assim deus falou aos homens e apologos

192

Upload: fernando-rodriguez-mar

Post on 04-Jun-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 1/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 2/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 3/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 4/191

Programa editorial da

LIVRARIA E EDITÔRA LOGOS LTDA. “ENCICLOPÉDIA DE CIÊNCIAS 

FILOSÓFICAS E SOCIAIS”de MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS 

V o l u m e s   P u b l i c a d o s :

1) “Filosofia e Cosmovisão”   — 4.a ed.

 — 2) “Lógica e Dialéctica”   (incluindo a Decadialéctica) — 3.a ed. — 3) “Psicolo- gia”   — 3.a ed. — 4) “Teoria do Conheci- mento”   — 3.a ed. — 5) “Ontologia e Cos  mologia”  — 2.a ed. — 6) “Tratado de Sim- bólica”   — 7) “Filosofia da Crise”   (pro-

blemática) — 2.a ed. — 8) “O Homem perante o Infinito”   (Teologia) — 9) “No  ologia Geral”   2.a ed. — 10) “Filosofia Concreta”   — 2.a ed. no prelo. 11) “So- ciologia Fundamental”   e “Ética Funda- mental”.

No P r e l o :12) “Filosofia Concreta dos Valores”.COLEÇÃO TEXTOS FILOSÓFICOS 

Sob a direção de MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS 

“Aristóteles e as Mutações”   — Com o texto traduzido e reexposto, acompanha-do de comentários, compendiados por MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 5/191

*C Um e o Múltiplo em Platão”,  de MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS.

A S a i r :

“Obras completas de Aristóteles” —  *C :r3_£ completas de Platão” — Acom fsr  ~' ia s de comentários e notas.

r : LIÇÃO “OS GRANDES LIVROS”: 

Quixote de la Mancha”,  de Miguel Cb"^ir.:es — ilustrada, com gravuras de fe^navo Doré — 3 vols. enc. — “Paraíso  Hréxòo . de Milton, com ilustrações de basave Doré, em 2 vols. — “Fábulas de L* Fon:aine”,  com ilustrações de Gustave 

Ztscé.  em 3 vols.A S a i r :

mA l'.:c.da”,  de Homero. “A  Odisséia”,  de Ecniero. “A Eneida”,  de Virgílio. “A Di  wm.z Comédia”,  de Dante, com ilustrações 

ée Gustave Doré, em 3 vols. “Gil Blás de HpcrJkc na”,  de Le Sage, com ilustrações.

ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL:

Antologia de Contos e Novelas de 

Estrangeira”. 2) “Antologia de Car::5 e Novelas de Língua Estrangeira”. 2 Ar.:ologia de Contos e Novelas de iarriü Portuguêsa”. 4) “Lendas, Fábulas « Apclo^os” 5) “Antologia do Pensamen-

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 6/191

to Mundial”. 6) “Antologia de Famosos Discursos Brasileiros”. 7) “Antologia de Poetas Brasileiros”. 8) “Antologia de 

Poetas Estrangeiros”.Obras de

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

P u b l i c a d a s :

“Filosofia e Cosmovisão”   — 4.a ed. —  

“Lógica e Dialéctica”   — 3.a ed. — “Psico- logia”   — 3.a ed. — “Teoria do Conheci- mento”  — (Gnoseologia e Critèriologia)

 — 3.a ed. — “Ontologia e Cosmologia”   —  (As ciências do Ser e do Cosmos) — 3.a ed. — “O Homem que Foi um Campo de Batalha”   — Prólogo de “Vontade de Po-tência”, ed. Globo — Esgotada — “Curso de Oratória e Retórica”   — 6.a ed. — “O Homem que Nasceu Póstumo”   — (Temas nietzscheanos) — 2 a ed. — “Assim Fa- lava Zaratustra”   — Texto de Nietzsche, 

com análise simbólica — 3 a ed., no prelo. — “Técnica do Discurso Moderno”   — 3.a ed. — “Se a esfinge falasse...”   — Com o pseudônimo de Dan Andersen — Esgo-tada — “Realidade do Homem”   — Com o pseudônimo de Dan Andersen “Aná- lise Dialéctica do Marxismo”   — Esgotada — “Curso de Integração Pessoal”   — (Es-tudos caracterológicos) — 2 a ed. — “Tra- tado de Economia”   — (Edição mimeogra

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 7/191

:'ida) — Esgotada — “Aristóteles e as Mutações”   — Reexposição analíticodidá rica do texto aristotélico, acompanhada 

£a crítica dos mais famosos comentaris-tas. — 2.a ed. — “Filosofia da Crise”   —  (Problemática filosófica) — 2.a ed. —  Tratado de Simbólica”   — “O Homem rerante o Infinito”   (Teologia) — Noolo  çia Geral”   — 2.a ed. — “Filosofia Con  

.~etay}  — “Sociologia Fundamental   e “Ética  Fundamental”   — “Práticas de Oratória”  — “O Um e o Múltiplo em Platão”   —  Assim Deus Falou aos Homens”  — “Vida  co éArgumento”   — “Certas Subtilezas Humanas”   — “Casa das Paredes Geladas” 

A P u b l i c a r :

* “Filosofia Concreta dos Valores — * “Os versos áureos de Pitágoras”   — * “Pitágoras e o Tema do Número”   — * “Tratado de Estética”   — * “Tratado de Esquematologia”   — * “Teoria Geral das Tensões”   — * “Dicionário de Filosofia” 

 — * “Filosofia e História da Cultura”   — * “Tratado Decadialéctico de Economia,! 

 — (Reedição ampliada do “Tratado de Economia”) — * “Filosofia da Afirmação  e da Negação”   — * “Temática e proble- mática das Ciências Sociais”   — * “As três críticas de Kant”   — * “Hegel e a Dialéc  t ica  — * “Dicionário de Símbolos e Si 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 8/191

mática das Ciências Sociais”   — * “As três críticas de Kant”   — * “Hegel e a Dialéc- tica”   — * “Dicionário de Símbolos e Si- 

nais”   — * “Metodologia Dialéctica”   — * “Discursos e Conferências” 

T r a d u ç õ e s :

* “Vontade de Potência,  de Nietzsche — * “Além do Bem e do Mal”,  de Nietzsche

 — * “Aurora”,  de Nietzsche — * “Diário íntimo”,  de Amiel — * “Saudação ao Mundo”,  de Walt Whitman.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 9/191

?.:o f e r r e i r a d o s s a n t o s

O f E R T A D A

■UOTEM I IK i

.............í ü t . DBB

L 0 U A O S

H o m e n s

A p ó l o g o s   e   F á b u l a s

Lr.T_.RiA e E d i t o r a LOGOS L t d a

Praça da Sé, 47 — Salas 11 e 12 Fones: 333892 e 310238 

S Ã o P a u l o

  r   J  n

   Q

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 10/191

l.a edição — outubro de 1958

Todos os direitos reservados

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 11/191

Í N D I C E

Págs.

Prefácio 13

Assim Deus Falou aos Homens .. 19

Apólogos .  ___   53

 — 11 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 12/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 13/191

P R E F Á C I O

Quando os anos traçam em nossa vida a marca do tempo, volvemos os olhos para o passado e vemo-nos como indivíduos distantes, estranhos e também conhecidos, os muitos que 

 fomos, e que ainda somos, sem os  sermos mais.

 Aquele, com aquelas esperanças, aquele outro com seus ímpetos e 

 sua fé, e, lá, humilhado e impotente, aquele que não acreditava pudesse vibrar ante uma nova esperança. . . São tantos, tão diferentes de nós e tão iguais. Êles não  nosnegam em suas afirmações, contrá-

 — 13 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 14/191

rias  às nossas de hoje, e nos afirmam em suas contradições, porque nelas afirmam sempre a nossa, humanidade, que em nós se fêz carnc.

 E alguns gestos, algumas palavras, algumas atitudes ficam distantes, marcando a nossa passagem.

 Podemos acaso desfazer o gestc que fizemos? Ante aquela estrela no céu, podemos hoje negar o gesto ingênuo daquela mão infantil que 

 se estirou para colhê-la? Acaso, aquêle ímpeto que aque

ceu a nossa carne, podemos destruí- lo, quando já nevam os nossos en

tusiasmos? Nunca nos negamos, como os ho

mens de hoje não negam o passado,e em cada momento da história, diferente e outro, o homem não nega o que já foi.

 —    14 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 15/191

 E daqueles  nós mesmos que ficam \a distância e na penumbra do tem

 po, restam apenas alguns símbolos: uma memória vaga ou nítida, uma  

 frase, um gesto ou algumas palavras escritas.

 Leitor amigo, que olhando em ti 

n esmo me compreender ás, recebe estas páginas que foram minhas c  zinda o são, porque não me atrai- ;oam, e me afirmam. Se hoje, muitas  

 zjastam-se de m eu pensamento,  zcredita que as pensei com, entusiasmo e vida, pois nelas há muito do \eu sangue.

Talvez nelas te encontres muitas 

•jèzes, pois tu és como eu. Nelas te encontrarás como eu me encontro em ti. Não as recuses quando não  zs sentires. Acredita sempre que -oram sinceras e escritas com tôda  z lealdade.

 — 15 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 16/191

 E hoje ao relê-las, vejo, nelas, o  germe de muitas das minhas, idéias e também a razão de muitas de m u  nhas ações. Não quis modificá-las, nem retocá-las. São pensamentos que me animaram durante quinze anos de vida tão intercalada de má- 

 guas, de alegrias, de incompreensão, mas também de gestos amigos e afectuosos. Há por entre elas o traço de cada um dêsses momentos, a côr  viva de alegria ou a leve penumbra  

de uma decepção.Como símbolos, testemunham  mais do que poderia fazer um diário, onde a intencionalidade desvirtuaria o que veio espontâneo do 

coração. . Podes aplaudi-las ou rejeitá-las. 

O aplauso, nunca o pedi a ninguém. O repúdio sempre soube compreender. Portanto, nada de ti poderá ser- me uma surpreza.

 — 16 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 17/191

Se nelas te encontrares, estaremos  juntos, pois nunca nos separamos, até quando seguimos caminhos di

 ferentes. Levo em mim, como tu, a ~.ossa pobre humanidade.

M á r i o   F e r r e i r a   d o s   S a n t o s .

 — 17 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 18/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 19/191

A S S I M D E U S

F A L O U A O SH O M E N S

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 20/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 21/191

Já haviam despertado as trevas para os lados do nascente.

E despertei porque abri os olhos

 para a luz da manhã.O silêncio dominava tôdas as coi-

sas como se elas permanecessemainda adormecidas.

 Na paz do campo, deveria ferir:s meus ouvidos a clarinada de umgalo, e um canto de pássaro nãor.e surpreenderia.

Surpreendiame o silêncio; silên-cio que me penetrava e me pesavanas pálpebras.

Acordei quando soaram as tromr^tas do Senhor. Uma brisa suaveembalava tôdas as coisas e mansa-mente acariciava o meu corpo por-que despertei sem sobressaltos.

 — 21 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 22/191

Eu também ressuscitava, e vi.E vi que o verde dos campos era

mais aveludado. No céu, um azulmuito lavado, longínquo, matizadode um leve côrderosa, permitia aosmeus olhos penetrarem distânciassem fim.

 Não era mais uma cúpula empoeirada de luz, e tudo me parecia es-tranho; porque era tão diáfano, tão

 profundo, que não havia mais dis-tâncias para os meus olhos.

Por que, por que era tão dife-rente o mundo?

É que já haviam soado as trom betas do Senhor.

E de todos os horizontes, um ru-mor veio até mim. Eram vozes queentoavam hinos.

E cercavamme milhões e milhõesde sêres como eu, e todos volviamos olhos para aquela voz luminosaque atravessava tôdas as distânciase nos aproximava do infinito.

 — 22 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 23/191

 Nunca poderei descrever o quesenti ante aquela imensa luz quéescurecia a luz do sol. Senti invaiirme um frio agradável que nãome enregelava.

E havia côres inéditas para osmeus olhos. E ouvi um som mara-

vilhoso, ante os .quais, o que vale-riam os sons harmoniosos de umr.obre violino?

E não me sobressaltei, quandoaquela luz imensa falou:

 — Homem, chegou o tempo dos.empos, e estás nos umbrais daEternidade. Eu sou a Eternidade.

Ante o Senhor, eu deveria ter:aído de joelhos. Deveria, humilde,

elevar até êle os braços, e pedirlhe p:edade.

Eu estava alí para ser julgado, pois soara o Juízo Final.

Mas a voz do Senhor tornou afalar:

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 24/191

 — Homem, não deves temerEternidade. Não quero de ti o gestode quem pede. Nunca dos teus lá- bios deveriam ter saído as palavrasdos que pedem, nem os lamentosdos queixosos da vida.

Se em vez de pedir, tivesses to-

mado da vida o que precisavas, nãoestarias agora tremendo na minha presença.

O meu interrogatório será bree rápida a minha sentença. Em ti

eu julgarei todos os teus semelhan-tes.Por que não acreditaste na minha

verdade? Não acreditaste por ser simples

e clara! Sempre temeste a simplici-dade, e a minha verdade era a sim-

 plicidade . Não sentiste a suavidade do verão

 percorrer a tua pele? Não sentisteem tua alma as folhas sêcas que

 — 24 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 25/191

caem no outono? Não sentiste nastuas carnes os frios do inverno?

 Não reverdesceste com o mundor.as promessas da primavera?

Tinhas, na alma, tôdas as almasdo mundo. Se tudo isso tivesses:ompreendido, terias vencido a

ir.orte! E por que não o compreenáeste? — Senhor. — Não precisas responder. Eu sei

i tua resposta. Ouveme: Disseste

um dia que os fenômenos no mundo;e processavam de acôrdo com asleis da natureza. E estavas com averdade. E por que não concordasteque havia uma ética na natureza,

cujos fenômenos observam a regu-laridade de certas leis? Por quecriaste uma ética que negava a na-tureza? Ouve! Os poderosos cha

 —aram bons aos poderosos; os huruldes, aos humildes; os corajosos,

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 26/191

aos corajosos; e os fracos, aos fracos.Todos os teus semelhantes se consi-deravam bons. E por que não foram

 bons?Quando impotente, inventaste acomplacência; quando te abaixavas,cheio de temor, chamaste humilda-de; quando te sujeitavas ao forte, a

quem temias, chamavas obediência;como não podias vencêlo, falavasem perdão.

Por que usaste do meu nome para justificar as tuas fraquezas?

Só por temeres os fortes aceitaste o amor ao próximo.

Quão poucas vêzes conheceste oamor, porque êle muitas vêzes era

feito de mêdo. Mas outros nomesdeste aos teus sentimentos, mascarandoos, para que os poderosos nãocompreendessem o teu ódio.

Fizeste do mundo um cárcere, e

investaste filosofias de carcereiro.

 — 26 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 27/191

 Não disseste muitas vêzes que a.ida não merecia ser vivida?

E por que? Porque te acovardaas ante a existência.Por que criaste uma moral de

vencido? Por que, em vez de construires o teu mundo, viveste a ima-ginar outros que julgavas melhores?

 — Senhor, tu és absoluto e podescompreender o porquê da minhafraqueza.

 — É por isso que te falo. E ouve:detesta os que conduzem e os queíeguem. É mister que inspires a timesmo a grande emoção capaz deinspirar os outros. É uma traição aú mesmo quereres conduzir o teu próprio eu. Deves conquistarte pela

ua própria fascinação.Afirmate pela natureza. E se as-

sim o fizeres, os teus olhos verãomelhor, e ouvirão os teus ouvidosilém dos teus ouvidos.

Procura na natureza as regras

 — 27 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 28/191

 para a tua vida. Não destruas a ti próprio ao te encadeares nas alge-mas que criaste.

Chegaste agora aos umbrais daEternidade.

Ouve!:Foi o teu mêdo que criou a ima-

gem que de mim fizeste.Os teus filósofos descreveramme

como um monstro de sabedoria; osteus ascetas, como um infinito deascetismo; os teus poetas, como omais lírico dos poetas, os teus fra-cos, como o extremo da compla-cência.

Em mim espelhaste sempre as tuasausências desejadas.

 No entanto, na vida com que ani-mei o teu corpo, estava escrito omeu caminho. Só êle poderia levarte até mim.

Mas outros caminhos preferiste buscar. Procuraste engrandecer atua pequenez, e a atribuistes a mim.

 — 28 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 29/191

I porque era mesquinha a tua in-terpretação, acusasteme dos teuserros e procuraste destruirme.

Vou exporte a imagem que tu, denim, um dia fizeste. Segundo a tuainterpretação, eu percorri sozinhoa imensidade do infinito, através doinfinito do tempo. Ninguém me

acompanhava nessa peregrinaçãoeterna. Sozinho, buscava através daimensidão de mim mesmo, a da mi-nha obra.

O teu aplauso chegava até mim

:’o ínfimo como se areias do desertoaplaudissem a arquitetura de tuasndades. Sabes acaso o que sofreum ser que não recebe o aplauso dealguém que a êle se assemelhe? E

ru, homem, tu que te queixas da:ua infelicidade, podes encontrar oaplauso dos teus semelhantes.

Vives ombreando com teus pares.Para a tua vida, para chorar as tuas

lágrimas, para rir contigo as tuas

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 30/191

alegrias, para sofrer, compartilhan-do a tua dor, tens a companheiraque eu te dei.

E eu, eternamente sozinho porentre a imensidão de mim mesmo,estou só na minha glória.

 Não há para mim montanhas queatravessar, rios que vadear, som-

 bras que iluminar, mistérios quedecifrar.

 Não preciso conhecer a fruiçãodas descobertas, o sacrifício agridoce dos que perdem as noites noestudo em busca do conhecimento,

 por que sou Deus, e conheço tudo,e as trevas, para mim, são luz; asmontanhas são rugas do meu cami-nho e os rios, veios mesquinhos quenada significam.

Tu proclamas o meu poder abso-luto. Tu o declaras por teus sábiose pelos teus filósofos, e, no entanto,queres fazerme limitado na minhagrandeza.

 — 30 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 31/191

 Nunca compreencleste o meuamor, como se apenas pudesse amar.im ser infinito como eu. Querias

que eu permanecesse eternamentea contemplação de mim mesmo, ea embriagarme da minha própriacontemplação e no amor do meu

 próprio amor. É que te afastavas de

mim com o coração, e pensavas querra eu que me afastava de ti.Quando criaste regimes autocrá-

ticos me descreveste como um auto-crata; quando construíste regimes

democráticos; fizesteme um Deus bondoso; quando guerreiro e odienfizesteme um Deus odiento e

guerreiro. Construiste a minha ima£em à tua imagem, assim como ou-

tras vêzes julgaste que a tua eraa minha imagem. Querias fazer decum um impotente ao afirmar queeu não podia fazer o mal nem orada, como se não fôsse o mal e o

rada obras da impotência e não do

 — 31

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 32/191

 poder absoluto. Unilateral sempreem tuas concepções, nunca te foi

 possível compreender os matizes dos

meus atributos. Não precisavas ser um deus para

entendêlos. Tu, relativo e condi-cionado, querias ser a imagem doabsoluto e do infinito. Desejavas,assim, iludir a tua limitação, insi-nuando a ti mesmo, às tuas intuições, à tua razão, para que se vol-tasse contra ti, contra tua condicionalidade, que eras um deus, masdesterrado. Criaste a lenda de Pigmalião para atirar sôbre a divinda-de a infâmia de uma dúvida.

Tu me ofendestes com a imagemque de mim criaste. Foste semprea medida de tôdas as tuas coisas.

Mas há em teu orgulho algumacoisa de heróico, quando, nesse or-gulho, existe um desejo de me al-cançar.

Admiro sempre aqueles que bus

 — 32 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 33/191

:am elevarse de seu ponto de par-tida. Mas sempre desprezei aquelesque estabelecem um estreito pontode chegada.

Deves, homem, criar para ti um ponto de partida e nunca um pontode chegada.

Faze de mim um ponto de chegaza e faze de ti um ponto de partida.Como homem, busca superarte.Aqueles que te envenenaram coma. loucura de atingir os fins, comose os fins existissem antes de mim,::maramte difícil a descoberta doiiminho. Avança além de ti mesmo.A tua felicidade não é apenas o bemestar, mas em sempre te aproximares de mim. E em cada instante dotempo, em cada uma das tuas vilirias, sentirás a felicidade da tuarrr.quista.

Como queres acharme, se tu ain-da. nem te encontraste?

Eu te ensino o novo caminho: eu

 — 33 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 34/191

sou a definitividade sem fim. Bus-carme é o teu caminho. Eu estouem cada uma das tuas conquistas,e em cada uma das tuas vitórias, eestou contigo em cada uma das tuassuperações.

E cada instante que venceres ati mesmo, em cada momento que de-res um passo à frente, estarás mais próximo de mim.

Estarei ao teu lado quando amares, para que a tua afeição seja mais

 profunda; estarei ao teu lado quan-do chorares, para que a tua dor nãote desespere. Tu me terás ao teulado em cada uma das tuas vitórias, porque eu sou a tua vitória.

Buscate que me   acharás.Ouve o meu novo sermão daMontanha:

1 — Um dia, os homens hão damar novamente o sol. Há homens

que o odeiam, porque lhes anunciao trabalho fatigante

 — 34 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 35/191

A noite, para êles, tem um gôstoie libertação! Terrível espetáculo~ de um mundo assim!

Quando os homens voltarem aosseus lares com o peito alevantado,o rosto modelado por um sorriso,^ão de amar novamente o sol.

2 — Não me afirmam os que meafirmam em palavras; nem me ne-gam os que em palavras me negam.

 Negamme os que me negam emactos, embora me afirmem em pa-lavras.

Eu sou aquêle pai que se ofendequando os filhos o renegam pelosactos

3 — Tornaste o amor pecamino-

so. Deite o amor, para que êle teembelezasse a vida. Deite o céu zzs  menores coisas e tu o desprezaste, porque êle vinha nas menores::;sas. Deite o amor, junto à tua

eame e junto ao teu espírito, paraque suavizasse os teus instintos. Tu

 — 35 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 36/191

o chamaste pecaminoso. Fizeste demim um monstro assexual, para cla-

mar contra a miséria do teu sexo.Em verdade eu te digo: o amor dossexos também é divino, quando uneos homens além de si mesmos. Oamor ergueos e os une além do

tempo. Negase a si próprio, e negaa mim, aquele que nega o sexo.Em verdade te digo: só as almas

superiores sabem amar, e bemaventurados os que amam porque êles

conhecerão o reino dos céus! — Observa os teus semelhantes.São mais desembaraçados para

amaldiçoar do que para agradecer.Quando amaldiçoam, as frases saem

rápidas, vivas, fluentes.Mas as palavras são difíceis; tor-cem as mãos, e humildes, como ven-cidos, baixam a cabeça, sorriem te-merosos, entre a tristeza e a ale-

gria, quando agradecem, revelandouma terrível luta interior. .

 — 36 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 37/191

5 — Já disse um dos teus:“Não é o amor ao próximo que

?alva os náufragos, e sim a cora-rem!” Que adiantaria o amor ao próximo de quem não pode tom areíectivo êsse amor? Deves cultivar= coragem, a coragem ante a dor, a

roragem ante o sofrimento, a cora-rem ante a alegria, a coragem ante: prazer, a coragem, altiva e nobre,em cada um dos teus momentos.

Só depois aprenderás a amar o

teu próximoSó os corajosos sabem dar. Não::nhecem o sofrimento surdo de suarenevolência; pois o covarde, quanéo dá, procede por temor do castigo

érvino ou por temor dos outros ho-mens, ou por astúcia, no intuito dereceber uma paga maior que a dáárva. O corajoso dará sem temores.

I. em verdade te digo, bemaven

r_rados os corajosos porque dêlesserá o reino dos céus!

 — 37 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 38/191

6 — Cuidate daquéles que olhama vida com um olhar de sono. Tu

sempre dormirás bem quando forestu mesmo. Quando negares a ti mes-mo, teu sono interrogarteá. As tuasangústias serão livres e não uivarãona tua alma. Mas, para libertálas,

não taparás os ouvidos, afim de nãoouvilas, nem delas fugirás para fugires à presença que te desgosta.

Deves levantarte com um sorri-so, porque todo acordar é uma res-

surreição.Bemaventurados os que sorriem, porque dêles será o reino dos céus!

7 — Se na hora da fortuna es-queces os teus amigos, como queres

que se lembrem de ti na hora daamargura?8 — Aquele que deseja a felici-

dade sem o esforço, é como o queatira fora a noz porque dura é a

casca.9 — A mãe ama o filho porque

 — 38 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 39/191

sofre para lhe dar a vida e paraconservála. Tudo quando fàcilmen*.e obtens, tens perdido. As dores,as lágrimas, as dificuldades forami medida de valor de tôdas as tuascoisas.

10 — Virtuoso não é o que faz o bem porque teme o castigo; virtuo-so não é o que pratica o bem por-que será premiado; virtuoso não é: que realiza o bem porque não tem

 propensão para o mal. Virtuoso é; tenaz, é o forte, é o que vence, éo  que executa a sua vontade, é oque dirige os seus impulsos, é o queestabelece um ideal, e o busca

É o delicado para com os fracos,enérgico para com os covardes, hu-milde para com as crianças, digno para consigo próprio.

11 — Homem, um dia cansastece crer. Tantas foram as mentirasiaquêles que falaram em meu no-me, que fechaste os ouvidos a tôdas

 — 39 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 40/191

as vozes que anunciavam um “alémde ti mesmo”

Mas, quando sofres o desejo deum impossível; quando não consegues vencer a dificuldade que pensaste superar, quando uma insatis-fação te oprime o peito e te arranca

um suspiro, podes conformarte coma tua morte. Podes ter um sorrisoestóico e indiferente. Mas dentro deti uma voz clamará, e precisarásamordaçála. E por que nesses mo-

mentos não interrogas a ti próprio,se existe, em ti ou não, o que clamacontra a falta, o que pede para ven-cer as tuas derrotas?

 Não ou viste essa voz?

Sou eu, em ti, que falo, e por quenão me queres ouvir?12 — Como encontrarás o sobre-

natural se tu nem siquer soubesteencontrar a natureza?

13 — Quantos actos de bondade

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 41/191

deixarias de realizar se não tivessemtestemunhas?

14 — Rebelamse contra as re-gras os que não podem cumprílas.A virtude só é grande quando dificil.

15 — Não conduzas e não serásconduzido.

Deves temer até conduzir a ti pró- prio. Perdete em tua própria flores-ta para que te aches. E empreendea tua busca como quem faz umaconquista.

Bemaventurados os que conquis-tam a si mesmos, porque dêles seráo reino dos céus.

16 — O que recebe, louva sem- pre o desinterêsse de quem dá.

Os que nada pedem à vida, os queccão se queixam da vida, os que nãose cansam de buscar, têm sempreum gesto desdenhoso quando acham,quando obtêm, quando sofrem.

Chamaste de verdadeiro tudo

 — 41 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 42/191

quanto te foi útil, tudo quanto cor-respondeu aos teus desejos. Ao ven-to que saculeja a árvore e atira ao

chão a fruta madura, para que tu aapanhes sem esforço, chamaste de bom.

 Não precisarei dizer mais paramostrar quão mesquinho é o teu

conceito do verdadeiro, do bom, doútil?

17 — Se o mundo não te fôr cadadia diferente é que tens a mortedentro de ti.

Bemaventurados os que trazemdentro de si a vida, porque dêlesserá o reino dos céus!

18 — A virtude dos pessegueiros são os pêssegos. A virtude dos

mares o serem imensos; dos tigres,a crueldade; e a astúcia, a das ra-

 posas. Só tu julgaste que a virtudenão consistia em ser instintivamentehumano!

Em verdade te digo:

 — 42

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 43/191

Bemaventurados os que não seegam, porque dêles será o reinodos céus

19 — Quão infeliz terias sido, se _jn dia eu te tirasse o esquecimento!

20 — Chamaste grandes aos quer.ão pecam por temor do castigo, daconsciência ou do remorso. Comochamarias àqueles que não pecam

 porque não querem?Bemaventurados os que não pe-

cam porque não querem, porque dê-les será o reino dos céus!

21 — A rã não acredita nummais além dos horizontes.

Por que tu não vais acreditar nummais além dos teus horizontes?

22 — Tu agradeces a vida quan-do te fazem um bem? Então por que:e queixas da vida quando te fazemum mal?

23 — Que seria de ti se não hou-

vesse os que amam o perigo. Quemtravessaria os mares, as terras des-

 — 43 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 44/191

conhecidas, quem galgaria os cumesdas montanhas? Quem se aprofun-daria nas entranhas da terra? Quemdevassaria os espaços e quem pene-traria nas selvas do conhecimentoem busca de novas verdades?

Quem se entregaria ao afã das

descobertas, no silêncio impregna-do de mistério dos laboratórios, senão houvesse os que amam o perigo?

Em verdade te digo:Bemaventurados os que amam o

 perigo, porque dêles será o reinodos céus!24 — Bemditos os miseráveis que

guardam para si as suas misérias.25 — Um olhar de eternidade,

homem é o que careces para a alti-vez de teus olhos!26 — A bondade manifestase no

imprevisto da generosidade.Só podem dar os que têm. E quem

tem é mais do que si próprio. Deves, por isso, amar o “além de ti mesmo”,

 — 44 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 45/191

rara poderes conhecer a felicidadede quem dá.

Em verdade te digo:Bemaventurados os que vão além

de si mesmos, por que dêles será oreino dos céus.

27 — Não tenho virtudes, por-

que sou quem sou.Virtuoso é só quem vence os seusdefeitos, e eu não os tenho. É fácilser bom quando a bondade é agra-dável, e eu não admiro os justos que

rão podem ser injustos.Querote como és, mas vencedorde ti mesmo, porque em verdade tedigo:

Bemaventurados os vencedores,

 porque dêles será o reino dos céus.Enganamse que me servem os

que sacrificam a vida para me ser-vir; enganamse que me amam, osque odeiam os outros para amarrr.e; enganamse que me honram,

 — 45 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 46/191

os que buscam a solidão para meencontrarem.

 Nunca pedi dêsses servidores, poisnão seria Deus se dêles carecesse.

Eu sou a Eternidade. Volta para junto dos teus semelhantes e repetelhes estas palavras que traduzina imperfeição da tua língua: “Quiseste um mundo melhor do queaquêle que te dei. Dizes saber comodeveria ser êsse mundo; proclamaste até que feito por ti, êle seriamelhor.

Se sabes construir a felicidade, por que não a constróis?

 Não conheces acaso as leis do teumundo? Não dominaste as distân-cias? Não acorrentaste o raio e tornaste inofensivo o trovão? Não sou beste arrancar do seio da terra oalimento para os teus? Não construíste cidades imensas de cimentoe de aço? Não tiraste do âmago daterra a fôrça que te poupa o esforço?

 _ 46 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 47/191

 Não aumentaste no decorrer de séT_àos o teu poder mil vêzes mais?Por que não realizas o teu mundo?

ror que não fazes a tua Terra Pro-metida em vez do “meu vale de Lázrimas”? Não te consideras inteli-gente, poderoso, forte? Pois mostrai tua fôrça, o teu poder, a tua inte-

ligência.É, pelo menor esforço que desejas

que eu, como um dos teus mágicos,transforme as coisas num golpe demágica.

Queres ter à tua mão o fruto querão colheste. Não, homem! Con-quista por ti próprio o mundo queiesejas. Darlheás depois, quantomais lágrimas e mais dor êle te exi

çr. mais valor pelo que te custou! Não destruirei a minha obra tor-

nando a ti, poeira de uma poeira,maior do que mereces. Deite a in-teligência para poderes vencer em

rua luta. Que fizeste dela? Por que

 — 47 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 48/191

não a usaste para o bem? Cansasteagora de usufruir o teu poder, ecomo temes os mais fortes do quetu, pedesme que os torne iguaisa ti.

Se eu fizesse o mundo como de-sejas, sentirteias mais infeliz doque és hoje porque te cansarias logoda tua felicidade. Dize ainda aosteus semelhantes estas minhas úl-timas palavras:

Homem, voltarás a ser tu mes-mo, e imprescritivelmente viverás atua vida. E continuarás comendo o pão com o suor do teu rosto. Oimensamente grande e o imensamen-te pequeno da tua vida tornarás avivêlos.

Cada sofrimento e cada alegriatua hãode encher de lágrimas outravez os teus olhos e fazer sofrer oteu peito e hãode outra vez desa- brochar o sorriso do teu rosto eaprofundar a tua respiração. E, as

 — 48 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 49/191

ám , imprescritivelmente. E terásoutra vez o sol que admirarás e

adorarás, porque êle carregará defrutos maduros as árvores que plantares, e de calor o teu corpo quetremerá nas noites frias. Outra veza lua há de empalidecer nas noites

escuras e sugerirá a eclosão dos teussentimentos e dos teus afectos. Ou-tra vez ouvirás o ritmo das horasque passam, marcando o teu tempo.Z admirarás os campos soltos, as

manhãs claras, cheias de luz e devezes de pássaros, e terás as suges-tões misteriosas que se esconderãoras sombras das noites sem luz,:utra vez.

Homem, vive e compreende o teuéestino. E verás, então, que, maism a vez, háde desabrochar no teurosto o sorriso da alegria que pro

rjras, e háde doer menos o teu peito.

 — 49 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 50/191

Ouve: que o sofrimento não seja para sempre a tua preocupação. É

mister que o vejas em função datua alegria. Não rirá nunca o teurosto, antes que se tenha um diaretorcido pela dor.

Só poderás gozar a felicidade da

incerteza quando compreenderesser a dor a antecâmara da alegria.Ama a contradição de tua vida, por-que ela afirma. Não modeles a tuaexistência na estreiteza dos sonhosda tua fantasia nem da tua reali-dade.

 Nega os fatalismos para afirmaro teu querer. Lembrate que há des-

tinos que se forjam, como tu forjasas tuas espadas. Careces da cons-ciência da tua fôrça e não temasusála. Só assim te elevarás acimade ti. Acreditaste no fim, porque

viste o fim das coisas, e elas setransformam.

 — 50 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 51/191

Acredita na tua eternidade, e já  terás com isso conseguido supe-

rar um pouco a tua limitaçãoQue as minhas palavras te sirvam para o futuro. Faleite com a sim- plicidade de tua língua, e esperonão mais ouvir as tuas queixas que

aborrecem os meus celestiais ou-vidos!Tôdas as imagens que de mim

oriaste tornamse ridículas e ofen-sivas. Não criticarei a tua maneira

de me conceber. Não sou o Deusque exige a cada instante um sa-crifício, que, a cada momento, queros teus pensamentos voltados paramim. Não seria Deus se carecesse

de sacrifícios para poder aplacar aminha ira, nem me ofendo por procurares descobrir quem sou. Emrada uma das tuas épocas terás demim uma definição, e esta nunca

*.e háde satisfazer. Mas ouve: pre.isamente porisso deves te alegrar.

 — 51 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 52/191

Farás de mim, tantas imagens,quantos os teus instantes, na vida.

Em vez de me definires, ensinarteei a maneira de me encontrares.Buscame. É nessa busca que meterás ao teu lado. Quando me atingirás? Que te interessa saber o

quando, se mal iniciaste a jornada?Põete a caminho. Realiza a ti mes-mo, sempre além de ti mesmo. Comisto te aproximarás de mim. Eu es-tarei, em tôdas as épocas, sempre

distante, eu serei o teu ideal. Emvez de procurares transformarmeem ti, homem, transformateem mim.

 Não me definirás mais pelas tuas

qualidades, mas procurarás a tuadefinição pelos meus atributos. Éêsse o caminho que indico, e quete levará até mim. Vai!

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 53/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 54/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 55/191

AS PÉTALAS DA FLOR 

Tentaram outra vez os deuses darao homem a visão da verdade, eescolheram simbolizála numa florde pétalas multicôres e harmoruosas.

 — Toma — disse o mensageiros. um homem escolhido — os deuseste concederam a verdade. Olha o:*eleza desta flor. Vê como são linias  as cores destas pétalas e como

são harmoniosas as suas linhas, e:ue embriagador o perfume que elasexalam.

Olhos maravilhados, o homemiimirava a flor que esplendia de

Deleza.

 — 55 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 56/191

E todos os dias, aquele homem,vinha, durante horas e horas, con-templar a flor, sempre viva, sempre

refulgente, cujo perfume embalsamava o ar.

Mas passaramse dias, e com êlesvieram os zéfiros das tardes e asfrias virações das madrugadas. Evieram ventos mórbidos, tempesta-des e furacões. E foi durante êssetempo que o homem, conhecedor daflor da verdade, por fôrça do seudestino e das suas condições, afas-tarase tão longe dali, à busca decaça, que, quando voltou, encontrouapenas a haste da flor. Os ventoshaviam arrancado as pétalas e ashavia levado esparsas para longe.

Já não poderia contemplar maisa flor maravilhosa. Mas, aos filhos,aos netos, contou a história da flor,cujas pétalas o vento impio havia

* desfolhado, levandoas para todos osrecantos do mundo.

 — 56 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 57/191

Desde então, todos os homens pro-curam encontrar, no galho sêco daárvore, a flor da verdade. E como

essa história foi transmitida de pais para filhos, de gerações a gerações,todos sabem que existe a flor daverdade, e querem vêla refulgenteno galho sêco. Foi por isso que um

sábio grego, de nome Platão, diziaque todos temos reminiscências daverdade. Sim, temos a reminiscência dessa história contada por nos-sos antepassados, e são êles que

sempre, através dos nossos ímpetos,interrogam e querem ver a verda-de, tão longe de nós.

Um dia, um homem, cansado de procurar nos galhos secos a flor ma-

ravilhosa, pôsse a dizer: — Ó deuses, por que permitistesque se desfolhassem as pétalas detão magnífica flor? Por que não nos permitis que, outra vez, contemple-

mos a verdade?

 — 57 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 58/191

E era tão angustiado e tão since-ro aquêle apêlo que, subitamente,surgiu ao lado do homem, o mesmo

mensageiro dos deuses que outroratrouxera a flor maravilhosa — edisse:

 — Quando trouxe para um dosteus antepassados a flor da verda-

de, não era para que êle apenas acontemplasse, mas para que a con-servasse, e para que lhe prestassetôda homenagem e respeito. O seudescuido fêz os descendentes per-

derem o maior bem que os deuseshaviam concedido aos homens.

 — Ó deuses —exclamou o novohomem — por que somos culpadosdos erros do passado? Dainos no-

vamente a flor, e prometovos queeu, como os meus irmãos, tudo fa-remos para conservála.

O mensageiro, do alto da sua dig-nidade, sem volver os olhos, disse:

 — Pois bem. Tu a terás. Mas de-

 — 58

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 59/191

rende apenas de ti. Vai pelo mundo,r junta uma por uma as pétalas queestão espargidas por tôdas as coisas,

.'untaas, e trazeas aqui, e eu lhesfarei novamente a vida, e a flor háie resplandecer aos teus olhos.

 — Mas, senhor, essas pétalas es-tão esparsas pelo mundo?

 — Sim, há em tôdas as coisas umarétala da verdade, por isso em tudoha um pouco de verdade. Junta tôiãs  elas, e a verdade há de trans-

 parecer aos teus olhos em tôda arsa  magnificência.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 60/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 61/191

O FILÓSOFO E A MAÇÃ

Assim expunha um filósofo a suateoria do conhecimento aos alunosrae o ouviam respeitosamente: “Aexistência da coisa em si é faladosa. .Conhecemos as côres, po-rem não conhecemos o amarelo, overde, o encarnado. Nós vemos coi-sas amarelas, verdes ou encarnadas.Ouvimos sons e não ouvimos o som

 puro. Das coisas, eu só tenho o co-nhecimento que os sentidos me dão.

 Não posso crer em nada, fora de —im, porque a única fonte de co-nhecimento sou eu mesmo. E assim

:=da um também pode pensar. Osolipsimo, que admite só a si mes

 — 61 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 62/191

mo, é a única doutrina que existecom cunho de verdade. As outras

não resistem a uma crítica. A úni-ca verdade é a minha interior. Eusou a verdade; eu mesmo. Não pos-so crer nada existente fora de mim

 porque só tem existência o que exis-te em mim.

A coisa em si não existe. ”E ao terminar a conferência se-

guiu para casa, acompanhado dosdiscípulos. Ao chegar, o filósofo di-

rigiuse para a sala de estudo, de-sejoso de comer uma das quatromaçãs que havia deixado sôbre amesa.

Mas viu, com espanto, que só

existia uma. Ninguém havia entradena sala a não ser êle, e alguns dosdiscípulos.

 — Onde estão as outras três mçãs que deixei aqui?

Os discípulos entreolharamse.Um dêles, serenamente respondeu:

r -

 — 62 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 63/191

 — Caro mestre, não compreendoo que quereis dizer?

 — Deixei em cima desta mesariuatro maçãs e, agora, só encontroama. Onde estão as outras? Alguémís   tirou?

 — Mas, caro mestre, como podeisiíirmar que existissem quatro ma-çãs, quando a coisa em si não exis:e? Quem nos pode afirm ar ou negarque não tenha sido uma ilusão dossentidos. Lembraivos de vossa ma-gistral lição de hoje. ”

O mestre olhou para a maçã que: estava, apertoua entre os dedos,e pôsse a comêla, enquanto, fran-zindo os olhos disse:

 — Tens razão.E fitou friamente o discípulo

fiel.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 64/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 65/191

ORIGINALIDADE

Um homem procurou um feiti-ceiro, e disselhe:

 — Doute uma moeda de ouro,me deres o que te vou pedir...

 — Pede. — Sou escritor. — Já sei. Adiante. — Desejo, por isso, ser original.

Que devo fazer? — É simples. Toma das mesmas

velhas idéias que os homens já pen£áram e já disseram, através das

 —ais antigas literaturas, e põenas:utra vez em circulação.

 — 65 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 66/191

 — .mas isso não é originalida-de. Não é o que te peço. Não ga

nharás a moeda de ouro. — Espera! Tua ansiedade me

ofende. Ouve: as mesmas idéias, osmesmos pensamentos, tu os torna

rás a dizer. Tu, como todos, nadamais escreves senão o já pensado,e o já exposto. Não julgues que ohomem é um filão inextinguível.Mas tu porás nessas idéias, nesses

 pensamentos, outras palavras, e lhesdarás um outro nome, um nome no-vo, inaudito, inesperado, sonoro,estranho, que provoque, em quem

leia, a mesma imagem, mas que lhedeixe um arrepio de espanto, desusto, de inesperado. Reconhecerteão original. Anda, dáme, agora,a moeda de ouro que me prometeste!

 — 66 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 67/191

CASTIGO

Um dia os deuses quiseram cas-tigar um homem. — Qual o maior castigo que lhe

icderemos dar? — Perguntou umtêles. E outro respondeu.

 — Que êle veja tôdas as coisasremo as coisas são.

 — 67 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 68/191

INSATISFEITO

Durante quarenta e cinco anos,êle percorrera a literatura, a histó-ria, a ciência. Devorara livros, visi-tara museus, cidades e países, e pri-vara com intelectuais, artistas, po-

líticos . Longas meditações comdoutores da igreja haviamlhe en-chido horas e horas descuidadas.Aos milhares, somavamse os livrosde sua biblioteca e uma avidez in

sopitável pelo conhecimento o an-gustiava. Quando desejava estudaralgum tema novo, adquiria dezenase dezenas de obras, entregavase,dia e noite, ao exame minucioso dostratados. Tudo queria saber, tudc

 — 68 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 69/191

 precisava saber. Envelhecera muito,rabelos brancos, e óculos escuros

robriam os olhos cansados. A cabe-ça tombara sôbre o peito magro, eís   mãos finas eratli ágeis de tantonover as folhas dos livros.

Um dia adoeceu. Na cama, cerca-

vase de livros, os amigos e compa-nheiros de tantos dias e de tantas■oras. Mas o médico proibiuo de

 jer. Liamlhe, então. Era um recur-so insuficiente. Já não seria mais o

esmo; também nada mais seria oesmo. Afundavase na cama, desraziase em suspiros leves, numa~:sse frágil, temeroso de interrom- per a leitura que lhe m urm uravam

ao ouvido.Um dia sentiuse morrer. No fun:; da cama, a voz também perderaf quase. Era um leve tremer de

.abios, um balbucio imperceptível,

:nas levantou a mão descarnada aosmigo que lhe lera tantos livros.

 — 69 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 70/191

Um dedo magro, fino, esguio, apon-tavalhe curvo. Gemeu:

 — Vou m orrer. . por favor  procurame a enciclopédia. outrodia, lembrome, citaste um nome.Lobineau. êsse nome. muitasvêzes veiome à m en te . v ê .vê. depressa.

O amigo correu rápido à biblio-teca e não demorou muito. Leulhe

 baixo, ao ouvido: — Lobineau. GuyAlexis Lo-

 bineau. historiador francês, nas-cido em 1666, em Rennes, morto err.1727

 — que mais. — a voz era lon-gínqua.

 — .Era beneditino. Escreveu a“História da Bretanha” e defendeua teoria de que os bretÕes jamaishaviam reconhecido a soberania daFrança .

 — .que mais? — a voz era lon-gínqua.

 — 70 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 71/191

 — É só. — . . . e refu taram . . . dize. re -

futaram. a teoria? . — era um

sôpro. — .não sei. como poderei

saber agora? não sei. — .m orrerei. — uma placi-

dez gelavalhe o rosto. — Morrereisem saber. se re fu ta ram . our.ão?!. — Os braços pendiam iner:es, o rosto estava imóvel, os lábiosmal se moviam — Que pena!que pena!.

 Na palidez do rosto, dois olhos brilhantes, com êsse brilho estranhoda morte, vidrados, fixos, distantes,continuavam interrogando, interro-gando, interrogando.

 — 71 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 72/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 73/191

OS DOIS FILÓSOFOS

Resolveram uns sábios homena-gear um filósofo, cuja doutrina eraeivada de erros, o que provocou c protesto de outro filósofo, que ex-clamou:

 — Por que vós desprezais a mim,que disse verdades, e preferis êste,que tantos erros pregou para torturados estudiosos?

Êles sorriram entre si, e um dêles,com displicência, apenas pronun-ciou estas palavras junto ao ouvidodo que protestava:

 — Porque grandes foram os seus

 — 73 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 74/191

erros. Não sabes que são mais sig-nificativos para a filosofia os gran-des erros do que as pequenas ver-

dades?

 — 74 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 75/191

O SEGRÊDO DA VIDA 

E DA MORTE

 — Senhor, eu quero conhecer averdade. E tu que és sábio, queés profundo, cuja fama percorre oscontinentes, ensiname a verdade.

 — Já a procuraste?

 — Senhor, canseime de procurála. E tudo me tem sido inútil. A

dúvida assaltame cada momento.O temor da morte cercame os mús-culos e faz minguar as minhas for-ças. Quero saber, senhor, a verda-de da vida e morte, preciso saber

a verdade.

 — 75 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 76/191

 — Por que te exasperas por isso,meu filho?

 — Ó, senhor, terrível, cansativaessa busca sem fim, essa luta entrea minha razão e os meus desejos.O que meu coração diz, a minharazão nega. Quando desejo crer e

formo uma crença ingênua, a razãome destrói a cutiladas. Em pouco,o meu sonho de fé sente morrer emsi a esperança de ressurgir..

 — E êsse teu sonho nunca ressur-giu, depois?

 — .é verdade, senhor. É ver-dade! Às vêzes êle ressurge. Reco- bra fôrças estranhas que vêm de

mim, e busca novamente afirmarse.Parece remoçado, porque traz novascôres. Vem lépido, febril, ágil. Masa razão, em poucos golpes, prostraonovamente ao solo, vencido, derro-

tado, inútil.

 — 76 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 77/191

 — Se te ensinasse a verdade davida e da morte, tornarteias entãofeliz?

 — Ó senhor! Não terei o direitode sorrir para o mundo, para a vidae para morte, podendo murmurarsatisfeito que conheço os seus se-

gredos? Será isso negado aoshomens?

 — Por que julgas que a felicida-de esteja em saber o segrêdo davida e da morte?

 — Mas, senhor. — Não, meu filho! A felicidade

não está em saber êsse segrêdo.Ouveme: o segrêdo da vida e da

morte está em nós, está na nossa fé.Podemos criar uma certeza que sa-tisfaça a cada um, jamais uma cer-teza que satisfaça a todos. E essacerteza poderá ser somente o sonho

feliz e dominador de um instante.

 — 77 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 78/191

Mas êsse instante é tudo na vida.A felicidade não está na perpetua-ção dêsse instante. Está na busca

 para atingilo. É a luta entre a tuarazão e o teu coração. Não temasessa luta. Busca justificar o teu co-ração até venceres. Êsse instante devitória será o prêmio à tua luta. De-

 pois, teu adversário recobrará for-ças, tentará erguerse. Lutarás outravez, com ânimo, e vencêloás uma,duas, cem vêzes.

 — E como poderei conhecer o segrêdo da vida e da morte, senhor?Crês que atingirei o seu conheci-mento?

 — Meu filho: na vida busca co-nhecer o segrêdo da vida. Na mor-te, conhecerás o segrêdo da morte.

 — Mas, poderei separar o segrê-do da vida do segrêdo da morte?

É isso possível?

 — 78 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 79/191

 — Não, meu filho. Busca na vi-da o caminho da vida, e conheceráso segrêdo da morte e o segrêdo davida.

 — Mas, senhor, onde está o ca-minho da vida?

 — O caminho da vida, meu filho,está em ti mesmo: está nessa lutaentre os teus sentimentos e a tuarazão. Está na tua dúvida. Segue

 por êle. Não temas porque não éreto e possui tantas curvas. Não•.emas porque pedras endurecem seucaminho, e longas são as encostasque terás de subir. Por êsse cami-nho, há perigos mortais que te es-

 peram nas suas curvas. Mas terásànimo para vencêlos. Vai além.Leva no teu rosto um grande sorri-so de boa vontade e no coração acrença de que um dia chegarás aofim de tua viagem. E, quando láchegares, poderás recordar, uma auma, as peripécias de tua vida e

 — 79 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 80/191

terás, ainda, o mesmo sorriso de boavontade para as tuas fraquezas. Etem certeza, meu filho, que a tua

razão virá acorrentada atrás de ti,como um animal que venceste, fiele serviçal, domado e respeitoso. Ea vida cantará dentro de ti hinos devitórias, porque a vida há de vencer

a morte.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 81/191

O AGRICULTOR, O OPERÁRIO, O COMERCIANTE, O LITERATO, 

O FILÓSOFO E O SÁBIO

O agricultor, referindose ao ope-rário, dizia:

 — Afinal de contas, êle não ga-

nha mais do que eu, nem vale maisdo que eu, mas quer que eu lhe%renda o produto da te rra mais ba-rato do que êle reputa ao que rea-liza em suas oficinas.

E o operário dizia do comerciante: — Que vale êste mais do que eu?

Se tem alguma coisa é à minha:usta, que me esfolo para pagarlhe

quatro vêzes mais o que eu mesmo produzo.

 — 81 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 82/191

E o comerciante dizia do literato: — Malta de vagabundos, parasi-

tas! F.m vez de trabalhar, vivem a

cantar lorotas para as namoradas,o escrever contos da carochinha ea escrevinhar baboseiras, e pensamque valem mais que os outros.

Dizia o literato do filósofo:

 — Gente que anda com os pés naterra e a cabeça nas nuvens. Unscegos que se metem num quartoescuro à procura de um gato pretoque não está lá. Bons pedantes, êsses

filósofos! Usam uma linguagem queninguém entende, e pensam que va-lem mais que os outros.

Dizia o filósofo do homem sábio: — Não se pode negar que êle tem

certa prática da vida. É um reposi-tório da experiência humana. Paracada caso tem uma máxima, umafábula, um apólogo para contar. Masque sabe êle das grandes interro-gações humanas?

 — 82 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 83/191

E o homem sábio dizia do agri-cultor:

 — Homem, tu conheces a únicarelicidade que há sôbre a terra : aie dar a vida. Tu tiras da terra oalimento. Ajudas a germinar as se-mentes; plantas e colhes. Homem za  terra, tu realizas a sabedoria.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 84/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 85/191

FILÓSOFOS E ARTISTAS

 No campo de batalha da sabedo-ria, os filósofos terçaram armas con-tra os artistas.

E os dois bandos empunhavam

 bandeiras e divisas.“Pela verdade!”, era a exclama-

ção dos primeiros! “Pela beleza!”,era a exclamação dos segundos. Umdeus, que assistia a contenda, re-solveu intervir.

 — Suspendam a batalha, e coniabulemos. Nós, os deuses, nos pretcupamos, às vêzes, com os vossos

destinos e com as vossas lutas. Acei-taisme por juiz?

 — 85 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 86/191

Os artistas concordaram imedia-tamente. Os filósofos confabularam

 primeiro e as discussões foram atéviolentas.Houve, entre êles, quem negasse

a existência do deus, e que tudonão passava de aparência.

Outro, retrucou: — se o deus não passa de uma aparência, apesar dotestemunho evidente dos nossossentidos, então os artistas são tam- bém uma aparência, e essa luta não

existe. — E isso é a verdade! Apoiou

um dêles. — Verdade?! Mas que é que en

tendeis por verdade? — interrogouum que até então estivera calado.Depois de horas e mais horas de

árduas discussões, foi resolvido queaceitariam a intervenção do deus.

que já se impacientava, apesardeser um deus.

 — 86 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 87/191

Foi aceito sob alguns protestos evotos vencidos.

Obstinadamente os idealistas ha-viam negado a existência do deuscomo um ser vivo e objectivo, e osrealistas haviam negado, naqueleser vivo, e objectivo, a da qualidadede deus.

Mas como se tratava de evitarderramamento de sangue, apesar daaparência, foi aceita a intervençãodivina.

O deus, colocado ante os doisexércitos, examinou aquêles sêres,tão mesquinhos e tão vís. Havia ca-

 beleiras louras, sôltas ao vento, facessulcadas de longos traços profundos,

olhares amortecidos e rostos aber-tos e claros com longos sorrisos beatíficos. O deus principiou assim:

 — Lutais pela verdade. e vós

 pela beleza. Eu vos pergunto: queé a beleza senão a verdade, e que

 — 87 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 88/191

é a verdade senão a beleza? Ver-dade só, é inútil para a vida, quan-do a vida está submetida a uma

 perspectiva de ilusão e de ê r ro . . — Viva a beleza! — exclama-

ram os artistas, convictos da vitória. — Um momento. — interrom

 peuos o deus. — Ainda não dei asentença. Ouvi: apenas a beleza, se-ria dar à vida uma perspectiva desonho e de ilusão. Vós, homens, tereis sempre uma perspectiva de so-

nho e de ilusão. Essa é a vossa ver-dade. Querer, no entanto, ir contraa vossa vida, é ir contra vósmesmos.

Uni vossas bandeiras e lutai pelaverdade da beleza! Eis o vosso dís-tico, a vossa insígnia. Filósofos, sêdeartistas e, vós, artistas, sêde filóso-fos. Fugi da aridez dos vossos es-

quemas e não vivos deixeis dominar pela embriaguez dos vossos sonhos.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 89/191

Fazei filosofia com arte, e fazei arte:om filosofia. Andastes, todos, se-

 parados uns dos outros. Univos,agora.

 — Que ganharemos com isso? — perguntou um pragmatista.

 — Que ganhareis? Ganhareisvida, um pouco mais de vida. Eiso é pouco?

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 90/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 91/191

O TEMPO

Uma vez, um dos melhores dis-cípulos do Grande Mestre Constru-tor dos Grandes Universos chegouse respeitosamente ao seu senhor,e disselhe estas palavras:

 — Sapientíssimo, levo ao teu co-nhecimento, que aquele discípulonovo, aprendiz, que aceitaste paraconhecer a tua Grande e Venerável

Arte, acaba de realizar, amontoandoordens de energia diversas, sem ne-xo e sem cuidado, um conjunto caó-tico de forças num dos pontos maisrecuados dos Grandes Espaços. De-vemos deixar, Sapientíssimo, essa

 — 91 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 92/191

grande desordem perdurar, que ma-cula a grandiosidade da tua arte?

Iluminouse de novos brilhos a fi-sionomia do Grande Mestre Cons-tru tor dos Grandes Universos, o que

 poderíamos interpretar por essasnossas humanas palavras:

 — Um caos. Seria estranho, an-te a grandiosidade dos meus Mun-dos, haver um universo de caos.Seria uma contradição que serviria

de exemplo aos novos discípulos pa-ra que não façam outro semelhante. No entanto, terá ordem, porque, aténo caos, deve haver um pouco de or-dem, que é a ordem que emana do

ser das coisas que o compõem.Vai até êsse universo e impreg-

nao de Tempo. Com o tempo, ha-verá ordem, porque haverá um co-

meço e um fim, e as coisas sucede-rão e conhecerão um morrer e um

 — 92 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 93/191

renascer, até que eu esine aos maisingênuos des discípulos tôda a gran-deza da obra da criação.

93 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 94/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 95/191

O TESOURO

Havia um homem que falava>empre no seu tesouro. Louvavao.Diziao imenso. Incalculável. Comorealmente possuía alguma coisa,lespertou a cobiça de um ladrão

que resolveu um dia roubálo. Eíabendo que êle o guardava em ca-sa. não perdeu tempo e, junto comoutro, assaltoua.

Preso por êstes, foi forçado a

mostrar o tesouro. Ou indicavao:u morria. — Pois não, — respondeu sorrin

io. E levandoos até o cofre, abriu: lentamente, e dêle tirou um livro.

 — Eis o meu tesouro.

 — 95 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 96/191

 — M entira. Mostranos o teuverdadeiro tesouro, ou te matare-mos.

 — Êste é o meu tesouro. tei-mou em afirmar — Não tenho ou-tro. E estou pronto a morrer senão acreditardes.

Um dos ladrões colocoulhe a faca

ao pescoço. — Dize onde está, ou então mor

rerás. — Podes matarme. Já disse: êste

é o meu único tesouro. — Por que mentiste a todo o

mundo que tinhas um tesouro? — Nunca m enti. Êste é o meu

tesouro. Tenho culpa por chamardes de tesouro outra coisa. Não me cabe nenhuma culpa, se-nhores ladrões!

 — 96 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 97/191

FELICIDADE

Um homem perguntou a umsábio: — Senhor, tu que és sábio, podes

dizerme o que é a Felicidade? — Jamais poderia dizerte. Posso

indicarte o caminho que leva atéela.

 — Senhor, ficaria eternamentegrato se me fizesses êste favor.

 — Pois bem: olha para a frente.Que vês?

 — Vejo o mundo. — Olha mais!. — Vejo campos, vejo serras, vejo

nuvens, bois pastando nos cam- pos.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 98/191

 — Olha mais! — Nada mais vejo! — Olha bem. bem! — Senhor, palavra, nada mais

vejo senão o que te disse. — Como queres seguir o cami-

nho da Felicidade, se isso apenas é

o que vêem os teus olhos?

 — 98 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 99/191

A VERDADE E A MENTIRA

Mas também contam que os deu-ses, olhando para o infinito, viram0 Mundo, essa parcela de poeira quegira pelos espaços, seguindo um pe-queno globo luminoso e em chamas.

1 viramno tão mesquinho, que não j mereceria de um deus mais que umI bocejo e menos que um sorriso. Mas,

entre eles, um perguntou por queêsse grão não teria vida, além do

movimento incoercível e fatal em:5rno do seu sol?E foi por isso que os deuses re-

solveram criar os animais e as plan:as na terra. Mas um deus, mais be-

nevolente, propôs ainda que se cri

 — 99 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 100/191

asse um ser que fosse capaz de com- preender a pequenez do seu mundce a infinitude do todo; um ser que

 pudesse, amassando a própria dorcom infortúnios e desilusões, atra-vessar a cadeia de montanhas desua existência, a razão das suas pe-nas e das suas alegrias, criando, na

estreiteza de sua terra, o infinitode suas ilusões e de seu conhecimen-to, construindo, para si mesmo, afelicidade, vislumbrando, dessa for-ma, o poder dos deuses.

A proposta encerrava tanto de pi-toresco, que os deuses resolveramaceitar. E, para que êsse ser pu-desse evoluir, deramlhe um poucode sua inteligência e do seu espírito.

Mas um ser só, tão pequeno, tãomesquinho, era um quase nada.

Terminada a obra, os deuses vi-ram logo que êsse ser seria inca-

 paz de lu tar contra as dificuldades

que a terra lhe ofereceria. Precisa-

 — 100 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 101/191

r:a de mais alguém que o ajudasse,que compreendesse as suas dores,que soubesse chorar as suas lágri-mas e rir os seus sorrisos. Alguém,que lhe indicasse o caminho da con-quista da terra, e lhe desse confi-ança em suas forças, que lhe fôsseum estímulo nas horas de desespe-ro e soubesse alegrálo quando esti-vesse triste. Alguém que o ajudassea prolongar a vida através da terra.E resolveram dar algo que o com- pletasse, que tivesse a doçura, quan-do êle fosse crueldade, que tivesseo perdão, quando êle fosse impla-cável, que o aproximasse mais dosdeuses, quando êle quisesse aproxi-marse mais dos brutos.

E os deuses, virandose para o primeiro homem, apontaramlhe doissêres frágeis, e um dêles disse:

 — Homem, aí tens duas compazheiras para ti. Mas terás que escolher, entre elas, uma que te acom-

 — 101 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 102/191

 panhe na vida. Esta. — e apor-tou para a de rosto tranqüilo e se-reno, e olhos quase sem brilho —é a Verdade. E esta. . — e apontou para a que trazia um sorriso n:rosto e os olhos brilhavam como osastros nas noites escuras — é a Men-tira. Escolhe. Uma delas te acompa-nhará na vida.

E um gesto de deus fêz descersôbre êle um lampejo de liberdade.

E os olhos do homem brilharairmais. O coração palpitou mais cé-lere no peito. Uma expressão, pro-fundamente triste e severa, veiolhe pousar sôbre o rosto. Depois de uir.longo silêncio, enquanto os olhosse punham na Verdade e na Men-tira, pôsse a falar assim:

 — Mentira, és o sol que desponttôdas as madrugadas. Com a Ver-dade, eu estancaria os meus dese-

 jos, e adormeceriam os meus senti-dos. Tu, Mentira, mudas o teu sor

 — 102 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 103/191

r.so, como as nuvens que correm pelos espaços, e por isso dás sem- pre o desejo de algo mais. Contigo,ao meu lado, desejarei novos hori-zontes, outras paisagens, criareimundos para enriquecer a pobrezade minha vida, para encher o va-

zio de minha alma. Tu me darássempre a sêde da Verdade, o desejoda Verdade, que eu sempre sonha-rei, quanto te tiver ao meu lado.Tu, Mentira, és as manhãs de sol,

os pássaros que cantam e que nãocantaram ontem; és o caminho doimpossível, que sempre julgarei po-der trilhar. Eu tendote ao meu la-do, terei a Verdade, terei a espe-

rança de que ela um dia será minha.Senhor. — disse êle virandose

 para o deus — eu escolho a Men-tira para minha companheira, por-que ela é para mim um promessa,e, finito como sou, preciso que o

 — 103 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 104/191

amanhã estimule a minha vida, por-que a Verdade não pode prome

 — 104 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 105/191

O PEREGRINO E O SENHOR 

Um peregrino, inflamado do zêlode sua fé, percorreu os campos e percorreu as montanhas. E do alto£e um morro divisou uma povoaçaoie poucas casas, lavadas pela luz da

manhã.Mas entre elas emergia uma, co-mo um gigante entre homens, comoum pinheiro entre arbustos.

 — Por que — exclamou — aque-

la casa há de ser maior que as ou-tras, mais espaçosa, provàvelmente mais rica, onde sobejam como-didades? Alí talvez viva alguém dosfrutos e do trabalho dos míserosmoradores das outras choupanas que

 — 105 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 106/191

a cercam, como mastins cercam c

caçador.E desceu o morro.Levado à presença do dono da

casa grande, fêzlhe o peregrino aadmoestação de sua dúvida, a cen-sura daquela fartura, a injustiça da-quela mansão. E tão inflamadas fo-

ram as palavras, que a vergonhacobriu o rosto do senhor.

 — Por que hás de te r uma casamaior que a dos teus irmãos? Quetua casa seja como a casa dêles. £que a tua riqueza nada mais seja quea pobreza de teus irmãos.

Convencido pelas palavras do pe-regrino, o senhor da casa grandedisse:

 — Tens razão, homem sábio, quevens de longe. Destruirei a minhacasa, e construirei outra igual àsdos meus irmãos, e compartilhareicom êles, de hoje em diante, a mes-ma vida.

 — 106 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 107/191

E assim como prometeu, cumpriu.E, satisfeito de sua missão, o pe-

regrino continuou a percorrer os

campos e a percorrer as montanhas.E do alto de um morro divisou

Dutra povoação. Pouco maior seriado que aquela onde antes estivera.Uma vintena de casas pobres cer-

cavam uma casa grande. — Sempre, por tôda a parte, re-

 petese a mesma injustiça! — Excla-mou para a manhã. E desceu o mor-ro para cumprir a sua missão.

E mais ardente do que antes fo-ram as palavras que pronunciou aosenhor da casa grande. Êste o ouviuem silêncio, e depois que o peregri-no calou, à espera da resposta que

viria dos lábios do senhor, ouviudêste estas palavras:

 — Tens razão, peregrino! Tuas palavras me convenceram de umagrande injustiça. Não é justo que

 possua eu uma casa grande, rique-

 — 107 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 108/191

za, lazer para o estudo, e que nuncana minha cozinha falte o alimento

 para mim e para os meus, e que

estejam pejadas as minhas adegas. Não devo morar num a casa cerca-da de comodidades, enquanto meusirmãos vivem na miséria e na ca-rência. Mas que devo fazer, pere-

grino? — Faze o que fêz o senhor da povoação de onde vim: destrói a tuacasa e constrói para ti, e para osteus, uma choupana como a de teus

irmãos.O senhor da casa grande não res-

 pondeu logo. Pensou, e depois disse: — Tua solução não é a melhor,

 peregrino. Ouve então a minha: em

vez de destruir a minha casa, porque não construirmos, para os quemoram nas choupanas, casas comoa minha e que lhes ofereçam tam-

 bém benefícios? Em vez de destruir,

 peregrino, construamos!

 — 108 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 109/191

E virandose para os homens po- bres da povoação, que enchiam a5ala e ouviam o estranho diálogo

entre o senhor e o peregrino, disse: — Todos juntos, mal clareie o dia,iremos construir casas grandes. Eassim tantas, quantas as famílias quecompõem a nossa povoação.

E virandose para o peregrino p er-guntou com um sorriso nos lábios: — Não é melhor assim, irmão?

Podemos, também contar com a tuaajuda e com o teu trabalho?

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 110/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 111/191

ENTRE HOMENS.

Êste facto se deu entre homens,selvagens. Estava um dêles a mos:rar ao outro, o qual era cego, doisvasos de igual tamanho. O cego apal-

 pavaos cuidadosamente, e afinal

iisse: — São totalmente iguais, abso-lutamente iguais.

 — Não — respondeu o outro. —Xão são iguais, pois um é de côrvermelha e o outro é azul. Há direrença entre ambos.

 — Que diferença é essa? — Ex-clamou o cego. — Não estou sentin-

do que ambos são totalmente iguais? — 111 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 112/191

Já vem você com as suas diferençasSó você sente tais diferenças.

 — Mas elas estão na coisa, nesses

vasos. Há diferenças entre as mon-tanhas e as planícies, entre as nu-vens e as estréias do céu.

 — Que diferenças são essas? —interrompeu o outro. — Como é que

me prova que elas se dão? É só vocêque sente isso. Prove, que elas exis-tem, vamos!

O outro compreendeu como eradifícil provar. Resmungou algumas

 palavras. Olhou para os olhos secosdo cego. Depois, fitoulhe as mãosSó elas permitiam conhecer, só elas

 permitiam distinguir.Como poderia provar àquelas

mãos que havia côres diferentes"Como provar àquelas mãos que ha-via estréias?

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 113/191

A FILOSOFIA

Um dia, pelo caminho da Vida,0 Destino encontrou à beira da es-trada, uma pobre mulher, esfarra-pada e faminta, que lhe estendeu1 mão, pedindo a esmola da Feli-

cidade. — Quem és, pobre mulher? — Quem sou eu?! — Exclamou

ela com amargura: — Olha bempara mim, Destino!

E baixou a cabeça para esconderís   lágrimas.

Aproximandose mais, o Destinolevantoulhe levemente o rosto eviu, à penumbra do entardecer, que,

apesar de marcada pelas rugas do

 — 113 — 

£

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 114/191

Tempo, ela era ainda bela, e pareciase com a Dor.

 — Serás acaso a irmã mais ve-

lha da Dor? — Não, respondeu ela num solu-

ço, eu sou a Filosofia. — A Filosofia?! Mas onde estãc

as tuas filhas? Por que estás tãc

sozinha? — Minhas filhas!? Perdiaas, uma

a uma. — Contame a tua história. — Tu, Destino, prometeste acom-

 panharme, cuidar de mim e meabandonaste no mundo cheio de ini-migos e ladrões. A minha históriaé longa, e eu não vou roubar o teutempo para contála, porque devesseguir o teu caminho, afim de queoutros não sofram da tua ausência,como eu sofri. A Ciência, essa im

 pertubável criatura sem entranhase sem sentimentos, rouboume aminha filha, a Filosofia Natural.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 115/191

 para transformála em duas: a Bio-logia e a Física, dois autômatos sem

%*ida. A Cosmologia, que era tão so-nhadora e tão poética, do cérebrofêz a Astronomia e dos membrosfêz a Geologia; da minha filha maisvelha, a Filosofia do Espírito, ela

fêz essa doidivanas que é a Psico-logia. A Moral, a Religião e a Po-lítica, minhas filhas tão amadas, elaentregouas ao Vício, à Ambição,ao Egoísmo, a todos os monstros do

mundo.E deixoume sozinha, desnuda efaminta.

 — Bem vejo o teu estado e con-fesso que êle me enche de muita

 pena. Mas vejo que teus olhos ain-da brilham . Vejo que ainda tensalguma coisa.

 — Tenho, sim. Tenho nos meus

olhos a Metafísica. É êste o brilhoque vês. Essa, jamais me será rou-

 — 115

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 116/191

 bada, porque essa sou eu mesma,é a alma da minha alma!

 — Pois, tem fé! Será ela quemte devolverá tudo quanto perdeste.O exemplo dela fará que as outrasretomem para junto de ti. Elas secansarão dos falsos caminhos, e hãode voltar um dia.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 117/191

OS RATOS E A HUMANIDADE

À procura de alimento seguia umrato.

Cauteloso, viuse no páteo de um prédio. Farejou o ar e os cantos a procura do que comer. E foialém. Silencioso, sorrateiro, cheiode mêdo e cuidados, em rápidascorridas, parando cem vêzes numavez, sondou o local. Ao virarse,estacou. Ficou atônito. Sentiu o bafoquente da respiração do mais odio-so e mais terrível dos felinos. Umgato, olhar luminoso, enérgico sôbreo bigode espantoso, preparavase

 para caçálo.Lesto, quis fugir, mas, eis, estava

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 118/191

 preso nas garras finas e cortantesque lhe atravessavam a carne. Gru-nhiu penetrantemente. Era impo-

tente, apesar de todos os esforços,de todos os arrancos dos músculose dos nervos.

Estava perdido, sem dúvida. Osinstantes de vida seriam, agora,curtos. Mas reagiu, estacando, paratomar fôlego.

Inútil. O felino dominarao comtôda a sua fôrça e garras.

Exangue, sentiu perder a cora-gem. Cerrou por um momento osolhinhos e esperou ser tragado nasfauces gigânteas daquêle terrívelmonstro, o maior que o atormentou

em sonhos, a êle e a tôdas as gera-ções de seus antepassados. Morre-ria como tantos outros já haviammorrido, ingloriamente.

E, estóico, aguardou o momentosupremo.

 — 118  —

\

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 119/191

Sentiu o corpo cair sôbre algo, —as frio.

Seria tão fria a bôca horrenda

iaquêle monstro?Sentiu o corpo livre. Não lheioíam mais nas carnes os estiletesio ser odiado.

Abriu os olhos, e viuse só.

 Não era um pesadelo. O corpoali estava sangrando. Olhou assom- brado e viu na marcha silenciosa-mente horrenda, afastarse o vultonegro do inimigo tradicional.

Sentiuse livre. Podia voltar para junto dos seus. Por que o ha-via deixado aquêle monstro?

Uma ternura imensa, quase hu-mana, vibroulhe os nervos, os

músculos.Lesto, enterrouse por um buracoe seguiu para junto dos companhei-ros que, temerosos, já o aguardavam.Ao vêlo, assim, ensangüentado, cer-

caramno. Queriam saber o que

 — 119 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 120/191

havia sucedido, mas, todos, pelasmarcas no corpo, já compreendiamo que se passara.

Finalmente, falou, após tomar fô-lego muitas vêzes:

 — Imaginem. Aquele gato fe-roz, pilhoume. E não me quismatar. Por quê? Certamente êle é bom. Êle não é tão mau como pa-rece.

 — Mas vieste ensangüentado, —disselhe entre lágrimas a compa-

nheira. — Sim, ensangüentado. Mas po-dia não ter vindo. Bemdito gato!

Satisfeito, bem alimentado, o gatodeixarao fugir por displicência de

gato de barriga cheia.E quantos recobrando um dia a

liberdade, depois de saírem san-grando, ainda agradecem aos tira-nos por não lhes terem tirado a

vida?

 — 120 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 121/191

LIVRE ARBÍTRIO

O relógio da Matriz deu duas ba-daladas .O vento soprava do norte para o

sul. Na ventoinha, êle gemia, uivava numa nota longa.

 — Eu guio o vento. — Dizia parasi a ventoinha. — Êle é servil amim. Sibila do norte para o sul por-que o quero. — E sorriu vaidosaum sorriso de ferro.

O relógio da Matriz deu quatro badaladas.

E o vento mudou, do norte parao sudoeste. Uivava, gemia, umanota longa, quase musical.

 — 121 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 122/191

 — Viu — sibilou a ventoinha paraa tôrre da Matriz — Viu? Impeli a brisa para ali, fui eu quem o

quis!.E a tôrre da Matriz sorriu graveum sorriso de pedra!.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 123/191

A VERDADE

A Verdade, quase nua, corria poruma estrada. A Fantasia, ao vêlaassim, não se conteve:

 — Ah! fugindo?! Os homens jáa escorraçaram?

 — Psiu! Não fale alto! É a razãoque vem me perseguindo com aquêles terríveis monstros de três ca-beças, as Convicções. E êles nãome perdoam.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 124/191

A LIÇAO DA HISTÓRIA

 — Majestade, o vosso reinado está perdido? — Perdido? Por que? — Uma grande revolução está

 para romper dentro de poucos dias.e grande parte das vossas tropas es-tão com os rebeldes. As que não to-marão parte na luta, prometeram

 permanecer neutras.

 — Mas já verificou bem se nãocontamos com elementos para en-frentar os rebeldes?

 — Já, majestade. Só contamoscom a vossa guarda, e outras fôrçasmenores, e mais ninguém.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 125/191

O rei pensou um momento. De- pois, sorrindo, perguntou ao primei-ro ministro:

 — Não é verdade que há dias foimorto na fronteira um soldado nosso

 por um estrangeiro do país vizinho,nosso eterno inimigo?

 — Ê verdade, majestade.

 — Pois espalha por tôda a parteque no país vizinho queimaram as

 bandeiras de nossa pátria, e que fo-ram dirigidas afrontas ao nosso país.Que todos os nossos homens este-

 jam a postos, pois estamos à mercêde um ataque do estrangeiro.

 — E se o ataque não se der? — Ora, nós atacamos. A ques-

tão é pôr o perigo fora de nossa

 pátria. Que pensa você? Quando sequer fortalecer um regime em pe-rigo no interior, é preciso fazer vero perigo vindo do exterior. É o quenos ensina a história. E ande de-

 pressa!

 — 125 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 126/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 127/191

A JUSTIÇA E OS HOMENS

A Justiça, cansada de viver comos olhos vendados, resolveu um dia,descansar a espada e a balança, edisse para si mesma:

 — Percorrerei o mundo, e sabe-

rei o que julgam de mim. Só assim poderei resolver melhor as pendên-cias dos homens e dar a cada um oque lhe couber por direito.

E caminhando por longa estrada,encontrou um camponês, e pergun-toulhe:

 — Ó tu que laboras o campo,retirando da terra os frutos que ali-

mentam, dizeme o que julgas da

 — 127 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 128/191

Justiça, e o que para ti é justo ouinjusto?

A princípio o camponês olhoua

espantado. Notando, porém, a sin-ceridade do olhar, desfez as rugasda testa, passou as mãos pelos cabe-los, e iniciou assim:

 — Ora, o que julgo!. Para mim

é injustiça trabalhar aqui todo o diae não possuir um campo maior doque êste, enquanto, ali — e apon-tou para o levante — aquelas terrassão de um homem que tem cem

vêzes mais do que eu, e nem sequer planta a quinta parte do que possui.Por que lhe cabe mais terras do quea mim? Posso plantar mais terrasdo que tenho, e a maior parte das

terras dêle vivem abandonadas? É justo, isso?

A Justiça perguntoulhe: — Como acharias justo, então? — Haveria justiça se a mim fôsse

dado, pelo menos, a metade do que

 — 128 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 129/191

êle possui, para que eu tornasseessas terras produtivas.

 — E haveria Justiça na te rra se

rôsse dado a todos iguais a ti, o que pedes? — Ah, sim, então haveria Justiça.Ela sorriu meigamente, agrade-

ceulhe as palavras, e despediuse.

Às portas da cidade encontrou,um comerciante que vinha numacarruagem.

Fêzlhe um aceno, e êle estacou. — Ó tu que compras de uns para

vender aos outros, dizeme o queé para ti justo ou injusto?

 — Para mim? — olhoua es- pantado com um olhar ladino, emque havia censura e aborrecimento.

Mas ao notar a sinceridade das pa-lavras e da fisionomia da Justiça,sorriu astutamente e disse:

 — Achas justo que me sobrecar-reguem de impostos? Achas justoque me limitem as possibilidades de

 — 129 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 130/191

negociar? Por que não devo com- p rar do camponês o que quero, pele preço que me convém pagarlhe?

 — Como seria justo para ti omundo?

 — Como? Muito simples. Não nossobrecarregasse o govêrno de im-

 postos, dessenos mais liberdade,

garantissenos contra os bandolei-ros, concedessenos créditos a pra-zo longo, e juros baixos. Então, sim,haveria Justiça!

Ela sorriu meiga e despediuse.

 Na cidade encontrou um traba-lhador que vinha do serviço, efaloulhe:

 — Ó, tu que ganhas o pão como suor do teu rosto, e constróis os

 palácios e as grandes obras huma-nas, que forjas o ferro e compõesos livros, o que julgas seja justo eo que seja injusto?

 — O que julgo?! — exclamou êle.quase raivoso. Mas ao ver o olhar 

 — 130 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 131/191

sincero, fêz uma careta à guisa desorriso, e abanando as mãos, disse:

 — Achas acaso justo que eu consrrua os palácios e durma numachoupana? Que eu forge os grilhõesque me escravizam? Que eu façaas roupas e os sapatos e ande mal-

trapilho e descalço? Não! Há outrosque dispõem de tudo isso feito pelasminhas mãos, sem que movam uma palha. É justo, isso? A Justiça só pode haver com a Igualdade. Todos

devemos ser iguais no trabalho e nousufruto do trabalho. Então haveráJustiça!

Dirigiuse a Justiça para um belo palácio, sequiosa por saber o pen-

samento dos que nêle moravam.Entrou. Sentado a uma mesa esta-va um homem idoso e nobrementetrajado, e ela perguntou:

 — Ó, tu que tens tudo o que de-sejas, que és rico e poderoso, dize

 — 131 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 132/191

me o que pensas da Justiça. O queé para ti justo ou injusto?

 — Que? — olhoua ríspido e com

dignidade. Mas ao ver a sinceridadedo olhar, fêz um leve cumprimentode cabeça, e disse :

 — É justa, como desejam muitos,a igualdade? Somos acaso iguais?

 Não nos separam a educação, a cul-tura, a inteligência. Por que exigementregue eu o que me custou anose anos de trabalho, a meus pais eaos meus antepassados, àqueles que

não sabem conservar o que obtêm?Por que devo entregar tudo quantoo destino me colocou às mãos, pelosimples facto de me terem corridomelhor os fados que aos outros.

Seria isso justiça? Não! Isso seria amais clamorosa das injustiças.

 — Como haverá justiça nomundo?

 — Haverá justiça no mundoquando os homens se contentarem

 — 132 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 133/191

com o que têm. Enquanto houveros que invejam o que pertence aosoutros, não pode haver justiça.

A noite já havia coberto de som- bras a cidade. E a Justiça, cansada,resolveu voltar para o seu reino.

 — Qual!. Os homens julgamme segundo os seus interêsses. Co- brirei os olhos outra vez, empunha-rei a espada e a balança. E conti-nuarei ainda, sem vida, insensívelàs suas súplicas, cega e surda àssuas imprecações. Como podereiviver entre êles se êles ainda nãome conhecem.

E voltou à sua marmórea e eter-na postura. .

 — 133 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 134/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 135/191

O PRIMEIRO ARTISTA

À volta da mesa estão sentadostrês homens.O de feições mais brandas, de

longa barba, de olhos úmidos e face pálida, está com a palavra:

 — A arte não é natural. Ela não parte da natureza exterior. A arte parte do artista que a impõe ànatureza!.

O artista pode ser um copista, norealismo. Será, então, um copiadorda realidade, ou o “repórter lite-rário da natureza” Há também aarte que o artista impõe à natureza,contra a natureza, além dela, me

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 136/191

lhorandoa, sublimandoa. É ai queo artista cria a realidade da arte.

Eu não sou copista, nem repórterda natureza. Que me perdoem osque o são!. A obra de arte deve !estar fora do tempo e do espaço.Acima do tempo e do espaço. O

homem é um escravo das necessida-des, é um escravo da natureza. Eêle só se liberta dessa opressão queo persegue, na obra de arte.

Há no heroismo, para mim, algode semelhante à obra de arte. Osubmetido submete, aí, nas suasmãos, a natureza que o domina. Éno artista que o homem atinge o

sublime, para mim. Felizes daquêlesque sabem e podem submeter à suavontade a natureza opressora.

Os outros ouviamno em silêncio.O da direita, de olhos buliçosos,

 perguntou:

 — 136 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 137/191

 — Digame. Dême um exem-plo dessa libertação. Quem a conhe-ceu?

 — Quem? — e fêz um sorrisobrando e longo e, numa voz leve,como o vento tépido das tardes deverão, prosseguiu:

“Era uma vez um escravo e erauma vez um senhor. E um dia osenhor, depois de mandar vergastaro escravo com vinte chibatadas,disselhe:

“É para que saibas me respei-tar. Sabes que se eu o quisesse,mandarteia matar agora. Vou teperdoar a vida, por esta vez. Mas,toma bem nota: outra não te per-doarei. Tu és meu, e farás tudoquanto quero, e nada mais do quequero. E para mostrarte como pos-so dominarte completamente, ficarás de hoje em diante amarrado aêste tronco. Receberás o alimentopela mão de outra pessoa, e nenhum

 — 137 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 138/191

gesto farás sem a minha licença,cão vil, escravo, filho de escravc

 — E cuspiulhe no rosto.

E êle foi amarrado ao tronco, enada disse. Olhar perdido, olhavasem olhar. E o senhor que assistiaa tudo disselhe, depois de vêlo

amarrado: — Então? Estás convencido quesou o teu senhor?

E o escravo murmurou estas pa-lavras:

 — Tu, senhor, és o dono dos meus braços, e és o dono do meu corpo.Podes deixarme viver como podesmatarme. Meu corpo é teu, senhor,

êle está onde quiseres que êle es-teja. Mas o meu pensamento, querr.manda nêle sou eu. Eu drio ummundo para mim, onde tu, senhor,não serias o meu escravo.. ” E

calouse.

 — 138 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 139/191

 — O senhor mandou matálo en-tão? — perguntou o de olhos bu-

liçosos. — Não! Mandou libertálo ... —e num sorriso cheio de doçura acres-centou: — Aquele escravo tinhacertamente alma de artista.

 — 139 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 140/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 141/191

O HOMEM JULGADO PELOS ANIMAIS

A assembléia estava marcada paraaquêle dia, e de tôda parte do mun-do vieram os representantes das es- pécies arümais, para prestarem oseu depoimento, no julgamento do

Homem.Presidiaa o Leão, que fôra esco-lhido por unanimidade de votos, porsugestões da Rapôsa.

Para a acusação fôra nomeada a

Rapôsa, que já por diversas vêzes,graças ao testemunho de Lafontaine, Esopo e Florian, demonstrara

 possuir verdadeiros dotes oratórios,e uma fôrça de sugestão impressio-

nante. Para a defeza do Homem,

 — 141 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 142/191

 _

carregouse o Cão.Instalados os trabalhos prepara-

tórios, e iniciada a sessão de julga-mento, o Leão deu a palavra àacusação, representada pela Rapôsa.

Esta, depois de puxar os óculosaté à ponta do focinho, numa vez

suave, que ia num crescendo im- pressionante, pôsse a falar: — Irmãos animais. Neste mo-

mento solene, todos os represen-tantes das espécies vivas mais opri-

midas do orbe, reunemse para o julgamento do maior inimigo daanimalidade: o Homem.

Mais alto e mais impressionantedo que as minhas palavras falará

o testemunho dos animais oprimi-dos que servirá de prova de que oHomem é o nosso maior inimigo, eque deve ser extirpado dêste uni-verso para benefício de todos. Ou

çamos o testemunho do Porco.

 — 142 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 143/191

O Porco mostrouse indeciso, en-vergonhado. Um sorriso contrafeitose postou nas suas bochechas, mas,

instado pelos outros, aproximouseda mesa. — Irmão Porco, qual a sua opi-

nião sôbre o Homem? Não deve êleser exterminado da terra?

 — Meus irmãos animais. . tre -miamlhe as bochechas. — O Ho-mem tem sido o meu maior inimigo.Diz que eu tenho uma existênciade vários anos, mas a verdade é

que nunca atingi a êsses anos, por-que êle, depois de me engordar omais que pode, transformame em presunto e banha. Tôda a minhaespécie é vítima dêsse atentado. E

vivemos, irmãos animais, domina-dos por êle, criados por êle, que nosenche de esperanças, que nos dáalimento para que engordemos como intuito premeditado de comernos.

O Crocodilo derretia lágrimas.

 — 143 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 144/191

 — Irmãos animais — interrom- peu a Rapôsa — vêde como até cnosso irmão Crocodilo chora em>

cionado ante tamanho crime. — Protesto!. — interrompeu oCão aos latidos. — V S., Dona Ra-

 pôsa também furta ovos e come pás-saros e pintainhos. O Homem mata

animais, concordo, mas para a suaalimentação. Êle o faz em legítimadefeza, como faz S. Magestade oLeão, muito digno presidente dêsteaugusto tribunal, como o faz o Tigre,

que toma parte no conselho dos ju-rados, e outros.Eu mesmo, caros animais do con-

selho de sentença, não posso meeximir dos mesmos crimes que tan-

tas vêzes tenho cometido contra osmeus irmãos.Partiram protestos agitados dos

circunstantes. Não apoiados geraisforam pronunciados. O Leão cha-

mou logo atenção para o Cão:

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 145/191

 — O nobre irmão não deve denaneira alguma perturbar a sere-nidade dêste tribunal, procurando

motivos de ordem emotiva para jus-tificar crimes que atentam contra aanimalidade. Se continuar a pertur-bar o ambiente com provocações,terei que cassarlhe a palavra.

 — Perdão, senhor presidente. Nãoprovoquei ninguém, nem tampoucotive o intuito de perturbar a boamarcha dos debates. Simplesmente,no cumprimento da minha função,

apresentei motivos que os julgo ir-refutáveis.

 — Mas V S. acusou a nossa no-bre colega, a Rapôsa, de crimes, quenão provou nem pode provar.

 — Não posso provar porque aRapôsa os tem praticado nas cala-das da noite.

 — Infâmia! Injúria! — Protestoua Rapôsa. E enquanto fechava osseus olhinhos e apontava o focinho

 — 145 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 146/191

 para o Cão, continuou em sua voz 1ianhosa — Caros irmãos. Acabo àesofrer uma acusação grave. Uma

acusação indigna — E levantou a pata até a altura do focinho. — OCão, porque tem vivido sempre aclado do Homem, como tem sido oseu guarda, o seu escravo, que come

os restos de sua mesa, e tem moradaao calor do seu fogo, quer justificaro nosso inimigo e ainda, para des-moralizar a minha acusação, pro-cura imputarme crimes que êlemesmo alega que não os pode pro ]var. — E apontando com a pata

 para o Cão, continuou:

 — Quem são as tuas testemunhas

em benefício do Homem? Eu apre-sento contra êle o testemunho, dos pássaros, dos peixes, dos animais detôdas as partes do orbe. Êle temdevastado rebanhos e rebanhos. Êle

tem feito a desgraça de espécies já

 — 146 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 147/191

quase desaparecidas. Quais são astuas testemunhas?

 — Tenho para provar as minhasalegações o testemunho do Cavalo.

 — Do Cavalo? — E a Rapôsa pôsse a rir. — Do Cavalo? Carosirmãos do conselho de sentença, oCavalo é a única testemunha a favordo Homem. E por quê? Porque oarreia com pedaços de couro feitosde irmãos seus; porque o monta eo obriga, humilhado, a percorrerdistâncias para carregar o seu amo; porque o arrasta para as suas he-diondas guerras de destruição siste-mática de seus próprios semelhantesou para ser estripado pelas suasbalas. O Cavalo... O heróico Ca-valo. — Tinha uma voz fria de iro-nia. — Porque um dia o homem lhedeu uma estátua, glorificouo emversos, julgase já o amigo do Ho-mem, e êste seu amigo. — E mu-dando para um tom feroz de voz:

 — 147 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 148/191

 — Indigno animal êsse, inconscien-te animal, que quer negar o podermalévolo do homem. Protesto con-

tra o testemunho dêsse ser a quemfaltam os mais leves resquícios dehonorabilidade animal, e peço aosenhor juiz para ser qualificado co-mo suspeito.

 — Aprovo o pedido. — Respon-deu o Leão.

 — Irmãos, animais do conselhode sentença. Pouco mais me resta

 para uma análise do Homem. Tudoquanto vós mesmos tendes sofridodêle, do nosso inimigo terrível, éo suficiente para a sua condenação.Proponho que condenemos o Ho-

mem à pena máxima. Que seja des-truído e escorraçado do nossomundo.

 — Muito bem. Muito bem.Apoiado..

Posto em votação, por unanimi-

 — 148 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 149/191

dade de votos, o conselho de sen-tença condenou o Homem à morte.

O Leão leu a sentença. Mas o Boi

lembrouse de perguntar: — Perdão, senhor presidente. De-

sejava saber como iremos realizara sentença. Qual de nós estará emcondições de atacar o Homem?

 — Bem. isso é outra coisa. Eu, por exemplo, posso me encarregarde alguns, mas devome conter porcausa das suas armas terríveis. Tal-vez a Rapôsa.

 — Quem? Eu? Impossível. Não possuo meios de poder atacálo. — E sorriu contrafeita.

 — Então como executaremos asentença? — Perguntou o Leão já

meio indignado. — Muito simples — propôs a Ra-

 pôsa. — Unamonos todos os ani-mais. Pelo ar atacarão os pássaros,e pela terra os réptis e os quadrú- pedes. Mobilizaremos todos os ba-

 — 149 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 150/191

cilos, miríades dêles, e atacaremoso Homem em todos os seus órgãos, por dentro e por fora. Destruiremosêsse nosso inimigo em poucos diasQue achais de minha proposta?

 — Admirável. Estupenda!.. —Exclamaram todos.

 — Aprovada! — Disse sentenciosamente o Leão. — Iniciaremos anossa luta imediatamente. Já. Con-clamem todos os nossos irmãos.

Destruamos o inimigo da anima-lidade: o Homem. Abaixo o seu po-derio, e abaixo todos aquêles que oajudarem, como o Cão e o Cavalo.

 — E num gesto majestático: — Quea justiça seja feita!

 — 150 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 151/191

ILUSTRE DIÁLOGO

 Filósofo irracionalista  (cheio dealacridade):

 — Não compreendo porque ten-tais ainda prosseguir nessa vossavã tarefa de afirmar o predomínioda vossa tão endeusada razão, quan-do, até hoje, ainda não vos foi pos-sível estabelecer o que julgais porverdade, e o raciocínio de Descartes já foi demonstrado ser absolutamen-te ilógico, mesmo dentro do forma-lismo que defendeis. Como explicareis a variedade dos gostos, das opi-niões, com êsse formalismo que es

grimis inutilmente, e que não passade um espantalho?

 — 151 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 152/191

O vosso racionalismo é absolutamente antihistórico.

 Filósofo racionalista  (compõe 05

óculos sob o nariz adunco. Tem umatossezinha legitimamente asmáticaTreme os lábios finos e deixa esca-

 par lentas estas palavras): — Posso respondervos, citando

apenas algumas célebres palavras.São de Descartes. Ouvi. (Pigarreia.e lento) “Tudo o que a razão con-cebe, concebea segundo é devido, enão é possível que erre. Donde pois.nascem os seus êrros? Nascem sim- plesmente de que, sendo a vontademuito mais ampla e mais extensaque o entendimento, não a conte-

nha nos mesmos limites, senão queeu a extendo também a coisas quenão entendo; a qual, sendo de siindiferente, se desborda com facili-dade e escolhe o falso como verda-

deiro, e o mal como bem: essa acausa de que me equivoque e

 — 152 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 153/191

 peque.” Essa é uma resposta à al-tura. Mas prosseguirei: “Tôda aidéia, ou crença, que não tenha sidoconstruída pela “pura intelecção”é duvidosa, desdenhável. Poderiadar um exemplo célebre: o ponto,

 para a vista é a mancha mínima quenossos olhos podem ver. Para a puraintelecção é o radical e absoluta-mente menor. É o infinitamente pe-queno.” (Pára, gozoso).

 Filósofo irracionalista — Êsse infi-

nitamente pequeno seria, assim o úl-timo ponto antes do nada. A últimaescala antes do nada. Depois: nada.A vossa razão pode conceber isso?Duvido. (r i). Mas não se ofendacom que lhe digo: o seu Descartesera um entusiasmado pela razão.Aliás em sua época, isso era abso-lutamente compreensível. Mas, con-venha, que êle fêz uma verdadeirainversão da perspectiva humana.

 — 153 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 154/191

 Nosso conhecimento observa somen-te a qualidade das coisas.

Conhecemos as côres, as resistên-cias, os sons. Êsse é o nosso mun-do, em suma. Ora, as qualidades sãcabsolutamente fugazes. E de quemodo, com a razão, podêlasíamos

apreender? Como definirei, porexemplo, a côr verde? Ora, o queconhecemos do mundo é absoluta-mente irracional.

 — Mas Descartes diz o contrário.

Precisamente o verdadeiro do mun-do é o quantitativo. As qualidadessão aparências. O mundo geométri-co é o verdadeiro. O que tendes éa ilusão. (alça o peito vitorioso).

 — Estais errado!

 — Errado, estais vós!.

 — Erradíssimo!.

(Entra um terceiro personagem)

 — 154 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 155/191

 — Perdão, caros senhores. Per-

mitam que me intrometa em vossatão ilustre discussão? — Quem sois? — Senhor Irracionalista e Senhor

Racionalista, umas poucas palavras

 bastam para evitar tudo isso. Nósconhecemos das coisas as quantida-des.

 — Está vendo. Descartes tem ra-zão.

 — . .mas a nossa intuição sen-sível dános a qualidade.Isso é tão simples que chega a

vos confundir e parecer penumbroso. Explicarei melhor: A qualidade

é que sensivelmente nos revela aquantidade. Qualidade, em si, nãoexiste. Nem existe, em si, quanti-dade.

O ser físico manifestase para nós por qualidades. Tôda a luta entre

O terceiro personagem:

 — 155 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 156/191

o racionalismo e o irracionalismo €um puro torneio de palavras. A ló-gica formal, como a compreendem os

racionalistas, ao querer apreendero fugidio, é o mesmo que a pregui-ça querer caçar pássaros. Precisais,senhores, compreender uma únicacoisa: a verdade está com o sr. ra

cionalista e está com o sr irracionalista. A única diferença é essa:é que não está, exclusivamente, comum só de vós dois. É o caso de doishomens, que tivessem, cada um, no

 bôlso, uma moeda de ouro, e umdissesse para o outro: “quem tema moeda de ouro sou eu;  só  eu quea tenho.”

Se houvesse uma única moeda de

ouro no mundo, então só um dêlesteria razão.

 — 156 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 157/191

A BELEZA

Certa vez, os inimigos dos deuses,raptaram a sua filha mais admirá-vel, a Beleza.

E esconderamna, tão cautelosa-mente, que nem os deuses poderiam

achála, nem descobríla. Haviamna aprisionado neste mundo, e comoêle pertence aos homens e aos de-mônios, os deuses nada podiamfazer.

Apelaram, então, aos homens. Eentre êsses, um dêles, pôsse à pro-cura da princesa raptada. Andou,e andou.

Um dia, cansado de tanto pro-curar, pôsse a admirar as flores

 — 157 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 158/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 159/191

 pássaros, e procurou gravar nas ro-chas as emoções que sentia ante omundo. E à noite interrogou a lua,

e a tôdas as coisas, procurando nelasalguma notícia sôbre a filha amadados deuses.

Um dia, cheio de angústia e dor,

cansado da longa espera e da inter-minável procura, pondo na voz a suamágoa, cantou a sua tristeza.

E, subitamente, com espanto, umronco medonho saiu da terra. Pa-

recia que o mar iria tragar tudo.As ondas encapelavamse. Trovõesribombavam pelo céu rasgado deraios.

Apavorado, ocultouse sob umarocha.Depois, tudo serenou. Uma tran-

qüilidade desceu sôbre a terra, etudo parecia reviver. Voltou os

olhos para o céu, e viu uma grandecavalgada de deuses, que se dirigia

 — 159 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 160/191

 para êle. Quis fugir, mas uma vozretumbante sôou pelos espaços:

 — Pára, ó filho dos homens. Nósviemos te saudar. Com os sons dosteus instrumentos, com a suavida-de de tuas palavras harmoniosas,com os traços que traçastes, e comteus cânticos de dor, tu libertastea Beleza, nossa filha muito amada.Ela era prisioneira da Matéria, on-de a haviam guardado os demôniosnossos inimigos.

Ó homem, tu és, o libertador daBeleza. Em prêmio, nós te conce-deremos que vejas a sua imagem

 para que te acompanhe durante aexistência. Ela estará sempre con-

tigo, e poderás contemplála e admirála onde estiveres, porque po-derás realizar a sua imagem com astuas mãos e com o teu espírito.Assim te daremos o maior dom dos

deuses, mas também te abrimos ocaminho da tua libertação dos de-

 — 160 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 161/191

mônios. Ela te salvará, pois poderáschegar até nós. Ela será o caminho

que te elevará de tua pequenez paraatingires a nossa grandeza.E foi assim que surgiu o Artista,

aquele que não sabe quando, masque, um dia, contemplou a face ma-

ravilhosa da Beleza, e que tentasempre, em tôdas as coisas, reproduzíla.

 — 161

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 162/191

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 163/191

OS ANIMAIS SAÚDAM O SOL

Agradecidos dos favores que o soloferece a todos os animais que vi-vem sôbre a terra, o cão propôs, efoi aceito, que se lhe prestasse, aoamanhecer, uma grande homena-gem. Combinaram a organização deum grande côro dos animais, sob aregência do rouxinol .

Milhões de vozes ergueramse na

madrugada, numa melodia única,suave, harmoniosa. Uma única vozdesafinou e chamou a atenção de to-dos, e atraiu os olhares furibundosdo leão, do tigre e do leopardo. Ter-

minado o côro, o rouxinol, de cimade uma árvore, disse à rapôsa:

 — 163 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 164/191

 — Comadre, rapôsa, que lástima!Por que você desafinou daquelemodo?

 — Ora, meu amigo, se não desa-finasse, como é que chamaria a aten-ção para mim?

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 165/191

0 MACACO, O PALHAÇO E O BURRO

 No circo, já haviam passado osnúmeros do trapézio, do arame, ohomem cobra, todos muito aplau-didos.

Mas ninguém recebeu tantosaplausos como o palhaço e o maca-co Simão quando entraram no pi-cadeiro. Foi um verdadeiro delírio!

O palhaço deu uns saltos mortaisque o macaco acompanhou. Depois,ambos pularam, caíram, rebolaram;o macaco deu palmadas no palhaço,o palhaço deu palmadas no macaco;

um imitou o outro. E o povo riu,gritou, gargalhou, aplaudiu.

 — 165 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 166/191

Quando terminou o número, maio-res ainda foram os aplausos e todos

 pediam: Bis! Bis!Fora do picadeiro, atrás da corti

naa, o burro dizia para os outrosanimais:

 — Não há dúvida. O palhaçoe o macaco são inegàvelmente ossêres mais inteligentes do mundo.

 Não estão ouvindo os aplausos?. .

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 167/191

A NOVA ORDEM SOCIAL DOS LÔBOS

Os lôbos, descontentes da vidaque levavam, resolveram recons-truir a sua ordem social.

 — Imitemos as abelhas! — Propôsum.

 — Melhor, as térmitas! — Propôsoutro.

Depois de muitos debates, a maio-ria convenceuse que a ordem esta-

 belecida pelas abelhas seria a quemelhor se coadunaria aos lôbos .Antes de pôr em votação, um ve-

lho lôbo, pedindo a palavra, disse: — As razões da proposta são ine

gàvelmente interessantes e ponde-radas. Que tenha servido para abe-

 — 167 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 168/191

lhas e térmitas, compreendo. Quevenha a servir para lôbos é o queduvido, pela simples razão de lôbosserem lôbos, e não abelhas nem tér-mitas. E por outro lado, deixaimeao menos pôr uma pequena dose de

 pessimismo lupino: depois de milê-

nios e milênios, os lôbos volvem paraos insetos em busca de construçõessociais. Será que a isso chamam

 progresso?

 — 168 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 169/191

A SOMBRA E O RIACHO

A sombra, que vinha das árvorese cobria o riacho, disse:

 — Eu te cubro com o meu man-to de penumbra, vês?

 — Sem dúvida, — replicoulheo riacho, — podes escurecer as mi-nhas águas, mas não impedes queelas corram.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 170/191

O ZANGÃO, A CIGARRA E AS ABELHAS

Orgulhoso da colmeia, um zangãoconvidou um dia uma cigarra paravisitála.

 — Vês êstes favos cheios de mel?Tudo isso é produto da minha or-ganização, do meu trabalho, — maisou menos, — calculou — de um mês.

 — Extraordinário! Extraordiná-

rio! — Exclamou admirada a ci-garra. Naquêle instante entrou uma fi-

leira de abelhas.

Abriam os favos e depositavamo mel, e, rápidas, tornavam a sair.

 — 170 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 171/191

 — Quem são elas? — perguntoua cigarra.

 — Essas. o zangão fêz um ges-

to de desdém — essas são apenas asminhas auxiliares.

 — 171 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 172/191

A COUVE, A HERA E O CARVALHO

Ao ver o Carvalho altaneiro, do-minando a floresta, a Couve chora-mingou:

 — É demais. Êle tão alto, e eu.

aqui, rastejando no chão. Porquenão posso erguerme até lá?

Mas a Hera atalhoulhe logo:

 — Por que não procedes como

eu? Meus ramos são frágeis, masapegome ao tronco do Carvalho, esubo tão alto como êle. Aprendecomigo!

A Couve meditou um pouco, edepois, com certo orgulho, disse:

 — 172 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 173/191

 — Se não posso subir com as mi-nhas hastes, não quero erguermeàs alturas à custa dos poderosos.

 — 173 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 174/191

A RAPÔSA E A LIBERDADE

Uma vez, uma rapôsa, vinda deterras distantes, visitou um povo para aí pregar uma nova idéia. Erauma idéia revolucionária. Entreoutras coisas, dizia:

 — Absurdo simplesmente é havergalinheiros fechados. Onde está aliberdade das galinhas? E a liberda-de dos pássaros está nas gaiolas?

Precisamos dar liberdade a todosos animais. E etc., etc.Muito aplaudida, despediuse para

ir pregar em outra freguesia. Osque ficaram, logo puseram em prá-

tica a reforma proposta pela rapôsa.Em sinal de revolta, as galinhas não

 — 174 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 175/191

foram àquela noite dormir nos ga-linheiros, e muitas gaiolas foramabertas a bicadas para dar liberda-de aos pássaros presos.

 Na manhã seguinte, o quadro eradiverso. Havia falta de alguns

 pintos.

 — Naturalmente, desacostuma-dos com a liberdade, perderamse

 pelos caminhos. Mas retornarão. —Alegou o pato.

 No outro dia, pela manhã, a faltaera ainda maior, e os perdidos nãoretornavam. As galinhas ficaramalarmadas.

E fala daqui e fala dali, resolve-

ram consultar o Cão. — Qual é a sua opinião, sr. Cão? — A minha opinião, sôbre o quê? — Sôbre a liberdade.. Estamos

aflitas. Muitos de nossos filhotes de-sapareceram .

 — 175 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 176/191

 — Mas quem vos pregou a liber-dade?

 — Foi a rapôsa, — alegaram tôdas a uma.

 — A rapôsa? Gente dos gali-nheiros, ouvi: a liberdade é umgrande bem, mas é preciso estar

 preparado para ela. Como é que ga-linhas e filhotes de passarinhos que-rem ser livres, se não sabem garan-tir a liberdade. E, depois, como ob-terão os seus benefícios, quando a

rapôsa anda à solta?

 — 176 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 177/191

A POMBA E A CORUJA

 — Comadre coruja. que des-graça me aconteceu! — Exclamavachorosa a pomba —. Nem calcula.Meu mal não tem remédio. Imagi-

ne. o meu companheiro me aban-donou. Eu que lhe fui tão fiel, tãoamiga. e vivíamos tão juntinhos.E depois falam da fidelidade dos

 pombos. É mentira, comadre co-

ruja. Uma pombinha serigaita, que passou por aí, viroulhe a cabeça,e êle bateu azas com ela.

 — Mas, não me diga!.

 — Uma desgraça, comadre. Umadesgraça!

 — 177 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 178/191

 — Tenha paciência, dona Pomba.Sei que é doloroso — dizia a coruja

 — sei, mas que se há de fazer. Nomundo dos bichos é assim. A senho-ra deve conformarse.

 — Mas como conformarme, co-madre?!.

 — O tempo, minha filha, o tem- po é um grande remédio. Há outros pombos no mundo. Ainda é jovem,ainda poderá ser feliz. Tudo isso

 passa. Suas lágrimas de hoje aindatomarseão em riso. É preciso con-formarse.

E a pomba inconformada, acabouum dia conformandose, porque c

tempo passou, e a memória do pom- bo já não lhe arrancava mais lágri-mas.

Estava um dia, satisfeita no seu pombal, quando a coruja apareceu.

Vinha tôda lacrimosa. Chorava de-sesperadamente :

 — 178 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 179/191

 — Comadre pomba. Uma desgra-ça sem igual. Horrível. Aquele co-

rujão patife, me de ix o u .. Viu umacorujinha, e se foi com ela. Sou umainfeliz, comadre pomba, uma des-graçada. Mil vêzes morrer do quesofrer assim!

 — Coragem, comadre coruja, co-ragem! Isso acontece, não uma vez,mas muitas. Precisa conformarsecom a sua desgraça.

 — Não há conformação possível!É uma desgraça imensa! Que desa- pareça o mundo, não posso supor-tar a minha dor.

 — Mas comadre, seja forte. Avida é assim. Lembrese, comadre,quando me aconteceu o mesmo.Quais foram os seus conselhos?Chegou agora a vez da senhora

mostrarse forte. Que diabo, sejacorajosa!

 — 179 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 180/191

 — Não, não posso. . não há des-graça como a minha.

Um rouxinol, que assistiu a pri-meira cena e a segunda, comentoude si para consigo: “É sempre assim.Sempre dói menos e é mais fácilresolver o sofrim ento. dos ou-tros.”

 — 180 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 181/191

AS GALINHAS E O FRANGO

Quando no galinheiro os frangoscomeçaram a experimentar as asas,a tentar alçar vôos, caindo aqui,caindo ali, indo de encontro às gra-des, as galinhas, no canto, desde-nhosas, diziam:

 — Êsses frangotes. Já pensamem voar!

E uma delas acrescentou: — Uns idiotas! Pois não conheci

êsses fedelhos, comadres, quandoestavam no ovo? Fui eu que os

choquei, sim senhora, debaixo des-tas asas.

 — 181 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 182/191

OPINIÃO

 Numa roda de indígenas, o pri-meiro disse: — Pensamos com a garganta.. — Qual nada! Pensamos com a

 barriga. — Não! — interrompeu o tercei-

ro — Pensamos com o coração. — Não concordo com vocês —

alegou o quarto — Pensamos com

a cabeça .Os três primeiros não se conti-veram, e riram desabridamente daopinião do quarto.

 — 182 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 183/191

A COBRA, A LESMA E O LAGARTO

A cobra, a lesma e o lagarto estavam tomando sol.

 — Nada melhor que o calor, nãoé, compadre lagarto?

 — E também nada melhor queestar enfurnado na terra. Você nãoacha, dona cobra?

 — Também julgo assim. Às vêzesfico pensando que animais mais es-

túpidos são as aves por terem asase voar. Pode haver passatempo maisimbecil?

 — Para mim não há, arrem atoua lesma. E palavra que estou bem

orgulhosa de não ter asas.

 — 183 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 184/191

O ECO

Por entre os montes pensava ceco: — Que tristeza a minha vida!

Quando o leão urra, eu urro, quan-do a cabra bale, eu balo, quando o

 burro zurra, eu zurro. Por que nãome é dado criar nada de original?Por que não posso, quando zurraro burro, responderlhe com um urrode leão, que o fará correr de mêdoo dia inteiro?

Um deus, ao ouvir as lamenta-ções pensativas do eco, disselhe:

 — Lamentaste sem razão! Em

ser leão é a virtude do leão; em ser burro é a virtude do burro; em ser 

 — 184 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 185/191

homem é a virtude do homem. Nãoserias mais tu mesmo quando fôssesoriginal; porque, aprende, a virtudedos ecos consiste apenas em repetir.

 — 185 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 186/191

A RAPÔSA E AS UVAS

 — Não. não faço o bem, paraque Deus não pense que me inte-resso pelo céu!.

 — 186 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 187/191

A NOITE, O DIA E A TERRA

 No silêncio sideral irrompeu a po-lêmica entre o Dia e a Noite. ATerra, colocada entre ambos, roda-va como entontecida.

E alegava o Dia:

 — Q uer compararse comigo?Quem dá luz à terra, quem lhe dácalor, quem a alivia dos frios devocê? Quem auxilia as plantas anascer, quem gera os ventos?Ora, nem preciso dizer mais nada.

 Não há comparação entre nós!A Noite retrucava:

 — Você pensa que a sua luz vale

mais que as minhas sombras. Senão fôsse eu, quem daria aos ho

 — 187 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 188/191

mens os sonhos, as horas de des-canso, o sossego.

Eu dou a fantasia, o silêncio das

noites enluaradas; velo pelo sonode tôdas as coisas, e silenciosamen-te auxílio a germinar as plantas, e

 poiso de leve o bálsamo do meu or-valho que tanto as alimenta.

Mas a Terra não se conteve, interrompeuas, e disse:

 — Perdão! O interessado aqui soueu. Se somente houvesse o Dia, se-

cariam as minhas fontes, as minhas plantas, e a vida desapareceria desôbre mim. Mas também se hou-vesse apenas a Noite, tudo estariacoberto de neve, tudo morreria de

frio, e eu seria um pobre planetagelado a percorrer tristemente osespaços. Compreendam, preciso deambos. O valor do Dia está em seu

contrário, a Noite.O valor da Noite,em seu contrário, o Dia. Vós ambos

 — 188 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 189/191

vaieis porque juntos; separados me prejudicaríeis. A vossa maior vir-

tude está na vossa oposição. É porisso que sàbiamente eu rodo entreambas.

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 190/191

O BURROREI

Resolveram os animais elevar atéao trono o Burro.

Dizia a Gazela: — Muitos de nós não compreen-

dem nosso irmão Burro. Como êleé simples e pacífico, e vive nos pra-dos tranqüilamente a pastar, jul-gamno incapaz de ascender à altamagistratura dos animais, cargo no

qual se perpetuou nosso nobre eferoz Leão.Vereis, quando fôr coroa-do, que saberá êle levar o nosso po-vo aos seus mais altos destinos.

Veio a coroação. E Sua Magesta

de o Burro subiu ao trono para go-vernar os animais. Na verdade, a

 — 190 — 

8/13/2019 Assim Deus Falou Aos Homens e Apologos

http://slidepdf.com/reader/full/assim-deus-falou-aos-homens-e-apologos 191/191

sua postura era impressionante, pa-recia um verdadeiro monarca. Re-solveu êle fazer a sua primeira fala

aos povos, e zurrou e zurrou de talmodo, que entonteceu a todos os ou-vintes. Vestido com o manto dosmonarcas e com a corôa supremana cabeça, o Burro mereceu da ra-

 pôsa esta apreciação: — É la, no trono, a mesma coisa

que era nos prados Pensásteis ani-