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Aspectos teóricos de base

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PARA UMA PERSPECTIVA SISTÉMICA DA REALIDADE PSICOLÓGICA SOCIAL 60

JOSÉ FARINHA VER. 1.12- 2005-11-20

PARA UMA PERSPECTIVA SISTÉMICA DA REALIDADE PSICOLÓGICA SOCIAL

ASPECTOS GERAIS A segunda metade do nosso século tem sido especialmente caracterizada por um conjunto de mudanças que afectam drasticamente quase todos os aspectos das nossas vidas. Do ponto de vista tecnológico assistimos à passagem de uma era industrial em que o problema principal se centrava à volta do conceito de máquina e energia21, para uma sociedade pós-industrial dominada pelo problema da informação e comunicação.

Com efeito, o quadro conceptual da era industrial tinha as suas raízes na ciência clássica22 que se desenvolveu na Europa há cerca de 300 anos e que tem sido também muitas vezes associada à física newtoniana pois assenta numa visão mecanicista e determinista do mundo. O desenvolvimento tecnológico directamente resultante desta perspectiva não foi de somenos importância pois acabou por conduzir à revolução industrial que, através da evolução do binómio máquina/energia, providenciou um aumento extraordinário das nossas capacidades físicas, isto é, a medida em que somos capazes de lidar com e transformar objectos e materiais.

Contudo, vivemos hoje numa época que tem sido muitas vezes designada como pós-industrial que assenta num enquadramento conceptual qualitativamente diferente do da era industrial pois foi construído à sombra das perspectivas mais recentes da cibernética e da abordagem sistémica. A ciência clássica definia a complexidade a partir das múltiplas partes de um

21Mesmo as máquinas características deste período eram construídas e funcionavam

essencialmente numa lógica energética, isto é serviam essencialmente para amplificar a energia humana.

22A distinção entre ciência clássica e ciência moderna segue aqui de perto as posições de Ilya Prigogine em La Nouvelle Alliance, 1979.

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sistema, por outro lado a ciência dos sistemas define complexidade a partir das múltiplas interacções entre os elementos desse sistema. Ao mesmo tempo a ciência tradicional adoptou uma abordagem essencialmente de tipo analítico, isto é, procurava compreender as coisas através da determinação e análise da natureza dos seus componentes, até chegar aos elementos "últimos", aos componentes básicos. Esta metodologia de cariz reducionista era naturalmente incapaz de abarcar a "totalidade" que emerge da interacção das partes em que o todo organiza as partes e estas por sua vez adquirem sentido através do todo e da interacção entre elas.

Na sua perspectiva crítica da evolução dos modelos ao longo da história da psicologia, Altman e Rogoff (1987) distinguem quatro grandes “visões do mundo” que marcaram os pressupostos epistemológicos e metodológicos da investigação psicológica: a perspectiva dos traços, a perspectiva interaccionista, a perspectiva organísmico-sistémica (já pós-positivista) e a perspectiva transaccional.

Na perspectiva dos traços, os esforços centram-se no estudo do indivíduo e dos seus processos intrapsíquicos, isolados dos seus contextos externos e da sua temporalidade, que nesta perspectiva são ou ignorados ou considerados de carácter secundário. Filosoficamente, acredita na causalidade interna dos fenómenos psicológicos, e os psicólogos operam como observadores externos em busca de uma “realidade objectiva” na qual não estão implicados. Qualquer forma de implicação, aliás, é vista como “ruído” a eliminar através de posturas metodológicas “correctas”, e não como informação relevante para a própria investigação (excepto, talvez, a postura da psicanálise, que acredita mesmo no contrário, como se sabe, apesar de se situar fundamentalmente numa perspectiva intrapsíquica). Esta visão do mundo aposta ainda na existência de leis psicológicas universais, cuja descoberta é o próprio objectivo da psicologia de forma a poder prever cientificamente os comportamentos. É uma perspectiva típica de teorias da personalidade como as de Eysenck ou de Cattell, para citar apenas estes exemplos.

A perspectiva interaccionista pertence ainda ao paradigma positivista. A psicologia é encarada como a busca de leis que permitam a previsão e o controlo dos comportamentos e processos psicológicos, vistos já não como intrapsíquicos e autogerados, mas como respostas a estímulos externos. É a psicologia de que o behaviorismo, nas suas variadas formulações, é a expressão mais pura e definida. Pode afirmar-se certamente ser este o modelo de maior sucesso e a visão dominante na psicologia do século XX. A sua visão do mundo corresponderia, em física, a um modelo newtoniano, em que se estudariam os impactos de umas bolas (estímulos) sobre outras (sujeitos), extraindo daí leis estruturais capazes de prever forças e movimentos (respostas), sempre os mesmos dadas as mesmas circunstâncias. Nesta perspectiva, procuram-se ainda as “causas das coisas”, encaradas de um ponto de vista de causalidade linear, isto é, as mesmas causas produzindo os mesmos efeitos nas mesmas situações. Nas expressões mais simplistas do modelo estímulo-resposta do behaviorismo clássico

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(Watson, Skinner), até às suas versões estimulo-(sujeito)-resposta dos actuais modelos do comportamentalismo, reencontramos sempre, como pano de fundo epistemológico, o positivismo. Tal como no modelo precedente, os psicólogos desempenham o papel de observadores externos de uma realidade supostamente objectiva, cuja descoberta é a sua missão científica (tanto mais científica quanto a independência entre o observador e o observado estiver assegurada metodologicamente, e os fenómenos observados forem replicáveis por observadores independentes dadas as mesmas circunstâncias). É nesta perspectiva que o experimentalismo psicológico encontra o seu mais seguro ponto de apoio, mas também onde é maior a alienação e a invalidade ecológica da pesquisa, dominada pela busca da assepsia metodológica em que o experimentalismo laboratorial surge como modelo ideal, o que fez com que, em psicologia social do desenvolvimento, Bronfenbrenner (1979) caricaturasse esta perspectiva como a ciência do estranho comportamento das crianças em situações estranhas com adultos que lhes são estranhos, durante os mais breves períodos possíveis de tempo. Tire-se “crianças” e ponha-se “sujeitos estudantes universitários (normalmente de psicologia)” e a frase poder-se-ia aplicar integralmente a uma multidão de estudos experimentais da psicologia social contemporânea, claramente dominada por esta “visão do mundo”.

Na perspectiva organísmico-sistémica assiste-se a um salto epistemológico em relação às perspectivas anteriores pois o positivismo não é já o paradigma dominante. O modelo causal deixa de ser linear, para passar a assumir propriedades circulares, isto é: onde causa e efeito se influenciam reciprocamente. Altman e Rogoff (1987) definem, portanto, esta perspectiva como o estudo dos sistemas dinâmicos e holísticos onde pessoa e meio exibem relações e influências recíprocas. Correntemente reconhecemos facilmente a forte influência da teoria geral dos sistemas de Ludwig von Bertallanffy (1956) no pensamento de Gregory Bateson (1972, 1979) , assim como tem uma posição prevalente na moderna teoria da família e na correspondente terapia familiar. Em psicologia social do desenvolvimento, há que referir a obra de Bronfenbrenner (1979; Bronfenbrenner) e Crouter, 1983 ; cf. Soczka, 1989).

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS A perspectiva sistémica tem-se organizado à volta de um modelo teórico global que ficou conhecido como Teoria Geral dos Sistemas23. No contexto das

23A designação “Teoria Geral dos Sistemas” não é perfeitamentamente correcta,

contudo decidimos mantê-la porque o uso da mesma se vulgarizou de tal modo na língua portuguesa que adoptar outra designação mais correcta poderia soar estranho e gerar confusão, trazendo assim mais prejuízo que benefício. Com efeito, a designação original em língua inglesa é “General Systems Theory”, o que, traduzido correctamente para português deveria dar “Teoria dos Sistemas Gerais” e não

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suas investigações em Biologia, nomeadamente os seus estudos sobre o metabolismo e o crescimento, Bertalanffy propôs a partir dos anos 20 uma teoria dos sistemas abertos, baseada essencialmente no facto de que o organismo é um sistema de elementos inter-relacionados mantendo-se através das trocas com o meio exterior. Esta concepção começou por implicar uma extensão da física convencional, sendo a noção de sistema posteriormente generalizada ao domínio das ciências sociais (Bertalanffy 1977, pg.30).

"A Teoria Geral dos Sistemas tornou-se assim uma espécie de grande campo conceptual dentro do qual se meteram diversas disciplinas, Teoria dos Jogos24, Teoria da Decisão25, etc.., de tal forma que ainda hoje não podemos verdadeiramente falar de um paradigma que esteja totalmente organizado de uma forma sólida, mas de um campo fragmentado com versões e aplicações em domínios e em níveis diferentes da realidade."

Numa fase inicial, a tarefa principal que se deparou aos teóricos dos sistemas foi de certa forma estabelecer a legitimidade epistemológica do seu campo de trabalho. Dado que o principal elemento de definição de um determinado domínio científico é o seu objecto de estudo, a especificidade da Teoria Geral dos Sistemas situa-se no facto de lidar com fenómenos complexos, com um método que respeita essa complexidade.

A Teoria Geral dos Sistemas tem assim como objecto de estudo as complexidades organizadas, ao nível biológico, ao nível social, isto é, ocupa-se de fenómenos onde há elementos, mas acima de tudo há relações entre esses mesmos elementos. O estudo do sistema vai incidir precisamente sobre a rede de relações intra e intersistémica, porque são as relações que mantêm e definem o sistema como tal.

Conceito de Sistema

O conceito de sistema tem, por assim dizer, um longo passado e uma curta História. Com efeito, se bem que nunca até aí o termo propriamente dito tivesse sido geralmente utilizado ou perfeitamente definido, já muita actividade intelectual e científica humana partia da noção de que existem fenómenos de tal forma relacionados que a sua compreensão terá que ser procurada no estudo das suas inter-relações recíprocas, mais do que na

“Teoria Geral dos Sistemas”. A diferença entre estas duas designações não é irrelevante porque enquanto que a designação “Teoria dos Sistemas Gerais” afirma a generalidade dos sistemas, os sistemas é que são gerais, a designação “Teoria Geral dos Sistemas”, parece apontar mais para a generalidade da teoria, dando a entender que é a teoria que é geral, o que não corresponde de forma alguma à ideia original.

24A Teoria dos Jogos estuda, do ponto de vista matemático, a competição racional entre dois ou mais jogadores que procuram o máximo de ganho e o mínimo de perda.

25A Teoria da Decisão estuda as escolhas racionais nas organizações humanas, baseada na análise de determinada situação e dos seus possíveis resultados.

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natureza dos seus elementos particulares. Um exemplo disto são os economistas do Sec. XIX que, sem terem consciência plena do facto, partiam da noção de sistema quando tentavam construir um modelo geral da economia a partir das relações entre a oferta, a procura, a moeda, o capital, etc.. O próprio Marx, parecia partir de uma perspectiva sistémica ao propor uma visão global da sociedade a partir duma relação entre as infra-estruturas económicas, políticas, sociais e ideológicas.

Contudo, aquilo que hoje conhecemos por abordagem sistémica tem a sua origem nos anos 30 e 40 durante os quais diferentes tipos de cientistas começaram observar padrões numa vasta gama de fenómenos físicos, biológicos, sociais e psicológicos. Com efeito, McCulloch e colaboradores debruçaram-se sobre a organização dos neurónios, Piaget estudou a forma como as crianças organizam os seus processos de conhecimento e Gregory Bateson, a partir dos seus estudos na Nova Guiné, tentou compreender a forma como o comportamento ritualizado se organiza no contexto da interacção social. O que estes investigadores tinham em comum era a noção de que os fenómenos sejam de tipo neurológico, psicológico, ou social, poderiam ser melhor compreendidos em termos de informação, e organização do que em termos de energia ou substância.

Neste contexto, o aparecimento da cibernética26, como ciência da informação, organização e forma, criou um novo campo de aplicação do pensamento sistémico distinto da física entendida como a ciência da energia e da matéria. Com efeito, a grande alteração paradigmática verificada em quase todas as disciplinas científicas mais acentuadamente após a II Guerra Mundial consistiu segundo Ludwig Von Bertalanffy (1977, pg.18) numa

"...passagem da engenharia de produção de energia - isto é, libertação de grandes quantidades de energia tal como acontece nas máquinas a vapor ou eléctricas - para a engenharia de controle, que dirige processos empregando dispositivos de baixa potência..."

O conceito de organização tornou-se assim central relativamente a outras categorias básicas de pensamento. Ora, a organização é um dado que, não sendo específico de qualquer elemento particular, resulta sim de uma determinada concepção das relações entre esses elementos. Assim aquilo que designamos por abordagem sistémica releva de uma posição ao mesmo tempo ontológica27 e epistemológica28. Ontológica no sentido em que parte da definição de uma realidade que é a realidade sistémica que não se reduz à

26A Cibernética foi "fundada" pelo matemático Norbert Wiener (1948) e tem como

finalidade principal o estudo dos sistemas de regulação e controle tanto nos organismos vivos como nas máquinas.

27A Ontologia é a parte da Filosofia que estuda o ser em si, as suas propriedades e dos modos por que se manifesta, isto é, a natureza dos elementos da realidade tanto material como racional.

28A Epistemologia é a parte da Filosofia que estuda a possibilidade e as condições do conhecimento, a forma como nos damos conta do mundo à nossa volta.

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soma dos seus elementos considerados em separado, e epistemológica no sentido em que propõe um conhecimento da realidade que em vez de estudar a natureza dos elementos considerados individualmente centra a sua atenção naquilo que é mais característico de um sistema, a sua organização, isto é o conjunto das relações existentes entre esses elementos.

O modelo sistémico, como teoria geral, parte da hipótese de que existem modelos, princípios e leis que se podem aplicar a sistemas generalizados, qualquer que seja o seu tipo particular, a natureza dos elementos que os compõem e as relações que existem entre eles.

Nesta perspectiva um sistema pode ser definido como um conjunto de elementos ou entidades mais o conjunto das interacções que se verificam entre eles e que num determinado momento nos permitem concebê-los como um todo único. Uma das distinções que usualmente se faz é a de considerar duas categorias básicas de sistemas: Sistemas abertos e sistemas fechados.

SISTEMAS FECHADOS

Um sistema fechado não troca nem energia nem matéria nem informação com o seu ambiente: está totalmente desligado do seu meio exterior. Isto quer dizer que o sistema funciona essencialmente a partir da sua energia potencial interna. Essa energia é utilizada nas interacções entre os elementos do sistema até que este chega a um estado de equilíbrio o que é o mesmo que dizer a um estado de inacção e desorganização total.

Naturalmente que um sistema fechado num sentido rigoroso é uma abstracção dos físicos, uma espécie de modelo teórico ao qual não corresponde nenhuma realidade concreta. Contudo esta distinção entre sistema abeto e sistema interessante na medida em que permite abordar problemas como o contraste entre o mundo físico e o mundo vivo, os problemas da vida, da evolução, da auto-organização, da diferenciação, etc..

SISTEMAS ABERTOS

A aplicação dos princípios sistémicos nas ciências do comportamento tem sido feita essencialmente utilizando o conceito de sistema aberto porque todo o organismo vivo pode ser definido como um sistema aberto. Num ser vivo existem, com efeito, numerosos processos químicos e físicos ordenados de tal forma que permitem ao sistema vivo manter o seu funcionamento dentro de determinados parâmetros e mesmo crescer, desenvolver-se, reproduzir-se,

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etc., apesar de no seu interior se verificarem trocas incessantes (Bertalanffy, 1984, p. 82). Isto manifesta-se a todos os níveis: - componentes químicos, ao nível da célula; células, ao nível do organismo multicelular; indivíduos, numa população, etc.. As estruturas orgânicas são elas próprias a expressão de um processo ordenado e só se mantêm por este processo. Por conseguinte, a abordagem sistémica trata primeiro de procurar a ordem dos processos em si próprios e não em estruturas exteriores pré-estabelecidas. Contudo, esta noção de ordem é estranha tanto à física como à química clássicas. Para a definir foi necessário criar um modelo sistémico ao mesmo tempo suficientemente rigoroso para permitir uma abordagem científica e global de forma a poder ser generalizado a todos os sistemas vivos, o que faz com que o modelo do sistema aberto tenha naturalmente um vasto campo de aplicação na biologia, fisiologia, psicologia, sociologia, etc.

Define-se sistema aberto (Bertalanffy, 1977 Pg. 193) como um sistema que troca materiais e informação com o seu ambiente. Este processo faz com que o sistema se mantenha num estado de ao mesmo tempo de integridade e estabilidade.

Propriedades dos Sistemas Abertos

Segundo esta teoria um sistema aberto pode ser caracterizado por três propriedades fundamentais.

TOTALIDADE

O conceito de totalidade pode ser definido como a qualidade emergente na base da própria noção de sistema entendido como complexos de elementos em interacção29. Segundo Bertalanffy (1977, Pg.82):

"Ao tratarmos de complexos de elementos podemos fazer três diferentes espécies de distinção, a saber, 1) de acordo com o seu número; 2) De

29Estar em interacção significa, de uma forma mais rigorosa, que os elementos p estão

em relações R, de tal modo que o comportamento de um elemento p em R é diferente do seu comportamento quando fazendo parte de outra relação R'. Se os comportamentos em R e R' não são diferentes então não podemos dizer que haja relação.

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acordo com a sua espécie; 3) de acordo com as relações entre os seus elementos."

Assim para compreendermos o funcionamento de um determinado sistema devemos ter em conta aquilo que Bertalanffy chama "características constitutivas", isto é, aquelas que dependem das relações específicas intra-sistémicas.

São as características constitutivas que definem a totalidade do sistema, quer dizer, um sistema não é uma simples soma ou agregado de elementos, mas comporta-se como um todo coerente e indivisível no qual as variações de qualquer elemento estão relacionadas com todos os outros.

O conceito de totalidade não é um conceito estático mas dinâmico e susceptível de variar ao longo do tempo. Com efeito, especialmente nos sistemas inter-relacionais as interacções entre os elementos podem variar ao longo do tempo em que, por um processo de diferenciação um sistema passa de um estado de totalidade a um estado de relativa independência, dando origem a outros sistemas.

Num estado de totalidade uma perturbação num elemento conduz a perturbações nos outros elementos, reagindo estas de forma a manter o estado de equilíbrio inicial. É este processo que nos permite compreender como, por exemplo, quando numa família em que um membro apresenta problemas comportamentais esses problemas desaparecem, não tendo havido uma verdadeira mudança na organização da família, acontece que ou os problemas desse membro voltam a aparecer ou aparecem problemas noutro membro da família.

O princípio da totalidade sistémica tem implicações teórico-práticas evidentes. Com efeito, qualquer hipótese que pretendamos pôr no sentido de compreender e guiar a nossa intervenção relativamente a um determinado comportamento problemático de um membro de um sistema psicossocial terá que envolver todos os membros desse sistema.

AUTO-REGULAÇÃO

Vimos já que o estudo dos sistema vivos, seja de tipo biológico seja de tipo psicossocial, como sistemas abertos envolve dois tipos de questões: primeiramente questões ligadas à sua estrutura, que apontam para a vertente estática das interacções intersistémicas, para a estabilidade e conservação do sistema; em segundo lugar questões de tipo dinâmico, relativas às flutuações e variações do sistema no tempo. Podemos assim perceber a existência de duas tendências igualmente indispensáveis à sobrevivência do sistema: - uma tendência para a estabilidade (morfoestase) e uma tendência à transformação (morfogénese). Ao estado de equilíbrio entre estas duas tendência chamaram os estudiosos dos processos cibernéticos homeostase. O equilíbrio homeostático como se sabe é mantido através das trocas que o sistema estabelece com o seu ambiente. O modelo básico é o de um processo circular no qual uma parte da saída (output) do sistema é reenviada de volta, como

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informação, para a entrada, tornando assim o sistema auto-regulador, quer no sentido da manutenção de certas variáveis quer na direcção para uma meta desejada.

O modelo físico mais conhecido deste processo é o do termóstato e de todo o tipo de servomecanismos construídos pela cibernética. Este modelo de causalidade circular constitui a maior contribuição da cibernética para as ciências do comportamento. Como refere Watzlawick (1973 Pg.26):

"A compreensão de que a informação a respeito de um efeito, se for adequadamente retroalimentada garantirá a estabilidade deste e a sua adaptação às mudança ambiental, não só abriu as portas para a construção de máquinas de ordem superior (isto é, de erro controlado e orientadas para uma meta específica) e levou à postulação da cibernética como uma nova epistemologia, mas também proporcionou vislumbres completamente novos do funcionamento dos sistemas de interacção muito complexos, na biologia, psicologia, sociologia, economia e outros domínios."

As retroacções entradas no sistema podem ser de tipo positivo ou negativo. As retroacções positivas, tendem a amplificar as flutuações no funcionamento sistémico e, de uma forma geral conduz a mudanças no funcionamento do sistema, isto é à perda da estabilidade ou do equilíbrio.

Contudo seria impossível a um sistema manter-se em funcionamento recebendo somente retroacções de tipo positivo. Para o sistema readquirir o seu equilíbrio precisa de receber igualmente retroacções de tipo negativo, isto

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é, retroacções tendentes a compensar as variações verificadas e que por conseguinte tendem a estabilizar o funcionamento sistémico num determinado estado de equilíbrio.

Os conceitos de positivo ou negativo não têm aqui nenhum tipo de conotação valorativa, mesmo quando aplicados no campo das relações humanas. Estes dois tipos de retroacção são ambos essenciais à manutenção do sistema, a diferença está em que no caso da retroacção negativa, essa informação é usada para fazer diminuir os desvios de funcionamento de um conjunto de regras ou tendências, enquanto que no caso da retroacção positiva esses desvios tendem a ser amplificados.

Com efeito os sistemas interaccionais humanos quer sejam grupos informais, famílias ou mesmo organizações formais, podem ser perspectivados como circuitos de retroacção, dado que o comportamento de cada pessoa afecta e é afectado pelo comportamento de cada uma das outras pessoas.

EQUIFINALIDADE

O princípio de equifinalidade refere que o mesmo estado ou "objectivo" final pode ser alcançado a partir de condições iniciais diferentes ou por vias diferentes. A equifinalidade é uma característica fundamental dos sistemas vivos, que não se verifica nos sistemas inanimados em que um determinado estado num tempo t é determinado univocamente pelo estado do mesmo sistema num tempo to. Um exemplo bem conhecido desta propriedade vem embriologia experimental: em que um ser normal pode ser obtido a partir de um ovo completo, tanto como de metade de um ovo ou até de uma quarta parte de um ovo. Esta noção de equifinalidade tem basicamente a ver com a organização do sistema. Se considerarmos, por exemplo, um determinado sistema interaccional dizemos que está organizado, que existem determinadas regularidades no seu funcionamento. Trata-se contudo de uma estabilidade dinâmica na medida em que é conseguida através de processos de troca, de mudança. Num determinado grupo social os indivíduos estão em actividade, interagem uns com os outros, há movimento constante, mas apesar disso ficamos com a noção de que existe uma certa regularidade. O que está na base dessa regularidade é a existência de padrões de interacção, de

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processos circulares que se repetem sob determinadas condições, isto é, os parâmetros do sistema, as regras implícitas ou explícitas que regulam as interacções.

Segundo o princípio da equifinalidade os acontecimentos no interior de um sistema têm mais a ver com os padrões, regras de funcionamento e estrutura do sistema, sendo largamente independentes das condições iniciais. O mesmo estado final pode ser atingido partindo de condições iniciais diferentes. De uma forma mais ilustrativa diríamos que, para compreender o ponto a que chegou um sistema, mais do que saber de onde partiu, importa saber que caminhos tomou. Como referimos acima, o que é determinante para explicar um sistema aberto é a compreensão das regras de organização, mais do que as suas condições iniciais, ou eventualmente a sua "história".

Com efeito a abordagem histórica e retrospectiva de um determinado sistema psicossocial é sempre mediatizada pela sua organização actual. Esta é uma ideia que põe largamente em causa os pressupostos sobre que assentam as intervenções tradicionais, essencialmente baseadas em dados de tipo histórico e retrospectivo. Não queremos dizer que os dados do passado não possam ter um certo interesse na compreensão do funcionamento de um determinado sistema inter-relacional. Se nos ocupamos de um determinado sistema, por exemplo as relações escola/família, e observamos a forma como as pessoas interagem, podemos obter dados de tipo contextual, e podemos recolher informação relativa ao contexto social, económico, cultural, comunitário e histórico e integrar as nossas observações nesses dados. O que não podemos é defini-los como base causal dos fenómenos observados.

Este conceito de equifinalidade tem um enorme interesse prático na medida em que vai implicar determinadas formas intervenção sistémica. Com efeito se usarmos unicamente um modelo de causalidade baseado nos acontecimentos anteriores corremos um risco muito grave que é o de perder de vista o que é novo em termos de funcionamento sistémico, isto é, aquilo que acontece como fruto da criatividade de alguém num determinado momento. Essas pequenas alterações no funcionamento sistémico podem por vezes ser ampliadas introduzindo novidade e mudança no sistema. Os processos de mudança, ligados às retroacções positivas e os processos de estabilidade/manutenção ligados às retroacções negativas estão relacionados entre si de uma forma a que Pina Prata chamou "processo paradoxal de base" (1981, Pg. 26):

"Não há mudança sem estabilidade, mas a estabilidade, equilíbrio quase-estável requer mudança e, antes de tudo, plasticidade de mudança "

Se combinarmos a ideia de estabilidade e organização com a ideia de flutuação espontânea podemos eventualmente aumentar o seu potencial para gerar formas de organização diferentes.

A história de um sistema pode ser, assim, encarada numa perspectiva multidimensional: - uma dimensão passada que se torna contexto, uma

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dimensão presente que se refere ao estado do sistema num dado momento e ainda uma dimensão futura que é a possibilidade de mudança.

A abordagem dos processos psicossociais numa perspectiva sistémica implica assim a necessidade de termos fundamentalmente em conta os processos através dos quais as pessoas se relacionam entre si, isto é, como vimos quando abordámos o objecto da psicologia social, a forma como as pessoas se influenciam umas às outras. Ora, sabemos que o processo geral que liga as pessoas é o processo de comunicação, por isso, uma abordagem à perspectiva sistémica em psicologia social só fica completa se tivermos igualmente em conta uma perspectiva sistema da comunicação.

A PRAGMÁTICA DA COMUNICAÇÃO HUMANA

Aspectos Gerais

Se nos lembrarmos da argumentação desenvolvida no capítulo em que foram abordadas questões relacionadas com o objecto da psicologia social, torna-se fácil compreender a razão de ser da inclusão de um capítulo dedicado ao processo de comunicação humana.

A literatura e o cinema têm-nos proporcionado algumas descrições, porventura dramáticas, de situações de incomunicabilidade absoluta ou relativa (entre brancos e índios, ou entre humanos e extra-terrestres). Face a isto poderemos ser tentados a pensar que o problema é, nesses casos, a falta de uma linguagem comum (ou um código), como quando alguém se encontra num país estrangeiro e ignora a língua que aí se fala.

Esta noção é, contudo, insatisfatória na medida em que não nos permite compreender a frequência com que ocorrem desentendimentos entre pessoas que falam efectivamente a mesma língua e até partilham a mesma cultura. A crença ingénua de que qualquer diálogo tem um princípio e um fim evidentes, que as mensagens trocadas são objectivas e compreensíveis, e que cada interlocutor responde ao que o outro disse pode não se verificar na realidade, ou pelo menos não ter o mesmo entendimento dos dois lados.

Reparando bem, em qualquer discussão cada um acha que o outro não tem na devida conta os seus argumentos; em qualquer conflito é convicção de cada uma das pessoas envolvidas que foi a outra a abrir as hostilidades; e em qualquer das situações ambas se reservam o direito (ou o dever) de dizer a última palavra. Isso acontece porque cada uma das pessoas está convencida da sua razão, e tenta convencer a outra; e se essa razão não lhe é reconhecida, é provável que tire daí as devidas conclusões: naturalmente acerca da personalidade do outro e da relação que existe (ou existia) entre ambos.

Neste capítulo são abordados problemas deste género a propósito da comunicação interpessoal. Uma ideia central é que as pessoas estão

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frequentemente mais interessadas em convencer os outros (isto é, impôr-lhes as próprias opiniões) do que em compreender os outros (isto é, aceitar os seus . pontos de vista).

Bem vistas as coisas, se o ter razão tende a ser mais importante para as pessoas do que o próprio conteúdo do seu discurso, é porque lhes dá direito a dizer a última palavra, que é o mesmo que dizer ficar por cima ou dominar (Dionne & Ouellet, 1990).

Modelo Telegráfico e Orquestral da Comunicação

Se, como vimos atrás, o mundo foi dominado até a meados do século passado pela problemática da energia, é também verdade que, desde aí, a comunicação tem sido o campo onde se têm operado os desenvolvimentos mais críticos de tal forma que, hoje, esta é uma das áreas primordiais de investimento, tanto em termos sócio-económicos, como em termos pessoais, ou melhor, interpessoais.

Este facto fez naturalmente com que o termo comunicação se tenha tornado num lugar comum onde cabe tudo, desde comboios, autocarros, telefones, jornais, cadeias de rádio e televisão, pequenos grupos de encontro, agências de publicidade e, até, colónias de formigas, porque sabemos que os animais também comunicam entre si. Ora, quando um termo adquire um significado de tal forma global acaba por perder, senão todo, parte do seu sentido essencial. Parece-nos, por isso, que se torna necessário começar por pôr um pouco de ordem nesta "babilónia" e tentar chegar a uma definição o mais clara possível do sentido da nossa comunicação.

Uma boa forma de começar poderá ser traçar as raízes etimológicas do termo. Com efeito, a palavra comunicação tem a sua origem no termo latino communicare que significava pôr em comum, estar em relação, e que está na base de outros termos como comunidade, comunhão, comunismo, etc.. Contudo, especialmente depois da revolução industrial, este sentido original, passou, a partir de dada altura a evoluir no sentido de designar a partilha de uma notícia (transmitir) uma notícia, uma doença, etc., e, daí, o uso da palavra no sentido global de partilha, passa progressivamente para segundo plano para dar lugar à utilização no sentido de transmissão, quer dizer, do círculo passa-se ao segmento. É assim que, comboios, telefones e jornais se tornam "meios de comunicação", isto é, meios que permitem a passagem de algo de A para B e é este sentido de transmissão que predomina hoje em dia.

Em 1948 o cientista americano Norbert Wiener publica a sua obra Cibernética e, um ano mais tarde, um dos seus antigos alunos, Claude Shanon publica A Teoria Matemática da Comunicação. Esta obra, irá, com efeito, fornecer o modelo que irá ter a sua aplicação nos meios tecnológicos de transmissão de informação, como o telégrafo e o telefone.

Analisando este modelo, temos uma fonte de informação (por exemplo a nossa voz ao telefone), um emissor que transforma a mensagem em sinais (o

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telefone transforma a voz em oscilações eléctricas), um receptor, que reproduz a mensagem a partir dos sinais, e um destino, que é a pessoa a quem a mensagem é enviada. Durante a transmissão os sinais podem ser perturbados pelo ruído. Seja:

Devido, por um lado, ao seu rigor conceptual, por outro, à sua simplicidade, este modelo foi igualmente adoptado como enquadramento geral para o estudo da comunicação nas ciências sociais. Se bem que tenha sido objecto de muitas alterações e adaptações, manteve, contudo, o seu núcleo central à volta da noção de emissor - receptor. Torna-se assim claro que o modelo do telégrafo acabou por impregnar decisivamente o estudo da comunicação humana, de tal forma que nos parece legítimo que possamos falar de um modelo telegráfico da comunicação.

Contudo, durante os anos 50, no momento em que o modelo telegráfico adquire uma posição dominante na reflexão teórica sobre a comunicação, alguns investigadores americanos tentaram começar do zero no que diz respeito ao estudo do fenómeno da comunicação interpessoal, sem passar por Shannon30 e Weaver. Apesar de terem origens disciplinares diferentes este grupo de investigadores partiu de uma posição comum que era a oposição à utilização em ciências humanas do modelo de comunicação de Shannon, isto porque entendiam que este modelo tinha sido concebido por e para engenheiros de telecomunicações e não poderia ser utilizado no campo específico da comunicação interpessoal. Isto, porque a utilização do modelo telegráfico em antropologia ou em psicologia levou ao ressurgimento de concepções ultrapassadas ligadas à psicologia filosófica sobre a natureza do Homem e da comunicação. Segundo eles a concepção da comunicação entre

30Estes investigadores tinham origens muito diversas. O antropólogo Gregory Bateson

e uma equipa de psiquiatras procuram formular uma teoria geral da comunicação apoiando-se sobre dados aparentemente tão desconexos como os diálogos entre um ventríloco e o seu boneco, a observação de comportamentos lúdicos nas lontras ou o comportamento esquizofrénico. Ray Birdwhistell e Edward T. Hall, são dois antropólogos que procuram compreender o domínio tradicional da comunicação a partir da gestualidade (kinestesia) e o espaço físico interpessoal (proxémica) e alguns outros.

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dois indivíduos como transmissão de uma mensagem sucessivamente codificada e depois descodificada pressupõe uma concepção do psiquismo humano como algo encerrado dentro de um corpo, emitindo pensamentos sob a forma de palavras, sendo assim o acto comunicativo reduzido a um acto verbal, consciente e voluntário.

As ciências humanas deveriam, assim, procurar um modelo comunicacional mais adaptado à sua realidade. Um dos primeiros passos nesse sentido foi partir da seguinte questão: - tendo em conta os milhares de comportamentos possíveis (verbais e não verbais), quais são aqueles que vão ser retidos pela cultura para se organizarem como conjuntos significativos. Ora, colocar esta questão da selecção e da organização dos comportamentos remete-nos para a existência de códigos, ou sistemas de regras que organizam o próprio comportamento. Estes códigos teriam como função organizar e seleccionar os comportamentos pessoais e interpessoais, regulariam a sua apropriação do contexto e assim a sua significação. A comunicação é entendida acima de tudo como um processo social permanente, integrando múltiplos modos de comportamento: - a palavra, o gesto, o olhar, a mímica, o espaço interindividual, etc.. Da mesma forma, não é correcto, para estes autores, isolar cada comportamento do sistema global de comunicação e falar da "linguagem dos gestos", "linguagem do corpo", etc., assumindo estas expressões que cada postura ou cada gesto têm um único significado particular. Com efeito as "mensagens" oriundas de qualquer forma de comunicação não têm um significado intrínseco, pois é somente no contexto do conjunto dos modos de comunicação, actuados num determinado contexto interaccional, que o significado da comunicação pode ser correctamente apreendido.

Isto é tanto assim que dois autores pioneiros nesta área, Birdwhistell e Scheflen propõem uma análise de contexto, por oposição à análise de conteúdo mais adequada ao modelo telegráfico. Com efeito, se a comunicação é entendida unicamente como uma actividade verbal e voluntária, o significado está contido nas "frases" que os interlocutores trocam entre si e o analista da comunicação só tem que analisar essas "frases" para daí retirar todo o significado. Se, pelo contrário, a comunicação for concebida como um processo permanente, a vários níveis, o analista deverá, para apreender todo o significado, descrever o funcionamento dos diversos modos de comportamento num contexto determinado. Trata-se de uma abordagem bastante complexa que faz apelo a metodologias de observação e análise elas próprias bastante complexas. É por isso que os procedimentos puramente experimentais em que a variação de um elemento x (sexo, idade, ou grau de intimidade dos interlocutores) são postos em correlação com as variações de um elemento y (por exemplo, a distância a que se encontram os interlocutores) não se revelam adequados para a abordagem da comunicação humana. Nesta perspectiva a mínima situação de interacção revela um nível de complexidade tal que é inútil tentar reduzi-la a duas ou mais variáveis analisadas de forma linear. É em termos de níveis de complexidade, de contextos múltiplos, e de sistemas circulares, que deve ser pensada e

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realizada a pesquisa em comunicação humana, sendo assim que os modelos circulares oriundos da cibernética ou da teoria geral dos sistemas acabam por tomar um papel decisivo nesta área.

Esta concepção da comunicação enquanto processo complexo, circular, multidimensional e multinivelar levou a que recentemente tivesse sido utilizada a analogia da orquestra, (com vários instrumentos e a várias vozes) para designar esta forma de abordagem e possamos falar de um modelo orquestral da comunicação sendo esta abordada de um ponto de vista interaccional sistémico. A comunicação interpessoal desenvolve-se como uma cadeia de actos significativos, que têm origem, alternadamente, num dos actores, e que são levados em conta pelo outro. Estes comportamentos portadores de significado - ou comportamentos comunicativos - não são exclusivamente linguísticos. Para além da linguagem verbal há outros sistemas de comunicação (Scheflen, 1981), em que se incluem comportamentos significativos tão diversos como movimentos do corpo ou de segmentos do corpo (gestos, olhar, expressão do rosto, riso, choro, etc.), manifestações neurovegetativas (alterações da cor da pele, actividades viscerais), toda a sorte de contactos físicos (aperto de mão, abraço, beijo), emissão de odores, e ainda o uso de certos adereços (vestuário, ornamentos, cosméticos). A analogia da orquestra permite acima de tudo compreender como cada indivíduo participa na comunicação sem que possamos dizer quem é que começa ou quem é que termina.

É por isso que optámos por estudar o modelo da pragmática da comunicação, pois, no nosso entender, representa um dos mais interessantes desenvolvimentos deste modelo orquestral da comunicação.

Para elucidar este conceito de comunicação, Watzlawick (1981) sugeriu que se compare a "resposta" de uma pedra ao receber um pontapé com a que, na mesma circunstância, daria um cão. A pedra desloca-se, e o seu movimento é fisicamente determinado pelo impulso recebido (em concorrência com outros factores físicos como sejam certas características da pedra e do terreno). O comportamento do cão é menos previsível, mas não é de excluir que ele se volte para trás e morda o agressor. A diferença fundamental entre as duas respostas, segundo Watzlawick, está em que no primeiro caso o movimento realiza-se com a energia transferida do pé para a pedra, enquanto no segundo caso, a mordedura, realiza-se com a energia própria do cão. Quer dizer, enquanto o comportamento da pedra responde à transferência de energia, o comportamento do cão responde, a uma transferência de informação. É isso a comunicação. Quer isto dizer que se a pedra reage directamente e de forma linear (quanto mais força, mais deslocamento) à energia recebida, no segundo caso a informação recebida pelo cão vai ser analisada no contexto da relação com o homem e com a situação, dependendo a sua resposta dessa análise.

Estamos, assim, perante um sistema não apenas circular (porque inclui um feedback), mas interaccional, no sentido de que cada actor se assume simultaneamente como emissor e como receptor. Numa perspectiva

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interaccional-sistémica não podemos afirmar que um indivíduo comunica o que quer que seja - os indivíduos não comunicam, mas participam em processos de comunicação. Cada um de nós pode movimentar-se, fazer ruído, mas não comunica. Podemos ver, podemos ouvir, sentir, saborear, mas não comunicar. Por outras palavras, se comunicação significa "pôr em comum" este processo não pode rigorosamente ser definido como tendo uma origem individual, podemos ser participantes, mas autores de comunicação. A comunicação, enquanto sistema não deve ser, então, concebida sobre o modelo elementar da acção e da reacção, por mais complexo que seja a sua concepção, mas deve ser apreendida ao nível da troca, da interacção.

Se quisermos estudar as propriedades comunicativas dos diferentes sistemas, é conveniente começar por distinguir entre comunicação verbal e comunicação não-verbal. Tal distinção, que tem por critério fundamental o suporte material da mensagem, privilegia de facto o código linguístico, opondo-o ao conjunto de todos os outros sistemas. Por outro lado, esta classificação junta na mesma categoria signos de natureza tão diversa como corar ou tremer (expressões espontâneas incontroláveis) e acenar ou menear a cabeça (gestos voluntários e convencionais, equivalentes a signos linguísticos).

Note-se, para finalizar, que o sistema interaccional, quase sempre encarado, na análise psicológica, como um sistema quase-isolado (situado num contexto donde não pode vir senão algum ruído), é na realidade atravessado por outros sistemas de comunicação. Cada um dos interlocutores encontra-se integrado numa imensa rede por onde circulam permanentemente informações. Os circuitos integrados nessa rede não se situam sempre ao nível interpessoal ("de alguém para alguém"). Existe também o "diálogo" interior que é comunicação ao nível intra-pessoal (de si para si); e há ainda informações que são transmitidas ao nível grupal (de um para muitos); e até ao nível cultural (de muitos para muitos), seja entre grupos distanciados no espaço (diferentes contextos), seja entre grupos distanciados no tempo (diferentes gerações).

Quer dizer, no diálogo cada interlocutor não leva apenas em conta o que o outro diz, mas um número indeterminado de informações que recebeu de outras fontes, por circuitos situados a qualquer dos níveis citados.

Paul Watzlawick e o Grupo de Palo Alto

A investigação centrada neste modelo tem sido desenvolvida no Mental Research Institute, Palo Alto, Califórnia por um conjunto de investigadores inspirados pelas ideias de Gregory Bateson, um antropólogo que desenvolveu uma teoria comunicacional da esquizofrenia baseada no conceito de double-bind.

A especificidade da Escola de Palo Alto resulta não tanto do facto de chamar a atenção para o problema da comunicação, mas pelo facto a comunicação ser vista não somente como veículo, como uma manifestação, mas como uma

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melhor forma de designar aquilo a que se costuma chamar "interacção" (Watzlawick & Weakland, 1977, p. 56) .

A sua abordagem da comunicação parte da definição de três níveis de análise da comunicação humana: a sintaxe, definida como o estudo das relações formais dos signos entre si; a semântica, definida como o estudo das relações entre os signos e os objectos aos quais se referem, quer dizer, o estudo do sentido; e a pragmática, definida como o estudo da relação entre os signos e os seus utilizadores, isto é, os correlatos comportamentais da comunicação. É, com efeito, sobre o aspecto pragmático da comunicação que estes autores se vão debruçar - as suas observações sobre o processo de comunicação humana permitiram-lhes desenvolver um conjunto de cinco premissas básicas as quais, sendo seguidas nas suas implicações , permitem construir uma perspectiva diferente da comunicação humana.

Estas proposições básicas definem algumas propriedades formais da comunicação a partir das quais é feita toda a reflexão sobre a relação interpessoal.

PROPOSTAS PARA UMA AXIOMÁTICA DA COMUNICAÇÃO

1º Axioma

Começamos por abordar o primeiro axioma chamando a atenção para uma propriedade fundamental do comportamento que se refere ao facto de que o comportamento não tem contrário. Dito de outra forma: - não existe qualquer tipo de não comportamento, ou ainda, não podemos em ocasião alguma deixar de nos comportarmos. Ora, se admitirmos que numa interacção31 todo o comportamento tem um valor de mensagem, podemos concluir que não é possível não comunicar, isto é, qualquer comportamento na presença de outro é comunicação. Esta afirmação, se bem que óbvia não é de forma alguma trivial. Assim, qualquer indivíduo, só pelo facto de estar exposto à percepção do outro (mesmo sem fazer nada por isso), informa inevitavelmente um eventual observador sobre o seu aspecto físico e sobre o seu comportamento externo; e talvez lhe forneça ainda, por essa mesma via, alguns indícios que Lhe permitirão inferir outras informações (por exemplo, sobre a sua posição social ou sobre a sua disposição psicológica). Esta comunicação não depende da intenção do sujeito que comunica e pode até ocorrer sem o seu conhecimento. Por vezes alguma informação é fornecida mesmo contra a vontade de quem a fornece, através de comportamentos expressivos cuja função é meramente consumatória. É o caso frequente de estados emocionais que se manifestam exteriormente através de alterações

31Poderia dizer-se que é possível entrar-mos em diálogo com nós próprios. É até

mesmo provável que este tipo de "comunicação interior" siga algumas das regras que regem a comunicação interpessoal; contudo, esses fenómenos, inobserváveis, situam-se fora do significado que é aqui atribuído à comunicação, que é sempre entendida enquanto comunicação interpessoal.

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somáticas ou movimentos involuntários. Mais frequentemente, porém, a comunicação desempenha uma função instrumental, isto é, os indivíduos comunicam entre si intencionalmente, com o objectivo de trocar informação, ou seja, pôr em comum algo das suas experiências pessoais. Há, porém, que ter cuidado, quando se fala de comunicação humana, com a utilização do termo transferêncía (de informação). Este termo pode sugerir um processo linear, incluindo uma relação causal e uma sequência temporal de sentido único. Todavia, na comunicação, não somente o acto comunicativo de um indivíduo tem de ser percebido por outro indivíduo, mas o comunicador precisa de ter a confirmação disso. Mais ainda, a mensagem recebida dá a volta pelo interior do receptor (é compreendida e avaliada), podendo dar origem a uma mensagem-resposta.

Em qualquer situação de contacto social existe comunicação envolvendo uma multiplicidade de formas, conteúdos e canais. Actividade ou inactividade, discurso ou silêncio, tudo tem um valor de mensagem. Quer dizer influencia de alguma forma os outros que, por sua vez, não podem deixar de reagir a essa influência, participando, assim, no processo de comunicação. Naturalmente o simples facto de ficarmos calados num determinado momento, ou de não "ligarmos" à conversa de outra pessoa não constitui excepção àquilo que acabámos de referir. Uma pessoa sentada sozinha num bar cheio de gente olhando em frente, uma pessoa numa sala de espera de um consultório que não tira os olhos de um jornal, um passageiro num avião que permanece a maior parte do tempo recostado no seu assento de olhos fechados, fazem todos, de forma mais ou menos efizaz, passar a mensagem de que não querem falar com ninguém, nem estão interessados em que alguém lhes dirija a palavra; em geral os seus "vizinhos" compreendem a mensagem e deixam-nos em paz. Ora podemos até pensar que há aqui mais comunicação do que em muitas discussões acaloradas.

Como já vimos, esta constatação não depende de outro tipo de questões como seja o grau de intencionalidade, consciência ou sucesso de cada acto comunicativo. Isto é, não existe só comunicação quando esta é intencional, consciente ou bem sucedida, quer dizer se há compreensão mútua. Nesta perspectiva estas são questões importantes, mas de outra ordem. Quer dizer, aquilo que o presente axioma pretende acentuar é que qualquer que seja o tipo de comportamento exibido: actividade ou inactividade, verbalização ou silêncio, influencia o comportamento do outro, que por sua vez não pode deixar de reagir a esse mesmo comportamento.

Concluiremos fazendo notar que até aqui temos utilizado o termo "comunicação" num duplo sentido: por um lado designando o tema global do que temos vindo a tratar, (a comunicação) por outro, num sentido mais específico, designando uma unidade de comportamento (uma comunicação entre o sujeito A e o sujeito B). Importa agora introduzir algum rigor de linguagem. Continuaremos a designar por comunicação o aspecto pragmático da teoria da comunicação humana. Para referir as diferentes unidades de comunicação (ou de comportamento) somos forçados a escolher termos que

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são já de uso corrente. Uma unidade de comunicação será referida como mensagem, ou, nos casos em que não houver confusão possível, como uma comunicação. Uma série de mensagens trocadas entre sujeitos será designada por interacção. Para além disso, se admitirmos que todo o comportamento é comunicação, mesmo no caso da unidade mais simples, torna-se evidente que quando falamos em mensagem não nos referimos à expressão única de um indivíduo. Mensagem envolve sempre uma troca composta por modos mais simples ou mais complexos de comportamentos: - linguísticos (linguagem verbal), paralinguísticos (entoações, acentuações), posturais, contextuais, etc., cada um deles servindo para especificar o sentido dos outros. Os diferentes elementos de que pode ser composta uma mensagem (considerada como um todo) são passíveis de permutações muito variadas e muito complexas, podendo ir da congruência à incongruência e até ao paradoxo. A pragmática da comunicação dedica-se precisamente a compreender os efeitos dessas combinações nas situações interpessoais.

Parece-nos que as implicações de tudo isto no âmbito da psicologia social é por demais evidente pois daqui para a frente há a considerar todo ou qualquer elemento, mesmo aqueles a que se não dava atenção, para compreender o processo de comunicação (ou interacção) social, que, como vimos é o objecto de estudo da psicologia social.

2º Axioma

A partir do que dissemos até agora estamos em condições de compreender que toda a comunicação funciona a partir de um envolvimento recíproco e, por isso, define uma determinada relação entre os elementos que participam num determinado processo de comunicação. Por outras palavras podemos dizer que uma comunicação não se limita a transmitir uma informação, mas ao mesmo tempo tende a induzir um determinado comportamento. A informação que é transmitida designa naturalmente o conteúdo da mensagem e pode ter por objecto tudo o que é comunicável, independentemente do facto de a informação ser verdadeira, válida ou até comprensível. Por outro lado, os elementos que designam a forma como deve ser entendida a mensagem definem a relação entre os parceiros32. Por exemplo a seguinte pergunta: - Estas pérolas são verdadeiras? colocadas em duas situações diferentes, situação A: posta por alguém numa joalharia ao vendedor, e situação B: posta por uma mulher a outra em voz alta numa recepção de cerimónia; se

32Antes que as ciências do comportamento se começassem a interrogar sobre estes

aspectos da comunicação humana, já os engenheiros informáticos se tinham debatido com o mesmo problema, no sentido em que se aperceberam que para comunicar com uma máquina estes dois aspectos (conteúdo e relação) tinham igualmente que estar presentes. Se por exemplo quisermos dizer a um computador para multiplicar dois números temos que introduzir na máquina essa informação (os dois números) e uma informação sobre essa informação (a ordem de multiplicar).

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bem o conteúdo seja o mesmo, define contudo, duas relações completamente diferentes33.

Na comunicação humana este aspecto meta-comunicativo (a informação sobre a informação) é muitas vezes passado através de elementos verbais: isto é uma ordem!, Estava a brincar... ou exprimirem-se forma não-verbal através de gritos, sorrisos, agitando os braços, e de uma infinidade de outras maneiras. A relação pode, assim, ser compreendida a partir do contexto onde se efectua a comunicação. O contexto funciona então como uma meta-comunicação.

Podemos assim enunciar o terceiro axioma da comunicação: - toda a comunicação apresenta dois aspectos: o conteúdo e o contexto de tal forma que o segundo engloba o primeiro, sendo, por isso, uma forma de metacomunicação. O aspecto de conteúdo da comunicação transmite uma informação, enquanto que o aspecto de contexto designa a forma como deve ser entendida essa informação, definindo assim a relação entre os elementos envolvidos na comunicação.

3º Axioma

Consideremos agora uma outra propriedade fundamental da comunicação: - a interacção entre os participantes em processos de comunicação. Para um observador exterior uma série de mensagens pode ser considerada como uma sequência ineterrupta de trocas. Contudo, cada pessoa, para dar sentido ao seu comportamento e ao dos outros, faz aquilo que foi designado por pontuação da sequência de factos.

A noção de pontuação tem aqui um significado muito próximo do verificado na linguagem escrita porque tem fundamentalmente a mesma natureza e serve a mesma função. No que diz respeito à sua natureza, da mesma forma que na linguagem escrita, a pontuação no processo de interacção marca o início e o fim de sequências concretas. Por exemplo, um ponto final marca o fim de uma frase com um sentido em si e, ao mesmo tempo, marca o início de outra frase34. Analisemos agora o que que diz respeito à sua função. Por definição a comunicação consiste numa corrente contínua de actos comunicativos 33Convém notar que é raro que as relações entre as pessoas sejam definidas de forma

explícita e consciente. Pelo contrário, a experiência mostra-nos que quanto mais saudável é uma relação mais o aspecto relação da comunicação passa para segundo plano. Inversamente as relações problemáticas caracterizam-se muitas vezes por um debate constante sobre a natureza da relação e o conteúdo da comunicação deixa de ter importância.

34Um dos livros de leitura da antiga instrução primária exemplificava este processo com a seguinte frase: "Um caçador tinha um cão e o pai do caçador era também o pai do cão". Esta frase sem pontuação não faz obviamente sentido, contudo de a pontuarmos, por exemplo, da seguinte forma: "Um caçador tinha um cão e o pai; do caçador era também o pai do cão", percebemos que havia um cão que pertencia tanto ao caçador como ao seu pai, cão esse que era filho de um cão que era do pai do caçador.

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alternados, Contudo, de forma a dar sentido, a definir uma ordem, a este processo, cada um dos participantes vai pontuar essa sequência de uma determinada maneira, podendo, por exemplo definir o seu comportamento como reacção, como resposta a uma acção do outro, ou, pelo contrário assumir a iniciativa, definindo o comportamento do outro como resposta.

Aqui a questão principal não é saber se a pontuação da sequência de comunicações no seu conjunto é boa ou má. O que é evidente é que a pontuação serve para estruturar a comunicação de tal forma que se torne de alguma forma intelegível para os elementos em presença, sendo por isso essencial ao funcionamento de qualquer interacção. Do ponto de vista cultural todos nós temos em comum muitas convenções de pontuação que não são nem mais nem menos exactas que outras maneiras de pontuar os mesmos factos, mas que acabam por ter uma função estruturante das sequências de intercção sejam elas mais banais ou mais significativas. Dizemos, por exemplo, que num grupo um indivíduo se comporta como um líder, e outro indivíduo como seguidor, mas se observarmos com mais atenção, alargando o campo da nossa observação, verificamos que é difícil dizer quem é que tomou a iniciativa e em que é que se tornariam um sem o outro.

Se tivermos em conta o campo global das relações humanas, verificamos que o desacordo sobre a forma de pontuar uma sequência de interacção está origem de muitos conflitos relacionais. As incompatibilidades de esquemas ou de pontuação, uma vez que dizem respeito a disposições subjectivas, podem ocorrer na comunicação qualquer que seja a natureza dos comportamentos comunicativos.

Tomemos como exemplo um casal a braços com um problema conjugal; o marido contribui para esse problema com a sua atitude de afastamento e passividade enquanto que a mulher mostra o seu descontentamento através de críticas severas. Ao comentarem a sua relação o marido dirá que o seu afastamento á a única resposta possível ao criticismo da sua mulher; esta, pelo contrário dirá que esta interpretação é uma distorção grosseira e deliberada daquilo que se passa na sua relação conjugal - ela critica o marido precisamente por causa da sua passividade. Se pusermos de lado alguns elementos circunstanciais e passageiros verificamos que as suas brigas se resumem a uma monótona troca de mensagens deste género: "Eu afasto-me porque tu és muito agressiva" e "Eu sou agressiva porque tu te afastas". Cada interlocutor "recorta" a seu modo a sequência de mensagens em unidades "estímulo-resposta", isto é, causa-efeito; e pode então acontecer que a mesma mensagem seja estímulo ou causa para um (por exemplo, uma provocação), e resposta ou efeito para o outro (resposta à provocação). Estas incompatibilidades de pontuação não só perturbam a compreensão das mensagens, como afectam tambem a relação interpessoal.

Outro exemplo deste processo pode ser observado quando intervimos numa briga de crianças e perguntamos quem é que começou. Então o menino A diz: "foi ele que me deu um pontapé! ao que o menino B responde: "não! porque tu antes tinhas-me empurrado” e assim ad eternum…

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Um processo análogo passa-se ainda ao nível das relações internacionais, especialmente no que diz respeito à corrida aos armamentos. Se, como as principais potências militares defendem, a melhor maneira de defender a paz é preparar a guerra, não se percebe porque é que todas as nações tendem a considerar os arsenais bélicos das nações portencialmente inimigas como uma ameaça à paz. É, contudo, isso que acontece, o que tem habitualmente como resultado cada uma das nações procurar aumentar o seu poderio militar, de forma a ultrapassar aqueles países que consideram ameaçadores. Este crescimento de aramamento é, por sua vez, considerado uma ameaça para a nação A, que tende a aumentar os seus armamentos defensivos, o que é visto como uma ameaça pela nação B, que irá melhorar as suas defesas e assim por diante...

Podemos, então formular um tereceiro axioma da comunicação humana: A natureza de uma relação depende da pontuação da sequência de interacções entre os elementos envolvidos na comunicação.

4º Axioma

Na comunicação humana, podemos designar os objectos, num sentido vasto do termo, de duas maneiras inteiramente diferentes. Podemos representá-los por qualquer coisa que se assemelhe, um desenho, por exemplo, ou podemos designá-los por um nome. Assim, a frase escrita: "O gato apanhou o rato" podíamos substituir as palavras por imagens, o que, sendo bem feito não acarretaria nenhuma perda de sentido. No primeiro caso (utilização de símbolos linguísticos) estamos em presença de um modo de comunicação digital, no segundo caso (utilização de analogias) estamos perante uma forma de comunicação analógica.

Cada vez que nos servimos de uma palavra para referir uma coisa é evidente que a relação que é estabelecida entre o nome e a coisa nomeada é um relação arbitrária, quer dizer, não há nenhuma razão que obrigue a que uma determinada coisa seja nomeada por uma determinada palavra. Não há nenhuma razão particular para que a junção das letras g.a.t.o sirvam para designar um determinado animal pois as palavras são sinais arbitrários que utilizamos de acordo com as regras da língua que falamos. Trata-se de uma convenção semântica de uma dada língua. Se falássemos francês a frase acima exemplificada tomaria a forma de: "Le chat a attrapé la souris." utilizando palavras diferentes para dizer a mesma coisa. Fora dessa convenção não existe nehuma outra correlação entre uma palavra (significado) e o objecto concreto designado (significante), com excepção eventualmente da onomatopeias, o que não tem um significado particular.

Pelo contrário, na comunicação analógica existe verdadeiramente algo de específico naquilo de que nos servimos para designar um objecto determinado. A comunicação analógica tem relações mais directas com aquilo que é representado. O exemplo seguinte permitirá clarificar um pouco mais as diferenças entre estes dois modos de comunicação: - se escutarmos uma língua estrangeira na rádio não conseguiremos compreendê-la, contudo

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somos capazes de deduzir algumas informações elementares a partir da observação de um discurso através dos gestos e dos movimentos que servem para assinalar uma intenção, mesmo que estejamos perante um indivíduo de uma cultura completamente diferente. Podemos supor que a linguagem analógica tem as suas raízes nos períodos mais arcaicos da evolução e que, por isso tem uma validade muito mais geral que a comunicação digital, muito mais recente e abstracta. O que é então a comunicação analógica? A resposta é relativamente simples: - Praticamente toda a comunicação não-verbal. Contudo é necessário termos em atenção que muitas vezes restringimos a noção de não-verbal aos movimentos corporais. Na definição de não-verbal, contudo, deve ser englobada a postura, gestos, mímica, inflexões da voz, sucessão, ritmo e entoação das palavras, e qualquer outros indícios que nunca faltam em todos os contextos nos quais ocorre uma interacção.

No estado actual de conhecimentos supomos que o Homem é o único organismo vivo capaz de utilizar estes dois modos de comunicação: digital e analógico. Não sabemos ainda o significado e importância exactos deste facto, contudo, se por um lado, a maior parte, senão todas, as obras da civilização seriam impensáveis se o Homem não tivesse elaborado uma forma de comunicação digital, por outro, existe um domínio vasto onde confiamos quase exclusivamente na comunicação analógica, é o domínio da relação. Enquanto que a linguagem digital é importante no que toca à troca de informação sobre os objectos com vista à transmissão do conhecimento, a comunicação analógica, sendo a linguagem da emoção por excelência, serve essencialmente para assinalar intenções e indicações de humor através da qual definimos a natureza das nossas relações, mais do que para transmitirmos informação sobre os objectos. Este modo de funcionamento está muito mais próximo do comportamento animal, pois, por exemplo, quando me levanto e abro a porta do frigorífico se o meu gato vem roçar-se nas minhas pernas miando suavemente, isso não quer dizer "Eu queria leite...", que é o que os seres humanos normalmente entendem, mas, mais correctamente, remete para um tipo especial de relacionamento: "Quero que sejas a minha mãe...", isto porque este tipo de comportamento de roçar o corpo só pode ser observado entre gatos juvenis e gatos adultos, nunca entre dois animais adultos. Com efeito, muitas pessoas estão convencidas que o seu animal de estimação "compreende" aquilo que eles dizem, mas, convem precisar que o que o animal compreende não é o sentido das palavras, mas toda a riqueza da comunicação analógica que acompanha o nosso discurso.

Com efeito, sempre que a relação é o tema em causa a linguagem digital revela-se extremamente pobre. Isto é assim não somente no caso da interacção entre animais e homens, mas em muitas outras circunstâncias da vida humana: fazer a corte, amar, ajudar, combater e, naturalmente cuidar de crianças pequenas. Muitas vezes dizemos que as crianças têm uma capacidade especial para se aperceberem das características de personalidade dos adultos, o que é de alguma forma verdade porque, por um lado são especialmente sensíveis aos aspectos analógicos da comunicação e, por outro, é muito fácil iludir os outros do ponto de vista verbal, mas é muito difícil

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mentir no domínio analógico. Em resumo, se nos lembrarmos que a comunicação tem dois aspectos: conteúdo e relação, podemos pensar que provavelmente o conteúdo tenderá a ser preferencialmente transmitido no modo digital enquanto que a relação é essencialmente transmitida de forma analógica.

Comparemos agora algumas das características específicas da linguagem analógica e da linguagem digital. Uma das primeiras distinções situa-se ao nível da complexidade, da flexibilidade e capacidade de abstracção, que são muito maiores na linguagem digital. Para sermos mais precisos diremos que não existe nada na comunicação analógica que se possa comparar à sintaxe lógica do material digital. O que quer dizer que a linguagem digital não possui equivalente para certas proposições lógicas de importância fundamental como "se... então", "ou... ou", etc., sendo igualmente difícil, senão impossível, transmitir conceitos abstractos35.

Uma outra distinção tem a ver com o facto de a comunicação analógica, ao contrário do código digital, não poder exprimir a negação simples, isto é, não possui uma expresssão que signifique "não". Mais concretamente, as lágrimas podem exprimir alegria ou tristeza, um punho fechado pode ser um sinal de agressividade ou força, um sorriso pode exprimir simpatia ou desprezo. A linguagem analógica não contém, em si, elementos discriminantes que indiquem, perante sentidos contraditórios, qual deles deverá ser adoptado; assim como não tem índices que permitam distinguir o presente, o passado e o futuro.

Qualquer pessoa encontrando-se na obrigação de combinar estes dois modos de comunicação tem que continuamente fazer a tradução de um para o outro. Ora existem dificuldades de tradução em ambos os sentidos. Não podemos traduzir a linguagem digital em linguagem analógica sem uma importante perda de informação e a operação contrária apresenta igualmente dificuldades consideráveis: para podermos falar sobre a relação temos que ser capazes de encontrar uma tradução adequadada da comunicação analógica em comunicação digital.

Em síntese: Os seres huamanos usam dois modos de comunicação: digital e analógica. A linguagem digital possui uma sintaxe lógica bastente complexa e bastante cómoda, mas não tem uma semântica apropriada à relação. Pelo contrário a linguagem analógica tem uma semântica muito rica, mas não a sintaxe apropriada a uma definição inequívoca da natureza das relações.

35Um aspecto interessante relacionado com este facto é a constatação que em alguns

sistemas pictográficos primitivos, como por exemplo, os hieroglifos do antigo Egipto, os conceitos são representados por grafismos que têm com eles uma semelhança material.

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5º Axioma

Em 1935 Gregory Bateson relatou um fenómeno que tinha observado na tribo dos "Iatmul" na Nova Guiné o qual designou por esquizmogénese e definiu como sendo um processo de diferenciação das normas de comportamento individual no seguimento de uma interacção cumulativa entre indivíduos.

Se, por exemplo, numa determinada cultura o modelo de comportamento apropriado para o indivíduo A for um modelo autoritário podemos esperar que outro indivíduo B, que entre em interacção com o indivíduo A, adopte um modelo de comportamento culturalmente definido como submissão. É igualmente provável que esta submissão tenda a favorecer novos comportamentos autoritários do indivíduo A que exigirão comportamentos submissivos e assim por diante de talforma que A se tornará cada vez mais autoritário e B cada vez mais submisso. Este processo descreve um modelo de esquizmogénese complementar. Se, pelo contrário, ao comportamento autoritário do indivíduo A, o indivíduo B responde com um comportamento de tipo autoritário, é provável que se desenvolva uma situação de competição na qual o autoritarismo conduz a um cada vez maior autoritarismo. Esta situação foi designda por esquizmogénese simétrica.

Estes dois modelos que acabámos de fererir mostraram ser bastante úteis em diversas situações interaccionais de tal forma que acabaram por ser designados simplesmente por interacção complementar e interacção simétrica. Podemos dizer que se tratam de relações fundadas seja sobre a igualdade (simetria), seja sobre diferença (complementaridade)36. No primeiro caso, os parceiros tendem a adoptar um comportamento em espelho, e por isso, a sua interacção pode ser considerada simétrica. No segundo caso o comportamento de um dos parceiros de certa maneira complementa o comportamento do outro e, assim, consideramos a sua interacção complementar. Uma interacção simétrica caracteriza-se, assim, pela igualdade e minimização das diferenças, enquanto que uma interacção complementar se funda na maximização da diferença.

Numa relação complementar são possíveis duas posições diferentes. Um dos parceiros pode ocupar uma posição que pode ser designada como superior, primária, ou "por cima" (one-up) e o outro a posição correspondente, dita inferior, secundária ou "por baixo" (one down). Esta designação é bastante cómoda desde que nem uma nem outra posição seja sinónimo de "bom" ou de "mau", "forte" ou "fraco". Com efeito o contexto social ou cultural aponta em determinados casos para uma relação complementar (por exemplo, mãe-filho, médico-doente, professor-aluno, etc.) assim como, de um ponto de

36Naturalmente as noções de igualdade e diferença não têm aqui nenhum sentido

valorativo, servindo unicamente para descrever um tipo particular de relação. Não está implícito que, de forma imediata, uma relação baseada na igualdade seja melhor ou pior que uma relação baseda na diferença, e vice versa.

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vista pessoal, duas pessoas podem acordar numa relação deste tipo. Note-se igualmente que na maior parte dos casos se trata de uma relação solidária no sentido os comportamentos se implicam e sustentam reciprocamente. Não é geralmente um dos parceiros que impôe uma relação complementar ao outro, mas cada um deles comporta-se de uma maneira que pressupõe e ao mesmo tempo justifica, o comportamento do outro.

Se quisermos complexificar um pouco este processo poderíamos ainda falar de relação "meta-complementar", na qual A permite ou constrange B a depender dele e, seguindo o mesmo raciocínio, poderíamos conceber igualmente uma relação de "pseudo-simetria" na qual A deixa ou constrange B a tomar uma posição simétrica. Contudo, esta linha de análise poderia eventualmente conduzir a uma regressão até ao infinito. Podemos evitar isso tendo em conta a distinção entre observação de comportamentos redundantes, e as suposições que podemos fazer sobre as razões desses comportamentos. Quer dizer, temos essencialmente em conta a forma como se comportam os dois parceiros, abstraindo-nos das razões que eles têm ou crêm ter para se comportarem dessa maneira.

Temos, assim, um quinto axioma: Toda a comunicação é simétrica ou complementar segundo se baseia na igualdade ou na diferença.

Conclusão

A propósito do conjunto de axiomas que acabámos de apresentar, convém fazer algumas chamadas de atenção.

Em primeiro lugar, tratam-se basicamente de propostas, definidas de uma forma não muito rigorosa, que se pretendem constituir essencialmente como pontos de partida para uma reflexão global sobre os processos de comunicação humana, mais do que um sistema conceptual perfeito e acabado.

Em segundo lugar, trata-se de um conjunto de axiomas bastante heterogéneo porque resultam da observação de fenómenos de comunicação situadas em registos muito variados. Se existe algum factor comum este não se situa tanto na sua origem, mas na sua importância pragmática. Assim, a impossibilidade de não comunicar faz com que toda a situação comportando duas ou mais pessoas seja uma situação interpessoal, uma situação de comunicação. O aspecto "relação" de uma tal comunicação dá uma especial atenção a este ponto. A importância pragmática interpessoal dos modos de comunicação digital e analógico não reside somente num suposto isomorfismo entre conteúdo e a relação, mas na ambiguidade inevitável e significativa a que se arriscam emissor e receptor sempre que tentem traduzir um modo de comunicação noutro. Aquilo que foi dito acerca dos problemas de pontuação repousa precisamente sobre a metamorfose implícita do modelo clássico "acção-reacção". Enfim, o paradigma simetria-complementaridade é, talvez, aquele que se aproxima mais do conceito matemático de função. As posições dos indivíduos são variáveis que podem tomar um número infinito de valores,