atividade com texto crônica_vista cansada

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Vista cansada Otto Lara Resende Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não- vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio. Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer. Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos. Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença. Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.

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Page 1: Atividade com texto crônica_Vista cansada

Vista cansadaOtto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.

Estudo do texto

1- O título do texto é "Vista cansada". A que tipo de cansaço esse título faz referência? Justifique sua resposta com uma frase tirada do texto.

2-A crônica lida é argumentativa, ou seja, há nela a apresentação de uma ideia e argumentos que a justificam. O tom, entretanto, é informal, parece uma conversa com o leitor, em que ficam claras certas hesitações do cronista.

a) Identifique, no primeiro parágrafo, o registro de duas dessas hesitações.

b) Que recursos textuais foram usados para expressar hesitações?

c) Essa forma de registrar as informações confere objetividade ou subjetividade ao texto? Explique sua resposta.

3-O cronista ora se dirige diretamente ao leitor, ora se inclui na informação dada, na crítica feita. Identifique:

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a) frases em que o cronista se dirige diretamente ao leitor;b) frases em que o cronista se inclui na questão apresentada por ele.

4- O trecho abaixo antecipa o ponto de vista do cronista sobre o modo de olhar par as coisas: "[...] Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua[...]."

Responda com base nesse trecho e nos argumentos apresentados ao longo da crônica: Otto Lara Resende defende que cada coisa deve ser olhada como se fosse vista pela última ou pela primeira vez? Justifique sua resposta.

5- Observe que a crônica, embora seja um texto argumentativo, não adota os recursos que normalmente dão objetividade e precisão a esse tipo de texto.Assinale com um X a(s) alternativa(s) correta(s): Que recursos o cronista adota para envolver o leitor e convencê-lo de seu ponto de vista?

( ) Apelo à experiência do leitor.( ) Exemplos tirados da realidade do autor.( ) Citação de experiências de outras pessoas, relacionadas ao tema.( ) Citação clara da opinião de um grande escritor da literatura estrangeira.( ) Referência a uma notícia que saiu no jornal.

6-Comprove sua resposta à questão 5 com trechos retirados do texto.

7- Outro recurso usado pelo cronista para deixar claro seu ponto de vista sobre o tema foi a reiteração de ideias. Em vez de acrescentar mais dados e exemplos, ele se restringiu a apresentar poucos argumentos, porém mais de uma vez, de maneiras diferentes.

a) Copie frases que repetem a ideia a seguir: " O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar".b) Resuma o exemplo dado para ilustrar essa ideia.c) Por meio desse exemplo, o cronista denuncia a consequência desse olhar que não vê, desse olhar banalizado. Qual é essa consequência?d) Ao apresentar a consequência desse olhar banalizado, o cronista usa um termo que revela sua opinião sobre esse problema. Destaque esse termo do último parágrafo do texto e explique-o.

8- Em vez de tratar apenas do olhar banalizado, o cronista apresenta, no último parágrafo, alternativas que mostram ao leitor outros modos possíveis de enxergar as coisas. Quais são eles?

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A crônica argumentativa

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