atenção compartilhada e identificação precoce do autismo

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77 Apesar do tema atençªo compartilhada (AC) dominar a literatura nas Æreas da psicologia do desenvolvimento e da psicopatologia, observa-se que as discussıes tŒm sido, em alguma medida, fragmentadas. Isso porque a Œnfase ora Ø colocada na descriçªo dos comportamentos que compıem essa habilidade e dos períodos de sua emergŒncia, ora no seu papel enquanto preditor de comprometimentos futuros no processo de desenvolvimento social. Raramente a habilidade de atençªo compartilhada tem sido discutida a partir dos seus fundamentos epistemológicos, qual seja, das noçıes de intencionalidade e seu papel na comunicaçªo. As razıes pelas quais essa habilidade tem constituído um dos mais fidedignos preditores de problemas no desenvolvimento social, comparada a outros comportamentos sociais (ex: sorriso e contato ocular), tambØm nªo tŒm sido claramente abordadas. Outro aspecto a ser criticado Ø a compreensªo da AC enquanto competŒncia interna da criança, relativamente independente do contexto familiar - questªo crucial no caso de autismo. Atençªo Compartilhada e Identificaçªo Precoce do Autismo Cleonice Bosa 12 Universidade Federal do Rio Grande do Sul Resumo O objetivo desse artigo Ø discutir sobre o desenvolvimento da habilidade de atençªo compartilhada e suas implicaçıes para a identificaçªo precoce do autismo. A revisªo da literatura baseia-se nas teorias do desenvolvimento e em evidŒncias empíricas. Para tanto, parte-se de uma discussªo mais ampla acerca do desenvolvimento da comunicaçªo e do conceito de intencionalidade, na qual inserem-se as principais questıes sobre a habilidade de atençªo compartilhada (AC). Subseqüentemente, focaliza-se a importância da presença da habilidade de AC no repertório comportamental da criança. Argumenta-se que dØficits na habilidade de AC estªo entre os mais fortes preditores de comprometimento do desenvolvimento infantil, em especial do autismo. Palavras-chave: Desenvolvimento sócio-comunicativo; atençªo compartilhada; autismo; identificaçªo precoce. Abstract The aim of this article is to discuss the development of the joint attention ability and its implications for the early identification of autism. The literature review is based on both developmental theories and empirical evidence. For this purpose, a wider discussion about the development of communication and the concept of intentionality is included within which the issues about the joint attention ability are inserted. Subsequently, the importance of the presence of the JA ability in the childs behavioral repertoire is focused. It is argued that the JA deficits are among the strongest predictors of developmental disorders, in particular of autism. Keywords: Socio-communicative development; joint attention; autism; early identification. Joint Attention and Early Identification of Autism O presente trabalho busca sanar, em parte, essas questıes, introduzindo na literatura nacional uma discussªo sobre as dificuldades acerca do conceito de comunicaçªo e sua relaçªo com o de intencionalidade para, em seguida, abordar a questªo da definiçªo de atençªo compartilhada. As formas de expressªo comportamental e períodos de emergŒncia da AC no desenvolvimento típico tambØm serªo apresentadas. Seguem-se discussıes a respeito dos dØficits de AC no autismo, sua relaçªo com o contexto familiar, bem como dos principais modelos teóricos explicativos desses comprometimentos. Desenvolvimento da Comunicaçªo Intencional A primeira tarefa que se apresenta para quem se propıe a discutir acerca do desenvolvimento da comunicaçªo Ø, evidentemente, tratar da questªo da definiçªo do termo. Considerando-se que uma definiçªo œnica e consensual Ø improvÆvel, discute-se a respeito das dimensıes que caracterizariam os processos comunicativos. Comunicaçªo tem sido definida, por exemplo, como uma complexa interaçªo entre dois ou mais indivíduos, envolvendo processos cognitivos, tais como alternância de papØis, percepçªo, codificaçªo e decodificaçªo de sinais (Hargie, Saunders & Dickson, 1987). Tal definiçªo traz, implícita, a noçªo de transferŒncia de informaçªo, seja por meios verbais ou nªo-verbais, e ainda, atrela-se a 1 Endereço para correspondŒncia: Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade, Ramiro Barcelos, 2600, Porto Alegre-RS, 900035-003. Fone: (51) 3309507; Fax: (51) 3304797. E-mail : [email protected] 2 Esse trabalho Ø parte integrante da tese de doutorado da autora, subsidiada pelo CNPq. Versªo preliminar desse manuscrito foi apresentada na XXX Reuniªo Anual de Psicologia, Brasília, 2000. Psicologia: Reflexªo e Crítica, 2002, 15(1), pp. 77-88

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Manual de identificação precoce do autismo

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    Apesar do tema ateno compartilhada (AC) dominara literatura nas reas da psicologia do desenvolvimento e dapsicopatologia, observa-se que as discusses tm sido, emalguma medida, fragmentadas. Isso porque a nfase ora colocada na descrio dos comportamentos quecompem essa habilidade e dos perodos de sua emergncia,ora no seu papel enquanto preditor de comprometimentosfuturos no processo de desenvolvimento social. Raramentea habilidade de ateno compartilhada tem sido discutidaa partir dos seus fundamentos epistemolgicos, qual seja,das noes de intencionalidade e seu papel na comunicao.As razes pelas quais essa habilidade tem constitudo umdos mais fidedignos preditores de problemas nodesenvolvimento social, comparada a outroscomportamentos sociais (ex: sorriso e contato ocular),tambm no tm sido claramente abordadas. Outro aspectoa ser criticado a compreenso da AC enquantocompetncia interna da criana, relativamente independentedo contexto familiar - questo crucial no caso de autismo.

    Ateno Compartilhada e Identificao Precoce do Autismo

    Cleonice Bosa1 2

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    ResumoO objetivo desse artigo discutir sobre o desenvolvimento da habilidade de ateno compartilhada e suas implicaes para aidentificao precoce do autismo. A reviso da literatura baseia-se nas teorias do desenvolvimento e em evidncias empricas.Para tanto, parte-se de uma discusso mais ampla acerca do desenvolvimento da comunicao e do conceito de intencionalidade,na qual inserem-se as principais questes sobre a habilidade de ateno compartilhada (AC). Subseqentemente, focaliza-se aimportncia da presena da habilidade de AC no repertrio comportamental da criana. Argumenta-se que dficits na habilidadede AC esto entre os mais fortes preditores de comprometimento do desenvolvimento infantil, em especial do autismo.Palavras-chave: Desenvolvimento scio-comunicativo; ateno compartilhada; autismo; identificao precoce.

    AbstractThe aim of this article is to discuss the development of the joint attention ability and its implications for the early identificationof autism. The literature review is based on both developmental theories and empirical evidence. For this purpose, a widerdiscussion about the development of communication and the concept of intentionality is included within which the issuesabout the joint attention ability are inserted. Subsequently, the importance of the presence of the JA ability in the childsbehavioral repertoire is focused. It is argued that the JA deficits are among the strongest predictors of developmental disorders,in particular of autism.Keywords: Socio-communicative development; joint attention; autism; early identification.

    Joint Attention and Early Identification of Autism

    O presente trabalho busca sanar, em parte, essas questes,introduzindo na literatura nacional uma discusso sobre asdificuldades acerca do conceito de comunicao e suarelao com o de intencionalidade para, em seguida, abordara questo da definio de ateno compartilhada. As formasde expresso comportamental e perodos de emergnciada AC no desenvolvimento tpico tambm seroapresentadas. Seguem-se discusses a respeito dos dficitsde AC no autismo, sua relao com o contexto familiar,bem como dos principais modelos tericos explicativosdesses comprometimentos.

    Desenvolvimento da Comunicao IntencionalA primeira tarefa que se apresenta para quem se prope

    a discutir acerca do desenvolvimento da comunicao ,evidentemente, tratar da questo da definio do termo.Considerando-se que uma definio nica e consensual improvvel, discute-se a respeito das dimenses quecaracterizariam os processos comunicativos.

    Comunicao tem sido definida, por exemplo, comouma complexa interao entre dois ou mais indivduos,envolvendo processos cognitivos, tais como alternnciade papis, percepo, codificao e decodificao de sinais(Hargie, Saunders & Dickson, 1987). Tal definio traz,implcita, a noo de transferncia de informao, sejapor meios verbais ou no-verbais, e ainda, atrela-se a

    1 Endereo para correspondncia: Instituto de Psicologia, Departamentode Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade, Ramiro Barcelos,2600, Porto Alegre-RS, 900035-003. Fone: (51) 3309507; Fax: (51) 3304797.E-mail: [email protected] Esse trabalho parte integrante da tese de doutorado da autora, subsidiadapelo CNPq. Verso preliminar desse manuscrito foi apresentada na XXXReunio Anual de Psicologia, Braslia, 2000.

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    outra questo ainda mais fundamental se essa transmissoocorre intencionalmente. Um aspecto ressaltado por Bates(1976) que nem todo comportamento (verbal e no-verbal) comunicativo, defendendo a tese de que o conceito deinteno que o caracteriza como tal. Essa autora trabalha coma ampla noo de que intencionalidade est associada persistncia em alcanar um objetivo, embora no possamosesquecer que a complexidade da questo da definio deinteno remonta idade mdia. No h, conforme Messer(1994), concordncia a respeito da incluso do conceito deintencionalidade como pr-requisito para a comunicao.Isso ocorre principalmente em relao questo dapercepo da intencionalidade pelo receptor da informao,que pode tomar uma das duas formas, com diferentesramificaes, detalhadas a seguir.

    A primeira forma envolve a transmisso da informaoque pode ser comunicada intencionalmente: e, a) percebidacomo intencional e acurada (ex: beb chora e olha para amamadeira me d a mamadeira para o beb bebacalma-se); b) percebida como intencional, mas noacuradamente (ex: duas pessoas cochichando sobre umasituao qualquer e uma terceira percebendo o fato comose ela fosse o objeto do cochicho); c) percebida, mas noacuradamente nem como intencional (ex: interpretar umato deliberado como um acidente); e, d) absolutamente nopercebida (ex: beb aponta para um objeto e olha para oadulto adulto ignora o beb).

    A segunda forma seria a de que pode haver umacomunicao no-intencional, porm percebida ou nocomo intencional. Por exemplo, movimentos do corpoou o jeito de olhar podem fornecer informaes sobreo pensamento e estado afetivo de uma pessoa sem quehaja inteno de comunicar tais pensamentos ou emoes(pelo menos conscientemente!). Outro exemplo, seria ochoro de recm-nascidos, o qual, apesar de no envolverinteno de comunicar (para alguns tericos, mas nopara todos; ver discusso abaixo), fornece aos seuscuidadores informaes fundamentais a respeito dasnecessidades do beb.

    Enquanto para alguns tericos (ex: Kaye, 1982; Vygotsky,1978), as aes iniciais do beb no envolvem qualquerinteno para comunicar-se, mas so interpretadas pelosadultos como sendo intencionais, para outros (ex:Trevarthen, 1979), a intencionalidade seria uma capacidadeinata que j existiria de forma latente no repertriocomportamental do beb. Ento, conclui-se que na raiz dequalquer definio de comunicao intencional encontram-se pressupostos epistemolgicos diferentes, enfatizando ascapacidades inatas ou ambientais como determinantes dodesenvolvimento social e da comunicao.

    Importantes contribuies nessa questo provm dasconcluses de Fogel (1993) e Bruner (1990/1997). O

    primeiro critica o reducionismo existente ao tratar-se ainterao social como um conjunto de respostas discretasa eventos prvios igualmente discretos. Nessa mesma linhade raciocnio, Lyra e Seidl de Moura (2000) chamam aateno para a natureza auto-organizadora dos sistemasde desenvolvimento, privilegiando os momentos deestabilidade e mudana que emergem e desenvolvem-sena comunicao inicial me-beb e a importncia decompreender-se esse processo inserido num contextosciocultural. Dessa forma, depreende-se que a interaosocial apenas parcialmente planejada, caracterizando-se mais como um sistema aberto sujeito a contnuasmudanas e adaptaes durante o processo interativo. Domesmo modo, os estudos realizados por Lyra (2000) ePantoja (2000) ressaltam que ambos os parceiros da dademe-beb esto implicados no processo de interao, o qualcaracteriza-se por ser um sistema dinmico: os bebsfornecendo pistas sobre seus estados e as mes apropriando-se destas informaes e tomando-as como guias para o seuprprio comportamento.

    Bruner (1990/1997), por outro lado, faz uma tentativade integrao das duas formas (biolgicas e culturais) deconceber o desenvolvimento dos processos comunicativos,embora privilegie o papel da cultura, em particular:

    o substrato biolgico, os assim chamados universais danatureza humana, no causam a ao; sobre ela exercem, nomximo, uma restrio, ou para ela constituem uma condio(....) a cultura e a busca por significado dentro da cultura soas causas adequadas da ao humana (p. 28).Uma das linhas de argumentao em favor do

    interacionismo na abordagem do comportamento socialvem da etologia. Nesse enfoque, a discusso de umadicotomia entre inato e adquirido perde o sentido, sendoenfatizada a importncia da focalizao dos processos atravsdos quais os fatores genticos e ambientais interagem eexercem seus efeitos (Carvalho, 1998).

    Esgotada a discusso acerca dos determinantes docomportamento scio-comunicativo, deflagra-se oproblema de como identificar a intencionalidade dacomunicao. Sendo inteno um constructo (noobservvel), aparentemente fcil inferi-la - o difcil contextualiz-la: como e quando ocorre. Conforme Messer(1994), igualmente rduo, atribuir-lhe um ponto deemergncia no desenvolvimento, identificando sinais de suaexpresso, cujas mudanas so internas e dependentes daevoluo nos modos de pensar da criana. Acrescentaramosa isso, a dependncia das particularidades da interao decada dade e do contexto sociocultural em que ela estinserida, a exemplo do que Seidl de Moura e Ribas (2000)fizeram.

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    Na tentativa de discutir o problema da identificaode intencionalidade recorreu-se ao modelo de Bates,Camaioni e Volterra (1979) as quais propuseram umaperspectiva comportamental para o estudo docomportamento intencional. Segundo essas autoras, paraque um comportamento seja considerado comunicativo, necessrio que resulte em mudanas previsveis nocomportamento dos outros. Dessa forma, durante ainterao adulto-criana, o comportamento intencionalpoderia ser inferido com base em quatro respostasobservveis: 1) a existncia de um contexto indicando queuma meta desejada pela criana; 2) algum movimento ousom produzido pela criana, incluindo alternncia do olharentre o objeto e o adulto; 3) persistncia do comportamentoat que a meta inferida seja alcanada; 4) comportamentoconsumatrio (confirmando a meta que a criana tinhaem mente). As autoras basearam-se nas idias do filsofoAustin (1962) em sua teorizao sobre o desenvolvimentoda comunicao intencional. Esse autor sugeriu quealgumas sentenas no so apenas descries de eventosmas eventos em si mesmas, isto , atos que so executadoscada vez que uma sentena empregada (por exemplo,fazer perguntas, afirmaes, promessas, etc.). Eleidentificou trs tipos de atos de fala: locues, ilocuese perlocues. Coube ao filsofo Searle (1965) focalizar,mais detalhadamente, a distino entre atos locucionriose ilocucionrios, propondo uma diviso de toda sentenaem duas partes: o contedo proposicional (locuo) e operformativo (fora ilocucionria).

    Partindo, ento, da terminologia empregada por essesfilsofos, Bates e colaboradores (1979) propuseram umestudo longitudinal sobre o desenvolvimento dosperformativos durante o primeiro ano de vida da criana.As autoras concentraram seus estudos em doisperformativos em especial: o imperativo e o declarativo.Dessa forma, gestos indicativos possuem uma funoprotodeclarativa, isto , servem para fazer comentrios arespeito do mundo circundante a outras pessoas, enquantoos comportamentos de pedido, ao contrrio, servem a umpropsito protoimperativo gestos para obter assistncia. Asautoras sugeriram estgios para o desenvolvimento dacomunicao intencional (perlocucionrio, ilocucionrio elocucionrio), buscando investigar, em particular, os pr-requisitos cognitivos para a passagem de um estgio a outro,com base na epistemologia gentica piagetiana, maisespecificamente, nos seis estgios do perodo sensrio-motor.

    As autoras explicaram as locues em termos depronncia de sons e construo de proposies.Conseqentemente, uma locuo requer o aparecimento dafala, sem contudo revestir-se de comunicao intencional.

    O ato ilocucionrio, ao contrrio, requer o uso intencionalde sinais convencionais na execuo de funes socialmentereconhecidas (ex: dar um comando, indicar a presenade objetos ou eventos), os quais podem vir acompanhadosde gestos (ex: apontar). Por outro lado, no atoperlocucionrio, ocorre a emisso de um sinal, o qual exerceum impacto no ouvinte, independente da inteno doemissor (ex: o choro de um beb faminto e seu impacto name dar o leite).

    As autoras argumentaram que a comunicao intencionaldistingue-se de outras respostas na medida em que envolvea coordenao entre gesto e olhar, em direo a umparceiro. As suas observaes sobre a produo degestos, tais como apontar, alcanar, mostrar e dar objetos,auxiliaram na teorizao a respeito do desenvolvimentoda comunicao intencional. O interessante do trabalhodessas autoras a natureza dessa teorizao, integrandoos achados aos de outras reas como a psicanlise e aetologia. Citam os trabalhos de Spitz (1968) e Bowlby(1969) ao abordarem o carter inato de determinadoscomportamentos dos bebs (ex: sorriso) na manutenoda interao social. Porm, deixam clara sua posioepistemolgica ao creditar o desenvolvimento dacomunicao de imperativos e declarativos aoestabelecimento de uma relao meio-fim, correspondenteao estgio 5 do perodo sensrio-motor piagetiano. Dessaforma, para as autoras, no haveria evidncia de comunicaointencional anterior aos nove-dez meses de idade. Contudo,so cautelosas ao afirmarem que isso no significa que nohaja comunicao antes dessa poca, mas sim que o bebno estaria ciente do propsito convencional dos seus sinais,uma vez que seria o adulto quem atribuiria intencionalidades aes do beb: Apesar de no encontrarmos evidnciade comunicao intencional nos primeiros quatro mesesde vida, ns testemunhamos o desenvolvimento daintencionalidade em geral, em direo a metas tanto sociaisquanto no sociais (Bates e cols., 1979, p. 118).

    Cada vez mais, tem se buscado enfatizar as abordagenspragmticas do desenvolvimento da linguagem, isto , opapel do comportamento verbal e no-verbal no atocomunicativo, levando-se em conta o contexto social emque a comunicao ocorre (Baron-Cohen, 1988). Osprincpios comportamentais aplicados aos constructos noobservveis geraram muitos estudos empregando ametodologia de observao sistemtica (Carpenter,Mastergeorge & Coggins, 1983; Cirring & Rowland,1985). Isso possibilitou a investigao de questespertinentes aos aspectos do desenvolvimento da interaosocial, comunicao intencional e aquisio de linguagem, ede como esses processos se inter-relacionam. Por exemplo,Lord e Magill (1989) afirmaram que a capacidade de

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    compreenso verbal em bebs desenvolve-se a partir demltiplas fontes de informao, incluindo a expressofacial dos cuidadores, direo do olhar, gestos, contextoafetivo e situacional, conferindo s palavras significadosbem antes delas se tornarem verdadeiros conceitos.

    Bates (1976) salientou que um dos primeiros passosem direo competncia comunicativa a tarefa dospais de atribuir significado ao comportamento do beb.Isso consistente com a posio de Vygotsky (1978) deque as aes iniciais do beb no envolvem inteno de secomunicar. Tais aes podem ser uma resposta involuntria(chorar), outra menos randmica (levantar os braos) oumesmo ter um propsito (alcanar um objeto). Entretanto,podem ser interpretadas pelos cuidadores como sendointencionais. interessante assinalar que essa noo consistente com o conceito de sensibilidade materna(Ainsworth, Blehar, Waters & Wail, 1978) e enquadramento(framing) parental (Kaye, 1982), os quais envolvem a noode que a comunicao cuidador-beb depende mais dahabilidade do adulto em perceber os desejos enecessidades deste do que das intenes do beb -posio que contrasta com as perspectivas inatistas decomunicao (Trevarthen, 1979). Esse ltimo autor parteda premissa de que as habilidades sociais e cognitivasdesenvolvem-se no somente a partir da interao com omeio mas como resultado da maturao de capacidadesinatas. Em outras palavras, intencionalidade deriva damotivao bsica de se relacionar com as pessoas desde onascimento (intencionalidade latente) e desenvolve-se nocontexto das fases didicas e tridicas da comunicao.

    A Fase Didica da ComunicaoPara Trevarthen (1979), o perodo denominado de

    subjetividade primria corresponde quele no qual oolhar e as expresses afetivas do beb so seletivamentedirigidos e integrados ao comportamento social daspessoas (intersubjetividade). A comunicao envolveinterao face-a-face e as trocas afetivas entre o beb eseus cuidadores precedem a atividade gestual. Evidnciasdessas idias provm de estudos acerca da prefernciade recm-nascidos pela face humana a objetosinanimados (Bushnell, Sai & Mullin, 1989; Walton, Bower& Bower, 1992). Esse perodo seguido por uma fasena qual objetos podem ser compartilhados com pessoas(trocas tridicas), a qual ser discutida no prximo item.

    Independentemente das controvrsias em torno dessasposies, assinala-se que o movimento do beb emdireo a formas mais sofisticadas de comunicao resultado reconhecimento do mesmo de que suas aes tmalgum efeito nos outros, isto , tm poder comunicativo.Nesse aspecto compartilhamos a idia de diferentes

    autores ao postularem que o desenvolvimento dacomunicao intencional, por parte do beb, decorre deuma crescente compreenso do outro como um agenteintencional, isto , pessoas que: a) possuem metas e agemativamente para atingi-las (Carpenter, Nagell & Tomasello,1998); b) so capazes de compreender que nossas aestm igualmente um propsito, seja este o de solucionarum problema (agentes de ao) ou de compartilharexperincias com relao ao meio (agentes de contemplao;Hobson, 1993); c) interessam-se e prestam ateno a coisasa seu redor. Inicialmente, o beb impelido a seguir ointeresse que as pessoas expressam pelo meio circundante.Posteriormente, ele prprio passa a chamar a ateno dosoutros para esses eventos ou para si prprio (Scaife & Bruner,1975), constituindo a fase tridica da comunicao.

    A Fase Tridica da ComunicaoA fase tridica da comunicao emerge no segundo

    semestre de vida do beb (Bates e cols., 1979; Carpentere cols., 1998; Paul & Shiffer, 1992; Scaife & Bruner, 1975).Consiste, primordialmente, em comportamentos no-verbais (gestos e vocalizaes) para pedir ou rejeitarobjetos/aes e comentrios acerca do prprio self ouobjetos/eventos. Enfatiza-se que tais comportamentosso acompanhados pelo desenvolvimento afetivo, o qualprogride de simples expresses de sorrisos ou distress paradiferentes emoes, tais como medo, ira e tristeza. Taldiferenciao na expresso afetiva auxilia a interao dobeb com o meio, pois permite a comunicao de estadosinternos.

    No final do primeiro ano de vida, o beb passa autilizar palavras para expressar intenes. No perodo quevai dos 18 aos 24 meses, expande-se o leque de intenesexpressadas, culminando com a capacidade discursiva.Tal habilidade manifesta-se na forma de, por exemplo,solicitar informaes e mostrar-se consciente acercadas verbalizaes do outro (Carpenter e cols, 1998).

    Diferentes estudos demonstraram que existe umaseqncia no desenvolvimento da comunicao(Carpenter e cols., 1983; Cirring & Rowland, 1985;Wetherby & Prutting, 1984). A capacidade para rejeitarobjetos e atividades (protesto) apareceria primeiro seguidapela habilidade em solicitar assistncia para a realizaode aes (e aps, objetos). Por ltimo, surgiria acapacidade para chamar a ateno para o self e para aspropriedades dos objetos ou eventos a seu redor.

    Durante a fase tridica da comunicao, trs categoriasde comportamentos foram identificadas (Mundy &Sigman, 1989): 1) Afiliao, a qual consiste na utilizaode comportamentos no-verbais e de uso de objetos paraeliciar e manter o foco de ateno no prprio self (ex:

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    jogos sociais como esconde-esconde, rolar a bola para oparceiro, etc.); 2) Regulao, a qual consiste decomportamentos de pedido para buscar assistncia quanto aquisio de objetos ou execuo de tarefas (ex: acionarum brinquedo); e, 3) Ateno compartilhada, a qual envolvea coordenao da ateno entre parceiros sociais comfins de compartilhamento da experincia com objetos/eventos, a qual ser detalhada a seguir.

    Ateno Compartilhada A habilidade de ateno compartilhada tem sido

    definida como os comportamentos infantis os quaisrevestem-se de propsito declarativo, na medida em queenvolvem vocalizaes, gestos e contato ocular paradividir a experincia em relao s propriedades dosobjetos/eventos a seu redor (Mundy & Sigman, 1989).

    Bruner (1978) argumentou que os jogos sociais tmum papel importante no desenvolvimento da habilidadede compartilhar interesses. Ele salientou que o beb, aotomar parte de uma mesma atividade repetidamente,passa a entender as demandas e as formas apropriadasde comunicao (culturalmente determinadas), requeridaspor uma determinada atividade. O autor chama a atenopara a natureza ritualista dessas atividades, assim comode outras que fazem parte do cotidiano do beb (situaesde alimentao, higiene, etc.) que, por sua repetiofreqente, facilitariam o desenvolvimento da comunicaointencional.

    Tanto as teorias da meta-representao dodesenvolvimento social quanto as afetivas (Baron-Cohen &Bolton, 1993; Hobson, 1993) enfatizam o papel da atenocompartilhada para o desenvolvimento da capacidadesimblica. Durante atividades conjuntas, as crianas comeama notar que outras pessoas tm reaes diferentes das delafrente s mesmas situaes, o que equivale a dizer que elasdescobrem que as pessoas conferem diferentes significadosaos objetos/eventos que as circundam. Em outras palavras,a criana passa a perceber que ela pode atribuir mais do queuma representao a uma entidade e cada vez mais passa atrocar com o parceiro tais descobertas, utilizando-se dediferentes canais de comunicao. De fato, uma srie deestudos investigando o papel da qualidade da atenocompartilhada para o desenvolvimento da linguagem temapontado para a importncia da relao entre esses doisdomnios (Akhtar & Tomasello, 1996; Nelson, 1973;Tomasello & Farrar, 1986).

    Para Butterworth e Jarret (1991) o olhar umadimenso especial do comportamento social na medidaem que se torna um indicador de interesse e ateno paraum observador. A monitorizao do olhar refere-se habilidade da criana em seguir a direo do olhar ou a

    tendncia em alternar o olhar entre a pessoa e o objetode interesse como, por exemplo, um brinquedo queprecisa ser acionado, mecanicamente. Durante o primeiroano de vida da criana, a habilidade de ateno compartilhadaemerge como resultado da monitorizao do olhar entreme e beb. Aos seis meses de idade os bebs so capazesde seguir o olhar da me apenas dentro do seu prpriocampo visual, porm aos 18 meses, esse alcance visualamplia-se.

    O emprego de gestos inclui tanto a produo quantoa compreenso de gestos produzidos por outros, durantea ocorrncia de ateno compartilhada. Apontar, porexemplo, emerge como uma funo de compartilhar aateno e interesse com o parceiro. Franco e Butterworth(1991, citado em Messer, 1997) elaboraram essa posioatravs da utilizao de uma seqncia de desenvolvimentoda funo comunicativa do gesto de apontar e a suaprogressiva coordenao com a monitorizao do olhar.Os autores reportaram que aos 12 meses de vida, ascrianas, tipicamente, olham para o parceiro, aps apontar.Aos 14 meses, o ato de apontar acompanha o olhar parao parceiro e, aos 16 meses, o olhar precede o gesto,sugerindo progressos na habilidade de compreender aimportncia de tal gesto ao direcionar o olhar do parceiropara o seu prprio foco de interesse.

    Apontar para brinquedos que esto a uma certadistncia no uma atividade comum at o final doprimeiro ano de vida. Os dados que confirmam essaposio provm de vrios estudos (Franco &Butterworth, 1991, citado em Messer, 1997; Messer, 1994;Schaffer, 1984). Um dos estudos investigando a habilidadeda criana em seguir o gesto de apontar feito pela me,mostrou que enquanto bebs de nove meses tinhamcondies de seguir apenas informaes simples, taiscomo deslocar o olhar da mo materna para o objeto,os de 14 meses podiam localizar um objeto seguindomovimentos mais complexos dos gestos maternos(Franco & Butterworth).

    Ainda com relao ao gesto de apontar, um dosresultados mais importantes do estudo de Bates ecolaboradores (1979) ao investigar a produo de gestosindicativos como apontar, alcanar, mostrar e dar objetos,em um estudo longitudinal, foi o de que o gesto deapontar foi um preditor da capacidade lingsticasubseqente.

    Paul e Shiffer (1992), ao estudarem os comportamentosde ateno compartilhada, contemplando maisespecificamente a fala, em crianas com desenvolvimentotpico, encontraram que a ateno compartilhada consistiaem comentrios e perguntas para obter informaessobre as propriedades dos objetos ou eventos. Contudo,

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    a vasta maioria dos atos comunicativa foi comentrios,em contraste com a menor ocorrncia de perguntas paraobter informao/esclarecimento - um resultado similarao encontrado por Wetherby e Prutting (1984).

    A reviso das teorias e pesquisas apresentadas acima,enfocando principalmente a habilidade de atenocompartilhada, sugere que o desenvolvimento dacomunicao e da interao social possui uma naturezaorganizacional, envolvendo os domnios cognitivos,neurobiolgicos e scio-emocionais. Depreende-se dareviso acima, que um distrbio, degenerao ou distorona integrao de processos cognitivos, neurobiolgicos escio-emocionais poderia resultar em patologia, sendo oautismo o exemplo mais intrigante.

    Dficits em Ateno Compartilhada e AutismoO desenvolvimento de indivduos com autismo

    caracterizado por dficits na comunicao e na interaosocial. Entretanto, chama-se a ateno para o retratocaricaturado desses indivduos como sendo no-comunicativos e no-interativos. H evidncias substanciaisde que crianas com autismo engajam-se e respondem ainteraes sociais (Capps, Sigman & Mundy, 1994);apresentam comportamentos afiliativos (ex: carinhos),vocalizao em direo ao parceiro, participao embrincadeiras e comportamentos indicativos de apego(Capps e cols., 1994; Mundy & Sigman, 1989). Apesar de sequestionar a natureza recproca desses comportamentos, asua ocorrncia ajuda a refutar a idia de que uma crianacom autismo evita, persistentemente, a interao social,conforme acreditava Richer (1976). Essas evidnciasapontam para a necessidade de reviso das noesreferentes aos indicadores de autismo ainda no primeirosemestre de vida do beb.

    Lord, Storoschuk, Rutter e Pickles (1993) chamarama ateno para vrios fatores que podem afetar a interaosocial de crianas com autismo, tais como nvel global dedesenvolvimento e o tipo de contexto no qual a interaoocorre (ex: familiar x no-familiar, estruturado xnaturalstico). Tal observao foi confirmada por umoutro estudo que buscou investigar, experimentalmente,a influncia desses fatores no comportamento scio-comunicativo de crianas pr-escolares com autismo(Bosa, 1998). A autora demonstrou que a capacidade deateno compartilhada, apesar de no estar completamenteausente no grupo de crianas com autismo, distinguiu essegrupo dos de controle. A freqncia de AC foisignificativamente mais baixa no grupo com autismo e suavariao dependeu do contexto e do desenvolvimentoglobal da criana. Por exemplo, no contexto em que as meseram instrudas a, deliberadamente, no interagirem com a

    criana (porque estavam ocupadas respondendo umquestionrio), as crianas dos dois grupos de controle (comatraso de desenvolvimento mas sem autismo, e comdesenvolvimento tpico, respectivamente) intensificarama busca pela ateno materna, em contraste com as queapresentavam autismo, as quais permaneceram envolvidasem suas prprias atividades.

    Lord e colaboradores (1993) salientaram que asdiferenas entre grupos de crianas com autismo, quandocomparadas a grupos de controle (ex: Sndrome deDown) so particularmente dramticas quando algumaforma de reciprocidade na interao levada em conta,explicando-se assim, as diferenas na habilidade de atenocompartilhada. J na dcada de 70, Curcio (1978) foi umdos primeiros a documentar o comprometimento nahabilidade de ateno compartilhada, em crianas comautismo. Mais tarde, Wetherby e Prutting (1984)comprovaram a ocorrncia de dficits nessa rea maschamaram a ateno para o fato de que os comportamentoscomunicativos para solicitar assistncia estavam intactos.Loveland e Landry (1986) no apenas confirmaram essesresultados mas tambm demonstraram que talcomprometimento estendia-se capacidade de seguir adireo do olhar de outras pessoas.

    Desde ento, os resultados de vrios estudosexperimentais (Mundy, Sigman & Kasari, 1994; Mundy,Sigman, Ungerer & Sherman, 1986; Robertson, Tanguay,LEcuyer, Sims & Waltrip, 1998) tm apontado para essadireo - comprometimento consistente em medidastanto de produo quanto de compreenso de atosprotodeclarativos (ateno compartilhada), em contrastecom os protoimperativos (busca de assistncia) e outrasformas de comportamento social (afiliativos). Mundy ecolaboradores (1986), ao investigarem os comportamentosscio-comunicativos de crianas com autismo, utilizaramuma situao estruturada de interao criana-experimentador. O grupo de crianas com autismodistinguiu-se dos grupos de controle (deficincia mental eum grupo no-clnico) quanto a capacidade de mostrar/apontar para objetos e quanto ao olhar de referncia (ex:olhar para o parceiro aps completar uma tarefa). Almdisso, o olhar referencial foi o melhor preditor nadiscriminao de crianas com e sem autismo. Dficits nacapacidade de seguir o olhar do experimentador acompanhado ou no por gestos - tambm foramreportados.

    Um outro estudo, conduzido por Mundy ecolaboradores (1994), ao medir o comportamento scio-comunicativo de crianas com autismo, deficincia mentale desenvolvimento tpico, concluiu que o grupo com autismomostrou comprometimentos numa grande variedade dos

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    comportamentos investigados, sendo o mais significativo,o da ateno compartilhada.

    Vrios estudos buscaram compreender ocomprometimento da ateno compartilhada na rea doautismo, examinando, por exemplo, formas especficasdo gesto de apontar (Goodhart & Baron-Cohen, 1993)e o papel do olhar nesse processo (Philips, Baron-Cohen& Rutter, 1992). Goodhart e Baron-Cohen encontraramque o gesto de apontar pode ocorrer em situaes no-sociais em oposio ao gesto protodeclarativo, queaparece na ateno compartilhada. Os autores elaborarama noo acerca do papel do olhar no processo de atenocompartilhada ao sugerirem que a compreenso dadireo do olhar funciona como uma importante fontede informao sobre as intenes e metas do parceirodurante a interao, conforme assinalado anteriormente.

    Philips, Baron-Cohen e Rutter (1992) testaram essanoo utilizando-se de uma situao experimental na quala ao do experimentador era, ou ambgua na sua meta(encorajando e bloqueando simultaneamente a ao dacriana em direo a um brinquedo), ou clara (dandoum brinquedo para a criana). Na situao ambgua, ascrianas dos grupos de controle (com desenvolvimentotpico e com deficincia mental, emparelhados em idademental) fizeram contato ocular imediato, enquanto as dogrupo com autismo, no. Para os autores, o olhar imediatopara o adulto teria a funo de busca de informaosobre o significado da ao ambgua do adulto, o queparecia no ocorrer no grupo com autismo.

    A habilidade de ateno compartilhada tanto umpreditor quanto um correlato do desenvolvimento dalinguagem em crianas com autismo. Os dados apoiandoessa viso so provenientes de um estudo (Mundy, Sigman& Kasari, 1994) demonstrando que o comportamentode ateno compartilhada foi um preditor mais poderosodo desenvolvimento da linguagem do que o nvel da falaou QI, obtidos no incio do estudo.

    Retomando-se os estudos apresentados, torna-seevidente, em indivduos com autismo, a dissociao entrea habilidade de usar os mesmos gestos (apontar, mostrar,etc.) para buscar assistncia e para compartilhar a experinciaem relao s propriedades dos objetos/eventoscircundantes. Tal fenmeno levou os pesquisadores ainvestigar os mecanismos envolvidos em ambas asatividades, identificando similaridades e diferenas nessesprocessos. Diante desse panorama, o papel do afetoenquanto um sinalizador de intenes foi ressaltado.

    Bruner (1981) reconheceu que as diferenas na atividadeno-verbal em situaes de busca de assistncia ou decompartilhamento de experincias poderiam ser identificadascom base em algum marcador afetivo. Essa predio

    foi investigada, experimentalmente, por Mundy, Kasari eSigman (1994), ao examinarem a relao entre a expressodo afeto e da ateno compartilhada em crianas comdesenvolvimento tpico. A freqncia e a durao decomportamentos de pedido e de ateno compartilhadaforam medidas em crianas de 20 meses de idade. Sinaisafetivos faciais (ex: sorriso) foram codificados,independentemente. Os resultados mostraram que aexpresso de afeto positivo estava mais associada aocomportamento de ateno compartilhada do que aode pedido. Da mesma forma, Bosa (1998) encontrouque a freqncia de sorrisos, durante uma sesso deinterao, no distinguiu crianas com autismo das dosgrupos de controle. Isso s ocorreu quando a co-ocorrncia de sorriso com o comportamento de atenocompartilhada foi levada em conta, mesmo controlando-se a baixa freqncia deste ltimo comportamento, nogrupo com autismo. O dficit de ateno compartilhadaencontrado em grupos de crianas com autismo pareceenvolver, ento, distrbios em processos tanto cognitivosquanto afetivos, sendo que diversos estudos corroboraramessa noo (Dawnson & Levy, 1989; Snow, Hertzig &Shapiro, 1987; Trad, Bernstein, Shapiro & Hertzig, 1993).

    Considerando que a habilidade de ateno compartilhadaemerge no segundo semestre de vida do beb e as evidnciasde que essa capacidade tem distinguido grupos de crianascom autismo daqueles com outros transtornos dodesenvolvimento, justifica-se a sua posio como umimportante e fidedigno indicador precoce de autismo. Issono significa que no haja outros indicadores de possveiscomprometimentos, aparentes j nos primeiros meses.

    Um estudo utilizando a anlise de vdeos caseiros duranteo primeiro semestre de vida do beb, os quais foram,posteriormente, diagnosticados como apresentandoautismo, identificaram comprometimentos quanto aocontato ocular, sorriso e balbucio, durante a interaocom suas mes (ex: Sparling, 1991). Isso ocorreu mesmona ausncia de quaisquer problemas observveis quantoao estilo interativo materno, ao contrrio dos achadosdo estudo de Massie (1978), por exemplo, o qualdemonstrou que mes de bebs mais tarde diagnosticadoscomo autistas apresentaram menor freqncia decontato ocular e toque fsico, comparadas s mes debebs com desenvolvimento tpico. Para Trevarthen,Aitken, Papoudi e Robarts (1996) esses comportamentospodem ser considerados como reativos ao perfilidiossincrtico dos seus bebs.

    Um dos nicos estudos brasileiros a investigar ainterao inicial entre um beb com suspeita de autismoe sua me foi o de Nogueira, Seabra e Seidl de Moura(2000). As autoras compararam as interaes de um beb

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    de 1 ms de idade, cujo desenvolvimento, mais tarde,levou suspeita de autismo, com a de um beb comdesenvolvimento tpico. Os achados foram de que o beb,com suspeita de autismo, apresentou menor freqnciade contato visual, comparado ao outro beb e nenhumepisdio de interao com sua me, ao contrrio da outradade.

    Um aspecto importante que dificulta a generalizaodos achados relativos ao primeiro semestre de vida que um tero das crianas com autismo no apresentaindicadores comportamentais de comprometimentos nodesenvolvimento nesse perodo, seja atravs deobservao de vdeos domsticos ou de entrevistas comos pais (Trevarthen, 1996). Outra questo a carncia deestudos empregando grupos de controle uma vez queproblemas de interao face-a-face ocorrem tambm,por exemplo, em bebs com deficincia sensorial oumental, filhos de mes com depresso severa ou outracondio psiquitrica (esquizofrenia ou psicose puerperal)ou em privao social (Rutter & Lord, 1994; Trevarthen,2000; Trevarthen e cols., 1996).

    Dficits em Ateno Compartilhada e Autismo:Principais Modelos Psicolgicos

    Os modelos explicativos de Baron-Cohen (1995),Mundy e Sigman (1989) e Hobson (1993) sobre ocomprometimento nas reas afetivas e de atenocompartilhada representam uma grande contribuio aonosso entendimento acerca dos processos envolvidos narelao entre esses dois domnios do comportamento. Aprincipal diferena entre esses modelos reside na nfasedada aos sistemas afetivos ou cognitivos, na explicaodo comprometimento na habilidade de atenocompartilhada, estabelecendo-se uma espcie de primaziade um sistema sobre outro.

    Enquanto o modelo de Baron-Cohen (1995) concentra-se nos aspectos cognitivos da ateno compartilhada, taiscomo ateno, meta e inteno - e a relao desses com oolhar em direo ao parceiro - os outros dois modelos(isto , o de Mundy e Sigman, e o de Hobson) ressaltamos processos afetivos. Apesar dos dois modelos afetivosapresentarem muitos aspectos em comum, diferenastambm podem ser identificadas, seja na expresso oupercepo do afeto. Essas questes sero re-examinadas aseguir, iniciando-se pelas idias de Baron-Cohen.

    O modelo desenvolvido por Baron-Cohen (1995)postula que o comprometimento na habilidade de atenocompartilhada parte de um prejuzo no mecanismodenominado SAM (Shared Attention Mechanism), o qualpermite que a criana determine (e cheque) se ela prpriae o parceiro esto olhando para o mesmo objeto/evento.

    Esse mecanismo, combinado com o de Detector deIntencionalidade (Intentionality Detector ID) e o de Detectorde Direo do Olhar (Eye Direction Detector EDD)constituem os fundamentos da Teoria da Mente habilidade para atribuir estados mentais ao self e ao outroe de prever o comportamento com base nesses estados(Baron-Cohen & Bolton, 1993; Baron-Cohen, Leslie &Frith, 1985). Baron-Cohen (1995) postulou que o SAMpode ser implementado atravs de diferentes modalidades(viso, tato ou audio), recebendo informaes doEDD, ainda que o canal visual seja o mais fcil de serutilizado para essa tarefa. Isso explicaria o motivo peloqual crianas com deficincia visual compensariamdificuldades nessa rea, utilizando-se de outros canaissensoriais na atividade de ateno compartilhada (porexemplo, apalpando o objeto a ser compartilhado).Entretanto, crianas com autismo aparentementedemonstram dificuldades no uso de qualquer uma dessasmodalidades sensoriais. Baron-Cohen (1995) ilustra bemessa noo ao descrever o caso de uma criana comdeficincia visual severa que ao ser solicitada por sua mea deix-la ver o carrinho com o qual brincava, acenoucom o mesmo na mo, assim como empregou palavrascomo veja ou olhe ao chamar a ateno de sua mepara os brinquedos. Isso sugere que essas crianas parecemcompreender que ver significa explorar um objeto,perceptualmente.

    Em relao s habilidades protoimperativas as quaistendem a no se apresentar como problemticas em setratando de autismo Baron-Cohen (1995) esclarece quetais comportamentos no envolvem ateno compartilhadapor serem primordialmente instrumentais e,aparentemente, no indicarem um desejo de compartilharinteresse com o parceiro pelo simples prazer docompartilhamento.

    Quanto s teorias afetivas, Hobson (1993) atribui ocomprometimento na habilidade de ateno compartilhadae na expresso do afeto em crianas com autismo, adificuldades quanto ao conceito a respeito da mente deoutras pessoas e conscincia do prprio self, o que porsua vez, decorre da inabilidade de se relacionar com outraspessoas. Para o autor, mecanismos inatos operam nosentido de permitir atitudes interpessoais coordenadasentre o beb e os outros de tal modo que o smbolo(linguagem verbal e no-verbal) envolvido no processode compartilhamento, torna-se possvel.

    O amlgama da teoria afetiva de Hobson (1993) acapacidade do beb em perceber e reagir s atitudesexpressas pelos outros, atravs do corpo. Tal processopermite a emergncia da capacidade de compreenderpessoas com mentes atravs do que ele chama de

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    coordenao afetiva uma habilidade que essencialpara o engajamento interpessoal. Essa experincia permiteao beb compreender de que forma as pessoas diferemde coisas. Ao fazer isso, o beb desenvolve umaconscincia de que as pessoas tm atitudes em relao aoambiente semelhantes s dele, ao mesmo tempo em quepercebe que as pessoas conferem significados diferentes paraas mesmas situaes noo similar a proposta por Bruner(1981) ao descrever a importncia dos jogos sociais, durantea interao me-beb. Contudo, para Hobson, a nfase na natureza afetiva dessas atitudes a qual toma a forma deexpresses facial, vocal e gestual e na capacidade inata dobeb para perceber significado emocional nessasexpresses, tal qual sugerido por Kanner (1943).

    Buscando uma alternativa integrativa, Mundy e Sigman(1989) propuseram um modelo que considera ahabilidade de ateno compartilhada como um reflexode processos tanto afetivos quanto cognitivos. Dficitsna rea de ateno compartilhada derivariam dedificuldades na capacidade para dividir e comparar asexperincias afetivas com outras pessoas em relao aum terceiro referente (objeto/evento ou outra pessoa).Tal habilidade permite criana desenvolver o que osautores denominam de esquemas de ao social a partirda interao face-a-face. Esse esquema baseia-se narepresentao do afeto (do self e dos outros) que se dariaatravs da comparao das experincias internas dosoutros com as expresses afetivas que as acompanham.Tais experincias so ento contrastadas com as daprpria criana, no mesmo tipo de situao. Ou seja, ainformao proprioceptiva (ex: movimentos dosmsculos faciais), eliciada por um referente externo (ex:jogos sociais), comparada com a informao afetivapercebida nos outros em relao ao mesmo referente. Atroca de sorrisos durante os chamados jogos sociais ilustraessa noo. Nesse sentido, o processo de comparaodas experincias afetivas do prprio self com o do outro o ponto central da abordagem proposta por essesautores e no a percepo do afeto per se, enfatizada nateoria afetiva de Hobson (1993).

    Mundy e Sigman (1989) especularam que esse processo rudimentar nos seis primeiros meses de vida do beb. Astrocas afetivas em relao a objetos/eventos constituemos alicerces sobre os quais se desenvolver a comunicaono-verbal tridica habilidade que emerge no perodoseguinte do desenvolvimento do beb, expandindo a suacapacidade scio-cognitiva. Esses autores explicam atransio desse processo rudimentar para as habilidadesde representao mais complexas por uma referncia crescente habilidade do beb em integrar representaesdo seu prprio afeto com as dos outros um processosimblico por si s, segundo esses autores.

    Investigaes experimentais a respeito dodesenvolvimento da ateno compartilhada e do afeto emcrianas com autismo (Dawson & Lewy, 1989; Mundy ecols., 1986) tm identificado respostas afetivas atpicas diantede estimulao, incluindo a social - mais especificamente,distrbios na auto-regulao da reao emocional (arousal),assim como, um comprometimento no desenvolvimentoda capacidade simblica. Essa noo j havia sidodiscutida por Hutt e Hutt (1968) e mais tarde expandidapor Ornitz e Ritvo (1976). A caracterstica marcante dessasteorias a atribuio dos dficits sociais a dificuldadesem modular experincias sensoriais e perceptivas. Emoutras palavras, postula-se que a criana com autismoexperienciaria um estado crnico de superexcitao(overarousal) (Hutt & Hutt) ou uma flutuao entre estadosde hipo e hiperexcitao (Ornitz & Ritvo) que a levaria aapresentar reaes emocionais intensas, averso fixaodo olhar e retraimento social, enquanto mecanismos dereduo dos altos nveis de excitao. A conseqnciaseria o bloqueio ao desenvolvimento das relaes sociais,mais especificamente, da habilidade de atenocompartilhada.

    Concluindo, os modelos apresentados acima, ressaltama importncia de ambos os sistemas (afetivos e cognitivos)envolvidos na ateno compartilhada, numa tentativa decompreender os mecanismos implicados nodesenvolvimento dessa capacidade ou, ao contrrio, nalimitao desse processo. Apesar de ocorrerem divergnciasquanto nfase na primazia de um sistema sobre o outro(afetivo ou cognitivo), a noo de que ambos os sistemasso elementos importantes do desenvolvimento social notem sido desafiada.

    Ressalta-se que a discusso acima centrou-se apenasnos modelos apresentados por serem as abordagenspsicolgicas mais amplamente debatidas na literaturapertinente. Entretanto, chama-se a ateno para a existnciade outros modelos como o neuropsicolgico e doprocessamento da informao os quais focalizam a relaoentre crebro e comportamento social, como por exemplo,funo executiva e ateno compartilhada (Bosa, 2001).

    Uma crtica aos modelos neuropsicolgicos dizrespeito nfase na habilidade de ateno compartilhadacomo um processo dependente apenas de competnciasinternas da criana. Postula-se que, particularmenteimportante, a compreenso do desenvolvimento dacomunicao intencional inserido num contexto deinterao social. Num trabalho anterior j se chamou aateno para o fato de que ambos os elementos de umadade contribuem para a qualidade da interao (Bosa &Piccinini, 1994). Um aspecto a ser ressaltado, a importnciade focalizar-se no somente as competncias sociais do

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    beb, mas tambm os fatores maternos que facilitam ou,ao contrrio, inibem o desenvolvimento da linguagem.Por exemplo, diferentes estudos tm investigado a relaoentre o estilo de interao materna e as competnciaslingsticas do beb (Akhtar, Dunham & Dunham, 1991;Nelson, 1973), demonstrando que estratgias maternasque visam o engajamento da criana em atividades e quepartem do interesse do prprio beb (em oposio aum estilo mais diretivo, focalizado no interesse da prpriame) tm associao com o desenvolvimento dovocabulrio. Chama-se a ateno para a necessidade de levar-se em conta aspectos do cuidador, como por exemplo,estratgias de interao e sensibilidade aos sinais infantis. Dessaforma, sugere-se, por exemplo, a investigao da relaoentre apego cuidador-criana e comunicao intencionalem crianas com autismo, a exemplo do que Bates ecolaboradores (1979) fizeram em crianas comdesenvolvimento tpico. No caso de familiares de indivduoscom autismo, a literatura repleta de evidnciasdemonstrando o estresse familiar (em especial depressomaterna) e a falta de uma rede de apoio social a essasfamlias, o que poderia contribuir para dificuldades quanto sensibilidade em perceber os sinais infantis, durante ainterao. Por exemplo, Bosa (1998) investigou a relaoentre ateno compartilhada e estresse materno, encontrandoque apesar de mes de crianas com autismo apresentaremindicadores de estresse mais altos que as mes dos gruposde controle (em especial distrbios psicossomticos), noencontrou associao positiva entre esses dois domnios. Ouseja, filhos de mes com nveis mais altos de estressemostraram habilidades de ateno compartilhada tantoquanto filhos de mes com escores mais baixos emmedidas de estresse materno, mesmo quando o tipo depatologia da criana foi controlado. Entretanto, artefatosmetodolgicos podem ter impedido a identificao dessarelao, como por exemplo, a natureza estruturada dasobservaes das interaes. Especula-se ainda, se odesconhecimento das famlias acerca do desenvolvimentoinfantil, independente da condio clnica da criana, seriaum fator que contribuiria para as dificuldades de interaode crianas com transtornos do desenvolvimento e seuscuidadores.

    O reconhecimento dos comprometimentos nacomunicao no-verbal, seja qual for o modelo tericoadotado na sua compreenso, abre espao para aidentificao precoce de crianas que esto em risco quantoao desenvolvimento psicolingustico e da interao social,incluindo o espectro autista. Em outros pases, asevidncias acumuladas nessa rea tm servido de suportepara programas de rastreamento dos transtornos invasivosdo desenvolvimento em torno dos 18 meses de vida do

    beb (Baron-Cohen, Allen & Gilbberg 1992).Considerando-se que o melhor preditor dodesenvolvimento social subseqente, em crianas comautismo, o nvel de linguagem funcional desenvolvido atos cinco anos de idade (Rutter & Lord, 1994), as implicaesdessa tarefa para intervenes, ainda no perodo pr-escolar,so bvias.

    Concluso

    A proposta desse trabalho foi a de apresentar evidnciassobre o potencial preditivo do comportamento de atenocompartilhada como indicador precoce do autismo.Argumentou-se que as discusses sobre atenocompartilhada, apesar de extensas, carecem de basesepistemolgicas. Na tentativa de preencher essa lacuna,partiu-se da compreenso do desenvolvimento dahabilidade de ateno compartilhada, com base nas suasrelaes com os conceitos de intencionalidade ecomunicao. Buscou-se ainda a articulao desses conceitoscom estudos longitudinais, principalmente da rea scio-cognitiva. Cabe lembrar que o termo cognitivo presta-sea inmeras confuses, conforme apontado por Bruner(1990/1997). Portanto, necessrio esclarecer que a reascio-cognitiva, de acordo com Carpenter e colaboradores(1998), trata, fundamentalmente, do processo decompreenso dos outros como agentes psicolgicos, enquantointegrao de processos afetivos e cognitivos.

    Em seguida, abordou-se as evidncias e inconsistnciasdos achados sobre os indicadores precoces de autismo. Oque de fato concebe-se como precoce? O quanto sedeve retroceder na linha do tempo para que um dadocomportamento seja um indicador confivel dos futuroscomprometimentos, caractersticos do espectro autista?

    Apontou-se que as informaes sobre odesenvolvimento inicial de bebs, mais tarde diagnosticadoscomo autistas, tm sido controversas. Alguns estudosdemonstraram que esses bebs tenderam a apresentarmenor freqncia de contato olho-a-ollho, sorriso eorientao para a face, durante interaes iniciais comsuas mes. H tambm evidncias de menor freqnciado balbucio ou de resposta ao ser chamado pelo nome,em comparao aos bebs de grupos de controle,observados no final do primeiro semestre. Entretanto, outraspesquisas falharam em produzir qualquer evidncia decomprometimento nos primeiros meses, seja utilizando aobservao de vdeos domsticos ou informaes dadaspelos pais. Os resultados de estudos que utilizaraminformaes retrospectivas levantam a seguinte questo:ou os comprometimentos sociais podem, de fato, noestar presentes desde o primeiro semestre de vida do

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    beb ou, ao contrrio, esto, mas no so notados pelospais. As razes podem variar desde sutilezas na expressodas dificuldades at a negao das mesmas, pelos pais,passando por inexperincia no convvio com bebs. Nessecaso, os pais no conceberiam os comprometimentos comotais, em funo do desconhecimento dos parmetros dedesenvolvimento de um beb. J os estudos longitudinais,com base na observao sistemtica, sofrem menosinterferncia de variveis intervenientes, porm soextremamente raros. Isso porque a chance de se observarum beb, em projetos longitudinais, que mais tarde serdiagnosticado como autista, baixa. Conforme Baron-Cohen e colaboradores (1992) como achar agulha empalheiro. Soma-se a isso as evidncias de que a baixafreqncia do contato ocular, do sorriso ou balbuciotambm pode estar associada a outros quadros, tais como,privao social severa (abandono) e transtornos do apego,atrasos de linguagem e deficincias sensoriais.

    Em contrapartida, os comprometimentos observadosno final do primeiro ano de vida, em especial na rea deateno compartilhada, tm discriminado crianas come sem autismo. Defendeu-se a necessidade de integraode modelos afetivos e cognitivos para a compreensodessa habilidade e de inserir-se o entendimento dascompetncias comunicativas infantis num contexto maisamplo de apego cuidador-beb. Sugeriu-se, ainda, apossibilidade de se explorar, empiricamente, possveisrelaes entre apego e ateno compartilhada, na rea dapsicopatologia do desenvolvimento, chamando a atenopara aspectos do ambiente tais como qualidade do cuidado,stress familiar e rede de apoio disponvel.

    Embora a proposta de integrao de modelos afetivose cognitivos possa parecer um tanto hbrida ouexcessivamente ecltica para os que defendem a adoo deum modelo puro de desenvolvimento, desafia-se a noode que a compreenso de determinadas patologias, comoo autismo, possa ser compreendida de uma forma singular,calcada num nico modelo explicativo. Se levarmos emconta que uma das caractersticas mais marcantes do autismo a dificuldade em colocar-se no ponto de vista do outro(ou seja, transitar nos domnios afetivos e cognitivos alheios),ao abandonarmos esse modelo dito hbrido fica no ar aquesto: quem seria o autista afinal de contas?

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    Sobre a autoraCleonice Bosa Psicloga, Especialista em Psicopedagogia Teraputica, Mestre em Psicologia doDesenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e PhD em Psicologia peloInstituto de Psiquiatria, Universidade de Londres, Professora do PPG em Psicologia doDesenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Coordenadora do NcleoIntegrado de Estudos e Pesquisa em Transtornos do Desenvolvimento Nieped, UFRGS.

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    Recebido: 26/12/2000Revisado: 16/06/2001

    Aceito: 19/11/2001

    Cleonice Bosa

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2002, 15(1), pp. 77-88