como um enviado de Deus. A senhora não conhece Deus, velha cachimbeira . DONA ANJA - É, eu sou uma benzedeira velha. Uma que não tem serventia nenhuma. Mas sei dar graças e eu não estou cega. Afirmo que Deus gerou essa criança . JOSÉ - Está dizendo que esta criança é o filho de Deus?DONA ANJA - Sim. E Ele vai trazer uma nova lei, uma lei de amor. E nós, os abandonados do Continente, os agregados sem nenhum valor, vamos botar outro sentido na vida. Maria será a mãe do filho iluminado e tu serás o pai.JOSÉ- Não, mulher. Não vês que nada fiz para que isto acontecesse. (com pesar) Desta criança eu não serei nada.DONA ANJA – José, e quem vai ensinar ao pequeno a dar os primeiros passos na grama, a cortar as achas de lenha ? Quem vai dizer-lhe como domar os potrinhos e percorrer com ele as trilhas de gado ? Quem, senão tu, o pai.JOSÉ- Então, eu e Maria somos os escolhidos.DONA ANJA – Sim, José, aceita a oferta do teu Senhor.

(Música. Dona Anja benze José. O Homem respira aliviado tranquilizando-se.)

CENA 5 - O CASAMENTO

(José Parado em cena . Noutro ponto do palco aparece Maria com uma grinalda de flores na cabeça. Está apreensiva. José vai até ela. No centro do palco encontram-se e principiam a valsa do casamento. Mulheres e homens aparecem de todos os lados. Risos, brindes, felicidade. Os noivos dançam e despedem-se felizes.)

6

Page 7: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

Valsa do Casamento-Flores del alma (Açoriano e Vinuta)

de Lito Bayardo

Recuerdos de una noche venturosaque vuelven en mi alma a florecer.Recuerdos que se fueron con el tiempo,presiento que reviven otra vez.

Igual que aquella noche tan lejana,es esta de mi amarga soledad.La luna sobre el cielo azul te alumbra,como otra blanca luna que yo nunca veré más.

Si quieres olvidarme, dejame...Dijiste la mañana que partí.Tú sabes que te quiero y te querréy tuyo es el cariño que te di.

A nadie quise tanto como a tiy amante te ofrecí mi corazón.Yo sé que para siempre te ha perdido, mi alma,ya que todo ha sido sólo una ilusión.

Así me reprochabas, sin saber,que yo compadecía tu dolor,que cuando me ofreciste tu quereryo estaba enamorado de otro amor.

¿Comprendes el porqué de mi partir?¿Comprendes mi amargura en el adiós?Acaso con los años me hayas olvidado,¡pero nunca yo!

7

Page 8: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

CENA 6 - A LICENÇA

(Coronel Herodes, sentado na varanda de sua casa,descasca uma laranja. Maria e José entram.)

JOSÉ - Com permiso, Coronel Herodes.(O Coronel mantém-se em silêncio.)JOSÉ - Maria está quase ganhando. Queria lhe pedir licença para ir até o Rio Pardo.CORONEL HERODES - Por um acaso aqui lhe falta alguma coisa, José?JOSÉ - Não, Coronel. Aqui está tudo tranquilo.MARIA - É que eu gostava de ter minha mãe por perto pra ajudar na hora de nascer a criança.CORONEL HERODES - A velha Anja não tá boa pra ti, Maria? Vais te dar luxos agora?MARIA - Não é luxo, Coronel, é saudades.CORONEL HERODES - Está bem. A besteira já está feita mesmo.JOSÉ - Coronel, eu e Maria nos casamos, o senhor sabe.CORONEL HERODES - Eu sei bem da minha tropa, José. Mas se não me engano, a dívida do teu pai comigo ainda está para ser paga. JOSÉ - Eu não me esqueci, sou homem de palavra, Coronel.CORONEL HERODES - A viagem é demorada? JOSÉ- Não, só o tempo da criança nascer.CORONEL HERODES- Olha lá, tu já me fez bastante estrago por aqui. Não vai me fazer outro agora.JOSÉ- Não se apoquente, Coronel. Sei das minhas obrigações.CORONEL HERODES- Cachorro que come ovelha uma vez, come sempre. Volta logo que deixar Maria por lá. Hay muito trabalho por aqui.JOSÉ - Posso encilhar a mula pra amanhã?CORONEL HERODES - Pode.JOSÉ - Gracias, coronel (vão saindo, Coronel os interrompe)CORONEL HERODES - Pra minha segurança as coisas de vocês ficam na estância. Vocês vão só com a roupa do corpo. Mas quando a mulher e a criança voltarem estarás livre da dívida. MARIA- O senhor vai perdoar José?CORONEL HERODES- Vou. Se esta cria aí for macho, vou aceitar ele como paga da dívida. ( Maria e José estacam. Coronel entra para o interior da casa.)

Canção

8

Page 9: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

Coronel e o Menino (Trio de Cantadores + Coronel e Golondrina)

Letra: Jaqueline PinzonMúsica: Pablo Capalonga

E um estanceiro rico, Nome Herodes, Coronel Machucou com o seu grito Menino Jesus do céu

CENA 7 - GOLONDRINA E O CORONEL NA CASA

(Entra Golondrina. Corre e grita estridentemente pela casa.)

GOLONDRINA - Coroneeeeeeel, Coroneeeeeeeeel, Coronel Herodes. Vem ver. Os forasteiros estão vindo pra cá.CORONEL HERODES - (Entrando.) Aplaina essas beiradas e não me berra dentro de casa. GOLONDRINA - Perdón, Coronel. (Interrompendo-o, grita ansiosa.) É que eu vi lá na porteira. Eles tão chegando.CORONEL HERODES - Posso saber o que se passa na minha estância?GOLONDRINA - (Tentando acalmar-se.) São os três que tocam instrumentos musicales. Os que estão seguindo o Cruzeiro do Sul.CORONEL HERODES - Mas que patacoada é essa, Golondrina?GOLONDRINA - (Sem paciência.) É o que eu tô dizendo. Eles viajam pelo Continente seguindo a estrela. (Num grito.) Virgem Santa, são eles, Coronel.CORONEL HERODES - Vai duma vez receber essa tropilha. (Golondrina sai.)CORONEL HERODES - (Observando pela janela.) Tanto alarido por causa de dois tropeiros e uma mulher.

CENA 8 -

CHEGADA DOS ARTISTAS NA ESTÂNCIA JERUSALÉM

Canção

9

Page 10: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

A Chegada dos Artistas (Trio de Cantadores)Letra: Recolhida do folclore popularMúsica: Pablo Capalonga

Agora mesmo chegamos Na beira do seu terreiro Para tocar e cantar Licença peço primeiro Oh senhor, dono da casa Faz favor de abrir a porta Porta aberta e luz acesa É sinal de alegria.

(Coronel Herodes está à porta. Chegam Açoriano, Vinuta e Castelhano.)

CORONEL HERODES - Buenas, se forem de paz se manifestem.AÇORIANO - (Com sotaque dos Açores.) Como tem passado Vossa Mercê? Açoriano, um seu criado.

(Coronel assente.)

CASTELHANO - Buenas noches, amigo. (O mesmo sinal do Coronel.) VINUTA - Boas noches, Coronel.HERODES - Vão falando logo o que querem, que não vou ficar aqui parado na porta debalde.AÇORIANO - Coronel Herodes, se Vossa Mercê mo permite , estamos a viajar pelo Continente, somos artistas.CORONEL HERODES - Artista. Que artista?CASTELHANO - Nosotros somos músicos. Tocamos instrumentos musicales.CORONEL HERODES - (Com falso interesse.) Ah, sim, E o que fazem por estas bandas?AÇORIANO - (Depois de certa hesitação.) Estamos a levar um pouco de alegria aos senhores das estâncias e seus agregados. VINUTA - Hoje mesmo de noite, podemos cantar pra peonada. Se o patrão permitir, é claro.

(Herodes não responde.)CORONEL HERODES - (Gritando.) Golondrina.( Entra Golondrina entre nervosa e encantada) GOLONDRINA- Licença. (Melosa.) Buenas noches. Os artistas estão seguindo o Cruzeiro do Sul?

10

Page 11: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

CORONEL HERODES - Vosmicês ficam seguindo estrela do céu? (Artistas entreolham-se.) CASTELHANO - Las estrellas son una inspiración. AÇORIANO - (Tentando disfarçar) Ora, não se amofine, Coronel Herodes. Isto é conversa de raparigas, histórias de moçoilas românticas.GOLONDRINA - Os moços vão cantar pra nosotros?CASTELHANO - Com el permiso del patrón y de lãs niñas de acá. (Golondrina ri.)GOLONDRINA - Moço, vocês já acharam o Menino que vai nos salvar?CORONEL HERODES - (Interrompendo.) Que história é essa de salvar, Golondrina?GOLONDRINA - Ué, patrão, é o que o índio Isaías falou . Ele disse que o Rei Menino e poderoso iria ser adorado quando chegassem os artistas cantadores.CORONEL HERODES - Se eu fosse me preocupar com as besteiradas que cada um desses índios falam, eu estava era morto. Ora, Rei Menino poderoso.CASTELHANO - Pero nosotros creemos que hay um niño.CORONEL HERODES - Não te chamei na conversa, Castelhano.AÇORIANO - Nós acreditamos que um dia vamos encontrar um pequeno que nos fará parar para adorá-lo. VINUTA- E esta criança abençoada, vai redimir das faltas todos aqueles que investem contra seus semelhantes, e trará alento aos que nada possuem.CORONEL HERODES - Quem ajuda os precisados por aqui sou eu mesmo. Se não fosse eu, esses pobres bichos iam estar jogados ao relento sem rei, sem fé e sem lei. E quando nascer este bugre que vocês falam, mandem me avisar. Eu vou saber o que fazer com ele.

CORONEL HERODES - Golondrina, manda o Antônio dar água pros cavalos. E olha aqui, guria, (Ela vai saindo e volta.) vai na frente e ajeita o galpão para eles. Mas fica de olho, não quero saber de roubo nas minhas terras!CASTELHANO - Nosotros somos artistas, no ladrones.CORONEL HERODES - Olha aqui, vivente. Castelhano pra mim não é trigo limpo, eu nunca gostei de açoriano e artista pra mim é no laçaço.VINUTA - Coronel, Vossa Mercê pergunte por estes pagos, todos sabem que trazemos a alegria no canto. Nós somos gente buena. CORONEL HERODES - Tá se vendo bem o tipo de gente que são vocês.AÇORIANO- Mas quem sabe uma cantoria para amenizar Coronel, acalmar os corações...CORONEL HERODES - Quem tem calma é açude. Mais essa agora... E a visita de vocês já tá de bom tamanho. Amanhã bem cedo, peguem a montaria e sigam seu rumo. Agora vão.

(Os visitantes se retiram.)

11

Page 12: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

CENA 9 - UM ANJO APARECE AOS ARTISTAS

(Vinuta, Castelhano e Açoriano estão no galpão ajeitando suas coisas.Entra Dona Anja.)

DONA ANJA - (Para Açoriano.) Boa noite. Eu sou de paz, amigo. Preciso um dedo de prosa com o senhor.AÇORIANO - Açoriano, um seu criado.DONA ANJA - Meu nome é Angelina, o povo me chama de Dona Anja.CASTELHANO - Buenas noches, señora.AÇORIANO - Esteja a gosto. Esta é minha esposa, Vinuta.VINUTA - A senhora se abanque.AÇORIANO- Castelhano, ficas vigiando ali fora do Galpão. (Castelhano sai.)DONA ANJA - Amigo, não sou de muito palavreado. AÇORIANO - Deite as falas, por favor.DONA ANJA - Eu sou aquerenciada aqui desde menina. Digo reza pra curar ferida e tirar o sofrimento das almas, e graças a Deus também aparo criança que vem pro mundo.VINUTA - Ocupação das mais preciosas.DONA ANJA - Aqui nesta estância se moureja muito. O gado do Coronel viaja até a Capitania de São Vicente, e de lá vai pras minas. Muito dinheiro vem de volta.VINUTA - Tá se vendo o poderio do Coronel.DONA ANJA - É por isso que ele não quer saber do menino.AÇORIANO - (com certo receio.) Ora, pois, de que miúdo está a senhora a falar?DONA ANJA - Do mesmo que vosmicês estão procurando. Eu sou sabedora dos seus propósitos.VINUTA - E o que mais a senhora sabe?DONA ANJA - Sei que o menino corre perigo. Se o Coronel desconfiar que o Nosso Salvador está para nascer, ele manda matar o menino.AÇORIANO - E miúdo está por cá?DONA ANJA - Está e não está.AÇORIANO - Ora, diga, por compaixão.DONA ANJA - Os pais dele são agregados desta estância. O pai é tropeiro de gado e a mãe lida na casa e na roça. Só que eles já partiram.VINUTA - Pra onde?DONA ANJA - Pros lados do Rio Pardo. Maria, a mãe do menino, gostava de ter o filho perto da mãe dela. Partiram hoje cedo.AÇORIANO - Estão um dia de viagem à nossa frente.DONA ANJA - Nem tanto, eles foram de mula.AÇORIANO - Então o pequeno vai nascer no Rio Pardo. VINUTA - É bem longe do Coronel.DONA ANJA - Aqui na estância hay outras mulheres que estão pra ganhar filho. Enquanto o Coronel Herodes não desconfiar de Maria e José, o nosso Rei menino está a salvo.

12

Page 13: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

VINUTA - Amanhã bem cedo partimos em direção ao Rio Pardo.

CENA 10 - O BOLICHO

(Uma venda. Misto de bolicho e pousada. Mesas, cadeiras.Homens jogam baralho. Um bêbado imóvel. Outro homem, esquecido do tempo, dedilha uma milonga. Dois casais bailam. Mulheres servem às mesas e aos homens.Um menino coxo e sem um olho ajuda a servir às mesas, é Zarolho, motivo de chacota e riso solto. Gritos, fumaça de palheiros. Entram José e Maria, cautelosamente.)

BOLICHEIRO - (Para José e Maria.) Buenas, pra onde se atiram, vivente?JOSÉ - Boa noite. Estamos caminhando desde cedo, viemos da estância Jerusalém. Buscamos um quarto para pouso.MARIA - (Cumprimentando com a cabeça.) Eu gostaria de pôr meus pés numa salmoura.BOLICHEIRO - (Buscando José pelo ombro.) Não seja por isso, esta venda tem de tudo. Tome assento. (Servindo aguardente.) E um gole de canha. O calor deste dezembro está dos piores.JOSÉ - (Sem beber.) Agradecido. Um pouco d’água para minha esposa seria melhor.

(Ao sinal do bolicheiro, uma mulher alcança uma caneca d’água para Maria. Ao vê-la em pé, o menino alcança-lhe uma cadeira.)

BOLICHEIRO - E qual é mesmo seu destino?JOSÉ - Vamos até Rio Pardo. Minha mulher quer ter o filho perto da mãe.BOLICHEIRO - Ah, sim. Vamos povoar o Continente de São Pedro. Às ordens da Coroa portuguesa. Um brinde ao Vice-Rei. (Brindes de todos os tipos, uivos, resmungos, etc.)JOSÉ - Bem, então podemos passar a noite aqui?BOLICHEIRO - Quer dizer que o companheiro está na estrada desde cedo. Não tiveram medo dos bandos de castelhanos?JOSÉ - Amigo, eu conheço estes caminhos. Já tropeei muito gado pela estrada. Experiência não me falta.BOLICHEIRO - Mas mulher na garupa é chamarisco na certa.JOSÉ - Agradeço seu interesse, mas eu e minha esposa precisamos descansar. O senhor tem um quarto?BOLICHEIRO - Um quarto assim, pra noite toda, bem, não sei se tenho. Agora, se o patrão quiser se acostar por um tempo . . . por menos de uma pataca pode se esquentar com esta guria. (Pegando no braço de uma mulher, bate-lhe nas ancas.) Galega das boas.JOSÉ - O amigo me desculpe.BOLICHEIRO - Entonces, se prefere uma mais cheinha , tenho esta daqui, cor de cuia. (Outra mulher sorri maliciosa.)

13

Page 14: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

JOSÉ - ( precipita-se irritado.) O senhor não está entendendo.BOLICHEIRO - (Interrompendo.) Eu estou entendendo, sim. Estou entendendo que sua mulher está de pança cheia e um homem precisa se refestelar de vez em quando. JOSÉ - É preciso ser muito ordinário pra me dizer uma coisa dessas.

(Alvoroço. Principia-se uma briga.)

MARIA - Pelo amor de Deus, José.

(José é dominado, seu punhal é retirado e cravado sobre o balcão do bolicho)

JOSÉ - Me larguem.Bolicheiro- (com desdém) Larguem ele, larguem.JOSÉ- Eu já ouvi coisa demais.( Retira seu punhal e guarda-o na bainha ) Isto aqui tá é cheirando mal.BOLICHEIRO - E de mais a mais, aqui não tem pouso pra bedel da Coroa, nem cueiro pra recém-nascido. (Risos.) Isto aqui é um bolicho, lugar de diversão. Toca essa porcaria dessa gaita, Juvenal.JOSÉ - Vamos embora, Maria. Aqui não fico mais nem um minuto.MARIA - Eu não vou pegar a estrada de novo, José . (Senta, ofegante.)MULHER - (Aproximando-se.) Senhor, eu sei de um lugar onde vocês podem passar a noite.JOSÉ - Agradeço. Das gentes daqui não quero favor.MARIA - Este lugar, é muito longe? MULHER - Não, é aqui perto, eu lhe levo lá.

(Mulher ajuda Maria a deslocar-se.)

JOSÉ - (Interrompendo.) Eu não quero filho meu misturado com china de bolicho.MARIA - José, eu só quero um canto pra ter meu filho em paz. Moça, me mostra o caminho?

( José e a Mulher amparam Maria que caminha com dificuldades .)

CENA 11 - NA COCHEIRA

MULHER - É aqui.JOSÉ - No meio da palha e dos bichos?MARIA - (Já sentindo as dores.) Pelo menos aqui ficamos sossegados. (Para a mulher.) Como é teu nome?MULHER - Ana, minha senhora.MARIA - O mesmo nome da minha mãe. (Com dores.) Ai.MULHER - O senhor puxa uma palha pra ela se encostar.

14

Page 15: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

(Desnorteado, José ajeita uma espécie de cama.)

MARIA - (Pegando a mão da mulher.) Pessoa boa como tu, Deus ama demais. Ai. (Deitando-se.)MULHER - Não se esforça tanto. Eu tô lhe ajudando porque me empatizei com a senhora. E é estranho, mas eu até já peguei amor por este pequeno que a senhora carrega. (Pondo a mão no ventre de Maria,)MARIA - Ai, tá vindo, José, tá vindo a criança. (Com dores.) Ai, eu quero a benzedeira. Traz a mulher, ela sabe tirar a dor e cortar o cordão. Chama Dona Anja, eu quero a Dona Anja.JOSÉ - (Nervoso e atrapalhado.) Maria, Dona Anja tá na estância. É muito longe, não dá tempo.JOSÉ - Moça, faz alguma coisa, tu não disse que queria ajudar? Ou será que vou ter que sair pela noite e pedir auxílio à primeira índia velha que eu encontrar nas moitas da madrugada.MULHER - Não tem precisão. Eu não sou índia, o senhor tá vendo, tampouco sou anjo. Mas eu tenho essas duas mãos e sei muito bem aparar uma criança. O senhor atiça o fogo de chão lá fora, e esquenta água nessa chaleira. (Alcançando-lhe uma chaleira.)

JOSÉ - (Olhando fixamente para a mulher.) Obrigado. (Sai.)(Maria revolve-se de dor. )

MULHER - (Rasgando o próprio avental.) Acho que este pano há de servir.

CENA 12 - A CHEGADA DO REI MENINO

(Música. É o nascimento do Menino Jesus. Aparece a criança envolta em panos, trazida pelas mãos da mulher do bolicho. As gentes do lugar também vem reverenciá-lo. O Terno de Reis achega-se e cantam A Canção do Menino Jesus.)

Canção

15

Page 16: Auto de Natal Todo Menino È Um Rei

Canção do Menino Jesus (Trio de Cantadores ou todo o grupo)

E nós que aqui estamosJunto ao Menino DeusAgora o festejamosPois o Salvador nasceu

Canção da Despedida (Todo elenco canta)

Letra: Jaqueline PinzonMúsica: Pablo Capalonga

Já é hora da jornada avançar E a alma quase quer desistir. Difícil é partir sem chorar Mas somos de longe, e vamos seguir. Nossa vida é essa, já está na hora de partir, E deixamos aqui nosso coração, Assinamos confissão: gostamos daqui. Outras gentes, outras festas vamos visitar Divertir, alegrar, nós vamos seguir Somos de longe, temos de ir Somos artistas, nós temos de ir.

(O grupo se reorganiza e dançam aos pares a canção tocada pelo acordeão- Merceditas, é o agradecimento.)

FIM

16