astronomia pré-história bahia

21
R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 141 ASTRONOMIA NA PRé-HISTóRIA dA BAHIA Fernando Bonetti Tavares 1 Maria Beltrão 2 Introdução A denominação “arte rupestre” corresponde a uma designação mais ou menos genérica de toda manifestação artística que utiliza a rocha como suporte. Ela engloba desenhos, esculturas, pinturas e gravuras que, longe de “uma arte pela arte”, constitui, de fato, o instrumento das crenças má- gicas na arte das cavernas, e o meio de registrar e comunicar realidades objetivas, nas manifestações de cunho esquemático concrecionadas ao ar livre. Em sua obra Ensaio de arqueologia, uma abordagem transdiscipli- 1 – Pesquisador em arqueoastronomia. Pesquisador associado ao Projeto Central, BA. 2 – Diretora de projetos especiais do IHGB. Professora-titular associada ao deptº de Geologia e Paleontologia da UFRJ. Pesquisadora sênior do CNPQ. Resumo: Esta nota trata basicamente de arqueoastrono- mia, ramo da astronomia e da arqueologia que busca desvendar a função que os astros desem- penhavam no cotidiano dos povos antigos e pré- históricos. A discussão se desenvolve a partir das considerações sobre três sítios arqueológicos com arte rupestre, localizados na Bahia: Toca do Tapuio, Toca dos Índios e Toca do Pintado. Os dois primeiros são raros exemplares de gravuras. Apenas a Toca do Pintado corresponde à uma ma- nifestação de pintura. Há um grande descompas- so na arte rupestre brasileira, de vez que é muito maior o número de trabalhos relativos às pinturas rupestres do que às gravuras. As analogias entre os sítios foram propostas por Fernando Bonetti Tavares, enquanto Maria Beltrão apresenta argu- mentos em favor de sua autoria por ancestrais do tronco Macro Jê. Palavras-chave: Arqueoastronomia, Gravuras e Pinturas Rupestres, Macro Jê. Abstract: This note is basically about archaeoastronomy, a branch of Astronomy and Archaeology, which seeks to disclose the role of astros in the ancient and pre-historical people daily life. The discus- sion is developed from considerations about three archaeological sites, with Rupestrian Art, in Bahia: Toca do Tapuio, Toca dos Índios e Toca do Pintado. The first two are exceptional engra- ving manifestations. Only the third one corres- ponds to painting. A large unbalance can be observed in the Brazilian Rupestrian Art, once there are many more studies related to the Ru- pestrian painting than to Rupestrian engravings. The analogies comparing the sites were propo- sed by Fernando Bonetti Tavares. Maria Beltrão presents arguments in favor of ancestors from the Macro Jê branch, as the authors of these Ru- pestrian Art manifestations. Keywords: Archaeoastronomy, Rupestrian En- gravings and Paintings, Macro Jê.

Upload: alex-ramos

Post on 21-Oct-2015

27 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 141

Astronomia na Pré-história da Bahia

ASTRONOMIA NA PRé-HISTóRIA dA BAHIA

Fernando Bonetti Tavares1

Maria Beltrão2

Introdução

A denominação “arte rupestre” corresponde a uma designação mais ou menos genérica de toda manifestação artística que utiliza a rocha como suporte. Ela engloba desenhos, esculturas, pinturas e gravuras que, longe de “uma arte pela arte”, constitui, de fato, o instrumento das crenças má-gicas na arte das cavernas, e o meio de registrar e comunicar realidades objetivas, nas manifestações de cunho esquemático concrecionadas ao ar livre.

Em sua obra Ensaio de arqueologia, uma abordagem transdiscipli-1 – Pesquisador em arqueoastronomia. Pesquisador associado ao Projeto Central, BA.2 – Diretora de projetos especiais do IHGB. Professora-titular associada ao deptº de Geologia e Paleontologia da UFRJ. Pesquisadora sênior do CNPQ.

Resumo:Esta nota trata basicamente de arqueoastrono-mia, ramo da astronomia e da arqueologia que busca desvendar a função que os astros desem-penhavam no cotidiano dos povos antigos e pré-históricos. A discussão se desenvolve a partir das considerações sobre três sítios arqueológicos com arte rupestre, localizados na Bahia: Toca do Tapuio, Toca dos Índios e Toca do Pintado. Os dois primeiros são raros exemplares de gravuras. Apenas a Toca do Pintado corresponde à uma ma-nifestação de pintura. Há um grande descompas-so na arte rupestre brasileira, de vez que é muito maior o número de trabalhos relativos às pinturas rupestres do que às gravuras. As analogias entre os sítios foram propostas por Fernando Bonetti Tavares, enquanto Maria Beltrão apresenta argu-mentos em favor de sua autoria por ancestrais do tronco Macro Jê.Palavras-chave: Arqueoastronomia, Gravuras e Pinturas Rupestres, Macro Jê.

Abstract: This note is basically about archaeoastronomy, a branch of Astronomy and Archaeology, which seeks to disclose the role of astros in the ancient and pre-historical people daily life. The discus-sion is developed from considerations about three archaeological sites, with Rupestrian Art, in Bahia: Toca do Tapuio, Toca dos Índios e Toca do Pintado. The first two are exceptional engra-ving manifestations. Only the third one corres-ponds to painting. A large unbalance can be observed in the Brazilian Rupestrian Art, once there are many more studies related to the Ru-pestrian painting than to Rupestrian engravings. The analogies comparing the sites were propo-sed by Fernando Bonetti Tavares. Maria Beltrão presents arguments in favor of ancestors from the Macro Jê branch, as the authors of these Ru-pestrian Art manifestations.Keywords: Archaeoastronomy, Rupestrian En-gravings and Paintings, Macro Jê.

Page 2: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009142

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

nar, Beltrão propõe uma série de significados possíveis, além, claro, da concreção artística em si. Segue-se a exposição, na forma de tópicos:

- como forma de comunicação ideográfica (através dos símbolos);- como regras ecológicas (inferidas dos rituais ligados à caça: ani-

mais que não deveriam ser caçados);- como representativas de prescrições e restrições sociais e religio-

sas;- como conhecimentos astronômicos (complexos e insuspeitados);- como práticas mágico-religiosas; isto é, como uma forma do ho-

mem ver o universo e nele se inserir;- como reveladoras de antigos movimentos migratórios.

No presente trabalho, nos deteremos, em especial, nas imagens as-sociadas à observação dos céus e dos astros, e a eventos de ordem astro-nômica. Como elemento de importância para a análise do tema (astrono-mia), abordaremos contemporaneamente um possível sistema de conta-gem presente nos três sítios citados.

Arqueoastronomia

Desde os tempos mais remotos, o ser humano vem experimentando uma irresistível atração pelos céus e pelos astros que neles habitam. E, assim, a princípio por curiosidade e, depois, motivados por uma razão de ordem prática, dedicaram-se com tal afinco à observação dos céus que nem uma só cultura, aparentemente, se eximiu desses registros. Ao con-trário, entre as comunidades primevas, a astronomia parece ter consti-tuído componente essencial da vida cotidiana, associando-se de forma indissolúvel às tradições míticas e religiosas daquela gente.

No mundo de hoje, um número cada vez mais expressivo de espe-cialistas vem chamando a atenção para o surpreendente nível de precisão verificado no registro de astros, ciclos e fenômenos astronômicos, não so-mente entre as civilizações antigas, mas também no seio de comunidades ágrafas que, em certos casos, não haviam sequer emergido da condição de caçadores e coletores, anárquicos predadores da natureza.

Page 3: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 143

Astronomia na Pré-história da Bahia

De fato, já não causa surpresa constatar que a grande pirâmide de Quéops, orientada segundo a Estrela Polar, antes de se ver transforma-da em monumento funerário pela soberba de algum faraó pretensioso, consistia o suporte para registros de ordem matemática e astronômica. A cada dia, no entanto, acrescem as notícias de registros similares no âm-bito de comunidades líticas. Estas notícias induzem à constatação de que a construção das pirâmides e do complexo de Stonehenge representavam a maturidade de um saber que tinha seus fundamentos num período até então não vislumbrado pelos estudiosos.

A prova mais antiga destes registros foi obtida pelo pesquisador americano Alexander Marshack, que identificou o registro de lunações na superfície de ossos colhidos na localidade de Blanchard, França. Ao ana-lisar os ossos, que datavam de 30 mil anos, contou sessenta e nove sinais em espiral, entre os quais se distinguiam formas de foice, feijão e uma moeda. Não foi difícil reconhecer na progressão espiralada das figuras a evolução dos aspectos da Lua, ao longo de uns tantos meses.

Fenômenos desta classe passaram a ser melhor identificados com o advento da arqueoastronomia, na década de 70. Em gênero, podemos dizer que, a princípio, a arqueoastronomia se preocupa em identificar os corpos celestes – Sol, Lua, estrelas e constelações, principalmente – no âmbito de desenhos, pinturas e gravuras concretizadas pelos grupos pré-históricos que viveram nos sítios em questão. E, num segundo momento, objetivava-se a relação destes astros com dados cíclicos, como solstícios, equinócios e demais fenômenos celestes. Em outras palavras, ela estuda a relação entre a posição dos astros e a disposição dos elementos de re-ferência, sejam eles o pórtico de um templo, um pilar de pedra ou uma gravura.

A propósito, o astrônomo Rundsthen Nader, do Observatório do Valongo, Rio de Janeiro, expõe que, entre as áreas melhor estudadas na pesquisa arqueoastronômica, acham-se as estruturas megalíticas e cons-truções ritualísticas e seus aparentes alinhamentos ou associações com fenômenos astronômicos. E um dos maiores complicadores na análise da

Page 4: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009144

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

arqueoastronomia, no Brasil, se deve ao fato de não termos construções como em outros pontos do planeta. O que temos resume-se, basicamen-te, a pinturas e gravações feitas em rochas, o que dificulta a tentativa de compreensão do significado das imagens.

Em vista destas condições, propõe o citado astrônomo que tomemos todo cuidado ao oferecer uma interpretação para o objeto da nossa ob-servação e que evitemos sempre nos mostrar taxativos sobre a análise de uma pintura ou gravura. Foi em atenção a tal critério que nos propusemos a oferecer a nossa contribuição em relação aos sítios citados da Chapada Diamantina, Bahia.

À sua vez, propõe a arqueóloga Maria Beltrão:

A arqueoastronomia é um campo de estudo que tem oferecido sig-nificativas contribuições que permitem vislumbrar uma parcela da cultura imaterial dos indivíduos que viveram no período pré-his-tórico. Assim sendo, representações de fenômenos astronômicos podem estar associadas a signos que aparentemente têm sua ori-gem em imagens tiradas do céu; porquanto mesmo que os sentidos respondam a fenômenos reais, as sensações, sejam visuais e/ou auditivas, são transpostas do mundo real para o da mente.

Até o momento, as figuras que melhor têm se prestado à busca de uma identificação de convenção são as representações de animais e as celestes, como Sol e Lua, talvez por serem de natureza e identificação mais fáceis. Com imagens que vão da expressão naturalista à esquemá-tica, passando por praticamente todos os estilos, inclusive o filiforme, as representações de lagartos, por exemplo, são encontradas também em associações regulares a imagens e ou eventos astronômicos.3

Gerardo4 descreve de forma fascinante o significado atribuído pelos nossos indígenas aos astros. Revela como estes têm influência na sua or-

3 – BELTRÃO, Maria. Ensaios de arqueologia: Uma abordagem transdisciplinar. Rio de Janeiro: Zit Gráfica e Editora, 200, p. .4 – REICHEL-DOMATOFF, Gerardo. Desana: Simbolismo de los índios Tukano del Vaupés. Bogotá: Procultura, 1986, p. 166.

Page 5: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 145

Astronomia na Pré-história da Bahia

ganização social e no seu imaginário:

Aquelas facetas do espaço celeste que são de imediata importân-cia para os índios referem-se tanto a relações estáveis, tais como os contornos de certas constelações, quanto a relações dinâmicas, como aquelas que existem entre os corpos celestes. Estas referem-se principalmente a relações de mudança entre o Sol, a Lua e os planetas maiores e às mudanças de posições da Via Láctea. Esses espaços fixos e órbitas fixas são muito importantes para os índios que vêem neles um conjunto de princípios de ordem, de organi-zação. Pela mesma razão, qualquer dissonância nessa harmonia celeste é pensada como nociva. Eclipses, cometas, meteoritos, estrelas cadentes e conjunções planetárias são muito temidos por-que são pensados como um espelho de condições calamitosas que existem em algum lugar dessa Terra. Dissonâncias não predizem eventos que virão, ao invés, elas apontam para disfunções que de fato estejam ocorrendo na sociedade humana ou na natureza. A observação de disfunções celestes é, portanto, um procedimento de diagnóstico. Astronomia nativa não é muito envolvida com pre-dição astrológica, mas sim com o aprendizado de leitura do céu que espelha esse mundo; o céu deve ser escrutado em todo detalhe porque ele é um mapa e um espelho da natureza. O que importa é a leitura correta, uma vez que o céu não é somente um modelo para a tenacidade do homem dessa terra, mas também um guia para o desenvolvimento espiritual e a integração moral.

Festas tapuias

O importante papel da astronomia no cotidiano dos nossos indíge-nas, mostrando como realizavam estas observações, que influenciavam a sociedade, materializando tais observações de modo a deixar vestígios na própria organização social, pode ser aquilatado, de certa forma, através do relato que se segue.

Depois de um século de catequese com os tupi do litoral, jesuítas e capuchinhos chegaram entre os “tapuia” do sertão, no séc. XVII, esperan-do um “conhecimento vago e confuso” de Deus, a poderosa ação de satã, mediante os “rituais gentílicos” e a presença de “feiticeiros”, os “maiores

Page 6: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009146

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

contrários” dos padres, conforme expressão de Nóbrega. Segundo a Carta do P. Jacobus Cocleus ao p. Geral Oliva, datada de 1673, os “feiticei-ros” eram principalmente adivinhos e profetas, prognosticando boa ou má caça, chuva ou estiagem, morte e vida; mais do que objeto de crença, Varakidzan (Varakidran, Arachizâ, Erachisam, conforme fontes) é objeto de culto: ele é o grande protagonista da maior festa celebrada pelos “ta-puia”. Segundo tais fontes estas celebrações relacionavam-se a uma festa de “renovação” ligada aos ciclos astrais determinados por Órion e as Plê-iades. “Chamam um outro filho de deus Ken BaBaré e outro Varikidzan, que festejam (solemnem faciunt) todo ano, ou a cada seis meses com um rito ou jogos de oito dias”.5

Sobre etnoastronomia

Mostra-se igualmente ilustrativo o relato do capuchinho francês Claude D’Abbeville (1614), que participou da frustrada tentativa de se criar uma França equinocial no Norte do país. Com relação aos indígenas que habitavam a Ilha do Maranhão e suas adjacências, ele esclarece que:

Poucos entre eles desconhecem a maioria dos astros e estrelas de seu hemisfério; chamam-nos a todos por seus nomes próprios, criados pelos seus antepassados (...).

Observam também o curso do Sol, a rota que segue entre os dois trópicos, como seus limites e suas fronteiras que jamais ultrapassa; e sabem que quando o Sol vem do pólo ártico traz ventos e brisas e que, ao contrário, traz chuvas quando vem do outro lado, em sua ascensão para nós. Contam perfeitamente os anos com doze meses como nós fazemos, pelo curso do Sol indo e vindo de um trópico a outro. Eles os reconhecem também pela estação das chuvas e pela estação das brisas e dos ventos.6

5 – POMPA, Cristina. Cartas do Sertão: a catequese entre os Kariri no século XVII. In: Revista ANTHROPOLÓGICAS, 2003, vol. 14.6 – D’ABBEVILLE, Claude. História da Missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Livraria Martins, ed., 1945.

Page 7: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 147

Astronomia na Pré-história da Bahia

O padre capuchinho quantifica em trinta e dois o número de astros e constelações que habitavam os céus da cosmologia daqueles antigos habitantes da região.

A título de fonte referencial, analisaremos, nesta breve nota, apenas três constelações citadas por várias etnias indígenas:

• Criçá, que significava Cruz à constelação por nós conhecida como Cruzeiro do Sul, que costumavam representar com apenas quatro estrelas, excluindo a nossa Intrometida. Entretanto, ela se fazia acompanhar sem-pre das estrelas α e β de Centauro;

• Uènhomuã, que correspondia a uma constelação cuja forma recor-dava o Guaiamun ou Lagostim, e que se identifica com o nosso Escor-pião;

• Nhandutim, que correspondia na forma ao Nhandú, mais conhecido por Ema, a maior das aves brasileiras. Na representação da constelação, a Ema vem sempre acompanhada dos “dois ovos” (duas estrelas) por eles chamados de Uirá-upiá. A constelação da Ema não tem correspondente no nosso zodíaco.

Toca do Tapuio e Toca dos Índios

No caso específico das tocas do Tapuio e dos Índios, parece haver um complexo cultural organicamente inter-relacionado (uma cosmologia própria e comum). Uma das características marcantes é a existência, em ambos os sítios, do que aparenta ser uma escrita numérica ou um sistema de contagem. O dado leva-nos a concluir por uma forma de escrita linear concatenada com o fluxo temático de forma aparentemente lógica.

Sobretudo na Toca do Tapuio, observamos um registro bastante dis-tinto de outros remanescentes de arte rupestre. Diferente dos demais, em que visualizamos figuras isoladas, dispostas aleatoriamente num painel ou por vezes pequenas cenas, a impressão que permanece é que na Toca do Tapuio houve um planejamento para a composição de todo o ambien-te. Em poucas palavras, o que o sítio nos mostra é a cobertura de toda a

Page 8: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009148

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

gruta, de cima a baixo, de um lado a outro, como se estivéssemos diante de uma narrativa com começo, meio e fim; uma linguagem regida por uma lógica própria.

Os dois sítios estão localizados no município de Caetité (BA), mais exatamente na bacia hidrográfica do rio do Gentio ou Grande, bacia for-mada pelas serras de Santa Isabel e do Ouro; a distância entre os dois sítios é de aproximadamente quatro quilômetros.

Abaixo uma tabela comparativa das características dos sítios:

Toca do Tapuio Toca dos Índios

Caatinga e caatinga arbustiva (Gerais)

Microbacia hidrográfica do rio do Gentio ou Grande

Gruta à meia encosta, com córrego nas proxi-midades, na planície.

Abrigo em cânion estreito, hoje pouco iluminado e com córrego seco.

Gravuras em baixo-relevo, pintadas em verme-lho conservado em pequena parte da gruta.

Gravuras em baixo-relevo, profusamente pintadas, com sobreposição do vermelho sobre o preto.

Grau de integridade em cerca de 40% Grau de integridade em cerca de 90%

Não há sedimentos do piso recobrindo as gravuras

Sedimentos do piso recobrem algumas das gravuras

Amplitude visual em relação ao céu: horizontal = 180°, vertical = 90°.

Gruta voltada para o norte

Amplitude visual em relação ao céu:Horizontal = 160°, vertical = 45°

Abrigo voltado para sudoeste

Formação arenítica

Serra do Espinhaço

Toca do Tapuio Toca dos Índios

Altitude 910 m. Altitude 875 m.

Gruta com 14,4 metros de profundidade, em forma de corredor, painel principal com 7,1 m

de extensão

Abrigo com 9,00 metros, painel principal em concavidade com 6,00 m

A vegetação não impede o acesso ao sítio (pouco íngreme).

Acesso íngreme dificultado pela vegetação nativa.

Suporte do painel originalmente preparado

Sulcos feitos por abrasão. Profundidade dos sulcos = 0,5 >1,5 cm.

Page 9: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 149

Astronomia na Pré-história da Bahia

Em ambas as tocas, fica evidente que o suporte foi previamente pre-parado (alisado) antes de receber as incisões, que foram promovidas por uma técnica de fricção, delineando os sulcos em perfil de “meia-cana”. A característica porosa da rocha arenítica deve ter orientado a opção do artista pelas gravuras, que foram realçadas, à sua vez, com a aplicação de tinta mineral, denotando, possivelmente, a sua preocupação com a perpe-tuação dos grafismos.

O sistema de contagem

Uma das características marcantes verificadas nos sítios pesquisados é a frequente presença de três signos principais: o bastonete, o ponto e o semicírculo.

- O bastonete é apresentado em sequências horizontais, nas quais a verticalidade é praticamente constante. Verifica-se, também, a presença do registro na contagem de intervalos, quando aparece associado ao semi-círculo emborcado (pente), possível referência à contagem de lunações.

- O ponto é apresentado isoladamente ou em sequências agrupadas, frequentemente horizontais, fração mínima, um dia, uma fase da lua etc.

- O semicírculo, simples e duplo, emborcado ou não, como um “U”, e raramente na vertical, ou como um “C”, constituiria, possivelmente, a representação gráfica da Lua como referência temporal.

Toca dos Índios – Detalhe contagem Fig. 1

Page 10: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009150

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

Toca do Tapuio - Detalhe contagem Fig. 2

As afinidades e até similaridades entre as gravuras da Toca do Ta-puio e a Toca dos Índios são variadas. Em ambos os sítios, por exemplo, os grafismos assemelhados à contagem são idênticos, tanto na forma sua individual quanto no sentido coletivo, caracterizado por suas repetições agrupadas em alinhamentos. Já nas pinturas da Toca do Pintado, os mes-mos grafismos representativos desse sistema de contagem aparecem iso-lados, não agrupados, embora dispostos em forma linear.

As referências temporais

Em ambos os sítios observam-se registros com identidade comum: a presença da referência solar como demarcador temporal, através de sím-bolo identificador de solstício. Esta convenção, em forma de tridátilo, se-ria um ideograma convertido da observação das retas projetadas pelo Sol, no horizonte, na ocasião dos solstícios e equinócios, e suas derivações gráficas. Esta família de símbolos corresponde a figuras recorrentes na maioria dos painéis de grafismos rupestres existentes no sertão baiano.

Page 11: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 151

Astronomia na Pré-história da Bahia

Fig. 3

Toca dos Índios – Período intersolsticial, cinco lunações, 21 fases da Lua Fig. 4

Page 12: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009152

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

Toca do Tapuio – Período intersolsticial, interceptado pela representação do lagarto (Sol). Fig. 5

O calendário lunissolar

A presença de elementos astronômicos nos painéis dos sítios anali-sados caracteriza a necessidade dos artistas pré-históricos de identificar, através de suas gravuras e pinturas, um sincronismo temporal entre o Sol, as fases da Lua, a Via Láctea, constelações e estrelas, estabelecendo com isso um calendário anual de atividades relacionadas.

Toca do Tapuio

A gruta apresenta excelente amplitude visual, favorecendo a obser-vação dos céus. Em seu painel principal encontram-se vários símbolos de referencial astronômico: representações de constelações, estrelas e acon-tecimentos celestes. Ao longo do painel pode ser observada uma “linha do tempo” e um sistema de contagem agregado, acoplados a representações gráficas de acontecimentos e de constelações aparentes. O desenho das constelações, assim como seu transcurso no painel, acompanha uma se-quência visível atualmente.

A primeira representação de constelação observada no painel no ca-

Page 13: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 153

Astronomia na Pré-história da Bahia

minho ao interior da gruta seria uma representação esquemática da atual constelação de Escorpião, representada em formato de “remo”, encimado por um “tridente”. Na parte inferior desta representação há um grafismo de contagem, um “pente” emborcado de seis “dentes” e cinco espaços internos, que parece dar início à uma contagem/intervalo.

A seguinte constelação perceptível é representada pelo conjunto de três estrelas dispostas em triângulo. Devido à sua proximidade da cons-telação subsequente (Cruzeiro), pode-se afirmar que se trata de α e β de Centauro sobreposicionadas por terceira estrela, possivelmente Lupus (Lebre).

A constelação seguinte corresponde à Ema (sempre associada aos dois ovos), característica do céu de inverno, cujo desenho é formado pro-vavelmente por estrelas das constelações de Carina e Vela. Outro des-taque no painel é a representação de Januare* (estrela Vésper/Vênus) e a Lua (minguante) que, segundo as tradições indígenas (D’Abbeville), equivale ao “cão querendo devorar a Lua”.

A partir deste ponto, na parte superior do painel, inicia-se a repre-sentação da constelação da Grande Serpente, desenho interceptado pela representação de um cometa, provavelmente o Halley, cujo período orbi-tal é de 76 anos. Este cometa, devido à sua regularidade orbital, próxima ao ciclo de vida humana, faz parte da sabedoria cósmica e da transmissão oral desses povos. Daí constituir fato natural os registros esquemáticos dessa representação em sítios da área pesquisada, o que de resto ocorre praticamente em todo o território brasileiro.

Page 14: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009154

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

Toca do Tapuio – Período intersolsticial, interceptado pela representação do lagarto (Sol). Fig. 6

Page 15: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 155

Astronomia na Pré-história da Bahia

Fig. 7

Alfa e beta de Centauro e Cruz Fig. 8

Ema e os dois ovos (Uirá-upiá) Fig. 9

Januare – Lua minguante e Vésper (Vênus)Fig. 10

Escorpião e contagem

Page 16: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009156

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

A grande serpente Fig. 11

Cometa Fig.12 Céu Toca do Tapuio em 21/7/08 Fig.13

Page 17: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 157

Astronomia na Pré-história da Bahia

Toca dos Índios

O abrigo situa-se na vertente superior de um cânion, acessado atual-mente pelo leito de córrego seco, através de íngreme escarpa; seu exce-lente estado de conservação deve-se à vegetação nativa existente no seu entorno, que obstruiu a insolação direta e a ausência de contato antrópico no período histórico.

O abrigo é voltado para sudoeste, pôr do sol, e possivelmente foi uti-lizado para cerimoniais noturnos, restritos a um pequeno número de par-ticipantes. Devido à sua provável utilização noturna, os grafismos repre-sentativos da Lua aparecem registrados em suas formas peculiares, suas fases, com destaque na instância superior do painel, estando associadas ou não a elementos característicos de contagem como pontos, bastonetes e “pentes”.

Na concavidade (instância) central do painel é onde se encontra a maior concentração de grafismos, com destaque para uma linha dupla pa-ralela que traceja horizontalmente toda a extensão da concavidade. Seria uma linha do tempo, a Via Láctea? Em toda sua extensão, as linhas são “interceptadas” por grafismos com orientação (movimento) vertical, pre-dominando, na parte superior, a representação do “U” emborcado, sim-ples ou duplo e pontos sequenciais.

Representações de lagarto, estrelas e constelações são perceptíveis nas três instâncias do painel. Pela posição da linha dupla em relação ao painel, podemos concluir que o mesmo deve ter sido utilizado para ceri-mônias à época da posição horizontal da Via Láctea e constelações perti-nentes, atualmente, ao nosso inverno.

Page 18: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009158

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

Toca dos Índios – Representação de constelação, estrelas e lua. Fig.14

A questão da autoria

A identificação da autoria destas ocorrências constitui, ainda, um desafio. Esta é, realmente, uma das maiores dificuldades do arqueólogo. Quase tudo que sabemos é que esses conjuntos de arte rupestre não são obras dos indígenas aqui encontrados pelos descobridores europeus. De maneira geral, já foi proposta a hipótese de que os autores dessas proje-ções, incluindo-se aquelas de caráter astronômico em que predominam motivos geométricos, constituiria a obra ancestral do tronco macro-jê (Beltrão, 2000). Daí a especificar o exato grupo linguístico responsável pela autoria, o problema é mais profundo.

A representação de um plano de aldeia Jê, com a superposição inten-cional de vários eventos astronômicos, provavelmente de caráter mágico-religioso, na Toca do Pintado (BA), bem como a presença da cerâmica Jê junto à toca e a total ausência de animais parecem contar como argumento

Page 19: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 159

Astronomia na Pré-história da Bahia

a favor da hipótese acima proposta.

Entre os desafios que tivemos de enfrentar nesta tarefa, dedicamo-nos à interpretação das pinturas e gravuras rupestres dos sítios baianos mencionados, como forma de tentar chegar aos seus possíveis autores em épocas pretéritas. E também nesta proposta partimos de um posiciona-mento estabelecido pela arqueóloga Maria Beltrão.

Além da autoria macro-jê, a arqueóloga do Museu Nacional do Rio de Janeiro fixou-se, após uma série de levantamentos, no grupo tukâno, que habita, atualmente, a região do rio Uaupés. Na verdade, os índios tukâno vivem nos dois lados da linha do Equador; os tukâno ocidentais, na Colômbia; e os tukâno orientais na Amazônia brasileira.

Estes tukâno estão de alguma forma relacionados em origem e um argumento em favor disso reside no fato de que os nomes Uaupés, Uaupé e Bopé significam “caminho da migração”.

Uma possível prova da presença de índios tukâno fora da Amazônia pode ser encontrada na obra de Fernão Cardim7 datado de 1587. Em re-ferência aos tupi-guaranis, ele comenta: “... além destes, para os sertões e campos da Catinga, vivem muitas nações tapuias que se chamam de tuca-noçu, que vivem no sertão do Rio Grande8 pelo direito de Porto Seguro9.” Além disso, existe hoje o município de tucano, na Bahia, cujo nome tem sua origem numa possível aldeia de índios tukâno existente na região.

Está claro que existe uma distância enorme do Uaupés até a Chapada Diamantina, mas não deixa de ser um começo.

7 – CARDIM, Fernão. Tratado da Terra e gente do Brasil. São Paulo: Ed. USP, 1980.8 – Rio Grande = Rio São Francisco.9 – Pelo direito de Porto Seguro = indo em linha reta em direção a Porto Seguro, segundo Aryon dell’Inha Rodrigues.

Page 20: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009160

Fernando Bonetti TavaresMaria Beltrão

Conclusão

Conforme mencionado nos três exemplares analisados, os sistemas de contagem, embora lineares, não se assemelham. Esta constatação implica no questionamento da existência de uma escrita numérica para eventos astronômicos de cunho mágico-religioso ou cosmológico e uma outra escrita numérica para contabilizar colheitas, caça etc.

O estudo das pinturas e gravuras rupestres demonstra claramente o constante interesse do homem pelos símbolos. Daí a necessidade de se firmar um conceito de “convenção” a partir dos dados arqueológicos. Assim, ao nosso entender, a ideia de “convenção” implica a utilização de imagens que podem ser signos, símbolos ou imagens “esquemáticas”, pois o que importa é a intenção subjacente de comunicar dada informa-ção.

No caso em questão, as imagens e sinais examinados se situam em um patamar de representação onde as convenções foram usadas para co-municar uma quantidade limitada de informações, não necessariamente ligadas à linguagem falada. Até o momento, as figuras que melhor indi-cam a existência de convenção são as representações de animais como a ema e o lagarto, entre outros; do Sol, da Lua e da Via Láctea.

Para nós, no entanto, o desafio de descobrir o significado dessas ma-nifestações pré-históricas continua tão grande quanto o de estabelecer uma autoria para estas representações, filiando-as a grupos existentes na atualidade. Neste sentido, Beltrão parece ter levantado uma pista confiá-vel que, comentamos, aponta para uma ancestralidade macro-jê.

Page 21: Astronomia Pré-História Bahia

R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442):141-161, jan./mar. 2009 161

Astronomia na Pré-história da Bahia

Referências bibliográficasBELTRÃO, Maria. Ensaio de arqueogeologia: uma abordagem transdisciplinar. Rio de Janeiro: Zit Gráfica e Editora, 2000. CARDIN, Fernão. Tratado da terra e gente do Brasil.São Paulo: Ed. USP, 1980.D’ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Tradução: Sérgio Milliet. Introdução e notas: Rodolfo Garcia. São Paulo: Livraria Martins Ed., 1945.GALDINO, Luiz. Itacoatiaras. uma Pré-história da arte no Brasil. São Paulo: Editora Rios, 1988. MARSHACK, A. Lunar Notation on Upper Paleolithic Remains. Washington: vl. 146, n. 3608, 1964, p. 743-5.REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. Desana: Simbolismo de los indios tukano del Vaupés. Bogotá: Procultura, 1986.