aula inaugural - marilena chauí
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Aula inaugural – Depto. de Filosofia 01/03/2012
Fazer história da filosofia
Para a filosofia, a existência factual da história da filosofia não é
suficiente para validá-la de direito. É preciso indagar se uma história da filosofia
é possível de direito, isto é, racional ou segundo princípios definidos.
Partindo de determinadas concepções da história, três têm sido as
principais objeções à possibilidade de uma história da filosofia:
1. uma história é um processo linear contínuo e cumulativo – é isso que
nos permite falar numa história das ciências. Ora, no caso da filosofia, cada
nova filosofia se apresenta como um começo radical ou absoluto, como
totalidade autônoma e por isso recusa as anteriores e as contradiz. Falta,
portanto, à filosofia continuidade, acumulação e desenvolvimento que
justificariam de direito uma história.
2. uma história pressupõe que o passado seja um fato identificável,
verificável, capaz de ser provado e objeto de uma única interpretação. Ora, a
história da filosofia é incapaz de oferecer verificação e provas de seu objeto
porque é simplesmente uma interpretação das filosofias passadas; além disso
e sobretudo, cada filosofia suscita uma multiplicidade de interpretações que se
contradizem, sem que se possa decidir por uma delas, de sorte que cada uma
delas é arbitrária e por isso mesmo uma história da filosofia lida com o passado
tornando-o ininteligível.
3. como lembra Aubenque (“L’histoire de la philosophie est0elle ou non
philosophique?”, in Nos grecs et leurs modernes), a história da geometria não é
geométrica, a da medicina não é médica, a da arte não é artística. Sem dúvida,
o historiador da geometria, da medicina e da arte precisa ter algum
conhecimento de seu objeto para avaliar a realidade, importância e sentido de
uma inovação, de um recuo, de uma revolução. Nessas histórias, obedece-se a
regra da ciência histórica, segundo a qual o historiador deve manter um recuo e
uma distância com relação a seu objeto de maneira a garantir a neutralidade
axiológica como critério de suas decisões metodológicas. Ora, isso não se
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aplica à história da filosofia e teremos que admitir que uma história da filosofia
é filosófica mais do que propriamente histórica.
Início radical, totalidade autônoma, ausência de acumulação e
desenvolvimento conceituais, presença da pluralidade de filosofias postas cada
qual como um absoluto que recusa ou contradiz as demais, presença da
pluralidade de interpretações, indecisão quanto ao estatuto filosófico de uma
história da filosofia: eis um conjunto poderoso de objeções que colocam em
perigo a existência de direito da história da filosofia.
O sentido dessas objeções pode ser melhor percebido se nos
lembrarmos da diferença entre Kant e Hegel no tocante à história da filosofia e,
mais precisamente, sobre a natureza dessa história, isto é, se ela própria é ou
não filosófica.
Na CRP, na Arquitetônica da Razão Pura, Kant distingue entre
conhecimento racional ou cognitio ex principiis e conhecimento histórico ou
cognitio ex datis. A peculiaridade da história da filosofia é ser um conhecimento
no qual os data são principia e articulações entre principia que, justamente,
constituem o conhecimento racional. Assim, ter um conhecimento histórico da
filosofia é aprender de cor e repetir a ordem das razões que constituem o
sistema de um filósofo determinado sem que o historiador tire de sua própria
razão os diversos momentos do sistema que expõe. Por meio de uma cognitio
ex datis o historiador restitui uma cognitio ex principiis. Ora, não é assim que
procede o filósofo: com o filósofo, os princípios recebidos como dados são
tratados como princípios e confrontados com outros princípios e, por
conseguinte, não há coincidência entre o conhecimento histórico de um dado
racional e a retomada racional desse dado por um conhecimento filosófico de
princípios (donde a famosa afirmação de Kant de que não se aprende filosofia,
mas somente a filosofar). A história da filosofia é um auxiliar pedagógico menor
e em si mesma contraditória porque: ou o historiador respeita a faticidade das
filosofias que ele estuda, mas reduzidas à condição de dados factuais e,
portanto, como não-filosofia (já que a filosofia é o conhecimento por princípios);
ou o historiador respeita a pretensão filosófica das doutrinas que ele estuda e
neste caso ele examina, avalia, julga, aceita ou rejeita as razões de um filósofo,
mas neste caso não estamos mais diante de dados e sim diante de princípios
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e, portanto, praticando um ato filosófico e não uma atitude histórica. Por isso
não há história do filosofar, mas somente história das filosofias. E visto que
filosofar é conhecer ex principiis, a história da filosofia é uma curiosa
pedagogia, pois não pode ensinar a filosofar.
Ora, essa ambivalência entre um princípio recebido como um dado (ou a
história da filosofia) e um dado reconhecido como princípio (ou o ato de
filosofar) é o que interessa a Hegel, pois nela se efetua a contradição própria
da finitude de cada filosofia em busca de sua negação rumo á infinitude do
espírito. A filosofia é a razão consciente de si na história e o pensamento
produzindo a si mesmo como obra de sua liberdade, o pensamento tomando
posse de si, a auto-produção do pensamento para encontrar-se a si mesmo. As
filosofias são as manifestações determinadas ou finitas desse pensamento
efetuando-se a si mesmo em busca de si mesmo como espírito.
A história da filosofia é a história do universal, do substancial do pensamento.
(...) Em outras ciências, forma e conteúdo são totalmente distintos. Mas na
filosofia, é o próprio pensamento o seu objeto. Ocupa-se consigo mesmo e se
determina a partir de si mesmo. Efetua-se porque se determina por si. Sua
determinação é produzir-se e existir no interior. (Hegel Introdução à história da
Filosofia, Hemus, Rio de Janeiro, 1976, p. 12).
A filosofia é o espírito consciente de si, e essa consciência é a própria
história como movimento do espírito em busca de si mesmo passando por suas
manifestações finitas em cada filosofia recolhendo-as para superá-las numa
totalidade superior infinita. Por isso:
1. a história da filosofia é um progresso necessário, isto é, a supressão
do finito enquanto finito, uma vez que somente o infinito é verdadeiro;
2. cada filosofia é necessária no momento em que existiu; nenhuma
deixa de existir depois de seu tempo, mas passa a existir como momento ou
parte da filosofia universal. Portanto, nenhuma filosofia é refutada, mas o que é
refutado é seu princípio enquanto este pretendia ser a determinação última do
absoluto;
3. cada princípio goza de predomínio em seu tempo e nele aparece
como capaz de conhecer e explicar tudo, porém, somente a época seguinte é
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capaz de determinar em que esse princípio é verdadeiro e em que ponto não o
é;
4. no tratamento das filosofias anteriores não se pode buscar o que não
poderiam ter nem censurá-las por não terem determinações que só poderiam
vir depois. Não se pode por nelas mais do que elas têm; e não se pode tirar
delas o que efetivamente têm. Cada filosofia ocupa um lugar definido e esse
lugar é seu valor e seu significado; cada filosofia pertence ao seu tempo e está
circunscrita aos limites de seu tempo. É isto dizer que cada filosofia tem um
conteúdo determinado e é particular;
5. na história da filosofia não há passado: cada filosofia, naquilo em que
seu princípio é verdadeiro é eterna ou para sempre presente; somente a não-
verdade tem passado, pois a verdade é eterna. As filosofias passam naquilo
que não possuem de verdadeiro e permanecem no interior de uma filosofia
universal naquilo que possuem de verdadeiro. Como momentos ou
determinações da verdade, as filosofias são eternas, ou seja, as obras ficam
para sempre. Cada filosofia arranca da treva uma parte da verdade, arranca o
que estava em si no Espírito para torná-lo para si, consciente de si. Cada
filosofia é uma reflexão do Espírito.
Em suma, não se pode separar filosofia e história da filosofia, pois a
filosofia é a totalidade de sua história, isto é, cada momento da filosofia é
constituído por um conjunto de idéias similares em todos os filósofos que se
diferenciam apenas pela maneira como as tratam, pois suas filosofias estão
condicionadas pelo ideário comum de sua época e cada momento filosófico é
uma etapa de um processo único, de sorte que a verdade não se encontra em
cada filosofia nem fora de cada uma delas e sim na totalidade de seu processo.
Numa palavra, a história da filosofia é filosófica porque inseparável de uma
filosofia da história.
Conhecemos, no entanto, a crítica de Merleau-Ponty a Hegel.
Incorporando as filosofias como momentos de um único processo contínuo,
escreve Merleau-Ponty, a história da filosofia hegeliana quer “incorporá-las
numa filosofia integral, como se pudesse conduzir o empreendimento filosófico
melhor e mais longe do que elas o fizeram”.31 Essa tentativa, pretendendo
ultrapassar uma filosofia de seu próprio interior, não só lhe rouba a alma, mas
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ainda lhe faz a afronta de guardá-la despojada de “limitações” cujo critério
depende apenas de Hegel como juiz. Os filósofos do passado não
permanecem como momentos de um sistema final, que recolhe apenas suas
verdades, mas “duram com suas verdades e com suas loucuras, como
tentativas totais, ou não duram de jeito nenhum.”32
O combate a perspectiva hegeliana se dá também no combate ao
hegelianismo pelos historiadores da filosofia franceses, que, desde o iníco do
século XX, começam afirmando que cada filosofia se apresenta como um
começo absoluto, como uma iniciativa absoluta e aspira a estabelecer uma
verdade definitiva, universal e eterna, e a história da filosofia é o relato dessa
aspiração fundamental de cada filosofia sem que se deva ou se possa dizer
que uma seja mais verdadeira do que outra nem que, juntas, formem uma
sequência de verdades parciais a serem reunidas numa totalidade final
plenamente verdadeira. Na Introdução à sua História da Filosofia, Bréhier
recusa, além de Hegel, a posição de Comte: este como aquele absorvem a
história da filosofia no interior de um sistema geral da evolução ou progresso
do pensamento e por isso selecionam em cada época e em cada filosofia os
aspectos que confirmam o sistema geral proposto e abandonam a verdadeira
singularidade de cada uma delas. A crítica de Bréhier ao hegelianismo e ao
positivismo é acompanhada de uma outra dirigida ao que podemos denominar
reducionismo historicista, isto é, a explicação de uma filosofia por condições
históricas exteriores a ela: biografia e psicologia – psicologismo – condições
econômicas – economicismo – ou condições sociais -- sociologismo. O remédio
contra o hegelianismo ou a filosofia da história subjacente à história da filosofia
e contra o reducionismo historicista será a afirmação de que uma filosofia é
uma estrutura singular, isto é, um todo dotado de forma, conteúdo, organização
argumentativa e sentido próprios.
Recusando-se a considerar uma doutrina como verdadeira ou falsa, [ a
história da filosofia] consiste em estudá-la nela mesma como fenômeno
do passado, com todos os detalhes de linguagem, de pensamento, de
sentimentos, de hábitos mentais que a tornam inseparável do tempo em
que se produziu, do indivíduo que a pensou e que fazem com que só
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possa ser arrancada de sua época pela violência. (Bréhier La
philosophie et son passé, p. 27)
Contudo, aceitar que uma filosofia é inseparável o tempo em que
se produziu não significa que possa ser explicada por meio do recurso à
história de seu tempo. Pelo contrário.
(...) o que é essencial em um pensamento filosófico é uma certa
estrutura, ou se se quiser, o modo de digestão espiritual independente dos
alimentos que seu tempo lhe propõe. Essa estrutura mental, que pertence
por acidente ao passado, é, pois, no fundo, intemporal e por isso tem um
futuro e por isso vemos sua influência repercutir sem um fim demarcável.
(Bréhier La philosophie et son passé, p. 39, 40, 41).
A história da filosofia como estudo crítico de textos, segundo Guéroult
(“La legitimité de l’histoire de la philosphie”, Histoire de l’histoire de la
philosophie):
1. protege as doutrinas contra os compromissos e preconceitos de
nosso próprio presente, permitindo que sejam conhecidas com isenção e
neutralidade;
2. impede tratar as doutrinas na perspectiva de uma filosofia da história.
O historiador da filosofia deve tomar uma doutrina como o etnólogo toma uma
tribo, isto é, na sua estrutura singular;
3. impede reduzir a interpretação de uma filosofia às condições
históricas que são exteriores a ela (condições econômicas, sociais, políticas,
psicológicas, religiosas, culturais), isto é, impede que uma filosofia seja
geneticamente explicada pelo seu “fora”;
4. propõe um critério de validade para a interpretação, a fim de
assegurar que não é arbitrária; esse critério, explicam Guéroult e Gosdschmidt,
é a conformidade à organização demonstrativa do discurso filosófico tal como
foi pretendida por seu autor e, para tanto, seguindo-o segundo o próprio
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método oferecido por ele. Ou como explica Osvaldo Porchat: o historiador da
filosofia refaz os mesmos caminhos de argumentação e descoberta do próprio
filósofo, segundo seus diversos níveis, “respeitando todas as suas articulações
estruturais, reescrevendo, por assim dizer, segundo a ordem das razões, a sua
obra, sem nada ajuntar, entretanto, que o filósofo não pudesse e devesse
assumir explicitamente como seu.”
Na mesma direção caminha Golsdchmidt, que escreve em “Tempo
histórico e tempo lógico” (in A religião de Platão):
Parece que haveria duas maneiras distintas de interpretar um sistema;
ele pode ser interrogado, seja sobre sua verdade, seja sobre sua
origem; pode-se pedir-lhe que dê razões, ou buscar suas causas. Mas,
nos dois casos, considera-se ele, sobretudo, como um conjunto de
teses, de dogmata. O primeiro método, que se pode chamar dogmático,
aceita, sob ressalva, a pretensão dos dogmas a serem verdadeiros, e
não separa a léxis da crença; o segundo, que se pode chamar genético,
considera os dogmas como efeitos, sintomas, de que o historiador
deverá escrever a etiologia (fatos econômicos e políticos, constituição
fisiológica do autor, suas leituras, sua biografia, sua biografia intelectual
ou espiritual etc.). O primeiro método é eminentemente filosófico: êle
aborda uma doutrina conforme à intenção de seu autor e, até o fim,
conserva, no primeiro plano, o problema da verdade; em compensação,
quando ele termina em crítica e em refutação, pode-se perguntar se
mantém, até o fim, a exigência da compreensão. A interpretação
genética, sob todas as suas formas, é ou pode ser um método científico
e, por isso, sempre instrutivo; em compensação, buscando as causas,
ela se arrisca a explicar o sistema além ou por cima da intenção de seu
autor; ela repousa freqüentemente sobre pressupostos que,
diferentemente do que acontece na interpretação dogmática, não
enfrentam a doutrina estudada para medir-se com ela, mas se
estabelecem, de certo modo, por sobre ela e servem, ao contrário, para
medi-Ia. Enfim, o método dogmático, examinando um sistema sobre
sua verdade, subtrai-o ao tempo; as contradições que é levado a
constatar no interior de um sistema ou na anarquia dos sistemas
sucessivos, provêm, precisamente, de que todas as teses de uma
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doutrina e de todas as doutrinas pretendem ser conjuntamente
verdadeiras, "ao mesmo tempo". O método genético, pelo contrário,
põe, com a causalidade, o tempo; além disso, o recurso ao tempo e a
uma "evolução" permite-lhe, precisamente, explicar e dissolver essas
contradições. (p.139-140)
Os movimentos do pensamento filosófico estão inscritos na estrutura da
obra, nada mais sendo esta estrutura, inversamente, que as
articulações do método em ato; mais exatamente: é uma mesma
estrutura, que se constrói ao longo da progressão metódica e que, uma
vez terminada, define a arquitetura da obra. Ora, falar de movimentos e
de progressão é, a não ser que fique em metáforas, supor um tempo, e
um tempo estritamente metodológico ou, guardando para o têrmo sua
etimologia, um tempo lógico. Em nada se cede, com isso, a um
"psicologismo" qualquer. O tempo necessário para escrever um livro e
para Ie-lo é medido, sem dúvida, pelos relógios, ritmado por eventos de
todos os tipos, encurtado ou alongado por toda espécie de causas; a
esse tempo, nem o autor nem o leitor escapam inteiramente, assim
como aos outros dados (estudados pelos métodos genéticos) que
condicionam a filosofia, mas não a constituem. (...) Esta
"temporalidade" está contida, como cristalizada, na estrutura da obra,
como o tempo musical na partitura. (p. 143)
De um modo mais geral, repor os sistemas num tempo lógico é
compreender sua independência, relativa talvez, mas essencial, em
relação aos outros tempos em que as pesquisas genéticas os
encadeiam. A história dos fatos econômicos e políticos, a história das
ciências, a história das idéias gerais (que são as de ninguém) fornecem
um quadro cômodo, talvez indispensável, em todo o caso, não-
filosófico, para a exposição das filosofias; eis aí, escreve E. Bréhier, "o
tempo exterior ao sistema". A biografia, sob todas as suas formas,
supõe um tempo vivido e, em última instância, não-filosófico, porque é o
autor da biografia, não o autor do sistema, que comanda seu
desenrolar-se; mas o sistema, qualquer que seja seu condicionamento,
é uma promoção; como diz M. Guéroult, a propósito de Fichte: "Bem se
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pode (pois) transpor na ordem do especulativo o que se passou na
alma do filósofo"; seguindo-se o caminho inverso, impõe-se ao sistema
uma desqualificação. (...) Pondo em primeiro plano "a preocupação pela
estrutura" que, para citar ainda E. Bréhier, "domina decididamente a da
gênese, cuja pesquisa tantas decepções causou", a interpretação
metodológica pode, pelo menos, quanto a seu princípio, pretender-se
científica; além disso, do mesmo modo que as outras exegeses
científicas, às quais ela não visa substituir-se, ela supõe um devir, mas
que seja interior ao sistema, e busca as causas de uma doutrina,
aquelas pelas quais o próprio autor a engendra, diante de nós. (p. 144-
145)
Objetividade, neutralidade axiológica, reescrita das articulações
estruturais da obra segundo o método proposto explicitamente pelo próprio
filósofo, acompanhamento do tempo lógico interno à doutrina (isto é, o
movimento interno de sua argumentação) e não de seu tempo genético
externo, a história da filosofia estrutural não pretende ser apenas filosófica,
mas científica.
Ora, é possível opor-se ao hegelianismo de uma outra maneira, isto é, à
à subordinação da história da filosofia a uma filosofia da história. No ensaio “O
devir da filosofia” (Notions de philosophie III), Gérard Lebrun distingue entre
uma história da filosofia filosofante - Kant, Hegel, Husserl, Heidegger – que
pensa a história da filosofia como sucessão, e uma história da filosofia
filosófica, à maneira de Deleuze, isto é, como geologia, isto é, as filosofias
como estratificações e superposições cujo tempo não é o da sucessão e sim
“de uma ordem grandiosa de coexistência”, de sorte que o devir se suprime
como “passagem” para ser interrogado como atualidade ou como o que está
sempre em ato. Em outras palavras, o devir da filosofia não se confunde com
uma história da filosofia como périplo temporal da filosofia. O passado da
filosofia não está atrás de nós e sim embaixo de nós, de maneira que uma
história geológica da filosofia é uma arqueologia. Diante da pluralidade de
interpretações, essa história geológica da filosofia é capaz de recusar o
arbitrário, isto é, de definir como falaciosa a interpretação que dá crédito a um
conceito estranho ao objeto da análise, pois o pertencimento do conceito ao
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filósofo é o critério para estabelecer a pertinência de uma interpretação. Mas,
esse critério, que um historiador da filosofia estruturalista aceitaria como
necessário e suficiente, é necessário mas não é suficiente para Lebrun, que
exige ainda do historiador da filosofia que encontre a fecundidade de uma idéia
diretriz que oriente a leitura e que se mostra fecunda porque traz informações
novas sobre a organização do campo conceitual que examina. Como a história
da arte e a história literária, a história da filosofia não oferece provas e sim abre
discussões e compreende que o devir da filosofia está inscrito nos conceitos
filosóficos enquanto materiais de trabalho e que cada filosofia filtra, recorta,
retorna e reconfigura os conceitos que ela toma da tradição e exige que a
história da filosofia jamais se ponha em repouso, mas ao contrário deve ser
incessantemente “metodologicamente inventiva”. A conseqüência dessa
concepção da história da filosofia é considerá-la filosófica e não um auxiliar
pedagógico menor:
ela é integralmente um exercício do filosofar. Sob a condição de entender sob
esta palavra a atividade reflexionante (em sentido kantiano), a saber uma
atividade de pensamento que, não podendo regular-se por conceito normativos
já disponíveis, deve criar, passo a passo, os conceitos de que precisa. Donde
a importância da tópica indefinida. Se se admite que o próprio de uma
exposição filosófica é de ser, a qualquer momento, carregada por essa
atividade reflexionante, por que fechar a lista das questões pertinentes que
podem ser dirigidas a um texto? Por que se deveria permanecer na surda
convicção de que já não há surpresas a esperar da frequentação dos “grandes
textos” e que só resta arrumar seus autores, uma vez mais, entre as “grandes
doutrinas” das quais eles proviriam, ou ainda a penetrar neles como na palavra
de um oráculo?” (Lebrun “Le devenir de la philosophie”, p. 652)
Ora, num percurso bastante diverso do de Lebrun, encontramos em
Claude Lefort, com o nome de indeterminação exatamente o que Lebrun
designa como tópica indefinida. Recusando, como Lebrun, que uma filosofia
deva ser lida sob a imagem do devir como sucessão e passagem, ou que
possa ser encerrada numa galeria prévia de grandes doutrinas ou que deva ser
lida de maneira religiosa, isto é, como Palavra Originária cujo sentido perdido o
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historiador não cessaria de procurar, Lefort introduz o conceito de obra de
pensamento (Le travail de l’oeuvre. Machiavel).
Nascida do desamparo da experiência imediata, suscitada pelo não-
saber e pelo não-agir do presente, a obra de pensamento renuncia ao imediato,
precisa renunciar a aquilo que a faz nascer [a experiência imediata, o presente
como não-saber e não-agir] para dar um sentido de seu próprio nascimento.Ou
seja, a obra nasce pondo a diferença entre experiência e reflexão, diferença
que faz com que a obra se apresente ocultando sua própria origem. A esse
paradoxo – a obra como ocultamento de sua origem -- vem acrescentar-se um
outro: a reflexão inaugurada pela obra é abertura de um campo de
racionalidade novo que, no entanto, logo submerge sob os discursos que ela
própria passa a suscitar. Ao nascer, a obra institui a diferença originária entre
experiência e reflexão, e, ao falar, a obra institui o espaço simbólico da palavra
como diferença originária entre escrita e leitura ou como divisão originária entre
escritor e leitor. Contudo, assim como a reflexão visa conjurar a indeterminação
da experiência, criando um saber, assim também a leitura visa conjurar a
separação entre o escritor e o leitor, separação sem a qual não há discurso.
Dessa maneira, a obra de pensamento tende a promover discursos que,
ignorantes de sua própria origem no interior da divisão da palavra, buscam
instalar-se fora desse campo que os torna possíveis, de tal maneira que a obra
engendra a figura imaginária da exterioridade do leitor diante do texto que ele
lê. Ou seja, quando o leitor ignora a origem de seu próprio discurso no campo
discursivo aberto pelo discurso do escritor, essa ignorância é a certidão de
nascimento de uma história da filosofia em que o historiador imagina situar-se
fora desse campo discursivo e imagina falar de um lugar exterior à própria
obra. Nem por isso, entretanto, Lefort apresenta como corretivo do desejo de
exterioridade a ilusão da coincidência entre leitor e escritor, pois, novamente, o
discurso se perderia como discurso, visto que nele a diferença entre escrita e
leitura é o que o constitui como discurso. O desejo de coincidência ou de
perfeita interioridade significa que o leitor se converte em mediador de uma
mensagem, encarregando-se de transmitir ao presente uma verdade que
acenava do fundo do passado, à espera do momento oportuno para sua
deflagração. Nesse desejo de interioridade apaga-se uma outra diferença
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fundamental, qual seja, a diferença temporal. Esta não é a diferença empírica
dos tempos (presente, passado, futuro) e sim a diferença entre a experiência
que suscita a escrita e a experiência que suscita a leitura.
Escondida a divisão originária do discurso em escrita e leitura e
escondida a diferença temporal entre a escrita e a leitura, a obra tende a
ocultar-se num campo empírico imaginário em que se vê convertida ou em
“coisa” ou em “idéia” e, com isso, é ela que, agora, passa a ocupar o pólo da
exterioridade, que é cultivada pelo leitor “objetivo” e exorcizada pelo leitor
“concernido”. Do campo simbólico da diferença, a obra desliza para o campo
empírico/imaginário da dualidade (dos tempos; da escrita e da leitura).
Vimos, ao iniciar, que uma das supostas aporias que inviabilizaria uma
história da filosofia é a pluralidade de interpretações suscitada por uma mesma
obra. Pergunta-se como uma história da filosofia seria possível se uma mesma
obra suscita discursos múltiplos, díspares e mesmo contraditórios. Essa
questão, diz Lefort, costuma encontrar três tipos de resposta:
1) a multiplicidade e divergência das interpretações decorre das
condições históricas, sociais e políticas dos diferentes leitores; a figura
“histórica” do leitor seria, assim, a chave explicativa;
2) é preciso distinguir dois tipos possíveis de leitura, um dos quais, se
aceito, afasta necessariamente o outro. Haveria uma leitura na qual o leitor,
partindo de suas próprias condições históricas e posições teóricas, procuraria
em um certo autor a confirmação ou a recusa das teses do próprio leitor. Esse
subjetivismo seria a causa da multiplicidade e das divergências das
interpretações. Haveria, porém, um outro tipo de leitura, a leitura objetiva, que
pode dar um fim na multiplicidade e nas divergências: abandonando as
condições históricas em que a obra foi produzida e aquelas nas quais a
interpretação está sendo produzida, pois tanto as primeiras como as segundas
são irrelevantes para a obra, o leitor se erige como observador neutro de um
discurso acabado cuja coerência formal é a chave para sua compreensão;
cabe ao leitor deter-se exclusivamente no que foi explicitamente escrito pelo
autor e recusar o que foi apenas “sugerido” por ele. Esse segundo tipo de
leitura tem a peculiaridade de poder afirmar que a multiplicidade das
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interpretações é eliminável de direito, desde que seja eliminada sua causa,
qual seja, a interpretação.
3. o terceiro tipo de resposta à questão tradicional é aquela que Lefort
denomina “leitura ficcionista”, para opô-la às duas primeiras, que se julgam
realistas e objetivas. Agora, a multiplicidade, os antagonismos e as
contradições das leituras se converte em signo indicativo da natureza da obra
de pensamento como idêntica à natureza da obra de arte entendida como mera
ficção: ambas são obras fictícias. Se assim não fosse, uma obra de
pensamento deveria admitir uma única leitura, como convém a um objeto do
conhecimento.
No entanto, podemos observar que não só a questão de Lefort não é a
questão tradicional sobre a multiplicidade e as divergências das interpretações
como também que ele questiona essa questão, expondo seus pressupostos. A
questão não é: por que uma mesma obra de pensamento suscita discursos
múltiplos, antagônicos e contraditórios? Ou seja, a questão não é o problema
do um e do múltiplo. A questão é: por que uma obra de pensamento suscita
discursos? Assim, antes de interrogar o significado da multiplicidade, dos
antagonismos e das contradições das leituras, é preciso interrogar a própria
emergência da leitura e de um novo discurso nascido do ato de ler.
A questão tradicional está polarizada entre dois termos: a “mesma obra”
e as “muitas leituras”. A questão de Lefort se debruça sobre o “mesma”. Entre o
“mesma” e o “muitas”, postos tradicionalmente como exteriores um ao outro,
vem intercalar-se algo que esclarece a anula essa oposição: a noção de
trabalho da obra como constituinte de seu ser como discurso, isto é, como
escrita e leitura. O enigma da obra de pensamento não está em suscitar
múltiplos discursos díspares e sim no simples fato de suscitar discursos, de
possuir uma posteridade, de ter uma data e transcendê-la. É esse enigma que
a questão tradicional escamoteia ao propor seja a aporia de uma história da
filosofia, seja o exorcismo do múltiplo pela suposta objetividade do uno.
Qual o pressuposto da questão tradicional? Que deve haver uma única
leitura verdadeira de uma obra, pois a verdade exige a univocidade e esta só é
possível se a leitura estiver debruçada sobre um objeto, isto é, algo que é em si
unívoco e idêntico. A pretensão de realizar uma leitura objetiva que ofereça de
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uma vez por todas a identidade da obra pressupõe que esta seja uma realidade
completamente determinada, quer seja tomada como um “fato discursivo” (à
maneira de Foucault) quer como uma “estrutura” (à maneira de Guéroult e
Goldschmidt). Subjaz, portanto, a esse tipo de leitura a apreensão da obra de
pensamento como uma representação, isto é, como objeto de conhecimento,
portanto, dotada de determinação completa. Dessa maneira, o discurso da obra
aparece, de fato, como auto-suficiente, completo, acabado e, de direito, como
dominável, primeiro, pelo entendimento do escritor e, a seguir, pelo do leitor.
Supor que ambos não a dominam, que a obra é essencialmente indeterminada
e aberta para ambos é o que esse tipo de interpretação recusa explicitamente e
se esforça para desfazer definitivamente aquilo que há de perturbador na obra:
a abertura de perspectivas intermináveis.
Enquanto fundadora de um saber despojado de garantias
transcendentes, a obra de pensamento é um fazer-se discurso, habita em suas
palavras e é habitada por elas, e estas são sempre essencialmente dirigidas a
um outro, o destinatário desconhecido ao qual o autor se dirige. Porque a obra
é um fazer-se, a indeterminação mora em seu coração e essa indeterminação,
essa abertura a destina a ter uma posteridade. Abrindo um campo de
pensamento que o escritor desejaria fechar e não pode fechar, a obra de
pensamento suscita de seu próprio interior o discurso de um outro, que a faz
falar novamente: a obra de pensamento é aquela que, ao pensar, dá a pensar.
A obra institui uma posteridade porque há um excesso do pensamento frente
ao que está explicitamente pensado, excesso que suscita novos pensamentos,
novos discursos, nova expressão. Isso não significa, porém, introduzir a
distinção entre o espírito e a letra, pois, neste caso, o excesso do pensamento
do escritor tornar-se-ia de direito dominável pelo leitor, quando, efetivamente,
aquilo que, uma vez posto pelo discurso do escritor, não pode mais deixar de
ser retomado pelos discursos subsequentes dos leitores.
Essa indeterminação constitutiva da obra de pensamento, que a faz
existir no texto de seu autor e nos textos de seus leitores, é o que a leitura
objetivista e a ficcionista pretendem evitar. A exigência de um racional positivo
completamente determinado, por parte da primeira (a obra como representação
ou como objeto), ou a exigência de um irracional positivo, pela segunda (a obra
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como ficção) são armaduras vestidas pelo sujeito para assegurar sua própria
identidade e não se deixar arrastar pela historicidade do pensamento,
historicidade que ele encara como dispersão e dissolução de si próprio.
Escreve Lefort:
O enigma é que a obra está inteira em seu texto e, ao mesmo tempo, fora de
seu texto, no contexto crítico, que não pode ser ignorado por aquele que quer
conhecê-la. Mas dizer “ao mesmo tempo” já se presta ao equívoco. O enigma
está em que a obra se ofereça inteira em seu texto e que, no entanto, ela seja
o que ela é apenas pela relação que se estabelece entre esse texto e seus
leitores. (Lefort Le travail... p. 44)
A conseqüência é clara: conhecer uma obra de pensamento exige não a
eliminação e sim a passagem pelas leituras que suscitou porque são
constitutivas dela. Isto só é possível se deixarmos de tomá-la como objeto para
vê-la como trabalho e, portanto, indissociável da experiência histórica que a
suscitou ou de seu presente histórico e das leituras que ela suscitou e suscita.
Isto9 não significa que todas as leituras são igualmente válidas, pois é preciso
distinguir entre aquelas que produzem uma imagem da obra e aquelas que se
debruçam sobre seu sentido. Sem a indeterminação, sem o excesso do
pensamento sobre o pensado, a obra poderia ser reduzida a uma
representação completamente determinada que liberaria o intérprete da árdua
tarefa de articulá-la à história que a viu nascer e à história de suas leituras.
É preciso ver o pensamento carregando seu presente, transfigurando-o
pela reflexão e transcendendo-o num espaço de racionalidade que permite, daí
por diante, pensar uma certa dimensão do ser. A indeterminação essencial da
obra, a imanência dos novos discursos a ela, a transcendência respectiva dela
e deles frente aos seus presentes, revelam que escrever e interpretar são o
mesmo – o escritor interpreta seu presente –, assim como ler e interpretar são
o mesmo – o leitor interpreta a obra e, por meio dela, seu próprio presente, pois
escrever, ler e interpretar são dimensões do pensamento como interrogação. A
obra interroga seu presente, seus leitores a interrogam e interrogam seus
próprios presentes. O que é interrogar? É descobrir que “a obra conserva a
virtude de fazer falar”. Não é extrair da obra uma resposta para submetê-la ao
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nosso julgamento. É perceber o pensador como aquele que, de seu lugar
próprio, interrogava a experiência para abalar os fundamentos do saber
estabelecido, indo mais longe do que ele próprio e seus leitores seriam
capazes de conceber.
Lefort fala em trabalho da obra. Em primeiro lugar, porque a obra é uma
ação, um fazer-se, um acontecer. Em segundo, porque o trabalho (como a
linguagem e a história) é relação com o ausente, um fazer vir ao mundo o que
não existia, um possível instituído pela própria ação e não aquilo que a
condicionaria (ela não atualiza um possível latente e sim torna possível algo
que é posto por ela mesma). Em terceiro lugar, porque (nós o sabemos desde
Hegel e Marx) o trabalho é negação da negação: a reflexão do escritor é
negação do não-saber e do não-agir que constituem a experiência imediata de
seu presente. A noção de trabalho da obra é a interrogação sobre a perigosa
articulação entre saber e não-saber, que impossibilita reduzir a obra de
pensamento à positividade do fato ou da idéia (a racionalidade abstrata do
saber objetivo) assim como à negatividade vazia de um irracional também
positivo (a irracionalidade abstrata da falta de saber), pois tanto uma como
outra fazem a obra pairar fora e acima da história: não tem história, não vive na
história e não abre uma história, não se articula com a temporalidade.
Pelo contrário, entendida como trabalho da reflexão sobre a experiência
imediata ou sobre o presente, a obra de pensamento está imersa numa história
e inaugura uma nova história porque abre um campo de pensamento inédito
graças às criticas das representações instituídas, que obscurecem o presente e
o porvir. Mas esse ato inaugural tem como solo um estado radical de não-
saber. É como ausência de saber e de ação que o presente suscita a obra, cujo
trabalho institui saber e ação. O não-saber não é ignorância, entendida como
privação da verdade, mas é uma forma de “saber” cuja eficácia está justamente
em ocultar o sentido do presente, chama-se ideologia. A articulação entre
saber e não-saber permite entrever a diferença entre o discurso crítico e o
ideológico ao mesmo tempo em que anuncia o vínculo indissolúvel entre o
escritor e o intérprete, pois o escritor também é um intérprete cujo trabalho
consiste em desfazer a suposta positividade da matéria bruta da experiência,
descortinando as questões que ela suscita e é incapaz de responder. A
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articulação entre saber e não-saber, que inaugura a obra como trabalho da
reflexão, inaugura também a possibilidade de interrogar um outro trabalho,
nascido do primeiro, qual seja, o da transformação do presente e, portanto, as
articulações entre teoria e prática nas dobras da historicidade.
Para nós, filósofos porque (e não apesar de) historiadores da filosofia, a
conseqüencia é clara: conhecer uma obra de pensamento exige não a
eliminação e sim a passagem pelas leituras que suscitou porque são
constitutivas dela. Isto só é possível se deixarmos de tomá-la como objeto PI
como idéia, isto é, como representação completamente determinada, para vê-la
como trabalho e, portanto, indissociável da experiência histórica que a suscitou
e das leituras que ela suscitou e suscita. Isto não significa que todas as leituras
sejam igualmente válidas, pois, como diz Lebrun, é preciso que a interpretação
não seja arbitrária e sim fecunda. Considero que a distinção entre
interpretações válidas e arbitrárias pode ser alcançada quando distinguimos
entre aquelas que produzem uma imagem da obra e aquelas que se debruçam
sobre seu sentido ou sobre a trama que engendra seus conceitos.
Por exemplo: é a própria obra de Espinosa, aquilo que ele efetivamente
escreve, que leva a interpretá-la como atéia e, ao contrário, como mística;
como panteísta e, ao contrário, como acosmista; como renascentista e, ao
contrário, como cartesiana; como liberal e, ao contrário, como totalitária ou
como revolucionária. Todavia, é preciso, ao fazer a passagem por todas essas
leituras, indagar quais são imagens da obra e quais alcançam seu sentido.
Todas elas constituem a obra de Espinosa, mas algumas são apenas suas
imagens e outras são aprofundamento de seu sentido. Cabe, assim, aceitar o
peso da estranheza do pensamento espinosano. Não porque a obra seja um
hieróglifo à espera do deciframento que a salvará de incoerências,
inconsistências, segredos e mistérios, e sim porque, avessa ao que supomos já
saber, fracassaremos se quisermos lê-la segundo o que nos é familiar, pois é
então que ela se transforma em texto hieroglífico. Espinosa inova porque
subverte, expondo suas idéias num duplo registro simultâneo: no do discurso
que diz o novo, ao mesmo tempo que se realiza como contradiscurso que vai
demolindo o herdado. A poderosa rede demonstrativa dos textos espinosanos
é também um tecido argumentativo e por isso a obra se efetua como exposição
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especulativa do novo e desmantelamento dos preconceitos antigos que
referenciam o presente, subvertendo, nos dois registros, o instituído. Com
efeito, Espinosa interroga a experiência bruta e nua de seu tempo. É
exatamente nesse trabalho que a subversão espinosana se põe a caminho,
inquietando seus contemporâneos e atordoando seus futuros leitores. Se a uns
a obra parece confusa e obscura, se a outros aparece como radicalização do já
pensado e já dito, se para muitos não há parâmetros para situá-la senão com
os referenciais do futuro, é porque a experiência de pensamento que nela se
realiza vai às raízes dessa experiência para conferir-lhe, em seu próprio
presente, o sentido que ela possui e que nela se oculta. As questões e
respostas espinosanas não podem ser lidas como se fossem promessas de
porvir e, portanto, atuais, porque ultrapassariam as barreiras de seu tempo,
chegando até nós como mensagens que somente nosso presente saberia
decifrar. Pelo contrário, a obra espinosana nos alcança exatamente quando a
vemos enraizada em seu tempo, de sorte que nos atinge e nos ensina alguma
coisa não por trazer respostas a questões intemporais ou às que enfrentamos
em nosso tempo, mas porque se oferece como pensamento, isto é, como
maneira de enfrentar experiências opacas que pedem para ser compreendidas
e decifradas, exigindo a elaboração de um pensar novo e de um dizer inédito,
pois precisam compreender e enunciar o que ainda não foi pensado nem dito.
É a dimensão instituinte da obra que nos alcança quando somos sensíveis à
diferença temporal que lhe dá identidade e posteridade.
Para apanhar esse aprofundamento do sentido e a imanência da história
ao discurso do filósofo, de tal maneira que, graças a ele, podemos ter acesso à
história que o suscitou, é necessário ao historiador da filosofia compreender de
onde o filósofo fala (qual a experiência que suscita sua reflexão e se torna o
tema de sua reflexão), a quem ele se dirige, o que pretende dizer, contra quem
ou contra o que escreve, por que decidiu escrever e os efeitos intermináveis de
sua escrita.
Receber de um filósofo um campo de pensamento é afirmar, como o fez
certa vez Merleau-Ponty, que uma obra de pensamento é aquela que, de
dentro de si mesma, suscita uma posteridade porque o que a caracteriza
essencialmente é o excesso de suas significações sobre os significantes
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disponíveis. É com esse excesso que lida o historiador da filosofia que por isso
mesmo é um filósofo também.