aula 14 - machado, arlindo. a fotografia sob o impacto da eletrônica

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 © Direitos autorais, 1998, da Apresentação e da Organização, de Etienne Sama in. Direitos de publicação reservados pela Editora Hucitec Ltda., Rua Gil Eanes, 713 - 04601-042 São Paulo, Brasil. Telefones: (011)240-9318 e 543-0653. Vendas: (011)530-4532. Fac-símile: (011)530- 5938. E-mail:  [email protected] ISBN 85.271.0433-4 Foi feito o Depósito Legal. Projeto gráfico:  Ronaldo Entler Produção: Ourípedes Gallene e Tera Dorea S 139 Samain, Etienne O f otográfico / Etienn e Sama in. - São Paul o: Hucitec, 1998. 1. Fotografi a 2. Fot ogr afi a— Interpr etaçã o I. Título. CDD-770 CDU-77.03 índice para catálogo sistemático: 1. Fotografia 770 2. Fotografia e sua interpretação 77.03

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A fotografia sob o impacto da eletrônica

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  • Direitos autorais, 1998, da Apresentao e da Organizao, de Etienne Samain. Direitos de publicao reservados pela Editora Hucitec Ltda., Rua Gil Eanes, 713 - 04601-042 So Paulo, Brasil. Telefones: (011)240-9318 e 543-0653. Vendas: (011)530-4532. Fac-smile: (011)530- 5938.

    E-mail: [email protected]

    ISBN 85.271.0433-4 Foi feito o Depsito Legal.

    Projeto grfico: Ronaldo Entler Produo: Ourpedes Gallene e Tera Dorea

    S 139 Samain, EtienneO fotogrfico / Etienne Samain. - So Paulo: Hucitec,

    1998.

    1. Fotografia 2. FotografiaInterpretao I. Ttulo.

    CDD-770 CDU-77.03

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Fotografia 7702. Fotografia e sua interpretao 77.03

  • A fotografia sob o impacto da eletrnica

    Arlindo Machado*

    Resumo

    O aparecim ento da fotografia eletrnica, bem com o de inm eros recursos informatizados de conservao e arm azenamento de fotos, ou ainda, dos vrios aplicativos de processamento digital da fotografia, e m esmo dos recursos de modelao direta da imagem no computador, sem o auxlio da cmara, tudo isso tem causado um significativo impacto sobre o conceito tradicional de fotografia e vem desencadeando um nmero incalculvel de conseqncias que devem ser discutidas e enfrentadas pelos analistas da fotografia.

    Abstract

    The recent arrival of electronic photography and the innumerable possibilities of photographic digital processing, as well as the development of methods of image modeling b y computer, have provoked a m yriad of consequences which m ust be faced up to and discussed by photographic analysts.

    Rsum

    L'apparition rcente de la photographie lectronique, autant que les innom brables possibilits de processer digitalem ent la photographie, sans devoir parler encore des m oyens de modelage direct de l'im age par ordinateur, tout cela a provoqu un num ro non moins considrable de consquences que devront affronter et discuter les analystes de la photographie.

    * Professor do programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da PUC-SP, tem- se dedicado ao estudo das novas tecnologias audiovisuais. Entre vrios artigos e livros, publicou A iluso especular, So Paulo: Brasiliense, 1984, A arte do vdeo. So Paulo: Brasilense, 1989, Mquina e imaginrio. So Paulo: Edusp, 1994, e Pr-cinemas e Ps- cinemas, Campinas: Papirus, 1997.

  • advento recente da fotografia eletrnica (a fotografia que registrada diretamente em suporte magntico ou ptico e mais comumente conhecida como still video), bem como dos inmeros recursos informatizados de conservao e armazenamento de fotos (como o Photo-CD da Kodak), ou ainda dos dispositivos de processamento digital da fotografia (como as mquinas da empresa Scitex Corporation ou programas de computador tais como Photoshop ou PhotoStyler), ou mesmo dos recursos de modelao direta da imagem no computador, sem auxlio de cmara, tudo isso tem causado o maior impacto sobre o conceito tradicional de fotografia e promete daqtti para a frente introduzir mudanas substanciais tanto na prtica quanto no consumo de imagens fotogrficas em todas as esferas de utilizao.

    A hegemonia dessas novas imagens fcil de ser verificada. Basta observar o crescimento vertiginoso das telas eletrnicas ao nosso redor. Em casa, no trabalho, nas escolas, nas empresas, nos bares, nos estdios, nos aeroportos, nos metrs, nas ruas, nos hospitais, aonde quer que se v, h sempre um (ou vrios) monitor(es) ligado(s), espalhando para todos os quadrantes uma imagem granulosa, mosaicada, estilizada, translcida e flamejante, que apenas remotamente pode ser associada imagem muito mais definida, mais consistente e mais homognea da fotografia. E mesmo nos meios impressos, como jornais e revistas de massa, j nos estamos acostumando a conviver com um certo tipo de imagem que, apesar de muitas vezes lembrar estreitamente a familiar imagem fotogrfica, pode j no ter sido captada por uma cmara ou, se o foi, pode estar de tal forma alterada que no guarda mais que plidos traos de seu registro original em pelcula.

    A fotografia eletrnica, ou o tratamento eletrnico da fotografia, ou a simulao da fotografia por meio de recursos digitais, tudo isso j so hoje fatos consumados. Muitos fotgrafos podero simplesmente ignorar tal assdio, muitos devero mesmo resistir heroicamente e persistir at o fim da vida buscando o "momento decisivo" das coisas que se oferecem cmara. Mas o problema se que se trata de procurar problemas que essas novas prticas ou esses novos fenmenos encontram-se hoje to estreitamente inseridos, misturados, permeados nas prticas fotogrficas convencionais, que se torna cada vez mais difcil saber o que ainda especificamente foto-grafia, ou seja, registro da luz sobre uma pelcula revestida qtiimicamente e o que , por outro lado, metamorfose, ou seja, converso dos gros fotoqumicos em unidades de cor e brilho, matematicamente controlveis, s quais damos o nome de pixels. Uma vez que hoje se pode tanto converter imagens fotogrficas em eletrnicas, quanto eletrnicas em fotogrficas, sem que nessa passagem permanea nenhuma

  • A fotografia sob o impacto da eletrnica 319

    marca do seu estado anterior, vive-se hoje uma situao de indiferencia- o entre os meios, situao essa que contagiante e ameaa at mesmo o mais singelo dos flagrantes.

    A situao vivida hoje no universo da fotografia no muito diferente da situao vivida, por exemplo, no cinema, que v o vdeo e a informtica penetrarem como um rolo compressor em seus processos significantes, tomando o controle de todas as etapas de elaborao do filme. Modernamente, no cinema, a edio j est toda informatizada, a filmagem assistida por vdeo, quando no gravada diretamente em meio magntico, a maioria dos efeitos de ps-produo so gerados eletronicamente e at mesmo o roteiro e o storyboard so editados em microcomputadores. A prpria linguagem do cinema hoje uma derivao da linguagem da televiso, uma vez que o filme deve ser pensado e produzido levando-se em considerao a sua funcionalidade na tela pequena, quando ele for distribudo em fitas de videocassete ou nos canais de televiso. Na rea da msica, a situao no muito diferente: os sons dos instrumentos so "samplerizados" (construdos por amostras) ou sintetizados eletronicamente, ao passo que as peas musicais no consistem em outra coisa que uma edio desses sons numa tela de computador, por meio de seqiiencia- dores concebidos especificamente para esse fim. O que quer dizer que, tal como ocorre agora na fotografia, a msica que se ouve num disco no mais, em grande parte das vezes, o registro da performance de um instrumentista, mas o resultado de um trabalho de edio de sons eletronicamente gerados. At mesmo o velho e tradicional livro impresso, que remonta ao tempo da imprensa de Gutenberg, no sculo XV, est sendo rapidamente substitudo pelo livro eletrnico, distribudo em disquetes, discos CD-ROM ou diretamente atravs de cabos telefnicos e redes de fibras ticas.

    A fotografia no vive, portanto, uma situao especial, nem particular: ela apenas corrobora um movimento maior, que se d em todas as esferas da cultura, e que poderamos caracterizar resumidamente como sendo um processo implacvel de "pixelizao" (converso em informao eletrnica) e de informatizao de todos os sistemas de expresso, de todos os meios de comunicao do homem contemporneo. A tela mosaicada do monitor representa hoje o local de convergncia de todos os novos saberes e das sensibilidades emergentes que perfazem o panorama da visualidade (e tambm da musicalidade, da verbalidade) deste final de sculo. Esse fenmeno surge, evidentemente, arrastando atrs de si um nmero incalculvel de conseqncias, desencadeando problemas de toda ordem e so justamente essas derivaes que nos devem ocupar daqui para a frente. Mas seria um equvoco descomunal olhar para tudo isso como se estivssemos diante de uma catstrofe, como se as telas eletrnicas, ao se multiplicarem ao nosso redor, estivessem tambm anunciando a chegada do Apocalipse. A nova situao criada pelo advento dos meios eletrnicos e digitais oferece uma boa ocasio para se repensar a fotografia e o seu destino, para colocar em questo boa parte de seus mitos ou de seus pressupostos e, sobretudo, para redefinir estratgias de interveno capazes de fazer desabrochar na fotografia uma fertilidade nova, de modo a recolocar o seu papel no milnio que se aproxima.

  • 320 Arlindo Machado

    Realismo em criseA conseqncia mais bvia e mais alardeada da hegemonia da eletrnica a perda do valor da fotografia como documento, como evidncia, como atestado de uma pr-existncia da coisa fotografada, ou como rbitro da verdade. A crena mais ou menos generalizada de que a cmara no mente e de que a fotografia , antes de qualquer outra coisa, o resultado imaculado de mn registro dos raios de luz refletidos pelos seres e objetos do mundo, enfim, toda essa mitologia a que a fotografia tem sido associada desde as suas origens, tudo isso est fadado a desaparecer rapidamente. No tempo da manipulao digital das imagens, a fotografia no difere mais da pintura, no est mais isenta de subjetividade e no pode atestar mais a existncia de coisa alguma. Qualquer imagem fotogrfica pode ser profundamente alterada, alguns de seus elementos podem ser importados de outras imagens, o nariz de um modelo pode ser alongado ou reduzido e at mesmo trocado com o de outra figura, rugas ou excesso de gorduras podem ser eliminados dos corpos fotografados, a posio dos objetos no quadro pode ser alterada para possibilitar um novo enquadramento, at mesmo erros de foco, de mensurao da luz ou de velocidade de obturao podem ser corrigidos na tela do computador. O conceito de edio da fotografia se amplia e compreende hoje no apenas o trabalho de recorte do quadro e a sua insero na pgina de uma revista, mas tambm a manipulao dos elementos constitutivos da prpria imagem, at mesmo no nvel do gro mais elementar de informao: o pixel.

    Certamente j se manipulava a foto em outros tempos e a histria da fotografia est repleta de exemplos de alterao da informao luminosa impressa no negativo para fins publicitrios, polticos ou at mesmo estticos. Em 1986, o jornalista Alain Jaubert organizou em Paris uma exposio denominada As Fotos que Falsificaram a Histria, onde foram expostas quase uma centena de fotos "histricas" reconhecidamente adulteradas atravs de retoque ou colagem, como a clebre imagem de Lnin na tribuna (em 1920) de onde Trtski foi eliminado, o famoso enterro de Mao Ts-Tng (1976) de onde foram apagadas as figuras da Camarilha dos Quatro, e o retrato de Fidel Castro tomado no Chile em 1971, de que o lder cubano mandou suprimir a figura do General Pinochet, que posava ao seu lado. Mas a manipulao fotogrfica que se fazia em outros tempos era grosseira e podia ser facilmente descoberta com um simples exame atravs de microscpio. Hoje extremamente difcil (seno impossvel) saber se houve algum tipo de manipulao numa foto, pois o processamento digital, uma vez realizado numa resoluo mais fina que a do prprio gro fotogrfico, no deixa marca alguma da interveno. Uma vez que agora se pode fazer qualquer tipo de alterao do registro fotogrfico e com um grau de realismo que toma a manipulao impossvel de ser verificada, a concluso lgica que, no limite, todas as fotos so suspeitas e, tambm no limite, nenhuma foto pode legal ou jornalisticamente provar coisa alguma. A foto perde o seu poder de produzir verossimilhana e, como tal, bem provvel que dentro de mais algum tempo ela seja excluda at mesmo de nossos documentos de identidade.

    Alm da impossibilidade de verificar qualquer modificao do registro original, preciso tambm constatar a relativa trivialidade com que esse

  • A fotografia sob o impacto da eletrnica 321

    processo se d na prtica habitual da fotografia. Os recursos para se editar digitalmente uma foto esto cada vez mais ao alcance de qualquer empresa editora, de qualquer fotgrafo profissional e at mesmo do cidado comum, uma vez que as cmaras eletrnicas de baixo custo e destinadas ao pblico amador j so vendidas acompanhadas de programas de edio de imagem. A rpida expanso da fotografia eletrnica e do processamento digital da fotografia nos faz crer que grande parte das imagens que consumimos hoje nas revistas ilustradas so imagens editadas no seu prprio contedo imagtico. A tarefa do fotgrafo convencional se reduz cada vez mais do colhedor de imagens, entendida como tal a atividade do mero fornecedor de uma matria-prima que dever ser depois manufaturada em estaes grficas computadorizadas. Os limites entre a fotografia como registro da luz e a iconografia dos meios de comunicao tornam-se imprecisos, na medida em que o registro tomado e explorado no que tem de potencial grfico, na medida em que o resultado buscado mais pictrico do que fotogrfico e na medida ainda em que a questo da fidelidade ao mundo visvel mostra cada vez menos pertinncia.

    Uma avaliao madura do momento vivido hoje pela fotografia muito difcil de ser procedida, justamente porque vivemos um momento de transio e as mudanas ainda no tomaram corpo com a devida nfase. O pblico ainda no est inteiramente consciente das mudanas radicais que se processam no interior das imagens que ele consome cotidianamente, o perigo de uma utilizao perversa da fotografia mais iminente do que nunca e, por outro lado, o movimento de resistncia s mudanas tambm tem-se mostrado muito forte, dele derivando, como subproduto, o retorno de um atitude de fetichismo em relao fotografia clssica de base fo- toqumica. O intelectual norte-americano John Berger j observou, por exemplo, que, durante a Guerra do Golfo Prsico, muitos jornais e revistas de seu pas alteraram muito sutilmente a imagem de Saddam Hussein, produzindo um estreitamento mais acentuado de seu rosto e de seu bigode para forar uma semelhana com a fisionomia de Adolf Hitler1. Mas verdade tambm que, na mesma guerra, a quase inexistncia de imagens do conflito, ou, quando existentes, a indicao explcita das fontes fornecedoras (com a sugesto implcita da autoridade censora), bem como ainda as imagens de simulao de batalhas atravs de recursos estilizados de computao grfica, tudo isso tornou evidente a um pblico estupefato que a notcia (e com ela a "verdade") uma construo, um discurso, sujeito, como qualquer outro discurso, intencionalidade da fonte emissora.

    Nos crculos de especialistas, j lugar-comum dizer que o universo da imagem vive hoje a sua fase ps-fotogrfica, querendo-se dizer com isso uma fase em que a imagem e sobretudo a imagem tecnicamente produzida libera-se finalmente do seu referente, do seu modelo, ou daquilo que ns chamamos um tanto impropriamente de a "realidade". O que marca de forma mais aguda esta fase uma lenta mas inexorvel mudana dos hbitos perceptivos do pblico em relao a uma, digamos assim, ontologia da imagem fotogrfica. A convivncia diria com a televiso e com os meios eletrnicos em geral vem mudando substancialmente a maneira como o espectador se relaciona com as imagens tcnicas e isso tem conseqncias diretas na abordagem da fotografia. A tela de

    1 Self, Adrian. "Altered Images". Computer Shopper, London, n.u 61, March 1993, p. 416.

  • 322 Arlindo Machado

    2 So Paulo: Brasiliense, 1984.

    3 Bazin, Andr. "Ontologie de 1'imagephotographique". Qu'est-ce que le cinma?Paris: Cerf, vol. I, 1958, p. 15.

    baixa resoluo e sem profundidade da imagem eletrnica fragmenta e emoldura de forma implacvel o espao visvel, torna sensvel a textura granulosa do mosaico videogrfico e se oferece a todas as interfncias e manipulaes. Mais que isso: a imagem eletrnica se mostra ao espectador no mais como um atestado da existncia prvia das coisas visveis, mas explicitamente como uma produo do visvel, como um efeito de mediao. A imagem se oferece agora como um "texto" para ser decifrado ou "lido" pelo espectador e no mais como paisagem a ser contemplada.Isso no quer dizer que as imagens contemporneas sejam indiferentes realidade, como querem fazer crer certos profetas do Apocalipse, mas que o acesso a esta ltima agora mais mediado e menos inocente. Atribir um carter perverso ao efeito de opacidade produzido pela imagem eletrnica, ou pior ainda, inculpar esta ltima de uma pretensa "desrealizao" do mundo visvel, como fazem certos filsofos da ps-modernidade, implica, na verdade, um retorno a um discurso platnico sobre a imagem, um discurso que no consegue pensar a imagem fora de sua funo indiciai mais elementar e que no admite qualquer outro destino para as imagens fora dos limites estreitos da mimese. Mas a manipulao eletrnica no chega propriamente a representar uma novidade no universo das artes visuais, uma vez que o que ela faz simplesmente repetir, s que agora em nvel de massa e do automatismo tcnico, o mesmo processo de ico- nizao da representao visual j vivido pela arte moderna a partir do impressionismo, do cubismo e da arte abstrata.A concluso provisria que podemos arriscar extrair dos dados com os quais podemos contar hoje mais ou menos a seguinte. Por mais predatria que seja a interveno da eletrnica no terreno da fotografia, ela produz tambm alguns resultados positivos a mdio prazo, que poderamos caracterizar como sendo, de um lado, a incrementao dos recursos expressivos da fotografia e, de outro e principalmente, a demolio definitiva e possivelmente irreversvel do mito da objetividade fotogrfica, sobre o qual se fundam as teorias ingnuas da fotografia como signo da verdade ou como reproduo do real. Na verdade, todos os especialistas que se atiraram seriamente tarefa de examinar o modo de funcionamento da fotografia como um sistema de expresso j deixaram patente as convenes do cdigo fotogrfico de representao e a arbitrariedade dos seus vrios elementos expressivos, como o enquadramento, a iluminao, a disposio das zonas de cinzas, a determinao do ponto de foco, a velocidade de obturao, a resoluo da perspectiva por cada tipo de lente, a densidade da emulso de registro, o balanceamento das cores etc. O prprio autor deste texto que o leitor tem nas mos fez editar, em 1984, o livro A Iluso Especular2, onde fundamentalmente procurou demonstrar como a fotografia exprime seus enunciados na forma de textos imagticos que so sempre e necessariamente intencionais, interpretativos e subjetivos, como ocorre alis em qualquer outro tipo de texto. A idia esdrxula, difundida nos anos quarenta por Andr Bazin3, de que a fotografia pertence ao domnio no da cultura, mas das cincias naturais, porque a prpria "realidade" que se imprime a si mesma na pelcula, no suporta sequer a mais elementar das verificaes.Pois bem, o que faz hoje a eletrnica no terreno da fotografia tornar sensvel, ou at mesmo ostensivo, aquilo que todo estudioso da fotografia e todo fotgrafo devidamente conhecedor do seu meio j sabiam desde

  • A fotografia sob o impacto da eletrnica 323

    as origens da fotografia, ou seja, que fotografar significa, fintes de qualquer outra coisa, construir um enunciado a partir dos meios oferecidos pelo sistema expressivo invocado e isso no tem nada a ver com reproduo do real. Se hoje a eletrnica amplia o leque de ferramentas de que pode se servir o fotgrafo, se ela lhe d maior poder de controle sobre suas imagens e lhe possibilita intervir at mesmo sobre as unidades mais elementares do quadro para construir suas idias visuais, tanto melhor para a fotografia, mesmo que essa nova atividade nem venha mais a se chamar fotografia no futuro. Conforme j observou Fred Ritchin4, "o potencial expressivo da fotografia no poder ser adequadamente fixado e avaliado enquanto a questo da sua fcil conexo com a realidade no fo r superada". A eletrnica fora hoje a fotografia a viver a sua hora da verdade e a livrar-se das convenes e das idias preconcebidas que entravam o seu pleno desenvolvimento como arte e como meio de comunicao. A medida que o pblico for acostumando-se s imagens digitalmente alteradas, medida que essas alteraes se tornarem cada vez. mais visveis e sensveis, tambm como tuna nova forma esttica, e que os prprios instrumentos dessas alteraes estiverem ao alcance de um nmero cada vez maior de pessoas, at mesmo para manipulao domstica, o mito da objetividade e da veracidade da imagem fotogrfica desaparecer da ideologia coletiva e ser substitudo pela idia muito mais saudvel da imagem como construo e como discurso visual.

    Uma esttica da metamorfoseUma vez que se encontra sujeita a todas as transformaes, a todas as distores e anamorfoses, a imagem fotogrfica, sob o gide da eletrnica, converte-se agora no meio por excelncia da metamorfose. Pode-se nela intervir infinitamente, subverter os seus valores cromticos ou os seus nveis de luminncia, recortar suas figuras e inseri-las umas dentro das outras, gerando paisagens hbridas e exticas, a meio caminho entre o surrealismo e a abstrao. Com os modernos recursos de ps-produo, sobretudo os que permitem a manipulao digital, pode-se silhuetar as figuras, lineariz-las, preench-las com massas de cores, along-las, com- primi-las, torc-las, multiplic-las ao infinito, submet-las a toda sorte de suplcios, para depois restitu-las novamente e, se for o caso, devolv-las ao estado de realismo especular. Diferentemente das imagens fotogrficas convencionais, rgidas e resistentes em sua fatalidade figurativa, a imagem eletrnica resulta muito mais elstica, diluvel e manipulvel como uma massa de moldar.

    Determinados algoritmos de computao grfica especficos para a manipulao da imagem fotogrfica permitem hoje intervir sobre as figuras e distorc-las de todas as formas, sem que verdadeiramente haja limites para esse gesto desconstrutivo. Na anlise desse fenmeno, o crtico Fred Ritchin5 chegou mesmo a lanar o conceito de hiperfotografia, a fotografia que modificada no pela ao de paletas grficas, mas pela aplicao direta de leis da fsica ou da biologia. Imagine-se a foto de um prdio de quarenta andares sacudido por um vento hipottico a 600 milhas por hora, velocidade duas vezes superior ao recorde j verificado na superfcie da terra. Aplicando equaes, matemticas e leis fsicas de resistncia dos materiais a uma foto convencional de um edifcio, pode-se, com o auxlio

    4 Ritchin, Fred. Our Own Image: the Coming Revolution in Photograph}/. New York: Aperture, 1990, p. 7.

    5 Ibidem, p. 133.

  • 324 Arlindo Machado

    6 Kleiner, Art. "New Faces". Aperture. New York, n. 106, Spring 1987, p. 72.

    7 Weibel, Peter. "L'estetica delJa sparizione nell' immagine elettronica". Cinema N ilovo. Firenze, anno 37, n." 4/5, juglio/ ottobre 1988, p. 44.

    de um computador, alterar a foto original de forma a visualizar o que poderia acontecer com o edifcio sob a ao de tais ventos. Com essa tcnica, a fotgrafa norte-americana Nancy Burson produziu um famoso retrato do que seria um Big Brother de nosso tempo, misturando os traos fisionmicos dos presidentes e primeiros-ministros dos pases detentores de poder nuclear, na exata proporo do nmero de ogivas de cada pas. A mesma fotgrafa conseguiu tambm desenvolver um algoritmo capaz de "envelhecer" ou "rejuvenescer" imagens fotogrficas, de modo a possibilitar saber como seremos daqui a vinte anos, ou como ficar uma estrela do cinema contemporneo quando lhe vierem as rugas ou qual deve ser a face atual de um criminoso nazista foragido6.

    Estticas por excelncia da metamorfose, o still video e a fotografia processada em computador autorizam as manipulaes mais transgressivas e as interferncias mais desarticuladoras sobre o registro bruto efetuado pelas cmaras. No por acaso, essas suas caractersticas anamrficas esto possibilitando fotografia retomar o esprito demolidor e desconstrutivo das vanguardas histricas do comeo do sculo e aprofundar o trabalho de rompimento com os cnones pictricos herdados do Renascimento. No nos esqueamos de que a fotografia, no sculo passado, representou um dos baluartes de resistncia das foras conservadoras contra a arte moderna, sua contempornea, na medida em que aquela perpetuava um modelo de representao que esta ltima se encontrava justamente pondo em questo. Nesse sentido, pode-se falar hoje, e com uma certa pertinncia, em uma reconciliao com a pintura, uma vez que a imagem eletrnica permite fotografia recuperar a visualidade da arte contempornea.

    Os trabalhos recentes na rea da fotografia eletrnica e da manipulao digital de fotos e mesmo da modelao direta por computador apontam hoje para a possibilidade de uma nova "gramtica" dos meios imagticos, afinada com a "gramtica" das artes plsticas atuais, e tambm para a necessidade de novos parmetros de leitura por parte do sujeito receptor. O quadro que delimita a imagem (e que pode ser a tela de um monitor) torna-se agora um espao topogrfico onde os diversos elementos imagticos vm inscrever-se. Do espao isotpico da figurao clssica, baseado na continuidade e na homogeneidade dos elementos representados, baseado na convergncia de todos os elementos em torno de um ponto de fuga, passamos agora ao espao politpico7, em que os elementos constitutivos do quadro migram de diferentes contextos espaciais e temporais e se encaixam, se encavalam, se sobrepem uns sobre os outros em configuraes hbridas. O mundo passa a ser visto e representado como uma trama de relaes de uma complexidade inextricvel, em que cada instante est marcado pela presena simultnea de elementos os mais heterogneos e tudo isso ocorre num movimento vertiginoso, que torna mutantes e escorregadios todos os eventos, todos os contextos, todas as operaes.

    Fluidas, ruidosas, escorregadias e infinitamente manipulveis, a imagem eletrnica e a fotografia processada digitalmente no autorizam mais um tratamento no nvel da mera referencialidade, no nvel do registro documental puro e simples. O efeito de real no se d nelas com a mesma transparncia e inocncia com que ocorre na fotografia convencional ou no cinema. Pelas suas prprias caractersticas, os meios eletrnicos se prestam muito pouco a uma utilizao naturalista, a uma utilizao meramente homologatria do "real". Pelo contrrio, se a "realidade"

  • A fotografia sob o impacto da eletrnica 325

    comparece em alguma instncia nessas atividades, ela se d como decorrncia de um trabalho de "escritura". As anamorfoses e dissolues de figuras, os imbricamentos de imagens umas nas outras, os efeitos de edio ou de collage, os jogos das metforas e das metonmias, a sntese direta da imagem no computador no so meros artifcios de valor decorativo; eles constituem, antes, os elementos de articulao do quadro fotogrfico como um sistema de expresso. Dentre todas as imagens figurativas, a imagem eletrnica a que menos manifesta vocao para o documento ou para o "realismo" fotogrfico, impondo-se, em contrapartida, como interveno grfica, conceituai ou, se quiserem, "escriturai": ela pressupe uma arte da relao, do sentido e no simplesmente do olhar ou da iluso.

    Isso tudo no implica evidentemente autorizar todo e qualquer trabalho produzido com recursos eletrnicos ou digitais. Boa parte do que se v hoje no terreno das novas poticas fotogrficas mostra-se ainda muito aqum das prprias possibilidades prometidas pelos dispositivos tcnicos, para no se falar de uma transgresso, de uma superao dessas prprias possibilidades, que seria o mais desejvel. Na atual fase de transio vivida pela fotografia, no nada surpreendente que muitos dos trabalhos produzidos com os novos meios no consigam ainda superar a atitude do mero deslumbramento com as possibilidades da tecnologia. No nos enganemos, porm, supondo que tudo no passa de modismo passageiro ou, pior ainda, que nada disso pode afetar substancialmente a velha e boa fotografia produzida atravs de uma cmara e registrada em pelcula fo- toqumica. Os novos meios, os novos procedimentos, a nova esttica, tudo isso veio para ficar. Eles ampliaro cada vez mais o seu leque de influncias, tomaro boa parte dos espaos hoje ocupados pela fotografia tradicional e podero mesmo vir a provocar uma revoluo no conceito de fotografia, medida que inteligncias e sensibilidades cada vez mais slidas passarem a se ocupar deles em intensidade e profundidade. O trabalho recente do fotgrafo brasileiro Carlos Fadon Vicente a melhor demonstrao disso.