assimetria entre o verdadeiro e o falso

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Vivenciando a assimetria entre o verdadeiro e o falso, concluo... Seria melhor começar dando um exemplo para melhor tentar definir. Vamos imaginar que você pegue uma afirmação de que todo cisne é branco. Aí você viu um cisne, dez cisnes, cinquenta cisnes, todos brancos, mas, você ainda assim não consegue fazer a afirmação de que todos os cisnes são brancos. Por quê? Porque sempre haverá a possibilidade do quinquagésimo primeiro não ser; se for o milionésimo, o milionésimo primeiro pode não ser também. Sempre haverá a possibilidade da água não ferver aos cem graus. Logo, você percebe que o falso é muito mais presente, saltitante, visível e fácil de encontrar do que o verdadeiro, pois sempre pairará a suspeita da falseabilidade. Essa assimetria entre o verdadeiro e o falso você encontra entre o bem e o mal. Vou dar um pequeno exemplo: vamos imaginar que você saia e dê cinco reais a um mendigo e várias pessoas o observem nesta ação. Alguém dirá: fez o bem? Discutível, afirmará outro. Está patrocinando a mendicância e contribuindo para que essas coisas não mudem. Essa generosidade é egoísta, porque de certa forma você está se libertando de alguma culpa que é sua. Percebeu como o bem é delicado, difícil de ser concebido, que é algo que está sempre sob suspeita? Agora, experimente ir até um grupo de mendigos e retirar da cuia de um deles os cinco

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Vivenciando a assimetria entre o verdadeiro e o falso, concluo...

Seria melhor começar dando um exemplo para melhor tentar definir. Vamos imaginar que você pegue uma afirmação de que todo cisne é branco. Aí você viu um cisne, dez cisnes, cinquenta cisnes, todos brancos, mas, você ainda assim não consegue fazer a afirmação de que todos os cisnes são brancos. Por quê? Porque sempre haverá a possibilidade do quinquagésimo primeiro não ser; se for o milionésimo, o milionésimo primeiro pode não ser também. Sempre haverá a possibilidade da água não ferver aos cem graus. Logo, você percebe que o falso é muito mais presente, saltitante, visível e fácil de encontrar do que o verdadeiro, pois sempre pairará a suspeita da falseabilidade. Essa assimetria entre o verdadeiro e o falso você encontra entre o bem e o mal. Vou dar um pequeno exemplo: vamos imaginar que você saia e dê cinco reais a um mendigo e várias pessoas o observem nesta ação. Alguém dirá: fez o bem? Discutível, afirmará outro. Está patrocinando a mendicância e contribuindo para que essas coisas não mudem. Essa generosidade é egoísta, porque de certa forma você está se libertando de alguma culpa que é sua. Percebeu como o bem é delicado, difícil de ser concebido, que é algo que está sempre sob suspeita? Agora, experimente ir até um grupo de mendigos e retirar da cuia de um deles os cinco reais que você dias atrás deu. Isso será considerado um mal indiscutível, ninguém terá nenhuma dúvida. Isso é cristalino, pois o mal está presente em todo lugar. Está na notícia de favorecimento de alguém em detrimento de outro, nas ações premeditadas, está no jornalismo, nos meios de comunicação e em toda parte. O mal é claríssimo. Já o bem é de uma fragilidade indiscutível, exatamente por ser discutível a intenção de quem o faz. Ou seja, é suspeito e raro.

Pascal diz: “o mal eu conheço bem, já o bem, tenho uma vaga ideia do que possa ser”.

Outro dia eu escrevi sobre a transparência e o cinismo. Hoje, farei a assimetria entre ambos. A transparência é quase um ato heroico, já o

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cinismo é a regra, está em todo canto, presente em todos os lugares, constatado em todas as relações sociais, absolutamente consagrado até como uma virtude contemporânea, até como polidez, como algo politicamente correto, como generosidade... É ou não é? Ela faz parte da nossa educação. Observem que muitos pais dizem para seus filhos: se ligarem para mim, diga que eu não estou. Se baterem á porta, diga que eu já saí, etc. Lembro-me quando eu tinha uns dez anos. Passei uns tempos com meus pais biológicos aqui no Rio, eles não iam muito com a cara de uma tia que morava na ilha e sempre falavam muito mal dela, até que um dia, foram convidados a um almoço por ela. A primeira recomendação que eu ouvi foi: “olha lá o que você vai dizer para a sua tia sobre o que comentamos aqui sobre ela”. Acho que apesar da nossa pouca convivência e da minha tenra idade eles já sabiam com quem estavam falando. Chegamos lá e eles já foram dizendo: “cumprimente a sua tia, menino”. Cumprimentei o cachorro dela em primeiro lugar, considerando-o hierarquicamente superior, já que o que tinha ouvido em casa sobre ela me dava esse direito de escolha. Almocei e passei a tarde inteira sem falar com a velha tia. Quando cheguei a nossa casa, apanhei até cansar. O meu pai não curtia essa de pedagogia moderna, e a desobediência estava acima de qualquer aproximação familiar e transparência que eu pudesse ter. No entanto, uma dose de cinismo era recomendável para eles naquela circunstância, para que todos tivessem se sentidos confortáveis. “Entornei o caldo” e “desmanchei aquela igrejinha” de recomendações politicamente corretas. Eu não conseguia entender com aquela idade que teria de ser cínico para agradar aqueles que não gostavam daquela tia. Que contradição para a cabeça de um menino de dez anos! Eu não entendia ainda que o esquema está montado para você mentir, está montado pra dizer o que não pretende, está montado para você falsear a verdade, de tal maneira que quando você diz coisas que te ocorre dizer, quando existe um alinhamento entre a comunicação intrapessoal e a comunicação interpessoal, sinal máximo da transparência é possível que você desperte tanta incompreensão, que o mundo se volte contra você, porque estamos habituados a nos relacionar com ideias distantes da vida, ideias higienizadas, ideias que poupam as mazelas existenciais. É por isso que toda transparência surpreende...

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