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1100 Astrologia, magia e hermetismo: a recepção da tradição platônica e a sobrevivência de Hermes Trismegisto. Jefferson de Albuquerque Mendes 1 Resumo: Este trabalho pretende criar um panorama sobre o impacto dos escritos herméticos na Primeira Época Moderna e mapear como as obras dos filósofos e eruditos dessa época estavam em consonância com as preceitos mágicos e astrais, e principalmente, verificar como a religião cristã moldava as intepretações sobre as práticas pagãs. Dessa forma, partindo da tradição platônica e da inserção dos textos herméticos, se concebe a relação homem-universo como um lugar de concatenação das práticas astrológicos-mágicos, da filosofia e da teologia. Assim, a ideia é traçar, em linhas gerais, como se dá a relação do da doutrina do homem- microcosmo com a recepção dos textos herméticos, permeados pelo regime analógico. Palavras-chaves: Astrologia. Hermetismo. Homem. Magia. Primeira Época Moderna. Abstract: This work intends to create a panorama on the impact of the hermetic writings in the Early Modern Age and to map how the works of the philosophers and scholars of that time were in consonance with the magical and astral precepts, and especially, to verify how the christian religion molded the interpretations on the pagans practices. In this way, starting from the platonic tradition and the insertion of hermetic texts, the relation between man and the universe is conceived as a place of concatenation of astrological-magical practices, of philosophy and theology. Thus, the idea is to outline, in general terms, how the relationship between the doctrine of man-microcosm and the reception of hermetic texts permeated by the analogical regime. Key-words: Astrology. Hermetism. Man. Magic. Early Modern Age. A sobrevivência e recepção dos escritos reunidos sob a alcunha Hermes Trismegisto, por si só, nos renderia um trabalho de pesquisa único e imensamente exaustivo. Porém, a ideia deste tópico nada mais é do que criar um panorama modesto sobre o impacto dos escritos herméticos na primeira época moderna e mapear como as obras dos filósofos e eruditos estavam em consonância com Trismegisto seja pelo conhecimento profundo dos textos, ou 1 Mestrando, pela linha de pesquisa História e Crítica da Arte, no Programa de Pós-Graduação em Artes PPGARTES da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ. Email: [email protected].

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1100

Astrologia, magia e hermetismo:

a recepção da tradição platônica e a sobrevivência de Hermes Trismegisto.

Jefferson de Albuquerque Mendes1

Resumo: Este trabalho pretende criar um panorama sobre o impacto dos escritos herméticos

na Primeira Época Moderna e mapear como as obras dos filósofos e eruditos dessa época

estavam em consonância com as preceitos mágicos e astrais, e principalmente, verificar como

a religião cristã moldava as intepretações sobre as práticas pagãs. Dessa forma, partindo da

tradição platônica e da inserção dos textos herméticos, se concebe a relação homem-universo

como um lugar de concatenação das práticas astrológicos-mágicos, da filosofia e da teologia.

Assim, a ideia é traçar, em linhas gerais, como se dá a relação do da doutrina do homem-

microcosmo com a recepção dos textos herméticos, permeados pelo regime analógico.

Palavras-chaves: Astrologia. Hermetismo. Homem. Magia. Primeira Época Moderna.

Abstract: This work intends to create a panorama on the impact of the hermetic writings in

the Early Modern Age and to map how the works of the philosophers and scholars of that

time were in consonance with the magical and astral precepts, and especially, to verify how

the christian religion molded the interpretations on the pagans practices. In this way, starting

from the platonic tradition and the insertion of hermetic texts, the relation between man and

the universe is conceived as a place of concatenation of astrological-magical practices, of

philosophy and theology. Thus, the idea is to outline, in general terms, how the relationship

between the doctrine of man-microcosm and the reception of hermetic texts permeated by the

analogical regime.

Key-words: Astrology. Hermetism. Man. Magic. Early Modern Age.

A sobrevivência e recepção dos escritos reunidos sob a alcunha Hermes Trismegisto,

por si só, nos renderia um trabalho de pesquisa único e imensamente exaustivo. Porém, a ideia

deste tópico nada mais é do que criar um panorama modesto sobre o impacto dos escritos

herméticos na primeira época moderna e mapear como as obras dos filósofos e eruditos

estavam em consonância com Trismegisto – seja pelo conhecimento profundo dos textos, ou

1 Mestrando, pela linha de pesquisa História e Crítica da Arte, no Programa de Pós-Graduação em Artes –

PPGARTES – da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Email: [email protected].

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não. Por isso, nessas poucas páginas pretenderei colocar os principais elementos que estão por

trás do que os historiadores recorrem nomear Hermetismo.

A figura, ou melhor, o conceito por detrás de Hermes Trismegisto entendida e aceita

pelos magos eruditos europeus remonta praticamente ao mundo egípcio e sua conexão e

relação com os deuses e os elementos teológicos envoltos nessa relação. Porém, o que eles

acreditavam ser do advento da antiguidade clássica mais longínqua, na verdade era fruto do

debate que misturava os substratos do paganismo do primitivo cristianismo, religião que era

uma mistura de magia com a presença oriental e "versão gnóstica da filosofia grega e refúgio

de fatigados pagãos que buscavam respostas para a vida"2. Ou seja, de acordo com Frances

Yates, os principais textos herméticos, supostamente3, teriam sido escritos entre os séculos II

e III d.C por vários autores desconhecidos e, talvez, por gregos que tinham o conhecimento de

toda a cultura popular da época mesclando platonismo e estoicismo. Porém, a preocupação

maior aqui levantada não reside exatamente em datar o ponto de partida e sim, em verificar o

por que do nascimento desses textos. Em qual contexto histórico filosófico surgiram?

Novamente, Frances Yates, nos dá uma pequena pista do que estaria por detrás do surgimento

do hermetismo:

O mundo do século II estava farto da dialética grega, que não parecia levar a qualquer

resultado seguro. Platônicos, estoicos e epicuristas apenas repetiam as teorias de suas várias

escolas, sem fazer avanço nenhum, e as doutrinas haviam-se reduzido ao conteúdo dos livros

de textos, manuais que formavam a base da instrução filosófica do Império. No que diz

respeito à sua origem grega, a filosofia dos escritores herméticos é estereotipada, com suas

tinturas de platonismo, de neoplatonismo, de estoicismo e de outras escolas do pensamento

grego. Esse mundo do século II, todavia, buscava intensamente o conhecimento da realidade

e uma resposta aos problemas que não encontrava na educação normal. Voltou-se, pois, para

outros modos de buscar respostas, para os modos intuitivos, místicos e mágicos. Uma vez

que a razão aparentemente falhara, buscou cultivar o nous, a faculdade intuitiva do homem. 4

Ou seja, havia uma necessidade de alinhar o mundo terrestre com o cosmos, na

tentativa de criar uma relação entre as coisas que acontecia na terra e a movimentação dos

céus. As condições políticas que o império romano havia alcançado propiciava a interlocução

e o intercâmbio com o mais distante e mais oculto (a astrologia dos caldeus, a religião

2 YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 14.

3Não há, necessariamente, consenso na afirmativa dessas datas, por isso a suposição de Yates perante ao

nascimento dos textos herméticos. O surgimento desses textos remonta a mitologia do deus egípcio Tot

(mensageiro dos deuses), pela qual os gregos atribuíram-lhe o nome de Hermes. Os latinos, por sua vez, lhe

chamavam de Mercúrio, que na verdade, era o quinto Mercúrio - aquele que dera sabedoria e a capacidade de

leitura aos egípcios. Sob a égide de Hermes Trismegistos que se desenvolveu uma extensa literatura sobre

astrologia, magia, ciências ocultas; como também na confecção de talismãs e amuletos. Para mais ver em

YATES, Giordano Bruno e a Tradição Hermética. 4 ibid, p. 16.

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indiana, etc). Assim, no século II primordialmente, o Egito se torna referência no que

concerne ao emergente hermetismo. Os egípcios eram reverenciados; se percorria longas

distâncias para frequentar e se consultar com os sacerdotes egípcios nos templos no intuito de

desvendar os mistérios conhecidos nos sonhos e sua relação com o firmamento astral. A ideia

de que os filósofos gregos já tinham entrado em contato com os sacerdotes e toda a

cosmologia egípcia era recorrente. Havia uma ideia de pro-Egito imersa na cultura, tanto

erudita quanto popular, nos idos do século II d.C.

Há uma passagem atribuída a Hermes Trismegisto que Festugière, em seu

monumental livro, alia de forma considerável, a religião mágica egípcia com os escritos

herméticos. Nesse trecho Hermes dizia ao seu discípulo Asclépios:

nesse momento, cansados da vida, os homens não mais considerarão o mundo um objeto

digno de admiração e reverência. Esse todo, que tão boa coisa é, a melhor que pode haver no

passado, no presente e no futuro, estará em perigo de perecer; os homens o estimarão um

fardo, e daí em diante o Universo inteiro há de ser desprezado; essa incomparável obra de

Deus, essa construção gloriosa, essa criação que é toda boa e feita com infinitas diversidades

de forma, esse instrumento de Deus que, sem inveja, prodigaliza favores sobre sua obra, na

qual se reúne num todo, em harmônica diversidade, tudo o que existe digno de ser

reverenciado, louvado e amado.5

Por sinal, os dois textos atribuidos a Trismegisto que chegaram até nós são o

Asclepios6 – escrito na forma de diálogos entre mestre e discípulo – e o Corpus Hermeticum

7

– que Marsilio Ficino, ao traduzi-lo, o nomeia como Pimandro, que na verdade é o nome dos

primeiros dozes tratados. Retomando a pequena fala acima, fica claro a ideia ali condensada e

o quão ela se aproxima do modo ascéptico da religião egípcia, onde o elemento mágico se

constituia como um peculiar modo de conexão com os deuses, numa relação quase de causa e

efeito, pois as coisas que no mundo terrestre acontecem, são dimensões especulativas das

coisas do mundo cósmico.

Com isso, fica claro que, quando os textos herméticos chegam a Europa, a atruibuição

a Hermes Trismegisto como um sacerdote egipcio de grande sabedoria e tão antigo quanto o

bíblico Moisés8, e que condensaria em seus escritos todos os ensinamentos sobre a filosofia

5 FESTUGIÈRE. A.J. La Révélation d'Hermès Trismégiste. Paris: Les Belles Lettres, 2011, p. 328.

6 TRISMEGISTO. Corpus hermeticum. Tomo 2, Trattati XIII-XVIII. Asclepio; ed. Arthur D. Nock e André-Jean

Festugière, tr. André-Jean Festugière. Paris, Les Belles Lettres, 1946 7 Como referência sobre os escritos reunidos sob a alcunha Trismegisto, utilizarei a tradução feita por Festugière

reunidos na coletânea Corpus hermeticum. Para mais ver: TRISMEGISTO. Corpus hermeticum. Tomo 1,

Pimander. Trattati II-XII; ed. Arthur D. Nock e André-Jean Festugière, tr. André-Jean Festugière, 2e éd. Paris:

les Belles Lettres, 1946. 8 Para os eruditos da Idade Média e da Primeira época moderna, era de comum senso colocar Trismegisto na

mesma cronologia e genealogia de Moisés, para esses eruditos, Trismegisto era mais velho que os filósofos

gregos.

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antiga e magia. Os próprios resquícios que o texto carrega de platonismo e filosofia grega

provém dos ensinamentos filosóficos já um pouco desgatados no início do século II d.C. De

outro lado, a confirmação de Trismegisto como um indivíduo real também constava nos

escritos dos Padres da Igreja, e de acordo com Yates, principalmente em Lactâncio e Santo

Agostinho.

Lactâncio9 cita, por diversas vezes, os escritos de Trismegisto achando que estes

seriam aliados profícuos na sua empreitada em utilizar os saberes pagãos como base para o

desenvolvimento do cristianismo. O que o leva, talvez, a utilizar estes textos herméticos como

instrumental teológico reside numa espécie de confluência e um pouco, digamos,

coincidência: Lactâncio verifou que havia nos textos herméticos várias passagens onde se

emprega o nome "Pai" e até, para se referir ao demiurgo, Hermes utilizara a expressão "Filho

de Deus"10

. Tanto que para o Asclepios, Lactâncio associou esse escrito a uma espécie de

profecia sobre a vinda do filho de Deus para o mundo dos homens. Não somente no

Asclépios, mas no Pimandro, os escritores herméticos empregam a expressão "filho de Deus",

o que dá a Lactâncio mais indícios das relações entre os textos herméticos e a teologia cristã.

Assim, Lactâncio "considera Hermes Trismegisto um dos mais importantes videntes e

profetas gentios que previram o advento do cristianismo, por ter falado do Filho de Deus e da

Palavra".11

Lactâncio não deixara nenhum texto expondo algum tipo de reprovação aos escritos de

Trismegistos, mesmo quando fazia qualquer tipo de condenação não o associava e sim, aos

magos que se utilizavam das imagens para evocar os demônios, que, na verdade, eram anjos

decaídos. Por isso, segundo Yates, Lactâncio será na Primeira Época Moderna o padre

favorito dos eruditos e filósofos herméticos que queriam aliar hermetismo aos seus escritos e

ainda sim permanecerem cristãos.

Ao contrário de Lactâncio, Agostinho deferiu severas críticas a Trismegisto, talvez do

fato que, diferentemente de Lactâncio que utilizara os manuscritos herméticos em grego,

Agostinho, utilizara as traduções latinas – que devem datar da mesma época que Agostinho,

ou seja, o século IV – as mesmas que chegaram até nós e que eram atribuídas a um tal de

Apuleio de Madura12

, por onde Agostinho desferiu suas críticas. Esses ataques estão no seu

9

As citações de Hermes por Lactâncio se encontram, em sua maioria, em seus Institutos. Para mais, ver:

LACTÂNCIO. Institutions Divines. Monat, P. ed. et trad., 3 vols., Paris: Éditions du Cerf, 1986. 10

YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 19. 11

ibid., p. 20. 12

A autoria da tradução latina, como se sabe, não é mais atribuída a Apuleio de Madura. O que se tem de comum

acordo, é que se trata de um indivíduo educado na cultura greco-romana e que buscou o ocultismo as chaves e

respostas para o mundo.

1104

De Civitate Dei13

, onde se refere a passagem que Trismegisto elucida sobre a crença nos

rituais egípcios pela qual se reanimava as estátuas dos deuses por meio da magia. Ou seja, o

que Agostinho critica é o caráter idolatra da magia, principalmente, na parte onde Agostinho

ataca Apuleio (o considerando como tradutor dos Asclépio) por esse se dirigir aos espíritos ou

daemons14

.

Mesmo assim, Agostinho tem Trismegisto com um profeta do advento do

cristianismo, porém lhe destitui de toda glória por acreditar que, ao reverenciar a presciência

do futuro dada pelos demônios, Trismegisto rompia, de vez, com os preceitos do cristianismo.

Sobre o léxico utilizado nos textos herméticos que remetem ao "filho de Deus", por exemplo,

Frances Yates relata que "Agostinho nada diz, em absoluto, sobre a menção do ‘Filho de

Deus’, e toda a sua visão do assunto talvez seja, em parte, uma réplica à glorificação feita de

Hermes como profeta gentio, por Lactâncio"15

.

Durante a Idade Média, o nome de Trismegisto circulava com certa desenvoltura,

apesar das proscrições da igreja no tocante a magia. Seu nome sempre esteve ligado no que

concerne aos assuntos como alquimia, confecções de talismãs, magia, e principalmente, no

tocante as imagens mágicas. Havia um amalgama, por partes dos eruditos medievais, entre a

Hermética filosófica e a Hermética prática16

. Um exemplo basilar seria a importância da

astrologia helênica na Hermética filosófica. A doutrina dos decanos desenvolvidos pela

cultura egípcia fora absolvida pela astrologia helênica de forma que mesmo nos manuscritos

que compõem o Asclépio17

há uma passagem inteira que relata a importância dos trinta e seis

decanos para o zodíaco, e para a astrologia vigente - que era uma mistura da astrologia

13

AGOSTINHO. De Civitate Dei. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, livro VIII, xxiii-xxvi. 765-785. 14

YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 21. 15

ibid., p. 23. 16

Cabe aqui uma inflexão mais detida no que concerne a própria construção do hermetismo: a priori, podemos

dividir a literatura hermética em duas partes. Uma açambarcar os textos aqui apresentados como os Asclépios e o

próprio Corpus hermeticum; a outra parte reúne os textos que tratam das práticas astrológicas, alquímicas e

mágicas. Apesar de divididas, essas duas literaturas se relacionam entre si, de forma, que, de forma alguma,

podemos delimitar precisamente uma separação. O próprio Festugière, em suas revelações, (ver FESTUGIÈRE,

A. J. La Révélation d’Hermès Trismégiste, 4 vols., 1944-1949. Paris: les Belles Lettres, 2011.) consagra o

primeiro tomo a astrologia e as ciências ocultas, como uma forma de estabelecer os parâmetros do hermetismo

prático, para aí sim adentrar no hermetismo de cunho filosófico. Para ambas, os eflúvios dos fluxos astrais

tinham uma assertiva nos modos de vida dos indivíduos na terra. No mundo terrestre "todo objeto do mundo

material estaria repleto de simpatias ocultas provindas das estrelas, das quais dependeria". (YATES, op. cit.,

p.58). Para isso, o mago que quisesse apreender algum elemento astrológico, deveria ter todo o conhecimento

que a literatura hermética filosófica disponibilizava. O mago seria, então, aquele que saberia unir, de forma

prazerosa, os dois tipos de ensinamentos e aí, conseguir adentrar nesse sistema regido pelos fluxos astrais e

subtrair dele o instrumental e as forças necessárias para poder lidar com as simpatias das coisas terrestres, e

assim determinar os parâmetros necessários para empreender o incognoscível. 17

Esses deuses egípcios, que seriam chamados, pelos helênicos, de decanos eram uma forma concreta que os

egípcios encontraram de divinização. Eles – os egípcios - não somente sacralizaram o tempo, em sua forma

abstrata; mais sim conseguiram dimensionar para cada hora do dia um deus em específico. Todos eles tinham

suas próprias imagens que eram reverenciadas.

1105

helênica com a tradição oriental sobre os astros18

. Assim, de fato, "a Hermética filosófica se

inscreve no mesmo quadro de referências da Hermética prática, dos tratados de astrologia e

alquimia, das listas de plantas, animais, pedras e outras coisas"19

.

Tendo como base os dados acima citados, podemos, de certa forma, nos confrontar

com a recepção desses manuscritos na primeira época moderna. Apesar de estritamente

proscrita pela igreja medieval, a magia ainda era praticada, porém de forma tímida, ou

melhor, não dita. Nenhum filósofo ou qualquer outro erudito da Idade Média, ousara a

mencionar os atributos da magia em seus escritos; poderiam estar ali camuflados, porém

nunca enunciado. Foi preciso "a magia da Renascença, reformada e erudita, que sempre

repelira qualquer conexão com a velha magia, ignorante e perversa, ou negra, era com

frequência adotada por algum estimado filósofo da Renascença".20

Antes e nos atermos aos estudos de caso, de como os eruditos lidaram com o saber

astrológico e sua relação com o indivíduo, cabem algumas considerações sobre os problemas

de ordem analógica que esses eruditos colocaram no cerne do debate. Já é de comum

conhecimento a sobrevivência e Platão (e Aristóteles) na Europa a partir de meados do século

XII. Dentre esses dois filósofos, foi Aristóteles que transmitira uma metafísica da verdadeira

natureza, em gênero e espécie, que existe no mundo exterior daquele que a pensa. O que isso

nos importa aqui, será a capacidade que os eruditos souberam descrever as coisas, partindo do

conceito aristotélico de natureza, e principalmente, descrever os princípios que regem as

relações entre as coisas.

Os neoplatônicos enriquecerem toda ontologia aristotélica de forma surpreendente. A

principal questão colocada por eles se encontra na capacidade de hierarquização natural da

realidade, ou seja, os seres são organizados de acordo e em função dos níveis de perfeição, e

de compreensão da existência que possuem. Um cristão que flerta com neoplatonismo, tem

em deus a instância mais justa, a melhor, e o mais inteligível dentre todas as coisas. Então,

partindo sempre de Deus, todas as coisas organizadas abaixo dessa hierarquia celeste, serão

sempre menos boas, mais inferiores e assim sucessivamente. Assim, se estabelece um lugar de

participação com Deus – de uma forma mais ou menos perfeita, de acordo com a

hierarquização das coisas. Isso, de certa forma, revela a riqueza dos conceitos que estão por

detrás da relação entre as coisas reais e Deus, e, nos revela que não se trata de um efeito de

reflexo das coisas e sim uma estrutura muito bem engendrada que possibilita, por exemplo, a

18

Ver: BOUCHÉ-LECLERCQ, A. L'astrologie grecque. Paris: Ed. E. Lerous. 1899. 19

YATES, op. cit., p.60. 20

YATES, op. cit., p.30.

1106

capacidade do homem como medida para todas as coisas. Essa será uma lição que os

neoplatônicos souberam muito bem apreender.

Ashworth coloca em linhas gerais como as teorias neoplatônicas foram modificadas e

readaptadas pela doutrina da criação e da revelação de Deus em seu filho, Jesus Cristo:

Na teologia cristã, as grandes linhas das teorias neoplatônicas se viram modificadas pela

doutrina da criação e pela crença em Deus que se revelou em Jesus Cristo. De um lado,

Deus, transcende toda a realidade criada e todo o conhecimento possível. Ele está

infinitamente afastado de suas criaturas. Diferentemente de suas criaturas, Deus é

inteiramente simples: não há distinção em si mesmo. Tudo o que ele é, é em sua essência, e

sua essência equivale a sua existência. De um outro lado, como substância, participamos das

perfeições de Deus, e como cristãos, temos um certo conhecimento dele.21

Em seu texto, Hermetisme et Renassaince, Eugene Garin faz um apanhado analítico

sobre os processos históricos e antropológicos que estavam por trás das filosofias que eruditos

e filósofos desenvolveram e que viriam a se tornar os cânones conhecidos por nós. Na maioria

dos textos em que Garin traz, havia uma relação unívoca no que concerne a analogia das

correspondências entre as palavras e as coisas, e não somente isso, mas também é evidente

como nesses textos a teoria das correspondências tinha o homem como centro de irradiação

do saber. Como dito no final do tópico anterior, a hierarquização das coisas preconizava um

paralelismo entre a terra e o cosmos, na busca de uma harmonia universal que se conjugava

com o divino. Esse cosmos seria então, um grande quadro onde as coisas eram refletidas umas

às outras, sempre entre si.

O homem, por sua vez, enquanto produto de uma forma originária e divina, seria

imagem do ser Divino, e por isso, sua inteligência, estaria de acordo com a de Deus. Com

isso, o homem seria aquele, por excelência, que estaria apto a criar similitudes do ato divino.

Ainda sobre os textos platônicos e herméticos, Garin identifica no manual de magia intitulado

Picatrix, uma "exposição de pressupostos teóricos e de práticas operatórias, entre hermetismo

especulativo, com nuances platonizantes, e magia, entre teurgia e teosofia oriental"22

. Ele

chegara a Europa via Espanha, e traduzido para o espanhol a mando de Alfonso o Sábio e

somente traduzido para o latim na segunda metade do século XIV23

.

Portanto, se o homem é a vontade divina, e Deus, para todos os efeitos, é todas as

coisas, então só restaria o homem, através de seu intelecto, ter o poder para se transformar em

todas as coisas. Somente a doutrina do homem-microcosmo disponibilizaria o instrumental

21

ASHWORTH, E.J. Les théories de l'analogie du XIIe au XVI

e siècle. Paris: Vrin, 2008, p. 17.

22 GARIN, Eugenio. Hermétisme et Renaissance. Traduit de l’italien par Bertrand Schefer. Paris : Editions Allia,

2016, p. 49. 23

ibid, p. 29.

1107

necessário para que este tipo de analogia das proporcionalidades fosse capaz de existir. Mas

esse pensar estaria submetido por uma interpretação platônica esotérica do mundo até segunda

metade do século XV. Estabelecendo concordâncias analógicas entre palavras e coisas, a

representação do homem-microcosmo figura a diferenciação entre o visível e o ininteligível,

em signos também visíveis e ininteligíveis. De acordo com Jean Céard, o aspecto analógico

do homem-microcosmo se dá, pois, a analogia tem uma função heurística que está inscrita na

estrutura do mundo e o utilizar para compreender as nuances desse mundo remonta ao ato

criador por excelência. Para isso ele traz a filosofia aristotélica24

_ como suporte para

estabelecer as relações entre o microcosmo e a analogia. Céard escreve:

Em que esteja ao alcance as perfeições do Todo, e que represente o grande corpus do

universo, com suas quatros qualidades, são consideradas também o corpo do mundo. E tudo

isso se dá por grandes nomes, e de tal variedade e ligações das partes que, de todas as obras

de Deus, o corpo do homem é a mais perfeita, compreendendo em si a harmonia das coisas

contrárias das quais acomodadas segundo suas funções, fazem seu acordo entre o mais belo e

excelente que se possa deseja.25

Esse trecho, em grande medida, pode nos dizer muito sobre as estruturas analógicas

que o mundo suporta, por exemplo, a linha tênue entre o regime analógico do homem-

microcosmo, com os escritos que compõem os Asclépio - principalmente no sexto capítulo.

No que concerne o homem, ele é o intermediário, aquilo que se constitui fundamentalmente a

partir da copula, ou seja, da união das palavras e das coisas. Ele é, em certa medida, o nexus

do Todo26

. Aqui Trismegisto sobrevive fortemente pelos neoplatônicos.

O homem é um pequeno mundo, um pequeno cosmos, da qual o grande cosmos reflete

ponto por ponto. Dentro desse escopo, a imagem tem lugar privilegiado pois será nela que as

ressonâncias astrológicas serão providas de sentido. A grande correspondência entre o grande

e o pequeno mundo será situada nos corpos celestes.

As relações entre o pequeno e o grande mundo, o macrocosmo e o microcosmo, as

correspondências entre o universo e o homem são processos de tentativas de orientação pelo

cosmos que datam desde a antiguidade. Podemos encontrar essa disposição conceitual sobre

24

“O que é último dentro da ordem da análise, é primeiro dentro da ordem da gênese”. ARISTOTELES. Etica a

Nicomaco. 2.ed. Editora Universidade de Brasilia. 1985 25

Tradução do autor. Original francês: En quoy sont comprises les perfections de ce Tout, que represente le

grand corps de l'univers, avec ses quatre qualités, considerées aussi bien au corps du monde. Et tout cecy est en

si grand nombre, et telle varieté et liaisons de parties, que, toutes les ouvres de Dieu, le corps de l'homme est le

plus parfait, comprenant em soy l'harmonie des choses contraires, lesquelles accommodée selon leur office, font

leur accord le plus beau et excellent qu'on sçauroir desirer. CÉARD, Jean. "'In homine nihil non'. La doctrine de

l'homme microcosme et l'analogie à la Renaissance."In: MICHEL, Ch. (org) Le Démon de l'analogie. Analogie,

pensée e invention d'Aristote au XX siècle. Paris: Garnier, 2017. p. 66. 26

ibid, p. 67.

1108

os temas da harmonia entre homem e universo, o homem como reflexo do firmamento em

diversos textos e autores dos mais diversos campos de estudos e crenças: desde o hermetismo

até textos em comentários bíblicos.

Há uma passagem instigante em Isidoro de Sevilha que retrata bem a linha de

raciocinio aqui defendida: “Se é verdade que em grego ‘mundo’ quer dizer ‘cosmos’, e o

homem, a sua vez, ‘microcosmo’, quer dizer ‘pequeno mundo’”27

. Isso revela, de fato, o quão

os homens da antiguidade relacionavam a criação e vida aos ditames e movimentos do

cosmos. Relacionar o nível terrestre com o nível cósmico se colocava como função primordial

para compreensão do incognoscível, do homem e daquilo que está a sua volta. Não é à toa que

os estoicos, grandes observadores dos astros, desenvolveram o conceito de sympatheia

universal, onde havia uma correspondência entre os astros e todas as categorias terrestres,

sejam elas animais, vegetais ou, mesmo, minerais. Havia uma prescrição precisa dessas

correspondências entre cada categoria, e era essa estrutura que permitiria a harmonia das

coisas no mundo, pois, somente o regime analógico permitiria essa ideia de sympatheia dos

estoicos.

Na introdução da Iatromatemática de Hermes Trismegisto a Amon o Egípcio, é

desenvolvido um sentido sistemático onde os astros, os corpos celestes são responsáveis

diretamente pelas partes do corpo humano; assim se cria uma conexão cosmológica entre o

individuo e o cosmos, na medida em que aquilo que afeta o corpo – para o bem ou para o mal

– tem uma relação unívoca e intrínseca com o estado dos astros. Assim surge o conceito de

melothesia, na vontade e na capacidade do homem em mensurar os aspectos medicinais pelos

astros, ou seja, tentativa de correspondência harmônica entre o alto e o baixo. Uma longa

tradição médica astrológica se formará a partir desses conceitos.

Os sábios dizem, ó Amom, que o homem é um universo, por que ele é feito, em sua

constituição, a semelhança do universo. Na verdade, dentro da geração da semente humana,

dentro de todas as partes que constituem o corpo humano, são misturados os raios dos sete

astros, tudo como no ato de nascimento sob a disposição dos dozes signos. Diz-se que Áries

é a cabeça enquanto que as faculdades perceptivas que são da cabeça são atribuídas aos sete

astros errantes: o olho direito ao sol, o esquerdo a Lua, as orelhas a Saturno, o cérebro a

Júpiter, a língua e a boca a Mercúrio, o olfato e o paladar a Vênus e tudo que venha ser

sanguíneo a Marte28

.

27

DE SÉVILHA, Isidoro. De natura rerum, IX, 2 (Ed. francesa. DE SÉVILLE, Isidore. Traité de la nature, éd. J.

FONTAINE, Bordeaux, Féret et Fils 1960.) 28

BEZZA, G. La iatromatematica di Ermete Trismegisto ad Ammone egizio, in: BEZZA, G. Arcana Mundi.

Antologia del pensiero astrologico antico, vol. I, Milão: Rizzoli, 1995, p. 695.

1109

A relação macrocosmo e microcosmo se dá, diretamente, através dos planetas e os

signos do Zodíaco e se exacerba sob uma forma astrológica. Como cada signo é senhor de

cada parte do corpo, o estudo médico-cosmológico permite diagnosticar as predisposições

patológicas de cada homem. Assim, a partir dessa análise é possível receitar medicamentos

diversos de acordo com o alinhamento dos planetas e suas regências sob cada casa zodiacal.

Cada momento da vida das pessoas necessitava de um determinado direcionamento do

cosmos para o seu corpo.

No mundo cristão, a ideia do homem, criatura das mais perfeitas, converge em si todos

os aspectos do mundo, é recorrente. Essa proximidade entre as coisas no mundo e o homem,

dentro do escopo cristão se revela como um ato de amor de Deus. A iconografia da visão da

beata de Hildegarda sobre a concepção do mundo, é um exemplo crucial para entendermos a

inserção da doutrina do homem microcosmo da idade Média e Primeira Época Moderna. De

acordo com Fritz Saxl, ela assimila o conteúdo da cosmologia pagã e da astrologia29

revestindo-as, através de sua fé incondicional em Cristo, em uma história sobre a criação

divina do mundo. Portanto, a concepção do homem enquanto microcosmo já exercia um certo

fascínio no medievo, porém, ainda as imagens cosmológicas eram simples representações

simbólicas do trânsito dos influxos que iam do homem ao universo e sua relação do Deus.

Essa situação muda a partir do século XIV, quando os filósofos e eruditos, partindo da

tradição platônica e da inserção dos textos herméticos, irão conceber a relação homem-

universo como um lugar de concatenação das práticas astrológicos-mágicos, da filosofia e da

teologia. O homem, portanto, será aquele capaz de açambarcar as similitudes do mundo e pô-

las em relação direta com os signos astrais que o circunda.

Antes de começarmos a delinear o impacto e as relações que Ficino estabelecera com

a astrologia e como, sob o prisma cosmológico, a figura do homem – enquanto microcosmo –

exerceu uma certa centralidade nos seus escritos (um homem que refletia a polaridade própria

que o autor vivenciava: entre os imperativos da teologia cristã e as prerrogativas herméticas e

astrológicas que apreendera em seus estudos.); é necessário frisarmos num ponto de imensa

importância que, digamos, irá direcionar e moldar a forma como Ficino constrói todo o seu

arcabouço conceitual.

Em meados de 1460, um monge que trabalhara para Cosimo de Médici, trouxe de suas

andanças pela Macedônia um manuscrito em grego para Florença. Esse manuscrito continha

29

SAXL, Fritz. La fede negli astri.Torino: Bollati Boringhieri, 2016, p.53.

1110

uma cópia do Corpus hermeticum porém não completo30

. Nesse momento já se encontravam

os escritos de Platão, todos reunidos, para serem traduzidos: essa função, incumbida por

Cosimo, foi dada a Marsilio Ficino. Porém, com a descoberta e chegada dos manuscritos de

Trismegisto na Florença dos Médici foi vista com bons olhos e, em certa medida, com alguma

euforia. Cosimo, já um tanto debilitado, ordena que Ficino traduza o Corpus hermiticum antes

mesmo dos textos platônicos: este fato, por si só, já demonstra uma grande disposição dos

indivíduos letrados da Itália do século XV para com os escritos herméticos recém-chegados31

.

Ficino dera o nome de Pimandro à tradução dos textos, sendo que Pimandro era, na

verdade, o nome dado ao primeiro capítulo dentre os quatorze que tinha em mãos. Nos

deteremos um instante em seu argumentum – como o próprio Ficino nomeia – ou seja, na sua

dedicatória a Cosimo. Ficino situa Hermes no espaço e tempo como contemporâneo de

Moises, ou seja, aqui ele deturpa, mesmo que de forma mínima, a genealogia constituída por

Agostinho sobre as origens de Trismegisto. E o próprio Ficino continua tomando a genealogia

agostiniana como preceito, traz tanto Cicero e Lactâncio como aqueles que contribuíram para

a constituição da persona Trismegisto. Todos estão de comum acordo de que se trata de um

sacerdote egípcio de grande sabedoria, talvez o mais sábio de todos os sacerdotes e grande

filósofo que apreendera os grandes mistérios do mundo, e "como sacerdote, pela santidade de

sua vida e pela prática dos cultos divinos; e, pela majestosa dignidade, como administrador de

leis — razões pelas quais é devidamente chamado Termaximus, ou Três Vezes Grande"32

.

Um pouco mais adiante, no prefácio, Ficino constitui o que seria a genealogia dos

saberes herméticos. O interessante nesse dado é que sua genealogia termina em Platão, o que

diz muito sobre como o platonismo moldou sua própria construção de saber. Assim sendo,

essa genealogia se apresenta da seguinte maneira: Zoroastro, Mercúrio (Hermes) Trismegisto,

30

Esse manuscrito continha apenas quatorze dos quinze tratados que compunham a coleção. Ver em YATES,

Giordano Bruno e a Tradição Hermética, pp.24-25. Ver também em GARIN, Hermétisme et Renaissance, pp.

11-19. 31

Um fato de grande importância e que merecem algumas linhas, são os fatos que antecedem a chegada desses

manuscritos. A inclusão de Gemisto Pleton e tantos outros bizantinos nos Concilio de Florença, digamos,

moldará a forma e o interesse ela qual Cosimo e tantos outros indivíduos terão pelos escritos filosóficos gregos.

Tanto Ficino quanto Cosimo já tinha um certo conhecimento sobre os textos herméticos, já tinham tido contato

com o Asclépio, e sabiam também que Trismegisto era mais antigo Platão. Garin comenta um pouco sobre como

o clima cultural florentino era favorável aos textos herméticos, isso, sem sombra de dúvidas, se dava pelo

fascínio pelo Egito na época: "a fascinação pelo Egito antigo, a aura de mistérios, a ideia de uma revelação muito

antiga e, enfim, os temas mágicos, um clima de atenção e o lugar privilegiado acordado pelo homem". Tradução

do autor. GARIN, Eugenio. Hermétisme et Renaissance. Traduit de l’italien par Bertrand Schefer. Paris: Editions

Allia, 2016, p. 13. Original: "la fascination pour l'Égypte ancienne, le halo de mystère, l'idée d'une très ancienne

révélation et, enfin, les thèmes magiques, um climat d'atttente et la place privilégiée accordée à l'homme".) Sobre

Gemisto e os bizantinos nos concilio de Florença ver: MCMANUS, Stuart. Byzantines in the Florentine polis:

Ideology, Statecraft and Ritual during the Council of Florence. Journal of the Oxford University History Society.

2009;6 :1-23. 32

YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 26.

1111

Orfeu, Aglaofemo, Pitágoras, Platão. Essa estrutura evidencia a importância que Ficino dá a

Trismegisto como origo (origem) do saber e culmina até Platão. Há uma necessidade,

segundo Yates, por parte de Ficino em seu desvincular da proscrição que Agostinho faz no

que concerne ao Asclépio, sendo assim, Ficino favorece o discurso de Lactâncio quando quer

convencer e ratificar sobre a importância dos saberes, não só herméticos, mas astrológicos,

alquímicos, no esclarecimento sobre a iluminação divina.

Ficino termina seu prefácio num tom conciliador, porém um tanto temeroso, sobre o

Corpus hermeticum, o que o leva a definir esses escritos como prisca teologica, ou seja, como

teologia antiga. O que nos importa, partindo desse ponto, é quão essas traduções

perambularam e tiveram diversas edições, contribuindo assim para a difusão dos textos

herméticos na Europa:

Foi impresso pela primeira vez em 1471, e teve dezesseis edições que alcançaram o fim do

século XVI, sem contar aquelas em que aparece impresso com outras obras. Foi impressa em

Florença, em 1548, uma tradução italiana de Tommaso Benci. Em 1505, Lefèvre d'Etaples

reuniu num só volume o Pimandro de Ficino e a tradução do Asclépio, do pseudo-Apuleio.33

Todas essas conjunturas – o deslocamento do Concilio de Ferrara para Florença, a

chegada dos manuscritos herméticos e platônicos, e a tradução, por parte de Ficino do

Pimandro – cria um clima para o desenrolar entre as doutrinas astrológicas-mágicas da época

medieval latina e as posições helenísticas que foram renovadas pelas fontes gregas. Esses

diversos enfrentamentos e confrontos entre os variados temas, em certa medida,

desenvolverão novas sínteses que ora florescerão ou se dissiparão em crises.

De fato, sob o terreno particular do hermetismo, as disposições teológicas e

astrológico-magicas que ele proporciona – e das quais Ficino se utilizará para defender suas

posições sobre uma medicina com fortes elementos astrais – se situa dentro de um alto nível

de conhecimento sobre o mundo, ou seja, sobre o conhecimento da unidade do todo, sua

identificação com este todo e, principalmente, as diversas operações no todo que possibilitam

"o conhecimento se identificar com a ação"34

. E que, vale-nos lembrar todo esse processo de

efervescente sobrevivência do hermetismo não pode ser evocado sem antes nos deter num

importante ponto que são as correspondências entre o macrocosmo e o microcosmo – nos idos

dos séculos XII e XIII e que perpassará toda a Primeira época moderna – aliadas a uma

33

ibid., p. 29. 34

Tradução do autor. GARIN, Eugenio. Hermétisme et Renaissance. Traduit de l’italien par Bertrand Schefer.

Paris: Editions Allia, 2016, p. 35. Origrinal francês: "(...) la conaissance s'identifiant avec l'action".

1112

curiosidade pelos fenômenos naturais; assim, o uso da magia e da astrologia estarão sob o

signo de Hermes que circulava sob diversas formas.

E o que, sempre, devemos levar em consideração e ter mente e a qualidade axiomática

do quadro de referências cosmológicos que tanto os textos herméticos quanto os textos de

natureza astrológico-magico apresentam. O que isso, realmente, diz sobre o mundo terrestre?

Nunca devemos esquecer que, às vezes, mesmo não sendo tacitamente declarado, a relação é

sempre astral. O mundo dos homens é regido pelos Sete planetas – aqui se inclui o Sol e a Lua

na qualidade de planetas – e pelas estrelas, e a lei pela qual vive é, no fundo, sempre uma lei

de ordem astrológica.

De fato, não há como desvincular os saberes astrais do hermetismo – seja a Hermética

filosófica ou mesmo a Hermética prática. Uma detida rápida no Asclépio35

nos mostrará como

ordem de criação e revelação do mundo para os homens, passa diretamente pelo entendimento

e compreensão dos ditames astrais, do firmamento. De fato, não temos nenhum comentário de

Ficino sobre o Asclépio, apenas algumas poucas linhas, que estão reunidas em seu

argumentum: "Das muitas obras de Hermes Trismegisto, duas são divinas. Uma é a obra

sobre a Vontade Divina, e a outra, sobre o Poder e Sabedoria de Deus. A primeira delas é

chamada Asclépio, e a segunda, Pimandro".36

A propósito da astrologia, a obra de Ficino mantém um tom, segundo Kristeller,

"ambíguo e cheio de contradições"37

, isso por que num prazo curto de tempo temos a

publicação da primeira tradução de grande relevo feita por Ficino: o Corpus hermeticum,

35

Em linhas gerais, o Asclépio trata da mais da gênese do mundo egípcio, enquanto predição e formação do

homem do que a gênese enquanto criação mundo. De fato, no Asclépio há a passagem onde fala da criação de

um "segundo Deus" pelas mãos de Deus, o Todo; e o nome a que se referem, nos manuscritos, a esse segundo

deus é "Filho de Deus" - o que para os Padres e filósofos cristãos tomarão isso como um tom de presságio. Ou

seja, no Asclépio já estava escrito a vinda do filho de Deus ao mundo dos homens, a vinda de Jesus Cristo. Aqui

Trismegisto profetizara o cristianismo. "Da Vontade de Deus, que em si recebeu a Palavra… E o nous-Deus,

existindo como luz e vida, trouxe à luz um segundo nous-Demiurgo, que, sendo o deus do fogo e do sopro,

formou os Governadores, em número de sete, que envolvem com seus círculos o mundo sensível". (YATES,

Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 35) Porém, mesmo com a criação

de Deus-filho, Deus-todo carecia de algo que pudesse contemplar seus feitos, e assim crio o homem. Yates, de grande ajuda, elenca a importância dos astros e da astrologia para o hermetismo na sua

criação: "O soberano do céu é Júpiter, que, por intermédio do céu, distribui a vida para todos os seres.

(Possivelmente, a primitiva afirmação, segundo a qual o sopro ou Spirit us mantém a vida de todos os seres do

mundo, relaciona-se com esta supremacia de Júpiter, o deus do Ar.) Júpiter é o intermediário entre o céu e a

terra. O Sol ou a Luz, pois é por intermédio do Sistema Solar que se difunde a luz para todos. O Sol ilumina as

outras estrelas, não tanto pela força de sua luz como pela sua divindade e santidade. Deve ser tido como um

segundo deus. O mundo vive, e nele todas as coisas são vivas, com o Sol a governar tudo o que vive." (ibid., p.

48-49) 36

"E multis denique Mercurii libris, duo cunt diune praecipue, unus de Voluntate diuina, alter de Potestate, &

Sapientia Dei. Ille Asclepius, hic Pimander inscribitur." FICINO, Marsilio. Opera omnia, Basileia, 1576, p.

1863. 37

KRISTELLER, P. O. Supplementum Ficinianum Marsilii Ficini Florentini : philosophi platonici Upuscula

inedita et dispersa, Florence: Leonis S. Olschki, 1937, vol. II, pp. 11.

1113

impresso em 1471. De outro lado, temos em 1477 a incompleta Disputatio contra iudicium

astrologorum38

, e por fim, em 1489, temos a publicação de um de seus escritos mais

importantes, De vita libri tres39

, sendo o terceiro livro De Vita Coelitus Comparanda, repleto

de referências astrológicos-mágicos. A Disputatio se insere como uma obra de combate, não

tão ferrenho, contra a prática da astrologia divinatória; enquanto que o De vita pressupõe a

união dos preceitos astrais com a prática medicinal. Porém, entre a publicação desses dois

escritos se situa uma carta40

, provavelmente escrita por Ficino no fim de 1477 ou no início de

1478, onde a dimensão astrológica assume uma variável não vista em nenhum dos escritos

citados acima. O intuito, nessas poucas páginas será de demonstrar, como a reação de Ficino

para com a astrologia se transmuta entre uma ideia de validação medicinal da astrologia, mas,

ao mesmo tempo, se percebe um enorme eco das tradições herméticas e das práticas mágicas

e sua validade no mundo terrestre.

Como estrutura que perpassa a obra de Ficino, ideia de microcosmo/macrocosmo e o

regime das analogias no mundo são de imensa importância para tentarmos compreender sua

visão de homem.

Os textos herméticos constituíram para Ficino um ponto de referência constante, um

testemunho privilegiado da prisca theologia, um documento admirável que manifesta

arcana mysteria, digno de ser colocado por Lattanzio entre as Sibilas e os Profetas (inter

Sybillas et Prophetas). E então exactamente nesta perspectiva que ele encontra a

confirmação e o fundamento metafísico e teológico da astrologia e da magia. [...] Nessas

páginas - se referindo ao De vita – a astrologia inseria-se num contexto que lhe aparecia em

tudo correspondente não só à tradição cristã, mas à sua visão do homem, e da sua dignidade

e centralidade no cosmos.41

Garin, nessas poucas palavras, insere a filosofia ficiniana, através do impacto dos

textos herméticos, numa conjuntura na qual a relação entre o homem e o cosmos é uma das

chaves principais para compreendermos os escritos do filho do médico Diotifeci d'Agnolo di

Giusto. Nos detenhamos um instante em suas Disputatios: a questão que paira é como

podemos explicar uma obra desse tom, dentro do escopo ficiniano? Como prescindir uma

obra de caráter acusador, porém não tanto, dentro do corpus teórico de Ficino? Mais uma vez

Garin nos lança uma luz em meio ao caos: para ele, Ficino nunca levara muito a sério sua

investida contra a astrologia, de fato, o que o autor de uma obra como a Theologia platonica

38

Para as Disputatios ver: KRISTELLER, P. O. Supplementum ficinianum, Florence, 1937, vol. II, pp. 11-76. 39

Para uma versão moderna dos escritos veja: FICINO, Marsilio. Les trois livres de la vie, Paris, Guy Le Fevre

de la Broderie ; Paris, Fayard, Corpus des Œuvres de philosophie en langue française, 2000. 40

FICINO, Marsilio. Scritti sull’astrologia, O. P. FARACOVI (éd.), Milan, Rizzoli 2012, p. 229-231. 41

GARIN, Eugene. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI. Lisboa:

Editorial Estampa, 1987, p. 87.

1114

deixara são mais proscrições, ou mesmo, pequenas objeções. O que estava em jogo, era seu

combate aos "sucessos materialistas e ateus da astrologia"42

; Ficino estava mais preocupado

em os astros "entre os diversos níveis da realidade, as estrelas, decidindo o destino na

qualidade de corpos celestes, assumem uma hegemonia assegurando uma prioridade ao nível

corpóreo, material."43

Os ataques aos astrólogos também são encontrados na Theologia platonica, onde ele

defende, de um lado, a ideia de intermediação dos astros e, por outro lado, a distinção destes e

a primazia de uns sobre outros. Porém, há uma passagem que não podemos deixar que nos

escape, pois será nela que encontraremos um outro lócus importantíssimo para pensarmos das

concepções astrológicas permeados pela similuto mundis, ou seja, pelas analogias construídas

no mundo. Para construir essa ideia, evidentemente, Ficino dá lugar ao seu Platão para

configurar a ordenação dos corpos celeste no firmamento.

Por quantas estrelas há, outras tantas multidões existem de heróis, de demónios e de almas,

àquelas submetidas. Sob Saturno os saturninos; sob Júpiter os jupiterianos; sob Marte os

marcianos, e assim por diante, analogamente [...]. Ele – Platão - crê que tudo está em tudo,

mas na terra de maneira terrestre [modo terreno], na água de modo aquático, e de forma

semelhante no ar e no fogo. Assim como no céu segundo a natureza celeste, na Lua segundo

a natureza lunar, e nas outras esferas analogamente, de maneira que qualquer esfera seja todo

o mundo, a seu modo e segundo a própria qualidade.44

Evidentemente, Ficino descreve, até certo ponto, a condição análoga do homem no

seio do cosmos, o indivíduo no seio do ser que é ligado a tudo no universo. A essa ideia do

homem microcosmo ele retornará, propriamente, no décimo terceiro livro de sua Theologia,

onde ele afirmará a independência da alma perante ao corpo e sus ligação direta com a alma

das estrelas e com todas as almas astrais. Nessa obra, Ficino se mantém fiel aos preceitos

herméticos, como também com as ideias da animação universal, ou seja, a harmonia do

mundo que se desenvolve e, somente é possível pelas similitudes que estão no mundo

(convenientia, aemulatio, analogia e simpatia).

O céu, para Ficino, não fornece mais do que signos, que se refratam no nosso céu

interior – correspondências macrocosmo-microcosmo – os astros indicam e não são a causa.

Aqui sob esta tese podemos observar claramente uma ideia que Ficino fora buscar em Plotino,

especificadamente, nas Eneadas II e III. Essas ideias alimentaram profundamente Ficino

quando escrevia sua Disputatio contra iudicium astrologorum, e que, na verdade, iria compor

uma obra que trataria de Plotino. Fica claro, quando nos aproximamos de um trecho escrito

42

idem. 43

idem. 44

ibid., p. 89.

1115

por Plotino, o impacto dessa obra na teoria astrológica ficiniana: "os astros que são uma parte

importante do céu, colaboram no universo; esses seres magníficos servem também de signos,

ou seja, eles pressagiam tudo que chega no mundo sensível".45

E isso se evidenciará mais nitidamente numa carta que Ficino escrevera a Lorenzo di

Pierfrancesco de Médici, se baseando nas técnicas dos horóscopos, onde ele trata das

qualidades inerentes do rapaz. Nesta carta, Ficino funda num bom exemplo e de uma rara

eficácia sobre as boas maneiras de compreender e de praticar a astrologia. O conteúdo trata

basicamente de temas que envolvem a genetlíaca, ou seja, a análise do tema astral do

nascimento. Em linhas gerais, ele se baseia nas disposições humanas como inerentes aos

planetas, através de suas qualidades, sendo positivas ou negativas. Assim Ficino começa a

carta interrogando-se sobre as qualidades dos planetas para o indivíduo: a Lua que remete ao

movimento contínuo dos corpos e das almas; Marte indicando a prontidão; Saturno, ao

contrário, remetendo a lentidão; o sol como Deus; Júpiter, a lei; Mercúrio, a razão; e por fim,

Vênus, a humanidade (humanitas)46

.

Assim após se deter longamente sobre a questão dos atributos da humanidade em

Vênus, Ficino estabelece uma ligação astrológica entre os hábitos humanos e os planetas, de

forma a criar um arcabouço necessário para decifrar os aspectos positivos da Lua com os

planetas benéficos (Vênus e Júpiter) e a conjunção dos aspectos lunares com os planetas

benéficos (Marte e Saturno). Não há espaço para o fatalismo cósmico de origem estoica na

literatura ficiniana, e principalmente, nessa carta endereçada a um jovem de 14-15 anos.

Ficino sempre alia os acontecimentos pré-fixados pelos planetas com as predisposições da

vontade própria, do livre arbítrio e a responsabilidade moral e religiosa do indivíduo.

Assim como os astrólogos considerem afortunados aqueles cujo destino tenha

favoravelmente disposto os corpos celestes no nascimento, assim também os teólogos se

julgam felizes por tê-los também dispostos por si mesmos. [...]. Vamos então, jovem rapaz,

arma-te e modere o céu com minha ajuda. Que sua Lua, quer dizer, o movimento continuo

dos corpos e da alma, esquiva com a excessiva rapidez de Marte como da lentidão de

Saturno; ou ainda, considere, cada questão particular no momento oportuno e cômodo; não

te apresses ou muito mesmo se tarde mais que o necessário. Que essa Lua que é em ti o olhar

junto a continuação do Sol, Deus mesmo, da qual ela recebe sempre os raios benéficos; e

venere, acima de tudo, o que tu recebeste para qual tu és digno de honra. Olhe também para

Júpiter, quer dizer as leis divinas e humanas, que não devem ser jamais transgredidas:

propague as leis, sobre as quais tudo repousa, não era de fato o que se perdeu. Dirija seu

olhar através de Mercúrio, quer dizer o discernimento, a razão e a ciência, e não empreenda

45

Tradução do autor. Trecho original francês: "Les astres qui sont des parties importantes du ciel, collaborent à

l’univers ; ces êtres magnifiques servent aussi de signes ; ils présagent tout ce qui arrive dans le monde sensible".

PLOTINO, Deuxième ennéade, trad. Emile Bréhier, intro. J. LAURENT, Paris, Les Belles Lettres 1998, p. 60-

61. 46

FICINO, Marsilio. Scritti sull’astrologia, O. P. FARACOVI (éd.), Milan, Rizzoli 2012, p. 230.

1116

nada sem ter consultado, previamente, as pessoas prudentes; não digas ou faças nada cuja

não possa fornecer as razões plausíveis. Tenha por cego e mudo um homem que é privado

das ciências e das letras. Fixe, enfim, seus olhares sobre Vênus mesmo, quer dizer sobre a

humanidade.47

Portanto, para Ficino, a admissão da astrologia não interfere, de forma alguma, na

questão da liberdade dos indivíduos – que devem, aliados aos preceitos astrais, se instruir nas

prerrogativas morais e cristãs - pois nas relações estabelecidas com o firmamento não se

detecta quaisquer tipos de imposições dos astros e estrelas, mas apenas "uma correspondência

expressiva de um ritmo unitário mais profundo"48

.

Todavia, será no terceiro livro do De vita, o De vita coelitus comparanda [Da vida

obtida pelo céu onde Ficino assume uma posição, claramente, de viés mágico-astrológica.

Aqui, Ficino acentua todo o seu conhecimento sobre o hermetismo como também resgata a

teoria da harmonia do mundo que esboçara na sua Theologia platonica. No De vita, o cosmos

aparece como um grande organismo, e, através do impacto dos planetas e astros, como se

estabelece as correspondências e harmonias entre as esferas mais elevadas e o indivíduo.

Ficino somente reconhece o poder de signo das conjunções planetárias e das constelações o

que tem a ver com a sua não crença no determinismo astral. Ou seja, ao mesmo tempo em que

condena, por exemplo, a astrologia judiciária (astrologia divinatória) ele constrói um esquema

cosmológico, para basear sua prática medicinal e também pratica a confecção de horóscopos.

E fica claro que, Ficino se utiliza dos preceitos da melothesia para compor sua astrologia de

ordem medicinal, além disso, é importante frisar como o impacto dos influxos astrais são

determinantes em sua obra. Quando, por exemplo, se tem que operar ou mesmo recitar algum

remédio ou elixir e mesmo, saber quais partes do corpo os planetas e, principalmente, os

signos zodiacais governam se torna função vital para compreender o próprio homem e sua

47

Tradução do autor. FICINO, Marsilio. Scritti sull’astrologia, O. P. FARACOVI (éd.), Milan, Rizzoli 2012, p.

230-231. Trecho original: “Autant les astrologues estiment fortuné celui dont le destin a favorablement disposé

les corps célestes à la naissance, autant les théologiens jugent heureux qui les a disposés pour soi aussi bien. [...]

Allons donc, généreux jeune homme, arme-toi et modère ainsi le ciel avec mon aide. Que ta Lune, c’est-à-dire le

mouvement continu du corps et de l’ame, esquive tant l’excessive rapidité de Mars que la lenteur de Saturne; ou

encore, considère chaque question particulière au moment opportun et commode ; ne te hate point ni ne tarde

plus qu’il ne faut. Que cette Lune qui est en toi regarde ensuite conti- nuellement le Soleil, Dieu même, duquel

elle reçoit toujours des rayons bénéfiques ; et en tout vénère par-dessus tout celui dont tu as reçu ce par quoi tu

es digne d’honneur. Regarde aussi Jupiter, c’est-à-dire les lois divines et humaines, qui ne doivent jamais être

transgressées: s’écarter des lois, sur lesquelles tout repose, ne serait en fait que se perdre. Tourne ton regard vers

Mercure, c’est-à-dire le discernement, la raison et la science, et n’entreprend rien sans avoir consulté au

préalable des personnes prudentes; ne dis ni ne fais rien dont tu ne puisses fournir des raisons plausibles. Tiens

pour aveugle et muet un homme privé de sciences et de lettres. Fixe enfin tes regards sur Vénus même, c’est-à-

dire sur l’humanité." 48

GARIN, Eugene. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI. Lisboa:

Editorial Estampa, 1987, p. 93.

1117

inserção no mundo astral. Assim, num trecho do De vita coelitus comparanda, Ficino é bem

enfático em relatar a melothesia com a utilização dos planetas nos tratamentos medicinais.

A isto, é preciso lembrar que Áries comanda [praeesse] a cabeça; Touro, o pescoço;

Gêmeos, os braços e espáduas; Câncer, o peito, os pulmões, o estômago e os bíceps; Leão, o

coração, o estômago, o fígado, o dorso e as costas; Virgem, os intestinos e o final do

estômago; Libra, os rins, as coxas e as nádegas; Escorpião, as genitálias, a vulva e o útero;

Sagitário, a coxa e a virilha; Capricórnio, os joelhos; Aquário, as pernas e as canelas; Peixes,

os pés49

.

Para Ficino o ordenamento do firmamento, com suas esferas e astros, é a projeção

visível da realidade que se modifica em nós. Andre Chastel bem coloca que "Marte, Júpiter,

Saturno, Mercúrio, Vênus, representam certas forças físicas que são a prontidão, a legalidade,

a lentidão, a razão, a habilidade, a humanidade"50

. Non tam probo quam narro51

, ou seja,

Ficino quer demonstrar no De vita, e em especial no De vita coelitus comparanda que a

astrologia é uma espécie de tradução em linguagem da vida dos astros. Assim, ele utilizará

"todas as imagens astrais, as visíveis como as constelações, as invisíveis e apenas

imagináveis, (...) as potências celestes são capturadas pelo simulacro que as imita, e exercem

a sua eficácia através do espírito"52

.

É partindo dessa ideia de harmonia do cosmo que Ficino justificará sua crença e

prática da magia e da astrologia. E com isso, Ficino poderá, por exemplo estabelecer as

relações análogas entre o céu e a unidade, ou seja, será pela regulação analógica do cosmos -

instância macrocósmica – que tudo pode se reduzir e ter uma correspondência no nível

terrestre - instância microcósmica. O homem seria, para Ficino, o lugar privilegiado onde

acontecem as correspondências astrológicos-mágicos. O homem-microcosmo teria assim, que

se moldar pelas imagens, ao macrocosmo, quer dizer, na construção das correspondências no

mundo, são pelas palavras e ainda mais pelas imagens que as analogias podem ser

concebidas; então homem e cosmos pactuariam da mesma essência, e o motivo desse pacto

são as concepções pelas imagens que o homem concebe o firmamento. Não é à toa que Ficino

monta uma espécie de grande mapa cosmológico através de imagens de notável perfeição e

precisão estética e técnica.

49

VIEGAS, Rafael; OLIVIERI, Gustavo; FERRONI, Angélica. Dossiê Melothesia I, Marsilio Ficino, De Vita

Triplici III, 9-10. In: Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, vol. III, Nº 1, 2015, RidEM, pp. 87-94. 50

CHASTEL, Andre. Marsile Ficin et l'art. Genebra: Libraire Droz S. A. 1996, p. 172. 51

Do latim: Não apenas provo como narro. (Tradução do autor) 52

GARIN, Eugene. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI. Lisboa:

Editorial Estampa, 1987, p. 94.

1118

"Vemos que as coisas compostas alcançam a vida quando a perfeita mistura parece ter

quebrado todos os contrastes precedentes"53

. Esse trecho resume bem a concepção ficiniana

da perfeita união de arte e magia; pois somente com o pleno entendimento das concepções

mágicas e suas operações, o homem conseguirá mensurar a harmonia da vida. Devemos

compreender toda a discussão em torno dos pressupostos astrológicos-mágicos em Ficino

como uma aplicação sistemática das teorias astrológicas na decifração de temas que diziam

muito sobre sua personalidade: o interesse pela sobrevivência do hermetismo, o platonismo, o

casamento perfeito entre os pressupostos pagãos e a teologia cristã, a crítica do fatalismo

astral. Para Ficino, somente o único que conseguir decifrar suas verdadeiras inclinações -

função que a astrologia poderá contribuir – vai perceber e evitar, na melhor das hipóteses,

qualquer condicionamento externo54

.

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53

Tradução do autor. GARIN, Eugene. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao

século XVI. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 95. Original: "sculpet [...] formam quandam mundi totius

archetypam siplacebit in aere, quam deinde opportune in argenti lamina imprimat aurata [...]". 54

Esse tema Ficino desenvolve no De vita coelitus comparanda, XXIII. FICINO, Marsilio. Les trois livres de la

vie, Paris, Guy Le Fevre de la Broderie ; Paris, Fayard, Corpus des Œuvres de philosophie en langue française

2000.

1119

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