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Tiragem: 14968 País: Portugal Period.: Semanal Âmbito: Economia, Negócios e. Pág: 4 Cores: Preto e Branco Área: 25,43 x 32,00 cm² Corte: 1 de 8 ID: 64722757 03-06-2016 | Weekend ENTREVISTA ELVIRA FORTU\ATO Aqui, não usamos "Eurekas", aqui usamos "Funciona". É . o nosso grito. Elvira Fortunato anda sempre a comprar papel. "Ainda agora fui ao Pão de Açúcar e comprei papel vegetal." Engenheira de materiais, criou, com o investigador Rodrigo Martins e a sua equipa, o primeiro transístor de papel. Até Já foi chamada de "Cristiano Ronaldo da electronica de papel". Uma invenção que promete revolucionar hábitos quotidianos e que lhe valeu prémios vários e a nomeação, pelo Instituto Europeu de Patentes, para o European Inventor Award, na categoria "Investigação". A cerimónia acontece dia 9 de Junho, em Lisboa. Elvira Fortunato dirige o CENIMAT, o Centro de Investigação de Materiais, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. É dos seus laboratórios que saem, tambem, os chamados "Iab-on-paper", testes de diagnóstico rápido que colocam um "minilaboratório" num pedaço de papel. Aqui, a ficção científica deixa de ser ficção. Elvira Fortunato, considerada pela revista Executiva como uma das mulheres mais influentes de Portugal, está na linha da frente da chamada revolução da electrónica de papel e da electrónica transparente. LÚCIA CRESPO BRUNO SIMÃO ej

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Tiragem: 14968

País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Economia, Negócios e.

Pág: 4

Cores: Preto e Branco

Área: 25,43 x 32,00 cm²

Corte: 1 de 8ID: 64722757 03-06-2016 | Weekend

ENTREVISTA

ELVIRA FORTU\ATO Aqui, não usamos "Eurekas", aqui usamos "Funciona". É. o nosso grito.

Elvira Fortunato anda sempre a comprar papel. "Ainda agora fui ao Pão de Açúcar e comprei papel vegetal." Engenheira de materiais, criou, com o investigador Rodrigo Martins e a sua equipa, o primeiro transístor de papel. Até Já foi chamada de "Cristiano Ronaldo da electronica de papel". Uma invenção que promete revolucionar hábitos quotidianos e que lhe valeu prémios vários e a nomeação, pelo Instituto Europeu de Patentes, para o European Inventor Award, na categoria "Investigação". A cerimónia acontece dia 9 de Junho, em Lisboa. Elvira Fortunato dirige o CENIMAT, o Centro de Investigação de Materiais, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. É dos seus laboratórios que saem, tambem, os chamados "Iab-on-paper", testes de diagnóstico rápido que colocam um "minilaboratório" num pedaço de papel. Aqui, a ficção científica deixa de ser ficção. Elvira Fortunato, considerada pela revista Executiva como uma das mulheres mais influentes de Portugal, está na linha da frente da chamada revolução da electrónica de papel e da electrónica transparente.

LÚCIA CRESPO

BRUNO SIMÃO

ej

Tiragem: 14968

País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Economia, Negócios e.

Pág: 5

Cores: Cor

Área: 25,70 x 32,00 cm²

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Estames a assistir à "revolução" do papel? Nós mostrámos que, afinal, o papel pode

ser usado em aplicações de electrónica e fi-zemos o primeiro transístor de papel com materiais que não têm nada que ver com os que são usados na electrónica normal. A uti-lização do papel tal como nós o conhecemos já está em declínio em alguns países, subs-tituído pela componente digital. Mas exis-tem outras aplicações que estão a revolucio-nar os hábitos quotidianos, e uma das áreas mais propícias à utilização do papel é a das embalagens inteligentes. Estamos, cada vez mais, a substituir materiais plásticos por materiais à base de papel, com circuitos in-tegrados que acoplam uma série de infor-mações, tais como prazos de validade e me-canismos de gestão de "stocks". Hoje em dia, com a Internet das Coisas, tudo fala com tudo. A Samsung, por exemplo, lançou um frigorífico - o Family Hub - em que a porta é um mostrador e o próprio dispositivo faz a gestão do que está lá dentro.

Mas o papel electrónico já está a ser usado nas embalagens inteligentes? O papel electrónico ainda não está a ser

usado em termos de mercado. Há uma série de empresas interessadas, mas é algo que implica confidencialidade. Mas, sem dúvi-da alguma, uma das grandes utilizações de papel e, neste caso, de papel de cartão, é na área das embalagens interactivas, nas quais existirá electrónica a comunicar com um sis-tema central, como um frigorífico ou outro dispositivo. Ora, a electrónica convencional é muito cara, e essa é uma das grandes van-tagens desta electrónica. No sector dos me-dicamentos, já são utilizados mecanismos semelhantes, que indicam, por exemplo, se a pessoa tomou o comprimido à hora exac-ta. Existe um alarme que é accionado na pró-pria embalagem. Ou seja, quando retiramos o comprimido, há uma interrupção no sinal eléctrico. Isso é uma aproximação ao con-ceito de embalagens interactivas. Neste mo-mento, existe um grande empenhamento por parte da própria Comissão Europeia em financiar projectos na área do papel electró-nico. Estamos até a constituir um consórcio europeu, liderado, neste caso, pelo meu ma-rido, o Professor Rodrigo Martins.

De que se trata? Trata-se da constituição de uma linha-

-piloto europeia, ao abrigo do programa eu-ropeu Horizonte 2020, para demonstrar, em ambiente industrial, o potencial do pa-pel electrónico para uma miríade de aplica-ções, onde contamos com o empenho da au-tarquia de Almada e temos as participações da Navigator de Portugal e da Arjowiggins de França, além de parceiros industriais eu-ropeus na área dos mostradores, embala-gens inteligentes e diagnósticos médicos. O essencial disto tudo é que, no futuro, vamos poder ter papel de parede inteligente que muda de cor, que fornece luz ou que serve de mostrador e que lhe dá a informação que desejar. Quando se fartar, troca e muda!

Tem estado, também, a desenvolver os cha- página

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País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Economia, Negócios e.

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Os portugueses são muito criativos, inventivos. Os portugueses são uns "MacGyvers".

ENTREVISTA

ELV1A F:RIMATO

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mados "lab-on-paper", testes de diagnós-tico rápido que colocam um aminilabora-tório" num pedaço de papel... Sim, na área dos biossensores. Como

trabalhamos com papel, não quisemos fi-car com a nossa investigação restrita à parte do papel electrónico e tentamos ex-plorar o material para outras aplicações: Então estamos a desenvolver testes de diagnóstico rápido, colorimétricos, mui-to similares aos testes da gravidez. Atra-vés de uma mudança de cor em determi-nados indicadores, é possível detectar a glucose, o colesterol, etc. São testes mui-to baratos e não implicam problemas de contaminação porque, no final, eu posso queimá-los. E só papel. Evidentemente que estes testes não têm a mesma resolu-ção de um teste normal, mas podem ser muito úteis nos países em vias de desen-volvimento, onde existem poucos meios de diagnóstico. Pelo menos, podemos sa-ber se estamos na presença de um nega-tivo ou de um positivo. Esta é uma ideia desenvolvida pelo Professor George Whi-tesides, de Harvard, e nós estamos a opti-mizar o processo. Mas, neste caso, não existe electrónica envolvida, o que não in-valida que, se eu quiser ter um sensor com maior resolução, não associe a electróni-ca, essa ideia não está descartada. Para já, trata-se apenas de usar o suporte do pa-pel, um material hidrotípico que gosta de água e em que os fluídos humanos fluem muito bem através das fibras do próprio papel.

Mas estes testes já estão no mercado? Onde? Neste momento, existem já no mer-

cado sistemas comercializáveis para tes-te rápido, por exemplo da glicémica, e in-troduzidos essencialmente pelo grupo do Professor Whitesides. Contudo, nada existe em termos de plataformas de dia-gnóstico inteligentes, capazes de comu-nicarem a informação detectada para um posto fixo ou móvel. Tal será conseguido pela electrónica de papel que estamos a criar.

Porquê este vosso foco no papel? O que vos fascina no papel? Nós somos engenheiros de materiais,

processamos os materiais, esticamos as propriedades dos materiais até ao limite. O papel tinha uma função passiva e, nes-te momento, o papel electrónico tem uma função activa. E as propriedades do papel vão ditar um melhor ou pior desempenho do transístor. Não é indiferente se as fi-bras são de eucalipto ou de pinheiro. Tam-bém trabalhamos com papel transparen-te produzido por bactérias através de uma colaboração com um grupo da Universi-dade do Minho que estuda uma bactéria

chamada Acetobacter xylinum. É a bac-téria do vinagre. Se não usarmos o vina-gre durante algum tempo, forma-se uma película na superficie, e isso é feito pelas tais bactérias que produzem nanofibras de celulose. A qualidade deste papel é muito boa em termos de cristalinidade e de pureza. E ao passo que um eucalipto ou um pinheiro demora acrescer, em média, cinco anos, estas folhas são feitas em dois, três dias.

E é algo vantajoso para o ambiente... Quando começámos a falar do papel

electrónico, os ambientalistas vieram di-zer - ai, as florestas. Eu costumo dizer que faze r um transistor é como fazer um bolo. Para fazer um bolo, preciso de farinha, ovos e açúcar. Para fazer transístores, também tenho deter três materiais, aque-les que conduzem, como os metais, mate-riais que não conduzem, como o vidro ou papel (isolantes), e materiais scmicondu-tores, que na electrónica convencional é o silício. Nós usamos estes óxidos que existem nos cremes Halibut ou nas pas-tas de dentes como material semicondu-tor. E estes materiais são inofensivos, são amigos do ambiente, nós até podemos comê-los. No final, uma embalagem com electrónica de papel pode vol tar para o ci-clo e ser reconvertida em pasta de papel.

Além do papel, parece haver uma "revo-lução" na área da electrónica transparen-te. Diz mesmo que podemos enrolar a te-levisão e guardá-la numa gaveta. Sim, aí estamos a falar de electrónica

transparente, feita à base de materiais transparentes que são processados à temperatura ambiente. Quando digo que podemos enrolar uma televisão, isso é verdade ejá há protótipos. Assistimos, di-gamos, a duas "revoluções" - a "revolu-ção" da electrónica do papel e a "revolu-ção" da electrónica transparente - que acabam, muitas vezes, por estar relacio-nadas. O papel electrónico vai usufruir um bocadinho dos materiais usados na electrónica transparente, mas com fins diferentes, e acaba por existir alguma du-plicação nos materiais, mas com objecti-vos diferentes.

Os em-às e as telas transparentes do fil-me "Minority Report", de Spielberg, que nos transportavam para o ano de 2054, são já uma realidade. Ou, pelo menos, es-tamos muito próximos dela. Muito mais. Se calhar, ter um mostra-

dor transparente, do ponto de vista da uti-lização, não é algo muito prático, mas ima-gine que eu tenho um sensor incorpora-do na minhajanela a controlara transmi-tância do vidro, por exemplo. Já existem protótipos e até mesmo produtos comer-

ciais - ainda não são transparentes, mas os materiais usados são os da electrónica transparente.

Diz que é muito importante que tenha existido um Júlio Verne e que exista um Steven Spielberg. Em que medida é que a ficção científica estimula a inovação? Quando vi o "Minority Report", nós já

trabalhávamos com materiais transpa-rentes e ficámos a pensar - mas porque não?! O cinema é muito importante, es-pecialmente de ficção científica. E preci-samos de pessoas visionárias, como um Júlio Verne ou um Steven Spielberg, sim.

Há uns anos, dizia que a Mura geração de "displays" teria um bocadinho de Por-tugal. Portugal é um país de inventores? Ai, eu acho que sim, aliás, estamos

sempre a ganhar prémios. As ideias não

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País: Portugal

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Âmbito: Economia, Negócios e.

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Cada Governo quer deixar a sua marca, mas a ciência não deveria ter uma marca política.

custam dinheiro, é evidente que depois pre-cisamos de dinheiro para poder concreti-zá-las, mas os portugueses, de uma forma geral, são muito criativos. São inventivos. Os portugueses são uns "MacGyvers". O que se passa é que, porvezes, muitas destas invenções passam despercebidas. A verda-de é que, dentro das empresas, mesmo de pequenas e médias empresas, há sistemas e automatismos que são desenvolvidos in-ternamente pelos trabalhadores. Há mui-tas invenções em fábricas que resultam de engenhocas das pessoas que lá trabalham. Mas isso não se sabe.

Em 2008, recebeu a bolsa avançada do Eu-ropean Research Council (FRC), no valor de 2,25 milhões de euros. Foi a primeira portu-guesa a conquistar uma bolsa ERC. Na altu-ra, foi chamada de "Cristiano Ronaldo da electrónica mundial". E também foi alcunha-

da como "a Elvira mais famosa do lloogie". (Risos) Pois, porque há poucas. Os 2,25

milhões de euros foram uma ajuda precio-sa, uma ajuda que nos possibilitou montar um laboratório de nanofabricação que é úni-co numa universidade portuguesa. E eu não estava à espera que esta área tivesse um im-pacto tão grande, especialmente em termos mediáticos. Isto foi, e ainda é, uma bomba. Porquê? Para já, porque o papel é um mate-rial omnipresente, todos nós conhecemos o papel, ele rodeia-nos, está connosco e, de re-pente, há uma aplicação tão diferente da-quela que as pessoas conhecem. Se calhar, foi isso que despertou tamanha curiosida-de, não sei...

E também despertou a curiosidade das em-presas? Com que empresas estão a traba-lhar? Tivemos projectos com a Samsung, nes-

te momento estamos a trabalhar com a LG. Temos um projecto confidencial com a Merck na área dos mostradores - a Merck, que vende RO% dos cristais líquidos de todo o mundo, não foi ter com Oxford nem com Cambridge, veio ter connosco para desen-volvermos materiais novos... Nós trabalha-mos com empresas a dois níveis, na presta-ção de serviços nestes projectos directos, e depois trabalhamos com muitas compa-nhias, desde a Fiat à Stora Enso, no âmbito de projectos europeus.

No Início, a indústria portuguesa "rejeitou--vos". Estamos agora a iniciar uns projectos

com a Portucel. Mas a indústria do papel não quis logo... tivemos uns projectos com a Re-nova, noutras áreas. Mas temos de aceitar as decisões, têm que ver com a filosofia de cada empresa.

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Âmbito: Economia, Negócios e.

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ENTREVISTA

ELVIRA FOMN.A1U

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Recorreram à brasileira Suzano Papel e Celulose. Sim, tivemos um grande projecto

com essa papeleira brasileira, na parte do papel electrónico, e continuamos a ter projectos europeus com papeleiras europeias.

Sempre se falou da falta de diálogo en-tre o tecido empresarial e o universi-tário em Portugal. Esse "gap" continua a existir? Continua a existir, é menor, mas

ainda existe. Nós formamos muitos doutorados nesta universidade e a ver-dade é que o número de doutorados nas empresas portuguesas é muito baixo, o que é exactamente o oposto daquilo que acontece nos países nórdicos ou nos Estados Unidos. Em Portugal, os doutorados vão ficando na investiga-ção. Ainda existe alguma relutância, por parte das empresas, em absorver pessoas com mais formação.

E não existirá alguma relutância por parte dos investigadores e cientistas em trabalhar nas empresas? Nós, aqui, não temos barreiras.

Aliás, eu promovo a interacção entre as várias áreas. O conhecimento surge, precisamente, misturando áreas dife-rentes. Uma aluna que se doutorou co-migo, na área das nanotecnologias, na parte dos semicondutores, foi agora contratada pela indústria farmacêuti-ca em Portugal, e eu até fiquei admira-da e quis saber porque é que estavam à procura de uma pessoa que sabia fazer transístores. A justificação era a de que estavam a criar uma equipa multidis-ciplinar dentro da própria empresa. É isso mesmo. Se, na minha equipa, eu ti-vesse pessoas de uma única área, iriam todas olhar para o papel da mesma ma-neira e o grau de inovação acabaria por ficar limitado. Quando temos pessoas de áreas diferentes, cada uma olha para a realidade de forma diferente. Temos aqui pessoas de fisica, de química, de materiais, de biologia, de bioquímica..

Mas essa mentalidade existe no meio científico em geral? Ou continua a existir uma "separação" entre a cha-mada ciência pura e a ciência apli-cada? Eu acho que hoje em dia as duas es-

tão muito ligadas. Por exemplo, eu pos-so estar a desenvolver um transístor que, neste momento, não tem aplica-bilidade nenhuma. No entanto, estou a estudá-lo. Actualmente, essa separa-ção está muito diluída porque qualquer ciência trabalha para um fim e o objec-tivo fmal é sempre o bem-estar do ho-

mem. O tempo é que vai ser diferente. O facto de fazermos mais ciência apli-cada não invalida que não tenhamos áreas mais fundamentais no sentido em que se está a estudar uma coisa que não tem uma aplicabilidade imediata.

E qual é e deve ser o papel do Estado nesta aproximação dos conhecimen-tos? Como avalia as chamadas redes inteligentes de aplicação do saber (RIAS)? De alguma forma, já existem pro-

jectos que tentam aproximar o que se faz nas universidades com aquilo que as empresas necessitam, e há muitos exemplos, mas aquilo de que eu sinto mais falta é, exactamente, da colocação de mais doutorados nas empresas. Um doutorado especializa-se numa área, mas não tem necessariamente de tra-balhar nessa área, tem ferramentas, disciplina e conhecimento que pode transportar para outra área.

Como descreve o estado actual da in-vestigação em Portugal? Para chegarmos onde chegámos,

houve muito trabalho que foi feito para trás e isso, sem dúvida, deve-se ao Pro-fessor Mariano Gago. Os frutos que es-tamos ater na ciênciadevem-se aos úl-timos 20 anos... São processos que de-moram tempo.

E agora? E o fuhiro? Ainda não vimos muita coisa com

este novo Governo. Hápromessas, mas ainda não existe nada de concreto que esteja materializado. Espero que não se desinvista na ciência como se desin-vestiu nos últimos quatro anos. Sei que o país passou por uma situação contur-bada, mas nós não temos riquezas ma-teriais, a nossa riqueza está mesmo nas pessoas e houve um grande desinves-timento na formação de recursos hu-manos, nomeadamente nas bolsas de doutoramento e pós-doutoramento. Espero que, com este Governo, parte daquilo que foi retirado seja reposto.

"É urgente não mudar as regras sem-pre que alguém tussa", disse numa en-trevista. Esse é um problema que não tem

cor. Aliás, cada Governo quer deixar a sua marca, mas a ciência não deveria ter uma marca. A ciência e a educação nunca podem ser avaliadas em quatro anos, são áreas que demoram o seu tempo. O mais importante na ciência em Portugal é a estabilidade que o sis-tema garante aos investigadores. Eu prefiro não ter dinheiro, mas saber que não o tenho, para poder reagir. Preci-

samos de financiamento, sim, mas, aci-ma de tudo, precisamos de estabilida-de, e não de um constante mudar de re-gras. E, no Governo anterior, no caso das bolsas de doutoramento e pós-dou-toramento, as regras mudaram duran-te a própria legislatura, e isso não pode ser. Mais do que os montantes, é a es-tabilidade que importa. Eu prefiro um sistema com menos dinheiro, entre as-pas, do que um sistema instável.

E é possível investigar com pouco di-nheiro? O pouco dinheiro é relativo. Aqui,

neste momento, não podemos fazer investigação com pouco dinheiro, mas temos várias fontes de financiamen-to, a maior parte vem de projectos eu-ropeus. O orçamento anual em média por ano, tendo por base os últimos cinco anos, é cerca de 3 milhões de eu-ros, dos quais 40% vêm de verbas na-cionais e 60% de verbas internacio-nais, o que inclui projectos financia-dos pela Comissão Europeia e contra-tos directos com empresas. O finan-ciamento nacional não é mau, é a nos-sa linha de base, eu não posso ter me-nos do que aquilo, mantém-nos à tona de água. Mas, para chegar ao nível que chegámos, temos de ter muito mais e esse "mais" vem, sim, dos projectos europeus.

Como é que foi crescendo o CENIMAT - Centro de Investigação de Mate-riais, na Faculdade de Ciências e Tec-nologia? Foi projecto a projecto. Aliás, não

fui eu que iniciei o grupo, foi o Profes-sor Rodrigo Martins e, antes dele, foi o Professor Leopoldo Guimarães. Este ano fazemos 40 anos da licenciatura em Engenharia Física dos Materiais. Tudo isto demorou tempo a ser feito. E o mais dificil não foi chegar até aqui, o mais dificil é manter este nível.

E reter jovens qualificados. No 10 de Junho de 2015, na sessão solene co-memorativa do Dia de Portugal, em La-mego, disse que muitos jovens esta-vam a ficar "esquecidos". Sim, claro, eu acho bem que as pes-

soas saiam por opção, mas não por obrigação, e isso notou-se. Estar a for-mar pessoas durante quatro a seis anos é um investimento grande e de-pois te mos gente de elevado nível científico que se vai embora na fase mais produtiva...

O que é que a assusta mais? Neste momento, o que é preciso é

estabilidade. Precisamos de demons-

Continua a existir [falta de diálogo entre o tecido empresarial e o universitário em Portugal].

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trar confiança aos nossos parceiros. E pre-cisamos de um país mais estável.

Ainda assim, Portugal é um bom país para viver? Ai, eu não saio de cá. Fiz muitos está-

gios lá fora, mas o meu doutoramento, os meus estudos, foram feitos cá em Portu-gal, aqui nesta universidade. Tenho cá a minha família. E, graças a Deus, tive al-guma sorte em ter podido ir para uma área de que gosto.

E tudo começou com uma cebola... (Risos) Foi numa aula de Biologia,

quando estava a observar as células da ce-bola. Eu sabia que queria ser engenheira, sem dúvida, mas nunca projectei muito a minha vida, as coisas foram acontecendo de uma forma natural, sem muitas metas a atingir. Eu sou de Almada e, quando aca-bei o 12.° ano, esta faculdade estava aqui há um ano. Ora, morando na zona e que-rendo ser engenheira, vim estudar para cá. Mas nunca fiz muitos planos a longo prazo, e só tive mesmo noção de que gos-tava realmente desta área quando, já na faculdade, estava a ter aulas práticas e co-mecei a trabalhar num grupo de investi-gação, foi aí que eu pensei - é mesmo isto de que eu gosto! Eu sou muito curiosa, quero saber como é que se faz, quero sa-

ber o porquê das coisas. E a investigação é uma coisa que não é monótona. Na in-vestigação, estamos sempre a fazer coi-sas diferentes e eu não me estava a ver numa empresa a fazer o mesmo todos os dias. Aqui, é exactamente o oposto. Aqui, há de tudo menos monotonia.

E é uma casa para si. Sim, passamos mais tempo aqui do que

na nossa casa, por isso é que andamos sem-pre a mudar coisas e os laboratórios são às cores... Monotonia é que não!

E novos projectos? Falámos de electrónica do papel, de

electrónica transparente e dos testes de diagnóstico, mas nós trabalhamos tam-bém com células fotovoltaicas, mais sob coordenação do Professor Rodrigo Mar-tins. Ainda agora ganhámos o prémio da Exame Informática com o TetraSolar, que consiste no fabrico de células fotovoltai-cas de baixo custo em embalagens do tipo Tetra Pak.

Gostam de explorar os materiais até ao li-mite, como disse. É. Esticamos, esticamos, esticamos até

eles conseguirem dar propriedades com-pletamente diferentes. E, no caso do pa-pel, ele é muito apelativo, é barato, não se

parte, é muito flexível, eu posso confor-má-lo a uma determinada geometria, tem muitas vantagens. Do ponto de vista do material, o papel é excelente. Ainda ago-ra fui ao Pão de Açúcar e comprei papel vegetal.

Anda sempre a comprar papel? De vez em quando... é papel vegetal,

não posso dizer para o que é que vou utili-zar, mas nós usamos materiais convencio-nais para aplicações não convencionais.

Foi considerada pela Executiva como uma das mulheres mais influentes de Portugal. Ficamos sempre com uma responsabi-

lidade acrescida, tudo aquilo que eu faço ou que falo é visto à lupa, mas o reconhecimen-to é muito bom, para mim e para a equipa. E a sociedade em geral fica a saber um pou-co mais sobre coisas que, muitas vezes, aca-bam por ficar fechadas nestes círculos.

O facto de ser uma ciência algo mais apli- cada torna-se mais fácil de explicar, não? Sim, talvez, eu posso mostrar, é mais

fácil do que outras áreas, admito. Geral-mente, nos laboratórios de investigação, quando se descobre qualquer coisa, diz-se: "Eureka!" Eu, aqui, não uso "Eurekas". Nós, aqui, usamos: "Funciona!" É o nosso grito. w

Eu sou muito curiosa, quero saber como é que se faz, quero saber o porquê das coisas. (...) Aqui, há de tudo menos monotonia.

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ELVIRA FORTUNATO Os portugueses são uns "MacGyvers"

Tiragem: 14968

País: Portugal

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Âmbito: Economia, Negócios e.

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Área: 16,02 x 4,61 cm²

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ELVIRA FORTUNATO

Os portugueses são uns wMacGyvers"