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1 ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA UM ESTUDO COMPARADO: A TELEVISÃO EDUCATIVA NO BRASIL E NA FRANÇA NA ÚLTIMA DÉCADA DO SÉCULO XX Wellington Amarante Oliveira 1 RESUMO A compreensão das relações sociais estabelecidas entre os diferentes agentes históricos no decorrer do tempo e em determinado espaço constitui-se como a tarefa primeira da História. Para executá-la, o historiador lança mão das mais variadas ferramentas teórico-metodológicas. Entre essas ferramentas encontra-se a da história comparada que sobrepõem duas ou mais realidades na busca de uma inteligibilidade mútua , metodologia consagrada em diversas pesquisas e, que com o passar das décadas, e o aumento da crítica, tornou-se cada vez mais refinada. O objetivo dessa comunicação é o de discutir o comparatismo histórico articulando às especificidades do trabalho com a televisão com fonte e objeto de pesquisa. Desse modo, apresentaremos alguns dos principais pontos que cercam a presente pesquisa, preocupada em discutir as ações e as práticas educativas na televisão, a partir dos exemplos da emissora pública francesa Cinquième e do Canal Futura, mantido pela Fundação Roberto Marinho. Acreditamos que pensar histórico-comparativamente essas duas experiências colabora para o aprofundamento das discussões que cercam as pesquisas ocupadas com a interface entre mídia e política no mundo contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: História Comparada. Televisão. França. TV Educativa. La Cinquième. Canal Futura. Introdução Uma das tarefas primordiais da História, enquanto disciplina acadêmica, é a de buscar a compreensão e tornar inteligível as relações sociais estabelecidas, tanto de forma direta quanto indireta, entre os mais diversos agentes históricos no decorrer de um determinado tempo e circunscritas a um espaço específico. Para executar tal empreitada, historiadoras e historiadores dispõem de um amplo leque das mais variadas ferramentas teórico-metodológicas. Cada uma delas colabora para iluminar um ponto particular do passado estudado. Entre essas ferramentas, encontra-se a da História Comparada. Consagrada em diversas pesquisas históricas, tal metodologia permite a sobreposição de duas ou mais realidades, visando a uma compreensão mútua. As diversas críticas, ao longo das últimas décadas, à 1 Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). Processo nº 2013/17906-2, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Contato: [email protected]

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1

ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA UM ESTUDO COMPARADO: A

TELEVISÃO EDUCATIVA NO BRASIL E NA FRANÇA NA ÚLTIMA DÉCADA DO

SÉCULO XX

Wellington Amarante Oliveira1

RESUMO

A compreensão das relações sociais estabelecidas entre os diferentes agentes históricos no

decorrer do tempo e em determinado espaço constitui-se como a tarefa primeira da História.

Para executá-la, o historiador lança mão das mais variadas ferramentas teórico-metodológicas.

Entre essas ferramentas encontra-se a da história comparada – que sobrepõem duas ou mais

realidades na busca de uma inteligibilidade mútua –, metodologia consagrada em diversas

pesquisas e, que com o passar das décadas, e o aumento da crítica, tornou-se cada vez mais

refinada. O objetivo dessa comunicação é o de discutir o comparatismo histórico articulando às

especificidades do trabalho com a televisão com fonte e objeto de pesquisa. Desse modo,

apresentaremos alguns dos principais pontos que cercam a presente pesquisa, preocupada em

discutir as ações e as práticas educativas na televisão, a partir dos exemplos da emissora pública

francesa Cinquième e do Canal Futura, mantido pela Fundação Roberto Marinho. Acreditamos

que pensar histórico-comparativamente essas duas experiências colabora para o

aprofundamento das discussões que cercam as pesquisas ocupadas com a interface entre mídia

e política no mundo contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: História Comparada. Televisão. França. TV Educativa. La Cinquième.

Canal Futura.

Introdução

Uma das tarefas primordiais da História, enquanto disciplina acadêmica, é a de buscar

a compreensão e tornar inteligível as relações sociais estabelecidas, tanto de forma direta quanto

indireta, entre os mais diversos agentes históricos no decorrer de um determinado tempo e

circunscritas a um espaço específico.

Para executar tal empreitada, historiadoras e historiadores dispõem de um amplo leque

das mais variadas ferramentas teórico-metodológicas. Cada uma delas colabora para iluminar

um ponto particular do passado estudado.

Entre essas ferramentas, encontra-se a da História Comparada. Consagrada em diversas

pesquisas históricas, tal metodologia permite a sobreposição de duas ou mais realidades,

visando a uma compreensão mútua. As diversas críticas, ao longo das últimas décadas, à

1 Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). Processo nº 2013/17906-2,

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Contato: [email protected]

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História Comparada, incentivaram a renovação e o refinamento do pensamento e da escrita

comparatista.

O objetivo central desse texto é o de compartilhar algumas reflexões que pretendem

ampliar a discussão sobre o comparatismo histórico articulado a uma história social dos meios

de comunicação no mundo contemporâneo. Para tanto, consideraremos as especificidades da

televisão como fonte e objeto de pesquisa.

Por fim, apresentaremos a articulação entre a História Comparada e a história social da

mídia para discutir nossa questão de fundo: de que modo ocorreram os debates, ações e práticas

educativas na televisão na última década do século XX?

Buscamos responder a essa questão a partir da análise da criação de emissoras

educativas na França e no Brasil. O caso francês sintetizado na experiência do canal público

Cinquième, criado em 1994. E o brasileiro representado pelo Canal Futura, mantido pela

Fundação Roberto Marinho a partir de 1997.

Caminhos possíveis para uma História Comparada

Segundo José D’Assunção Barros, a História Comparada consiste em uma forma

específica de se interrogar a história partindo de um “duplo ou múltiplo campo de observação”,

e extraindo a partir das análises respostas originais (BARROS, 2007, p.2).

O método comparativo não é novo no âmbito da disciplina de História. Marc Bloch, em

seus escritos, ainda no começo do século XX, já havia atentado para a particularidade da

abordagem. Para Bloch, cabe ao historiador "escolher, em um ou vários meios sociais

diferentes, dois ou vários fenômenos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias

entre si, descrever as curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as diferenças e, na

medida do possível, explicar umas e outras”. Nesses termos, para Bloch existem duas condições

necessárias para que haja a comparação: “uma certa semelhança entre os fatos observados – o

que é evidente – e uma certa dissemelhança entre os meios onde tiveram lugar" (BLOCH, 1998,

p.120-121).

Na mesma linha, José D’Assunção Barros define a História Comparada como a

“possibilidade de se examinar sistematicamente como um mesmo problema atravessa duas ou

mais realidades histórico-sociais distintas, duas estruturas situadas no espaço e no tempo, dois

repertórios de representações, duas práticas sociais” (BARROS, 2007, p. 24).

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O historiador Sean Purdy em seu artigo A História Comparada e o desafio da

transnacionalidade rebate as críticas, de alguns pesquisadores, ao método comparativo. Para o

autor, o “método comparado ainda é útil para compreender os paralelos e contrastes de

processos históricos que podem ser limitados por entidades concretas”. E prossegue afirmando

que é possível “usar comparações históricas para fazer generalizações cuidadosas sobre

processos correlatos em diferentes unidades” e reconstituir uma visão específica de cada caso

em particular. Dessa forma, Purdy conclui que os “estudos comparados prometem esclarecer

tanto os pontos de convergência como de divergência entre as unidades de comparação”

(PURDY, 2012, p.67).

Por um caminho mais conciliador, José D’Assunção Barros (2014) defende uma

categoria ampla denominada de História Relacional, que encamparia as diversas modalidades

e propostas de comparatismo histórico. Assim, o autor pensa as mais recentes modalidades de

comparatismo, como é o caso das “histórias cruzadas”, “histórias interconectadas” ou da

“história transnacional”, não de modo apartado da História Comparada clássica, mas como

variações dentro de uma mesma perspectiva, a de uma história que de um modo o de outro

adota como premissa pensar seu objeto sempre de forma relacional (BARROS, 2014, p.164).

Para Jürgen Kocka (apud BARROS, 2014 p.160) “a história comparada dependerá cada

vez mais da chamada “literatura secundária” [...], e o historiador precisará lidar com um

arrefecimento da pretensão de controlar em profundidade todas as fontes e informações diretas.

Em uma palavra, o historiador precisará cada vez mais confiar nos trabalhos já desenvolvidos

pelos demais historiadores”.

No caso específico deste projeto, partiremos de um “duplo campo de observação”

(Brasil e França) no qual a “semelhança” dos objetos encontra-se na experiência da constituição

de emissoras de cunho educativo (Futura e Cinquième) em um período, notadamente, marcado

pela desregulamentação do setor; e a “dessemelhança” na natureza de cada uma delas (privada

e pública) e nas respostas e adequações distintas para o quadro político-comunicacional de cada

país.

Por uma História Comparada das mídias

Pensar os meios de comunicação social de modo comparativo pode contribuir para o

conhecimento mais detalhado de determinados mecanismos que seriam difíceis de serem

percebidos a partir de um único ponto de vista. Existem inúmeras formas de se pensar histórico-

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comparativamente as mídias. O pesquisador pode optar por uma perspectiva de longa duração

e investigar determinado problema em meios de comunicação e tempos distintos, por exemplo

analisar os debates e ações sobre o uso educativo do rádio, da televisão e da internet. Num

segundo caso, pode atravessar diversas mídias, mas dentro de uma mesma temporalidade. Ou

ainda, concentrar os esforços em um único meio de comunicação em um espaço de tempo

determinado, mas comparando as experiências em espaços territoriais diferentes.

De autoria do historiador francês Jérôme Bourdon Du service public à la télé-réalite:

une histoire culturelle des télévision européennes 1950-2010 é um belo exemplo, de como

atravessar por sessenta anos de história da televisão europeia a partir de uma problemática

precisa construindo um quadro comparativo. Bourdon avalia positivamente as possibilidades e

potencialidades de uma história transnacional da mídia, sobretudo, considerando que a grande

maioria dos trabalhos históricos sobre os meios de comunicação (imprensa, televisão e cinema)

ainda estão circunscritos sob um recorte nacional (BOURDON, 2008, p.164). Para o autor, essa

história comparada e integrada fará o pesquisador refletir sobre os quadros nacionais e sobre as

inúmeras razões de suas convergências: escolhas políticas e regulamentares, fatores ligados

especificamente à televisão, dinâmicas culturais transnacionais (BOURDON, 2011, p.20).

Os modelos televisivos de França e Brasil

Compreender os motivos que tornaram possível a existência de um novo canal público

francês e de um canal educativo privado brasileiro durante a década de 1990 passa diretamente

pelo entendimento da constituição e desenvolvimento dos modelos televisivos de cada um dos

países.

A França, assim como outros países europeus, inaugurou o pioneirismo das redes

públicas. A criação, produção e emissão eram tomadas efetivamente como um serviço público,

dado que o financiamento televisivo não dependia, ao menos inicialmente, de anunciantes

particulares. Financiadas exclusivamente pelo público telespectador, por meio de uma taxa

cobrada de cada residência que possuía um aparelho televisor, as emissoras da Alemanha,

Espanha e Itália conquistaram uma maior autonomia em relação aos governos e as forças

econômicas. O que possibilitou a experimentação de diversos formatos de programas, sem a

pressão imediata da audiência, e levou as redes públicas a conquistarem, de modo sustentado,

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uma ampla faixa de público. Dessa forma, a televisão europeia conseguiu “informar, educar e

distrair”, cumprindo, na visão dos primeiros dirigentes, a sua missão (BOURDON, 2011, p.28).

Os primeiros passos da televisão no Brasil foram financiados pelo capital privado,

seguindo o modelo estadunidense. Destaque para o empreendimento de Assis Chateaubriand

no início dos anos 1950, a sua TV Tupi. Não obstante, o avanço mais significativo do meio

ocorreu a partir da década de 1960 e esteve intimamente ligado às políticas estratégicas do

regime militar. Os militares, ancorados na Doutrina de Segurança Nacional, viam as

telecomunicações como o elemento central do projeto de integração territorial do país e, por

isso, investiram na construção de um eficiente sistema para o setor. Antes mesmo do golpe

civil-militar de 1964, as Forças Armadas já dispunham de um instrumental técnico e

participaram ativamente das discussões e da elaboração do Código Brasileiro de

Telecomunicações (CBT), aprovado em 27 de agosto de 1962, ainda durante o mandato

presidencial de João Goulart.

A estrutura organizacional da televisão pública francesa sofreu diversas alterações no

decorrer de sua história. Iniciando com a criação, em 1945, da Radiodiffusion Française (RDF),

primeiro órgão ocupado em regular os serviços da incipiente televisão, mas ainda com ênfase

nos serviços radiofônicos. O avanço do meio televisivo, demandou uma nova alteração no órgão

em 1949, passando a se chamar Radiodiffusion-Télévision Française (RTF). Em 1964, uma

nova alteração: surgiu a Office de Radiodiffusion-Télévision Française (ORTF), que manteve

esse formato ao longo de uma década, mas com a complexidade do modelo televisivo francês

e as pressões políticas internas houve um desmembramento do órgão em sete setores: três

emissoras nacionais; um organismo para fomento à produção, a Société Française de

Production; uma instituição para guarda e preservação do acervo audiovisual, o Institut

National de l’Audiovisuel; Télédiffusion de France e Radio France (VALENTE, 2008, p.158).

Diferentemente do modelo francês, as políticas do regime militar para o setor não

privilegiaram a constituição de uma TV pública capaz de desempenhar um papel relevante no

campo da comunicação social; ao contrário, fizeram com que a TV Globo, de propriedade de

Roberto Marinho e inaugurada em 1965, fosse a mais beneficiada, direta ou indiretamente,

pelos investimentos oficiais na infraestrutura das telecomunicações. Elementos que, somados a

outros benefícios indiretos concedidos pelo governo, transformariam a Globo, ainda na década

de 1970, na maior e mais bem equipada rede de televisão do país.

A década de 1980 marcou uma alteração significativa no panorama da televisão

francesa. O monopólio público, estabelecido há décadas no setor, seria quebrado justamente

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pelo presidente socialista François Mitterrand. Em 1982, era promulgada a lei que permitia a

outorga de frequências para particulares, pessoas ou empresas (JEANNENEY, 1996, p.256-

257). Essa mesma lei criou a Haute Autorité, órgão responsável por regular o setor, e o

Ministério das Comunicações (SAUVAGE e VEYRAT-MASSON, 2012, p.166). Em 1985,

três canais privados seriam criados: o Canal Plus, Cinq e TV 6. A partir de então, as emissoras

públicas passariam a receber a concorrência de redes privadas e teriam, além disso, de se abrir

à publicidade. E para completar o quadro de alterações, no governo de Jacques Chirac, iniciado

no ano seguinte, ocorreu a privatização da emissora pública TF1, situação sem paralelo em

outros países (VALENTE, 2008, p.158).

Enquanto boa parte da Europa vivia esse movimento de ascensão dos canais privados,

a televisão brasileira na década de 1980 ficou marcada pela falência da pioneira TV Tupi, a

chegada de duas redes que ocuparam o espaço eletromagnético ocioso, SBT e Manchete. O fim

da ditadura militar, com o restabelecimento de um governo civil. E a promulgação da

Constituição Federal de 1988, que eliminou algumas das arestas autoritárias da legislação sobre

a comunicação.

Jérôme Bourdon aponta que a televisão pública francesa, durante a década de 1990, foi

objeto de uma capitalização por parte do Estado, porém, mais com o sentido de evitar um

naufrágio total do que o de reassumir o seu antigo posto (BOURDON, 2001, p.72). No Brasil,

segundo Áureo Busetto (2011, p.164), as “alterações fomentadas pelas novas tecnologias e pelo

recente ambiente regulador geravam mudanças na estrutura e dinâmica da produção, divulgação

e do consumo televisivos”. Esther Hamburger (2005, p.36) assinala que essa “diversificação

está relacionada à introdução, tardiamente, da TV a cabo, com o aumento vertiginoso do

consumo de aparelhos televisores e de videocassetes, com a introdução da tecnologia de

transmissão digital diretamente do satélite e com a disseminação de antenas parabólicas”.

Assistiu-se, tanto na França quanto no Brasil com a multiplicação dos canais e a fragmentação

do público, “uma verdadeira hegemonia de novos gêneros e formatos, como talk show e reality

show” (BUSETTO, 2011, p.164).

Cinquième e Futura: duas apostas no potencial educativo do meio

Dentro desse panorama televisivo, no dia 13 de dezembro de 1994 entrava no ar a

Cinquième. A cerimônia de inauguração, transmitida ao vivo, a partir das 18 horas, direto do

Museu do Louvre em Paris, teve a presença do primeiro-ministro Edouard Balladur, do

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presidente da emissora, Jean-Marie Cavada (fig. 1) e de centenas de crianças oriundas de toda

a França.

Figura 1. Chegada de Jean-Marie Cavada ao saguão de visitantes do Museu do Louvre. Local onde algumas

horas mais tarde ocorreu a cerimônia inauguração da Cinquième.

Na tela assistiu-se a um espetáculo de luzes: um recinto tomado por meninas e meninos

que seguravam e movimentavam cada um sua lanterna, apontando-as para cima como se os

feixes de luz pudessem atingir às paredes de vidro da grande pirâmide do museu, enquanto uma

menina atravessava o recinto, como um atleta que porta a tocha olímpica, segurando uma placa

redonda azul, com um número cinco transparente no centro – o símbolo da nova emissora. A

menina passou o símbolo para a multidão de crianças, que o fizeram deslizar sobre suas cabeças,

de mão em mão, até chegar ao outro lado do salão, quando então a última criança, um jovem

menino, caminharia sozinho com o símbolo por mais alguns metros até repousá-lo em um

pedestal que estava na base de um grande telão que também reproduzia o logotipo. Nesse

momento, o canhão de luz que acompanhou todo o trajeto se apagou, restando apenas o brilho

das inúmeras lanternas, e em coro as crianças iniciaram uma contagem regressiva, que após

cinco segundos se encerrou para a explosão de alegria de todos os presentes 2. Nascia a

Cinquième (fig. 2).

2 Trecho audiovisual veiculado pela Cinquième. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=586sT6avkYI.

Acesso realizado em 19/09/2014.

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Figura 2. Imagem da cerimônia de inauguração da Cinquième

A Cinquième surgiu com objetivos amplos: nas palavras do primeiro-ministro, seu papel

seria o de ajudar na difusão do conhecimento3. Com o objetivo de veicular um conteúdo mais

cultural e reflexivo, a grade de programação da emissora contava com revistas eletrônicas sobre

saúde, educação, documentários e jogos educativos (SAUVAGE; VEYRAT-MASSON, 2012,

p.254). Além disso, dotava-se de uma programação voltada ao mercado de trabalho e o desafio

de testar as primeiras experiências com a internet e a convergência tecnológica (VALENTE,

2008, p.159). Durante os primeiros anos de veiculação, a emissora dividiu o sinal com o canal

franco-alemão Arte, sendo transmitida ao longo de todo o dia até às 19 horas.

Do lado brasileiro, em 22 de setembro de 1997, entrava no ar o Canal Futura. Privado,

mas exclusivamente educativo, o “canal do conhecimento” era uma iniciativa inédita no campo

televisivo. O aporte financeiro era oriundo da parceria entre a Fundação Roberto Marinho e

grupos empresariais nacionais e estrangeiros. Instituições como Banco Itaú, Fundação

Bradesco, Grupo Votorantim, Confederação Nacional da Indústria (CNI), Federação das

Indústrias de São Paulo (FIESP), Instituto Ayrton Senna e Turner Broadcasting System/CNN.

Cada parceiro investiu o montante de 1 milhão de dólares no projeto apostando na ideia de

“responsabilidade social”, estratégia abraçada por vários empresários brasileiros na expectativa

3 Reportagem na televisão francesa sobre a inauguração da Cinquième. Disponível em

http://www.ina.fr/video/CAC94107702 23/07/2014. Acesso realizado em 23/07/2014.

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de rendimentos positivos à imagem de suas empresas, produtos e serviços e junto aos

consumidores.

Em termos de audiência, os canais alimentavam expectativas distintas. A Cinquième era

uma emissora pública, veiculada para toda a França e com isso poderia alcançar um vasto

público. Enquanto o Canal Futura era prioritariamente um canal de TV a cabo, com algumas

exceções no caso da recepção em antenas parabólicas, ainda assim não tinha o seu sinal

totalmente aberto. Os números de audiência na França demonstram uma recuperação do setor

público no decorrer da década de 1990. A Cinquième conseguiu em seu primeiro ano atingir a

casa dos 4% de audiência, estabelecendo-se nessa faixa. Vale ressaltar que ainda que a emissora

não tenha atingindo altas audiências, a sua criação colaborou para equilibrar a paisagem

audiovisual francesa. Como podemos observar no quadro abaixo as emissoras públicas partem

de cerca de um terço da audiência no início dos anos 1990 para 43,4% no ano 2000.

Tabela 1 - Números da audiência televisiva na França (%)

1990 1995 2000

Canais públicos 33 42,9 43,4

Canais privados 65,3 53,1 49,1

Outros 1,6 4,0 7,5 Fonte: retirado e adaptado do livro Du Service public à la télé-réalité (BOUDON, 2011, p.76)

No caso do Canal Futura os dados são sempre em números aproximados e nunca em

índices precisos de audiência, ou seja, sempre considerando um público potencial que poderia

ser atendido, dado as diversas formas de veiculação da programação, mas que poderia oscilar e

ser muito menor do que o esperado. Nos primeiros documentos da emissora trata-se de um

público de 80 milhões. Em documentos e publicações posteriores esse número é reduzido para

cerca 30 milhões.

De certo modo, o Canal Futura também tinha o seu pé em terras francesas. De acordo

com Axel Sande (2010), que investigou o projeto em sua dissertação de mestrado na área do

Design, a agência de design Gédéon, especializada em projetos para canais televisivos, foi

contratada pela Fundação Roberto Marinho para produzir o On-air look da emissora 4. A

agência já havia trabalhado com a Globosat na reformulação da identidade visual dos canais

4 Termo do Design utilizado para se referir a um projeto específico de motion graphics. Seu objetivo é “determinar

a linguagem audiovisual de um canal televisivo e aplicá-la as mais variadas peças de motion graphics”. É o melhor

termo para designar um projeto de identidade coorporativa de uma emissora televisiva (SANDE, 2010, p.139).

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Telecine em 1995. Criada em Paris, desde 1984 a agência desenvolve “identidades corporativas,

projetos gráficos para a programação televisiva, direção de arte, assessoria de marketing e

gestão para o desenvolvimento de canais”. Entre os trabalhos da Gédéon estão o

desenvolvimento das identidades televisivas da France Télévisions, das estadunidenses Disney

Channel e Nickelodeon, da mexicana Cadenatres, as espanholas Cuatro e Quiero, entre outros

(SANDE, 2010, p.70).

A Cinquième teve seu projeto gráfico comandado Philippe Lallemant, que já havia

participado de outros projetos com Jean-Marie Cavada. Ao comparar os dois logos (fig.3), se

não oriundos da mesma empresa, pelo menos de uma mesma escola de design. O primeiro

elemento que podemos destacar é o de sua forma circular. E sendo o círculo o oposto do

quadrado (que transmite a ideia de solidez, de algo rígido) revelaria a busca de uma identidade

arrojada, inovadora, flexível, demonstrando que as emissoras estavam conectadas com os ares

do novo século que se aproximava.

Figura 3. Logo de cada uma das emissoras

Destaque-se ainda, nos dois logos, as referências às bandeiras nacionais. No logo do

Canal Futura a cor verde, assim como na bandeira brasileira, é marcante e predominante. No

caso francês, tem-se a cor azul do disco contrastando com o número 5 na cor branca, e a

acentuação do nome da emissora grafado na cor vermelha o que completa a referência a

bandeira tricolor francesa.

Considerações Finais

Tentamos demonstrar ao longo desse texto as potencialidades da História Comparada

no âmbito de uma história social da mídia. Nota-se que múltiplos elementos televisivos, desde

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a organização até a sua produção, tem proximidades e podem conter relações, ainda que façam

parte de quadros nacionais distintos. Percebe-se entre a Cinquième e o Canal Futura a

necessidade de criar uma programação educativa que atendesse a demandas imediatas do

público Assim as duas emissoras distanciavam-se de uma visão elitista de educação e cultura.

A Cinquième em clara oposição ao Arte e o Futura em relação a TVE, do Rio de Janeiro e a TV

Cultura, de São Paulo.

Para além disso, o contraste do olhar comparado permite uma compreensão mais

relacional dos elementos específicos de cada um dos objetos. Nesses termos, pode-se concluir

que no caso francês, o surgimento da Cinquième possibilitou o retorno a um equilíbrio maior

entre a produção das emissoras comerciais e públicas. Com o estado tomando para si a

responsabilidade pela produção e veiculação dos conteúdos educativos.

No Brasil, a ofensiva das Organizações Globo sobre a programação educativa, com a

criação do Canal Futura, representou a consolidação de um projeto educacional iniciado em

1978, com o Telecurso 2º Grau. Com isso, a nova emissora da Fundação Roberto Marinho teria

uma ação direta de disputa e concorrência com as emissoras educativas públicas, que apesar de

respaldadas pelo princípio da complementaridade do sistema assegurado na Constituição

Federal, se viam debilitadas devido aos recentes cortes orçamentário e com pouca margem de

ação frente ao projeto milionário da Fundação Roberto Marinho.

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