aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de murilo

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MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS, CULTURAIS E INTERARTES ESPECIALIZAÇÃO EM ESTUDOS COMPARATISTAS E RELAÇÕES INTERCULTURAIS Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo Rubião e José J. Veiga Luciano Galvão Simão M 2020

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Page 1: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

MESTRADOEMESTUDOSLITERÁRIOS,CULTURAISEINTERARTESESPECIALIZAÇÃOEMESTUDOSCOMPARATISTASERELAÇÕESINTERCULTURAIS

AspectosdorealismomágicobrasileironasobrasdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga

LucianoGalvãoSimão

M2020

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LucianoGalvãoSimão

AspectosdorealismomágicobrasileironasobrasdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga

DissertaçãorealizadanoâmbitodoMestradoemEstudosLiterários,Culturaise

Interartes,orientadapelaProfessoraDoutoraCelinaSilvaecoorientadapeloProfessor

DoutorFranciscoJosédeJesusTopa

FaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto

2020

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LucianoGalvãoSimão

AspectosdorealismomágicobrasileironasobrasdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga

DissertaçãorealizadanoâmbitodoMestradoemEstudosLiterários,Culturaise

Interartes,orientadapelaProfessoraDoutoraCelinaSilvaecoorientadapeloProfessor

DoutorFranciscoJosédeJesusTopa

MembrosdoJúriProfessorDoutor(escrevaonomedo/aProfessor/a)

Faculdade(nomedafaculdade)-Universidade(nomedauniversidade)

ProfessorDoutor(escrevaonomedo/aProfessor/a)

Faculdade(nomedafaculdade)-Universidade(nomedauniversidade)

ProfessorDoutor(escrevaonomedo/aProfessor/a)

Faculdade(nomedafaculdade)-Universidade(nomedauniversidade)

Classificaçãoobtida:(escrevaovalor)Valores

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Page 5: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

Aomeupai.

Page 6: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

2

Sumário

Declaraçãodehonra.....................................................................................................................4

Agradecimentos...........................................................................................................................5

Resumo........................................................................................................................................6

Abstract........................................................................................................................................7

Introdução....................................................................................................................................8

1.Realismomágico:origemeconcepçõesteóricascentrais.....................................................10

1.1.Históriaedesenvolvimento..............................................................................................11

1.2.Questõesterminológicas..................................................................................................14

1.3.Noçõesderealidadeemagia............................................................................................16

1.4.OfantásticosegundoTodoroveorealismomágico.........................................................19

1.5.Relaçõescomosurrealismo..............................................................................................22

1.6.Realismomágicoenquantoelementodaliteraturapós-moderna..................................23

1.7.Abordagensmúltiplas......................................................................................................26

2.Contextohistóricodorealismomágicobrasileiro..................................................................32

2.1.Modernidadebrasileira....................................................................................................34

2.2.OManifestoAntropofágicoeocontroledoimaginário....................................................37

3.OrealismomágicoemMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga.............................................................42

3.1.Ocontolatino-americano.................................................................................................45

3.2OuniversoficcionaldeMuriloRubião................................................................................48

3.2.1. Introdução à obra muriliana: O Ex-Mágico da Taberna Minhota e o absurdo doquotidiano..................................................................................................................................53

3.2.2.OpirotécnicoZacariaseaatitudefantástica..............................................................56

3.2.3.Magiaealteridade:Osdragões,Teleco,oCoelhinhoeOhomemdobonécinzento...58

3.2.4.OAbsurdonolabirintourbano:Afila,OedifícioeObloqueio....................................63

3.2.5.Consideraçõesadicionais............................................................................................67

3.3.OuniversoficcionaldeJoséJ.Veiga..................................................................................67

3.3.1.Olúdicoinsólito:Fronteira,OsCavalinhosdePlatiplantoeAIlhadosGatosPingados.....................................................................................................................................................72

3.3.2.Fronteirafantásticaentreavidaeamorte:OsdooutroladoeAInvernadadoSossego.....................................................................................................................................................77

Page 7: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

3

3.3.3.OinsólitoeoOprimido:Ausinaatrásdomorro,Erasóbrincadeira,QuandoaTerraeraredonda,AHoradosRuminanteseSombrasdeReisBarbudos...........................................80

3.3.4.Consideraçõesadicionais............................................................................................87

4.Conclusão:Haveriaumrealismomágicoverdadeiramentebrasileiro?..................................89

4.1.OEueoOutronorealismomágicobrasileiro...................................................................91

4.2.OsDoisBrasis:Exploraçãodedicotomiasnacionais.........................................................92

4.3.Aidentidadebrasileiranorealismomágico......................................................................93

4.4.Orealismomágicobrasileironocontextolatino-americano.............................................94

4.5.Antropofagiamágico-realista...........................................................................................96

4.6.(In)Conclusão....................................................................................................................98

5.Referênciasbibliográficas.......................................................................................................99

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4

Declaraçãodehonra

Declaroqueapresentedissertaçãoédeminhaautoriaenãofoiutilizadapreviamente

noutrocursoouunidadecurricular,destaoudeoutrainstituição.Asreferênciasaoutros

autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitamescrupulosamente as regras da

atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências

bibliográficas,deacordocomasnormasdereferenciação.Tenhoconsciênciadequea

práticadeplágioeauto-plágioconstituiumilícitoacadémico.

[Porto,2020-10-18]

[LucianoGalvãoSimão]

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5

Agradecimentos

Dedico este trabalho aos meus amigos, no Brasil e em Portugal, cujo apoio foi

imprescindívelnestabusca;àminhaamadacompanheiraMariana,quepreenchemeus

diasdecorecalor;àminhamãe,Mariângela,semaqualnadadissoseriapossível;à

minha avó Maria Galvão, cuja memória será eternamente saudosa; e ao meu pai,

Antonio, que, mesmo não estando mais aqui para presenciar o fim dessa jornada,

permanecemeumaiorexemplodepesquisador,professoreserhumano.

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Resumo

Apresentedissertaçãobuscaexporosprincipaisaspectosdorealismomágicoproduzido

noBrasilentreasdécadasde1940-1970,encabeçadopordoisautoresderelevância

nacional:MuriloRubiãoeJoséJ.Veiga.Pormeiodeumaanálisedasobrasdosautores

àluzdocontextohistóricoquedeuorigemaorealismomágicoedocenárioparticular

da modernidade brasileira, propõe-se que o realismo mágico brasileiro pode ser

estudadocomoummovimentoantropofágicoqueutilizaomecanismodoinsólitopara

expressardiversasfacetasdaidentidadeculturaleliterárianacional.

Palavras-chave: Realismo mágico; Antropofagia; Fantástico; Pós-modernismo;

Literaturabrasileira;MuriloRubião;JoséJ.Veiga.

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Abstract

Thisresearchprojectaimstooutlinethemainaspectsofthemagicalrealismproduced

inBrazilbetween the1940sand the1970s, spearheadedby twoauthorsofnational

relevance:MuriloRubiãoandJoséJ.Veiga.Byanalysingtheworkofthesetwoauthors,

the historical context that originatedmagical realism and the particular scenario of

Brazilian modernity, it is argued that Brazilian magical realism may be seen as an

anthropophagicmovement that employs themechanism of the fantastic to express

multiplefacetsoftheBrazilianculturalandliteraryidentity.

Keywords: Magic realism; Anthropophagy; Fantastic literature; Post-modernism;

Brazilianliterature;MuriloRubião;JoséJ.Veiga.

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Introdução

Emtodapropostadeanáliseliterária,énecessárioconsiderarapriorialgunsparadigmas

fundamentaisacercadaliteratura,vistoquenãoháumateoriadaliteraturaúnicapela

razãoevidentedequeháváriaspráticasdeconhecimento,etampoucopode-sepropor

umadefiniçãoúnicaeabsolutadeliteratura.Taisdefiniçõesserãosemprehistóricase

eventualmenteredutoras.Ademais,aliteratura,alémdeformadeexpressãoartística,

é também uma instituição: possui uma dimensão social, histórica, acadêmica,

mercadológicaetc.Háumconjuntodecircunstânciasquepermite,favoreceoumesmo

impedequeumdeterminadotextosejaproduzido,distribuídoeaceitocomoliteratura.

Ressaltar a multiplicidade de definições de literatura e a infinidade de abordagens

disponíveis no amplo campo da “teoria” não significa que há uma falta de coesão

inerenteaoexercíciodaanáliseliterária.Aocontrário,oconhecimentodetaisquestões

permite ao pesquisador definir, dentro desse amplo universo de possibilidades, o

recorteteóricoadequadoaoobjetodepesquisa.

Éàluzdetaisquestõesqueopresenteprojetodedissertação,inseridonoprogramade

Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes da Faculdade de Letras da

Universidade do Porto (FLUP), tem como proposta analisar as obras dos escritores

MuriloRubiãoeJoséJ.Veiga,apontadoscomoosprincipaisnomesligadosaorealismo

mágico no Brasil, a fim de propor uma possível concepção de um realismomágico

essencialmente brasileiro, distinto do realismomágico latino-americano (em geral e

nomeadamente em língua espanhola). Faz-se necessária, portanto, uma exposição

acerca de dois pilares essenciais: a definição do realismo mágico enquanto modo

narrativoeenquantotipodemovimento literário temporalmenteegeograficamente

delimitado;eaanálisedocontextohistórico, literárioesocialdorealismomágicono

Brasil,emtodaasuapeculiarformademodernidade.

Aolongodesteprojetodepesquisa,pretende-sediscutirasmúltiplasabordagensqueo

realismomágicopermiteeexplicitarasrazõespelasquaissetratadeumfenômenotão

plástico, aplicável às mais diversas culturas e formas de arte. Pretende-se, ainda,

equacionarasrelaçõesentreorealismomágico,ofantástico,oinsólito,aliteraturapós-

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modernaeosurrealismo,bemcomoampliararevisãobibliográficaacercadocontexto

culturalbrasileiroesuainfluêncianaproduçãoliterárianacionalnoséculoXX,comfoco

especialemmovimentoscomoaantropofagia.

Oprimeirocapítulodestetrabalhotemcomofocoohistóricododesenvolvimentodo

realismomágicodesdesuaprimeiraconcepçãonaAlemanhaduranteaRepúblicade

WeimarpelocríticodearteFranzRohatéochamadoboomlatino-americano,ediscutirá

asprincipaisdefiniçõesderealismomágico,bemcomoasimplicaçõeseparticularidades

desse conceito. Por sua vez, o segundo capítulo tem como objetivo apresentar o

contexto sociocultural durante o qual escreveram Murilo Rubião e José J. Veiga,

enfatizandoaimportânciademovimentoscomoaantropofagianaproduçãoliterária

brasileiraapartirdadécadade1930.Oterceirocapítuloédedicadoaleiturasdasobras

deRubiãoeJ.Veiga,proporcionandotambémumabrevediscussãoacercadocontoe

suarelaçãocomofantástico.Oquartocapítulocontémocernedasconclusõesextraídas

dasanálisesanterioresaoproporumapossívelidentidadeprópriadorealismomágico

brasileiro, situando-o no contexto do realismomágico latino-americano e de todo o

legadoculturaleliterárioeuropeudiscutidonoscapítulosprecedentes.

Desta forma,oembasamentoteóricotrabalhadofundamentaráas leituraspropostas

dasobrasdeRubiãoe J.Veiga,como intuitodecontribuir,assim,paraumamelhor

compreensão das noções de realidade emagia na literatura brasileira e umamaior

valorizaçãodessesautoresnocânonedorealismomágicomundial.

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1. Realismomágico:origemeconcepçõesteóricascentrais

Assim como concepções teóricas complexas tal qual a noção depós-modernismo, o

termo realismo mágico possui múltiplas definições passíveis de debate, desacordo

agravado pelo fato de que a classificação abrange uma vasta gama de autores e

movimentosartísticosemmúltiplospaíses,atuandoemdiferentesdécadasdoséculo

XXatéosdiasdehoje.

ApesquisadoraMaggieAnnBowers, em seu livroMagic(al)Realism (2013), enfatiza

que,emboratrate-sedeumacategoriacríticadeintensadiscussão,anoçãoderealismo

mágicotemsidoutilizadaparasereferiraummodonarrativoparticular,queoferece

“[...]awaytodiscussalternativeapproachestorealitytothatofWesternphilosophy,

expressedinmanypostcolonialandnon-Westernworksofcontemporaryfiction”,eque

grandepartedaconfusãoemtornodestaquestãosedeveaofatodequeestapode

também se referir a movimentos artísticos e literários geograficamente e

temporalmentedistintos.Ainda,Bowersexplicaque:

Oneofthemainsourcesofconfusionsurroundingthetermsisthelackofaccuracyof

their application. Each variation of the term has developed in specific and different

contextsandyettheyhavebecomemistakenlyinterchangeableincriticalusage.They

havealsogonethroughmanyvariationsoftranslation[...](Bowers2013:2)

Apesardeestaramplamenteassociadoàliteraturalatino-americana,orealismomágico,

comomodonarrativo,nãopode serdelimitadoporbarreirasgeográficas.De fato,o

crítico espanhol Angel Valbuena Briones postula que o realismo mágico é “uma

tendênciauniversal,inerenteàexistênciahumana.”(1969).

Aomesclaraessênciaopostadosdoistermosqueformamesseoxímoro(omágicoeo

real),estabelecendoumaoutraperspectiva,orealismomágicotornadifusaadistinção

entredoisdomínioscontrastantes,eporissoéfrequentementeconsideradoummodo

narrativoespecialmentedisruptivo.Amultiplicidadedepossibilidadesqueorealismo

mágicoofereceéparticularmenteatraenteparaautoresdeculturasconsideradas“às

margens”.ConformeexplicamZamoraeFaris(1995),

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Thepropensityofmagicalrealisttextstoadmitapluralityofworldsmeansthatthey

often situate themselves on liminal territory between or among those worlds— in

phenomenal and spiritual regionswhere transformation,metamorphosis, dissolution

are common,wheremagic is a branch of naturalism, or pragmatism. (Zamora, Faris

1995:5)

Essaliminaridadeinerenteaorealismomágico,emtodasassuasformasdeexpressão,

seráumfatorderelevânciaparaasleituraspropostasnoscapítulos3e4,principalmente

porsetratardeumadasrazõespelasquaisomodonarrativoparecesertãoadequado

àliteraturadeex-colônias,àsmargensdatradiçãoliteráriaeurocêntrica:

The incompatibility of magic realism with the more “established” genre systems

becomesitself interesting,itselfafocusforcriticalattention,whenoneconsidersthe

fact thatmagic realism,at least ina literarycontext, seemsmostvisiblyoperative in

culturessituatedatthefringesofmainstreamliterarytraditions.(Slemon1998:1)

Comoobjetivodeaprofundaresteaspecto,departicularinteresseparaumaanálisedo

realismomágico brasileiro emdiversas obras deMurilo Rubião e José J. Veiga, este

capítuloiráfocarahistóriaedesenvolvimentodoconceito(bemcomosuasprincipais

variações), aomesmo tempo em que busca sintetizar o papel central da dicotomia

real/mágico;arelaçãodorealismomágicocomopós-modernismo,osurrealismoeo

fantástico;eamultiplicidadedeabordagensteóricaspossíveisparaaanálisedetextos

mágico-realistas.

1.1. Históriaedesenvolvimento

Bowerscategorizaostrêsprincipaistermosutilizadosnabibliografiaanglófona:magic

realism (correspondendo ao alemãoMagischer Realismus), marvellous realism (do

espanhol lo real maravilloso) emagical realism (do espanhol realismo mágico). Os

termosdizemrespeitoatrêsperíodoseperspectivasdistintos.

Oprimeirodeles,MagischerRealismusoumagicrealism, foipropostopelocríticode

arte alemão Franz Roh para referir-se a umanova formade pintura, que classificou

também como “pós-expressionista”, surgida na Alemanha durante o período da

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RepúblicadeWeimar.Rohpreocupou-seemsalientarasdiferençasentreoMagischer

Realismusdeoutromovimentoquelhefoicontemporâneo,osurrealismo(discutidas

noitem1.5).

AobracríticadeRoh,alémdeinfluenciaroescritoritalianoMassimoBontempelli,que

publicoucontosderealismomágiconarevistaNovecento(1926)duranteofascismode

Mussolini, chegou à América Latina por meio de uma tradução em espanhol de

FernandoVela, influenciandoescritorescomooguatemaltecoMiguelÁngelAsturias.

Rohpreconizacertosaspectosqueviriamasercaracterísticasfundamentaisdorealismo

mágicocontemporâneo:

Inhisstatementintheprefacetohisbook,‘withthewordmagic,asopposedtomystic,

Iwishedtoindicatethatthemysterydoesnotdescendtotherepresentedworld,but

ratherhidesandpalpitatesbehindit’,he[Roh]anticipatesthepracticeofcontemporary

magicalrealists.(Zamora,Faris1995:15)

Osegundotermo, lo realmaravilloso, surgiunaAméricaCentralnadécadade1940,

épocaemquediversasnaçõeslatino-americanasbuscavamexpressarumaconsciência

distinta de seu legado europeu, “[...] as an expression of themixture of realist and

magicalviewsoflifeinthecontextofthedifferingculturesofLatinAmericaexpressed

throughitsartandliterature”(Bowers2013:3).Doisnomesderelevânciadesseperíodo

sãooescritorsuíço-cubanoAlejoCarpentiereovenezuelanoArturoUslar-Pietri.

Carpentieréamplamenteconsideradoofundadordorealismomágicolatino-americano

e utilizou o termo lo real maravilloso para referir-se a um conceito que poderia

representarosaspectossingularesdaAméricaLatina,emtodasuadiversidadecultural

e étnica. Buscou dissociar o conceito da definição de Franz Roh, que considerava

excessivamente artificial, e definiu o real maravilhoso como "o legado da América

Latina".

DeacordocomaspesquisadorasLoisZamoraeWendyFaris,Carpentieracreditavaque,

naAméricaLatina,“improbablejuxta-positionsandmarvellousmixturesexistbyvirtue

of Latin America’s varied history, geography, demography, and politics—not by

manifesto”. Amaryl Chanady (1995) caracterizaria o conceito de lo real maravilloso

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conformepropostoporCarpentiercomo“aterritorializaçãodoimaginário”porparte

doautor.

ApublicaçãodoensaioRealismomágiconaFicçãoHispano-Americana,docríticoAngel

Flores,em1955,resultouemumrenovadointeressepelorealismomágiconoterritório

latino-americano. Entre os estudiosos do realismo mágico, Flores é dissidente ao

consideraroescritorargentinoJorgeLuisBorgescomooprimeirorealistamágicoda

AméricaLatina.Bowersenfatizaque,emborasejaprovávelainfluênciadaobradeFranz

Roh sobre o pensamento de Borges, este estava mais próximo do fantástico e do

experimentalismodaliteraturapós-moderna(defato,Borgespodeserapontadocomo

o primeiro autor de literatura pós-moderna, e é apenas após o interesse dos

estruturalistas, que traduzemas obras de Borges na Europa, que a literatura latino-

americana e o realismomágico hispanófono passam a ser reconhecidos em círculos

internacionais).

Nesta “segunda onda” do realismo mágico latino-americano, surge o termo que

predominano círculo crítico até os dias de hoje: realismomágico (emespanhol)ou

magicalrealism,referindo-seaummodonarrativoemqueosacontecimentosmágicos

sãorelatadosdeformaquotidiana,realista,oucomodefinemZamoraeFaris,ummodo

emque“osobrenaturalnãoéalgosimplesouóbvio,masédefatoalgoordinário,um

acontecimento do dia a dia – admitido, aceito e integrado na racionalidade e

materialidadedorealismoliterário”(Zamora,Faris1995:3).

FoinesteterceiroperíodoqueocolombianoGabrielGarcíaMárquezpublicouaobra

queseconsolidariacomoaprincipalreferênciadorealismomágicolatino-americano,

CienAñosdeSoledad(1967)–eétambémemtornodesseperíodoqueescrevemos

principaisexpoentesdorealismomágicobrasileiro,omineiroMuriloRubiãoeogoiano

JoséJ.Veiga.

Falar de “realismo mágico”, portanto, é falar de fenômenos diversos ocorridos em

diferentesespaçoseperíodos,mascomclarasrelaçõesdearticulaçãoentresi–eentre

outros movimentos artísticos e vertentes literárias que lhe foram contemporâneos.

Desdeessechamado“boom”dorealismomágicolatino-americano,impulsionadopela

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popularidade internacionaldaobradeGarcíaMárquez,oterceirotermotornou-seo

mais recorrente, e estemodo narrativo foi adotado nasmais diversas nações – em

especial naquelas em que o legado colonial e/ou do imperialismo se mostra mais

presenteemdiversasesferasdasociedade.

Conformedemonstratalgenealogia,otermorealismomágicocarregaumaconotação

inerentemente interartística,umavezquepodeseraplicadoàsmaisdiversasartese

mídias,variandoespecificamentedeacordocomaslimitaçõeseopotencialespecífico

decadameio.Nosúltimosanos,diferentesautorestêmanalisadoorealismomágico

comogênerocinematográfico,bemcomonadramaturgiaeemoutrasartes;paraesta

análise,contudo,interessa-nossobretudoorealismomágiconaliteratura.

Na introdução de sua coletâneaMagical Realism: Theory, History and Community

(1995), Louis Parkinson Zamora e Wendy B. Faris propõem que algumas análises

voltadasaperíodosanterioresdahistóriadaliteraturasugeremqueorealismomágico

opera como uma espécie de tradição que, após passar por diversos períodos de

ascensãoequedaaolongodosséculos,encontranocenáriocontemporâneoumnovo

períododealtaproduçãoerelevância.Nesseprocessodemetamorfoseconstante,dois

termos permanecem cruciais independentemente da geografia ou de limitações

temporais:osconceitosderealedemágico.

1.2. Questõesterminológicas

Antesdeabordarconcepçõesderealidadeemagia,énecessárioparaadiscussãoque

será proposta em relação ao realismomágico brasileiro expor a existência de certa

confusão terminológicaem relaçãoàpróprianoçãode realismomágico.Mesmoem

artigosdacríticaespecializada,utilizam-sediversostermosparareferir-seaorealismo

mágico,por vezesdescrito comoumgênero,ummodonarrativoouummovimento

literário.

ApósumaanálisedosartigoscontidosnacoletâneaMagicalRealism:Theory,History,

Community,épossívelperceberqueháumembasamentoteóricomaissólidoparanos

referirmosaorealismomágicocomoummodonarrativoe/ouummovimentoliterário,

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cadacategoriacomsuasconotaçõesdistintas.ZamoraeFaris,naintroduçãodaobra,

descrevemorealismomágicocomoummodoadequadoàexploraçãoetransgressãode

fronteiras,enquantoWilsonenfatizaqueorealismomágicoé“unmistakablyatextual

mode[...]”,modoestequeemprega“acertainmodeofnarrativevoice,thoughcritics

oftenignorethiswhentheythinkaboutmagicalrealism”(Wilson1995:223).

Bowers, em sua análise das três principais concepções de realismo mágico,

tambémressaltaqueoterceirotermo,magicalrealism,refere-seaum“modonarrativo

particular”, e tornou-se a forma mais recorrente de referir-se ao realismo mágico

(Bowers2013:1). JonThiem,emTheTextualizationof theReader inMagicalRealist

Fiction (1995), corrobora a leitura do realismo mágico enquanto modo narrativo,

enfatizandosuas“vantagens”emrelaçãoaoutrosmodos:

[...] one of the main advantages of magical realism as a literary mode lies in its

extraordinaryflexibility,initscapacitytodelineate,explore,andtransgressboundaries.

More than other modes, magical realism facilitates the fusion of possible but

irreconcilableworlds.(Thiem1995:244)

Para Chanady, o realismo mágico é um modo que "[...] challenges realistic

representationinordertointroducepoiesisintomimesis,aconditionwhichCostaLima

advocatesforamoresatisfactoryexpressionofourmodernity"(Chanady1995:130).A

autora também explica que, para o crítico Angel Flores, o realismomágico seria "a

literarymodethatisbrandishedaspartofLatinAmerica'scredentialsforbeingaccepted

by the cultural establishment of the metropolis" (Chanady apud Flores 1995: 131),

opinião corroborada por Luis Leal (1967) quando este se refere ao realismomágico

comouma"atitude"perantearealidade.

Portanto, para este capítulo inicial de introdução teórica, considerou-se proveitoso

analisar a ascensão e desenvolvimento do realismo mágico moderno como a

popularizaçãodessemodoouvoznarrativaparticular,que,conformeressaltouBriones,

éumatendênciauniversalqueprecedeostrêsmomentosdescritosporBowers.

Nas leituras que serão propostas no capítulo 3, o conceito de realismo mágico

empregado para caracterizar as narrativas como tal está embasado nos teóricos

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apresentadosatéaqui:ummodonarrativoemquerealidadeemagiacoexistemcom

similargraudenaturalidade,refletidonasatitudesdasprópriaspersonagensperantea

irrupçãodoelementomágico,semdemonstrarahesitaçãocaracterísticadofantástico

definidoporTodorov,demandandodoleitorsimilargraudeaceitaçãonaturalàquele

demonstradopelaspersonagens.

1.3. Noçõesderealidadeemagia

Desde a concepção inicial do crítico alemão Franz Roh, a noção de realismomágico

depende inevitavelmente dos dois componentes centrais que, quando pareados,

formamesseoxímoro.Defato,tantoostermosrealismoquantomágicopossuemcertas

conotações previamente estabelecidas. Por exemplo, a discussão teórica acerca do

realismo na literatura é relevante para diversos autores, uma vez que a noção de

realismodesempenhouumpapelfundamentalnodesenvolvimentodoprópriorealismo

mágico.Maisdoqueummovimentoliteráriotemporalmentedeterminado,orealismo

(aescritapretensamentemiméticadarealidadenatural)sempreestevepresentedesde

osprimórdiosdaliteratura.

AodescreveroMagischerRealismusalemão,emcontrastecomoExpressionismo,Roh

exaltou como aspecto fundamental do movimento a representação de imagens de

forma “realista”, visando à mimese domundo natural, beirando o fotorrealismo. A

definiçãopropostaporRoh—eporoutrosteóricosqueexaltaramorealismoemsuas

diversas formas—tomacomopressupostoqueoconceitode realpredominantena

chamada“culturaocidental”pós-iluministaé“absoluto”e“invariável”.

Todavia,autoresposterioresquestionamaprópriaideiadequequalquerdefiniçãode

real ou realismo pode ser absoluta, uma vez que é, como todo conceito teórico,

resultado de um contexto sociocultural específico. A impossibilidade de apreensão

completadarealidadeemummeiolimitadocomoalinguagemhumana,independente

doidioma,põeemdúvidaaspretensõesdeautoreshiper-realistasdecriaremnarrativas

estritamentedefinidascomotal.

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Assim como o realismomágico adota diferentes formas em diferentes contextos, a

própria noção de um realismo único é passível de discussão. Zamora e Faris (1995)

ressaltamasdiferençasentreomodonarrativodorealismoeaqueleelementorealista

presentenorealismomágico:

An essential difference, then, between realism and magical realism involves the

intentionality implicit in the conventions of the two modes. [...] realism intends its

version of the world as a singular version, as an objective (hence universal)

representation of natural and social realities — in short, that realism functions

ideologicallyandhegemonically.Magicalrealismalsofunctionsideologicallybut[...]less

hegemonically, for its program is not centralizing but eccentric: it creates space for

interactionsofdiversity.(Zamora,Faris1995:3)

Crucialmente, as autoras argumentam que o realismo mágico na literatura cria

disrupçõesontológicasque servemopropósitodedisrupçãopolíticae cultural: "[...]

magic isoftengivenasacultural corrective, requiring readers to scrutinizeaccepted

realisticconventionsofcausality,materiality,motivation"(idem1995).

Maggie Ann Bowers propõe que toda concepção demágico emagia é construção

resultantedecontextosculturaisespecíficos.Porisso,écertoqueorealismomágico,

bem como as múltiplas definições possíveis de real e de magia, expressa-se de

diferentesformasdeacordocomocontextosocioculturalemqueédesenvolvido.Em

suma,orealismomágicobrasileirodasdécadasde1940-1970operasobdefiniçõesde

realismoemagiadistintasdaquelassobasquaisescreveuSalmanRushdienaÍndiade

1970-1980.

Frequentemente,osprópriosconceitosderealidadeemagiaaplicadosàcategorização

do realismo mágico carregam pressupostos coloniais ou imperialistas: enquanto o

realismo é frequentemente ligado à faculdade da razão, à ciência e à busca pela

representação “verdadeira” (pretensamentemimética)domundonatural, amagiaé

frequentemente associada aos mitos, costumes e tradições narrativas de culturas

aborígenes,indígenas,escravizadasemiscigenadas,consideradasdeformaamplacomo

“não-Ocidentais”.ConformeexplicaBowers(2013:4),“[...] ‘magic’canbeasynonym

Page 22: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

18

formystery,anextraordinaryhappening,orthesupernaturalandcanbeinfluencedby

EuropeanChristianityasmuchasby,forinstance,NativeAmericanindigenousbeliefs”.

ZamoraeFaris (1995)defendemqueos sistemasculturaisqueservemdebasepara

narrativasderealismomágiconãosãomenosreaisdoqueaquelesquesustentamo

realismonaliteraturaeuropeia.Sobreessasculturas,asautorasressaltam:

Textslabeledmagicalrealistdrawuponculturalsystemsthatarenoless‘real’thanthose

uponwhich traditional literary realismdraws—oftennon-Western cultural systems

that privilege mystery over empiricism, empathy over technology, tradition over

innovation.Theirprimarynarrativeinvestmentmaybeinmyths,legends,rituals—that

is,incollective(sometimesoralandperformative,aswellaswritten)practicesthatbind

communitiestogether.(Zamora,Faris.1995)

Ademais, as autoras criticam a dicotomia do termo realismo mágico, pois tal

categorização implica uma oposiçãomais definitiva entremagia e realidade do que

aquelaqueosprópriostextosapresentam.Argumentamque“Forthecharacterswho

inhabitthefictionalworld,andfortheauthorwhocreatesit,magicmaybereal,reality

magical;thereisnoneedtolablethemassuch"(idem).

Há,ainda,umaoutraassociaçãofrequentementeestabelecida:assemelhançasentrea

poesia(ouopoeta)eamagia(ouomago).ConformeargumentaOctavioPaz,emElArco

ylaLira(1956):

Laoperaciónpoéticanoesdiversadelconjuro,elhechizoyotrosprocedimientosdela

magia.Ylaactituddelpoetaesmuysemejantealadelmago.Losdosutilizanelprincipio

deanalogía;losdosprocedenconfinesutilitarioseinmediatos:nosepreguntanquées

elidiomaolanaturaleza,sinoquesesirvendeellosparasuspropiosfines.Noesdifícil

añadirotranota:magosypoetas,adiferenciadefilósofos,técnicosysabios,extraensus

poderesdesímismos.(Paz1956:18)

Paz também argumenta que a operação mágica, por natureza, requer uma força

interior,“logradaatravésdeunpenosoesfuerzodepurificación.Lasfuentesdelpoder

mágico son dobles: las fórmulas y demás métodos de encantamiento, y la fuerza

psíquicadelencantador,suafinaciónespiritualquelepermiteacordarsuritmoconel

Page 23: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

19

delcosmos”(Paz1956:18).Opoetaoperadamesmaforma,nãocomoummago,mas

“suconcepcióndellenguajecomounasocietyoflife—segúndefineCassirerlavisión

mágicadelcosmos—loacercaalamagia”(Paz1956:20).Todavia,assimcomoaideia

de realismo, amagia é também um fenômeno ambivalente. Em relação à definição

específicademagiacomaqualtrabalha,Pazdetalha:

Laambivalenciade lamagiapuedecondensarseasí:porunaparte, tratadeponeral

hombreenrelaciónvivaconelcosmos,yenestesentidoesunasuertedecomunión

universal;porlaotra,suejercicionoimplicasinolabúsquedadelpoder.El¿paraqué?

esunapreguntaquelamagianosehaceyquenopuedecontestarsintransformarseen

otracosa:religión,filosofía,filantropía.Ensuma,lamagiaesunaconcepcióndelmundo

peronoesunaideadelhombre.Deahíqueelmagoseaunafiguradesgarradaentresu

comunicaciónconlasfuerzascósmicasysuimposibilidaddellegaralhombre,excepto

comounadeesasfuerzas.(Paz1956:19)

Emborarefira-seestritamenteàpoesia,pode-seargumentarqueasconsideraçõesdo

poetaacercadamagiaedoofíciodomago––aquelequeutilizaessa"forçainterior"

resultantedeum"penosoesforçodepurificação"para igualarseuritmoaoritmodo

cosmo –– também são potencialmente aplicáveis ao autor de realismomágico, cuja

tentativadeatuaremconsonânciacomoritmodouniversoseexpressanoempregoda

magiaparacaracterizarerealçaraprópriarealidade.

1.4. OfantásticosegundoTodoroveorealismomágico

Portercomocaracterísticaessencialessadiluiçãodefronteiras—reaisousocialmente

construídas—entrearealidadeea irrealidade(amagia,osobrenatural),orealismo

mágico é frequentemente comparado a outras formas de expressão literária que

operamcomsimilartransgressãodefronteirastradicionais.Emespecial,éimportante

diferenciarorealismomágicodofantástico(particularmentedaliteraturafantástica),

comoqualéfrequentementeconfundido.

OescritorecríticoliteráriomexicanoLuisLeal,emseuensaioElrealismomágicoenla

literaturahispanoamericana(1967),emquerebatealgunsdosargumentospropostos

Page 24: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

20

porAngelFloresemsuadefiniçãoderealismomágico,expõequeorealismomágiconão

incluialiteraturafantástica,oníricaoupsicológica,etampoucoosurrealismo.

Amaryll Chanady, em The Territorialization of the Imaginary in Latin-America: Self-

AffirmationandResistancetoMetropolitanParadigms,analisaoargumentodeLeale

propõeque,paraocrítico,adiferençaentreoautorderealismomágicoeodeliteratura

fantásticaéque“[...]themagicalrealistwriter'doesnotneedtojustifythemysterious

nature of events, as thewriter of fantastic stories has to. In fantastic literature the

supernatural invades a world ruled by reason'".” (Leal apud Chanady 1995: 131). A

autoraexplicatambém:

Inthesefantasticfictions,thepremisesofafrequentlyexaggeratedrationalistdiscourse

affirming hegemonic paradigms of the Enlightenment are deconstructed by the

descriptionofapparentlysupernaturaleventsandconstantreferencetothefearofthe

protagonist inthefaceofthe inexplicable.Althoughthistypeoffantasticnarrative is

highlycontradictory—affirmingandchallengingrationalmodels—itsmainemphasis

is on the rationalizing activity of a subject searching for cognitive mastery of the

unknown and reconciliation of experiencewith scientific paradigms. (Chanady 1995:

132)

Afronteiraentreofantásticoeorealismomágico,comoocorreentreorealismomágico

eosurrealismo,podeserporosa,mashácertoconsensodequesãocategoriasdistintas.

Segundo a classificação proposta por Tzvetan Todorov, em Introdução à Literatura

Fantástica(1975),umanarrativafantásticademandaqueoleitoradoteumaposiçãode

oscilaçãoentreumaexplicação racional euma sobrenaturalparaosacontecimentos

narrados.Adicionalmente,Todorovdistingueofantásticodoestranhoedomaravilhoso:

Atthestory’send,thereadermakesadecisionevenifthecharacterdoesnot:heopts

foronesolutionortheother,andtherebyemergesfromthefantastic.Ifhedecidesthat

thelawsofrealityremainintactandpermitanexplanationofthephenomenadescribed,

we say that the work belongs to another genre: the uncanny [l’étrange]. If, on the

contrary,hedecidesthatnewlawsofnaturemustbeentertainedtoaccountforthe

phenomena,weenterthegenreofthemarvelous[lemerveilleux].(Todorov,1975:41)

Page 25: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

21

Contrariamenteao fantástico, aoestranhoeaomaravilhoso conformedefinidospor

Todorov, o realismo mágico trata o sobrenatural com a mesma materialidade e

factualidade que o natural (Bowers 2013). Mesmo em suas variadas definições, o

realismo mágico mantém na materialidade da magia uma de suas características

centrais.1

ParaSimpkins(1995),háumdilemacentralqueéparticularaorealismomágico:aideia

deque“thedivinelanguageneededtobringaboutcompletesignification(whatit'really

is')cannevertranscenditsillusorystatus”(Simpkins1995:154).Emoutraspalavras,os

autoresmágico-realistas,emcomparaçãoaosautoresdeliteraturafantásticaqueforam

seus predecessores e/ou contemporâneos, enfrentam um desafio particular

caracterizado pelas limitações inerentes à linguagem que desejam transcender.

Complementandoestaafirmaçãoeacomparaçãoentreorealismomágicoeofantástico

conformecategorizadoporTodorov,oautorcomenta:

[...] Todorov offers an interesting counter-assertion: ‘I nearly reach the point of

believing’:thatistheformulawhichsumsupthespiritofthefantastic:itishesitation

that sustains its life. It is unlikely, however, that a readerwouldhave any reason to

'believe'whatissaidinatext;thequestionofdoubtalwayslurks(orshouldalwayslurk,

anyway)betweenthelinesbecausethephysicalpresenceofthetextceaselesslycalls

attentiontoitsinherentfalsenessasaconstruct.(Simpkins1995:.154)

O argumento do pesquisador serve para ilustrar as diversas formas de comparar a

literatura fantástica de tradição europeia ao realismo mágico latino-americano,

enfatizandoosdiferentespropósitosedilemasdeseusrespectivosautores.Enquantoo

fantásticoencontrasuaforçanahesitaçãoqueodefine(hesitaçãoestacompartilhada

por leitor e personagem), o realismo mágico utiliza a magia (o extraordinário, o

sobrenatural)paratentarapreenderarealidadedeformaaindamaisefetivadoqueo

realismoemseumodotradicional,masencontraumaintransponívelbarreiranaprópria

limitaçãodalinguagemhumana.

1FatorqueseráconsideradonaleituradostextosdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga.

Page 26: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

22

1.5. Relaçõescomosurrealismo

Em termos genealógicos, o realismo mágico conforme postulado por Franz Roh

(entendido como um movimento) tem diversas similaridades em relação a outro

movimentoque lhe foicontemporâneo:osurrealismo.Emsuaconcepção,ambosos

movimentos têmforte relaçãocomoâmbitodasartesplásticas,masestendem-seà

literatura:

Whilst both magic realism and surrealism in their most limited definitions are

movementsofliteratureandartthatdevelopedinthefirsthalfofthetwentiethcentury,

both terms have life beyond this period asmore generally applied notions. (Bowers

2013:22)

Roh, que cunhouo termoem relação à pintura, consideravaoMagischerRealismus

similaraosurrealismo,porémdotadodecaracterísticasparticularesquejustificariama

separaçãoentreos termos:enquantoosurrealismoutilizavaasnascentes teoriasda

psicanálise paramanifestar as profundezas do inconsciente e do onírico, o realismo

mágicoalemãobuscavaaplicá-lasàrealidadematerial,retratandoosobjetoscomuma

qualidade fotográfica, reconhecível, dando ao mágico materialidade igual àquela

conferidaaoreal.

Para Roh, era importante que os artistas do Magischer Realismus utilizassem as

influências da psicanálise (de Freud e Jung) presentes no Surrealismo e que as

combinassememsuatentativadeapresentarobjetosde formaextremamenteclara,

explicitando todo seu “maravilhoso sentido” (RohapudBowers 1995: 12). A autora,

contudo,ressaltaqueasrelaçõesentreo“realismomágico”deRoheoSurrealismonão

ocorremcomorealismomágicoenquantomodonarrativooumovimentoliterário,cujas

característicassãobastantedistintasdaliteraturasurrealista.

Para Bowers, o surrealismo difere do realismo mágico principalmente devido aos

aspectosqueexplora,associadosnãoàrealidadematerial,masàimaginaçãoeàmente,

buscandoexpressara“vidainterna”doserhumanopormeiodaarte.Emcontrapartida,

“Oextraordinárionorealismomágicoraramenteéapresentadonaformadeumsonho

ou experiência psicológica, porque fazê-lo implicaria retirar a magia da realidade

Page 27: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

23

material reconhecível e colocá-la no mundo pouco compreendido da imaginação”

(Bowers2013:22).

EmboracríticoscomoTheoL.D’Haen(1995))argumentemque“[...]magicalrealism,in

itsartisticandcultural-politicalpractice,isclearlycontinuinginthetracksofitsearliest

progenitor, surrealism” (D’Haen 1995: 202), os autores e críticos latino-americanos

responsáveispelasprimeirasdiscussõesdomovimentonaAméricaLatinarejeitamessa

comparação,bemcomoainfluênciadeescritoreseuropeuspredecessorescomoKafka.

Ao buscar uma identidade distintamente latino-americana para o então nascente

movimento do realismo mágico no continente, como o faz Alejo Carpentier, esses

teóricosenfatizamocaráterparticulardaAméricaLatina,sejapropondoanoçãodoreal

maravilloso, seja distanciando-se da influência de autores e movimentos europeus

específicos. González Echevarría (1967) explica que "apesar de seu fascínio com o

Surrealismoemcertopontodasuavida,Carpentiernuncasucumbecompletamentea

Bretonesuasteorias.Aocontrário,buscaisolaremseuconceitodo'maravilhoso'algo

queseriaexclusivamentelatino-americano”(Echevarría1967:123).

Chanady, em suma, argumenta que críticos e autores latino-americanos comoAlejo

Carpentier,AngelFloreseLuisLealutilizamrecursosdoSurrealismoeuropeuaomesmo

tempoqueosmodificamemsuastentativasdearticularumateoriadorealismomágico

comoumfenômenoprópriodaAméricaLatina.

1.6. Realismomágicoenquantoelementodaliteraturapós-moderna

Para compreender o realismo mágico enquanto movimento literário cuja ascensão

ocorreno séculoXX,éprecisoapontara relaçãodiretaentreo realismomágicoea

literaturapós-moderna(iniciadaporBorges),bemcomoafilosofiadopós-modernismo

como um todo, cujo desenvolvimento é uma das principais marcas da

contemporaneidade.

DeacordocomSimpkins(1995),emseuartigoSourcesofMagicalRealism:Supplements

toRealism inContemporary LatinAmericanLiterature, teóricos ligadosaoestudodo

fantásticoedorealismomágicoidentificamapreocupaçãodessasobrascomasfalhas

Page 28: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

24

da própria linguagem como sintomas do temperamento contemporâneo. Simpkins

argumentaque"[...]magicaltextsareonewayofsupplementingnotonlythefailuresof

the modern text, but also the inadequacies of what is now called the postmodern

condition"[...]”(Simpkins1995:151).

Para D’Haen, cujos argumentos estão expostos no ensaio Magical Realism and

Postmodernism: Decentering Privileged Centers (1995), o termo pós-modernismo,

especialmente em relação à prosa, significa “[...] a combination of those technically

innovativequalitiesmosthighlyregardedbycontemporarycriticalmovementssuchas

poststructuralism”. O autor identifica as seguintes características como centrais à

literatura pós-moderna: autorreflexão, metaficção, ecletismo, redundância,

multiplicidade,descontinuidade,intertextualidade,paródia,adissoluçãodefronteiras

eadesestabilizaçãodoleitor(D’Haen1995:192).JonThiem,emTheTextualizationof

theReader inMagicalRealistFiction (1995),escreveque“Manyof thecharacteristic

featuresandstrategiesofpostmodernwriting–suchasthepreoccupationwiththepast

andhistoricalrepresentationandtherelianceonquotation,pasticheandparody–arise

outofthefeelingofbeinglateandderivative”(Thiem1995:241),sentimentoesteque

pode também explicar a busca dos autores latino-americanos por distinguir-se da

tradiçãoeuropeia.

D’Haen argumenta, então, que a similaridade entre as características elencadas e

aquelasconsideradascentraisàsobrasmágico-realistasapontaparaumarelaçãodireta

entrealiteraturapós-modernaeomovimentodorealismomágico.Poroutrolado,o

autor expõe a existência de um determinado consenso crítico em que uma relação

hierárquicaentrerealismomágicoepós-modernismoéestabelecida,naqualoprimeiro

évistocomovertentepertencenteaocorpusdosegundo.

Para o teórico, uma das principais características pós-modernas da literatura de

realismomágicolatino-americanadoséculoXXéanoçãodo“ex-cêntrico”,aqueleque

fala“defora”do/deumcentro,dasmargensdospolosdepoder,“inavoluntaryactof

breaking away from the discourse perceived as central to the line of technical

experimentationstartingwithrealismandrunningvianaturalismandmodernism[...]”

Page 29: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

25

(D’Haen 1995: 194). Em relação a esse discurso “percebido como central”, D’Haen

explica:

Towriteex-centrically,then,orfromthemargin,impliesdis-placingthisdiscourse.My

argument is that magic realist writing achieves this end by first appropriating the

techniquesofthe"centr"-allineandthenusingthese,notasinthecaseofthesecentral

movements, "realistically," that is, to duplicate existing reality as perceived by the

theoreticalorphilosophicaltenetsunderlyingsaidmovements,butrathertocreatean

alternativeworldcorrectingso-calledexistingreality,andthustorightthewrongthis

"reality"dependsupon.(D’Haen1995:194)

Destaforma,orealismomágicoagecomoumaformadeacessoaocorpusprincipalda

literaturaconsiderada“Ocidental”(comtodasasfalhasqueotermoimplica)porautores

quenãoseconsideram,ounãosãoconsiderados,comopartedosprivilegiadoscentros

de produção dessa literatura, com seus séculos de tradição, e ao mesmo tempo

“avoidingepigonismbyavoidingtheadoptionofviewsofthehegemonicforcestogether

withtheirdiscourse.”(D’Haen1995:194).

Ademais,D’Haenenfatizaqueacapacidadedosautoresmágico-realistasdefalarapartir

deumaposição“ex-cêntrica”podeserumdosfatoresqueexplicariamaascensãodo

modonarrativonaficçãolatino-americanadoséculoXX:“[...]LatinAmericawasperhaps

thecontinentmostex-centrictothe‘privilegedcenters’ofpower.Atthesametime,

though, itwasnominally independentenoughearlyenough toutter its ‘other’-ness"

(D’Haen1995:199)

Apesardeconsistiremterritóriosoficialmenteindependentespoliticamentedesuasex-

metrópoles,D’Haenenfatizaque,paramuitosautoreslatino-americanos,talpretensa

independênciaapenasserviaparaexacerbaressesentimentodeex-centricidade,queos

tornoualtamenteconscientesdesuacondiçãoenquantovozesàmargemdoscentros

depodercultural,políticoeeconômico.

Thiem observa ainda que há, nas obras pós-modernas, uma espécie de “dupla

codificação” que se verifica também nos textos mágico-realistas, o que explica, em

parte,osucessodorealismomágicolatino-americano:

Page 30: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

26

Manypostmodernworksare"double-coded".Onecode,usuallyimitativeoftheforms

ofpopularfiction,contributestoawidereadershipandcommercialsuccess.Thesecond

code, incorporating a whole range of experimental techniques and postmodern

philosophicalissues,islesspopularandmoreadaptedtoseriousreaders,otherwriters,

andthosewemightcallthecognoscenti.(Thiem1995:243)

Essasnoçõesdeex-centricidadeeduplacodificaçãomostrar-se-ãopresentestambém

norealismomágicobrasileiro,comoserádiscutidonoscapítulos3e4destapesquisa.

1.7. Abordagensmúltiplas

O potencial disruptivo inerente ao realismo mágico permite que este modo seja

analisadoapartirdemúltiplasabordagens.Nasúltimasdécadas,orealismomágicofoi

consideradodeespecialinteresseparaocampodosestudospós-coloniais,umavezque

mostrou-se recorrenteepopularna literaturadenaçõespós-coloniais comoa Índia.

SegundoanalisamZamoraeFaris,

Magical realism's assault on these basic structures of rationalism and realism has

inevitable ideological impact [...] Magical realist texts are subversive: their in-

betweenness, their all-at-onceness encourages resistance tomonologic political and

culturalstructures,afeaturethathasmadethemodeparticularlyusefultowritersin

postcolonialculturesand,increasingly,towomen."(Zamora,Faris,1995:6)

Aprópriaformulaçãodotermo,deacordocomasautoras,implicaasubversãodosmais

diversos pressupostos coloniais, como “a identificação cartesiana da verdade com a

consciênciahumana;noções racionalistas acercadas relaçõesprováveis eprevisíveis

entrecausaeefeito;arelaçãodoleitorcomotextoearelaçãodotextocomomundo.”

(idem)

Defato,comoressaltaBowers,arelaçãodorealismomágicocomopós-colonialismoé

central, pois, nas palavras da autora, "Themajority ofmagical realistwriting canbe

describedaspostcolonial.Thatistosaymuchofitissetinapostcolonialcontextand

written from a postcolonial perspective that challenges the assumptions of an

authoritative colonialist attitude” (Bowers 2013: 95). Desta forma, os estudos pós-

Page 31: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

27

coloniais podem fornecer um produtivo instrumento de análise de manifestações

culturais,dentreasquaisinclui-seaproduçãoliteráriaeorealismomágico,emrelação

àsforçassociaisehistóricasquecompõemolegadocolonialemqueestãoinseridas.

Apesquisadorapropõeque,emsuma,opós-colonialismoserefereàatitudepolíticae

social que se opõe ao poder colonial e ao estatuto específico de nações que

conquistaramaindependênciadeumoutroestadoimperial.Comotermocrítico,ainda

épassíveldedebateevariadasinterpretações.Naliteratura,aescritapós-colonialpode

fornecer uma forma de reconsideração da identidade de uma nação após sua

independênciadocentrocolonial,bemcomoummododeexpressaroposiçãoàsideias

instauradaspelocolonialismo.

Emrelaçãoaolegadocolonial,estenãoincluiapenasaimposiçãododomíniodeuma

naçãosobreoutra,comotambémenglobatodotipodetentativademudaracultura,a

línguaeocomportamentodepovoscolonizadosparaadequá-losàsatitudesculturaise

normas do poder colonial.Na prática, isso ocorre quandoo colonizador impõeuma

identidadeculturalehistóricahomogêneaaocolonizado,definindoopovocolonizado

somenteapartirdaperspectivadocolonizador.Poroutrolado,osestudospós-coloniais

reconhecemqueocolonialismoeopós-colonialismosãoformasdediscurso,umaforma

deexpressãopolíticaesocialmentedeterminada.

Como exemplo de uma abordagem teórica pós-colonial sobre o realismomágico de

determinados povos ou nações, McLeod (2000) propõe que o pós-colonialismo

reconhecetantooaspectodecontinuidadequandodemudançadahistória;aomesmo

tempo em que reconhece que os modos de representação coloniais ainda estão

presentes,mesmoapósadescolonização,tambémsuscitaumadefinitivanecessidade

de mudança – aspecto refletido no realismo mágico pós-colonial. Embora muitos

autoresligadosaesseperíodonãoabordemaquestãodolegadocolonialdiretamente,

suas obras frequentemente refletem a existência dessas forças sociais e modos de

representação–efrequentementeutilizamacoexistênciaparadoxaldorealedomágico

paracolocá-losemdúvida.ZamoraeFarisenfatizamqueorealismomágicoéummodo

adequadoàexploraçãoetransgressãodefronteiras,sejamelasontológicas,políticas,

geográficasouentregêneros.

Page 32: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

28

Apesardesuautilidadecomoescopoteóricoparaanálisedetextosderealismomágico,

osestudospós-coloniais,tradicionalmenteligadosacírculosteóricosanglófonos,não

reconhecemnaAméricaLatina—enoBrasil—naçõesverdadeiramentepós-coloniais,

apesardeseuinegávelcaráterdeex-colônias.Contudo,determinadasmetodologiasou

abordagenspropostasnessecampopodemprovar-sede interesse,casoadaptadasà

realidadehistóricadopaís, para a análisedo realismomágicobrasileiro e/ou latino-

americano,umavezqueexplicitamcertosmecanismoserelaçõesdepoder(entreeixos

como Ocidente/Oriente, Norte/Sul ou primeiro mundo/terceiro mundo) também

cruciaisnaAméricaLatina.

Autores comoCarpentier, queenfatizamo realmaravilhosocomoessênciaúnicada

América Latina, frequentemente utilizam mitos nacionais, elementos de culturas

indígenas e a tradiçãooral folclórica para embasar o componente “mágico” de suas

narrativas,enquantoolado“realista”tendeaserembasadoemnoçõesde“realidade”

advindasdeumatradiçãoeuropeiailuminista.Contudo,paraumaanálisepós-colonial

dessasobras,éimportanteconsiderarseaassociaçãoimediatadacomponente‘mágico’

às culturas indígenas e não-europeias e consequente associação da componente

‘realista’,mais‘racional’ou‘lógica’,aumaperspectivailuministaeuropeia,nãopoderia

serentendida,porsisó,comoumaperspectivacolonialista,dependentedeconcepções

coloniaisderealidadeemagia—questãoqueaindademandaaprofundamentoteórico

ediscussão.

Certo é que, na América Latina, o legado cultural do período colonial ibérico fez-se

presentenasmaisdiversasesferasdasociedadeemtodooséculoXX,eperdurasob

diversasformasatéhoje,comoodomíniolinguísticodoespanholedoportuguêsede

referênciasculturaiseurocêntricasnocontinente,bemcomoasituaçãomarginaldas

populaçõesindígenas/nativas,olegadoescravistaeconsequentestensõesraciais.Esses

eoutros fatorestornamesseterritóriogeopolíticosolo fértilparaaproduçãodeum

realismomágicoquereflete,naformaenoconteúdo,opesodetaisquestões—mesmo

que não se encaixem no molde tradicional dos estudos propostos para as nações

Page 33: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

29

“verdadeiramente”pós-coloniais.Conformeserádiscutidoemcapítulosposteriores,no

Brasil.2

Em termos de discussões teóricas em torno do realismo mágico pós-colonial, uma

abordagemrelevanteépropostaemMagicalrealismaspostcolonialdiscourse(1988),

deautoriadocríticocanadenseStephenSlemon.Naobra,oautorexplicaqueorealismo

mágicoopera frequentementeemculturas situadasàsmargensda tradição literária,

comonaAméricaLatina,onde,naspalavrasdoautor,“adenominação'realismomágico'

significaumtipodesingularidadeoudiferençaemrelaçãoàculturadominante[...]e

istodáaotermoumaideiadeautoridadecultural,mesmoquenãosejateoricamente

sólido".

Baseadoempostuladospós-modernosenas teoriasdodiscursodeMikhail Bakhtin,

Slemonpropõequeorealismomágicocontémtrêselementosprincipaisderelevância

paraumaanálisequeconsideraopapeldolegadocolonialnaproduçãodessasobras.

Dentreasdiferentesabordagensqueserãoutilizadasnopresentetrabalhodepesquisa,

propõe-se uma extensão da análise de Slemon para determinadas narrativas do

realismomágicobrasileiro,conformeserádiscutidonoCapítulo3.

Emprimeiro lugar,devidoàdualidadedesuaestruturanarrativa,o realismomágico

podeapresentarocontextopós-colonialapartirdaperspectivadopovocolonizadoe

de seus colonizadores por meio dessa estrutura narrativa e dos temas tratados.

Segundo,estemodonarrativoécapazderevelarastensõeselacunasderepresentação

consequentesdestecontextopós-colonial.Terceiro,aorecuperarvozessuprimidase

visõeshistóricasrejeitadaspelopodercolonial,orealismomágicoforneceumaforma

dereduçãodessaslacunasderepresentaçãoculturalnopós-colonialismo.

Com base em Bakhtin, Slemon explica que as narrativas pertencentes ao realismo

mágicocarregamdoisdiscursoscomdiferentesperspectivas–omágicoeoreal–,que

estãoemconstante tensãoeoposição.Estaestrutura,emumcontextopós-colonial,

2Taiscaracterísticasmostrar-se-ãomaispresentesnasobradeJoséJ.VeigadoquenoscontosdeMuriloRubião.

Page 34: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

30

seriareflexodatensãoentreosdiscursosdocolonizadoredocolonizado,refletidosna

própriaestruturanarrativa.ParaSlemon,asobrasderealismomágicorecapitulamum

relatopós-colonialdasrelaçõeshistóricasesociaisdaculturaemqueestãoinseridas.

Poroutrolado,atensãoentreosdoissistemassignificaquehá‘lacunas’nasnarrativas

mágico-realistas,quepodemserentendidascomo‘negativas’(refletindoadificuldade

deexpressãoculturaldoscolonizadosfaceaopodercolonial)ou‘positivas’(passíveisde

mitigaçãopelaexpressãodeperspectivasalternativasàquelasdocentrocolonial).

Slemonpropõeaindaquearepresentaçãodessasrelaçõessociaispodeserencontrada

nalinguagemnarrativadostextoseemsuaestruturatemática.Norealismomágico,o

autorpropõequeistopodeocorrerdetrêsformasdistintas,masrelacionadas.

Oprimeironívelenvolvearepresentaçãodeumaespéciedetransformaçãoregional,de

formaqueoespaçodanarrativa,apesardedescritoemtermosquotidianosefamiliares,

é metonímico da própria cultura pós-colonial como um todo. O segundo nível é a

compressãodahistória,deformaqueotempodanarrativacontenha,metaforicamente,

olongoprocessodecolonizaçãoesuasconsequências.Jáaterceiramanifestaçãoseriam

as lacunas, ausências e silêncios produzidos pelo encontro colonial e refletidos na

linguagemnarrativa disjuntiva dessas obras. Neste nível, o realismomágico tende a

mostrar-sepreocupadocomimagensdefronteirasecentros,eoperaparadesestabilizar

suafixidade.

Slemon enfatiza também que a constrição binária é um elemento recorrente das

narrativasmágico-realistas, refletindo a dialética presente em culturas pós-coloniais

entreoscódigosherdadosdaordemimperialeasimaginadas"relaçõesoriginais"que

sebuscarecuperar,pormeiodaliteraturaedasartes,nopós-colonialismo.Refletindo

as oposições binárias colonizador/colonizado, ou colonos/populações indígenas,

escravos/escravistas,Norte/Sul,Primeiro/TerceiroMundoeoutrasdualidadescentrais

àquestãocolonial,asnarrativasmágico-realistasfrequentementeempregamimagens

deespelhos,reflexoseopostosemconflito.

Embora a análise de Slemon, como é comum nos estudos pós-coloniais, de origem

anglófona, seja centrada nos autores canadenses Jack Hodgins e Robert Kroetsch,

Page 35: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

31

propor-se-áaquiquesuaanálisepodeserumadasmúltiplasabordagensdorealismo

mágicobrasileiro,conformeserádiscutidonocapítulo3.

Page 36: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

32

2. Contextohistóricodorealismomágicobrasileiro

Avalorizaçãointernacionaldorealismomágicolatino-americanocentradaemautores

comoocolombianoGabrielGarcíaMárquez,achilenaIsabelAllendeeoargentinoJulio

Cortázarfrequentementeignoraaproduçãodomaiorpaís(tantoemtermosgeográficos

como populacionais) desse amplo território geopolítico: o Brasil. De fato, devido à

errônearelaçãoatribuídaemcírculosinternacionaisentreaAméricaLatinaealíngua

espanhola,resquíciodacolonizaçãodediversasnaçõesdocontinentepelaEspanha,o

Brasil,cujalínguaoficialédesdesuaconcepçãocomonaçãooportuguêsherdadode

Portugal,acabaporserignoradoatémesmocomopartedaAméricaLatinaemumduplo

processodemarginalização.

Independentementedessasupostarelaçãointrínsecaentreliteraturalatino-americana

ealínguaespanhola,fatoéqueoBrasilfoiecontinuaaserumimportantecentrode

produçãoculturalnaAméricaLatina,sobretudonaAméricadoSul,subcontinentedo

qualocupa48%doterritóriocontinental.Historicamente,abarreiralinguísticaentreo

Brasileseuspaísesvizinhos(menosseveradoqueasbarreirasexistentesnaEuropa,

devidoàmaior similaridadegramaticale léxicaentreoportuguêseoespanhol)não

bastou para impedir que a produção artística e cultural brasileira influenciasse

escritores,críticos,teóricoseartistasdeoutrospaíseslatino-americanos—evice-versa.

Cabe aqui ressaltar que, em certas discussões sobre a produção cultural e artística

brasileira (tanto do cânone da arte/literatura nacional quanto de artistas/autores

contemporâneos),éfrequentedeparar-secomaideiadequeoBrasilalcançoupouca

relevância internacional na área cultural (com exceção, talvez, apenas da música),

apesar da intensidade de sua produção e sua relevância demográfica e política no

continente.Pormotivosderecorteteórico,estapesquisanãopretendeaprofundar-se

namiríadedefatoressociais,culturais,históricosegeopolíticosquepoderiamexplicar

abaixanotoriedadeinternacionaldaliteraturabrasileira,paísquejamaisproduziuum

autorlaureadocomoPrêmioNobelououtrosímbolodereconhecimentoequivalente,

aocontráriodealgunsdeseusvizinhospróximos,decircunstânciascoloniaisehistóricas

empartesimilares.

Page 37: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

33

Contudo,neste contexto, nãoé surpresaquea ascensãodo realismomágico latino-

americanotambémtenhacontadocomaparticipaçãodeautoresbrasileiros,mesmo

que estes sejam menos reconhecidos em círculos internacionais como figuras

importantesdomovimentonaAméricaLatina.Emsíntese,quandosefaladerealismo

mágicobrasileiro, tende-sea falarprincipalmentededoisautores:oescritormineiro

MuriloRubiãoeogoianoJoséJ.Veiga.

A obra do contista Murilo Rubião consiste em apenas 33 contos, publicados em

diferentes coletâneas de 1947 a 1990. A sucintez de sua obra se deve ao notável

perfeccionismodoautor,conhecidopelaquantidadequaseexcessivaderevisõesque

realizouemseuscontosaolongodesucessivaspublicações.Emtermoscronológicos,é

relevanteadatadelançamentodeseuprimeirolivrodecontos,OEx-mágico:1947.

AcoletâneareúnecontoscomootitularOEx-MágicodaTabernaMinhota,emqueo

narrador,ummágicoquedescobreterpoderessobrenaturaisemumaapresentaçãona

epônimaTaberna,encontragrandesucessoprofissionalatéqueentraemdepressão,

masnãoconseguecometersuicídiopoisseuspodereso impedem.Passaa trabalhar

como funcionário público para morrer lentamente e seus poderes, aos poucos, o

abandonam.Condenadoàinfelicidade,terminaporlamentaraperdadashabilidades

mágicas que outrora repudiou. Carregado de elementos insólitos que, como é

costumeiro no realismomágico, são tratados com desconcertante naturalidade por

partedonarrador-protagonista,aobraprecedeemduasdécadasaprimeirapublicação

de Cien Años de Soledad, que alçaria o realismo mágico latino-americano à fama

internacional.

JoséJ.Veiga,porsuavez,éumescritorcujaestreiaocorremaistardiamente.J.Veiga

escreve de 1959, ano de sua estreia com a coletânea de contosOs Cavalinhos de

Platiplanto,atépoucoantesdesuamorte,em1997.Suabibliografia,maisextensaque

adeRubião,contatambémcomromances(comoAHoradosRuminanteseSombrasde

ReisBarbudos)enovelas (comoas trêsobrascontidasemDe JogoseFestas).Assim

comoemOEx-mágicodeRubião, alguns dos contos da coletâneaOsCavalinhos de

Platiplanto empregam claramente o modo narrativo do realismo mágico conforme

Page 38: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

34

discutidonocapítulo1,embora,comoserámostradoadiante,opróprioautorrelutasse

emaceitaressacaracterização.

EmAusinaatrásdomorro,achegadadeumpardemisteriososestrangeirosprecedea

ruínadavilaondemoraonarrador.Apósaconstruçãodeumaestranhausinaatrásdo

morro, cujo propósito os habitantes do vilarejo interiorano desconhecem, a

comunidade passa a ser assolada por fenômenos surreais, como o impossível

surgimentodemotociclistassanguináriosqueatropelamsempiedadequalquerumque

estejaàsuafrenteeasúbitaqueimaespontâneadediversashabitações.Anaturalidade

comquesãonarradosessesacontecimentos, cujoelementocentraléum fenômeno

inescapavelmente insólito, pode ser vista como demonstração de seu emprego das

técnicasdorealismomágico.

Emboranãodesfrutemdomesmo reconhecimento críticoemcírculos internacionais

queseuscontemporâneoshispanófonos,asituaçãotemporalegeográficadaprodução

dessesautoresos tornapartedo terceiroperíododo realismomágicoapontadopor

Bowers, a época da ascensão internacional do realismomágico latino-americano. É

importante apontar que, embora edições de suas obras estejam majoritariamente

restritas ao Brasil, os autores tiveram algumas traduções publicadas em língua

espanhola e inglesa, sem reedições contemporâneas. Da obra de J. Veiga, foram

publicadosSombras de reyes barbudos (1978), La hora de los rumiantes (1994),The

ThreeTrialsofManirema(1982)eMisplacedmachineandotherstories(1970);daobra

deRubião,Lacasadelgirasolrojoyotrosrelatos(1992)eEx-magicianandotherstories

(1984).Contudo,esseparecetersidoolimitedeseualcanceinternacional,eambosos

autoresestãoatualmenterestritosaopúblicolusófono.

2.1. Modernidadebrasileira

Para aprofundarmos a discussão aqui proposta do realismo mágico brasileiro

exemplificadonasobrasdeRubiãoeJ.Veiga,énecessáriopensarmosnoestatutodos

países latino-americanos, e do Brasil em particular, enquanto nações previamente

colonizadas, uma vez que, conforme alerta a pesquisadora Letícia Cesarino em seu

Page 39: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

35

artigoBrazilianpostcolonialityandSouth-Southcooperation:aviewfromanthropology

(2012),“nãoécomumencontrarotermopós-colonialassociadoàAméricaLatina,tanto

em círculos críticos como leigos, em especial em relação ao Brasil”, principalmente

devido à relação dos estudos pós-coloniais com círculos críticos anglófonos e/ou

distantesdaacademialatino-americana.

Paraaautora,aabordagemdasmodernidadesmúltiplasdeEisenstadtpodeoferecer

valiosaferramentadecompreensãodesseestatutodospaíseslatino-americanos,cuja

relaçãocolonialcomoOcidenteémaisantiga,comindependênciaconquistadahámais

tempodoqueoutrasex-colôniascomoa Índia.Cesarinopropõequeaprofundidade

histórica, portanto, é umelemento analítico importante para as reflexões acerca do

legadocolonialeseureflexonasmúltiplasculturasdaAméricaLatina.

Eisenstadt (2002) propõe que a abordagem das modernidades múltiplas permite a

compreensão do mundo contemporâneo como “uma história de constituição e

reconstituição contínua de umamultiplicidade de programas culturais”, distinguindo

modernidadedeocidentalização—ouseja,demonstrandocomoopadrãoocidental

(i.e.eurocêntrico)deModernidadenãoconstituiaúnicamodernidadeautêntica.

Essa ideia é colocada por teóricos como o sociólogo Renato Ortiz (2000) em

contrapartidaaoparadigmadamodernidadeincompleta,embasadoemumtradicional

corpusbibliográficoesociológicoquedefineamodernidadebrasileiraemtermosde

uma falta ou ausência identitária. O sociólogo Sérgio Tavolaro (2005) defende o

empregodaabordagemdasmodernidadesmúltiplascomoumaalternativaaessavisão

“incapaz de pensar em um Brasil contemporâneo como um exemplo completo de

modernidade”. Para o autor, a compreensão de que a modernidade é histórica,

contingente e multifacetada bastaria para dar fim à obsessão da intelectualidade

brasileiracomainautenticidadeemarginalidade.

Desde sua independência em 1822, as elites intelectuais e políticas do Brasil têm

enfrentadoodesafiodeconstruira identidadedeumanação-estado.Foio inícioda

República em1889 que trouxe o gênero dos chamadosensaios de interpretação do

Brasil,obrasquebuscavamapontarasingularidadedoBrasilenquantonaçãoaomesmo

Page 40: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

36

tempo em que constatavam os obstáculos para a construção de uma identidade

nacionalemtermosunitários.Sejamestesobstáculosverdadeirosounão,essasobras,

altamente influentes, certamenteauxiliaramamoldar seupróprioobjetodeestudo,

consolidandoaideiadeumanaçãoembuscapermanentedeumaidentidade.

Destanoçãodeumamodernidademarcadapelaausêncianascetambémofenômeno

dovira-latismo,ironicamentepostuladoporNelsonRodrigues,queseresumeemum

complexodeinferioridadenacional(cultural,políticaeeconômica),principalmenteem

relaçãoàEuropae,posteriormente,aosEstadosUnidosdaAmérica.

Adicionalmente, uma ideia central a essa modernidade particularmente brasileira

proposta nos ensaios de interpretação do Brasil é a noção de “Dois Brasis”,

tradicionalmenteassociadaàobradeJacquesLambert(1967),quemapeiaumadivisão

entreomodernoeotradicionalemdescontinuidadesespaciais(emumeixourbano-

ruralelitorâneo-interior),emqueasregiõessubdesenvolvidaseospovosdointerior

sãovistoscomoaversãopassadadeseusconterrâneostidoscomo“modernos”.

Essedualismoestáhistoricamenteligadoaolentoprocessodeocupaçãodointeriordo

país que, embora tenha se consolidado com o estabelecimento das fronteiras

contemporâneasdoBrasil,aindaresultaemgrandesesforçospolíticoseculturaispara

solucionarocenáriodísparentreSuleNorteelitoral/interior,fatodiretamenteligadoà

formação de uma identidade nacional. Conforme será discutido nos capítulos

posteriores,estadualidadeseencontrarefletidaemdiversasobrasdorealismomágico

brasileiro,narrativasemqueosprotagonistasseencontramsuspensosentreessesdois

Brasis,oruraleourbano,omodernoeoantecessor.

ApesardeestudoscomoodeLetíciaCesarino,oestatutodoBrasilenquantonaçãopós-

colonial ainda é debatido nos termos tradicionalmente associados aos estudos pós-

coloniais,umavezqueasprincipaisobrasdessecampoestãovoltadasanaçõescomum

históricocolonialbastantedistintodolatino-americanoebrasileiro.Paraapesquisadora

MaríaIñigoClavo,certosusosdateoriapós-colonialnoBrasilpodemfuncionarcomo

falsasequivalências,particularmentenousodenoçõescomplexascomoamestiçagem

naproduçãoartística.EmseuartigoIsBrazilapostcolonialistcountry?(2016),aautora

Page 41: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

37

enfatizaque,apesardeopaísatrairatençãointernacionaldevidoaosseusdiscursosde

hibridez racial e antropofagia, que desafiam paradigmas eurocêntricos, os círculos

acadêmicosbrasileirostendemadedicarpoucaatençãoàsabordagenspropostaspelos

estudospós-coloniais.

Embora o ato de referir-se ao Brasil enquanto nação pós-colonial nos moldes

tradicionalmentepropostospelateoriapós-colonialsejadiscutívelenãoformeocerne

daanálisepropostanestapesquisa,écertoquealiteraturabrasileiracontémdiversas

manifestaçõesdeseulegadoeurocêntricoecristão,fenômenosespecíficosligadosao

seu passado colonial e à busca por uma identidade política e artística nacional no

contextodesuaindependênciacomonação.

EssarelaçãomaisdifusadoBrasilcomseupassadocolonial,comparativamenteaoutras

nações,significaqueocampodosestudospós-coloniaispodenãoseromaisprodutivo

paraaanálisedeumrealismomágicoverdadeiramentebrasileiro,aocontráriodoque

ocorreempaísescomooCanadáea Índia, cujosexpoentesdo realismomágicosão

frequentementeestudadossobestaótica.Aoinvésdisso,propor-se-ánestapesquisa

umaabordagemalternativadamodernidadebrasileira, centradanas ideias expostas

neste item e em um dos principais textos fundadores da cultura brasileira

contemporânea,oManifestoAntropofágico.

2.2. OManifestoAntropofágicoeocontroledoimaginário

Nocontextodessamodernidademúltiplanaqualseencontravamosautores,artistas,

críticoseteóricosbrasileirosnaprimeirametadedoséculoXX,oManifestoAntropófago

(ou Manifesto Antropofágico) é talvez o mais radical exemplo de uma afirmação

identitária brasileira dentre as correntes modernistas de sua época. De fato, é

paradoxalmenteaindamaiseficazemsuapropostaaoafirmarqueaidentidadecultural

brasileiraestariaaindaemumprocessoformativo,propondotambémummétodopara

atingiresseobjetivo.

Escritoem1928pelopoetaOswalddeAndrade,emcolaboraçãocomaquelaqueera

então sua esposa, a célebre pintora modernista Tarsila do Amaral, o Manifesto

Page 42: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

38

Antropofágico foi inicialmente lidopublicamentenacasadeMáriodeAndradeeem

seguidapublicadonaRevistadeAntropofagia,fundadaporOswald,RaulBoppeAntônio

deAlcântaraMachado.Aoinvésdeconteradatadoanodepublicação,1928,aRevista

deAntropofagiafoipublicadacomadatade“Ano374dadeglutiçãodoBispoSardinha”,

sacerdoteportuguêsconhecidocomooprimeirobispodoBrasil,quefoidevoradopelos

índioscaetés,eventodescritoporSchwartzcomo"oprimeiroatocanibalísticofundador

danovaera"(Schwartz1998:62).

É certo que o Manifesto, como qualquer texto, não existe em um vácuo, mas é a

culminaçãodoModernismobrasileiroiniciadonaSemanadeArteModernade1922,da

qualOswalddeAndradefoiumafiguracentral.NocontextodoModernismoBrasileiro,

a Antropofagia (iniciada com a publicação doManifestoAntropófago e aRevista de

Antropofagia)éconsiderada,juntoaoConcretismo,omovimentodemaiorinfluênciae

impactoculturalnaproduçãoliteráriabrasileiradasdécadassubsequentes.Alémdisso,

oManifestoAntropófagodá continuidade aoManifestodaPoesia Pau-Brasil (1924),

tambémdeautoriadeOswalddeAndrade,queclamavapeloestabelecimentodeuma

poesiaverdadeiramentebrasileira,passíveldeapreciaçãocríticaepopularnoBrasile

em outras nações: "Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de

importação.EaPoesiaPau-Brasil,deexportação."

AssimilaridadesestilísticasetemáticasentreosdoisManifestossãoaparentesdesdea

leitura mais superficial dos textos, mas o Manifesto Antropófago revela-se como a

maturaçãodasideiaspreviamenteapresentadas.OswalddeAndradedáinícioaotexto

comacélebrepassagem:“Sóaantropofagianosune.Socialmente.Economicamente.

Filosoficamente.Únicaleidomundo.Expressãomascaradadetodososindividualismos,

detodososcoletivismos.Detodasasreligiões.Detodosostratadosdepaz.Tupi,ornot

tupithatisthequestion.”

Devido à ambiguidade dos postulados de Oswald de Andrade, definir e delimitar a

Antropofagia é uma tarefa complexa, comoexplicaAntonio Candido (1970): “[...] é

difícildizernoqueconsisteexatamenteaAntropofagia,queOswaldnuncaformulou,

embora tenha deixado elementos suficientes para vermos embaixo dos aforismos

algunsprincípiosvirtuais,queaintegramnumalinhaconstantedaliteraturabrasileira

Page 43: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

39

desdeaColônia”.AdrianoBitarãesNetto,emAntropofagiaoswaldiana:umreceituário

estéticoecientífico (2004), corroboraessadificuldade:“Sehá,naAntropofagia,uma

potênciametafóricaparaabordardimensões fundamentaisda culturabrasileira, são

conflituosos osmodos como se qualificam as linhasmestras de atuação, o grau de

validadeeacapacidadedesobrevivênciadeseuspostulados.”(Netto2004:1).Todavia,

mesmo tratando-se de um movimento complexo, Schwartz ressalta a contínua

relevânciadaAntropofagiaedoModernismobrasileirocomoumtodo:

SeocompararmosaorestantedosmovimentosdevanguardanaAméricaLatina,em

nenhumoutropaísencontramosaatualidadequeatéomomentotêmasexpressõesde

rupturaquecaracterizaramosanosvinte.Defato,atéhojeomodernismobrasileiroé

assunto candente,merecedor de debates, publicações, exposições e comemorações

aindaestreitamentevinculadasàsvanguardashistóricas.Umavigênciademaisdesete

décadas,capazdegeraratéosdiasdehojeumareflexãofecunda.(Schwartz1998:54).

EmAntropofagiaeControledoImaginário(2017),ocríticoliteráriobrasileiroLuizCosta

Limaanalisaarelaçãoentreomovimentoeossistemasdecontroledoimaginárioeda

produção cultural do Brasil por parte das forças dominantes, de origem europeia e

norte-americana.Paraoautor,abasedoManifestoéumaquestãoexistencialeseu

objetivoéencontrarumaformadeequilibraratradiçãoculturalherdadapeloBrasilde

seu legado colonial com a experiência de vida autenticamente brasileira. O jogo de

palavrascomafamosafraseshakespeariana—Tupiornottupi,thatisthequestion—

opera como a formulação central deste problema. Costa Lima explica também que,

devido ao tom por vezes humoroso do texto, “poder-se-ia supor que o Manifesto

Antropófago seria uma espécie de utopia rousseauísta regressiva. Mas seria

desentendê-lo”.Paraoteórico,oautordoManifestonãoapresentaessacrença“em

uma entidade primitiva, estável e indomável que teimosamente teria sobrevivido a

séculosdecolonização”.Explica:

Emvezdeumaarqueologiaassimestática, comumacamadaprimitivae indelévele

outramais superficial, formada pela herança do branco, Oswald enfatiza uma força

primitivaderesistênciaàdoutrinaçãopromovidapelocolonizador.Essacapacidadede

resistênciaseriaantesumtraçoculturaldoqueoprodutodealgumestoqueétnico.E,

Page 44: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

40

porisso,identificadaapenaspelomodocomoopera;pelocanibalismosimbólico.(Costa

Lima2017:2)

OcontextosociopolíticoemqueaAntropofagia—eoModernismoBrasileiroemGeral

—operamé,paraCostaLima,degranderelevânciaparaacompreensãodoteorpolítico

doManifesto.Antesdadécadade1920,períodocrucialparaasvanguardasartísticase

literárias brasileiras, o Brasil enquanto nação era definido por uma economia

fortemente agro-exportadora, comumaRepública pouco representativa dos anseios

populares,controladapelosgrandeslatifundiáriosemsuaaliançacomopodermilitar.

ApesardoquepropõeoManifestoAntropófagoeoManifestodaPoesiaPau-Brasil,a

produção de ambos os textos, e a realização da Semana de Arte Moderna que os

precedeu,foiconsequênciadacriseinternacionaldadécadade1920,que"estimulou

umavontadedemudança,quesetornouvisívelpolíticaeintelectualmenteem1922"

(CostaLima2017:3).Oteóricoresume:

Aantropofagiaéumaexperiênciacujoopostosignificariaacrençaemumlimpoemítico

conjuntodetraços,doqualavidapresentedeumpovohaveriadeserconstruída.De

suaparte,oManifestoseoriginadabuscade‘aexperiênciapessoalrenovada’,quese

fundariana incorporaçãodaalteridade.DeacordocomasmetasdoManifesto,essa

incorporaçãoagiriaaomesmotemponosplanospessoalesocial.(CostaLima2017:2)

Essa incorporação da alteridade é a síntese do processo de canibalismo consciente

propostoporOswalddeAndrade.Contudo,CostaLimaalertaparaaspossíveislacunas

dessaabordagem:“SeéverdadequeOswaldironizavaedesprezavaasvelhasfórmulas

queseconsideravamnecessáriasparaqueacivilizaçãochegasseaostrópicos[...]por

outroétambémevidentequeseucanibalismosimbólicoseencaravaasimesmocomo

odepositáriofieldosvaloresocidentais”(CostaLima2017:6).Talsuposiçãoimplicaria

que a vitalidade do corpo do Outro, conscientemente devorada pelo artista/autor

antropófago,seriaincorporadaaseudevorador,significando“atransformaçãodotabu

emtótem,i.e.,ametamorfosedosímbolodoexcludenteemincludente”(CostaLima

2017: 7). Apesar de esse processo implicar uma transformação, também significa

necessariamentequeosvaloresprévioscontinuamacircular,agorasobnovoinvólucro.

Emsuma,

Page 45: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

41

[...] oManifesto antropófago representa uma ruptura no processo de internalização

brasileira dos valores ocidentais, se bem que seja uma ruptura restrita.[...] Noutros

termos, a intuição oswaldiana consistia em declarar que a autonomia intelectual

brasileira (e latino-americana) implicava o diálogo entre uma capacidade local —

canibalizaroquequerqueaquichegasse—eoacervoocidental.Alémdisso,através

dessa canibalização, os valores ocidentais poderiam recuperar seu traço sensível,

perdidopeloabstracionismodarazãoiluminista.(CostaLima2017:7)

A abordagem de Costa Lima acerca da Antropofagia e sua definição de controle do

imagináriotemimplicaçõesdiretasparaaanálisedorealismomágicolatino-americano,

conforme argumenta Chanady (1995). Em The Territorialization of the Imaginary in

Latin-America: Self-Affirmation and Resistance to Metropolitan Paradigms, a autora

argumentaqueadiscussãopropostapelocríticopodeservirdepontodepartidapara

uma“reconsideração”emrelaçãoaorealismomágico,comênfasenoqueCostaLima

chamou de “escandalosa proibição” da ficção, i.e., “the systematic control of the

imaginarybythedictatesofarestrictiveconceptionofmimesisbasedonverisimilitude,

decorum, and imitation of consecrated masters and legitimated models” (Chanady

1995:125).

A pesquisadora também destaca a possibilidade de se considerar as influências da

literatura europeia (sobretudo de autores como Kafka na obra de escritores latino-

americanoscomoCortázar)sobreorealismomágico latino-americanosobaóticada

antropofagia, que recontextualiza o papel dessas influências não como forma de

dominação cultural, mas como afirmação de uma identidade territorial própria. As

consideraçõesdestecapítuloservirãodebaseparaaspropostasnocapítulo4,emque

o realismobrasileiro será consideradouma formade consolidação desses processos

antropofágicos centrais à produção cultural brasileira do século XX. Antes disso,

contudo,seránecessárioabordardiretamenteosobjetosdeestudo:asobrasdeRubião

eJ.Veiga.

Page 46: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

42

3. OrealismomágicoemMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga

Asobrasque formamoobjetoprincipaldeestudodesteprojetodepesquisa sãoos

contosescritospelosautoresbrasileirosMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga,frequentemente

apontados como os principais expoentes do realismo mágico no Brasil. Apesar de

precederemaascensãointernacionaldorealismomágicolatino-americano,RubiãoeJ.

Veigaevidentementenãosãoosprimeirosescritoresbrasileirosautilizaremomágico,

o extraordinário e o sobrenatural em suas narrativas. De fato, o cânone literário

nacional, já bastante estabelecido à época em que escreveram Rubião e J. Veiga,

recorre,deumaformaoudeoutra,adeterminadoselementosinsólitos,encontrando

grandeapreciaçãocríticaeporpartedopúblicodaépoca.

Adificuldadeemdefiniro realismomágiconoBrasiladvém,empartes,daconfusão

terminológica a respeito do termo, previamente discutida no capítulo 1. Além das

distinções traçadas naquele capítulo, cabe aqui aprofundarmos também as relações

entre o realismo mágico, o “fantástico clássico”, o fantástico contemporâneo e o

insólito. Garcia (2007) propõe que o insólito é uma categoria que “engloba eventos

ficcionaisqueacríticatemapontadooracomoextraordinários–paraalémdaordem–

oracomosobrenaturais–paraalémdonatural–equesãomarcasprópriasdegêneros

literários de longa tradição, a saber, o Maravilhoso, o Fantástico e o Realismo

Maravilhoso”.ParaMarinho,adiscussãosobreoinsólito"surgecomoumatentativade

se estabelecer fronteiras ou definições mais claras" entre fantástico, maravilhoso e

realismomágico:

Seoinsólitorepresentatudooqueérarodeacontecer,quesurpreendeoudecepciona

osensocomumouasexpectativascotidianas,poderíamos,então,considerarqueeles

estãopresentesemtodosostextosfantásticos,sejamelesdenominadosclássicosou

contemporâneos. No caso do fantástico clássico, o insólito se apresenta através da

hesitação gerada no leitor, que se questiona quanto à natureza dos eventos

sobrenaturais. [...] O insólito, diferentemente do fantástico clássico, não pretende

colocaroseventossobrenaturaisàprova.Neleoseventossãoincorporadosàrealidade

cotidianapelospersonagenseautomaticamentenaturalizados.(Marinho2010:3)

Page 47: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

43

Desta forma,aautoraaproximao insólitodoconceitodefantásticocontemporâneo

proposto por Sartre, manifestado a partir do século XX: “Para ele, esse seria um

desenvolvimentodofantásticotradicional,realizadonoséculoXIX,eteriaKafkacomo

granderepresentante”(Marinho2010:3).AassociaçãoaKafkaérecorrenteemcríticas

eanálisesdaobradeMuriloRubião,eporvezesdeJ.Veiga,apesardosautoresterem

rejeitado,emvida, tais associaçõesdiretasa influênciaseuropeiasespecíficas.Ainda

sobreoinsólito,Garcia(2011)elabora:

[...]entenda-seinsólitoporalgumelementodanarrativaquenãoseapresentademodo

coerentecomarealidadeexterior,universoracionaldo leitorreal,conformeosenso

comumestabelecidonoconvíviosocial.Essadúvidaéconsequentementetransmitida

ao leitor real,noatode leitura,que, juntoaosseresdepapel,hesitaentrepossíveis

explicações–decaráterônticoouontológico,físicooumetafísico,empíricooumeta-

empírico–paraoeventoinsólito.(Garcia2011:2)

Emrelaçãoàdefiniçãodefantástico,GarciacomparaospressupostosdeBessière(2009)

à teoria de Todorov, apontada pelo autor como redutora, propondo que tanto o

“fantástico clássico” (categorizadopor Todorov) quantoo fantástico contemporâneo

(categoriadifusa,discutidaporautorescomoSartreeBessière)fazemusodoinsólito:

AsteoriasdeTodorovedeBessièretêmemcomumoinsólito,porque,paraambos,é

necessáriaamanifestação,noplanonarrativo,dealgoquefujaàsregrasconvencionais

da racionalidade própria do senso comum quotidiano [...] e, consequentemente, a

incertezaquedissoresulta,tantoporpartedosseresdepapel,quantopeloleitorreal,

diantedaspossíveisexplicaçõesparaoeventoinsólito.Assim,airrupçãodoincomum,

doinesperado,doinaudito,ouseja,doinsólito,noníveldadiegese,eahesitaçãode

seresdepapeledeleitorrealfrenteàspossíveisexplicaçõesparaessa irrupção,seja

como produto da ambiguidade – conforme Todorov – ou da incerteza – conforme

Bessière–,sãoaspectoscomunsàsteoriasdosdoisestudiosos.(Garcia2011:3)

Bessièrepropõequeo fantástico “nãodefineumaqualidadeatualdeobjetosoude

seresexistentes,nemconstituiumacategoriaouumgêneroliterário,massupõeuma

lógicanarrativaqueétantoformalquantotemáticaeque,surpreendenteouarbitrária

paraoleitor,reflete,sobojogoaparentedainvençãopura,asmetamorfosesculturais

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44

darazãoedoimagináriocoletivo”(Bessière2009:186).ParaBessière,arenovaçãodo

fantástico“sedápelaretiradadofoconoselementostradicionaisdoinsólito(vampiros,

lobisomem, casa assombrada e outros elementos sobrenaturais) e o lança sobre os

temasprovenientesdoprópriomundodoshomens”(BessièreapudTurchi2005:149)

Inserido nessa categoria ampla do fantástico contemporâneo, o realismomágico é,

também,ummodonarrativoquefazusodoinsólito,questãocorroboradaporDantas

(2002),queapontaanarrativainsólitadoséculoXX(representadaporKafka)comoa

própriabasedorealismomágicolatinoamericano.Deespecialrelevânciaparaaanálise

dasobrasdeRubiãoeJ.Veigacomopertencentesaoâmbitodorealismomágicoseráo

usodoelemento insólito (denaturezaextraordinária,mágicae/ou sobrenatural) ea

materialidadeenaturalidadecomaqualé tratado, tanto internamente,nouniverso

narrativo.Propõe-se,assim,queosimplesusodoelementoinsólito(desassociadodessa

formaparticulardetratamentoqueorealismomágico lheconfere)nãobastaparaa

caracterizaçãodedeterminadasnarrativascomopertencentesaorealismomágico.

Um exemplo éMemórias Póstumas de Brás Cubas (1881), um dosmais conhecidos

romances de Machado de Assis, fundamental no cânone literário brasileiro, obra

narrada por uma voz improvável e altamente irônica: a do falecido protagonista, o

epônimoBrásCubas.Oromancedefatopareceassinalarapresençadeumelemento

sobrenatural nesse determinado universo narrativo, mas qualquer tentativa de

classificarMemórias Póstumas comoumexemplo de realismomágico demonstra-se

falha,tantodopontodevistadorealismomágicocomomodonarrativoquantodeum

movimentoliterárionacionaloutransnacional.Oelementosobrenatural(nosingular)

presenteemMemóriasPóstumasaproximaanarrativamachadianamaisaocômicoe

aofantásticodoséculoXIX,poisnãoháacaracterísticacoexistênciacontraditóriaentre

realidade e magia centrais às narrativas mágico-realistas. Pode-se estender essa

comparação a obras como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, romance

caracterizadopelopróprioautorcomo“rapsódia”,emqueousodoinsólitotambém

nãoocorredamaneiraanalisadanocapítulo1,masservecomoelementodevalorização

da cultura indígena, do conjunto de crenças mitológicas e de cunho religioso que

precedeuacolonizaçãoeuropeiadocontinente.

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45

Tambémoptou-sepornãoincluirnaanáliseobrasdeautoresquederamcontinuidade

ao realismomágico, como Incidente em Antares (1971) de Érico Veríssimo, escolha

justificadapelorecortetemporalproposto,capazdeoferecerumamelhorcompreensão

doquepodetercaracterizadoorealismomágicobrasileiroemsuaconcepçãoebuscar

ascaracterísticasfundadorasdessepossívelmovimentonopaís.

3.1. Ocontolatino-americano

OfocodasleituraspropostasnestecapítulosãooscontosdeRubiãoeJ.Veiga,umavez

que a bibliografia literária de Murilo Rubião consiste exclusivamente em contos.

Todavia,osromancesAHoradosRuminantes(1966)eSombrasdeReisBarbudos(1972)

serão abordados em parte da análise da obra de José J. Veiga, pois concretizam as

temáticasecaracterísticasestilísticasestabelecidaspeloautornoscontosdacoletânea

OsCavalinhosdePlatiplanto(1958).

Por isso, cabe adentrarmos em uma breve discussão acerca do conto como forma

literária, especificamentedosaspectosdo conto fantástico conformediscutidospelo

escritorargentinoJulioCortázaremAulasdeLiteraturaemBerkeley(1980)enosensaios

dacoletâneaValisedeCronópio(2004),bemcomoasideiasdeEdgarAllanPoeacerca

danaturezadocontoeseusprincipaisefeitossobreoleitor,expostasemThePhilosophy

ofComposition(1846).

Poe,emThePhilosophyofComposition,umdosprimeirostextosteóricosatratardo

contocontemporâneocomoforma literária,daqualoautor foiumdospioneirosno

continenteamericano,propõequetodaobraliteráriacausaumaexaltaçãodaalma–

êxtase esse que não pode, por natureza, ser sustentado por um tempo indefinido.

Portanto,paraqueumefeitomáximosejaexercidopeloautorsobreos leitores,um

textonãopodeexcederumcertolimite,fornecendoumaleituraininterruptanaqualo

autoratingiriaumcontrolesupostamenteabsolutodassensaçõesdoleitor.Paracausar

oquePoechamadeexcitaçãodaalma,énecessárioqueoautortenhaumefeitoem

mente.ÉporessarazãoquePoeenfatizaaimportânciado“desfecho”ou“desenlace”

naproduçãodeum conto literário. Para o autor, todosos demais aspectos daobra

Page 50: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

46

(enredo, personagens, tempo, espaço, tema) devem ser construídos ao redor do

desenlace comoefeitodesejadoemvista. Para combinar a “unidadedeefeito”e a

“duração”¸oprocessocriativodoautordeveserigualmentemetódico,analíticoe/ou

calculista.Poeexaltaoconto(shortstory)comoaformamáximadaprosa,declarando-

oartisticamentesuperioraoromance(novel).

EmAulasdeLiteratura,Cortázarabordaadistinçãoentrecontoeromancedeforma

poucoconvencional,masbastanteeficaz.Oautorexplicaque“oscontosnuncasãoou

quase nunca são problemáticos: para os problemas, existem os romances, que os

colocamequeprocurammuitasvezesresolvê-los”(Cortázar1980:22).ParaCortázar,o

contoéumamanipulaçãodeumgrupodeelementosomaisreduzidopossível,tanto

por razões técnicas (limitaçãodaextensãodo corpodo texto)quantopor razõesde

efeito:emumconto,“háforçosamenteumaconcentraçãodepersonagens,comohá

igualmente uma concentração de muitas outras coisas” (Cortázar 1980: 23). Ainda,

Cortázardiscuteoquedefinecomoa“esfericidade” inerenteàestruturadoscontos

literários:

Umromancenãomedaránuncaa ideiadeumaesfera;podedar-mea ideiadeum

poliedro, de uma enorme estrutura. Em contrapartida, o conto tende, por

autodefinição, à esfericidade, a fechar-se, é aqui que podemos fazer uma dupla

comparação,pensandotambémnocinemaenafotografia:cinemaseriaoromanceea

fotografia,oconto.(Cortázar1980:32)

Cortázaratribuiessaesfericidadeà “obrigação interna, arquitetônica”queos contos

possuemdenãoficaremabertos,“fechando-secomoaesferaeconservandoaomesmo

tempoumaespéciedevibraçãoqueprojetacoisasparaforadesimesmo”,destacando

nesseprocessoas ideiasde“intensidade”e“tensão”, consideradaspeloautorcomo

centrais à definiçãode conto como forma literária. EmAulas de Literatura,Cortázar

discutea importânciadapropostadePoeparaosestudosdocontocontemporâneo,

masretiraofocoquaseexclusivodoautornorte-americanono“deselance”epropõeas

noçõesde“esfericidade”,“tensão”e“intensidade”comocaracterísticasdeumconto

literárioeficazmenteestruturado.Adicionalmente,aanálisedeCortázartemcomofoco

Page 51: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

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específicoocontodenaturezafantástica,bemcomoanotávelimportânciadocontona

produçãoliterárialatino-americana.

CortázarchamaatençãoparaofatodequeocontoliterárionaAméricaLatinaéuma

formaliteráriaque“chegoumuitocedo,estranhamentecedo,àmaturidade”(Cortázar

1980:46),ressaltandoque“háoutrasculturasparaasquaisocontonãotemomesmo

significado.”Paraoautor,o romancemantémumaposição importanteno território

latino-americano,masoconto“ocupaumaposiçãodeprimeiraordem”:

[...]comodecorrerdotempo,oscontosvãofazendopoucoapoucoasuaapariçãoem

todosospaíseslatino-americanos[...]queprolongamascorrentesestéticasquenessa

Época vinham fundamentalmente da Europa, de modo que, quando o Romantismo

avançacomoumaespéciedeenormeenxurradanaAméricaLatina,escrevem-semuitos

contosdecaráterromântico,masostemassãojálatino-americanos[...](Cortázar1980:

47)

Sobreoporquêdessaproeminência,quesupõeseratípicadocontonaAméricaLatina,

Cortázarforneceumapossívelexplicação:algunsteóricosdefenderamquealiteratura

latino-americanateriaentradonamodernidade“semter todaessacarga–queéao

mesmotempoumasegurança–deumlentopassadoedeumalentaevolução,como

têmtodasasliteraturaseuropeias”(Cortázar1980:47).Oautoratribuiaesseprocesso

históricoumaideiadefusãoouaglutinaçãodascorrentesprovenientesdoexteriorà

cultura própria da América Latina, em um processo que poderia ser descrito como

análogoàantropofagiadeOswalddeAndrade:

De repente, [os escritores latino-americanos] deram por si a lidar com uma cultura

moderna e com uma língua que se prestava a todas as possibilidades expressivas,

sentindo-seaumtempoumtantodesvinculadosdeumaculturamaisdesenvolvidae

coerente e tendo de se valer fundamentalmente das influências das correntes que

vinhamdo exterior, que nunca são iguais à cultura própria de uma raça ou de uma

civilização.(Cortázar1980:48)

Combasenesseprocessoessencialmenteantropofágico,Cortázaracabaporrejeitara

associaçãoentreaimportânciadocontonaAméricaLatinaeasupostaaproximaçãodos

Page 52: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

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escritores latino-americanos com uma tradição primordial indígena, mais próxima à

literaturaoralouaosprimórdiosdaescrita.Pararefutaressahipótese,demonstraque

hápaíseslatino-americanos(Argentina/Uruguai)emquecontistasdegrandesucessoe

renomenão têmqualquer alicerceemculturas indígenas, comoocorre tambémnas

obrasdeMuriloRubiãoeJ.Veiga,escritoresqueprescindemdesseselementosemsua

construçãodeumrealismomágiconacional.Cortázarterminaporressaltarquenãohá

qualquer teoria que explique de forma satisfatória o fenômeno do conto latino-

americano.

As noções cortazarianas de “esfericidade”, “tensão” e “intensidade” encontrar-se-ão

presentesemdiferentesníveisnoscontosdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga,bemcomo

(emmenor grau) algumas das propostas de Poe acerca de “duração”, “unidade de

efeito”e“desenlace”.Porsuavez,ocontextodealtarelevânciadocontoliteráriona

AméricaLatinadiscutidoatéaquipodejustificaraescolhadosautoresporpriorizaressa

forma literária, conforme será discutido separadamente nos próximos itens deste

capítulo.

3.2. OuniversoficcionaldeMuriloRubião

Os33contosquecompõemaobradoescritormineiroMuriloRubião,reunidosemObra

Completa(2016),forampublicadosemseiscoletâneas:Oex-mágico(1947),Aestrela

vermelha (1953),Osdragõeseoutroscontos (1965),OpirotécnicoZacarias (1974),O

convidado(1974)eAcasadogirassolvermelho(1978).Ocontistaéconhecidoporsua

quaseobsessivaformadeprodução:muitosdoscontospresentesnoslivrosposteriores

sãomodificaçõeseatualizaçõesdecontosantigos,refletindooperfeccionismoquase

obsessivodoescritoremrelaçãoàexatidãodesuaprosaedoefeitoquebuscavatecer.

Na tesededoutoradoOuniverso fantásticodeMuriloRubiãoà luzdahermenêutica

simbólica(2004),apesquisadoraSuzanaCánovasdesenvolveumextensotrabalhoque

traçaopercursodoautordesdeosprimórdiosdesuaescrita,épocaemquetrocava

correspondênciascomopoetaMáriodeAndrade,umdosprimeirosreceptoresdaobra

deRubião(quefaleceriaantesdapublicaçãodeOEx-Mágico).Areaçãodopoetaaos

Page 53: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

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contosenviadosporRubiãorefletiriaaconfusãoqueacríticaexpressariaemrelaçãoà

classificaçãodoscontosdoautormineiro:

[...]MáriodeAndrade ficara sem saber comodenominar as narrativasdeRubião—

"surrealismo", "simbolismo", "liberdade subconsciente', "alegorismo" — e acabou

designando-as por "fantasia". Os autores que presenciam a estréia de Rubião dão

prosseguimento à dúvida de Andrade e ensaiam também uma série de termos —

"fantástico", "fantasia", "impressionismo", "supra-realismo", "surrealismo" etc.,

havendoumacertarecorrênciaaesteúltimo.Esteéummomentodeperplexidadeem

que os críticos reconhecem que o autor estabelece uma ruptura com a tradição

narrativabrasileira,transcendendoossimplesmodelosdeescolaousuperandopadrões

estéticosestabelecidos.(Cánovas2004:20)

A associaçãodo realismomágicoao Surrealismoé frequenteemestudos críticosdo

realismomágicoemumaépocaprecedenteàpopularizaçãodeautorescomoGarcía

Márquez, que suscitou análises mais aprofundadas dos textos mágico-realistas e

forneceuumadistinçãomaisefetivaentreosdoistermos(videitem1.5).Ressaltando

essaperplexidadeemrelaçãoàentãoestreanteobradeRubião,críticoscomoAlmeida

FischerrejeitamsuaaproximaçãocomorealismomágicoqueassociamaJ.Veiga,pois

aapariçãodoinsólitonoscontosdeRubiãoocorredeforma"nãoconstruídaemtermos

detransmutaçãoliterária,massimapresentadacomoabsurdomesmo,queviolatodas

asregrasdopossível"(FischerapudCánovas2004:52).LuizCoelhoLana,emOsjogos

deMuriloRubião:linguagem,estéticadoefeitoemodernidade(2015),explicaque"O

quemaissepostuloudesdeapublicaçãodeOex-mágico,primeirolivrodoautor,em

1947,éofatodeMuriloseroprecursordogênerofantásticonaliteraturanacional.Isso

podeserobservadopelaincapacidadedasprimeirascríticasemdefinirogênerodeseus

contos"(Lana2015:7).

Em contrapartida ao argumento de Fischer, e de outros críticos de sua época que

buscaramafastarRubiãodorealismomágico,opresentetrabalhodepesquisapretende

oferecerumaconcepçãoacercadorealismomágicobrasileiroquepermitanãoapenas

aproximarRubiãodeJ.Veiga,mastambémdeanalisaraobradocontistamineirosoba

óticadorealismomágicoconformediscutidopelosautoresapresentadosnoprimeiro

Page 54: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

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capítulo.AanálisedeMarinho(2010)sobreairrupçãodoinsólitonoscontosdeRubião

vaideencontroaessadefiniçãoderealismomágico:

Dentro dessa perspectiva, o insólito ocorre em um universo familiar, cotidiano,

revestidodenaturalidadepararealçareprovocaroreal.Essecotidianoéabaladopor

um acontecimento desconhecido, sobrenatural, que provoca a subversão da ordem

através de um comportamento ou situação “estranha”. Essa situação, contudo, não

provoca dúvidas no leitor ou nos personagens, ao contrário, é aceito como normal,

mesmoquecontrariearealidadeinternaeexternaaotexto.(Marinho2010:11)

Reunidos,os33contosdeRubião,publicadosemdiferentesépocas,formamumtodo

quesearticulahabilmenteentresuaspartes.Emtermosestilísticos,aprosadoautor

permanecepraticamenteinalteradaaolongodesuaobra,graçasàsextensasrevisões

que fezemsuacarreira,dandoaoconjunto finaldecontosumacoesãoatípicapara

textosescritosemdécadastãodistintas.

O léxico empregado por Rubião é de simples apreensão e sua prosa recusa floreios

estilísticos, buscando uma precisão não distinta daquela que Poe teorizou como

essencialparaocontoliterário.Talvezoaspectomaisatípicodovocabulárioempregado

pelocontistamineirosejaonomedediversaspersonagens:enquantoalgunscarregam

nomestipicamentebrasileiros,comoBárbara,CrisePedro Inácio,outrostêmnomes

mais exóticos, que frequentemente remetem ao grego, como Gérion, Galateu e

Galimene. Paradoxalmente, os contos de Rubião parecem, assim, ter como espaço

cenários tipicamente brasileiros, mas não é possível estabelecer uma localização

geográficaespecíficaparanenhumadesuasnarrativas,queparecemocorreremum

universopropriamentemuriliano.

Ricamente povoados de personagens e figuras mágicas de grande complexidade

psicológica,oscontosdeRubiãoestabelecemumamitologiaautoral,mascujasraízes

podemsertraçadasemalgunsmitosclássicos.Cánovasdestaca"imagensnouniverso

de Rubião que projetam figuras constitutivas de mitos que, por sua recorrência,

constituem seusmitos pessoais", ressaltando quatro dos "mitos pessoais" do autor:

Hermes, Sísifo, Proteu eMedusa, bem como a recorrência das "imagensmíticas do

uroboroedolabirinto"(Cánovas2004:124).

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DeespecialrelevânciaparaacompreensãodamitologiamurilianasãoomitodeSísifo

e a imagemdouroboro, a serpente cósmicaquedevora aprópria caudaemeterna

alternânciaentreprincípioefim.EmMuriloRubião:Apoéticadouroboro(1981),Jorge

Schwartz define o que chamade “homemuroboro” como figura central da obra de

Murilo Rubião. Conforme explica Cánovas, "O homem que está consciente da sua

finitude,quepermanecepresoaomovimentodavidaedamorte,éohomemuroboro.

NouniversodeRubião,aspersonagensestãoencerradasnumciclodevidaemorte,em

quesãoexecutadosatossemsentido,dosquaisnãopodemescapar"(Cánovas2004:

130).OhomemuroboroécomparadoaSísifo,oeternocondenadodamitologiagrega,

perpetuamente preso por Zeus no sombrio mundo do Tártaro, onde é forçado a

empurrarumaenormerochaaoaltodeumamontanha—umesforço infinitamente

fútil,poisapedrasempreacabaporrolaratéopédodeclive.

OsprotagonistasdeRubião(todoshomens,semexceção)frequentementeencarnamo

sofrimento de Sísifo, condenados (sempre pela aparição dos elementos mágicos) a

repetirem futilmente ciclos sucessivos dos quais parece que jamais encontrarão

escapatória.Estefatolevoudiversoscríticos,inclusiveSchwartz,atratarRubiãocomo

um autor do Absurdo, aproximando-o da filosofia de Camus (e doMito de Sísifo

conformeexploradopeloautor).Sísifoeohomemuroboroseriamrepresentaçõesdo

Absurdo,ouseja,doconflitoentreatendênciahumanadebuscarumsentidoouum

conjunto de valores inerentes à vida e à existência em um universo que carece

absolutamente de sentido pré-estabelecido. De fato, Schwartz propõe que o

protagonistadeRubiãonuncapoderiaserimaginadocomoum"Sísifofeliz",pois"elese

mostra duplamente trágico, pois sua condição absurda não é superável através da

lucidez. Esta é, ao contrário, o meio pelo qual a personagem se desarticula,

irrecuperavelmente,doseucontexto"(SchwartzapudCánovas2004:128).

EmOAbsurdodaexistênciaemMuriloRubião(2019),GuilhermeSardasapontaque"Em

setedécadasdecrítica,osentidoexistencialdaobradeMuriloRubiãofoiabordadopor

muitos pesquisadores que recorreram às ideias da filosofia da existência ou

existencialismo,comoasdeAlbertCamusedeJean-PaulSartre[...]”,citandoCastelo

Branco (1944): “A impressãoque se tem,diantede todosospersonagensdeMurilo

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Rubião,édequeelesseperderamnumdeserto,ondeperambulamsemrumoesem

destino. Forças metafísicas se incumbem de desviá-los constantemente das rotas

salvadoras,condenando-ossempreacumpriromesmodestino”.

A literatura deRubião também já foi classificada comouma literatura donão-senso

(não-significado),comoofazPercinoemMuriloRubião:abárbaraporcelana:“Onão-

sensoéumapossibilidade,porassimdizer,‘transgenérica’––aindaqueporvezespossa

ser decidido em melhores circunstâncias no que se convencionou chamar

genericamente 'literatura nonsense', 'literatura do absurdo' e mesmo 'literatura

fantástica'"(Percino2014:1).Paraoautor,

[...]emMuriloRubiãoseencontraalgocondizentecomoníveldaexperiência:olaçoda

fantasiacomaqueleespaço inefáveldaprópria fantasia, insistente, subsistente;uma

espéciedefantasia"quântica",quesefaznosimultâneo,noincerto,noaleatório,no

acaso,noimpensável.Talfantasiapirotécnicapodeserdecididacomonão-senso(não-

significado), definido aqui, logo, não como "absurdo" ou "ilógico”, mas como algo

intangível[...](Percino2014:9)

Curiosamente, a própria escrita de Rubião, quase excessivamente revisada e

reapresentadaemsucessivasedições,remeteaessamesmaideiadeumciclodoqualo

autornãoescapa,tornando-seelepróprioaespéciedehomemurobororepresentada

porseusheróiseprotagonistastrágicos.Todavia,conformeressaltaCánovas,aobrade

Rubiãonãoconsisteapenasemfragmentoscíclicos,masparececonstituirumtodoalém

dasomadesuaspartes,fatorrealçadopelousodasepígrafes:todosos33contossão

precedidosdeexcertosbíblicosdiretamenterelacionadosàsnarrativasqueosseguem

emmenoroumaiorgrau.

Oatodereescreverasmesmasnarrativasconsistenumpercursoinfinitoquenãoavança

(ouavançamuitolentamente),masgirasempreemtornodesimesmo.Ousoconstante

das epígrafes bíblicas, porém, leva-nos a pensar que as citações das Escrituras

constituem-senumaescritamaior—conectadaaouno–cujoobjetivoé(des)velaro

sentidoúltimodoscontosdeRubião,queseconstituemnumaescritamenor.(Cánovas

2004:131)

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Nestesentido,aobradeRubiãopareceencaixar-senaideiapropostaporThiem(Thiem

1995:243),jádiscutidaanteriormente,dequealiteraturapós-modernaé"duplamente

codificada". Para construir essa obra multifacetada e que possibilita releituras

sucessivasemgrauscadavezmaioresdeaprofundamento,Rubiãopareceteroptado

definitivamente pelo conto como sua forma literária pessoal, possivelmente pelas

qualidadesinerentesaocontoliteráriolistadasporPoeeCortázar:intensidade,tensão,

esfericidadeeapossibilidadedemanipularumnúmero reduzidodeelementospara

produzirummáximoefeitosobreoleitor,assimrefletindoatradiçãoparticulardoconto

naAméricaLatinaesuavalorizaçãocomoforma literáriadealtoníveldeapreciação

críticaedegrandeaceitaçãopública.

As análises a seguir terão como foco características identificadas por essa pesquisa

comoessenciaisaorealismomágicodeMuriloRubião—nomeadamente,osmitosde

SísifoedoUroboroesuarelaçãocomoAbsurdo;asdiferentesatitudessuscitadaspelo

elemento fantástico;o fantásticocomoexamedaalteridade;eo labirintodoespaço

urbanocomofontedeangústiaexistencial.Ostemaseimagensaquitratadosnãose

limitamexclusivamenteaoscontosselecionados,masrepercutemportodaaobrade

MuriloRubião.Todavia,parafinsdepraticidadeanalítica,orecortepropostoanalisará

os seguintes contos,que incluemalgunsdosmaisestudadose conhecidos textosdo

autor:Oex-mágicodaTabernaMinhota;Osdragões;Teleco,ocoelhinho;Ohomemdo

bonécinzento;Afila;Oedifício;eObloqueio.

.

3.2.1. Introduçãoàobramuriliana:Oex-mágicodaTabernaMinhotaeoAbsurdo

doquotidiano

Oex-mágicodaTabernaMinhotaéocontoquedánomeàprimeiracoletâneapublicada

porRubião,OEx-Mágico(1947),cujaestréiasedáapenastrêsanosapósapublicação

deFicciones,deJorgeLuisBorges(1944).Situa-se,portanto,emummomentoprévioà

publicaçãode importantesobrasdo realismomágico latino-americano (CienAñosde

Soledad)eestáinseridoemumcontextovanguardista,dealtaexperimentaçãoliterária,

caracterizadopelasobrasdeautoresdaincipienteliteraturapós-moderna(cujarelação

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comorealismomágicofoidiscutidaanteriormente).Naobramuriliana,contoscomoO

ex-mágicodaTabernaMinhota,alémdenarrativasemquerealidadeemagiacoexistem

de forma intrínseca e inseparável, também foram frequentemente considerados

narrativasdoAbsurdo,especialmentedoAbsurdoligadoàexperiênciaquotidiana.

O conto, narrado em primeira pessoa, expressa desde o início o desgosto do

protagonistaemrelaçãoaoscaminhosdesuavida:"Hojesoufuncionáriopúblicoeeste

nãoéomeudesconsolomaior",anunciaonarrador.Odesgostopelaprópriaexistência

érefletidonaepígrafedoconto:Inclina,Senhor,oteuouvido,eouve-me;porqueeusou

desvalidoepobre(Salmos,LXXXV,1).Onarradorpassa,então,arelatarosurgimento

de suas impossíveis habilidades comomágico. Rubião associa a irrupçãodamagia à

proximidadecadavezmaiordaMorte:"Umdiadeicomosmeuscabelosligeiramente

grisalhos,noespelhodaTabernaMinhota.Adescobertanãomeespantouetampouco

mesurpreendiaoretirardobolsoodonodorestaurante”.Mesmoamagia,porém,não

écapazdeatenuaraangústiadonarrador,quefalhaemalcançarafelicidade:“Como

crescimentodaminhapopularidadeaminhavidatornou-seinsuportável”.

Suaimpotênciaperanteodestinoérefletidanosubsequentedescontroledahabilidade

mágica.Amagia,outrora fontede suaexcepcionalidadeprofissional, se convertena

manifestaçãodesuaagoniadiantedavida,levandoonarradoradeceparsuaspróprias

mãos,que,paraseudesespero, são imediatamentesubstituídas.Conclui,então,que

somenteamortepoderiadarfimaoseudesconsolo.Osobrenaturalestáfortemente

presente em suas tentativas de suicídio, convertido em aspecto inescapável de sua

existência:retiradosbolsosumadúziadeleõesnaexpectativadequeosdevorem,mas

osanimaisnãolhefazemmalalgum.Apenaspedemparaqueosajudeadesaparecer:

“Estemundoétremendamentetedioso”,justificam.Ainescapávelmonotoniadavida,

expressada logo no início pelo narrador, encontra-se refletida nessa afirmação dos

animaisfalantes,quesãoentãodevoradospeloprotagonistanaexpectativademorrer

deindigestão,tambémfracassada:“Tiveimensadordebarrigaecontinueiaviver”.

Mesmo tratando-se de um tema de grande morbidez como o suicídio, o elemento

insólitoempregadoporRubiãoconcedeumtomtragicômicoàcena,expondoafaltade

controlequeonarradortemsobreseudestino–-esobreosprocessosorgânicosdo

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próprio corpo. As recorrentes tentativas de tirar sua própria vida para terminar seu

sofrimento,frustradasporummecanismomágicoqueodevolveaoestadode início,

remetemàfiguradeSísifoque,conformeapontadoanteriormente,surgecomoumdos

“mitospessoais”deRubião—oeternocondenadoquejamaispoderiaserimaginado

como“umSísifofeliz”.

Ironicamente,énaprópriamonotoniadavidaqueestáarespostaqueencontrapara

escapardotormentoqueamagialhetraz,.Incapazdeencontrarconsoloemumsuicídio

rápido,atoimpossibilitadoporseusdonsdemágico,buscasuicidar-sedemaneiramais

lenta:encontraempregoemumaSecretariadoEstado.Afiguradeumimensoaparelho

burocráticoqueoperadevorandoo ânimodo ser humanoé recorrentenouniverso

muriliano, representando o Absurdo do quotidiano urbano. A vida de funcionário

públiconãoapenas resultanamorte figurativa,mas colocaoex-mágicoemcontato

diretocomoutrossereshumanos,outroradistanciadospelopalco.Aconvivênciacom

seussemelhanteseseusenfadonhosproblemascausa-lhenáuseas.

Resignadoaotediosoemecânicoofíciodefuncionáriopúblico,oex-mágicodescobre

ter perdido por completo seus dons sobrenaturais. Agora condenado a uma nova

espéciedepurgatório,noqualnemsequersereconhececomoexcepcional,masapenas

comoumapeçanaengrenagemdeumtitânicosistema,descobre-searrependidodo

mauusoquefezdeseuspoderes,repreendendo-sepor“nãotercriadotodoummundo

mágico"quandoteveahipótesedefazê-lo.

OarrependimentoéosentimentofinalexpressoemOEx-MágicodaTabernaMinhota.

Emboraaintromissãodofantásticoemsuarealidadequotidianahouvessefalhadoem

fazê-lofelizenquantoaindatinhadonsexcepcionais,onarradorpassaaidealizaroque

podiaterfeitocomelesnopassado,emesmoadesejaroqueantesesnobava,ouseja,

osaplausoseaadoraçãodopúblicodeseusantigosespetáculos:“Porinstantes,imagino

comoseriamaravilhosoarrancardocorpolençosvermelhos,azuis,brancos,verdes[...]

Erguerorostoparaocéuedeixarquepelosmeuslábiossaísseoarco-íris.Umarco-íris

que cobrisse a Terra de umextremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos

brancos,dasmeigascriancinhas."

Page 60: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

56

Apesar de ser um conto relativamente precoce no conjunto final da obra deMurilo

Rubião, O ex-mágico da Taberna Minhota estabelece a base de todo o universo

muriliano,comfiguraseelementosestilísticosrecorrentesemgrandepartedesuaobra.

Aimagemdoespaçourbanocomofontededesesperoexistencial;otrabalhoenfadonho

queoperacomoassassinodoespíritocriativo(nocaso,osdonssobrenaturaisdoex-

mágico);odescontentamentoea inquietudediantedavidaedamorte, tratadopor

vezesdeformabastanteirônica,comonafaladosleões;arepulsapelamonotoniados

discursosmundanosdeseuspares,beirandoamisantropia;eaapariçãodeumSísifo

contemporâneoeeternamenteinfeliz,condenadoasofreremumcicloinescapávelde

trabalhostortuosos,impossibilitadodealcançarumafelicidadeque,nofundo,parece

serinalcançávelparatodos.

3.2.2. OpirotécnicoZacariaseaatitudefantástica

EmOpirotécnicoZacarias,umdosmaisconhecidoscontosdaobradeRubião,oconflito

vivido pelo protagonista consigna as diferentes atitudes que personagens e leitores

podem adotar diante do elemento sobrenatural. Embora uma das características

principaisdenarrativasmágico-realistassejaaaceitaçãodosaspectosmágicoscoma

mesmanaturalidadeefactualidadedoreal,areaçãodivididadosconhecidosdeZacarias

àestranharessurreiçãodopirotécnicopõeemcausaessatotalaceitação.

De fato,apóso sobrenaturalacontecimento,oúnicoconsensoqueoshabitantesda

cidade onde vivia Zacarias encontram é que, vivo ou morto, seu corpo continua a

transitarpelasruas:“Umacoisaninguémdiscute:seZacariasmorreu,oseucorponão

foienterrado.”Opróprionarrador—oepônimopirotécnico—explicaque,enquanto

unsacreditamqueeleestávivocomosempreesteve(equeomortoseriaumsósia),

outrosdefendemquemorreu,masseucorpocontinuaanimadoe“vivo”pelacidade—

nadamaisque“umaalmapenada,envolvidoporumpobreinvólucrohumano”.Explica

oprotagonista:“Emverdademorri,oquevemaoencontrodaversãodosquecreemna

minhamorte.Poroutrolado,tambémnãoestoumorto,poisfaçotudooqueantesfazia

e,devodizer,commaisagradodoqueanteriormente.”

Page 61: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

57

Aressurreição,aspectocentraldanarrativa,éaludidanaepígrafe:Eselevantarápela

tardesobretiumaluzcomoadomeio-dia;equandotejulgaresconsumido,nascerás

comoaestrela-d-alva.(Jó,XI,17).Énestelimiarentreavidaeamorte,entreaaceitação

dofantásticoearejeiçãológicaaosobrenatural,queZacariasnarraomundanoacidente

quesupostamentelhecustouavida.Atropeladoporumgrupodejovensembriagados

naapropriadamentenomeada“EstradadoAcabaMundo”(umatípicaestradadechão

do interior brasileiro, mal-iluminada e distante de tudo), Zacarias revela-se vivo no

momentoemqueostripulantesdoveículodiscutiamlivrar-sedeseucorpojogando-o

aoprecipício.

Na contramãodaatitudedivididaadotadapelapopulação, Zacariaspareceaceitar a

improvávelsobrevivênciadeseucadávercomnaturalidade,representandoaatitudedo

leitordenarrativasmágico-realistas(estabelecidanopactonarrativonecessárioparaa

suspensãodaincredulidadequantoaoselementosinsólitos).Éaoretornarparaacidade

queZacariassente-seconfrontadocomoestranhoocorridodesuamorte.Asreações

polarizadasdeseusantigosconhecidosevizinhosoafetamapontodeconsiderartal

oscilação o principal desafio para sua nova condição: “Não fosse o ceticismo dos

homens, recusando-seaaceitar-mevivooumorto,eupoderiaabrigaraambiçãode

construirumanovaexistência.”

Em síntese, a angústia do narrador-protagonista parece refletir essa relutância, essa

hesitaçãocaracterísticado“fantásticoclássico”.Flutuandoentreanaturalidadeoua

excepcionalidadedesuamorte,Zacarias—comoo leitor—é incapazdeescaparda

inquietude,esuasreflexõesrefletemasdimensõesirônicaetrágicadoconto:“Sóum

pensamentomeoprime: que acontecimentosodestino reservará a ummorto seos

vivos respiram uma vida agonizante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua

plenitude,queaminhacapacidadedeamar,discernirascoisas,ébemsuperioràdos

seresquepormimpassamassustados”.

Amorte (mais precisamente, a tênue e arbitrária fronteira entre vida emorte) é a

imagem central que o elemento fantástico potencializa em O pirotécnico Zacarias,

recursoqueressurgiránaobradeJoséJ.Veiga.Utilizando-sedesta fronteira,Rubião

destaca as atitudes possíveis diante da irrupção do elemento mágico: a aceitação

Page 62: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

58

material, característicado realismomágico,eahesitação (“oceticismodoshomens,

recusando-seaaceitar-mevivooumorto),característicadoestranhoedomaravilhoso,

subcategoriasdofantásticodeTodorov.

3.2.3. Magiaealteridade:Osdragões,Teleco,oCoelhinho,eOhomemdoboné

cinzento

O realismo mágico é frequentemente utilizado por seus grandes expoentes como

ferramenta para expressar uma relação de alteridade, do Eu/Nós que se vê face ao

Outro,aodiferente,aodesconhecido.Aprópriadicotomiaentrerealidadeemagia—

ou seja, entre os elementos narrativos que buscam a mímesis da realidade e os

elementossobrenaturais,fantásticose/oumágicos—podeserempregadapararealçar

essa relação dicotômica, bastante presente nas narrativas de realismo mágico que

representam a experiência colonial (mas não como característica exclusiva dessas

narrativas).

Em Murilo Rubião, o elemento mágico como representação dessa alteridade está

presente em diversos contos em que o protagonista (ou um pequeno grupo de

personagens)sevêdiantedeumOutrooudeOutroscujosurgimentoérepentino,mas

trazgrandesmudançasaostatusquoatéentãovigentenavidapessoaldoprotagonista

ouemtodaasuacomunidade.TrêsexemplosdestatemáticasãooscontosOsdragões,

OhomemdobonécinzentoeTeleco,ocoelhinho.

Em Os dragões, o elemento mágico está presente desde o primeiro parágrafo da

narrativa,precedidodeumaepígrafecomrelaçãoliteralediretaaotexto(Fuiirmãode

dragõesecompanheirodeavestruzes,retiradadeJó,XXX,29).Aliás,afrasequedáinício

aOs dragões já estabelece a relação entre oOutro e a comunidade que os recebe,

enfatizandoadiferençaentreeles:"Osprimeirosdragõesqueapareceramnacidade

muitosofreramcomoatrasodosnossoscostumes".

Explica-sequeosdragões"receberamprecáriosensinamentos"eque"sua formação

moralficouirremediavelmentecomprometidapelasabsurdasdiscussõessurgidascom

Page 63: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

59

achegadadelesao lugar”;nestapassagem,evidencia-seoconfrontoquedecorredo

contatoimediatocomaalteridade.

ConfusosemrelaçãoàidentidadedesseOutroqueadentraseuespaçodepertença,os

habitantes da cidade têm dificuldades em definir a que país ou raça pertencem as

súbitasaparições.Ovigárioinsistequesetratamdedemônios.Aimagemdainstituição

religiosacomoimpedimentoparaoacolhimentodoOutrosurge,talvez,comoreflexo

das crenças do próprio autor, ex-católico e posteriormente agnóstico. Acerca da

identidadedosdragõesmuitosediscuteemuitassãoasinterpretaçõesdesuaespécie:

"coisaasiática,deimportaçãoeuropeia",monstrosantediluvianos,mulassemcabeçae

lobisomens são termos utilizados pelos moradores para classificar as estranhas

criaturas.Porém,háumgrupoqueosreconhecedeimediato:"Apenasascrianças,que

brincavamfurtivamentecomosnossoshóspedes,sabiamqueosnovoscompanheiros

eramsimplesdragões.Entretanto,elasnãoforamouvidas".Ainocênciadascrianças,

cujanoçãoderealidadeéinfinitamentemaisplásticaemaleáveldoquedosadultos,

permitequeaceitemesseOutrocomooé semmaiores indagações (imagemquese

repetiráemJ.Veiga).

Estimulandoumprocessoforçadodeassimilação,opadredeterminaqueosdragões

devem receber nomes de batismo e ser alfabetizados. Devido a "moléstias

desconhecidas",muitosdragõesmorrem,falhandonoprocessodeassimilaçãoaonovo

ambiente. Sobrevivemapenas dois – "infelizmente osmais corrompidos",Odorico e

João. Seduzidos pelos vícios domundo humano, os dragões fogem à noite para se

embriagarnobotequimecomotempoveem-seforçadosacometerpequenosfurtos

parasustentarosvícios,dosquaisjánãoconseguemmaisfugir.

OdragãoOdoricocausaosmaioresproblemas:"Asmulheresachavam-noengraçadoe

houveumaque,apaixonada,largouoesposoparaconvivercomele".Aabsurdaeum

tantocômicarelaçãocarnalentreumdragãoeumamulherrefleteahumanizaçãodas

criaturas,queagoraseencontramcadavezmaisdistantesdesuaalteridadeinicial.A

uniãoinevitavelmenteterminaemtragédia:"Poucotempodepois,elafoiencontrada

chorando perto do corpo do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito,

provavelmentedeumcaçadordemápontaria".

Page 64: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

60

Odestinodoúltimodragãoédiferente.QuandoodragãoJoãocomeçaa"vomitarfogo",

sinal de que atingiu a maturidade como dragão, parece recuperar parte de sua

identidade própria, outrora perdida sob os vícios adquiridos pela assimilação. A

extraordináriahabilidadede João lhe trazenormesucessonacidade,masacabapor

partircomumcircoviajantesemfornecerexplicações.Apósapartidadoúltimodragão,

diversosoutrosdragõespassampelasestradasdacidade,mas,apesardosesforçosdo

professorede seusalunos,nenhumdragãodesejapermanecerno local: “Formando

longasfilas,encaminham-separaoutroslugares,indiferentesaosnossosapelos".

Conclui-sequeaoshabitantesdacidadefoifornecidaumaoportunidadeúnicaemágica

de conviver com criaturas de uma outra realidade; porém, a falha em assimilar os

dragões ao povoado, de forma consciente de suas particularidades e identidades

próprias,terminaporprivaroshabitantesdeoutraoportunidadesimilar.Aassimilação

forçada(ensinodalinguagem,obrigatoriedadedeassumiremnomesdebatismoeaulas

obrigatórias) repele o Outro, que não encontra oportunidades ali além de vício e

perdição.

Emcontrapartida,emTeleco,ocoelhinho,oOutroérepresentadoporumaúnicafigura,

adoepônimocoelho.Acriaturaquedánomeaocontoé"umcoelhinhocinzento"com

um"jeitopolidodedizerascoisas",quedesenvolveumarelaçãodeamizadecomo

narrador, com quem passa a habitar. De imediato, o encontro com o elemento

sobrenatural, tratado com absoluta naturalidade e materialidade pelo narrador,

cimentaanarrativanoâmbitodorealismomágico.

Teleco, a criatura fantástica do título, tem a capacidade de “metamorfosear-se em

outrosbichos”e impulsos travessos,utilizandosuashabilidadesmágicasparapregar

peçasecausarconfusõesentreossereshumanos.Ocontatocomomundohumano

parece corromper a criatura, que assume a forma de um canguru de "roupas mal

talhadas", comolhosque"seescondiampor trásdeunsóculosdemetalordinário".

Anuncia,então,seudesejo:"Dehojeemdiantesereiapenashomem".Nessatentativa

de tornar-se humano, assume o nome de Antônio Barbosa e, assim como um dos

dragõesdocontoanterior,envolve-secarnalmentecomumamulher.

Page 65: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

61

Suatentativadeserforçosamenteaceitocomohumanocausarepulsaaonarrador,que

termina por expulsá-lo do lar. A companheira humana parece querer apenas se

aproveitar dos poderes da criatura, que se torna ummágico de grande sucesso na

cidade.Nodesfechodoconto,Telecoretornaàcasadonarrador,abandonandoonome

humanoesuatentativadevivercomohomem.Ocontatocomacidadeeasmultidões

parece tê-lo corrompido como um cancro: limita-se a tossir e metamorfosear-se

descontroladamenteemdiversosanimais.Enfraquececadavezmaisatéqueassumea

formadecarneirinho"abalirtristemente".Onarradoradormececomelenosbraçose,

aoacordar,encontranoseucolo"umacriançaencardida,semdentes.Morta".

Assim como ocorre com os dragões do conto anterior, Teleco, uma criatura de

identidadeevidentementesobrenatural,perdesuaidentidadeaorender-seahábitos

apresentados como mundanos e urbanos (tabagismo, alcoolismo e mulheres). Sua

tentativadetornar-sehumanoérepreendidacomviolênciaporqueminicialmenteo

acolheuemtodasuadiferença.Exploradopelomundohumano,Telecoperdeseunome,

sua forma, seumodode falar e atémesmoo controle de suas habilidades, até que

sucumbeemorrenosbraçosdonarrador.

EmOhomemdobonécinzento,afontedoconflitoénovamenteachegadadeumOutro

queperturbaostatusquoatéentãoinabaladodeumpequenouniverso(avizinhança

do narrador). Roderico, o narrador-protagonista, explica que, antes da vinda “do

homemdobonécinzento”,aruaondemoracomoirmãocostumavaser“otrechomais

sossegadodacidade”.Culpaachegadadoestranhopela“intranquilidade”quepassaa

dominaravizinhança.

Aolongodoconto,aobsessãodoirmãoemobservaroestranhocomportamentodo

novo vizinho acaba por contagiar o narrador. De modo insólito, o homem parece

emagreceracadadiaquepassa,tornando-secadavezmaisdifuso.Ametamorfosedo

velhopassaarefletir-senocorpodoirmãoArtur,quetambémemagrecevisivelmente

com o passar dos dias. Roderico, agora fascinado pela figura do homem do boné

cinzento,nãoparecepreocupar-secomo irmão.Acertaaltura,aoveronívelaque

chegouamagrezadovizinho,Arturalerta:"Amanhãdesaparecerá".

Page 66: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

62

Ocontoterminacomaúltimaapariçãodohomemdobonécinzento,queresultano

derradeiromomentomágicodanarrativa:"Nadamaistendoparaemagrecer,seucrânio

haviadiminuídoeoboné,folgadonacabeça,escorregaraatéosolhos.Oventofazia

comqueocorpodobrassesobresimesmo.Teveumespasmoelançouumjatodefogo,

quevarreuarua".Ovelhodesapareceporcompletoe,paraaperplexidadedonarrador,

omesmoacontececomo irmão:Rodericopercebequeo corpodeArtur “diminuíra

espantosamente”,reduzido“aalgunscentímetros”,atéqueopega“comaspontasdos

dedosantesquedesaparecessecompletamente”.Empoucosinstantes,oirmãosome,

substituídopor“umabolinhanegra”arolarnamãodeRoderico.

EmOhomemdobonécinzento,oOutrosurgecomoumafiguradistanteesuainfluência

sobreolocaleseushabitantesocorredeformaindireta,separadodaspersonagensnão

apenasdajaneladaqualoobservam,mastambémpelasparedesdadecrépitamansão

ondeseinstalapermanentemente.Seuaspectofantástico,desdeoiníciomarcadopelo

presságio “do branco e do cinzento”, é realçado pelo estranho desaparecimento

progressivoeofogoquevomitaantesdeseesvair,bemcomooefeitosobrenaturalque

causanoobservadorobcecado,oirmãoArtur.AssimcomoTelecoeodragãoOderico,

arelaçãodovelhohomemdobonécinzentocomafiguradamulherparecedesencadear

na criatura já decrépita e repulsiva um irremediável processo de perdição. As

personagensfantásticasdostrêscontosencontramdestinostrágicosnolocalquefalha

emadaptar-seàchegadadesseOutroedeixammarcasindeléveisporondepassam.

EmMuriloRubião,asrelaçõesdealteridadesãoexploradassobaformadesteconfronto

deumarealidadecomregraselógicaconhecidasdiantedachegadainesperadadeum

elemento(ouelementos)regidosporoutrasleis,decunhointeiramentefantástico(os

míticosdragões,ocoelhofalantecomodomdametamorfose,omisteriosohomemque

desaparece). Ao adentrarem um espaço que não lhes é de pertença, essas figuras

realçamoAbsurdoinerenteàexistênciadosnarradoreseàineficáciadalógicaqueaté

então prevalecia em suas comunidades, forçando-os a confrontarem-se com a

instabilidadedesuaprópriarealidade.

Page 67: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

63

3.2.4. OAbsurdonolabirintourbano:Afila,OedifícioeObloqueio

EmcontoscomoojáanalisadoOsdragões,surgeumaimagemqueserárecorrentena

literaturadeMuriloRubião:oespaçourbanocomolocaldeperdiçãodohomem,palco

doAbsurdoedeangústiaexistencial.Frequentemente,éapresentadaumadicotomia

entreametrópoleeasregiõesinterioranas,deondevêmalgunsdosprotagonistasque

encontramsuaperdiçãonasruasimpessoaisdacidade.

TalimagempodeserrelacionadaànoçãodeDoisBrasispropostaporJacquesLambert,

que, como discutido anteriormente, mapeia uma divisão entre o moderno e o

tradicionalemeixosdedescontinuidadesespaciais,comooeixourbano-rural.Esseeixo

de descontinuidade explica a susceptibilidade do homem do interior à perdição da

metrópole: visto como um ser "anterior", uma espécie de versão passada de seus

conterrâneos "modernos" da cidade, não dispõe dos mecanismos necessários para

cumprirseusobjetivose/ouencontrarafelicidadenolabirintodoespaçourbano.

ÉocasodocontoAfila.Aepígrafe—“Eelesteinstruirão,tefalarão,edoseucoração

tirarãopalavras.(Jó,VIII,10)”—aludeàexistênciadeumOutro(“eles”),novamente

estabelecendoumadicotomiaentreoEueumgrupooposto, indefinidoevago,que

buscaráexercerinfluênciasobreoEu.

Noconto,oprotagonistaPerericoéumhomem"do interiordopaís"quesedirigeà

cidadeembuscadeumobjetivoinexplicado.ComoédecostumeemMuriloRubião,“a

cidade” é apenas vagamente definida como tal, jamais correspondendo a uma

localizaçãoespecíficadoterritóriobrasileiro;serve,assim,comoaCidadearquetípica,

representativadolabirintourbanoemsi.Igualmentenebulosaé“aCompanhia”,cujo

escritório é o destino de Pererico. Busca uma audiência com “o gerente” mas, por

recusar-searevelarseupropósito,écondenadopelomonstruosoaparelhoburocrático

aenfrentar,diaapósdia,umafilaquejamaistemfim.

Todasassuastentativasdesubverterosistemafalhameaestadianacidadesealonga

cadavezmais.Envolve-secomumamulher,aprostitutaGalimene,figuraigualmente

marginalizada que tenta ajudá-lo. Porém, quando o protagonista finalmente resolve

retornaràfábricaeacabarcomoinquebrantávelciclodafilasemfim,descobrequeo

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gerentefaleceu,masnãoantesdeatenderatodosqueaguardavamnafila––exceto

Pererico,quehaviaabandonadoolocal.ApesardosapelosdeGalimene,quelhepara

permanecer,Perericoécategórico:"Odeioestacidade".Parteeinformaacompanheira

quejamaisvoltará.Adistânciaqueotremcolocaentreeleeacidadeoconforta:“À

medidaquecontemplavaboisevacaspastando,retornavam-lheantigasrecordações,

esmaeciamasdopassadorecente".

Comessedesfecho,Afilaatingeumaconclusãoatípicaparaumcontomuriliano:apesar

defalharemseupropósitoinicial(seratendidopelogerentedaCompanhia),Pererico

consegue escapar da cíclica punição da metrópole, optando por deixar para trás a

tentaçãodepermanecercomGalimene(amulherque,excepcionalmente,nãosurge

neste conto como outro caminho para a perdição). O retornar às origens, ao lado

interiorano do eixo urbano-rural, é o que lhe permite esmaecer as recordações do

presenteeseguiradiante.

Porsuavez,atramadocontoOedifícioéimpulsionadaporoutrainstituiçãodecaráter

epropósitosobscuros,o“ConselhoSuperiordaFundação”,quecontrataoprotagonista,

o engenheiro João Gaspar, para dar forma a um projeto impossível: um prédio de

infinitosandares.Nestaempreitada,poucasinformaçõessãofornecidasaJoãoGaspar,

quedesconheceporcompletoopropósitodoedifício.Sabeapenasque"Maisdecem

anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o

manifestodeincorporação,teriailimitadonúmerodeandares."

Desdeo início, a absurda tarefade JoãoGaspar remetenovamente ao vaziode sua

existência,dedicadaaumprojetoque,logicamente,jamaispoderáserconcretizado.O

engenheiroéadvertidoporumdosvelhosmembrosdaFundação:"Nestaconstrução

nãohálugarparaospretensiosos.Nãopenseemterminá-la,JoãoGaspar.Vocêmorrerá

bemantesdisso."OvelhorevelaserestaaterceiraversãodoConselhodaentidade("e,

comoosanteriores,jamaisalimentamosavaidadedesermosoúltimo").

JoãoGaspardá inícioàobra,queprogrideemritmo tranquilo, cumprindoasetapas

previstas,seguindooritmodesuaprópriavida:"Decinquentaemcinquentaandares,

João Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia". À

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65

medida que a obra atinge proporções impossíveis, passando do 800º pavimento,

problemascomeçamasurgireoengenheiropassaaduvidardeseupropósito.

AoredigirumrelatórioaosdiretoresdaFundação,descobrequeosúltimosconselheiros

jáhaviammorrido.Nãodeixaramparatrásquaisquerinstruçõesacercadacontinuação

doprédioeJoãoGasparsesentecadavezmaisconfuso:"Asperguntasiamevinham,

enquantooedifícioseelevavaemenoressefaziamasprobabilidadesdesetornarclaro

oquenasceramisterioso."

Desanimado, comunica aos operários a dissolução do Conselho e se diz obrigado a

paralisaraconstruçãodoedifício,masosoperáriosnãoaceitam:"Acatamososenhor

comochefe,masasordensquerecebemospartiramdeautoridadessuperioresenão

foramrevogadas".MesmoapósamortedoConselho,aincompreensívelautoridadeda

Fundação permanece, mantendo o ciclo de obras em eterno funcionamento. Os

funcionáriosrecusamsuastentativasdedemissãoeoprotagonistapassaavaguearos

andaresdoedifício,discursandoparaoperáriosqueserecusamaouvi-lo.Aocontrário

doprotagonistadeAfila,JoãoGasparacabaporsucumbiraoAbsurdodatarefaquelhe

éconferida,incapazdeimpedirqueociclocontinue.

OutroprotagonistaqueencaraoAbsurdoemumcenáriotipicamenteurbanoéGérion,

personagem central do contoObloqueio. O conto tem início com a constatação de

estranhosruídosnoedifícioondemoraoprotagonista:"Noterceirodiaemquedormia

nopequenoapartamentodeumedifíciorecém-construído,ouviuosprimeirosruídos".

Noinício,atribuiosestranhossonsaumpesadelo,masobarulhoéintenso:"Vinhados

pavimentos superiores e assemelhava-se aos produzidos pelas raspadeiras de

assoalho". Assemelha-se à cacofonia de umamáquina que,mesmo às três horas da

manhã,“prosseguianaimpiedosatarefa”.

Ensurdecidopelosestrondos,Gérionéincapazdedizerseamáquinaestá“construindo

oudestruindo”.Emdúvidasedeveverificarafontedosomouguardarseusobjetosde

valorefugir"antesdodesabamentofinal",decideabriraportaeossonsseintensificam,

até que ouve "estalos de cabo de aço se rompendo, o elevador despencando aos

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trambolhõespelopoçoatéarrebentarláembaixo”comumaviolênciaqueestremece

todooprédio.

Quandoosbarulhoscessam,Gérionvaiaoterraçoaveriguarosestragosesedescobre-

se a céu aberto: "Quatro pavimentos haviam desaparecido, como se cortados

meticulosamente[...]"enãohárastroalgumdasmáquinas.Gérion,quedescobresero

único habitante do edifício, parece ser um homem em fuga do passado ––

nomeadamente,buscaesconder-sedaesposaedafilha.Sustentadofinanceiramente

pela“gorda”esposa,Gérionbuscarestabelecersuamasculinidadeeindependência.

Aoreceberumtelefonemadaesposaedafilha,Gérionlamentao"fracassodafuga".

Frustrado,aceitaseudestinoedecidepartir.Aodescerasescadas,descobreque,oito

andaresabaixo,ocaminhoterminaabruptae inconcebivelmentenoar:o“bloqueio”

está concretizado e já não há mais saída para o protagonista, que retorna ao

apartamento,ondepassaaaguardarainevitávelchegadadamáquinaoculta.

Resta-lhe apenas aguardar um eventual desfecho: as constantes fugas da máquina

apenasaumentamomedoeacuriosidadedeGérion,que“nãosuportavaaespera,a

temer que ela tardasse em aniquilá-lo ou jamais o destruísse". Permanece no

apartamento, vislumbrando luzes coloridas pelas frinchas. A narrativa se encerra

quandoGérioncerraaporta coma chave, seudestino final indefinido.Os temasda

fatalidade(dodestinoqueinevitavelmentesecumprirá),doremorso,dafrustraçãoda

fugadopassadoedaincompreensibilidadedoespaçourbanosãocentraisànarrativa

deObloqueio.Cabesugerir,aqui,queacomparaçãodeCortázar,queaproximaoconto

àestruturadeumaesfera,quesefechasobresi,éfrequentementetestadanoconto

muriliano:muitasde suasnarrativaspermanecemabertas, coma fatalidadeapairar

alémdosparágrafosfinais.

Nos três contos analisados aqui, o espaçourbano surge como imenso labirinto, cuja

incompreensível espacialidade é realçada pelo uso do elemento mágico (a fila

interminável,oprédiodeinfinitosandares,ainsólitademoliçãodorefúgio).

Page 71: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

67

3.2.5. Consideraçõesadicionais

A estrutura do conto muriliano, que com frequência parece apresentar-se de forma

aberta, ou como uma espécie de esfera porosa (que não se fecha por completo, mas

mantém-se permeável a sucessivas releituras e reinterpretações), é solo fértil para diversas

abordagens teóricas distintas da análise proposta até aqui. Essa riqueza temática,

psicológica e simbólica resulta na necessidade de se propor um recorte, como este

realizado nesta pesquisa, a fim de limitar o escopo de uma análise que, como o próprio

uroboro, arrisca tornar-se um esforço cíclico e sem fim.3

Porém, para fins desta análise, optou-se por desenvolver a discussão acerca dos

temas acima. Esta escolha não busca afirmar que os temas e imagens estudados neste

projeto são os únicos e principais elementos constituintes da obra de Murilo Rubião, mas

pretende enfatizar seu papel central na definição de certos aspectos que possam aludir à

existência de um realismo mágico brasileiro como movimento que transcende os contos

desse único autor.

3.3. OuniversoficcionaldeJoséJ.Veiga

AestreiadoescritorJoséJ.VeigaocorremaistardiamentedoqueaentradadeMurilo

Rubiãonocenárioliterárionacional.Em1959(ouseja,12anosapósapublicaçãodeO

Ex-mágico,deRubião), J. Veiga, com44 anosde idadee amigodeGuimarãesRosa,

publica a coletânea de contosOs Cavalinhos de Platiplanto, obra que já estabelece

algunsdosprincipaistemascomosquaissepreocupariaoautor,bemcomosuavoz

narrativaetécnicaficcional,colocandoseunomeemevidênciacomoumautorcomuma

3Cabedestacar,porexemplo,apossibilidadedeestudaroscontosdeMuriloRubiãosobaóticados estudos de gênero, que poderiam encarregar-se de analisar a prevalência do olharmasculinoeafiguradamulhercomoobjeto,comofontedesalvaçãoouperdiçãodohomem;análisesbaseadasnapsicanálisetambémpodemserúteisparadecodificarcontoscomoDr.Pink,bemcomopoderiabuscar-seaprofundarnarelaçãodareligiosidadecomoAbsurdoeanoçãomurilianadepecadoepunição,fortementepresenteemcontoscomoAglaiaeOstrêsnomesdeGodofredo.

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68

literaturafortementemarcadaporsuavivênciainteriorana.ConformeexplicaTurchiem

AsvariaçõesdoinsólitoemJoséJ.Veiga(2005),

As raízes rurais de José J. Veiga, nascido em 1915, numa fazenda situada entre os

municípiosdePirenópoliseCorumbá,emGoiás,serviram-lhedematerial ficcional.A

regiãonataldeixoumarcasindeléveisnaobradeVeigasejanaadjetivaçãoquesepode

depreender da cartografia dos contos – o distante, o longínquo, o isolado; seja nos

espaçosecostumescotidianosquecompõemoenredo–ocurral,orio,apescaria,a

caçada;todoselementosemblemáticoscomosquaisoimagináriogoianoseidentifica

(Turchi2005:1).

AocontráriodoqueocorreemMuriloRubião,ouniversoficcionaldeJoséJ.Veiga

émarcadoporumregionalismoquetornaimediataaassociaçãodoespaçonarrativoà

realidadebrasileira;mas,assimcomoocontistamineiro,J.Veigautiliza-sedetopônimos

próprios, criando vilas, cidades e comunidades verossimilmente brasileiras, mas

inteiramenteficcionais:

Se por um lado é possível perceber a presençado real nas cidades interioranas que

compõem o espaço ficcional de Veiga, por outro, a invenção dos nomes e a

caracterizaçãodoslugaresprovocamatransfiguraçãodarealidade—nomesestranhos

(Platiplanto, Manarairema, Taitara, Vasabarros, Torvelinho) e lugares perdidos e

isoladosnomundopropiciamoaparecimentodofantásticoedomaravilhoso(Turchi

2005:2)

Cabe ressaltar aqui que a aproximação de J. Veiga com as noções de “fantástico” e

“maravilhoso” propostas por Todorov) pela pesquisadora é reflexo da frequente

perplexidadedacrítica—daépocaeatual—emrelaçãoàclassificaçãodasnarrativas

do escritor goiano.Noposfácio da coletâneade novelasDe jogos e festas (2016), o

crítico José Castello explica que o próprio J. Veiga “reagiu veementemente” à sua

classificaçãocomoautorderealismomágico:“Afirmavanãopassardeumainvençãoda

crítica literária francesa, sem outros recursos conceituais para classificar os novos

escritoreslatino-americanosquechegavamàslivrariasparisienses”(Veiga2016:110).

Apesardessarelutânciaemaceitaracategorizaçãodesuasnarrativascomonarrativas

mágico-realistas,aformapelaqualdiversoscontoseromancesdeJ.Veigaempregamo

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69

elemento insólito encaixa-se nas concepções discutidas no capítulo 1.4 Parte da

confusãoemclassificarJ.Veiga(e,porextensão,MuriloRubião)noâmbitodorealismo

mágico se deve à própria nebulosidade do termo em círculos críticos brasileiros –

nebulosidadeestaquearevisãobibliográficapropostanocapítulo1visaelucidar.

Neste sentido, é pertinente ressaltar o que escreve Dantas emO insólito na

ficçãodeJoséJ.Veiga(2002):"OquestionamentonaobradeVeiganãocorrespondeà

hesitação do fantástico clássico (a que se refere Todorov) [...]", mas se aproxima à

narrativainsólitadoséculoXX,queoautorcolocacomobasedorealismomágicona

AméricaLatina:

"[...]a narrativa insólita do século XX (de que Kafka é referênciamaior) não apenas

contrapõe dois planos opostos, mas cria um único plano, uma nova realidade,

autônoma.[...].Nãohádúvidadequeoinsólitoirrompanoreal;elejáofez,poiséparte

integrantedarealidade,oquefocalizaasdúvidassobreaadaptaçãoaele.NaAmérica

Latina,estaéabasedorealismomaravilhosohispano-americano[...]"(Dantas2002:5)

Em termos estilísticos, José J. Veiga, comoMuriloRubião, buscaumaprosa concisa,

empregando um léxico de poucos floreios e fazendo uso frequente da narrativa em

primeirapessoa.Conformeressaltadoanteriormente,suaprosaéfortementemarcada

peloregionalismo,buscandoaproximar-sedafalacoloquial;todavia,oregionalismonão

resumetodaacomplexidadedavozdoautor,masserve,conformerelataTurchi,como

“pontodepartidaenãodechegada"paraexploraruma"universalidadede temase

modos de criação literária" (Turchi 2005: 2). A pesquisadora ressalta que essa voz

narrativaaproxima-seàvoz“donarradorprimitivodaoralidade,própriodashistórias

quevivemnosertão,queprendemaatençãodosouvintesnaforçadafabulação(idem:

2).

Essavoznarrativaqueseaproximadaoralidadepareceseridealparaaexploraçãode

algunsdostemascentraisàobradoautor.SeRubiãoémarcadopelapresençadealguns

4Tratam,commaterialidade,do irrompimentodofantástico,domágicoe/oudosobrenaturalnarealidade como fato, acontecimento que não suscita o merecido espanto ou descrença, com oempregodeumavoznarrativaespecífica.

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mitos pessoais, a literatura de J. Veiga é frequentemente associada à infância,

especificamenteà“meninice”,osermenino;emJ.Veiga,opontodevistanarrativoé

frequentementeprotagonizadoporgarotosdepoucaidade,ouporhomensmaisvelhos

que relembram episódios da infância (cabe ressaltar que, como em Rubião, os

protagonistasdeJ.Veigasãotodosdosexomasculino).Olúdicotemumapresençaforte

noscontosdeOsCavalinhosdePlatiplanto,associandooatodebrincar,aimaginaçãoe

opodercriadordascriançasaopróprioelementofantástico—ainfância,porsisó,éum

mundodaimaginação,emqueamagiaearealidadesãotratadasemanipuladascom

igualmaterialidade.

Noprefácioàediçãode2015deOsCavalinhosdePlatiplanto,oprofessoreescritor

Silviano Santiago explica que "Nos contos de Veiga, a visão infantil e interiorana do

narrador,aparentementenostálgica,servedepalcoparaadramatizaçãodouniverso

provincianobrasileiro"(Veiga2015:7).Apesardessefoconasexperiênciasdainfância,

édifícilaproximaroautordaliteraturainfanto-juvenil,poiscontoscomoAInvernada

do Sossego e Era só brincadeira retratam, apesar do tom lúdico, cenas de grande

violência e horror, e obras posteriores viriam a tratar diretamente de confrontos

políticoscomplexos,bemcomodarelaçãooprimido-opressor.

Ouniverso ficcionalde José J.Veigaéumemqueo fantástico irrompe lentamente,

penetrandoavidadonarrador(edesuacomunidade)comoumlíquidoqueinfiltra,aos

poucos,afundaçãodeumacasa.Diferentementedoqueocorreemmuitoscontosde

Rubião,emqueocarátersobrenatural/mágico/fantásticodosacontecimentosnarrados

éevidentedesdeaprimeirafrase,asnarrativasdeJ.Veigatêminíciodeformanatural,

beirando o realismo (infusionado com um forte regionalismo), e é apenas com o

desenvolvimento da trama que o fantástico irrompe; é tratado, contudo, com

naturalidade. Apesar de poder causar certo espanto, nunca é apontado como algo

impossível,contraditório,absurdo.

OAbsurdoexistencial,comoemRubião,tambémestápresenteemalgunsdoscontos

deJ.VeigaemaisfortementenosromancesAHoradosRuminanteseSombrasdeReis

Barbudos.EmJ.Veiga,oAbsurdotranscendeaexperiênciaindividualeestáligadoàs

relaçõesdeopressãoealteridade,enfatizandoafutilidade—ouatotalimpossibilidade

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—deresistênciadiantedeumpoderopressorsobrepujante,invencível.Noprefáciojá

mencionado, Silviano Santiago (2015) escreve que “[...] a arquitetura dramática dos

contosdeVeigasearmaapartirdavizinhançadegruposdivergentes,sendoqueum

deles,omaisfraco,acabaporsofrerreprimendasterríveiscomoconsequênciadabusca

porautonomiae liberdadedeação".Nestecontexto,diversoscríticosapontampara

umarelaçãodiretaentreasobrasescritaspeloautornasdécadasde1960e1970com

oregimemilitarqueperdurounoBrasilde1964a1985:

Os romances A hora dos ruminantes (1966), Sombra de reis barbudos (1972) e Os

pecadosdatribo(1976)foramproduzidosduranteaditaduramilitar.Nessasobras,José

J. Veiga cria situações de opressão sufocante, frequentemente representadas por

súbitasinvasões.(Turchi2005:2)

EmAsuperaçãodoautoritarismoemJoséJ.Veiga(2020),SantoseBelliniapontamque,

nouniversoficcionaldoautor,"[...]oleitordepara-secomcríticastenazesàsmazelas

sociais, aliadas a circunstâncias absurdas e insólitas" (Santos, Bellini 2020: 95). Os

autorestambémpropõeque,aotrabalharnessepanoramahistórico,J.Veigavaialém

dacríticasocial,tecendoreflexõesacercadapróprialiteratura:

“NasentrelinhasdeSombrasdeReisBarbudosépossívelapreenderasalusõesqueo

escritor teceaopapelda literaturaenquantopromotoradereflexõesque induzemo

leitor a reconhecer-se como ser humano e cidadão, assim como responsável por

questionamentosqueofazemsuperarinterditosimpostosarbitrariamenteeempenhar-

se na tomada de ações decisórias para vencer desmandos e repressões políticas.”

(Santos,Bellin2020:100)

Apesardarelaçãodiretacomomomentohistóricodesuapublicação,ocomentárioque

J.Veigaconstróinessasobrasnãodeveser lidoapenasemtermosde resistênciaao

períodomilitar:"Emboraaquiealisejapossívelidentificarreferênciasmaisexplícitase

visíveisàsituaçãopolíticadoBrasilàépocadogolpemilitar,éprecisolersuasalegorias

de modo mais amplo, não exatamente descontextualizando-as, mas possibilitando

diálogosmaisabertos,dimensõesquealcancempercepçõesinclusiveforadouniverso

político"(Nepomuceno2007:99).

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Combasenessasideiascentrais(oregionalismo,olúdico,aassociaçãodofantásticoà

infância e a exploração de relações de poder), buscou-se destacar alguns temas

principais tratados na obra de José J. Veiga. Para fins de comparação, optou-se por

analisarapenasbrevementeos romancesAHoradosRuminanteseSombrasdeReis

Barbudos,nosquaisJ.VeigadesenvolvetemasestabelecidosemcontoscomoAusina

atrásdomorroeErasóbrincadeira.Ostemasapontadoscomodeprincipalinteresse

paraanálisedeJ.Veigacomoproponentedorealismomágicobrasileirosãoarelação

que estabelece entre o lúdico e o fantástico (em A Ilha dos Gatos Pingados, Os

cavalinhosdePlatiplantoeFronteira);ofantásticocomofronteiraporosaentreavidae

amorte(OsdooutroladoeAInvernadadoSossego);eoempregodorealismomágico

comometáforapassíveldeinterpretaçãopolítica,especialmenteemrelaçãoaoperíodo

militar,épocaemquepartedasobrasselecionadasfoiescrita(Ausinaatrásdomorro,

Erasóbrincadeira,QuandoaTerraeraredonda,AHoradosRuminanteseSombrasde

ReisBarbudos).

3.3.1. Olúdicoinsólito:Fronteira,OsCavalinhosdePlatiplantoeAIlhadosGatos

Pingados

Conforme apresentado no item anterior, a prevalência de narradores-crianças nos

contosdeJ.Veigaforneceàsuaescritaumteorlúdico,relacionandoamagiaaojogo,à

imaginaçãoeaoatocriativoligadoaessasduasfaculdades.Sobreolúdiconaliteratura,

Cortázar(1980)estabeleceumarelaçãodiretaentreoatodejogareoatodeescrever:

Umescritorbrincacomaspalavras,masbrincaasério.Brincanamedidaemquetemà

suadisposiçãoas intermináveise infinitaspossibilidadesdeuma língua, cabendo-lhe

estruturar,escolher,selecionar,recusare,finalmente,combinarelementoslinguísticos

paraqueaquiloquepretendeexpressareprocuracomunicarocorradeummodoque

lhepareçaomaispreciso,omaisfecundopossívelecomumamaiorprojeçãonamente

doleitor(Cortázar1980:186).

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73

Paraoautor,oelementolúdicooperaemconsonânciacomanaturezadopróprioleitor,

cujo contato como lúdico, a brincadeira e o jogo inevitavelmente ocorre emalgum

momentoprévioaoseuencontrocomotextoliterário:

[...]háumelementolúdiconaliteraturae[...]anoçãodejogo,quandoaplicadaàescrita,

àtemáticaouàmaneiradeveroqueseestáanarrar,ofereceumadinâmica,umaforça

àexpressãoqueameracomunicaçãosériaeformal–-mesmoqueotextoestejamuito

bemescritoemuitobemarquitetado–-nãologratransmitiraoleitor,porquetodoleitor

foieé,dealgummodo,um jogador,ehápor issoumadialética,umcontatoeuma

recepçãodessesvalores(Cortázar1980:187).

Os contos abordados nesta seção empregama voz infantil para surtir similar efeito.

Diversoselementosdaexperiênciadainfânciasão,afinaldecontas,universais—enão

pareceseràtoaqueJ.Veigautilizaesseselementosnaconstruçãodofantásticoque

impregnapraticamentetodooseuuniversoficcional.

DiferentementedamaiorpartedoscontosdeJ.Veiga,Fronteiraéumanarrativaem

queoelementomágicoestápresentedesdeoinício.Noconto,omeninonarradoréo

único que possui a habilidade de atravessar em segurança uma rota denominada

simplesmente “a estrada”, um local "cheia de armadilhas, de alçapões, demundéus

perigosos" e "desvios tentadores". Essa excepcional habilidade, notadapor todos os

adultos, vemdo conhecimento que omenino temdas regras peculiares da estrada,

comoanecessidadedeevitarresponder“aoscumprimentosdosglimerinos”,raçade

anõesquebuscadistrairoshomensdasuamissão.Sabetambémque"aoouvirpassos

atrás ninguém deve parar nem correr", pois "quemmostrar sinais de medo estará

perdidonaestrada".

Suahabilidadedeguiaéexploradapelosadultos,quesolicitamosserviçosdomenino

aospais.Acriançacomoguiadoextraordináriorefletearelaçãoentrefantásticoelúdico

exploradaporJ.Veigaemdiversoscontoscujosnarradores-protagonistassãocrianças.

Pressionado por essas obrigações, o menino deseja crescer e perder essa

responsabilidadedeguiadofantástico:"Minhaúnicaesperançadeliberdadeeracrescer

parasercomoosadultos,completamenteincapazesdeiremsozinhosdaquiali".Apesar

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de se orgulhar de ter capacidades que os adultos não têm, omenino expressa um

sentimentoderepulsaquantoàssuaslimitaçõescomocriança:"[...]quandoeubaixava

osolhosparaolharomeucorpodemeninoeviaoquantoeuaindaestavapertodo

chão, vinha-me um desânimo, um desejomaligno de adoecer emorrer e deixar os

adultosentreguesaoseudestino".

Apósumepisódio emque seupai quaseperde a sanidadena estrada, devido a um

desafio feito pelo garoto, os adultos passam a evitá-lo, e o narrador teme que sua

própriamãesintaomesmomedoemrelaçãoaofilho.Aoconfrontaramãe,onarrador

chora,massemsaberoporquê:"[...]nãotinhamotivonenhumparachorar,euestava

chorando mais por formalidade, porque o que havia eu feito para estar naquela

situação?Queculpatinhaeudavida?"Aoenxugaraslágrimas,sente-senoalto"deuma

grandemontanha, de ondepodia ver embaixo omeninode calça curta" que "havia

deixadodeser".Nodesfecho,omeninoparecever-sepelaprimeiravezcomoadulto,

apesardeaindanãooser.Absolve-sedeculpaportudooquefez,poisapenasbuscava

ajudar; não é o culpado pelo temor que os adultos sentem diante de algo que não

compreendem,suacapacidadeúnicadecruzar, intacto,um localdegrandeperigoe

lógicadesconhecida.

Jánocontoquedátítuloàcoletânea,OscavalinhosdePlatiplanto,somosapresentados

a um narrador mais velho, de idade indeterminada, que adota a voz infantil como

reminiscência de uma experiência passada, relatando um estranho caso ocorrido

quandoera“muitocriança”:seu“primeirocontato”comas“simpáticascriaturinhas”

que chamadeos cavalinhosdePlatiplanto.Apósumaquedaquedeixou seupéem

péssimoestado,seuavôRubémhaviaprometidodar-lheumcavalinhodesuafazenda,

masacabaporadoecerantesdecumprirapromessa.Afazendadoavôétomadapor

umtiogananciosoeomeninojamaisrecebeopresente.

Logo, os elementos sobrenaturais começam a penetrar na vida do garoto. Em um

passeio,encontradiversaspersonagensenvolvidasemtarefasextraordinárias,como“o

meninoquetinhamedodetocarbandolim”,umgarotoquetemeaapariçãodecriaturas

monstruosassemprequealguémtoca:"Elesvêmcorrendo,sopramumbafoquentena

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75

gente,ninguémaguenta".Apósajudaromeninoarecuperaraconfiança,élevadoaum

localonírico,afazendadePlatiplanto.

Umafiguraidentificadaapenascomo“omajor”explicaquePlatiplantoéolardeum

grupo de cavalinhos implausivelmente adestrados que pertencem unicamente ao

narradorporordemdeseuavô.Escondem-sealiparaevitarquecaiamnasmãosdotio,

quedesejaassassinarogarotoetomar-lheosrarosanimais.Omeninotestemunhaa

excepcionalperformanceapresentadapeloscavalinhosedescobrequejamaispoderá

levá-los,poisosanimaisexistemapenasemPlatiplanto.

Em algummomento, sem perceber, o menino adormece e desperta em sua cama.

DecidenãocontaraninguémoqueocorreuemPlatiplanto:"Podiamnãoacreditar,e

aindarirdemim;eeuqueriaguardaraquelelugarperfeitinhocomovi,parapodervoltar

láquandoquisesse,nemquefosseempensamento".Aambiguidadedodesfecho—

teria sido um sonho? — pode aproximar a narrativa do fantástico de Todorov (a

hesitaçãoentreumaexplicaçãoracional,osonho,eumasobrenatural,aexistênciada

terra mágica de Platiplanto), mas a insinuação de que o acontecimento narrado é

somente“oprimeirocontato”donarradorcomosimpossíveiscavalinhospodepôrem

dúvidaessaexplicação,demasiadosimplistaparaaobradeJ.Veiga.

Porsuavez,AIlhadosGatosPingados,oprimeirocontodacoletâneaOsCavalinhosde

Platiplanto, é uma das narrativas em que não há um elemento fantástico tão

distintamentevisívelquantoemAfronteiraouOscavalinhosdePlatiplanto,masháa

construçãodetodaumaatmosferaqueremeteàirrealidade,apontandonovamentea

plasticidadedomundoinfantil.

Noconto,onarradoreseusamigosCedileTenisãobuscamescapardosproblemasda

vidanapequenacidadeondevivempormeiodaimaginaçãoedabrincadeira.Rejeitam

sempreacompanhiadeCamilinho,garotomaisnovoemimadocujochoroosirrita.Dos

três,éCedilquemmaisprecisadeumrefúgio,sofrendoabusosfrequentesnasmãosdo

violento cunhado Zoaldo. O narrador e Tenisão também sofrem com a opressão de

garotosmaisvelhosedosprópriosmembrosdesuasfamílias,porquesãotidoscomo

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inferioresnahierarquiafamiliarecomunitáriaquepriorizaaopiniãodosmaisvelhose

menosprezaadascrianças.

Um dia, descobrem um local remoto e de difícil acesso: uma ilha fluvial, acessível

somentedebarcoequedeinícionãotemnome,masacababatizadadeIlhadosGatos

Pingados.Tenisãodescreveosgatospingadoscomo"obichinhomaisbonitodomundo

inteiro,aténacional,eomaiscustosodeachar”,sendoalguns“atépingadosdeouro”

maisrarosainda.Apesardedesconheceremotalanimal,osoutrosmeninosseanimam

comapossibilidadededesenvolverailhaecomprarumcasal,batizandooretiroinsular

como a Ilha dos Gatos Pingados. De certa forma, os três garotos podem ser vistos,

também,comoosGatosPingadosdotítulo.

Paradesenvolveresse refúgioonírico,osgarotos, comoespéciedeRobinsonCrusoé

pluraleinfantil,constroemestruturas,planejandoestabelecerumausinanaIlhaemais.

Contudo,Camilinho,cansadodarejeiçãoporpartedosgarotos(comportamentoque

reproduz a opressão que os próprios sofrem nas mãos dos mais velhos) relata a

existência da ilha a um grupo de meninos mais velhos, que destrói tudo o que os

meninosconstruíramemseuincipienteParaíso.

AperdadaIlhaédolorosa,maséCedilquemacabaporsofrerasmaioresconsequências:

cansadodosabusos,fogeduranteamadrugada,deixandoparaonarradorseucanivete

favorito.Onarrador,temendoperderalembrançadailhaedoamigo,recusa-seaseguir

emfrente,comopedesuamãe:"Mamãeralhava,diziaqueeramelhoreuirtratandode

esquecer.Ouvindotododiasempreamesmacoisaeuficavamaistristeainda.Qualera

a vantagem de esquecer? [...] Acho que tem certas coisas que a gente não deve

esquecer,écomoumaobrigação.Sedependerdemim,nuncaeuheideesqueceraIlha

dosGatosPingados".

Ador(dordesertemidopelaprópriamãe,deperderoavôeopresenteprometido,de

terapurezadeumrefúgiodestruído)écolocadaporVeigacomoetapanecessáriaà

metamorfosedomeninoemhomem,acentuadapela coexistênciada realidadeeda

magia,tidacomotípicadacosmovisãoinfantil.

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3.3.2. Fronteirafantásticaentreavidaeamorte:OsdooutroladoeAInvernada

doSossego

Outro tema explorado por José J. Veiga com o uso da voz infantil é a dicotomia

vida/morte, aprofundada pelo autor por meio do elemento fantástico como uma

fronteira muito mais porosa do que aquela tradicionalmente estabelecida pelo

pensamentológico-racional,comovistoemOpirotécnicoZacarias,deRubião.Éocaso

doscontosOsdooutroladoeAInvernadadoSossego,queretratamamortedeforma

altamentesimbólica,comdesfechosbastantecontrastantes—refletindoasdiferentes

atitudesqueoserhumanopodeadotardiantedoinevitávelAbsurdodofim.

Os do outro lado tem início com a descrição de uma casa "grande e alta, de tijolos

vermelhos, talvez a mais alta do lugar", localizada "atrás de uma cerca de taquara

cobertademelões-de-são-caetano”(marcasdoregionalismotípicodeJ.Veiga).Apesar

desertãoaltaetãovívida,onarrador(outromenino)nuncacompreendeuporquenão

podiaservistadarua.Refere-se,assimcomoemAusinaatrásdomorro,aum"outro

lado", a região onde fica a grande casa, a qual jamais havia notado antes dos

acontecimentosquedecidenarrar:"Tambémnãomelembrodeterandadodooutro

lado,nãoseiquemmoravalá,aquelapartenãoestavanomeucaminhonemnaminha

curiosidade;sómerecordo,comocoisanormaleaceita,queosentesquemoravamlá

nãoeramparaservistos,muitomenosfrequentadosourecebidos".

Onarradorrelata,então,comoreparounaexistênciadacasavermelhapelaprimeira

vez:aolevarseucavalobebernoriacho,percebe"umenxamedeborboletasamarelas".

Umadasborboletassedestacadasdemaiseseaproximadonarrador,queéatingido

por uma súbita compreensão: "A borboleta tinha umamensagemparamim, estava

escritaemsuasasas,chegueiaverumaououtrapalavra,quenoentantonãoconsegui

entender".Persegueaborboletaatéqueelapassa"paraooutrolado"atravésdeuma

cerca. A partir de então, o narrador se depara com uma série de acontecimentos

extraordinários,comoasúbitainvasãodamansãopor“grandenúmerodesoldadose

civis, todosarmados,correndopela rua, saltandoporcimadacerca,derrubando-ae

invadindoo jardim”.Escapadamultidão,compostadeestranhaspersonagensqueo

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abordamcompropostasenigmáticas.Oselementosmágicossemultiplicamàmedida

queanarrativaprogride,tomandoporcompletoomicrocosmopessoaldonarrador.

A conclusão do conto ocorre com o encontro entre o narrador e uma personagem

descritacomo“irmãdeBenigno”,colegadeescoladoprotagonista.Apósum"clarão

muitoforte,brancocomoluzdemagnésio",ospersonagensavistam"umaquantidade

de objetos comoenormes bolhas de sabão cruzando lentamente o céu no rumodo

barrancodooutrolado".

Percebemquehásereshumanosnointeriordosobjetos,pessoasqueonarrador"não

viahámuitotempo",comoopróprioBenigno.Onarradorsentepenadasfiguras,que

parecemestarmortas(ou,nostermosdeJ.Veiga,pertencemagoraao“outrolado”).

Questiona-se:"Porquenãoiamtristes?Porquenãoreclamavam?Porqueesfregavam

asmãos,comosetivessempressadechegar?"AirmãdeBenigno,aoverosorrisodo

irmão, pergunta: "Você viu? Não dói!" Praticamente em uníssono, encantados pela

descoberta,exclamam:"Quantomedosemmotivo!Quantomedosemmotivo!"

Frente à imagem absoluta da morte, de natureza absolutamente sobrenatural, o

narradoreairmãdeBenignoparecemchegaràmesmaconclusãosobreaprópriavida:

que não há motivo para ter medo, pois a vida e a morte são e sempre serão

essencialmenteincompreensíveisparaoserhumano.

Porsuavez,odesfechodeAInvernadadoSossegoéconsideravelmentemaistenebroso

doqueoconfortoencontradopelonarradordeOsdooutro lado.Onarrador,outro

menino,entristece-seprofundamentecomanotíciadequeseucavalofavorito,Balão,

desapareceudocurral.Aesperançadeencontrá-loseesvaiquandoumamigodafamília

encontra o cadáver do animal. O encontro com o corpo do cavalo é brutal e afeta

fortementeonarradoreseuirmão:"Tombadonoaçude,comocorpodentrodaágua,

o rabo boiando como ninho desmanchado, o pescoço entortado no barranco [...] a

barriga esticada como bolha que vai estourar, nem parecia o nosso cavalo". Para o

narrador, a dormaior vemdo confronto coma realidadebiológica e inescapável da

morte:"Nãopodiaeletermorridocomoera,bonitoelimpo?"

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Osmeninosapelamparaafantasiaparacombateroluto,passandoa"fazertudocomo

seoBalãoaindaestivessevivo".Essejogodefaz-de-contaéaportapelaqualadentrao

insólitonouniversodonarrador,estabelecendonovamentearelaçãoentreolúdicoeo

mágico,doisladosdamesmamoedanarrativacomaqualtrabalhaJoséJ.Veiga.Certa

noite,onarradorédespertadopeloirmão,queoconvidaaparticiparda“cavalhada”

comofalecidocavaloBalão.Extraordinariamente,Balãofazseuretornodosmortose

os conduz a um local extraordinário, localizado novamente em um indeterminado

“outrolado”:"Malpassamosoaramenaporteiraedescemosabaixadadocórrego,já

íamoslonge,emterrasmuitodiferentesdasnossas,umavárzeadeburitisaperderde

vista".

Onarradorserecordadeumaterra fantásticachamada InvernadadoSossego,onde

animaisfalecidosvivemlivreseemfelicidade,longedossofrimentosterrenos:"Eraum

lugarondenãohaviacobranemervanemmutuca,avidadeleserasópastarecomer

quantotinhamvontade,quandodavasonosaíamedormiamondeestivessem,nema

chuvaosincomodava,seduvidaraténemchovia".Percebe,agora,queaInvernadado

Sossegorealmenteexiste,eque"qualquerpessoapodiairlásenãoficasseaflitapara

chegar".

Porém,apacíficailusãodaInvernadacomoespéciedeParaísoinfantilérapidamente

estilhaçadaquandoosgarotosdescobremqueláexistemforçasmalignas,umexército

debárbaroscapadóciosque“aparecemderepentearmadosdegarruchaefazemum

estragomedonho",comosádicohábitodematarcavalos.Omedodeperderocavalo

novamente,emmeioàsúbitainvasãodoscapadócios,fazcomquecavemumburaco

(comamórbidaformadeumacova)paraesconderBalão.Todavia,onarradorperdeo

cavaloeoirmãodevistaemmeioaocaoseacabapordespencarnoburacoquehavia

cavado,ondeficapresopelopesodeumcorpoquenãoédeumcavalo:"Oscapadócios

pesammaisdoquechumbo,erainútiltentarescapar".

Contrastando com a lúdica premissa apresentada no início, a narrativa subverte a

expectativa estabelecida emumdesfecho violentoe cruel.Aprisionadono fundoda

cova,naagorainfernalInvernadadoSossego,onarradorobserva"asnuvenspassarem

nocéualto,tãolivresetãoremotas,ospássaroscumprindooseudeverdevoar,sem

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80

seimportaremquenofundodeumburacoummeninomorriademortehumilhante,

morriacomobarata,esmagadocomobarata"esozinhonoescuro.

AInvernadadoSossegoconverteolúdicodeumsonhoinfantil—oparaísopós-vidaem

que animais de estimação convivem alegremente para sempre — em um terrível

pesadelo:umaterraemqueoscavalinhossãoassassinadosporbárbarosfétidos,em

queaviolênciaestraçalhaqualquertentativadeestabelecersentido.Oprópriotítulo

remeteaessadupla identidadedomundoalternativo“atrásdomorro”:ocontraste

entreosossegoeacrueldadedo inverno.Apesarda reversãode tomemrelaçãoàs

exaltaçõesquefechamocontoanterior,omeninoquemorre“demortehumilhante”

na Invernada do Sossego encontra-se diante da mesma impossibilidade de decifrar

sentidoentreavidaeamorte,emumaexistênciacegaeincompreensível.

3.3.3. OinsólitoeoOprimido:Ausinaatrásdomorro,Erasóbrincadeira,Quando

aTerraeraredonda,AHoradosRuminanteseSombrasdeReisBarbudos

TalvezoprincipalpontoemquealiteraturadeJoséJ.Veigadivergedaquelaproduzida

por Murilo Rubião seja, além do regionalismo que cimenta suas narrativas mais

claramente em certas regiões do Brasil, o uso do insólito para análise de relações

sociopolíticasdepoder,dominaçãoeopressão.

Apesar de, conforme discutimos no capítulo 2, o Brasil não ser considerado pelos

estudospós-coloniaiscomoumanaçãopós-colonial,esimcomoumaex-colôniacujo

desenvolvimento após a colonização já é extenso, osmecanismos empregados pelo

autor remetem para aqueles propostos por Slemon como centrais à literatura de

realismomágicopós-colonial:emsuma,arepresentaçãodessasrelaçõessociaisocorre

em três níveis: a transformação regional do espaço narrativo como metonímia da

culturapós-colonialnumtodo;otemponarrativoquecontémmetaforicamenteolongo

processo de dominação; e os silêncios produzidos por essa relação de dominação e

submissãonalinguagemnarrativadisjuntivadorealismomágico.Orealismomágicoque

seocupadessasquestõesfrequentementefazusodeimagensdefronteirasecentros,

deumEu/NóseumOutro/Eles,dereflexoseopostosemconflito.

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81

Narrado,comoétípicoemJ.Veiga,porummeninodeidadeindefinida,Ausinaatrás

domorroteminíciocomachegadadoOutro,definidovagamentecomo"eles",umpar

de estrangeiros que chega à cidade interiorana com "uma infinidade de malas,

instrumentos,fogareiroselampiões".

Emborasejaminicialmenteobservadospelapopulaçãocomcautelosacuriosidade,os

estrangeirosnãorevelamseupropósito:"Nãosabendooquefaziamoutramavamno

sigilodeseuquartoounomistériodesuasexcursões,tínhamosmedoqueoresultado,

quandoviesse,pudessenãoserbom.Vivíamosempermanentesobressalto".Aangústia

causadapelaintromissãodesseOutronarotinadacidadeéumelementorecorrenteem

J.Veiga,comconotaçõespolíticas(devidoàépocaemqueescreveugrandepartedesua

obra)maisseverasqueasdeRubião.

A cidadepassa a ver os estrangeiros comgrandedesconfiança. Porém, em segredo,

diversoshabitantesfazemnegócioscomaduplaepassamapertencerao“outrolado”

(emJ.Veiga,o“outrolado”éamarcadoOutroqueagecomooagentedisruptorda

ordemestabelecida).Outros companheiros começamaenvolver-senosafazeresdos

estrangeirosebarulhosprovenientesdetrásdomorropassamaserouvidosporquem

searriscaaaproximar-sedapropriedade,agoravigiadaporsentinelasarmadas.Osque

agorasão"dooutrolado"nãocomentamoqueocorreatrásdomorro,maspassama

tratarseusvizinhoscomsoberba.

Oelementoinsólito,atéentãopoucovisível,começaapenetraraospoucosnanarrativa,

comomesmoimplacávelritmodaocupação.Achegadadeuminfindávelnúmerode

caminhões traz estrondos incessantes atrás do morro. Os ex-companheiros trazem

novos forasteiros à cidade a bordo dos caminhões: "uns homens muito altos e

vermelhos,osbraçosmuitocabeludosaparecendoporforadamangacurtadacamisa",

queobservamacidadeatentamenteeesvaziamaslojasdemercadorias.

Um dos ex-companheiros, nomeado "gerente da Companhia" (como em Rubião, as

instituições antagonísticas das obras de J. Veiga são referidas por termos

propositadamente vagos, a Companhia que opera como a arquetípica corporação),

oferece a tentação final aos que permanecem em dúvida quanto ao outro lado: a

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82

possibilidadede trabalhocomaCompanhia.Diversoshomens seapresentamparaa

seleçãodaCompanhiaesãolevadospeloscaminhões,completandoatransiçãoparao

outrolado("foiaúltimavezqueosvimoscomoamigos:quandocomeçaramaaparecer

novamentenacidade,ninguémosreconheciamais”).ACompanhiaéumexemplodo

quediscuteTurchi:“AburocraciaéoprincipaltemaemmuitasobrasdeVeigaqueé

elevadaàesferade fatoseacontecimentos insólitos criandoo fantástico comouma

consciênciagritantedafaltadesentidonasaçõesprovenientesdoantropocentrismo”

(Turchi2005:4).

Agora,sãoasmotocicletasquesemultiplicamemincontávelquantidade,tornando-se

umapraga:"Ninguémmaispodiasairàruasemapreocupaçãodelevarumavarabem

forte comum ferrão na ponta para se defender dosmotociclistas, que pareciam se

divertir atropelandopessoasdistraídas".Aviolênciaatingeníveisabsurdos: "Nemos

cachorrosandavammaisemsossego,quasetodososdiasaIntendênciarecolhiacorpos

decachorrosestraçalhados.Equantagentemorreuembaixoderodademotocicleta!"

Osmotociclistasatropelamosprópriosconterrâneossobrisosecomentárioscruéis:"A

impressãoquesetinhaeraadehaverpessoasocupadasunicamenteemperturbaro

nosso sossego". A dominação progressiva, pela força invasora e pelo elemento

extraordinário,fazcomqueoshabitantessesintamintrusosemsuaprópriaterra.De

súbito, suas casas começam a pegar fogo sem motivo aparente: "Primeiro era um

aquecimentorepentino,osmoradorescomeçavamasuar,todososobjetosdemetal

queimavamquemostocasse,edochãoiaminandoumfumaceirocomumchiadotão

fortequeatéassobiava".

O desfecho de Os do outro lado é desesperançoso, culminando com a completa

ocupaçãodoespaçonarrativoporumaforçaopressoraassociadaaumincompreensível

elementoquasesobrenatural.Umaúltimatentativaderebelião,encabeçadapelopai

donarrador,acabaemfracasso,comopaicapturadoeoprotagonistaesuamãeem

fugadacidade.

OcontoErasóbrincadeiranarraoutroepisódiodeopressãoviolentaeseocupadas

reaçõesàrepressãoporpartedosespectadoresdessesatosdeviolência.Onarrador,

Page 87: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

83

quepareceserumhomemdemeia-idade,contaosestranhosacontecimentosemsua

cidadeinteriorana.Contaonarradorque,certodia,oescrivãoValtrudesretornadeuma

pescariacom"umameiadúziademiuçalhaseumcanodegarrucha".Esteúltimo,um

cano "comido de ferrugem", é o objeto aparentemente banal pelo qual o elemento

extraordináriopenetraanarrativa.

Maistarde,onarradoréabordadoporumestranhoinquisidor, identificadocomo“o

Major”, que o questiona a respeito de sua amizade com Valtrudes, dando especial

atençãoaosobjetosencontradosnapescaria.Concluídaainvestigação,oMajorprende

Valtrudeseosentenciaàmorte.Contudo,ocondenadosemantémcalmoebrincalhão

atéofim,oquefazcomqueonarradorseconvençadequetudosetratadeumagrande

farsa,mesmoapóstestemunharoato:"ViumcacodacabeçadeValtrudesvoaralto,

comococoquebradoamachado,eircairpertodeumbarrilvelho,enquantoacadeira

tombavaparatráscomeleaindasentado.Volteiparacasaintrigadocomoquetinha

acabadode ver. Pormais quepensasse, eunãopodia atinar como iriameles soldar

novamenteacabeçadeValtrudes,quandoabrincadeiraacabasse".

Nesteconto,J.Veigaesmiúçaacomplacênciadooprimidofrenteàviolência,suarecusa

emaceitaraevidenteescaladadaopressãomesmoquandodispõedetodasasprovas,

dotestemunhodosprópriosolhos,atéquejáétardedemais.Oabsurdomotivopelo

qualfoicondenadoValtrudes––adescobertadoinofensivoobjetonorio––émaisum

reflexo da irracionalidade do opressor, que age sob propósitos aparentemente sem

sentido.

EmQuandoaTerraeraredonda,partedacoletâneaDejogosefestas(2016),háuma

poderosainversão:emummundoemquetodospercebemaTerracomochata,etodos

osobjetoseseresquenelahabitamigualmentechatos,háquemsugiraqueomundo

nemsemprefoiassim,tendooutroraassumidoformasarredondadas.Oextraordinário

nãoestáemimaginaraTerraplana,masemimaginá-laredonda:"Difícilimaginarque

estapartedaTerra já foi redonda,masos indíciosestãoaí,eaumentamacadadia.

Verdadequenemtodomundoospercebe,paraissoéprecisoumacuriosidademaníaca

eumfaromuitoespecial."

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84

Estudiososencontramevidênciasdeummundoquejáfoiredondo,comoestátuasque

retratam figuras humanas arredondadas. Diversas hipóteses para o achatamento da

Terra sãopropostas.Umacadêmicoescreve: "Éevidentequeoachatamento foium

processolento,demorado,feitoumpoucohoje,umpoucoamanhã,dessascoisasque

opúbliconãonotaquandoestãoacontecendo,comooapagardasluzesnumcinema

antesdecomeçarasessão".Oextraordinárioprojeto,supõemosacadêmicos,deveter

incluído, além de imensas obras e destruição organizada de objetos, o expurgo da

próprialiteratura:"Osfarejadoresdesinaisderedondezadesenvolveramumfarotão

sutilquechegaramacondenarpoemascujoritmosugerissemovimentocircular".

Surge, então, umahipótese alternativa, aindamais escandalosa: umespecialista em

psicobiologiapropõe"atesearrojadadequeaTerranuncadeixoudeserredonda".De

acordocomoprofessor,"aspessoas,geraçãoapósgeração,foramcondicionadasdesde

pequenasaaceitarodogmadequevivemnumaTerrachata;ecomosóviamformas

chatasportodaparte,acabaramseconvencendo".Para isso,opesquisadorsugerea

existência de um esdrúxulo procedimento: o Toque de Ay-Sing, que consiste "numa

pressão sobreonervoóptico, aplicadaem toda criança aonascer", que "bloqueia a

capacidade de ver formas redondas e de percebê-las pelo tato, com a consequente

atrofiadazonacerebralcorrespondente".

Suahipóteseparecesercomprovadapelocuriosocasodo"moçopeludodeAnápolis",

umselvagemquecresceusemcontatocomoutrossereshumanosnamatadaCanastra;

apósexamespsicológicos,comprova-seque"opacientetinhaumavisãoredondado

mundoedascoisas".Ateoriadoprofessorévistacomorevolucionária:

"Severdadeira,abreperspectivastambémrevolucionárias.Supondoqueoquefoifeito

artificialmentepodeserdesfeito,podemossonharcomodiaemquepessoasdecorpo

roliçohabitarãoumaTerraredonda[...]vendocoisasredondasousobasformasreais

que tiverem, e talvez também pensando ideias redondas. É uma perspectiva tão

alucinantequechegaacausarvertigem".(Veiga2015:80).

Porfim,onarradorpropõeumaterceirahipótese:adeque,naverdade,ninguémestá

vendoaTerrachata:"Todomundofingeestaracreditandonachaticegeralapenaspor

cansaçoetambémporpreguiçadecontestaroquefoidecretado".

Page 89: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

85

Astrêshipótesessugeremdiferentesformasdeopressãoquefazemcomqueaspessoas

nãosejamcapazesdeveras coisas comorealmente são:aprimeira,umassassinato

deliberado do passado, uma manipulação deliberada da história; a segunda, uma

imensaconspiraçãoquecertamentecontacomaconivênciadediversosagentes(por

exemplo, os médicos que aplicam o Toque de Ay-Sing) a mando de alguma ordem

superior, demotivações inefáveis; e a terceira, uma complacência generalizada, um

medodedesafiaramentalidadecoletiva,dediscordardagrandemassa.

Ousodoelementosobrenatural,mágicoe/ouextraordinárioparadarvozaoOprimido

nos contos aqui analisados é consolidado e desenvolvido nos romancesAHora dos

RuminanteseSombrasdeReisBarbudosEmambososromances,ofantásticoirrompe

lentamente,erefletediretamenteasufocanteopressãoqueseinstalaaospoucosna

comunidade,privandooshabitantesdeseuscostumes,suastradiçõesesualiberdade.

Em A Hora dos Ruminantes, o Outro, a força invasora, é um grupo de homens

enigmáticosdescritos como“oshomensda tapera”, forasteiros rudesque criamum

assentamento nos arredores da vila de Manarairema e, sem dar explicações à

população,passamadominarolocalcomsuamerapresença.Contam,comoemAusina

atrásdomorro,comacolaboraçãodehabitanteslocaisconvertidosaseuspropósitos,

“traidores”doprópriopovo.Nanarrativa,hádoiseventosfantásticosprincipais:odia

doscachorroseodiadosbois.

Noprimeiro,centenasdecãesinvademacidadedeManarairema,tomandoasruase

causandograndecaoseviolência:"Fechadasemcasa,abanando-secontraafumaça,

enervadascomoslatidos,aspessoastapavamosouvidos,pensavamenãoconseguiam

compreender aquela inversãodaordem, a cidadeentregue aos cachorros e a gente

encolhidanoescuro,semsaberoqueaconteciaaseguir".Acertaaltura,semexplicação,

"comoobedecendoumcomandosecreto,todososcachorroscessaramoqueestavam

fazendo,farejaramoar,limparamospésedispararamnorumodatapera,atropelando

genteeseatropelando".

Odiadosboisocorredeformasimilar.Chegamaospoucos,maslogosãomilhares:"A

ocupação foi rápida e sem atropelo; e quando o povo percebeu o que estava

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86

acontecendo,jánãoerapossívelfazernada:boisdeitadosnoscaminhos,atrapalhando

apassagem,assustandosenhoras".Amassadeanimaiscausagrandesestragosàcidade

emuitossãomortossoboscascosdosbois:"Ànoiteninguémconseguiadormir,não

tantopelodesesperodosberrosdetodoaquelegadoencurralado,maspeloreceiode

umestouro[...]Nanoitecomprida,sufocantedeberros,aspessoaspassavamotempo

sentadas nas varandas bebendo chás e pensando no que teriam feito paramerecer

aquele castigo". As crianças desenvolvem ummétodo de caminhar sobre os bois e

passamamanteracidadeemfuncionamento.

Manarairema cai em ruína e todos aguardam o fim, até que o silêncio preenche a

madrugada:"Derepente,adescoberta[...]Oespanto,aincredulidade—aalegria.O

céuclaro,asruaslimpas,oluarpurificandoolamaçaldeestercoeurina".Assimcomo

os cães, os bois partiram subitamente, deixando para trás apenas rastros de sua

inconcebível ocupação. Em breve, descobrem que "os homens da tapera" foram

embora,eaocupaçãodeManarairemafinalmentetemfim.

Sombras de Reis Barbudos, romance frequentemente analisado como alegoria da

ditadura militar brasileira, segue uma narrativa similar. Os problemas da cidade

interiorana de Taitara têm início quando o tio do narrador, um menino de idade

indefinida, traz ao local a Companhia de Melhoramentos, entidade que sai de seu

controleeestrangulatodasasliberdadesdoscidadãosdeTaitara.Opaidonarradoréo

“traidor”danarrativa,assumindoopapeldeFiscaldaCompanhia,delatandoospróprios

companheiros; arrepende-se, mas já é tarde, e acaba levado pela Companhia, seu

destinodesconhecido.

OepisódiodopaidonarradorémaisumarepresentaçãodaideiaqueJ.Veigaparece

tersobreasimbioseOprimido-Opressor,tidacomonecessáriaparaaconsolidaçãoda

opressão:“Pormaisqueopoderinstituídopelasforçasderepressãoeviolência,naobra

deVeiga,lembreaconstituiçãolegítimadeumaparelhodoestado(metaforizadapela

máquina,pelacompanhia),éprecisoevidenciarqueacumplicidadevoluntáriaquese

estabelece entre o indivíduo e o poder sugere um pacto mais complexo, um

entrelaçamentomaissutilentreasduaspartes”(Nepomuceno2007:108).

Page 91: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

87

Oselementosmágicossãodiversose,comonasdemaisobrasanalisadasnestaseção,

sãoutilizadospararealçaraopressãosofridapeloshabitantesdeTaitara:aCompanhia

ergueimpossíveismurosportodaacidade,aprisionandooscidadãosemumlabirinto

deenormesparedesbrancas;o surgimentodemilharesdeurubusqueobservamos

habitantesatentamenteeaeventualproibiçãodaCompanhiadetratarosanimaiscom

afetoquandoopovoseacostumacomeles;e,porfim,emumaimagemqueremete

paraamagiaemCemAnosdeSolidão,osurgimentodepessoasvoadorasquetomam

oscéus("Hojeninguémestranha,todomundoestávoandoapesardaproibição,sónão

voaquemnãoquerounãopodeoutemmedo.Masnaquelesprimeirosdiasfoiumdeus

nosacuda,pareciao fimdomundo").O romancenãoofereceumdesfechootimista

comooanterior:TaitaracontinuaocupadapelaCompanhiadeMelhoramentos, sem

perspectivadedesocupação.

Osdois romancestrazemsucintamenteas trêsmanifestaçõespropostasporSlemon.

Pode-seargumentarqueasnarrativasdeAHoradosRuminanteseSombrasdeReis

Barbudos, que detalham o encontro de duas comunidades rurais fictícias com uma

súbitaocupaçãoporumOutroenigmático,sintetizatemporaleespacialmenteoperíodo

daditaduramilitarbrasileira.DeformasimilaràaldeiadeMacondodeGarcíaMárquez,

Manarairema e Taitara representam o espaço da opressão histórica a partir da

perspectiva do oprimido, fornecendo um relato polifônico de vozes silenciadas de

representaçãonahistóriadefinidapelocentrodepoder.

3.3.4. Consideraçõesadicionais

Assim como em Rubião, as obras de José J. Veiga oferecem diversas

possibilidadesde interpretaçãoeabordagensteóricas.Háespaço,porexemplo,para

umaexploraçãomaisaprofundadadas relaçõesdepoder; conformesugereSantiago

(2015) no prefácio aOs cavalinhos de Platiplanto, é possível estudar determinadas

narrativas de Veiga como metáforas da catequização de povos nativos ou para a

escravidãodepovosafricanos,bemcomoaprofundararelaçãohistóricadaprodução

literária do autor com os atos de censura estabelecidos durante a ditadura militar.

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88

Também é possível traçar paralelos, como o faz Dantas (2002), entre a recorrente

imagemdo“outrolado”eoterritórioeuropeu,comtodoseuhistóricocolonialista.A

visão de uma infância predominantemente masculina, o papel do meio rural na

resistênciasociopolíticaeoutrostemaspodemtambémserexploradossobdiferentes

óticas teóricas, cabendo a este trabalho apenas um recorte do amplo leque de

interpretaçõespossibilitadopelaobradoautor.

Page 93: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

89

4. Conclusão: Haveria um realismo mágico verdadeiramente

brasileiro?

Ocapítuloprecedentevisou,pormeiodasleiturasdaobradeMuriloRubiãoeJoséJ.

Veiga,destacaralgumasdasprincipaiscaracterísticasealgunsdostemasrecorrentes

nos contos de cada um destes escritores. Espera-se, desta forma, ter demonstrado

algumasdassemelhançasedivergênciasentrealiteraturadecadaautor,comênfaseà

formacomoempregamoelementoinsólitoeorealismoemsuaconstruçãodoefeito

mágico-realista.

Embora ambospriorizemoolharmasculino, oherói/narradordeRubião (ohomem-

uroboroouoSísifocontemporâneo)éohomemadulto,enquantoJ.Veigaempregaa

figuradomeninooudorapaz,utilizandoainfânciacomomecanismodeexpressãodo

fantástico.Ouniversoficcionaldecadaautortambémdivergeemtermosdeespaço:

enquanto os contos de J. Veiga são marcados pelo regionalismo (de léxico, de

personagens,deespaçoedecostumes),asnarrativasdeMuriloRubiãotranscorremem

umespaçoque,emboracarregadodetraçosbrasileiros,émaisdifusoeindefinido.

Nesteespaço,Rubiãonarraosconflitos,temoresedesejosdeindivíduos;seusheróis

operamdestacadosdeumcoletivo,enfrentandodilemasinteiramentepessoais,apesar

deuniversaisàcondiçãohumana.EmJoséJ.Veiga,porsuavez,emboraoindivíduoseja

ofocodediversasnarrativas,háumapresençamaiordocoletivo,especialmentenas

narrativasquelidamcomatemáticadarepressãocomunitária.Nestesentido,aobrade

J.Veigapossuiumaconotaçãohistóricamaispronunciada,possibilitandoanálisesque

consideram livros como Sombras de Reis Barbudos enquanto analogias da ditadura

militarbrasileira.OsconflitospresentesnoscontosdeRubiãotêmumanaturezamais

atemporal,trasncendente,destacadadeprocessoshistóricosespecificados.OAbsurdo

inerenteaumaexistência semsentidopré-determinadoestápresenteemambosos

autores,masmanifesta-seemRubiãocomoAbsurdodaexperiênciapessoal,eemJ.

Veigademodoorapessoal,orafrutodeumaexperiênciacoletivadeintensoconflito

social.Apesardasdistinções,RubiãoeJ.Veigafrequentementefazemusoderecursos

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90

dorealismomágico(conformedefinidoaolongodapesquisa)deformaaexportemas

similaresesãoescritoresigualmenteinovadoresdentrodatradiçãoliteráriabrasileira.

Apesardocaráterinovadordesuasobras,ambosnãosãoalheiosaessatradição,mas

situam-sedentrodela,tendocontatodiretocomfigurasinfluentesdesuaépoca,como

atestamascorrespondências trocadasentreRubiãoeopoetaMáriodeAndradeea

longaamizadedeJoséJ.VeigacomocélebreescritornacionalJoãoGuimarãesRosa.

Cientedequeaspropostasdestecapítulopodemserdiscutidasdevidoàpluralidadede

definições de realismo mágico e de possibilidades de classificação dos autores

trabalhados, os apontamentos aqui propostos não têm como objetivo afirmar a

existênciaabsolutadeumrealismomágicobrasileirocentradonessesdoisautores,mas

examinaraexistênciadeconstelaçõesde temaspresentesnesses textosquepodem

aludir a alguns aspectos desse potencial movimento. Por meio de combinações do

insólito, domaravilhoso e do fantástico, os autoresmesclam práticas existentes na

literaturaocidentalenaliteraturalatinoamericana,configurandoumapráticaliterária

quepodeser,emdiversospontosemomentos,indicadoradoquepoderiacaracterizar

orealismomágiconoBrasil.

Com base nas definições discutidas no capítulo 1 e no contexto da modernidade

brasileiramaissucintamenteabordadonocapítulo2,bemcomonadiscussãoindividual

de cada um dos autores, buscar-se-á agora destacar os pontos de conjunção que

permitam aludir a uma certa identidade do realismo mágico brasileiro, destacando

algunsdosaspectos identificadosao longodestetrabalho:nomeadamente,ousodo

elemento insólito para análise da alteridade; o emprego do realismo mágico como

continuidadedeumamplolegadoliterárioecultural;aexperiênciados“DoisBrasis”e

outrasdicotomiasrealçadaspelomecanismoinsólito;ousodeumadeterminada“voz”

narrativa,particularmentefértilparaexploraçãodofantásticonabuscabrasileirapor

umaidentidadenacional;orealismomágicobrasileirocomoespéciedepontehistórica

entre dois períodos distintos da literatura latino-americana; e a formação desse

movimento como processo antropofágico de aglutinação de valores e referências

ocidentaisaumaexperiênciadevidagenuinamentebrasileira.

Page 95: Aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de Murilo

91

4.1.OEueoOutronorealismomágicobrasileiro

Conformeapontadonocapítuloanterior,MuriloRubiãoe José J.Veigaempregamo

realismo mágico de maneira particular ao estilo de cada um, mas o fazem com

frequênciaparaexplorarumtemaparticularmentefértilparaestemodonarrativo:a

relaçãoentreoEueoOutro.Essadicotomiacentralànoçãodealteridadesurgeem

textos mágico-realistas de nações pós-coloniais, conforme explica Slemon (1988),

analisandoasrelaçõesentrecolonizadorecolonizado,entremetrópoleecolônia.No

Brasil,devidoaoestatutoparticulardopaíscomoex-colôniaquenãopossuiasmarcas

deuma sociedadepós-colonial nosmoldesdeoutrasnações, o contextoemqueos

autores exploram essa alteridade é um contexto propriamente latino-americano e

definitivamentebrasileiro.

EmJoséJ.Veiga,expressõescomo“ooutrolado”(quepodesereferirtantoaumaforça

antagônicaestrangeiraquantoao“outrolado”daprópriavida)surgempararealçar,de

formageográfica,adiferençaentreoEu/NóseoOutro/Eles.Aimagemdomorro,de

naturezaregionalista,é tambémempregadaparatraçaressa fronteiraespacialentre

ambos,bemcomoaimagemdeponteserios(comoorioqueseparaaIlhadosGatos

Pingadosdacomunidadecomaqualosprotagonistasjánãoseidentificammais).Nas

narrativasemqueaopressãoétemáticacentral,oOutrotomaformadeumainstituição

estatal ou corporativa de propósitos obscuros e natureza nebulosa, identificado por

substantivoscomunscomo“aCompanhia”ou“oshomensdatapera”.

Nos contos de Murilo Rubião, figuras de caráter altamente irreal (absurdo/mágico)

encarnamesseOutro.EmOsdragões,estascriaturasdeextensatradiçãonamitologia

mundialsãointroduzidasemumcontextoatípico––ocenáriodeumapequenacidade

presumidamente brasileira de “costumes atrasados" –– no qual não conseguem se

encaixar;forçadosaadotarnomesbrasileiroseadeixaremparatrássuaidentidadede

dragões, sucumbemaosvíciosdacidadee sofrem (tantoosdragõescomoaprópria

cidade)asconsequênciasdessadefectível tentativadeaculturação.Omesmoocorre

comTeleco,ocoelhinhometamorfoseantequetentaemvãotornar-sehomemeacaba

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92

convertidoem“criançamorta”,ecomohomemdobonécinzento,cujaintromissãono

espaçodonarradoréapontadacomoculpadadetudoquetranscorrenanarrativa.

Emambososautores,oOutroestáassociadodiretamenteaoelemento insólito.No

primeiro capítulo, foi discutido comoo realismomágico emnaçõespós-coloniais ou

mesmoemoutrospaíseslatino-americanosassociaamagiaeoextraordinárioaculturas

indígenas, amitos e tradições orais locais, enquanto o aspecto realista da narrativa

remete a uma tradição lógica europeia, de base iluminista. No realismomágico de

RubiãoeJ.Veiga,o insólitoéoquevemdefora,amagiaéoelementoqueirrompe

súbita ou lentamente e desvirtua as leis da lógica que vigoravam naquele tempo e

naqueleespaçoatéentão.

4.2.OsDoisBrasis:Exploraçãodedicotomiasnacionais

No contexto da modernidade brasileira, o conceito de “Dois Brasis” proposto por

JacquesLambert(aideiadequeoterritóriobrasileiroestevetradicionalmentedividido

em eixos bipolares, como o eixo urbano-rural, o eixo litorâneo-interior e, mais

recentemente, o eixo Norte-Sul) é explorado nas artes, na literatura e na política

nacional.Resultadodolentoprocessodeocupaçãoetransformaçãodointeriordopaís,

essadivisãoentreointerioreocentrourbano,entreastradiçõesdocampoeoritmo

desenfreadodametrópole,éumaideiacentralàidentidadedoBrasilcomopaís.

Aqui, são diversas as narrativas de José J. Veiga eMurilo Rubião que empregam o

realismo mágico para enfatizar essa dicotomia entre o espaço interiorano e a

experiênciadametrópole.AscidadesdeMuriloRubião(àsquaiséraramentefornecido

umnome)sãopalcoparaaexperiênciadoAbsurdoporpartedeseusprotagonistas,

especialmente os estrangeiros ao espaço urbano. EmA fila, o protagonista Pererico

encontra-se incapaz de navegar no labiríntico processo burocrático da obscura

“Companhia”,esóécapazdeescaparaocíclicosofrimentoaoembarcaremumtrem

deretornoaointerior.EmOedifício,oengenheiroJoséGasparentrega-seaoinfindável

projetodo“ConselhoSuperiordaFundação”,quevisaconstruir“umprédiodeinfinitos

andares”,símbolomáximodocrescimentourbanodesenfreado,dahúbrisdosanciões

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que projetam essa espécie de Torre de Babel contemporânea. Em O bloqueio, o

protagonistaencurraladopelaimplacávelmáquina,queserevelaapenasporruídose

vislumbres, termina o conto encerrado no local que sintetiza a vida urbana: o

apartamentoondevivesolitário,emfugadopassadoedosdilemaspessoais.

EmJoséJ.Veiga,oBrasilinterioranoéamplamenteexploradopormeiodautilizaçãodo

regionalismoedaescolhadesituaramaiorpartedesuasnarrativasemvilasepequenas

cidadesfictíciasdointerior.Manarairema(AHoradosRuminantes)eTaitara(Sombras

de Reis Barbudos) representam o arquetípico município brasileiro, país ainda

maioritariamente rural. Ao explorar relações familiares, classes sociais, ofícios e

conexões comunitárias, J. Veiga constrói nessas duas cidades o palco que Slemon

propõe como síntese temporal e espacial de experiências históricas de opressão e

submissão.ForçasantagônicascomoaCompanhiaMelhoramentosdeTaitara(Sombras

deReisBarbudos)eausinaatrásdomorro(docontodemesmonome)sãoagentesdo

desenvolvimentourbanoquecruzamafronteiraentremetrópoleeinterior,trazendo

grandesmudançasaoritmodaexistêncialocaleàprópriadestruiçãodessemeio.

Em suma, tanto J. Veiga quanto Rubião retratam diferenças essenciais entre a

experiênciaurbanaeavivência interiorana,enfatizandoaexistênciademecanismos

dicotômicosdedivisãosociogeográficanoBrasilpormeiodorealismomágico.

4.3Aidentidadebrasileiranorealismomágico

EmboraasdiferençasestilísticasentreasvozesnarrativasdeMuriloRubiãoe José J.

Veiga sejam patentes, há certas convergências que aproximam os autores dessa

determinada “voz” narrativa característica do realismo mágico latino-americano de

escritorescomoGabrielGarcíaMárquezeJulioCortázar.

Ambos fazemuso de um léxico de fácil apreensão, por vezes recorrendo ao cômico

(Rubião)ouaolúdico(J.Veiga)paraestabeleceressa“duplacodificação”(Thiem1995:

243)característicadaliteraturapós-moderna,naqualestáinseridaorealismomágico;

ambos utilizam esses recursos para destacar a natureza contraditória do próprio

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realismomágico(quepodeservisto,afinal,comocômicooulúdicoporcertosleitores,

mastambémirônicoetrágicoeporoutros).

Essaconvergência,somadaaofatodequeambososescritoresfavorecemopontode

vistadaexperiênciadevidamasculina (epresumidamentebranca),permitequenos

aproximemosdeumaespéciede“olhar”específicosobreorealismomágicotrabalhado

pelosautores.Utilizandoesserecursolinguísticodaprosainicialmenteacessível,soba

qualparecemseescondercamadascadavezmaisprofundasdeinterpretação,J.Veiga

eRubiãofazemusodorealismomágicoparaexplorarumdosmaisrecorrentestemas

noimagináriobrasileiro:asupostafaltadeidentidadeunitáriadoBrasilcomonaçãoe

de seu povo. Em Rubião, essa busca identitária ocorre nos conflitos pessoais

enfrentadosporprotagonistasque frequentementeencontram-se sós eperdidosno

mundo, incapazes de conectar-se coma realidadequeos cerca; em José J. Veiga, o

confrontoentreoruraleourbanoenfatizaessabuscaporumequilíbrioquepermita

aosprotagonistaseàssuascomunidadesmanteraidentidadefaceaodesenvolvimento

externamente imposto, bem como o uso de narradores-crianças, que ressalta a

complexabuscadomeninopelamaioridadecomohomem.Àluzdosestudosdegênero,

ambos os autores podem ser criticados pela prevalência exclusiva da experiência

masculina,mas retratam inquestionavelmente uma experiência de serbrasileiro, de

estar em busca de uma auto-afirmação identitária, que pode ser vista como

universalmentebrasileira.

4.4Orealismomágicobrasileironocontextolatino-americano

AnaturezadaAméricaLatinaenquantoterritóriopolifônicodecaráterextremamente

particular,distintodequalqueroutroterritóriogeopolíticodoplaneta,é,paraautores

como Carpentier, essencial à ascensão do realismo mágico nessa região

supracontinental. Nesse contexto, o escritor latino-americano, que tende a produzir

literaturaemidiomasdeorigemeuropeia,dácontinuidadeaumextensolegadocultural

introduzidonoterritóriolatino-americanopeloprocessodecolonização.

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95

Essa continuidade encontra-se refletida também no realismomágico brasileiro, que

surgenãocomomovimentoliterárioautônomoealheioàtradiçãoliteráriaprecedente,

masdácontinuidadeacorrentesprecedentes,resultantesdesselongolegadocultural.

Embora tanto Murilo Rubião quanto José J. Veiga tenham rejeitado, em vida,

associaçõesdiretasaautorescomoKafkaouaorealismomágicoproduzidoemoutras

nações,écertoqueasrelaçõesestabelecidasporteóricosdedicadosàanálisedesuas

obras com esses autores e correntes não é infundada. Em Rubião, por exemplo, a

constante aparição de reinterpretações de mitos clássicos ocidentais apontada por

Cánovas (Sísifo, Hermes, Proteu, medusa, o uroboro e o labirinto) dá uma clara

demonstração da continuidade desse processo. As epígrafes bíblicas refletem a

influênciadiretadeumdospilaresdaculturaeurocêntrica,ocristianismo,encontrado

tambémnostemasdepecado,culpaeredençãoexploradosrepetidamentepeloautor.

Emboranãofaçausodosmesmosmitosereferências,orealismomágicodeJoséJ.Veiga

também se distingue daquele produzido por outros autores latino-americanos ao

prescindirdemitosetradiçõesdeorigemindígenaoudeoutrasculturaspertencentes

aomiscigenadocaldopopulacionalbrasileiro,optandoporretratarconflitosexistenciais

equestões sociopolíticasamplamentepresentesna literaturaena filosofiaeuropeia

moderna.

Com base nesse legado e no contexto histórico em que surge, precedendo oboom

latino-americano de divulgação internacional de autoresmágico-realistas, é possível

proporqueorealismomágicobrasileirooperacomoespéciedepontehistóricaqueo

aproxima, do lado de Rubião (o primeiro a estrear na literatura nacional) ao

experimentalismopós-modernodeescritorescomoBorgeseàficçãoinsólitadeKafka,

edo ladode J.Veigaao realismomágicopropriamente latino-americanodeautores

comoGabrielGarcíaMárquez(essadiferençasedá,talvez,pelointervalodequaseuma

década entre a estreia literária dos autores). Portanto, temporal, estilistica e

tematicamente,seháumrealismomágicoverdadeiramentebrasileiro,estepoderiaser

vistocomorepresentaçãodesseinstantetransitórionaevoluçãodestemodonarrativo

nosubcontinentesul-americano.

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96

4.5Antropofagiamágico-realista

Ainda,umaspectoprimordialdorealismomágicobrasileiro––edorealismomágico

latino-americanocomoumtodo–podesercompreendidosobaluzdaantropofagia,

segundodiscutidonocapítulo2.ConformeressaltouCostaLima(2017),aantropofagia

forneceumacontrapartidaàarqueologiaestática“formadapelaherançadobranco”,

estabelecendoa ideiadeuma“capacidadederesistência”queseria“antesumtraço

cultural do que o produto de algum estoque étnico”, identificada por seumodus

operandicaracterístico,o“canibalismosimbólico”.

ParaNetto (2004), a teoriaoswaldiana lida comduasquestõesatéhoje centraisno

debateculturalbrasileiro:“comoconstruirumatradiçãoculturallegítimanopaísecomo

se relacionar com a tradição estrangeira” (Netto 2004:16). Inserida no contexto

analisadoatéaqui,aproduçãoliteráriadeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga,aglutinando

influênciasestrangeirasàssuasexperiênciasnacionais,nãoestá isentadessedilema.

Ainda,Nettoapontaalgumasdessasinfluênciassobreasvanguardasbrasileiras:

AAntropofagiaconstituiu-se,assim,apartirdeumduploolhar:umparadentrodopaís,

outropara fora––umpreocupava-seemresgataro folclore,as comidas típicaseas

varianteslinguísticas,alémdeevidenciarasquestõesdeordemestruturaldanação,tais

comoamiscigenação,osincretismoeasdoençasqueassolavamoBrasilnoiníciodo

século; o outro, instigado com as discussões estéticas divulgadas pelas vanguardas

europeias,observavaaousadiados impressionistas,dadaístas,cubistasesurrealistas

para,posteriormente,reelaborá-lasdentrodeumprojetonacional.(Netto2004:16)

Como“umaexperiênciacujoopostosignificariaacrençaemumlimpoemíticoconjunto

detraços,doqualavidapresentedeumpovohaveriadeserconstruída”(CostaLima

2017:2),aantropofagia forneceumapoderosaperspectivaacercadaprevalênciado

realismo mágico no território latino-americano, e explica como ocorre a mescla de

valorese referências literáriasocidentaiseexperiênciasdevidagenuinamente locais

encontradasnorealismomágicodeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga.

Asdicotomias trabalhadaspelosautores tambémpodemservistascomoexpressões

desse processo antropofágico. Schwartz, emUm Brasil em tommenor: Pau-Brasil e

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Antropofagia(1998),escreve:"Aclássicaoscilaçãoentreonacionaleocosmopolitatem

sidoumaconstantequedefiniuosrumosdaidentidadedaliteraturalatino-americana

desde a sua própria formação. A vanguarda não escapou desta constante, pelo

contrário, a aguçou" (Schwartz1998:53). Oautor ressaltaa contínua relevânciado

Modernismoedaantropofagianaproduçãoculturalbrasileiracontemporânea:“[...]em

nenhumoutropaísencontramosaatualidadequeatéomomentotêmasexpressõesde

rupturaquecaracterizaramosanosvinte.Defato,atéhojeomodernismobrasileiroé

assuntocandente”(idem).Ométodoantropofágicodescritopeloautorparecesimilarà

formacomooperamRubiãoeJ.Veiga:

Nomomentoemquejánãofazsentidoretrocedernahistóriaparaproduzirmodelosde

superação,umavezqueelesexistemefuncionamemoutrospaíses,aideiaprimordial

seráincorporá-lospeloatoantropofágico.Aocontráriodoquepossapareceràprimeira

vista,oprimitivonãocomeparasaciarafome;pelocontrário,ofazcomoatoritualizado

coma finalidadedeassimilarosatributosdo inimigo.Neste contexto, a consignada

alteridadeéaincorporaçãodooutroparafazerumasíntesecapazdegerarasuperação

eliberaçãodojugoexterior.(Schwartz1998:62)

Propõe-se aqui que em ambos os autores, a aglutinação de valores e referências

ocidentais/eurocêntricas––referênciasaocristianismo,ousodoidiomaportuguês,os

nomes das personagens, o espaço ficcional, as referências históricas, a repetição de

mitosefigurasdafilosofiaeda literaturaocidentais,otratamentodetemascomoo

Absurdoeoexistencialismoenoçõesmarxistasdelutadeclasses––podeserentendida

comoasíntesedoprocessoantropofágico.

Emboraomesmopossaserditosobrepraticamentetodomovimentoliteráriobrasileiro

contemporâneo, em que o legado cultural resultante do processo de colonização e

posteriorindependênciaéfortementeintercaladonaexperiêncianacional,orealismo

mágicopareceserummovimentoliteráriodeteorantropofágico,emqueacoexistência

natural entre realidade emagia reflete a simultaneidade da presença de influências

estrangeirasedeumaricaeextensaculturapropriamentebrasileira.

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98

4.6(In)conclusão

A discussão proposta no presente projeto de pesquisa buscou elucidar alguns dos

principais pontos de divergência em relação ao realismo mágico na literatura, em

especial no que se refere à possível existência de um realismo mágico brasileiro,

movimentosobreoqualaindanãoháextensabibliografiaqueocaracterizecomotal.

Aolongodestapesquisa,buscou-sedemonstrarcomooscontosdeMuriloRubiãoeas

obrasdeJoséJ.Veiga(contoseromances)fazemusoderecursosdoinsólitoedoreal

paratecernarrativasde imensacomplexidade,passíveisdasmaisvariadasanálisese

abordagensteóricas,aomesmotempoemquesemostramacessíveisaleitoresdetodas

as idades e nacionalidades. Argumentou-se que certos elementos apontam para a

existênciadeumacoesãotemáticaenarrativaentreosautores,capazdeoferecerum

vislumbredosprincipaisaspectosquepoderiamseratribuídosaumrealismomágico

verdadeiramentebrasileiro,distintodesuasvariaçõescontemporâneaseposteriores

emoutrasnaçõeslatino-americanas.

Combasenasleituraspropostasenasconclusõesextraídasdessadiscussão,buscou-se

principalmente demonstrar que, embora menos reconhecidos em círculos críticos

internacionaisdoqueautorescomoGarcíaMárquez,CortázareIsabelAllende,Murilo

RubiãoeJoséJ.Veigapodemestarentreospioneirosnousodorealismomágicono

território latino-americano, visto terem produzido uma literatura de grande

complexidade,quepermitiriasuscitarumamaiordiscussãoeapreciaçãonocânonedo

realismomágicointernacional.

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