aspectos do realismo mágico brasileiro nas obras de murilo
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MESTRADOEMESTUDOSLITERÁRIOS,CULTURAISEINTERARTESESPECIALIZAÇÃOEMESTUDOSCOMPARATISTASERELAÇÕESINTERCULTURAIS
AspectosdorealismomágicobrasileironasobrasdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga
LucianoGalvãoSimão
M2020
LucianoGalvãoSimão
AspectosdorealismomágicobrasileironasobrasdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga
DissertaçãorealizadanoâmbitodoMestradoemEstudosLiterários,Culturaise
Interartes,orientadapelaProfessoraDoutoraCelinaSilvaecoorientadapeloProfessor
DoutorFranciscoJosédeJesusTopa
FaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto
2020
LucianoGalvãoSimão
AspectosdorealismomágicobrasileironasobrasdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga
DissertaçãorealizadanoâmbitodoMestradoemEstudosLiterários,Culturaise
Interartes,orientadapelaProfessoraDoutoraCelinaSilvaecoorientadapeloProfessor
DoutorFranciscoJosédeJesusTopa
MembrosdoJúriProfessorDoutor(escrevaonomedo/aProfessor/a)
Faculdade(nomedafaculdade)-Universidade(nomedauniversidade)
ProfessorDoutor(escrevaonomedo/aProfessor/a)
Faculdade(nomedafaculdade)-Universidade(nomedauniversidade)
ProfessorDoutor(escrevaonomedo/aProfessor/a)
Faculdade(nomedafaculdade)-Universidade(nomedauniversidade)
Classificaçãoobtida:(escrevaovalor)Valores
Aomeupai.
2
Sumário
Declaraçãodehonra.....................................................................................................................4
Agradecimentos...........................................................................................................................5
Resumo........................................................................................................................................6
Abstract........................................................................................................................................7
Introdução....................................................................................................................................8
1.Realismomágico:origemeconcepçõesteóricascentrais.....................................................10
1.1.Históriaedesenvolvimento..............................................................................................11
1.2.Questõesterminológicas..................................................................................................14
1.3.Noçõesderealidadeemagia............................................................................................16
1.4.OfantásticosegundoTodoroveorealismomágico.........................................................19
1.5.Relaçõescomosurrealismo..............................................................................................22
1.6.Realismomágicoenquantoelementodaliteraturapós-moderna..................................23
1.7.Abordagensmúltiplas......................................................................................................26
2.Contextohistóricodorealismomágicobrasileiro..................................................................32
2.1.Modernidadebrasileira....................................................................................................34
2.2.OManifestoAntropofágicoeocontroledoimaginário....................................................37
3.OrealismomágicoemMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga.............................................................42
3.1.Ocontolatino-americano.................................................................................................45
3.2OuniversoficcionaldeMuriloRubião................................................................................48
3.2.1. Introdução à obra muriliana: O Ex-Mágico da Taberna Minhota e o absurdo doquotidiano..................................................................................................................................53
3.2.2.OpirotécnicoZacariaseaatitudefantástica..............................................................56
3.2.3.Magiaealteridade:Osdragões,Teleco,oCoelhinhoeOhomemdobonécinzento...58
3.2.4.OAbsurdonolabirintourbano:Afila,OedifícioeObloqueio....................................63
3.2.5.Consideraçõesadicionais............................................................................................67
3.3.OuniversoficcionaldeJoséJ.Veiga..................................................................................67
3.3.1.Olúdicoinsólito:Fronteira,OsCavalinhosdePlatiplantoeAIlhadosGatosPingados.....................................................................................................................................................72
3.3.2.Fronteirafantásticaentreavidaeamorte:OsdooutroladoeAInvernadadoSossego.....................................................................................................................................................77
3
3.3.3.OinsólitoeoOprimido:Ausinaatrásdomorro,Erasóbrincadeira,QuandoaTerraeraredonda,AHoradosRuminanteseSombrasdeReisBarbudos...........................................80
3.3.4.Consideraçõesadicionais............................................................................................87
4.Conclusão:Haveriaumrealismomágicoverdadeiramentebrasileiro?..................................89
4.1.OEueoOutronorealismomágicobrasileiro...................................................................91
4.2.OsDoisBrasis:Exploraçãodedicotomiasnacionais.........................................................92
4.3.Aidentidadebrasileiranorealismomágico......................................................................93
4.4.Orealismomágicobrasileironocontextolatino-americano.............................................94
4.5.Antropofagiamágico-realista...........................................................................................96
4.6.(In)Conclusão....................................................................................................................98
5.Referênciasbibliográficas.......................................................................................................99
4
Declaraçãodehonra
Declaroqueapresentedissertaçãoédeminhaautoriaenãofoiutilizadapreviamente
noutrocursoouunidadecurricular,destaoudeoutrainstituição.Asreferênciasaoutros
autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitamescrupulosamente as regras da
atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências
bibliográficas,deacordocomasnormasdereferenciação.Tenhoconsciênciadequea
práticadeplágioeauto-plágioconstituiumilícitoacadémico.
[Porto,2020-10-18]
[LucianoGalvãoSimão]
5
Agradecimentos
Dedico este trabalho aos meus amigos, no Brasil e em Portugal, cujo apoio foi
imprescindívelnestabusca;àminhaamadacompanheiraMariana,quepreenchemeus
diasdecorecalor;àminhamãe,Mariângela,semaqualnadadissoseriapossível;à
minha avó Maria Galvão, cuja memória será eternamente saudosa; e ao meu pai,
Antonio, que, mesmo não estando mais aqui para presenciar o fim dessa jornada,
permanecemeumaiorexemplodepesquisador,professoreserhumano.
6
Resumo
Apresentedissertaçãobuscaexporosprincipaisaspectosdorealismomágicoproduzido
noBrasilentreasdécadasde1940-1970,encabeçadopordoisautoresderelevância
nacional:MuriloRubiãoeJoséJ.Veiga.Pormeiodeumaanálisedasobrasdosautores
àluzdocontextohistóricoquedeuorigemaorealismomágicoedocenárioparticular
da modernidade brasileira, propõe-se que o realismo mágico brasileiro pode ser
estudadocomoummovimentoantropofágicoqueutilizaomecanismodoinsólitopara
expressardiversasfacetasdaidentidadeculturaleliterárianacional.
Palavras-chave: Realismo mágico; Antropofagia; Fantástico; Pós-modernismo;
Literaturabrasileira;MuriloRubião;JoséJ.Veiga.
7
Abstract
Thisresearchprojectaimstooutlinethemainaspectsofthemagicalrealismproduced
inBrazilbetween the1940sand the1970s, spearheadedby twoauthorsofnational
relevance:MuriloRubiãoandJoséJ.Veiga.Byanalysingtheworkofthesetwoauthors,
the historical context that originatedmagical realism and the particular scenario of
Brazilian modernity, it is argued that Brazilian magical realism may be seen as an
anthropophagicmovement that employs themechanism of the fantastic to express
multiplefacetsoftheBrazilianculturalandliteraryidentity.
Keywords: Magic realism; Anthropophagy; Fantastic literature; Post-modernism;
Brazilianliterature;MuriloRubião;JoséJ.Veiga.
8
Introdução
Emtodapropostadeanáliseliterária,énecessárioconsiderarapriorialgunsparadigmas
fundamentaisacercadaliteratura,vistoquenãoháumateoriadaliteraturaúnicapela
razãoevidentedequeháváriaspráticasdeconhecimento,etampoucopode-sepropor
umadefiniçãoúnicaeabsolutadeliteratura.Taisdefiniçõesserãosemprehistóricase
eventualmenteredutoras.Ademais,aliteratura,alémdeformadeexpressãoartística,
é também uma instituição: possui uma dimensão social, histórica, acadêmica,
mercadológicaetc.Háumconjuntodecircunstânciasquepermite,favoreceoumesmo
impedequeumdeterminadotextosejaproduzido,distribuídoeaceitocomoliteratura.
Ressaltar a multiplicidade de definições de literatura e a infinidade de abordagens
disponíveis no amplo campo da “teoria” não significa que há uma falta de coesão
inerenteaoexercíciodaanáliseliterária.Aocontrário,oconhecimentodetaisquestões
permite ao pesquisador definir, dentro desse amplo universo de possibilidades, o
recorteteóricoadequadoaoobjetodepesquisa.
Éàluzdetaisquestõesqueopresenteprojetodedissertação,inseridonoprogramade
Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto (FLUP), tem como proposta analisar as obras dos escritores
MuriloRubiãoeJoséJ.Veiga,apontadoscomoosprincipaisnomesligadosaorealismo
mágico no Brasil, a fim de propor uma possível concepção de um realismomágico
essencialmente brasileiro, distinto do realismomágico latino-americano (em geral e
nomeadamente em língua espanhola). Faz-se necessária, portanto, uma exposição
acerca de dois pilares essenciais: a definição do realismo mágico enquanto modo
narrativoeenquantotipodemovimento literário temporalmenteegeograficamente
delimitado;eaanálisedocontextohistórico, literárioesocialdorealismomágicono
Brasil,emtodaasuapeculiarformademodernidade.
Aolongodesteprojetodepesquisa,pretende-sediscutirasmúltiplasabordagensqueo
realismomágicopermiteeexplicitarasrazõespelasquaissetratadeumfenômenotão
plástico, aplicável às mais diversas culturas e formas de arte. Pretende-se, ainda,
equacionarasrelaçõesentreorealismomágico,ofantástico,oinsólito,aliteraturapós-
9
modernaeosurrealismo,bemcomoampliararevisãobibliográficaacercadocontexto
culturalbrasileiroesuainfluêncianaproduçãoliterárianacionalnoséculoXX,comfoco
especialemmovimentoscomoaantropofagia.
Oprimeirocapítulodestetrabalhotemcomofocoohistóricododesenvolvimentodo
realismomágicodesdesuaprimeiraconcepçãonaAlemanhaduranteaRepúblicade
WeimarpelocríticodearteFranzRohatéochamadoboomlatino-americano,ediscutirá
asprincipaisdefiniçõesderealismomágico,bemcomoasimplicaçõeseparticularidades
desse conceito. Por sua vez, o segundo capítulo tem como objetivo apresentar o
contexto sociocultural durante o qual escreveram Murilo Rubião e José J. Veiga,
enfatizandoaimportânciademovimentoscomoaantropofagianaproduçãoliterária
brasileiraapartirdadécadade1930.Oterceirocapítuloédedicadoaleiturasdasobras
deRubiãoeJ.Veiga,proporcionandotambémumabrevediscussãoacercadocontoe
suarelaçãocomofantástico.Oquartocapítulocontémocernedasconclusõesextraídas
dasanálisesanterioresaoproporumapossívelidentidadeprópriadorealismomágico
brasileiro, situando-o no contexto do realismomágico latino-americano e de todo o
legadoculturaleliterárioeuropeudiscutidonoscapítulosprecedentes.
Desta forma,oembasamentoteóricotrabalhadofundamentaráas leituraspropostas
dasobrasdeRubiãoe J.Veiga,como intuitodecontribuir,assim,paraumamelhor
compreensão das noções de realidade emagia na literatura brasileira e umamaior
valorizaçãodessesautoresnocânonedorealismomágicomundial.
10
1. Realismomágico:origemeconcepçõesteóricascentrais
Assim como concepções teóricas complexas tal qual a noção depós-modernismo, o
termo realismo mágico possui múltiplas definições passíveis de debate, desacordo
agravado pelo fato de que a classificação abrange uma vasta gama de autores e
movimentosartísticosemmúltiplospaíses,atuandoemdiferentesdécadasdoséculo
XXatéosdiasdehoje.
ApesquisadoraMaggieAnnBowers, em seu livroMagic(al)Realism (2013), enfatiza
que,emboratrate-sedeumacategoriacríticadeintensadiscussão,anoçãoderealismo
mágicotemsidoutilizadaparasereferiraummodonarrativoparticular,queoferece
“[...]awaytodiscussalternativeapproachestorealitytothatofWesternphilosophy,
expressedinmanypostcolonialandnon-Westernworksofcontemporaryfiction”,eque
grandepartedaconfusãoemtornodestaquestãosedeveaofatodequeestapode
também se referir a movimentos artísticos e literários geograficamente e
temporalmentedistintos.Ainda,Bowersexplicaque:
Oneofthemainsourcesofconfusionsurroundingthetermsisthelackofaccuracyof
their application. Each variation of the term has developed in specific and different
contextsandyettheyhavebecomemistakenlyinterchangeableincriticalusage.They
havealsogonethroughmanyvariationsoftranslation[...](Bowers2013:2)
Apesardeestaramplamenteassociadoàliteraturalatino-americana,orealismomágico,
comomodonarrativo,nãopode serdelimitadoporbarreirasgeográficas.De fato,o
crítico espanhol Angel Valbuena Briones postula que o realismo mágico é “uma
tendênciauniversal,inerenteàexistênciahumana.”(1969).
Aomesclaraessênciaopostadosdoistermosqueformamesseoxímoro(omágicoeo
real),estabelecendoumaoutraperspectiva,orealismomágicotornadifusaadistinção
entredoisdomínioscontrastantes,eporissoéfrequentementeconsideradoummodo
narrativoespecialmentedisruptivo.Amultiplicidadedepossibilidadesqueorealismo
mágicoofereceéparticularmenteatraenteparaautoresdeculturasconsideradas“às
margens”.ConformeexplicamZamoraeFaris(1995),
11
Thepropensityofmagicalrealisttextstoadmitapluralityofworldsmeansthatthey
often situate themselves on liminal territory between or among those worlds— in
phenomenal and spiritual regionswhere transformation,metamorphosis, dissolution
are common,wheremagic is a branch of naturalism, or pragmatism. (Zamora, Faris
1995:5)
Essaliminaridadeinerenteaorealismomágico,emtodasassuasformasdeexpressão,
seráumfatorderelevânciaparaasleituraspropostasnoscapítulos3e4,principalmente
porsetratardeumadasrazõespelasquaisomodonarrativoparecesertãoadequado
àliteraturadeex-colônias,àsmargensdatradiçãoliteráriaeurocêntrica:
The incompatibility of magic realism with the more “established” genre systems
becomesitself interesting,itselfafocusforcriticalattention,whenoneconsidersthe
fact thatmagic realism,at least ina literarycontext, seemsmostvisiblyoperative in
culturessituatedatthefringesofmainstreamliterarytraditions.(Slemon1998:1)
Comoobjetivodeaprofundaresteaspecto,departicularinteresseparaumaanálisedo
realismomágico brasileiro emdiversas obras deMurilo Rubião e José J. Veiga, este
capítuloiráfocarahistóriaedesenvolvimentodoconceito(bemcomosuasprincipais
variações), aomesmo tempo em que busca sintetizar o papel central da dicotomia
real/mágico;arelaçãodorealismomágicocomopós-modernismo,osurrealismoeo
fantástico;eamultiplicidadedeabordagensteóricaspossíveisparaaanálisedetextos
mágico-realistas.
1.1. Históriaedesenvolvimento
Bowerscategorizaostrêsprincipaistermosutilizadosnabibliografiaanglófona:magic
realism (correspondendo ao alemãoMagischer Realismus), marvellous realism (do
espanhol lo real maravilloso) emagical realism (do espanhol realismo mágico). Os
termosdizemrespeitoatrêsperíodoseperspectivasdistintos.
Oprimeirodeles,MagischerRealismusoumagicrealism, foipropostopelocríticode
arte alemão Franz Roh para referir-se a umanova formade pintura, que classificou
também como “pós-expressionista”, surgida na Alemanha durante o período da
12
RepúblicadeWeimar.Rohpreocupou-seemsalientarasdiferençasentreoMagischer
Realismusdeoutromovimentoquelhefoicontemporâneo,osurrealismo(discutidas
noitem1.5).
AobracríticadeRoh,alémdeinfluenciaroescritoritalianoMassimoBontempelli,que
publicoucontosderealismomágiconarevistaNovecento(1926)duranteofascismode
Mussolini, chegou à América Latina por meio de uma tradução em espanhol de
FernandoVela, influenciandoescritorescomooguatemaltecoMiguelÁngelAsturias.
Rohpreconizacertosaspectosqueviriamasercaracterísticasfundamentaisdorealismo
mágicocontemporâneo:
Inhisstatementintheprefacetohisbook,‘withthewordmagic,asopposedtomystic,
Iwishedtoindicatethatthemysterydoesnotdescendtotherepresentedworld,but
ratherhidesandpalpitatesbehindit’,he[Roh]anticipatesthepracticeofcontemporary
magicalrealists.(Zamora,Faris1995:15)
Osegundotermo, lo realmaravilloso, surgiunaAméricaCentralnadécadade1940,
épocaemquediversasnaçõeslatino-americanasbuscavamexpressarumaconsciência
distinta de seu legado europeu, “[...] as an expression of themixture of realist and
magicalviewsoflifeinthecontextofthedifferingculturesofLatinAmericaexpressed
throughitsartandliterature”(Bowers2013:3).Doisnomesderelevânciadesseperíodo
sãooescritorsuíço-cubanoAlejoCarpentiereovenezuelanoArturoUslar-Pietri.
Carpentieréamplamenteconsideradoofundadordorealismomágicolatino-americano
e utilizou o termo lo real maravilloso para referir-se a um conceito que poderia
representarosaspectossingularesdaAméricaLatina,emtodasuadiversidadecultural
e étnica. Buscou dissociar o conceito da definição de Franz Roh, que considerava
excessivamente artificial, e definiu o real maravilhoso como "o legado da América
Latina".
DeacordocomaspesquisadorasLoisZamoraeWendyFaris,Carpentieracreditavaque,
naAméricaLatina,“improbablejuxta-positionsandmarvellousmixturesexistbyvirtue
of Latin America’s varied history, geography, demography, and politics—not by
manifesto”. Amaryl Chanady (1995) caracterizaria o conceito de lo real maravilloso
13
conformepropostoporCarpentiercomo“aterritorializaçãodoimaginário”porparte
doautor.
ApublicaçãodoensaioRealismomágiconaFicçãoHispano-Americana,docríticoAngel
Flores,em1955,resultouemumrenovadointeressepelorealismomágiconoterritório
latino-americano. Entre os estudiosos do realismo mágico, Flores é dissidente ao
consideraroescritorargentinoJorgeLuisBorgescomooprimeirorealistamágicoda
AméricaLatina.Bowersenfatizaque,emborasejaprovávelainfluênciadaobradeFranz
Roh sobre o pensamento de Borges, este estava mais próximo do fantástico e do
experimentalismodaliteraturapós-moderna(defato,Borgespodeserapontadocomo
o primeiro autor de literatura pós-moderna, e é apenas após o interesse dos
estruturalistas, que traduzemas obras de Borges na Europa, que a literatura latino-
americana e o realismomágico hispanófono passam a ser reconhecidos em círculos
internacionais).
Nesta “segunda onda” do realismo mágico latino-americano, surge o termo que
predominano círculo crítico até os dias de hoje: realismomágico (emespanhol)ou
magicalrealism,referindo-seaummodonarrativoemqueosacontecimentosmágicos
sãorelatadosdeformaquotidiana,realista,oucomodefinemZamoraeFaris,ummodo
emque“osobrenaturalnãoéalgosimplesouóbvio,masédefatoalgoordinário,um
acontecimento do dia a dia – admitido, aceito e integrado na racionalidade e
materialidadedorealismoliterário”(Zamora,Faris1995:3).
FoinesteterceiroperíodoqueocolombianoGabrielGarcíaMárquezpublicouaobra
queseconsolidariacomoaprincipalreferênciadorealismomágicolatino-americano,
CienAñosdeSoledad(1967)–eétambémemtornodesseperíodoqueescrevemos
principaisexpoentesdorealismomágicobrasileiro,omineiroMuriloRubiãoeogoiano
JoséJ.Veiga.
Falar de “realismo mágico”, portanto, é falar de fenômenos diversos ocorridos em
diferentesespaçoseperíodos,mascomclarasrelaçõesdearticulaçãoentresi–eentre
outros movimentos artísticos e vertentes literárias que lhe foram contemporâneos.
Desdeessechamado“boom”dorealismomágicolatino-americano,impulsionadopela
14
popularidade internacionaldaobradeGarcíaMárquez,oterceirotermotornou-seo
mais recorrente, e estemodo narrativo foi adotado nasmais diversas nações – em
especial naquelas em que o legado colonial e/ou do imperialismo se mostra mais
presenteemdiversasesferasdasociedade.
Conformedemonstratalgenealogia,otermorealismomágicocarregaumaconotação
inerentemente interartística,umavezquepodeseraplicadoàsmaisdiversasartese
mídias,variandoespecificamentedeacordocomaslimitaçõeseopotencialespecífico
decadameio.Nosúltimosanos,diferentesautorestêmanalisadoorealismomágico
comogênerocinematográfico,bemcomonadramaturgiaeemoutrasartes;paraesta
análise,contudo,interessa-nossobretudoorealismomágiconaliteratura.
Na introdução de sua coletâneaMagical Realism: Theory, History and Community
(1995), Louis Parkinson Zamora e Wendy B. Faris propõem que algumas análises
voltadasaperíodosanterioresdahistóriadaliteraturasugeremqueorealismomágico
opera como uma espécie de tradição que, após passar por diversos períodos de
ascensãoequedaaolongodosséculos,encontranocenáriocontemporâneoumnovo
períododealtaproduçãoerelevância.Nesseprocessodemetamorfoseconstante,dois
termos permanecem cruciais independentemente da geografia ou de limitações
temporais:osconceitosderealedemágico.
1.2. Questõesterminológicas
Antesdeabordarconcepçõesderealidadeemagia,énecessárioparaadiscussãoque
será proposta em relação ao realismomágico brasileiro expor a existência de certa
confusão terminológicaem relaçãoàpróprianoçãode realismomágico.Mesmoem
artigosdacríticaespecializada,utilizam-sediversostermosparareferir-seaorealismo
mágico,por vezesdescrito comoumgênero,ummodonarrativoouummovimento
literário.
ApósumaanálisedosartigoscontidosnacoletâneaMagicalRealism:Theory,History,
Community,épossívelperceberqueháumembasamentoteóricomaissólidoparanos
referirmosaorealismomágicocomoummodonarrativoe/ouummovimentoliterário,
15
cadacategoriacomsuasconotaçõesdistintas.ZamoraeFaris,naintroduçãodaobra,
descrevemorealismomágicocomoummodoadequadoàexploraçãoetransgressãode
fronteiras,enquantoWilsonenfatizaqueorealismomágicoé“unmistakablyatextual
mode[...]”,modoestequeemprega“acertainmodeofnarrativevoice,thoughcritics
oftenignorethiswhentheythinkaboutmagicalrealism”(Wilson1995:223).
Bowers, em sua análise das três principais concepções de realismo mágico,
tambémressaltaqueoterceirotermo,magicalrealism,refere-seaum“modonarrativo
particular”, e tornou-se a forma mais recorrente de referir-se ao realismo mágico
(Bowers2013:1). JonThiem,emTheTextualizationof theReader inMagicalRealist
Fiction (1995), corrobora a leitura do realismo mágico enquanto modo narrativo,
enfatizandosuas“vantagens”emrelaçãoaoutrosmodos:
[...] one of the main advantages of magical realism as a literary mode lies in its
extraordinaryflexibility,initscapacitytodelineate,explore,andtransgressboundaries.
More than other modes, magical realism facilitates the fusion of possible but
irreconcilableworlds.(Thiem1995:244)
Para Chanady, o realismo mágico é um modo que "[...] challenges realistic
representationinordertointroducepoiesisintomimesis,aconditionwhichCostaLima
advocatesforamoresatisfactoryexpressionofourmodernity"(Chanady1995:130).A
autora também explica que, para o crítico Angel Flores, o realismomágico seria "a
literarymodethatisbrandishedaspartofLatinAmerica'scredentialsforbeingaccepted
by the cultural establishment of the metropolis" (Chanady apud Flores 1995: 131),
opinião corroborada por Luis Leal (1967) quando este se refere ao realismomágico
comouma"atitude"perantearealidade.
Portanto, para este capítulo inicial de introdução teórica, considerou-se proveitoso
analisar a ascensão e desenvolvimento do realismo mágico moderno como a
popularizaçãodessemodoouvoznarrativaparticular,que,conformeressaltouBriones,
éumatendênciauniversalqueprecedeostrêsmomentosdescritosporBowers.
Nas leituras que serão propostas no capítulo 3, o conceito de realismo mágico
empregado para caracterizar as narrativas como tal está embasado nos teóricos
16
apresentadosatéaqui:ummodonarrativoemquerealidadeemagiacoexistemcom
similargraudenaturalidade,refletidonasatitudesdasprópriaspersonagensperantea
irrupçãodoelementomágico,semdemonstrarahesitaçãocaracterísticadofantástico
definidoporTodorov,demandandodoleitorsimilargraudeaceitaçãonaturalàquele
demonstradopelaspersonagens.
1.3. Noçõesderealidadeemagia
Desde a concepção inicial do crítico alemão Franz Roh, a noção de realismomágico
depende inevitavelmente dos dois componentes centrais que, quando pareados,
formamesseoxímoro.Defato,tantoostermosrealismoquantomágicopossuemcertas
conotações previamente estabelecidas. Por exemplo, a discussão teórica acerca do
realismo na literatura é relevante para diversos autores, uma vez que a noção de
realismodesempenhouumpapelfundamentalnodesenvolvimentodoprópriorealismo
mágico.Maisdoqueummovimentoliteráriotemporalmentedeterminado,orealismo
(aescritapretensamentemiméticadarealidadenatural)sempreestevepresentedesde
osprimórdiosdaliteratura.
AodescreveroMagischerRealismusalemão,emcontrastecomoExpressionismo,Roh
exaltou como aspecto fundamental do movimento a representação de imagens de
forma “realista”, visando à mimese domundo natural, beirando o fotorrealismo. A
definiçãopropostaporRoh—eporoutrosteóricosqueexaltaramorealismoemsuas
diversas formas—tomacomopressupostoqueoconceitode realpredominantena
chamada“culturaocidental”pós-iluministaé“absoluto”e“invariável”.
Todavia,autoresposterioresquestionamaprópriaideiadequequalquerdefiniçãode
real ou realismo pode ser absoluta, uma vez que é, como todo conceito teórico,
resultado de um contexto sociocultural específico. A impossibilidade de apreensão
completadarealidadeemummeiolimitadocomoalinguagemhumana,independente
doidioma,põeemdúvidaaspretensõesdeautoreshiper-realistasdecriaremnarrativas
estritamentedefinidascomotal.
17
Assim como o realismomágico adota diferentes formas em diferentes contextos, a
própria noção de um realismo único é passível de discussão. Zamora e Faris (1995)
ressaltamasdiferençasentreomodonarrativodorealismoeaqueleelementorealista
presentenorealismomágico:
An essential difference, then, between realism and magical realism involves the
intentionality implicit in the conventions of the two modes. [...] realism intends its
version of the world as a singular version, as an objective (hence universal)
representation of natural and social realities — in short, that realism functions
ideologicallyandhegemonically.Magicalrealismalsofunctionsideologicallybut[...]less
hegemonically, for its program is not centralizing but eccentric: it creates space for
interactionsofdiversity.(Zamora,Faris1995:3)
Crucialmente, as autoras argumentam que o realismo mágico na literatura cria
disrupçõesontológicasque servemopropósitodedisrupçãopolíticae cultural: "[...]
magic isoftengivenasacultural corrective, requiring readers to scrutinizeaccepted
realisticconventionsofcausality,materiality,motivation"(idem1995).
Maggie Ann Bowers propõe que toda concepção demágico emagia é construção
resultantedecontextosculturaisespecíficos.Porisso,écertoqueorealismomágico,
bem como as múltiplas definições possíveis de real e de magia, expressa-se de
diferentesformasdeacordocomocontextosocioculturalemqueédesenvolvido.Em
suma,orealismomágicobrasileirodasdécadasde1940-1970operasobdefiniçõesde
realismoemagiadistintasdaquelassobasquaisescreveuSalmanRushdienaÍndiade
1970-1980.
Frequentemente,osprópriosconceitosderealidadeemagiaaplicadosàcategorização
do realismo mágico carregam pressupostos coloniais ou imperialistas: enquanto o
realismo é frequentemente ligado à faculdade da razão, à ciência e à busca pela
representação “verdadeira” (pretensamentemimética)domundonatural, amagiaé
frequentemente associada aos mitos, costumes e tradições narrativas de culturas
aborígenes,indígenas,escravizadasemiscigenadas,consideradasdeformaamplacomo
“não-Ocidentais”.ConformeexplicaBowers(2013:4),“[...] ‘magic’canbeasynonym
18
formystery,anextraordinaryhappening,orthesupernaturalandcanbeinfluencedby
EuropeanChristianityasmuchasby,forinstance,NativeAmericanindigenousbeliefs”.
ZamoraeFaris (1995)defendemqueos sistemasculturaisqueservemdebasepara
narrativasderealismomágiconãosãomenosreaisdoqueaquelesquesustentamo
realismonaliteraturaeuropeia.Sobreessasculturas,asautorasressaltam:
Textslabeledmagicalrealistdrawuponculturalsystemsthatarenoless‘real’thanthose
uponwhich traditional literary realismdraws—oftennon-Western cultural systems
that privilege mystery over empiricism, empathy over technology, tradition over
innovation.Theirprimarynarrativeinvestmentmaybeinmyths,legends,rituals—that
is,incollective(sometimesoralandperformative,aswellaswritten)practicesthatbind
communitiestogether.(Zamora,Faris.1995)
Ademais, as autoras criticam a dicotomia do termo realismo mágico, pois tal
categorização implica uma oposiçãomais definitiva entremagia e realidade do que
aquelaqueosprópriostextosapresentam.Argumentamque“Forthecharacterswho
inhabitthefictionalworld,andfortheauthorwhocreatesit,magicmaybereal,reality
magical;thereisnoneedtolablethemassuch"(idem).
Há,ainda,umaoutraassociaçãofrequentementeestabelecida:assemelhançasentrea
poesia(ouopoeta)eamagia(ouomago).ConformeargumentaOctavioPaz,emElArco
ylaLira(1956):
Laoperaciónpoéticanoesdiversadelconjuro,elhechizoyotrosprocedimientosdela
magia.Ylaactituddelpoetaesmuysemejantealadelmago.Losdosutilizanelprincipio
deanalogía;losdosprocedenconfinesutilitarioseinmediatos:nosepreguntanquées
elidiomaolanaturaleza,sinoquesesirvendeellosparasuspropiosfines.Noesdifícil
añadirotranota:magosypoetas,adiferenciadefilósofos,técnicosysabios,extraensus
poderesdesímismos.(Paz1956:18)
Paz também argumenta que a operação mágica, por natureza, requer uma força
interior,“logradaatravésdeunpenosoesfuerzodepurificación.Lasfuentesdelpoder
mágico son dobles: las fórmulas y demás métodos de encantamiento, y la fuerza
psíquicadelencantador,suafinaciónespiritualquelepermiteacordarsuritmoconel
19
delcosmos”(Paz1956:18).Opoetaoperadamesmaforma,nãocomoummago,mas
“suconcepcióndellenguajecomounasocietyoflife—segúndefineCassirerlavisión
mágicadelcosmos—loacercaalamagia”(Paz1956:20).Todavia,assimcomoaideia
de realismo, amagia é também um fenômeno ambivalente. Em relação à definição
específicademagiacomaqualtrabalha,Pazdetalha:
Laambivalenciade lamagiapuedecondensarseasí:porunaparte, tratadeponeral
hombreenrelaciónvivaconelcosmos,yenestesentidoesunasuertedecomunión
universal;porlaotra,suejercicionoimplicasinolabúsquedadelpoder.El¿paraqué?
esunapreguntaquelamagianosehaceyquenopuedecontestarsintransformarseen
otracosa:religión,filosofía,filantropía.Ensuma,lamagiaesunaconcepcióndelmundo
peronoesunaideadelhombre.Deahíqueelmagoseaunafiguradesgarradaentresu
comunicaciónconlasfuerzascósmicasysuimposibilidaddellegaralhombre,excepto
comounadeesasfuerzas.(Paz1956:19)
Emborarefira-seestritamenteàpoesia,pode-seargumentarqueasconsideraçõesdo
poetaacercadamagiaedoofíciodomago––aquelequeutilizaessa"forçainterior"
resultantedeum"penosoesforçodepurificação"para igualarseuritmoaoritmodo
cosmo –– também são potencialmente aplicáveis ao autor de realismomágico, cuja
tentativadeatuaremconsonânciacomoritmodouniversoseexpressanoempregoda
magiaparacaracterizarerealçaraprópriarealidade.
1.4. OfantásticosegundoTodoroveorealismomágico
Portercomocaracterísticaessencialessadiluiçãodefronteiras—reaisousocialmente
construídas—entrearealidadeea irrealidade(amagia,osobrenatural),orealismo
mágico é frequentemente comparado a outras formas de expressão literária que
operamcomsimilartransgressãodefronteirastradicionais.Emespecial,éimportante
diferenciarorealismomágicodofantástico(particularmentedaliteraturafantástica),
comoqualéfrequentementeconfundido.
OescritorecríticoliteráriomexicanoLuisLeal,emseuensaioElrealismomágicoenla
literaturahispanoamericana(1967),emquerebatealgunsdosargumentospropostos
20
porAngelFloresemsuadefiniçãoderealismomágico,expõequeorealismomágiconão
incluialiteraturafantástica,oníricaoupsicológica,etampoucoosurrealismo.
Amaryll Chanady, em The Territorialization of the Imaginary in Latin-America: Self-
AffirmationandResistancetoMetropolitanParadigms,analisaoargumentodeLeale
propõeque,paraocrítico,adiferençaentreoautorderealismomágicoeodeliteratura
fantásticaéque“[...]themagicalrealistwriter'doesnotneedtojustifythemysterious
nature of events, as thewriter of fantastic stories has to. In fantastic literature the
supernatural invades a world ruled by reason'".” (Leal apud Chanady 1995: 131). A
autoraexplicatambém:
Inthesefantasticfictions,thepremisesofafrequentlyexaggeratedrationalistdiscourse
affirming hegemonic paradigms of the Enlightenment are deconstructed by the
descriptionofapparentlysupernaturaleventsandconstantreferencetothefearofthe
protagonist inthefaceofthe inexplicable.Althoughthistypeoffantasticnarrative is
highlycontradictory—affirmingandchallengingrationalmodels—itsmainemphasis
is on the rationalizing activity of a subject searching for cognitive mastery of the
unknown and reconciliation of experiencewith scientific paradigms. (Chanady 1995:
132)
Afronteiraentreofantásticoeorealismomágico,comoocorreentreorealismomágico
eosurrealismo,podeserporosa,mashácertoconsensodequesãocategoriasdistintas.
Segundo a classificação proposta por Tzvetan Todorov, em Introdução à Literatura
Fantástica(1975),umanarrativafantásticademandaqueoleitoradoteumaposiçãode
oscilaçãoentreumaexplicação racional euma sobrenaturalparaosacontecimentos
narrados.Adicionalmente,Todorovdistingueofantásticodoestranhoedomaravilhoso:
Atthestory’send,thereadermakesadecisionevenifthecharacterdoesnot:heopts
foronesolutionortheother,andtherebyemergesfromthefantastic.Ifhedecidesthat
thelawsofrealityremainintactandpermitanexplanationofthephenomenadescribed,
we say that the work belongs to another genre: the uncanny [l’étrange]. If, on the
contrary,hedecidesthatnewlawsofnaturemustbeentertainedtoaccountforthe
phenomena,weenterthegenreofthemarvelous[lemerveilleux].(Todorov,1975:41)
21
Contrariamenteao fantástico, aoestranhoeaomaravilhoso conformedefinidospor
Todorov, o realismo mágico trata o sobrenatural com a mesma materialidade e
factualidade que o natural (Bowers 2013). Mesmo em suas variadas definições, o
realismo mágico mantém na materialidade da magia uma de suas características
centrais.1
ParaSimpkins(1995),háumdilemacentralqueéparticularaorealismomágico:aideia
deque“thedivinelanguageneededtobringaboutcompletesignification(whatit'really
is')cannevertranscenditsillusorystatus”(Simpkins1995:154).Emoutraspalavras,os
autoresmágico-realistas,emcomparaçãoaosautoresdeliteraturafantásticaqueforam
seus predecessores e/ou contemporâneos, enfrentam um desafio particular
caracterizado pelas limitações inerentes à linguagem que desejam transcender.
Complementandoestaafirmaçãoeacomparaçãoentreorealismomágicoeofantástico
conformecategorizadoporTodorov,oautorcomenta:
[...] Todorov offers an interesting counter-assertion: ‘I nearly reach the point of
believing’:thatistheformulawhichsumsupthespiritofthefantastic:itishesitation
that sustains its life. It is unlikely, however, that a readerwouldhave any reason to
'believe'whatissaidinatext;thequestionofdoubtalwayslurks(orshouldalwayslurk,
anyway)betweenthelinesbecausethephysicalpresenceofthetextceaselesslycalls
attentiontoitsinherentfalsenessasaconstruct.(Simpkins1995:.154)
O argumento do pesquisador serve para ilustrar as diversas formas de comparar a
literatura fantástica de tradição europeia ao realismo mágico latino-americano,
enfatizandoosdiferentespropósitosedilemasdeseusrespectivosautores.Enquantoo
fantásticoencontrasuaforçanahesitaçãoqueodefine(hesitaçãoestacompartilhada
por leitor e personagem), o realismo mágico utiliza a magia (o extraordinário, o
sobrenatural)paratentarapreenderarealidadedeformaaindamaisefetivadoqueo
realismoemseumodotradicional,masencontraumaintransponívelbarreiranaprópria
limitaçãodalinguagemhumana.
1FatorqueseráconsideradonaleituradostextosdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga.
22
1.5. Relaçõescomosurrealismo
Em termos genealógicos, o realismo mágico conforme postulado por Franz Roh
(entendido como um movimento) tem diversas similaridades em relação a outro
movimentoque lhe foicontemporâneo:osurrealismo.Emsuaconcepção,ambosos
movimentos têmforte relaçãocomoâmbitodasartesplásticas,masestendem-seà
literatura:
Whilst both magic realism and surrealism in their most limited definitions are
movementsofliteratureandartthatdevelopedinthefirsthalfofthetwentiethcentury,
both terms have life beyond this period asmore generally applied notions. (Bowers
2013:22)
Roh, que cunhouo termoem relação à pintura, consideravaoMagischerRealismus
similaraosurrealismo,porémdotadodecaracterísticasparticularesquejustificariama
separaçãoentreos termos:enquantoosurrealismoutilizavaasnascentes teoriasda
psicanálise paramanifestar as profundezas do inconsciente e do onírico, o realismo
mágicoalemãobuscavaaplicá-lasàrealidadematerial,retratandoosobjetoscomuma
qualidade fotográfica, reconhecível, dando ao mágico materialidade igual àquela
conferidaaoreal.
Para Roh, era importante que os artistas do Magischer Realismus utilizassem as
influências da psicanálise (de Freud e Jung) presentes no Surrealismo e que as
combinassememsuatentativadeapresentarobjetosde formaextremamenteclara,
explicitando todo seu “maravilhoso sentido” (RohapudBowers 1995: 12). A autora,
contudo,ressaltaqueasrelaçõesentreo“realismomágico”deRoheoSurrealismonão
ocorremcomorealismomágicoenquantomodonarrativooumovimentoliterário,cujas
característicassãobastantedistintasdaliteraturasurrealista.
Para Bowers, o surrealismo difere do realismo mágico principalmente devido aos
aspectosqueexplora,associadosnãoàrealidadematerial,masàimaginaçãoeàmente,
buscandoexpressara“vidainterna”doserhumanopormeiodaarte.Emcontrapartida,
“Oextraordinárionorealismomágicoraramenteéapresentadonaformadeumsonho
ou experiência psicológica, porque fazê-lo implicaria retirar a magia da realidade
23
material reconhecível e colocá-la no mundo pouco compreendido da imaginação”
(Bowers2013:22).
EmboracríticoscomoTheoL.D’Haen(1995))argumentemque“[...]magicalrealism,in
itsartisticandcultural-politicalpractice,isclearlycontinuinginthetracksofitsearliest
progenitor, surrealism” (D’Haen 1995: 202), os autores e críticos latino-americanos
responsáveispelasprimeirasdiscussõesdomovimentonaAméricaLatinarejeitamessa
comparação,bemcomoainfluênciadeescritoreseuropeuspredecessorescomoKafka.
Ao buscar uma identidade distintamente latino-americana para o então nascente
movimento do realismo mágico no continente, como o faz Alejo Carpentier, esses
teóricosenfatizamocaráterparticulardaAméricaLatina,sejapropondoanoçãodoreal
maravilloso, seja distanciando-se da influência de autores e movimentos europeus
específicos. González Echevarría (1967) explica que "apesar de seu fascínio com o
Surrealismoemcertopontodasuavida,Carpentiernuncasucumbecompletamentea
Bretonesuasteorias.Aocontrário,buscaisolaremseuconceitodo'maravilhoso'algo
queseriaexclusivamentelatino-americano”(Echevarría1967:123).
Chanady, em suma, argumenta que críticos e autores latino-americanos comoAlejo
Carpentier,AngelFloreseLuisLealutilizamrecursosdoSurrealismoeuropeuaomesmo
tempoqueosmodificamemsuastentativasdearticularumateoriadorealismomágico
comoumfenômenoprópriodaAméricaLatina.
1.6. Realismomágicoenquantoelementodaliteraturapós-moderna
Para compreender o realismo mágico enquanto movimento literário cuja ascensão
ocorreno séculoXX,éprecisoapontara relaçãodiretaentreo realismomágicoea
literaturapós-moderna(iniciadaporBorges),bemcomoafilosofiadopós-modernismo
como um todo, cujo desenvolvimento é uma das principais marcas da
contemporaneidade.
DeacordocomSimpkins(1995),emseuartigoSourcesofMagicalRealism:Supplements
toRealism inContemporary LatinAmericanLiterature, teóricos ligadosaoestudodo
fantásticoedorealismomágicoidentificamapreocupaçãodessasobrascomasfalhas
24
da própria linguagem como sintomas do temperamento contemporâneo. Simpkins
argumentaque"[...]magicaltextsareonewayofsupplementingnotonlythefailuresof
the modern text, but also the inadequacies of what is now called the postmodern
condition"[...]”(Simpkins1995:151).
Para D’Haen, cujos argumentos estão expostos no ensaio Magical Realism and
Postmodernism: Decentering Privileged Centers (1995), o termo pós-modernismo,
especialmente em relação à prosa, significa “[...] a combination of those technically
innovativequalitiesmosthighlyregardedbycontemporarycriticalmovementssuchas
poststructuralism”. O autor identifica as seguintes características como centrais à
literatura pós-moderna: autorreflexão, metaficção, ecletismo, redundância,
multiplicidade,descontinuidade,intertextualidade,paródia,adissoluçãodefronteiras
eadesestabilizaçãodoleitor(D’Haen1995:192).JonThiem,emTheTextualizationof
theReader inMagicalRealistFiction (1995),escreveque“Manyof thecharacteristic
featuresandstrategiesofpostmodernwriting–suchasthepreoccupationwiththepast
andhistoricalrepresentationandtherelianceonquotation,pasticheandparody–arise
outofthefeelingofbeinglateandderivative”(Thiem1995:241),sentimentoesteque
pode também explicar a busca dos autores latino-americanos por distinguir-se da
tradiçãoeuropeia.
D’Haen argumenta, então, que a similaridade entre as características elencadas e
aquelasconsideradascentraisàsobrasmágico-realistasapontaparaumarelaçãodireta
entrealiteraturapós-modernaeomovimentodorealismomágico.Poroutrolado,o
autor expõe a existência de um determinado consenso crítico em que uma relação
hierárquicaentrerealismomágicoepós-modernismoéestabelecida,naqualoprimeiro
évistocomovertentepertencenteaocorpusdosegundo.
Para o teórico, uma das principais características pós-modernas da literatura de
realismomágicolatino-americanadoséculoXXéanoçãodo“ex-cêntrico”,aqueleque
fala“defora”do/deumcentro,dasmargensdospolosdepoder,“inavoluntaryactof
breaking away from the discourse perceived as central to the line of technical
experimentationstartingwithrealismandrunningvianaturalismandmodernism[...]”
25
(D’Haen 1995: 194). Em relação a esse discurso “percebido como central”, D’Haen
explica:
Towriteex-centrically,then,orfromthemargin,impliesdis-placingthisdiscourse.My
argument is that magic realist writing achieves this end by first appropriating the
techniquesofthe"centr"-allineandthenusingthese,notasinthecaseofthesecentral
movements, "realistically," that is, to duplicate existing reality as perceived by the
theoreticalorphilosophicaltenetsunderlyingsaidmovements,butrathertocreatean
alternativeworldcorrectingso-calledexistingreality,andthustorightthewrongthis
"reality"dependsupon.(D’Haen1995:194)
Destaforma,orealismomágicoagecomoumaformadeacessoaocorpusprincipalda
literaturaconsiderada“Ocidental”(comtodasasfalhasqueotermoimplica)porautores
quenãoseconsideram,ounãosãoconsiderados,comopartedosprivilegiadoscentros
de produção dessa literatura, com seus séculos de tradição, e ao mesmo tempo
“avoidingepigonismbyavoidingtheadoptionofviewsofthehegemonicforcestogether
withtheirdiscourse.”(D’Haen1995:194).
Ademais,D’Haenenfatizaqueacapacidadedosautoresmágico-realistasdefalarapartir
deumaposição“ex-cêntrica”podeserumdosfatoresqueexplicariamaascensãodo
modonarrativonaficçãolatino-americanadoséculoXX:“[...]LatinAmericawasperhaps
thecontinentmostex-centrictothe‘privilegedcenters’ofpower.Atthesametime,
though, itwasnominally independentenoughearlyenough toutter its ‘other’-ness"
(D’Haen1995:199)
Apesardeconsistiremterritóriosoficialmenteindependentespoliticamentedesuasex-
metrópoles,D’Haenenfatizaque,paramuitosautoreslatino-americanos,talpretensa
independênciaapenasserviaparaexacerbaressesentimentodeex-centricidade,queos
tornoualtamenteconscientesdesuacondiçãoenquantovozesàmargemdoscentros
depodercultural,políticoeeconômico.
Thiem observa ainda que há, nas obras pós-modernas, uma espécie de “dupla
codificação” que se verifica também nos textos mágico-realistas, o que explica, em
parte,osucessodorealismomágicolatino-americano:
26
Manypostmodernworksare"double-coded".Onecode,usuallyimitativeoftheforms
ofpopularfiction,contributestoawidereadershipandcommercialsuccess.Thesecond
code, incorporating a whole range of experimental techniques and postmodern
philosophicalissues,islesspopularandmoreadaptedtoseriousreaders,otherwriters,
andthosewemightcallthecognoscenti.(Thiem1995:243)
Essasnoçõesdeex-centricidadeeduplacodificaçãomostrar-se-ãopresentestambém
norealismomágicobrasileiro,comoserádiscutidonoscapítulos3e4destapesquisa.
1.7. Abordagensmúltiplas
O potencial disruptivo inerente ao realismo mágico permite que este modo seja
analisadoapartirdemúltiplasabordagens.Nasúltimasdécadas,orealismomágicofoi
consideradodeespecialinteresseparaocampodosestudospós-coloniais,umavezque
mostrou-se recorrenteepopularna literaturadenaçõespós-coloniais comoa Índia.
SegundoanalisamZamoraeFaris,
Magical realism's assault on these basic structures of rationalism and realism has
inevitable ideological impact [...] Magical realist texts are subversive: their in-
betweenness, their all-at-onceness encourages resistance tomonologic political and
culturalstructures,afeaturethathasmadethemodeparticularlyusefultowritersin
postcolonialculturesand,increasingly,towomen."(Zamora,Faris,1995:6)
Aprópriaformulaçãodotermo,deacordocomasautoras,implicaasubversãodosmais
diversos pressupostos coloniais, como “a identificação cartesiana da verdade com a
consciênciahumana;noções racionalistas acercadas relaçõesprováveis eprevisíveis
entrecausaeefeito;arelaçãodoleitorcomotextoearelaçãodotextocomomundo.”
(idem)
Defato,comoressaltaBowers,arelaçãodorealismomágicocomopós-colonialismoé
central, pois, nas palavras da autora, "Themajority ofmagical realistwriting canbe
describedaspostcolonial.Thatistosaymuchofitissetinapostcolonialcontextand
written from a postcolonial perspective that challenges the assumptions of an
authoritative colonialist attitude” (Bowers 2013: 95). Desta forma, os estudos pós-
27
coloniais podem fornecer um produtivo instrumento de análise de manifestações
culturais,dentreasquaisinclui-seaproduçãoliteráriaeorealismomágico,emrelação
àsforçassociaisehistóricasquecompõemolegadocolonialemqueestãoinseridas.
Apesquisadorapropõeque,emsuma,opós-colonialismoserefereàatitudepolíticae
social que se opõe ao poder colonial e ao estatuto específico de nações que
conquistaramaindependênciadeumoutroestadoimperial.Comotermocrítico,ainda
épassíveldedebateevariadasinterpretações.Naliteratura,aescritapós-colonialpode
fornecer uma forma de reconsideração da identidade de uma nação após sua
independênciadocentrocolonial,bemcomoummododeexpressaroposiçãoàsideias
instauradaspelocolonialismo.
Emrelaçãoaolegadocolonial,estenãoincluiapenasaimposiçãododomíniodeuma
naçãosobreoutra,comotambémenglobatodotipodetentativademudaracultura,a
línguaeocomportamentodepovoscolonizadosparaadequá-losàsatitudesculturaise
normas do poder colonial.Na prática, isso ocorre quandoo colonizador impõeuma
identidadeculturalehistóricahomogêneaaocolonizado,definindoopovocolonizado
somenteapartirdaperspectivadocolonizador.Poroutrolado,osestudospós-coloniais
reconhecemqueocolonialismoeopós-colonialismosãoformasdediscurso,umaforma
deexpressãopolíticaesocialmentedeterminada.
Como exemplo de uma abordagem teórica pós-colonial sobre o realismomágico de
determinados povos ou nações, McLeod (2000) propõe que o pós-colonialismo
reconhecetantooaspectodecontinuidadequandodemudançadahistória;aomesmo
tempo em que reconhece que os modos de representação coloniais ainda estão
presentes,mesmoapósadescolonização,tambémsuscitaumadefinitivanecessidade
de mudança – aspecto refletido no realismo mágico pós-colonial. Embora muitos
autoresligadosaesseperíodonãoabordemaquestãodolegadocolonialdiretamente,
suas obras frequentemente refletem a existência dessas forças sociais e modos de
representação–efrequentementeutilizamacoexistênciaparadoxaldorealedomágico
paracolocá-losemdúvida.ZamoraeFarisenfatizamqueorealismomágicoéummodo
adequadoàexploraçãoetransgressãodefronteiras,sejamelasontológicas,políticas,
geográficasouentregêneros.
28
Apesardesuautilidadecomoescopoteóricoparaanálisedetextosderealismomágico,
osestudospós-coloniais,tradicionalmenteligadosacírculosteóricosanglófonos,não
reconhecemnaAméricaLatina—enoBrasil—naçõesverdadeiramentepós-coloniais,
apesardeseuinegávelcaráterdeex-colônias.Contudo,determinadasmetodologiasou
abordagenspropostasnessecampopodemprovar-sede interesse,casoadaptadasà
realidadehistóricadopaís, para a análisedo realismomágicobrasileiro e/ou latino-
americano,umavezqueexplicitamcertosmecanismoserelaçõesdepoder(entreeixos
como Ocidente/Oriente, Norte/Sul ou primeiro mundo/terceiro mundo) também
cruciaisnaAméricaLatina.
Autores comoCarpentier, queenfatizamo realmaravilhosocomoessênciaúnicada
América Latina, frequentemente utilizam mitos nacionais, elementos de culturas
indígenas e a tradiçãooral folclórica para embasar o componente “mágico” de suas
narrativas,enquantoolado“realista”tendeaserembasadoemnoçõesde“realidade”
advindasdeumatradiçãoeuropeiailuminista.Contudo,paraumaanálisepós-colonial
dessasobras,éimportanteconsiderarseaassociaçãoimediatadacomponente‘mágico’
às culturas indígenas e não-europeias e consequente associação da componente
‘realista’,mais‘racional’ou‘lógica’,aumaperspectivailuministaeuropeia,nãopoderia
serentendida,porsisó,comoumaperspectivacolonialista,dependentedeconcepções
coloniaisderealidadeemagia—questãoqueaindademandaaprofundamentoteórico
ediscussão.
Certo é que, na América Latina, o legado cultural do período colonial ibérico fez-se
presentenasmaisdiversasesferasdasociedadeemtodooséculoXX,eperdurasob
diversasformasatéhoje,comoodomíniolinguísticodoespanholedoportuguêsede
referênciasculturaiseurocêntricasnocontinente,bemcomoasituaçãomarginaldas
populaçõesindígenas/nativas,olegadoescravistaeconsequentestensõesraciais.Esses
eoutros fatorestornamesseterritóriogeopolíticosolo fértilparaaproduçãodeum
realismomágicoquereflete,naformaenoconteúdo,opesodetaisquestões—mesmo
que não se encaixem no molde tradicional dos estudos propostos para as nações
29
“verdadeiramente”pós-coloniais.Conformeserádiscutidoemcapítulosposteriores,no
Brasil.2
Em termos de discussões teóricas em torno do realismo mágico pós-colonial, uma
abordagemrelevanteépropostaemMagicalrealismaspostcolonialdiscourse(1988),
deautoriadocríticocanadenseStephenSlemon.Naobra,oautorexplicaqueorealismo
mágicoopera frequentementeemculturas situadasàsmargensda tradição literária,
comonaAméricaLatina,onde,naspalavrasdoautor,“adenominação'realismomágico'
significaumtipodesingularidadeoudiferençaemrelaçãoàculturadominante[...]e
istodáaotermoumaideiadeautoridadecultural,mesmoquenãosejateoricamente
sólido".
Baseadoempostuladospós-modernosenas teoriasdodiscursodeMikhail Bakhtin,
Slemonpropõequeorealismomágicocontémtrêselementosprincipaisderelevância
paraumaanálisequeconsideraopapeldolegadocolonialnaproduçãodessasobras.
Dentreasdiferentesabordagensqueserãoutilizadasnopresentetrabalhodepesquisa,
propõe-se uma extensão da análise de Slemon para determinadas narrativas do
realismomágicobrasileiro,conformeserádiscutidonoCapítulo3.
Emprimeiro lugar,devidoàdualidadedesuaestruturanarrativa,o realismomágico
podeapresentarocontextopós-colonialapartirdaperspectivadopovocolonizadoe
de seus colonizadores por meio dessa estrutura narrativa e dos temas tratados.
Segundo,estemodonarrativoécapazderevelarastensõeselacunasderepresentação
consequentesdestecontextopós-colonial.Terceiro,aorecuperarvozessuprimidase
visõeshistóricasrejeitadaspelopodercolonial,orealismomágicoforneceumaforma
dereduçãodessaslacunasderepresentaçãoculturalnopós-colonialismo.
Com base em Bakhtin, Slemon explica que as narrativas pertencentes ao realismo
mágicocarregamdoisdiscursoscomdiferentesperspectivas–omágicoeoreal–,que
estãoemconstante tensãoeoposição.Estaestrutura,emumcontextopós-colonial,
2Taiscaracterísticasmostrar-se-ãomaispresentesnasobradeJoséJ.VeigadoquenoscontosdeMuriloRubião.
30
seriareflexodatensãoentreosdiscursosdocolonizadoredocolonizado,refletidosna
própriaestruturanarrativa.ParaSlemon,asobrasderealismomágicorecapitulamum
relatopós-colonialdasrelaçõeshistóricasesociaisdaculturaemqueestãoinseridas.
Poroutrolado,atensãoentreosdoissistemassignificaquehá‘lacunas’nasnarrativas
mágico-realistas,quepodemserentendidascomo‘negativas’(refletindoadificuldade
deexpressãoculturaldoscolonizadosfaceaopodercolonial)ou‘positivas’(passíveisde
mitigaçãopelaexpressãodeperspectivasalternativasàquelasdocentrocolonial).
Slemonpropõeaindaquearepresentaçãodessasrelaçõessociaispodeserencontrada
nalinguagemnarrativadostextoseemsuaestruturatemática.Norealismomágico,o
autorpropõequeistopodeocorrerdetrêsformasdistintas,masrelacionadas.
Oprimeironívelenvolvearepresentaçãodeumaespéciedetransformaçãoregional,de
formaqueoespaçodanarrativa,apesardedescritoemtermosquotidianosefamiliares,
é metonímico da própria cultura pós-colonial como um todo. O segundo nível é a
compressãodahistória,deformaqueotempodanarrativacontenha,metaforicamente,
olongoprocessodecolonizaçãoesuasconsequências.Jáaterceiramanifestaçãoseriam
as lacunas, ausências e silêncios produzidos pelo encontro colonial e refletidos na
linguagemnarrativa disjuntiva dessas obras. Neste nível, o realismomágico tende a
mostrar-sepreocupadocomimagensdefronteirasecentros,eoperaparadesestabilizar
suafixidade.
Slemon enfatiza também que a constrição binária é um elemento recorrente das
narrativasmágico-realistas, refletindo a dialética presente em culturas pós-coloniais
entreoscódigosherdadosdaordemimperialeasimaginadas"relaçõesoriginais"que
sebuscarecuperar,pormeiodaliteraturaedasartes,nopós-colonialismo.Refletindo
as oposições binárias colonizador/colonizado, ou colonos/populações indígenas,
escravos/escravistas,Norte/Sul,Primeiro/TerceiroMundoeoutrasdualidadescentrais
àquestãocolonial,asnarrativasmágico-realistasfrequentementeempregamimagens
deespelhos,reflexoseopostosemconflito.
Embora a análise de Slemon, como é comum nos estudos pós-coloniais, de origem
anglófona, seja centrada nos autores canadenses Jack Hodgins e Robert Kroetsch,
31
propor-se-áaquiquesuaanálisepodeserumadasmúltiplasabordagensdorealismo
mágicobrasileiro,conformeserádiscutidonocapítulo3.
32
2. Contextohistóricodorealismomágicobrasileiro
Avalorizaçãointernacionaldorealismomágicolatino-americanocentradaemautores
comoocolombianoGabrielGarcíaMárquez,achilenaIsabelAllendeeoargentinoJulio
Cortázarfrequentementeignoraaproduçãodomaiorpaís(tantoemtermosgeográficos
como populacionais) desse amplo território geopolítico: o Brasil. De fato, devido à
errônearelaçãoatribuídaemcírculosinternacionaisentreaAméricaLatinaealíngua
espanhola,resquíciodacolonizaçãodediversasnaçõesdocontinentepelaEspanha,o
Brasil,cujalínguaoficialédesdesuaconcepçãocomonaçãooportuguêsherdadode
Portugal,acabaporserignoradoatémesmocomopartedaAméricaLatinaemumduplo
processodemarginalização.
Independentementedessasupostarelaçãointrínsecaentreliteraturalatino-americana
ealínguaespanhola,fatoéqueoBrasilfoiecontinuaaserumimportantecentrode
produçãoculturalnaAméricaLatina,sobretudonaAméricadoSul,subcontinentedo
qualocupa48%doterritóriocontinental.Historicamente,abarreiralinguísticaentreo
Brasileseuspaísesvizinhos(menosseveradoqueasbarreirasexistentesnaEuropa,
devidoàmaior similaridadegramaticale léxicaentreoportuguêseoespanhol)não
bastou para impedir que a produção artística e cultural brasileira influenciasse
escritores,críticos,teóricoseartistasdeoutrospaíseslatino-americanos—evice-versa.
Cabe aqui ressaltar que, em certas discussões sobre a produção cultural e artística
brasileira (tanto do cânone da arte/literatura nacional quanto de artistas/autores
contemporâneos),éfrequentedeparar-secomaideiadequeoBrasilalcançoupouca
relevância internacional na área cultural (com exceção, talvez, apenas da música),
apesar da intensidade de sua produção e sua relevância demográfica e política no
continente.Pormotivosderecorteteórico,estapesquisanãopretendeaprofundar-se
namiríadedefatoressociais,culturais,históricosegeopolíticosquepoderiamexplicar
abaixanotoriedadeinternacionaldaliteraturabrasileira,paísquejamaisproduziuum
autorlaureadocomoPrêmioNobelououtrosímbolodereconhecimentoequivalente,
aocontráriodealgunsdeseusvizinhospróximos,decircunstânciascoloniaisehistóricas
empartesimilares.
33
Contudo,neste contexto, nãoé surpresaquea ascensãodo realismomágico latino-
americanotambémtenhacontadocomaparticipaçãodeautoresbrasileiros,mesmo
que estes sejam menos reconhecidos em círculos internacionais como figuras
importantesdomovimentonaAméricaLatina.Emsíntese,quandosefaladerealismo
mágicobrasileiro, tende-sea falarprincipalmentededoisautores:oescritormineiro
MuriloRubiãoeogoianoJoséJ.Veiga.
A obra do contista Murilo Rubião consiste em apenas 33 contos, publicados em
diferentes coletâneas de 1947 a 1990. A sucintez de sua obra se deve ao notável
perfeccionismodoautor,conhecidopelaquantidadequaseexcessivaderevisõesque
realizouemseuscontosaolongodesucessivaspublicações.Emtermoscronológicos,é
relevanteadatadelançamentodeseuprimeirolivrodecontos,OEx-mágico:1947.
AcoletâneareúnecontoscomootitularOEx-MágicodaTabernaMinhota,emqueo
narrador,ummágicoquedescobreterpoderessobrenaturaisemumaapresentaçãona
epônimaTaberna,encontragrandesucessoprofissionalatéqueentraemdepressão,
masnãoconseguecometersuicídiopoisseuspodereso impedem.Passaa trabalhar
como funcionário público para morrer lentamente e seus poderes, aos poucos, o
abandonam.Condenadoàinfelicidade,terminaporlamentaraperdadashabilidades
mágicas que outrora repudiou. Carregado de elementos insólitos que, como é
costumeiro no realismomágico, são tratados com desconcertante naturalidade por
partedonarrador-protagonista,aobraprecedeemduasdécadasaprimeirapublicação
de Cien Años de Soledad, que alçaria o realismo mágico latino-americano à fama
internacional.
JoséJ.Veiga,porsuavez,éumescritorcujaestreiaocorremaistardiamente.J.Veiga
escreve de 1959, ano de sua estreia com a coletânea de contosOs Cavalinhos de
Platiplanto,atépoucoantesdesuamorte,em1997.Suabibliografia,maisextensaque
adeRubião,contatambémcomromances(comoAHoradosRuminanteseSombrasde
ReisBarbudos)enovelas (comoas trêsobrascontidasemDe JogoseFestas).Assim
comoemOEx-mágicodeRubião, alguns dos contos da coletâneaOsCavalinhos de
Platiplanto empregam claramente o modo narrativo do realismo mágico conforme
34
discutidonocapítulo1,embora,comoserámostradoadiante,opróprioautorrelutasse
emaceitaressacaracterização.
EmAusinaatrásdomorro,achegadadeumpardemisteriososestrangeirosprecedea
ruínadavilaondemoraonarrador.Apósaconstruçãodeumaestranhausinaatrásdo
morro, cujo propósito os habitantes do vilarejo interiorano desconhecem, a
comunidade passa a ser assolada por fenômenos surreais, como o impossível
surgimentodemotociclistassanguináriosqueatropelamsempiedadequalquerumque
estejaàsuafrenteeasúbitaqueimaespontâneadediversashabitações.Anaturalidade
comquesãonarradosessesacontecimentos, cujoelementocentraléum fenômeno
inescapavelmente insólito, pode ser vista como demonstração de seu emprego das
técnicasdorealismomágico.
Emboranãodesfrutemdomesmo reconhecimento críticoemcírculos internacionais
queseuscontemporâneoshispanófonos,asituaçãotemporalegeográficadaprodução
dessesautoresos tornapartedo terceiroperíododo realismomágicoapontadopor
Bowers, a época da ascensão internacional do realismomágico latino-americano. É
importante apontar que, embora edições de suas obras estejam majoritariamente
restritas ao Brasil, os autores tiveram algumas traduções publicadas em língua
espanhola e inglesa, sem reedições contemporâneas. Da obra de J. Veiga, foram
publicadosSombras de reyes barbudos (1978), La hora de los rumiantes (1994),The
ThreeTrialsofManirema(1982)eMisplacedmachineandotherstories(1970);daobra
deRubião,Lacasadelgirasolrojoyotrosrelatos(1992)eEx-magicianandotherstories
(1984).Contudo,esseparecetersidoolimitedeseualcanceinternacional,eambosos
autoresestãoatualmenterestritosaopúblicolusófono.
2.1. Modernidadebrasileira
Para aprofundarmos a discussão aqui proposta do realismo mágico brasileiro
exemplificadonasobrasdeRubiãoeJ.Veiga,énecessáriopensarmosnoestatutodos
países latino-americanos, e do Brasil em particular, enquanto nações previamente
colonizadas, uma vez que, conforme alerta a pesquisadora Letícia Cesarino em seu
35
artigoBrazilianpostcolonialityandSouth-Southcooperation:aviewfromanthropology
(2012),“nãoécomumencontrarotermopós-colonialassociadoàAméricaLatina,tanto
em círculos críticos como leigos, em especial em relação ao Brasil”, principalmente
devido à relação dos estudos pós-coloniais com círculos críticos anglófonos e/ou
distantesdaacademialatino-americana.
Paraaautora,aabordagemdasmodernidadesmúltiplasdeEisenstadtpodeoferecer
valiosaferramentadecompreensãodesseestatutodospaíseslatino-americanos,cuja
relaçãocolonialcomoOcidenteémaisantiga,comindependênciaconquistadahámais
tempodoqueoutrasex-colôniascomoa Índia.Cesarinopropõequeaprofundidade
histórica, portanto, é umelemento analítico importante para as reflexões acerca do
legadocolonialeseureflexonasmúltiplasculturasdaAméricaLatina.
Eisenstadt (2002) propõe que a abordagem das modernidades múltiplas permite a
compreensão do mundo contemporâneo como “uma história de constituição e
reconstituição contínua de umamultiplicidade de programas culturais”, distinguindo
modernidadedeocidentalização—ouseja,demonstrandocomoopadrãoocidental
(i.e.eurocêntrico)deModernidadenãoconstituiaúnicamodernidadeautêntica.
Essa ideia é colocada por teóricos como o sociólogo Renato Ortiz (2000) em
contrapartidaaoparadigmadamodernidadeincompleta,embasadoemumtradicional
corpusbibliográficoesociológicoquedefineamodernidadebrasileiraemtermosde
uma falta ou ausência identitária. O sociólogo Sérgio Tavolaro (2005) defende o
empregodaabordagemdasmodernidadesmúltiplascomoumaalternativaaessavisão
“incapaz de pensar em um Brasil contemporâneo como um exemplo completo de
modernidade”. Para o autor, a compreensão de que a modernidade é histórica,
contingente e multifacetada bastaria para dar fim à obsessão da intelectualidade
brasileiracomainautenticidadeemarginalidade.
Desde sua independência em 1822, as elites intelectuais e políticas do Brasil têm
enfrentadoodesafiodeconstruira identidadedeumanação-estado.Foio inícioda
República em1889 que trouxe o gênero dos chamadosensaios de interpretação do
Brasil,obrasquebuscavamapontarasingularidadedoBrasilenquantonaçãoaomesmo
36
tempo em que constatavam os obstáculos para a construção de uma identidade
nacionalemtermosunitários.Sejamestesobstáculosverdadeirosounão,essasobras,
altamente influentes, certamenteauxiliaramamoldar seupróprioobjetodeestudo,
consolidandoaideiadeumanaçãoembuscapermanentedeumaidentidade.
Destanoçãodeumamodernidademarcadapelaausêncianascetambémofenômeno
dovira-latismo,ironicamentepostuladoporNelsonRodrigues,queseresumeemum
complexodeinferioridadenacional(cultural,políticaeeconômica),principalmenteem
relaçãoàEuropae,posteriormente,aosEstadosUnidosdaAmérica.
Adicionalmente, uma ideia central a essa modernidade particularmente brasileira
proposta nos ensaios de interpretação do Brasil é a noção de “Dois Brasis”,
tradicionalmenteassociadaàobradeJacquesLambert(1967),quemapeiaumadivisão
entreomodernoeotradicionalemdescontinuidadesespaciais(emumeixourbano-
ruralelitorâneo-interior),emqueasregiõessubdesenvolvidaseospovosdointerior
sãovistoscomoaversãopassadadeseusconterrâneostidoscomo“modernos”.
Essedualismoestáhistoricamenteligadoaolentoprocessodeocupaçãodointeriordo
país que, embora tenha se consolidado com o estabelecimento das fronteiras
contemporâneasdoBrasil,aindaresultaemgrandesesforçospolíticoseculturaispara
solucionarocenáriodísparentreSuleNorteelitoral/interior,fatodiretamenteligadoà
formação de uma identidade nacional. Conforme será discutido nos capítulos
posteriores,estadualidadeseencontrarefletidaemdiversasobrasdorealismomágico
brasileiro,narrativasemqueosprotagonistasseencontramsuspensosentreessesdois
Brasis,oruraleourbano,omodernoeoantecessor.
ApesardeestudoscomoodeLetíciaCesarino,oestatutodoBrasilenquantonaçãopós-
colonial ainda é debatido nos termos tradicionalmente associados aos estudos pós-
coloniais,umavezqueasprincipaisobrasdessecampoestãovoltadasanaçõescomum
históricocolonialbastantedistintodolatino-americanoebrasileiro.Paraapesquisadora
MaríaIñigoClavo,certosusosdateoriapós-colonialnoBrasilpodemfuncionarcomo
falsasequivalências,particularmentenousodenoçõescomplexascomoamestiçagem
naproduçãoartística.EmseuartigoIsBrazilapostcolonialistcountry?(2016),aautora
37
enfatizaque,apesardeopaísatrairatençãointernacionaldevidoaosseusdiscursosde
hibridez racial e antropofagia, que desafiam paradigmas eurocêntricos, os círculos
acadêmicosbrasileirostendemadedicarpoucaatençãoàsabordagenspropostaspelos
estudospós-coloniais.
Embora o ato de referir-se ao Brasil enquanto nação pós-colonial nos moldes
tradicionalmentepropostospelateoriapós-colonialsejadiscutívelenãoformeocerne
daanálisepropostanestapesquisa,écertoquealiteraturabrasileiracontémdiversas
manifestaçõesdeseulegadoeurocêntricoecristão,fenômenosespecíficosligadosao
seu passado colonial e à busca por uma identidade política e artística nacional no
contextodesuaindependênciacomonação.
EssarelaçãomaisdifusadoBrasilcomseupassadocolonial,comparativamenteaoutras
nações,significaqueocampodosestudospós-coloniaispodenãoseromaisprodutivo
paraaanálisedeumrealismomágicoverdadeiramentebrasileiro,aocontráriodoque
ocorreempaísescomooCanadáea Índia, cujosexpoentesdo realismomágicosão
frequentementeestudadossobestaótica.Aoinvésdisso,propor-se-ánestapesquisa
umaabordagemalternativadamodernidadebrasileira, centradanas ideias expostas
neste item e em um dos principais textos fundadores da cultura brasileira
contemporânea,oManifestoAntropofágico.
2.2. OManifestoAntropofágicoeocontroledoimaginário
Nocontextodessamodernidademúltiplanaqualseencontravamosautores,artistas,
críticoseteóricosbrasileirosnaprimeirametadedoséculoXX,oManifestoAntropófago
(ou Manifesto Antropofágico) é talvez o mais radical exemplo de uma afirmação
identitária brasileira dentre as correntes modernistas de sua época. De fato, é
paradoxalmenteaindamaiseficazemsuapropostaaoafirmarqueaidentidadecultural
brasileiraestariaaindaemumprocessoformativo,propondotambémummétodopara
atingiresseobjetivo.
Escritoem1928pelopoetaOswalddeAndrade,emcolaboraçãocomaquelaqueera
então sua esposa, a célebre pintora modernista Tarsila do Amaral, o Manifesto
38
Antropofágico foi inicialmente lidopublicamentenacasadeMáriodeAndradeeem
seguidapublicadonaRevistadeAntropofagia,fundadaporOswald,RaulBoppeAntônio
deAlcântaraMachado.Aoinvésdeconteradatadoanodepublicação,1928,aRevista
deAntropofagiafoipublicadacomadatade“Ano374dadeglutiçãodoBispoSardinha”,
sacerdoteportuguêsconhecidocomooprimeirobispodoBrasil,quefoidevoradopelos
índioscaetés,eventodescritoporSchwartzcomo"oprimeiroatocanibalísticofundador
danovaera"(Schwartz1998:62).
É certo que o Manifesto, como qualquer texto, não existe em um vácuo, mas é a
culminaçãodoModernismobrasileiroiniciadonaSemanadeArteModernade1922,da
qualOswalddeAndradefoiumafiguracentral.NocontextodoModernismoBrasileiro,
a Antropofagia (iniciada com a publicação doManifestoAntropófago e aRevista de
Antropofagia)éconsiderada,juntoaoConcretismo,omovimentodemaiorinfluênciae
impactoculturalnaproduçãoliteráriabrasileiradasdécadassubsequentes.Alémdisso,
oManifestoAntropófagodá continuidade aoManifestodaPoesia Pau-Brasil (1924),
tambémdeautoriadeOswalddeAndrade,queclamavapeloestabelecimentodeuma
poesiaverdadeiramentebrasileira,passíveldeapreciaçãocríticaepopularnoBrasile
em outras nações: "Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de
importação.EaPoesiaPau-Brasil,deexportação."
AssimilaridadesestilísticasetemáticasentreosdoisManifestossãoaparentesdesdea
leitura mais superficial dos textos, mas o Manifesto Antropófago revela-se como a
maturaçãodasideiaspreviamenteapresentadas.OswalddeAndradedáinícioaotexto
comacélebrepassagem:“Sóaantropofagianosune.Socialmente.Economicamente.
Filosoficamente.Únicaleidomundo.Expressãomascaradadetodososindividualismos,
detodososcoletivismos.Detodasasreligiões.Detodosostratadosdepaz.Tupi,ornot
tupithatisthequestion.”
Devido à ambiguidade dos postulados de Oswald de Andrade, definir e delimitar a
Antropofagia é uma tarefa complexa, comoexplicaAntonio Candido (1970): “[...] é
difícildizernoqueconsisteexatamenteaAntropofagia,queOswaldnuncaformulou,
embora tenha deixado elementos suficientes para vermos embaixo dos aforismos
algunsprincípiosvirtuais,queaintegramnumalinhaconstantedaliteraturabrasileira
39
desdeaColônia”.AdrianoBitarãesNetto,emAntropofagiaoswaldiana:umreceituário
estéticoecientífico (2004), corroboraessadificuldade:“Sehá,naAntropofagia,uma
potênciametafóricaparaabordardimensões fundamentaisda culturabrasileira, são
conflituosos osmodos como se qualificam as linhasmestras de atuação, o grau de
validadeeacapacidadedesobrevivênciadeseuspostulados.”(Netto2004:1).Todavia,
mesmo tratando-se de um movimento complexo, Schwartz ressalta a contínua
relevânciadaAntropofagiaedoModernismobrasileirocomoumtodo:
SeocompararmosaorestantedosmovimentosdevanguardanaAméricaLatina,em
nenhumoutropaísencontramosaatualidadequeatéomomentotêmasexpressõesde
rupturaquecaracterizaramosanosvinte.Defato,atéhojeomodernismobrasileiroé
assunto candente,merecedor de debates, publicações, exposições e comemorações
aindaestreitamentevinculadasàsvanguardashistóricas.Umavigênciademaisdesete
décadas,capazdegeraratéosdiasdehojeumareflexãofecunda.(Schwartz1998:54).
EmAntropofagiaeControledoImaginário(2017),ocríticoliteráriobrasileiroLuizCosta
Limaanalisaarelaçãoentreomovimentoeossistemasdecontroledoimaginárioeda
produção cultural do Brasil por parte das forças dominantes, de origem europeia e
norte-americana.Paraoautor,abasedoManifestoéumaquestãoexistencialeseu
objetivoéencontrarumaformadeequilibraratradiçãoculturalherdadapeloBrasilde
seu legado colonial com a experiência de vida autenticamente brasileira. O jogo de
palavrascomafamosafraseshakespeariana—Tupiornottupi,thatisthequestion—
opera como a formulação central deste problema. Costa Lima explica também que,
devido ao tom por vezes humoroso do texto, “poder-se-ia supor que o Manifesto
Antropófago seria uma espécie de utopia rousseauísta regressiva. Mas seria
desentendê-lo”.Paraoteórico,oautordoManifestonãoapresentaessacrença“em
uma entidade primitiva, estável e indomável que teimosamente teria sobrevivido a
séculosdecolonização”.Explica:
Emvezdeumaarqueologiaassimestática, comumacamadaprimitivae indelévele
outramais superficial, formada pela herança do branco, Oswald enfatiza uma força
primitivaderesistênciaàdoutrinaçãopromovidapelocolonizador.Essacapacidadede
resistênciaseriaantesumtraçoculturaldoqueoprodutodealgumestoqueétnico.E,
40
porisso,identificadaapenaspelomodocomoopera;pelocanibalismosimbólico.(Costa
Lima2017:2)
OcontextosociopolíticoemqueaAntropofagia—eoModernismoBrasileiroemGeral
—operamé,paraCostaLima,degranderelevânciaparaacompreensãodoteorpolítico
doManifesto.Antesdadécadade1920,períodocrucialparaasvanguardasartísticase
literárias brasileiras, o Brasil enquanto nação era definido por uma economia
fortemente agro-exportadora, comumaRepública pouco representativa dos anseios
populares,controladapelosgrandeslatifundiáriosemsuaaliançacomopodermilitar.
ApesardoquepropõeoManifestoAntropófagoeoManifestodaPoesiaPau-Brasil,a
produção de ambos os textos, e a realização da Semana de Arte Moderna que os
precedeu,foiconsequênciadacriseinternacionaldadécadade1920,que"estimulou
umavontadedemudança,quesetornouvisívelpolíticaeintelectualmenteem1922"
(CostaLima2017:3).Oteóricoresume:
Aantropofagiaéumaexperiênciacujoopostosignificariaacrençaemumlimpoemítico
conjuntodetraços,doqualavidapresentedeumpovohaveriadeserconstruída.De
suaparte,oManifestoseoriginadabuscade‘aexperiênciapessoalrenovada’,quese
fundariana incorporaçãodaalteridade.DeacordocomasmetasdoManifesto,essa
incorporaçãoagiriaaomesmotemponosplanospessoalesocial.(CostaLima2017:2)
Essa incorporação da alteridade é a síntese do processo de canibalismo consciente
propostoporOswalddeAndrade.Contudo,CostaLimaalertaparaaspossíveislacunas
dessaabordagem:“SeéverdadequeOswaldironizavaedesprezavaasvelhasfórmulas
queseconsideravamnecessáriasparaqueacivilizaçãochegasseaostrópicos[...]por
outroétambémevidentequeseucanibalismosimbólicoseencaravaasimesmocomo
odepositáriofieldosvaloresocidentais”(CostaLima2017:6).Talsuposiçãoimplicaria
que a vitalidade do corpo do Outro, conscientemente devorada pelo artista/autor
antropófago,seriaincorporadaaseudevorador,significando“atransformaçãodotabu
emtótem,i.e.,ametamorfosedosímbolodoexcludenteemincludente”(CostaLima
2017: 7). Apesar de esse processo implicar uma transformação, também significa
necessariamentequeosvaloresprévioscontinuamacircular,agorasobnovoinvólucro.
Emsuma,
41
[...] oManifesto antropófago representa uma ruptura no processo de internalização
brasileira dos valores ocidentais, se bem que seja uma ruptura restrita.[...] Noutros
termos, a intuição oswaldiana consistia em declarar que a autonomia intelectual
brasileira (e latino-americana) implicava o diálogo entre uma capacidade local —
canibalizaroquequerqueaquichegasse—eoacervoocidental.Alémdisso,através
dessa canibalização, os valores ocidentais poderiam recuperar seu traço sensível,
perdidopeloabstracionismodarazãoiluminista.(CostaLima2017:7)
A abordagem de Costa Lima acerca da Antropofagia e sua definição de controle do
imagináriotemimplicaçõesdiretasparaaanálisedorealismomágicolatino-americano,
conforme argumenta Chanady (1995). Em The Territorialization of the Imaginary in
Latin-America: Self-Affirmation and Resistance to Metropolitan Paradigms, a autora
argumentaqueadiscussãopropostapelocríticopodeservirdepontodepartidapara
uma“reconsideração”emrelaçãoaorealismomágico,comênfasenoqueCostaLima
chamou de “escandalosa proibição” da ficção, i.e., “the systematic control of the
imaginarybythedictatesofarestrictiveconceptionofmimesisbasedonverisimilitude,
decorum, and imitation of consecrated masters and legitimated models” (Chanady
1995:125).
A pesquisadora também destaca a possibilidade de se considerar as influências da
literatura europeia (sobretudo de autores como Kafka na obra de escritores latino-
americanoscomoCortázar)sobreorealismomágico latino-americanosobaóticada
antropofagia, que recontextualiza o papel dessas influências não como forma de
dominação cultural, mas como afirmação de uma identidade territorial própria. As
consideraçõesdestecapítuloservirãodebaseparaaspropostasnocapítulo4,emque
o realismobrasileiro será consideradouma formade consolidação desses processos
antropofágicos centrais à produção cultural brasileira do século XX. Antes disso,
contudo,seránecessárioabordardiretamenteosobjetosdeestudo:asobrasdeRubião
eJ.Veiga.
42
3. OrealismomágicoemMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga
Asobrasque formamoobjetoprincipaldeestudodesteprojetodepesquisa sãoos
contosescritospelosautoresbrasileirosMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga,frequentemente
apontados como os principais expoentes do realismo mágico no Brasil. Apesar de
precederemaascensãointernacionaldorealismomágicolatino-americano,RubiãoeJ.
Veigaevidentementenãosãoosprimeirosescritoresbrasileirosautilizaremomágico,
o extraordinário e o sobrenatural em suas narrativas. De fato, o cânone literário
nacional, já bastante estabelecido à época em que escreveram Rubião e J. Veiga,
recorre,deumaformaoudeoutra,adeterminadoselementosinsólitos,encontrando
grandeapreciaçãocríticaeporpartedopúblicodaépoca.
Adificuldadeemdefiniro realismomágiconoBrasiladvém,empartes,daconfusão
terminológica a respeito do termo, previamente discutida no capítulo 1. Além das
distinções traçadas naquele capítulo, cabe aqui aprofundarmos também as relações
entre o realismo mágico, o “fantástico clássico”, o fantástico contemporâneo e o
insólito. Garcia (2007) propõe que o insólito é uma categoria que “engloba eventos
ficcionaisqueacríticatemapontadooracomoextraordinários–paraalémdaordem–
oracomosobrenaturais–paraalémdonatural–equesãomarcasprópriasdegêneros
literários de longa tradição, a saber, o Maravilhoso, o Fantástico e o Realismo
Maravilhoso”.ParaMarinho,adiscussãosobreoinsólito"surgecomoumatentativade
se estabelecer fronteiras ou definições mais claras" entre fantástico, maravilhoso e
realismomágico:
Seoinsólitorepresentatudooqueérarodeacontecer,quesurpreendeoudecepciona
osensocomumouasexpectativascotidianas,poderíamos,então,considerarqueeles
estãopresentesemtodosostextosfantásticos,sejamelesdenominadosclássicosou
contemporâneos. No caso do fantástico clássico, o insólito se apresenta através da
hesitação gerada no leitor, que se questiona quanto à natureza dos eventos
sobrenaturais. [...] O insólito, diferentemente do fantástico clássico, não pretende
colocaroseventossobrenaturaisàprova.Neleoseventossãoincorporadosàrealidade
cotidianapelospersonagenseautomaticamentenaturalizados.(Marinho2010:3)
43
Desta forma,aautoraaproximao insólitodoconceitodefantásticocontemporâneo
proposto por Sartre, manifestado a partir do século XX: “Para ele, esse seria um
desenvolvimentodofantásticotradicional,realizadonoséculoXIX,eteriaKafkacomo
granderepresentante”(Marinho2010:3).AassociaçãoaKafkaérecorrenteemcríticas
eanálisesdaobradeMuriloRubião,eporvezesdeJ.Veiga,apesardosautoresterem
rejeitado,emvida, tais associaçõesdiretasa influênciaseuropeiasespecíficas.Ainda
sobreoinsólito,Garcia(2011)elabora:
[...]entenda-seinsólitoporalgumelementodanarrativaquenãoseapresentademodo
coerentecomarealidadeexterior,universoracionaldo leitorreal,conformeosenso
comumestabelecidonoconvíviosocial.Essadúvidaéconsequentementetransmitida
ao leitor real,noatode leitura,que, juntoaosseresdepapel,hesitaentrepossíveis
explicações–decaráterônticoouontológico,físicooumetafísico,empíricooumeta-
empírico–paraoeventoinsólito.(Garcia2011:2)
Emrelaçãoàdefiniçãodefantástico,GarciacomparaospressupostosdeBessière(2009)
à teoria de Todorov, apontada pelo autor como redutora, propondo que tanto o
“fantástico clássico” (categorizadopor Todorov) quantoo fantástico contemporâneo
(categoriadifusa,discutidaporautorescomoSartreeBessière)fazemusodoinsólito:
AsteoriasdeTodorovedeBessièretêmemcomumoinsólito,porque,paraambos,é
necessáriaamanifestação,noplanonarrativo,dealgoquefujaàsregrasconvencionais
da racionalidade própria do senso comum quotidiano [...] e, consequentemente, a
incertezaquedissoresulta,tantoporpartedosseresdepapel,quantopeloleitorreal,
diantedaspossíveisexplicaçõesparaoeventoinsólito.Assim,airrupçãodoincomum,
doinesperado,doinaudito,ouseja,doinsólito,noníveldadiegese,eahesitaçãode
seresdepapeledeleitorrealfrenteàspossíveisexplicaçõesparaessa irrupção,seja
como produto da ambiguidade – conforme Todorov – ou da incerteza – conforme
Bessière–,sãoaspectoscomunsàsteoriasdosdoisestudiosos.(Garcia2011:3)
Bessièrepropõequeo fantástico “nãodefineumaqualidadeatualdeobjetosoude
seresexistentes,nemconstituiumacategoriaouumgêneroliterário,massupõeuma
lógicanarrativaqueétantoformalquantotemáticaeque,surpreendenteouarbitrária
paraoleitor,reflete,sobojogoaparentedainvençãopura,asmetamorfosesculturais
44
darazãoedoimagináriocoletivo”(Bessière2009:186).ParaBessière,arenovaçãodo
fantástico“sedápelaretiradadofoconoselementostradicionaisdoinsólito(vampiros,
lobisomem, casa assombrada e outros elementos sobrenaturais) e o lança sobre os
temasprovenientesdoprópriomundodoshomens”(BessièreapudTurchi2005:149)
Inserido nessa categoria ampla do fantástico contemporâneo, o realismomágico é,
também,ummodonarrativoquefazusodoinsólito,questãocorroboradaporDantas
(2002),queapontaanarrativainsólitadoséculoXX(representadaporKafka)comoa
própriabasedorealismomágicolatinoamericano.Deespecialrelevânciaparaaanálise
dasobrasdeRubiãoeJ.Veigacomopertencentesaoâmbitodorealismomágicoseráo
usodoelemento insólito (denaturezaextraordinária,mágicae/ou sobrenatural) ea
materialidadeenaturalidadecomaqualé tratado, tanto internamente,nouniverso
narrativo.Propõe-se,assim,queosimplesusodoelementoinsólito(desassociadodessa
formaparticulardetratamentoqueorealismomágico lheconfere)nãobastaparaa
caracterizaçãodedeterminadasnarrativascomopertencentesaorealismomágico.
Um exemplo éMemórias Póstumas de Brás Cubas (1881), um dosmais conhecidos
romances de Machado de Assis, fundamental no cânone literário brasileiro, obra
narrada por uma voz improvável e altamente irônica: a do falecido protagonista, o
epônimoBrásCubas.Oromancedefatopareceassinalarapresençadeumelemento
sobrenatural nesse determinado universo narrativo, mas qualquer tentativa de
classificarMemórias Póstumas comoumexemplo de realismomágico demonstra-se
falha,tantodopontodevistadorealismomágicocomomodonarrativoquantodeum
movimentoliterárionacionaloutransnacional.Oelementosobrenatural(nosingular)
presenteemMemóriasPóstumasaproximaanarrativamachadianamaisaocômicoe
aofantásticodoséculoXIX,poisnãoháacaracterísticacoexistênciacontraditóriaentre
realidade e magia centrais às narrativas mágico-realistas. Pode-se estender essa
comparação a obras como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, romance
caracterizadopelopróprioautorcomo“rapsódia”,emqueousodoinsólitotambém
nãoocorredamaneiraanalisadanocapítulo1,masservecomoelementodevalorização
da cultura indígena, do conjunto de crenças mitológicas e de cunho religioso que
precedeuacolonizaçãoeuropeiadocontinente.
45
Tambémoptou-sepornãoincluirnaanáliseobrasdeautoresquederamcontinuidade
ao realismomágico, como Incidente em Antares (1971) de Érico Veríssimo, escolha
justificadapelorecortetemporalproposto,capazdeoferecerumamelhorcompreensão
doquepodetercaracterizadoorealismomágicobrasileiroemsuaconcepçãoebuscar
ascaracterísticasfundadorasdessepossívelmovimentonopaís.
3.1. Ocontolatino-americano
OfocodasleituraspropostasnestecapítulosãooscontosdeRubiãoeJ.Veiga,umavez
que a bibliografia literária de Murilo Rubião consiste exclusivamente em contos.
Todavia,osromancesAHoradosRuminantes(1966)eSombrasdeReisBarbudos(1972)
serão abordados em parte da análise da obra de José J. Veiga, pois concretizam as
temáticasecaracterísticasestilísticasestabelecidaspeloautornoscontosdacoletânea
OsCavalinhosdePlatiplanto(1958).
Por isso, cabe adentrarmos em uma breve discussão acerca do conto como forma
literária, especificamentedosaspectosdo conto fantástico conformediscutidospelo
escritorargentinoJulioCortázaremAulasdeLiteraturaemBerkeley(1980)enosensaios
dacoletâneaValisedeCronópio(2004),bemcomoasideiasdeEdgarAllanPoeacerca
danaturezadocontoeseusprincipaisefeitossobreoleitor,expostasemThePhilosophy
ofComposition(1846).
Poe,emThePhilosophyofComposition,umdosprimeirostextosteóricosatratardo
contocontemporâneocomoforma literária,daqualoautor foiumdospioneirosno
continenteamericano,propõequetodaobraliteráriacausaumaexaltaçãodaalma–
êxtase esse que não pode, por natureza, ser sustentado por um tempo indefinido.
Portanto,paraqueumefeitomáximosejaexercidopeloautorsobreos leitores,um
textonãopodeexcederumcertolimite,fornecendoumaleituraininterruptanaqualo
autoratingiriaumcontrolesupostamenteabsolutodassensaçõesdoleitor.Paracausar
oquePoechamadeexcitaçãodaalma,énecessárioqueoautortenhaumefeitoem
mente.ÉporessarazãoquePoeenfatizaaimportânciado“desfecho”ou“desenlace”
naproduçãodeum conto literário. Para o autor, todosos demais aspectos daobra
46
(enredo, personagens, tempo, espaço, tema) devem ser construídos ao redor do
desenlace comoefeitodesejadoemvista. Para combinar a “unidadedeefeito”e a
“duração”¸oprocessocriativodoautordeveserigualmentemetódico,analíticoe/ou
calculista.Poeexaltaoconto(shortstory)comoaformamáximadaprosa,declarando-
oartisticamentesuperioraoromance(novel).
EmAulasdeLiteratura,Cortázarabordaadistinçãoentrecontoeromancedeforma
poucoconvencional,masbastanteeficaz.Oautorexplicaque“oscontosnuncasãoou
quase nunca são problemáticos: para os problemas, existem os romances, que os
colocamequeprocurammuitasvezesresolvê-los”(Cortázar1980:22).ParaCortázar,o
contoéumamanipulaçãodeumgrupodeelementosomaisreduzidopossível,tanto
por razões técnicas (limitaçãodaextensãodo corpodo texto)quantopor razõesde
efeito:emumconto,“háforçosamenteumaconcentraçãodepersonagens,comohá
igualmente uma concentração de muitas outras coisas” (Cortázar 1980: 23). Ainda,
Cortázardiscuteoquedefinecomoa“esfericidade” inerenteàestruturadoscontos
literários:
Umromancenãomedaránuncaa ideiadeumaesfera;podedar-mea ideiadeum
poliedro, de uma enorme estrutura. Em contrapartida, o conto tende, por
autodefinição, à esfericidade, a fechar-se, é aqui que podemos fazer uma dupla
comparação,pensandotambémnocinemaenafotografia:cinemaseriaoromanceea
fotografia,oconto.(Cortázar1980:32)
Cortázaratribuiessaesfericidadeà “obrigação interna, arquitetônica”queos contos
possuemdenãoficaremabertos,“fechando-secomoaesferaeconservandoaomesmo
tempoumaespéciedevibraçãoqueprojetacoisasparaforadesimesmo”,destacando
nesseprocessoas ideiasde“intensidade”e“tensão”, consideradaspeloautorcomo
centrais à definiçãode conto como forma literária. EmAulas de Literatura,Cortázar
discutea importânciadapropostadePoeparaosestudosdocontocontemporâneo,
masretiraofocoquaseexclusivodoautornorte-americanono“deselance”epropõeas
noçõesde“esfericidade”,“tensão”e“intensidade”comocaracterísticasdeumconto
literárioeficazmenteestruturado.Adicionalmente,aanálisedeCortázartemcomofoco
47
específicoocontodenaturezafantástica,bemcomoanotávelimportânciadocontona
produçãoliterárialatino-americana.
CortázarchamaatençãoparaofatodequeocontoliterárionaAméricaLatinaéuma
formaliteráriaque“chegoumuitocedo,estranhamentecedo,àmaturidade”(Cortázar
1980:46),ressaltandoque“háoutrasculturasparaasquaisocontonãotemomesmo
significado.”Paraoautor,o romancemantémumaposição importanteno território
latino-americano,masoconto“ocupaumaposiçãodeprimeiraordem”:
[...]comodecorrerdotempo,oscontosvãofazendopoucoapoucoasuaapariçãoem
todosospaíseslatino-americanos[...]queprolongamascorrentesestéticasquenessa
Época vinham fundamentalmente da Europa, de modo que, quando o Romantismo
avançacomoumaespéciedeenormeenxurradanaAméricaLatina,escrevem-semuitos
contosdecaráterromântico,masostemassãojálatino-americanos[...](Cortázar1980:
47)
Sobreoporquêdessaproeminência,quesupõeseratípicadocontonaAméricaLatina,
Cortázarforneceumapossívelexplicação:algunsteóricosdefenderamquealiteratura
latino-americanateriaentradonamodernidade“semter todaessacarga–queéao
mesmotempoumasegurança–deumlentopassadoedeumalentaevolução,como
têmtodasasliteraturaseuropeias”(Cortázar1980:47).Oautoratribuiaesseprocesso
históricoumaideiadefusãoouaglutinaçãodascorrentesprovenientesdoexteriorà
cultura própria da América Latina, em um processo que poderia ser descrito como
análogoàantropofagiadeOswalddeAndrade:
De repente, [os escritores latino-americanos] deram por si a lidar com uma cultura
moderna e com uma língua que se prestava a todas as possibilidades expressivas,
sentindo-seaumtempoumtantodesvinculadosdeumaculturamaisdesenvolvidae
coerente e tendo de se valer fundamentalmente das influências das correntes que
vinhamdo exterior, que nunca são iguais à cultura própria de uma raça ou de uma
civilização.(Cortázar1980:48)
Combasenesseprocessoessencialmenteantropofágico,Cortázaracabaporrejeitara
associaçãoentreaimportânciadocontonaAméricaLatinaeasupostaaproximaçãodos
48
escritores latino-americanos com uma tradição primordial indígena, mais próxima à
literaturaoralouaosprimórdiosdaescrita.Pararefutaressahipótese,demonstraque
hápaíseslatino-americanos(Argentina/Uruguai)emquecontistasdegrandesucessoe
renomenão têmqualquer alicerceemculturas indígenas, comoocorre tambémnas
obrasdeMuriloRubiãoeJ.Veiga,escritoresqueprescindemdesseselementosemsua
construçãodeumrealismomágiconacional.Cortázarterminaporressaltarquenãohá
qualquer teoria que explique de forma satisfatória o fenômeno do conto latino-
americano.
As noções cortazarianas de “esfericidade”, “tensão” e “intensidade” encontrar-se-ão
presentesemdiferentesníveisnoscontosdeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga,bemcomo
(emmenor grau) algumas das propostas de Poe acerca de “duração”, “unidade de
efeito”e“desenlace”.Porsuavez,ocontextodealtarelevânciadocontoliteráriona
AméricaLatinadiscutidoatéaquipodejustificaraescolhadosautoresporpriorizaressa
forma literária, conforme será discutido separadamente nos próximos itens deste
capítulo.
3.2. OuniversoficcionaldeMuriloRubião
Os33contosquecompõemaobradoescritormineiroMuriloRubião,reunidosemObra
Completa(2016),forampublicadosemseiscoletâneas:Oex-mágico(1947),Aestrela
vermelha (1953),Osdragõeseoutroscontos (1965),OpirotécnicoZacarias (1974),O
convidado(1974)eAcasadogirassolvermelho(1978).Ocontistaéconhecidoporsua
quaseobsessivaformadeprodução:muitosdoscontospresentesnoslivrosposteriores
sãomodificaçõeseatualizaçõesdecontosantigos,refletindooperfeccionismoquase
obsessivodoescritoremrelaçãoàexatidãodesuaprosaedoefeitoquebuscavatecer.
Na tesededoutoradoOuniverso fantásticodeMuriloRubiãoà luzdahermenêutica
simbólica(2004),apesquisadoraSuzanaCánovasdesenvolveumextensotrabalhoque
traçaopercursodoautordesdeosprimórdiosdesuaescrita,épocaemquetrocava
correspondênciascomopoetaMáriodeAndrade,umdosprimeirosreceptoresdaobra
deRubião(quefaleceriaantesdapublicaçãodeOEx-Mágico).Areaçãodopoetaaos
49
contosenviadosporRubiãorefletiriaaconfusãoqueacríticaexpressariaemrelaçãoà
classificaçãodoscontosdoautormineiro:
[...]MáriodeAndrade ficara sem saber comodenominar as narrativasdeRubião—
"surrealismo", "simbolismo", "liberdade subconsciente', "alegorismo" — e acabou
designando-as por "fantasia". Os autores que presenciam a estréia de Rubião dão
prosseguimento à dúvida de Andrade e ensaiam também uma série de termos —
"fantástico", "fantasia", "impressionismo", "supra-realismo", "surrealismo" etc.,
havendoumacertarecorrênciaaesteúltimo.Esteéummomentodeperplexidadeem
que os críticos reconhecem que o autor estabelece uma ruptura com a tradição
narrativabrasileira,transcendendoossimplesmodelosdeescolaousuperandopadrões
estéticosestabelecidos.(Cánovas2004:20)
A associaçãodo realismomágicoao Surrealismoé frequenteemestudos críticosdo
realismomágicoemumaépocaprecedenteàpopularizaçãodeautorescomoGarcía
Márquez, que suscitou análises mais aprofundadas dos textos mágico-realistas e
forneceuumadistinçãomaisefetivaentreosdoistermos(videitem1.5).Ressaltando
essaperplexidadeemrelaçãoàentãoestreanteobradeRubião,críticoscomoAlmeida
FischerrejeitamsuaaproximaçãocomorealismomágicoqueassociamaJ.Veiga,pois
aapariçãodoinsólitonoscontosdeRubiãoocorredeforma"nãoconstruídaemtermos
detransmutaçãoliterária,massimapresentadacomoabsurdomesmo,queviolatodas
asregrasdopossível"(FischerapudCánovas2004:52).LuizCoelhoLana,emOsjogos
deMuriloRubião:linguagem,estéticadoefeitoemodernidade(2015),explicaque"O
quemaissepostuloudesdeapublicaçãodeOex-mágico,primeirolivrodoautor,em
1947,éofatodeMuriloseroprecursordogênerofantásticonaliteraturanacional.Isso
podeserobservadopelaincapacidadedasprimeirascríticasemdefinirogênerodeseus
contos"(Lana2015:7).
Em contrapartida ao argumento de Fischer, e de outros críticos de sua época que
buscaramafastarRubiãodorealismomágico,opresentetrabalhodepesquisapretende
oferecerumaconcepçãoacercadorealismomágicobrasileiroquepermitanãoapenas
aproximarRubiãodeJ.Veiga,mastambémdeanalisaraobradocontistamineirosoba
óticadorealismomágicoconformediscutidopelosautoresapresentadosnoprimeiro
50
capítulo.AanálisedeMarinho(2010)sobreairrupçãodoinsólitonoscontosdeRubião
vaideencontroaessadefiniçãoderealismomágico:
Dentro dessa perspectiva, o insólito ocorre em um universo familiar, cotidiano,
revestidodenaturalidadepararealçareprovocaroreal.Essecotidianoéabaladopor
um acontecimento desconhecido, sobrenatural, que provoca a subversão da ordem
através de um comportamento ou situação “estranha”. Essa situação, contudo, não
provoca dúvidas no leitor ou nos personagens, ao contrário, é aceito como normal,
mesmoquecontrariearealidadeinternaeexternaaotexto.(Marinho2010:11)
Reunidos,os33contosdeRubião,publicadosemdiferentesépocas,formamumtodo
quesearticulahabilmenteentresuaspartes.Emtermosestilísticos,aprosadoautor
permanecepraticamenteinalteradaaolongodesuaobra,graçasàsextensasrevisões
que fezemsuacarreira,dandoaoconjunto finaldecontosumacoesãoatípicapara
textosescritosemdécadastãodistintas.
O léxico empregado por Rubião é de simples apreensão e sua prosa recusa floreios
estilísticos, buscando uma precisão não distinta daquela que Poe teorizou como
essencialparaocontoliterário.Talvezoaspectomaisatípicodovocabulárioempregado
pelocontistamineirosejaonomedediversaspersonagens:enquantoalgunscarregam
nomestipicamentebrasileiros,comoBárbara,CrisePedro Inácio,outrostêmnomes
mais exóticos, que frequentemente remetem ao grego, como Gérion, Galateu e
Galimene. Paradoxalmente, os contos de Rubião parecem, assim, ter como espaço
cenários tipicamente brasileiros, mas não é possível estabelecer uma localização
geográficaespecíficaparanenhumadesuasnarrativas,queparecemocorreremum
universopropriamentemuriliano.
Ricamente povoados de personagens e figuras mágicas de grande complexidade
psicológica,oscontosdeRubiãoestabelecemumamitologiaautoral,mascujasraízes
podemsertraçadasemalgunsmitosclássicos.Cánovasdestaca"imagensnouniverso
de Rubião que projetam figuras constitutivas de mitos que, por sua recorrência,
constituem seusmitos pessoais", ressaltando quatro dos "mitos pessoais" do autor:
Hermes, Sísifo, Proteu eMedusa, bem como a recorrência das "imagensmíticas do
uroboroedolabirinto"(Cánovas2004:124).
51
DeespecialrelevânciaparaacompreensãodamitologiamurilianasãoomitodeSísifo
e a imagemdouroboro, a serpente cósmicaquedevora aprópria caudaemeterna
alternânciaentreprincípioefim.EmMuriloRubião:Apoéticadouroboro(1981),Jorge
Schwartz define o que chamade “homemuroboro” como figura central da obra de
Murilo Rubião. Conforme explica Cánovas, "O homem que está consciente da sua
finitude,quepermanecepresoaomovimentodavidaedamorte,éohomemuroboro.
NouniversodeRubião,aspersonagensestãoencerradasnumciclodevidaemorte,em
quesãoexecutadosatossemsentido,dosquaisnãopodemescapar"(Cánovas2004:
130).OhomemuroboroécomparadoaSísifo,oeternocondenadodamitologiagrega,
perpetuamente preso por Zeus no sombrio mundo do Tártaro, onde é forçado a
empurrarumaenormerochaaoaltodeumamontanha—umesforço infinitamente
fútil,poisapedrasempreacabaporrolaratéopédodeclive.
OsprotagonistasdeRubião(todoshomens,semexceção)frequentementeencarnamo
sofrimento de Sísifo, condenados (sempre pela aparição dos elementos mágicos) a
repetirem futilmente ciclos sucessivos dos quais parece que jamais encontrarão
escapatória.Estefatolevoudiversoscríticos,inclusiveSchwartz,atratarRubiãocomo
um autor do Absurdo, aproximando-o da filosofia de Camus (e doMito de Sísifo
conformeexploradopeloautor).Sísifoeohomemuroboroseriamrepresentaçõesdo
Absurdo,ouseja,doconflitoentreatendênciahumanadebuscarumsentidoouum
conjunto de valores inerentes à vida e à existência em um universo que carece
absolutamente de sentido pré-estabelecido. De fato, Schwartz propõe que o
protagonistadeRubiãonuncapoderiaserimaginadocomoum"Sísifofeliz",pois"elese
mostra duplamente trágico, pois sua condição absurda não é superável através da
lucidez. Esta é, ao contrário, o meio pelo qual a personagem se desarticula,
irrecuperavelmente,doseucontexto"(SchwartzapudCánovas2004:128).
EmOAbsurdodaexistênciaemMuriloRubião(2019),GuilhermeSardasapontaque"Em
setedécadasdecrítica,osentidoexistencialdaobradeMuriloRubiãofoiabordadopor
muitos pesquisadores que recorreram às ideias da filosofia da existência ou
existencialismo,comoasdeAlbertCamusedeJean-PaulSartre[...]”,citandoCastelo
Branco (1944): “A impressãoque se tem,diantede todosospersonagensdeMurilo
52
Rubião,édequeelesseperderamnumdeserto,ondeperambulamsemrumoesem
destino. Forças metafísicas se incumbem de desviá-los constantemente das rotas
salvadoras,condenando-ossempreacumpriromesmodestino”.
A literatura deRubião também já foi classificada comouma literatura donão-senso
(não-significado),comoofazPercinoemMuriloRubião:abárbaraporcelana:“Onão-
sensoéumapossibilidade,porassimdizer,‘transgenérica’––aindaqueporvezespossa
ser decidido em melhores circunstâncias no que se convencionou chamar
genericamente 'literatura nonsense', 'literatura do absurdo' e mesmo 'literatura
fantástica'"(Percino2014:1).Paraoautor,
[...]emMuriloRubiãoseencontraalgocondizentecomoníveldaexperiência:olaçoda
fantasiacomaqueleespaço inefáveldaprópria fantasia, insistente, subsistente;uma
espéciedefantasia"quântica",quesefaznosimultâneo,noincerto,noaleatório,no
acaso,noimpensável.Talfantasiapirotécnicapodeserdecididacomonão-senso(não-
significado), definido aqui, logo, não como "absurdo" ou "ilógico”, mas como algo
intangível[...](Percino2014:9)
Curiosamente, a própria escrita de Rubião, quase excessivamente revisada e
reapresentadaemsucessivasedições,remeteaessamesmaideiadeumciclodoqualo
autornãoescapa,tornando-seelepróprioaespéciedehomemurobororepresentada
porseusheróiseprotagonistastrágicos.Todavia,conformeressaltaCánovas,aobrade
Rubiãonãoconsisteapenasemfragmentoscíclicos,masparececonstituirumtodoalém
dasomadesuaspartes,fatorrealçadopelousodasepígrafes:todosos33contossão
precedidosdeexcertosbíblicosdiretamenterelacionadosàsnarrativasqueosseguem
emmenoroumaiorgrau.
Oatodereescreverasmesmasnarrativasconsistenumpercursoinfinitoquenãoavança
(ouavançamuitolentamente),masgirasempreemtornodesimesmo.Ousoconstante
das epígrafes bíblicas, porém, leva-nos a pensar que as citações das Escrituras
constituem-senumaescritamaior—conectadaaouno–cujoobjetivoé(des)velaro
sentidoúltimodoscontosdeRubião,queseconstituemnumaescritamenor.(Cánovas
2004:131)
53
Nestesentido,aobradeRubiãopareceencaixar-senaideiapropostaporThiem(Thiem
1995:243),jádiscutidaanteriormente,dequealiteraturapós-modernaé"duplamente
codificada". Para construir essa obra multifacetada e que possibilita releituras
sucessivasemgrauscadavezmaioresdeaprofundamento,Rubiãopareceteroptado
definitivamente pelo conto como sua forma literária pessoal, possivelmente pelas
qualidadesinerentesaocontoliteráriolistadasporPoeeCortázar:intensidade,tensão,
esfericidadeeapossibilidadedemanipularumnúmero reduzidodeelementospara
produzirummáximoefeitosobreoleitor,assimrefletindoatradiçãoparticulardoconto
naAméricaLatinaesuavalorizaçãocomoforma literáriadealtoníveldeapreciação
críticaedegrandeaceitaçãopública.
As análises a seguir terão como foco características identificadas por essa pesquisa
comoessenciaisaorealismomágicodeMuriloRubião—nomeadamente,osmitosde
SísifoedoUroboroesuarelaçãocomoAbsurdo;asdiferentesatitudessuscitadaspelo
elemento fantástico;o fantásticocomoexamedaalteridade;eo labirintodoespaço
urbanocomofontedeangústiaexistencial.Ostemaseimagensaquitratadosnãose
limitamexclusivamenteaoscontosselecionados,masrepercutemportodaaobrade
MuriloRubião.Todavia,parafinsdepraticidadeanalítica,orecortepropostoanalisará
os seguintes contos,que incluemalgunsdosmaisestudadose conhecidos textosdo
autor:Oex-mágicodaTabernaMinhota;Osdragões;Teleco,ocoelhinho;Ohomemdo
bonécinzento;Afila;Oedifício;eObloqueio.
.
3.2.1. Introduçãoàobramuriliana:Oex-mágicodaTabernaMinhotaeoAbsurdo
doquotidiano
Oex-mágicodaTabernaMinhotaéocontoquedánomeàprimeiracoletâneapublicada
porRubião,OEx-Mágico(1947),cujaestréiasedáapenastrêsanosapósapublicação
deFicciones,deJorgeLuisBorges(1944).Situa-se,portanto,emummomentoprévioà
publicaçãode importantesobrasdo realismomágico latino-americano (CienAñosde
Soledad)eestáinseridoemumcontextovanguardista,dealtaexperimentaçãoliterária,
caracterizadopelasobrasdeautoresdaincipienteliteraturapós-moderna(cujarelação
54
comorealismomágicofoidiscutidaanteriormente).Naobramuriliana,contoscomoO
ex-mágicodaTabernaMinhota,alémdenarrativasemquerealidadeemagiacoexistem
de forma intrínseca e inseparável, também foram frequentemente considerados
narrativasdoAbsurdo,especialmentedoAbsurdoligadoàexperiênciaquotidiana.
O conto, narrado em primeira pessoa, expressa desde o início o desgosto do
protagonistaemrelaçãoaoscaminhosdesuavida:"Hojesoufuncionáriopúblicoeeste
nãoéomeudesconsolomaior",anunciaonarrador.Odesgostopelaprópriaexistência
érefletidonaepígrafedoconto:Inclina,Senhor,oteuouvido,eouve-me;porqueeusou
desvalidoepobre(Salmos,LXXXV,1).Onarradorpassa,então,arelatarosurgimento
de suas impossíveis habilidades comomágico. Rubião associa a irrupçãodamagia à
proximidadecadavezmaiordaMorte:"Umdiadeicomosmeuscabelosligeiramente
grisalhos,noespelhodaTabernaMinhota.Adescobertanãomeespantouetampouco
mesurpreendiaoretirardobolsoodonodorestaurante”.Mesmoamagia,porém,não
écapazdeatenuaraangústiadonarrador,quefalhaemalcançarafelicidade:“Como
crescimentodaminhapopularidadeaminhavidatornou-seinsuportável”.
Suaimpotênciaperanteodestinoérefletidanosubsequentedescontroledahabilidade
mágica.Amagia,outrora fontede suaexcepcionalidadeprofissional, se convertena
manifestaçãodesuaagoniadiantedavida,levandoonarradoradeceparsuaspróprias
mãos,que,paraseudesespero, são imediatamentesubstituídas.Conclui,então,que
somenteamortepoderiadarfimaoseudesconsolo.Osobrenaturalestáfortemente
presente em suas tentativas de suicídio, convertido em aspecto inescapável de sua
existência:retiradosbolsosumadúziadeleõesnaexpectativadequeosdevorem,mas
osanimaisnãolhefazemmalalgum.Apenaspedemparaqueosajudeadesaparecer:
“Estemundoétremendamentetedioso”,justificam.Ainescapávelmonotoniadavida,
expressada logo no início pelo narrador, encontra-se refletida nessa afirmação dos
animaisfalantes,quesãoentãodevoradospeloprotagonistanaexpectativademorrer
deindigestão,tambémfracassada:“Tiveimensadordebarrigaecontinueiaviver”.
Mesmo tratando-se de um tema de grande morbidez como o suicídio, o elemento
insólitoempregadoporRubiãoconcedeumtomtragicômicoàcena,expondoafaltade
controlequeonarradortemsobreseudestino–-esobreosprocessosorgânicosdo
55
próprio corpo. As recorrentes tentativas de tirar sua própria vida para terminar seu
sofrimento,frustradasporummecanismomágicoqueodevolveaoestadode início,
remetemàfiguradeSísifoque,conformeapontadoanteriormente,surgecomoumdos
“mitospessoais”deRubião—oeternocondenadoquejamaispoderiaserimaginado
como“umSísifofeliz”.
Ironicamente,énaprópriamonotoniadavidaqueestáarespostaqueencontrapara
escapardotormentoqueamagialhetraz,.Incapazdeencontrarconsoloemumsuicídio
rápido,atoimpossibilitadoporseusdonsdemágico,buscasuicidar-sedemaneiramais
lenta:encontraempregoemumaSecretariadoEstado.Afiguradeumimensoaparelho
burocráticoqueoperadevorandoo ânimodo ser humanoé recorrentenouniverso
muriliano, representando o Absurdo do quotidiano urbano. A vida de funcionário
públiconãoapenas resultanamorte figurativa,mas colocaoex-mágicoemcontato
diretocomoutrossereshumanos,outroradistanciadospelopalco.Aconvivênciacom
seussemelhanteseseusenfadonhosproblemascausa-lhenáuseas.
Resignadoaotediosoemecânicoofíciodefuncionáriopúblico,oex-mágicodescobre
ter perdido por completo seus dons sobrenaturais. Agora condenado a uma nova
espéciedepurgatório,noqualnemsequersereconhececomoexcepcional,masapenas
comoumapeçanaengrenagemdeumtitânicosistema,descobre-searrependidodo
mauusoquefezdeseuspoderes,repreendendo-sepor“nãotercriadotodoummundo
mágico"quandoteveahipótesedefazê-lo.
OarrependimentoéosentimentofinalexpressoemOEx-MágicodaTabernaMinhota.
Emboraaintromissãodofantásticoemsuarealidadequotidianahouvessefalhadoem
fazê-lofelizenquantoaindatinhadonsexcepcionais,onarradorpassaaidealizaroque
podiaterfeitocomelesnopassado,emesmoadesejaroqueantesesnobava,ouseja,
osaplausoseaadoraçãodopúblicodeseusantigosespetáculos:“Porinstantes,imagino
comoseriamaravilhosoarrancardocorpolençosvermelhos,azuis,brancos,verdes[...]
Erguerorostoparaocéuedeixarquepelosmeuslábiossaísseoarco-íris.Umarco-íris
que cobrisse a Terra de umextremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos
brancos,dasmeigascriancinhas."
56
Apesar de ser um conto relativamente precoce no conjunto final da obra deMurilo
Rubião, O ex-mágico da Taberna Minhota estabelece a base de todo o universo
muriliano,comfiguraseelementosestilísticosrecorrentesemgrandepartedesuaobra.
Aimagemdoespaçourbanocomofontededesesperoexistencial;otrabalhoenfadonho
queoperacomoassassinodoespíritocriativo(nocaso,osdonssobrenaturaisdoex-
mágico);odescontentamentoea inquietudediantedavidaedamorte, tratadopor
vezesdeformabastanteirônica,comonafaladosleões;arepulsapelamonotoniados
discursosmundanosdeseuspares,beirandoamisantropia;eaapariçãodeumSísifo
contemporâneoeeternamenteinfeliz,condenadoasofreremumcicloinescapávelde
trabalhostortuosos,impossibilitadodealcançarumafelicidadeque,nofundo,parece
serinalcançávelparatodos.
3.2.2. OpirotécnicoZacariaseaatitudefantástica
EmOpirotécnicoZacarias,umdosmaisconhecidoscontosdaobradeRubião,oconflito
vivido pelo protagonista consigna as diferentes atitudes que personagens e leitores
podem adotar diante do elemento sobrenatural. Embora uma das características
principaisdenarrativasmágico-realistassejaaaceitaçãodosaspectosmágicoscoma
mesmanaturalidadeefactualidadedoreal,areaçãodivididadosconhecidosdeZacarias
àestranharessurreiçãodopirotécnicopõeemcausaessatotalaceitação.
De fato,apóso sobrenaturalacontecimento,oúnicoconsensoqueoshabitantesda
cidade onde vivia Zacarias encontram é que, vivo ou morto, seu corpo continua a
transitarpelasruas:“Umacoisaninguémdiscute:seZacariasmorreu,oseucorponão
foienterrado.”Opróprionarrador—oepônimopirotécnico—explicaque,enquanto
unsacreditamqueeleestávivocomosempreesteve(equeomortoseriaumsósia),
outrosdefendemquemorreu,masseucorpocontinuaanimadoe“vivo”pelacidade—
nadamaisque“umaalmapenada,envolvidoporumpobreinvólucrohumano”.Explica
oprotagonista:“Emverdademorri,oquevemaoencontrodaversãodosquecreemna
minhamorte.Poroutrolado,tambémnãoestoumorto,poisfaçotudooqueantesfazia
e,devodizer,commaisagradodoqueanteriormente.”
57
Aressurreição,aspectocentraldanarrativa,éaludidanaepígrafe:Eselevantarápela
tardesobretiumaluzcomoadomeio-dia;equandotejulgaresconsumido,nascerás
comoaestrela-d-alva.(Jó,XI,17).Énestelimiarentreavidaeamorte,entreaaceitação
dofantásticoearejeiçãológicaaosobrenatural,queZacariasnarraomundanoacidente
quesupostamentelhecustouavida.Atropeladoporumgrupodejovensembriagados
naapropriadamentenomeada“EstradadoAcabaMundo”(umatípicaestradadechão
do interior brasileiro, mal-iluminada e distante de tudo), Zacarias revela-se vivo no
momentoemqueostripulantesdoveículodiscutiamlivrar-sedeseucorpojogando-o
aoprecipício.
Na contramãodaatitudedivididaadotadapelapopulação, Zacariaspareceaceitar a
improvávelsobrevivênciadeseucadávercomnaturalidade,representandoaatitudedo
leitordenarrativasmágico-realistas(estabelecidanopactonarrativonecessárioparaa
suspensãodaincredulidadequantoaoselementosinsólitos).Éaoretornarparaacidade
queZacariassente-seconfrontadocomoestranhoocorridodesuamorte.Asreações
polarizadasdeseusantigosconhecidosevizinhosoafetamapontodeconsiderartal
oscilação o principal desafio para sua nova condição: “Não fosse o ceticismo dos
homens, recusando-seaaceitar-mevivooumorto,eupoderiaabrigaraambiçãode
construirumanovaexistência.”
Em síntese, a angústia do narrador-protagonista parece refletir essa relutância, essa
hesitaçãocaracterísticado“fantásticoclássico”.Flutuandoentreanaturalidadeoua
excepcionalidadedesuamorte,Zacarias—comoo leitor—é incapazdeescaparda
inquietude,esuasreflexõesrefletemasdimensõesirônicaetrágicadoconto:“Sóum
pensamentomeoprime: que acontecimentosodestino reservará a ummorto seos
vivos respiram uma vida agonizante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua
plenitude,queaminhacapacidadedeamar,discernirascoisas,ébemsuperioràdos
seresquepormimpassamassustados”.
Amorte (mais precisamente, a tênue e arbitrária fronteira entre vida emorte) é a
imagem central que o elemento fantástico potencializa em O pirotécnico Zacarias,
recursoqueressurgiránaobradeJoséJ.Veiga.Utilizando-sedesta fronteira,Rubião
destaca as atitudes possíveis diante da irrupção do elemento mágico: a aceitação
58
material, característicado realismomágico,eahesitação (“oceticismodoshomens,
recusando-seaaceitar-mevivooumorto),característicadoestranhoedomaravilhoso,
subcategoriasdofantásticodeTodorov.
3.2.3. Magiaealteridade:Osdragões,Teleco,oCoelhinho,eOhomemdoboné
cinzento
O realismo mágico é frequentemente utilizado por seus grandes expoentes como
ferramenta para expressar uma relação de alteridade, do Eu/Nós que se vê face ao
Outro,aodiferente,aodesconhecido.Aprópriadicotomiaentrerealidadeemagia—
ou seja, entre os elementos narrativos que buscam a mímesis da realidade e os
elementossobrenaturais,fantásticose/oumágicos—podeserempregadapararealçar
essa relação dicotômica, bastante presente nas narrativas de realismo mágico que
representam a experiência colonial (mas não como característica exclusiva dessas
narrativas).
Em Murilo Rubião, o elemento mágico como representação dessa alteridade está
presente em diversos contos em que o protagonista (ou um pequeno grupo de
personagens)sevêdiantedeumOutrooudeOutroscujosurgimentoérepentino,mas
trazgrandesmudançasaostatusquoatéentãovigentenavidapessoaldoprotagonista
ouemtodaasuacomunidade.TrêsexemplosdestatemáticasãooscontosOsdragões,
OhomemdobonécinzentoeTeleco,ocoelhinho.
Em Os dragões, o elemento mágico está presente desde o primeiro parágrafo da
narrativa,precedidodeumaepígrafecomrelaçãoliteralediretaaotexto(Fuiirmãode
dragõesecompanheirodeavestruzes,retiradadeJó,XXX,29).Aliás,afrasequedáinício
aOs dragões já estabelece a relação entre oOutro e a comunidade que os recebe,
enfatizandoadiferençaentreeles:"Osprimeirosdragõesqueapareceramnacidade
muitosofreramcomoatrasodosnossoscostumes".
Explica-sequeosdragões"receberamprecáriosensinamentos"eque"sua formação
moralficouirremediavelmentecomprometidapelasabsurdasdiscussõessurgidascom
59
achegadadelesao lugar”;nestapassagem,evidencia-seoconfrontoquedecorredo
contatoimediatocomaalteridade.
ConfusosemrelaçãoàidentidadedesseOutroqueadentraseuespaçodepertença,os
habitantes da cidade têm dificuldades em definir a que país ou raça pertencem as
súbitasaparições.Ovigárioinsistequesetratamdedemônios.Aimagemdainstituição
religiosacomoimpedimentoparaoacolhimentodoOutrosurge,talvez,comoreflexo
das crenças do próprio autor, ex-católico e posteriormente agnóstico. Acerca da
identidadedosdragõesmuitosediscuteemuitassãoasinterpretaçõesdesuaespécie:
"coisaasiática,deimportaçãoeuropeia",monstrosantediluvianos,mulassemcabeçae
lobisomens são termos utilizados pelos moradores para classificar as estranhas
criaturas.Porém,háumgrupoqueosreconhecedeimediato:"Apenasascrianças,que
brincavamfurtivamentecomosnossoshóspedes,sabiamqueosnovoscompanheiros
eramsimplesdragões.Entretanto,elasnãoforamouvidas".Ainocênciadascrianças,
cujanoçãoderealidadeéinfinitamentemaisplásticaemaleáveldoquedosadultos,
permitequeaceitemesseOutrocomooé semmaiores indagações (imagemquese
repetiráemJ.Veiga).
Estimulandoumprocessoforçadodeassimilação,opadredeterminaqueosdragões
devem receber nomes de batismo e ser alfabetizados. Devido a "moléstias
desconhecidas",muitosdragõesmorrem,falhandonoprocessodeassimilaçãoaonovo
ambiente. Sobrevivemapenas dois – "infelizmente osmais corrompidos",Odorico e
João. Seduzidos pelos vícios domundo humano, os dragões fogem à noite para se
embriagarnobotequimecomotempoveem-seforçadosacometerpequenosfurtos
parasustentarosvícios,dosquaisjánãoconseguemmaisfugir.
OdragãoOdoricocausaosmaioresproblemas:"Asmulheresachavam-noengraçadoe
houveumaque,apaixonada,largouoesposoparaconvivercomele".Aabsurdaeum
tantocômicarelaçãocarnalentreumdragãoeumamulherrefleteahumanizaçãodas
criaturas,queagoraseencontramcadavezmaisdistantesdesuaalteridadeinicial.A
uniãoinevitavelmenteterminaemtragédia:"Poucotempodepois,elafoiencontrada
chorando perto do corpo do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito,
provavelmentedeumcaçadordemápontaria".
60
Odestinodoúltimodragãoédiferente.QuandoodragãoJoãocomeçaa"vomitarfogo",
sinal de que atingiu a maturidade como dragão, parece recuperar parte de sua
identidade própria, outrora perdida sob os vícios adquiridos pela assimilação. A
extraordináriahabilidadede João lhe trazenormesucessonacidade,masacabapor
partircomumcircoviajantesemfornecerexplicações.Apósapartidadoúltimodragão,
diversosoutrosdragõespassampelasestradasdacidade,mas,apesardosesforçosdo
professorede seusalunos,nenhumdragãodesejapermanecerno local: “Formando
longasfilas,encaminham-separaoutroslugares,indiferentesaosnossosapelos".
Conclui-sequeaoshabitantesdacidadefoifornecidaumaoportunidadeúnicaemágica
de conviver com criaturas de uma outra realidade; porém, a falha em assimilar os
dragões ao povoado, de forma consciente de suas particularidades e identidades
próprias,terminaporprivaroshabitantesdeoutraoportunidadesimilar.Aassimilação
forçada(ensinodalinguagem,obrigatoriedadedeassumiremnomesdebatismoeaulas
obrigatórias) repele o Outro, que não encontra oportunidades ali além de vício e
perdição.
Emcontrapartida,emTeleco,ocoelhinho,oOutroérepresentadoporumaúnicafigura,
adoepônimocoelho.Acriaturaquedánomeaocontoé"umcoelhinhocinzento"com
um"jeitopolidodedizerascoisas",quedesenvolveumarelaçãodeamizadecomo
narrador, com quem passa a habitar. De imediato, o encontro com o elemento
sobrenatural, tratado com absoluta naturalidade e materialidade pelo narrador,
cimentaanarrativanoâmbitodorealismomágico.
Teleco, a criatura fantástica do título, tem a capacidade de “metamorfosear-se em
outrosbichos”e impulsos travessos,utilizandosuashabilidadesmágicasparapregar
peçasecausarconfusõesentreossereshumanos.Ocontatocomomundohumano
parece corromper a criatura, que assume a forma de um canguru de "roupas mal
talhadas", comolhosque"seescondiampor trásdeunsóculosdemetalordinário".
Anuncia,então,seudesejo:"Dehojeemdiantesereiapenashomem".Nessatentativa
de tornar-se humano, assume o nome de Antônio Barbosa e, assim como um dos
dragõesdocontoanterior,envolve-secarnalmentecomumamulher.
61
Suatentativadeserforçosamenteaceitocomohumanocausarepulsaaonarrador,que
termina por expulsá-lo do lar. A companheira humana parece querer apenas se
aproveitar dos poderes da criatura, que se torna ummágico de grande sucesso na
cidade.Nodesfechodoconto,Telecoretornaàcasadonarrador,abandonandoonome
humanoesuatentativadevivercomohomem.Ocontatocomacidadeeasmultidões
parece tê-lo corrompido como um cancro: limita-se a tossir e metamorfosear-se
descontroladamenteemdiversosanimais.Enfraquececadavezmaisatéqueassumea
formadecarneirinho"abalirtristemente".Onarradoradormececomelenosbraçose,
aoacordar,encontranoseucolo"umacriançaencardida,semdentes.Morta".
Assim como ocorre com os dragões do conto anterior, Teleco, uma criatura de
identidadeevidentementesobrenatural,perdesuaidentidadeaorender-seahábitos
apresentados como mundanos e urbanos (tabagismo, alcoolismo e mulheres). Sua
tentativadetornar-sehumanoérepreendidacomviolênciaporqueminicialmenteo
acolheuemtodasuadiferença.Exploradopelomundohumano,Telecoperdeseunome,
sua forma, seumodode falar e atémesmoo controle de suas habilidades, até que
sucumbeemorrenosbraçosdonarrador.
EmOhomemdobonécinzento,afontedoconflitoénovamenteachegadadeumOutro
queperturbaostatusquoatéentãoinabaladodeumpequenouniverso(avizinhança
do narrador). Roderico, o narrador-protagonista, explica que, antes da vinda “do
homemdobonécinzento”,aruaondemoracomoirmãocostumavaser“otrechomais
sossegadodacidade”.Culpaachegadadoestranhopela“intranquilidade”quepassaa
dominaravizinhança.
Aolongodoconto,aobsessãodoirmãoemobservaroestranhocomportamentodo
novo vizinho acaba por contagiar o narrador. De modo insólito, o homem parece
emagreceracadadiaquepassa,tornando-secadavezmaisdifuso.Ametamorfosedo
velhopassaarefletir-senocorpodoirmãoArtur,quetambémemagrecevisivelmente
com o passar dos dias. Roderico, agora fascinado pela figura do homem do boné
cinzento,nãoparecepreocupar-secomo irmão.Acertaaltura,aoveronívelaque
chegouamagrezadovizinho,Arturalerta:"Amanhãdesaparecerá".
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Ocontoterminacomaúltimaapariçãodohomemdobonécinzento,queresultano
derradeiromomentomágicodanarrativa:"Nadamaistendoparaemagrecer,seucrânio
haviadiminuídoeoboné,folgadonacabeça,escorregaraatéosolhos.Oventofazia
comqueocorpodobrassesobresimesmo.Teveumespasmoelançouumjatodefogo,
quevarreuarua".Ovelhodesapareceporcompletoe,paraaperplexidadedonarrador,
omesmoacontececomo irmão:Rodericopercebequeo corpodeArtur “diminuíra
espantosamente”,reduzido“aalgunscentímetros”,atéqueopega“comaspontasdos
dedosantesquedesaparecessecompletamente”.Empoucosinstantes,oirmãosome,
substituídopor“umabolinhanegra”arolarnamãodeRoderico.
EmOhomemdobonécinzento,oOutrosurgecomoumafiguradistanteesuainfluência
sobreolocaleseushabitantesocorredeformaindireta,separadodaspersonagensnão
apenasdajaneladaqualoobservam,mastambémpelasparedesdadecrépitamansão
ondeseinstalapermanentemente.Seuaspectofantástico,desdeoiníciomarcadopelo
presságio “do branco e do cinzento”, é realçado pelo estranho desaparecimento
progressivoeofogoquevomitaantesdeseesvair,bemcomooefeitosobrenaturalque
causanoobservadorobcecado,oirmãoArtur.AssimcomoTelecoeodragãoOderico,
arelaçãodovelhohomemdobonécinzentocomafiguradamulherparecedesencadear
na criatura já decrépita e repulsiva um irremediável processo de perdição. As
personagensfantásticasdostrêscontosencontramdestinostrágicosnolocalquefalha
emadaptar-seàchegadadesseOutroedeixammarcasindeléveisporondepassam.
EmMuriloRubião,asrelaçõesdealteridadesãoexploradassobaformadesteconfronto
deumarealidadecomregraselógicaconhecidasdiantedachegadainesperadadeum
elemento(ouelementos)regidosporoutrasleis,decunhointeiramentefantástico(os
míticosdragões,ocoelhofalantecomodomdametamorfose,omisteriosohomemque
desaparece). Ao adentrarem um espaço que não lhes é de pertença, essas figuras
realçamoAbsurdoinerenteàexistênciadosnarradoreseàineficáciadalógicaqueaté
então prevalecia em suas comunidades, forçando-os a confrontarem-se com a
instabilidadedesuaprópriarealidade.
63
3.2.4. OAbsurdonolabirintourbano:Afila,OedifícioeObloqueio
EmcontoscomoojáanalisadoOsdragões,surgeumaimagemqueserárecorrentena
literaturadeMuriloRubião:oespaçourbanocomolocaldeperdiçãodohomem,palco
doAbsurdoedeangústiaexistencial.Frequentemente,éapresentadaumadicotomia
entreametrópoleeasregiõesinterioranas,deondevêmalgunsdosprotagonistasque
encontramsuaperdiçãonasruasimpessoaisdacidade.
TalimagempodeserrelacionadaànoçãodeDoisBrasispropostaporJacquesLambert,
que, como discutido anteriormente, mapeia uma divisão entre o moderno e o
tradicionalemeixosdedescontinuidadesespaciais,comooeixourbano-rural.Esseeixo
de descontinuidade explica a susceptibilidade do homem do interior à perdição da
metrópole: visto como um ser "anterior", uma espécie de versão passada de seus
conterrâneos "modernos" da cidade, não dispõe dos mecanismos necessários para
cumprirseusobjetivose/ouencontrarafelicidadenolabirintodoespaçourbano.
ÉocasodocontoAfila.Aepígrafe—“Eelesteinstruirão,tefalarão,edoseucoração
tirarãopalavras.(Jó,VIII,10)”—aludeàexistênciadeumOutro(“eles”),novamente
estabelecendoumadicotomiaentreoEueumgrupooposto, indefinidoevago,que
buscaráexercerinfluênciasobreoEu.
Noconto,oprotagonistaPerericoéumhomem"do interiordopaís"quesedirigeà
cidadeembuscadeumobjetivoinexplicado.ComoédecostumeemMuriloRubião,“a
cidade” é apenas vagamente definida como tal, jamais correspondendo a uma
localizaçãoespecíficadoterritóriobrasileiro;serve,assim,comoaCidadearquetípica,
representativadolabirintourbanoemsi.Igualmentenebulosaé“aCompanhia”,cujo
escritório é o destino de Pererico. Busca uma audiência com “o gerente” mas, por
recusar-searevelarseupropósito,écondenadopelomonstruosoaparelhoburocrático
aenfrentar,diaapósdia,umafilaquejamaistemfim.
Todasassuastentativasdesubverterosistemafalhameaestadianacidadesealonga
cadavezmais.Envolve-secomumamulher,aprostitutaGalimene,figuraigualmente
marginalizada que tenta ajudá-lo. Porém, quando o protagonista finalmente resolve
retornaràfábricaeacabarcomoinquebrantávelciclodafilasemfim,descobrequeo
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gerentefaleceu,masnãoantesdeatenderatodosqueaguardavamnafila––exceto
Pererico,quehaviaabandonadoolocal.ApesardosapelosdeGalimene,quelhepara
permanecer,Perericoécategórico:"Odeioestacidade".Parteeinformaacompanheira
quejamaisvoltará.Adistânciaqueotremcolocaentreeleeacidadeoconforta:“À
medidaquecontemplavaboisevacaspastando,retornavam-lheantigasrecordações,
esmaeciamasdopassadorecente".
Comessedesfecho,Afilaatingeumaconclusãoatípicaparaumcontomuriliano:apesar
defalharemseupropósitoinicial(seratendidopelogerentedaCompanhia),Pererico
consegue escapar da cíclica punição da metrópole, optando por deixar para trás a
tentaçãodepermanecercomGalimene(amulherque,excepcionalmente,nãosurge
neste conto como outro caminho para a perdição). O retornar às origens, ao lado
interiorano do eixo urbano-rural, é o que lhe permite esmaecer as recordações do
presenteeseguiradiante.
Porsuavez,atramadocontoOedifícioéimpulsionadaporoutrainstituiçãodecaráter
epropósitosobscuros,o“ConselhoSuperiordaFundação”,quecontrataoprotagonista,
o engenheiro João Gaspar, para dar forma a um projeto impossível: um prédio de
infinitosandares.Nestaempreitada,poucasinformaçõessãofornecidasaJoãoGaspar,
quedesconheceporcompletoopropósitodoedifício.Sabeapenasque"Maisdecem
anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o
manifestodeincorporação,teriailimitadonúmerodeandares."
Desdeo início, a absurda tarefade JoãoGaspar remetenovamente ao vaziode sua
existência,dedicadaaumprojetoque,logicamente,jamaispoderáserconcretizado.O
engenheiroéadvertidoporumdosvelhosmembrosdaFundação:"Nestaconstrução
nãohálugarparaospretensiosos.Nãopenseemterminá-la,JoãoGaspar.Vocêmorrerá
bemantesdisso."OvelhorevelaserestaaterceiraversãodoConselhodaentidade("e,
comoosanteriores,jamaisalimentamosavaidadedesermosoúltimo").
JoãoGaspardá inícioàobra,queprogrideemritmo tranquilo, cumprindoasetapas
previstas,seguindooritmodesuaprópriavida:"Decinquentaemcinquentaandares,
João Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia". À
65
medida que a obra atinge proporções impossíveis, passando do 800º pavimento,
problemascomeçamasurgireoengenheiropassaaduvidardeseupropósito.
AoredigirumrelatórioaosdiretoresdaFundação,descobrequeosúltimosconselheiros
jáhaviammorrido.Nãodeixaramparatrásquaisquerinstruçõesacercadacontinuação
doprédioeJoãoGasparsesentecadavezmaisconfuso:"Asperguntasiamevinham,
enquantooedifícioseelevavaemenoressefaziamasprobabilidadesdesetornarclaro
oquenasceramisterioso."
Desanimado, comunica aos operários a dissolução do Conselho e se diz obrigado a
paralisaraconstruçãodoedifício,masosoperáriosnãoaceitam:"Acatamososenhor
comochefe,masasordensquerecebemospartiramdeautoridadessuperioresenão
foramrevogadas".MesmoapósamortedoConselho,aincompreensívelautoridadeda
Fundação permanece, mantendo o ciclo de obras em eterno funcionamento. Os
funcionáriosrecusamsuastentativasdedemissãoeoprotagonistapassaavaguearos
andaresdoedifício,discursandoparaoperáriosqueserecusamaouvi-lo.Aocontrário
doprotagonistadeAfila,JoãoGasparacabaporsucumbiraoAbsurdodatarefaquelhe
éconferida,incapazdeimpedirqueociclocontinue.
OutroprotagonistaqueencaraoAbsurdoemumcenáriotipicamenteurbanoéGérion,
personagem central do contoObloqueio. O conto tem início com a constatação de
estranhosruídosnoedifícioondemoraoprotagonista:"Noterceirodiaemquedormia
nopequenoapartamentodeumedifíciorecém-construído,ouviuosprimeirosruídos".
Noinício,atribuiosestranhossonsaumpesadelo,masobarulhoéintenso:"Vinhados
pavimentos superiores e assemelhava-se aos produzidos pelas raspadeiras de
assoalho". Assemelha-se à cacofonia de umamáquina que,mesmo às três horas da
manhã,“prosseguianaimpiedosatarefa”.
Ensurdecidopelosestrondos,Gérionéincapazdedizerseamáquinaestá“construindo
oudestruindo”.Emdúvidasedeveverificarafontedosomouguardarseusobjetosde
valorefugir"antesdodesabamentofinal",decideabriraportaeossonsseintensificam,
até que ouve "estalos de cabo de aço se rompendo, o elevador despencando aos
66
trambolhõespelopoçoatéarrebentarláembaixo”comumaviolênciaqueestremece
todooprédio.
Quandoosbarulhoscessam,Gérionvaiaoterraçoaveriguarosestragosesedescobre-
se a céu aberto: "Quatro pavimentos haviam desaparecido, como se cortados
meticulosamente[...]"enãohárastroalgumdasmáquinas.Gérion,quedescobresero
único habitante do edifício, parece ser um homem em fuga do passado ––
nomeadamente,buscaesconder-sedaesposaedafilha.Sustentadofinanceiramente
pela“gorda”esposa,Gérionbuscarestabelecersuamasculinidadeeindependência.
Aoreceberumtelefonemadaesposaedafilha,Gérionlamentao"fracassodafuga".
Frustrado,aceitaseudestinoedecidepartir.Aodescerasescadas,descobreque,oito
andaresabaixo,ocaminhoterminaabruptae inconcebivelmentenoar:o“bloqueio”
está concretizado e já não há mais saída para o protagonista, que retorna ao
apartamento,ondepassaaaguardarainevitávelchegadadamáquinaoculta.
Resta-lhe apenas aguardar um eventual desfecho: as constantes fugas da máquina
apenasaumentamomedoeacuriosidadedeGérion,que“nãosuportavaaespera,a
temer que ela tardasse em aniquilá-lo ou jamais o destruísse". Permanece no
apartamento, vislumbrando luzes coloridas pelas frinchas. A narrativa se encerra
quandoGérioncerraaporta coma chave, seudestino final indefinido.Os temasda
fatalidade(dodestinoqueinevitavelmentesecumprirá),doremorso,dafrustraçãoda
fugadopassadoedaincompreensibilidadedoespaçourbanosãocentraisànarrativa
deObloqueio.Cabesugerir,aqui,queacomparaçãodeCortázar,queaproximaoconto
àestruturadeumaesfera,quesefechasobresi,éfrequentementetestadanoconto
muriliano:muitasde suasnarrativaspermanecemabertas, coma fatalidadeapairar
alémdosparágrafosfinais.
Nos três contos analisados aqui, o espaçourbano surge como imenso labirinto, cuja
incompreensível espacialidade é realçada pelo uso do elemento mágico (a fila
interminável,oprédiodeinfinitosandares,ainsólitademoliçãodorefúgio).
67
3.2.5. Consideraçõesadicionais
A estrutura do conto muriliano, que com frequência parece apresentar-se de forma
aberta, ou como uma espécie de esfera porosa (que não se fecha por completo, mas
mantém-se permeável a sucessivas releituras e reinterpretações), é solo fértil para diversas
abordagens teóricas distintas da análise proposta até aqui. Essa riqueza temática,
psicológica e simbólica resulta na necessidade de se propor um recorte, como este
realizado nesta pesquisa, a fim de limitar o escopo de uma análise que, como o próprio
uroboro, arrisca tornar-se um esforço cíclico e sem fim.3
Porém, para fins desta análise, optou-se por desenvolver a discussão acerca dos
temas acima. Esta escolha não busca afirmar que os temas e imagens estudados neste
projeto são os únicos e principais elementos constituintes da obra de Murilo Rubião, mas
pretende enfatizar seu papel central na definição de certos aspectos que possam aludir à
existência de um realismo mágico brasileiro como movimento que transcende os contos
desse único autor.
3.3. OuniversoficcionaldeJoséJ.Veiga
AestreiadoescritorJoséJ.VeigaocorremaistardiamentedoqueaentradadeMurilo
Rubiãonocenárioliterárionacional.Em1959(ouseja,12anosapósapublicaçãodeO
Ex-mágico,deRubião), J. Veiga, com44 anosde idadee amigodeGuimarãesRosa,
publica a coletânea de contosOs Cavalinhos de Platiplanto, obra que já estabelece
algunsdosprincipaistemascomosquaissepreocupariaoautor,bemcomosuavoz
narrativaetécnicaficcional,colocandoseunomeemevidênciacomoumautorcomuma
3Cabedestacar,porexemplo,apossibilidadedeestudaroscontosdeMuriloRubiãosobaóticados estudos de gênero, que poderiam encarregar-se de analisar a prevalência do olharmasculinoeafiguradamulhercomoobjeto,comofontedesalvaçãoouperdiçãodohomem;análisesbaseadasnapsicanálisetambémpodemserúteisparadecodificarcontoscomoDr.Pink,bemcomopoderiabuscar-seaprofundarnarelaçãodareligiosidadecomoAbsurdoeanoçãomurilianadepecadoepunição,fortementepresenteemcontoscomoAglaiaeOstrêsnomesdeGodofredo.
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literaturafortementemarcadaporsuavivênciainteriorana.ConformeexplicaTurchiem
AsvariaçõesdoinsólitoemJoséJ.Veiga(2005),
As raízes rurais de José J. Veiga, nascido em 1915, numa fazenda situada entre os
municípiosdePirenópoliseCorumbá,emGoiás,serviram-lhedematerial ficcional.A
regiãonataldeixoumarcasindeléveisnaobradeVeigasejanaadjetivaçãoquesepode
depreender da cartografia dos contos – o distante, o longínquo, o isolado; seja nos
espaçosecostumescotidianosquecompõemoenredo–ocurral,orio,apescaria,a
caçada;todoselementosemblemáticoscomosquaisoimagináriogoianoseidentifica
(Turchi2005:1).
AocontráriodoqueocorreemMuriloRubião,ouniversoficcionaldeJoséJ.Veiga
émarcadoporumregionalismoquetornaimediataaassociaçãodoespaçonarrativoà
realidadebrasileira;mas,assimcomoocontistamineiro,J.Veigautiliza-sedetopônimos
próprios, criando vilas, cidades e comunidades verossimilmente brasileiras, mas
inteiramenteficcionais:
Se por um lado é possível perceber a presençado real nas cidades interioranas que
compõem o espaço ficcional de Veiga, por outro, a invenção dos nomes e a
caracterizaçãodoslugaresprovocamatransfiguraçãodarealidade—nomesestranhos
(Platiplanto, Manarairema, Taitara, Vasabarros, Torvelinho) e lugares perdidos e
isoladosnomundopropiciamoaparecimentodofantásticoedomaravilhoso(Turchi
2005:2)
Cabe ressaltar aqui que a aproximação de J. Veiga com as noções de “fantástico” e
“maravilhoso” propostas por Todorov) pela pesquisadora é reflexo da frequente
perplexidadedacrítica—daépocaeatual—emrelaçãoàclassificaçãodasnarrativas
do escritor goiano.Noposfácio da coletâneade novelasDe jogos e festas (2016), o
crítico José Castello explica que o próprio J. Veiga “reagiu veementemente” à sua
classificaçãocomoautorderealismomágico:“Afirmavanãopassardeumainvençãoda
crítica literária francesa, sem outros recursos conceituais para classificar os novos
escritoreslatino-americanosquechegavamàslivrariasparisienses”(Veiga2016:110).
Apesardessarelutânciaemaceitaracategorizaçãodesuasnarrativascomonarrativas
mágico-realistas,aformapelaqualdiversoscontoseromancesdeJ.Veigaempregamo
69
elemento insólito encaixa-se nas concepções discutidas no capítulo 1.4 Parte da
confusãoemclassificarJ.Veiga(e,porextensão,MuriloRubião)noâmbitodorealismo
mágico se deve à própria nebulosidade do termo em círculos críticos brasileiros –
nebulosidadeestaquearevisãobibliográficapropostanocapítulo1visaelucidar.
Neste sentido, é pertinente ressaltar o que escreve Dantas emO insólito na
ficçãodeJoséJ.Veiga(2002):"OquestionamentonaobradeVeiganãocorrespondeà
hesitação do fantástico clássico (a que se refere Todorov) [...]", mas se aproxima à
narrativainsólitadoséculoXX,queoautorcolocacomobasedorealismomágicona
AméricaLatina:
"[...]a narrativa insólita do século XX (de que Kafka é referênciamaior) não apenas
contrapõe dois planos opostos, mas cria um único plano, uma nova realidade,
autônoma.[...].Nãohádúvidadequeoinsólitoirrompanoreal;elejáofez,poiséparte
integrantedarealidade,oquefocalizaasdúvidassobreaadaptaçãoaele.NaAmérica
Latina,estaéabasedorealismomaravilhosohispano-americano[...]"(Dantas2002:5)
Em termos estilísticos, José J. Veiga, comoMuriloRubião, buscaumaprosa concisa,
empregando um léxico de poucos floreios e fazendo uso frequente da narrativa em
primeirapessoa.Conformeressaltadoanteriormente,suaprosaéfortementemarcada
peloregionalismo,buscandoaproximar-sedafalacoloquial;todavia,oregionalismonão
resumetodaacomplexidadedavozdoautor,masserve,conformerelataTurchi,como
“pontodepartidaenãodechegada"paraexploraruma"universalidadede temase
modos de criação literária" (Turchi 2005: 2). A pesquisadora ressalta que essa voz
narrativaaproxima-seàvoz“donarradorprimitivodaoralidade,própriodashistórias
quevivemnosertão,queprendemaatençãodosouvintesnaforçadafabulação(idem:
2).
Essavoznarrativaqueseaproximadaoralidadepareceseridealparaaexploraçãode
algunsdostemascentraisàobradoautor.SeRubiãoémarcadopelapresençadealguns
4Tratam,commaterialidade,do irrompimentodofantástico,domágicoe/oudosobrenaturalnarealidade como fato, acontecimento que não suscita o merecido espanto ou descrença, com oempregodeumavoznarrativaespecífica.
70
mitos pessoais, a literatura de J. Veiga é frequentemente associada à infância,
especificamenteà“meninice”,osermenino;emJ.Veiga,opontodevistanarrativoé
frequentementeprotagonizadoporgarotosdepoucaidade,ouporhomensmaisvelhos
que relembram episódios da infância (cabe ressaltar que, como em Rubião, os
protagonistasdeJ.Veigasãotodosdosexomasculino).Olúdicotemumapresençaforte
noscontosdeOsCavalinhosdePlatiplanto,associandooatodebrincar,aimaginaçãoe
opodercriadordascriançasaopróprioelementofantástico—ainfância,porsisó,éum
mundodaimaginação,emqueamagiaearealidadesãotratadasemanipuladascom
igualmaterialidade.
Noprefácioàediçãode2015deOsCavalinhosdePlatiplanto,oprofessoreescritor
Silviano Santiago explica que "Nos contos de Veiga, a visão infantil e interiorana do
narrador,aparentementenostálgica,servedepalcoparaadramatizaçãodouniverso
provincianobrasileiro"(Veiga2015:7).Apesardessefoconasexperiênciasdainfância,
édifícilaproximaroautordaliteraturainfanto-juvenil,poiscontoscomoAInvernada
do Sossego e Era só brincadeira retratam, apesar do tom lúdico, cenas de grande
violência e horror, e obras posteriores viriam a tratar diretamente de confrontos
políticoscomplexos,bemcomodarelaçãooprimido-opressor.
Ouniverso ficcionalde José J.Veigaéumemqueo fantástico irrompe lentamente,
penetrandoavidadonarrador(edesuacomunidade)comoumlíquidoqueinfiltra,aos
poucos,afundaçãodeumacasa.Diferentementedoqueocorreemmuitoscontosde
Rubião,emqueocarátersobrenatural/mágico/fantásticodosacontecimentosnarrados
éevidentedesdeaprimeirafrase,asnarrativasdeJ.Veigatêminíciodeformanatural,
beirando o realismo (infusionado com um forte regionalismo), e é apenas com o
desenvolvimento da trama que o fantástico irrompe; é tratado, contudo, com
naturalidade. Apesar de poder causar certo espanto, nunca é apontado como algo
impossível,contraditório,absurdo.
OAbsurdoexistencial,comoemRubião,tambémestápresenteemalgunsdoscontos
deJ.VeigaemaisfortementenosromancesAHoradosRuminanteseSombrasdeReis
Barbudos.EmJ.Veiga,oAbsurdotranscendeaexperiênciaindividualeestáligadoàs
relaçõesdeopressãoealteridade,enfatizandoafutilidade—ouatotalimpossibilidade
71
—deresistênciadiantedeumpoderopressorsobrepujante,invencível.Noprefáciojá
mencionado, Silviano Santiago (2015) escreve que “[...] a arquitetura dramática dos
contosdeVeigasearmaapartirdavizinhançadegruposdivergentes,sendoqueum
deles,omaisfraco,acabaporsofrerreprimendasterríveiscomoconsequênciadabusca
porautonomiae liberdadedeação".Nestecontexto,diversoscríticosapontampara
umarelaçãodiretaentreasobrasescritaspeloautornasdécadasde1960e1970com
oregimemilitarqueperdurounoBrasilde1964a1985:
Os romances A hora dos ruminantes (1966), Sombra de reis barbudos (1972) e Os
pecadosdatribo(1976)foramproduzidosduranteaditaduramilitar.Nessasobras,José
J. Veiga cria situações de opressão sufocante, frequentemente representadas por
súbitasinvasões.(Turchi2005:2)
EmAsuperaçãodoautoritarismoemJoséJ.Veiga(2020),SantoseBelliniapontamque,
nouniversoficcionaldoautor,"[...]oleitordepara-secomcríticastenazesàsmazelas
sociais, aliadas a circunstâncias absurdas e insólitas" (Santos, Bellini 2020: 95). Os
autorestambémpropõeque,aotrabalharnessepanoramahistórico,J.Veigavaialém
dacríticasocial,tecendoreflexõesacercadapróprialiteratura:
“NasentrelinhasdeSombrasdeReisBarbudosépossívelapreenderasalusõesqueo
escritor teceaopapelda literaturaenquantopromotoradereflexõesque induzemo
leitor a reconhecer-se como ser humano e cidadão, assim como responsável por
questionamentosqueofazemsuperarinterditosimpostosarbitrariamenteeempenhar-
se na tomada de ações decisórias para vencer desmandos e repressões políticas.”
(Santos,Bellin2020:100)
Apesardarelaçãodiretacomomomentohistóricodesuapublicação,ocomentárioque
J.Veigaconstróinessasobrasnãodeveser lidoapenasemtermosde resistênciaao
períodomilitar:"Emboraaquiealisejapossívelidentificarreferênciasmaisexplícitase
visíveisàsituaçãopolíticadoBrasilàépocadogolpemilitar,éprecisolersuasalegorias
de modo mais amplo, não exatamente descontextualizando-as, mas possibilitando
diálogosmaisabertos,dimensõesquealcancempercepçõesinclusiveforadouniverso
político"(Nepomuceno2007:99).
72
Combasenessasideiascentrais(oregionalismo,olúdico,aassociaçãodofantásticoà
infância e a exploração de relações de poder), buscou-se destacar alguns temas
principais tratados na obra de José J. Veiga. Para fins de comparação, optou-se por
analisarapenasbrevementeos romancesAHoradosRuminanteseSombrasdeReis
Barbudos,nosquaisJ.VeigadesenvolvetemasestabelecidosemcontoscomoAusina
atrásdomorroeErasóbrincadeira.Ostemasapontadoscomodeprincipalinteresse
paraanálisedeJ.Veigacomoproponentedorealismomágicobrasileirosãoarelação
que estabelece entre o lúdico e o fantástico (em A Ilha dos Gatos Pingados, Os
cavalinhosdePlatiplantoeFronteira);ofantásticocomofronteiraporosaentreavidae
amorte(OsdooutroladoeAInvernadadoSossego);eoempregodorealismomágico
comometáforapassíveldeinterpretaçãopolítica,especialmenteemrelaçãoaoperíodo
militar,épocaemquepartedasobrasselecionadasfoiescrita(Ausinaatrásdomorro,
Erasóbrincadeira,QuandoaTerraeraredonda,AHoradosRuminanteseSombrasde
ReisBarbudos).
3.3.1. Olúdicoinsólito:Fronteira,OsCavalinhosdePlatiplantoeAIlhadosGatos
Pingados
Conforme apresentado no item anterior, a prevalência de narradores-crianças nos
contosdeJ.Veigaforneceàsuaescritaumteorlúdico,relacionandoamagiaaojogo,à
imaginaçãoeaoatocriativoligadoaessasduasfaculdades.Sobreolúdiconaliteratura,
Cortázar(1980)estabeleceumarelaçãodiretaentreoatodejogareoatodeescrever:
Umescritorbrincacomaspalavras,masbrincaasério.Brincanamedidaemquetemà
suadisposiçãoas intermináveise infinitaspossibilidadesdeuma língua, cabendo-lhe
estruturar,escolher,selecionar,recusare,finalmente,combinarelementoslinguísticos
paraqueaquiloquepretendeexpressareprocuracomunicarocorradeummodoque
lhepareçaomaispreciso,omaisfecundopossívelecomumamaiorprojeçãonamente
doleitor(Cortázar1980:186).
73
Paraoautor,oelementolúdicooperaemconsonânciacomanaturezadopróprioleitor,
cujo contato como lúdico, a brincadeira e o jogo inevitavelmente ocorre emalgum
momentoprévioaoseuencontrocomotextoliterário:
[...]háumelementolúdiconaliteraturae[...]anoçãodejogo,quandoaplicadaàescrita,
àtemáticaouàmaneiradeveroqueseestáanarrar,ofereceumadinâmica,umaforça
àexpressãoqueameracomunicaçãosériaeformal–-mesmoqueotextoestejamuito
bemescritoemuitobemarquitetado–-nãologratransmitiraoleitor,porquetodoleitor
foieé,dealgummodo,um jogador,ehápor issoumadialética,umcontatoeuma
recepçãodessesvalores(Cortázar1980:187).
Os contos abordados nesta seção empregama voz infantil para surtir similar efeito.
Diversoselementosdaexperiênciadainfânciasão,afinaldecontas,universais—enão
pareceseràtoaqueJ.Veigautilizaesseselementosnaconstruçãodofantásticoque
impregnapraticamentetodooseuuniversoficcional.
DiferentementedamaiorpartedoscontosdeJ.Veiga,Fronteiraéumanarrativaem
queoelementomágicoestápresentedesdeoinício.Noconto,omeninonarradoréo
único que possui a habilidade de atravessar em segurança uma rota denominada
simplesmente “a estrada”, um local "cheia de armadilhas, de alçapões, demundéus
perigosos" e "desvios tentadores". Essa excepcional habilidade, notadapor todos os
adultos, vemdo conhecimento que omenino temdas regras peculiares da estrada,
comoanecessidadedeevitarresponder“aoscumprimentosdosglimerinos”,raçade
anõesquebuscadistrairoshomensdasuamissão.Sabetambémque"aoouvirpassos
atrás ninguém deve parar nem correr", pois "quemmostrar sinais de medo estará
perdidonaestrada".
Suahabilidadedeguiaéexploradapelosadultos,quesolicitamosserviçosdomenino
aospais.Acriançacomoguiadoextraordináriorefletearelaçãoentrefantásticoelúdico
exploradaporJ.Veigaemdiversoscontoscujosnarradores-protagonistassãocrianças.
Pressionado por essas obrigações, o menino deseja crescer e perder essa
responsabilidadedeguiadofantástico:"Minhaúnicaesperançadeliberdadeeracrescer
parasercomoosadultos,completamenteincapazesdeiremsozinhosdaquiali".Apesar
74
de se orgulhar de ter capacidades que os adultos não têm, omenino expressa um
sentimentoderepulsaquantoàssuaslimitaçõescomocriança:"[...]quandoeubaixava
osolhosparaolharomeucorpodemeninoeviaoquantoeuaindaestavapertodo
chão, vinha-me um desânimo, um desejomaligno de adoecer emorrer e deixar os
adultosentreguesaoseudestino".
Apósumepisódio emque seupai quaseperde a sanidadena estrada, devido a um
desafio feito pelo garoto, os adultos passam a evitá-lo, e o narrador teme que sua
própriamãesintaomesmomedoemrelaçãoaofilho.Aoconfrontaramãe,onarrador
chora,massemsaberoporquê:"[...]nãotinhamotivonenhumparachorar,euestava
chorando mais por formalidade, porque o que havia eu feito para estar naquela
situação?Queculpatinhaeudavida?"Aoenxugaraslágrimas,sente-senoalto"deuma
grandemontanha, de ondepodia ver embaixo omeninode calça curta" que "havia
deixadodeser".Nodesfecho,omeninoparecever-sepelaprimeiravezcomoadulto,
apesardeaindanãooser.Absolve-sedeculpaportudooquefez,poisapenasbuscava
ajudar; não é o culpado pelo temor que os adultos sentem diante de algo que não
compreendem,suacapacidadeúnicadecruzar, intacto,um localdegrandeperigoe
lógicadesconhecida.
Jánocontoquedátítuloàcoletânea,OscavalinhosdePlatiplanto,somosapresentados
a um narrador mais velho, de idade indeterminada, que adota a voz infantil como
reminiscência de uma experiência passada, relatando um estranho caso ocorrido
quandoera“muitocriança”:seu“primeirocontato”comas“simpáticascriaturinhas”
que chamadeos cavalinhosdePlatiplanto.Apósumaquedaquedeixou seupéem
péssimoestado,seuavôRubémhaviaprometidodar-lheumcavalinhodesuafazenda,
masacabaporadoecerantesdecumprirapromessa.Afazendadoavôétomadapor
umtiogananciosoeomeninojamaisrecebeopresente.
Logo, os elementos sobrenaturais começam a penetrar na vida do garoto. Em um
passeio,encontradiversaspersonagensenvolvidasemtarefasextraordinárias,como“o
meninoquetinhamedodetocarbandolim”,umgarotoquetemeaapariçãodecriaturas
monstruosassemprequealguémtoca:"Elesvêmcorrendo,sopramumbafoquentena
75
gente,ninguémaguenta".Apósajudaromeninoarecuperaraconfiança,élevadoaum
localonírico,afazendadePlatiplanto.
Umafiguraidentificadaapenascomo“omajor”explicaquePlatiplantoéolardeum
grupo de cavalinhos implausivelmente adestrados que pertencem unicamente ao
narradorporordemdeseuavô.Escondem-sealiparaevitarquecaiamnasmãosdotio,
quedesejaassassinarogarotoetomar-lheosrarosanimais.Omeninotestemunhaa
excepcionalperformanceapresentadapeloscavalinhosedescobrequejamaispoderá
levá-los,poisosanimaisexistemapenasemPlatiplanto.
Em algummomento, sem perceber, o menino adormece e desperta em sua cama.
DecidenãocontaraninguémoqueocorreuemPlatiplanto:"Podiamnãoacreditar,e
aindarirdemim;eeuqueriaguardaraquelelugarperfeitinhocomovi,parapodervoltar
láquandoquisesse,nemquefosseempensamento".Aambiguidadedodesfecho—
teria sido um sonho? — pode aproximar a narrativa do fantástico de Todorov (a
hesitaçãoentreumaexplicaçãoracional,osonho,eumasobrenatural,aexistênciada
terra mágica de Platiplanto), mas a insinuação de que o acontecimento narrado é
somente“oprimeirocontato”donarradorcomosimpossíveiscavalinhospodepôrem
dúvidaessaexplicação,demasiadosimplistaparaaobradeJ.Veiga.
Porsuavez,AIlhadosGatosPingados,oprimeirocontodacoletâneaOsCavalinhosde
Platiplanto, é uma das narrativas em que não há um elemento fantástico tão
distintamentevisívelquantoemAfronteiraouOscavalinhosdePlatiplanto,masháa
construçãodetodaumaatmosferaqueremeteàirrealidade,apontandonovamentea
plasticidadedomundoinfantil.
Noconto,onarradoreseusamigosCedileTenisãobuscamescapardosproblemasda
vidanapequenacidadeondevivempormeiodaimaginaçãoedabrincadeira.Rejeitam
sempreacompanhiadeCamilinho,garotomaisnovoemimadocujochoroosirrita.Dos
três,éCedilquemmaisprecisadeumrefúgio,sofrendoabusosfrequentesnasmãosdo
violento cunhado Zoaldo. O narrador e Tenisão também sofrem com a opressão de
garotosmaisvelhosedosprópriosmembrosdesuasfamílias,porquesãotidoscomo
76
inferioresnahierarquiafamiliarecomunitáriaquepriorizaaopiniãodosmaisvelhose
menosprezaadascrianças.
Um dia, descobrem um local remoto e de difícil acesso: uma ilha fluvial, acessível
somentedebarcoequedeinícionãotemnome,masacababatizadadeIlhadosGatos
Pingados.Tenisãodescreveosgatospingadoscomo"obichinhomaisbonitodomundo
inteiro,aténacional,eomaiscustosodeachar”,sendoalguns“atépingadosdeouro”
maisrarosainda.Apesardedesconheceremotalanimal,osoutrosmeninosseanimam
comapossibilidadededesenvolverailhaecomprarumcasal,batizandooretiroinsular
como a Ilha dos Gatos Pingados. De certa forma, os três garotos podem ser vistos,
também,comoosGatosPingadosdotítulo.
Paradesenvolveresse refúgioonírico,osgarotos, comoespéciedeRobinsonCrusoé
pluraleinfantil,constroemestruturas,planejandoestabelecerumausinanaIlhaemais.
Contudo,Camilinho,cansadodarejeiçãoporpartedosgarotos(comportamentoque
reproduz a opressão que os próprios sofrem nas mãos dos mais velhos) relata a
existência da ilha a um grupo de meninos mais velhos, que destrói tudo o que os
meninosconstruíramemseuincipienteParaíso.
AperdadaIlhaédolorosa,maséCedilquemacabaporsofrerasmaioresconsequências:
cansadodosabusos,fogeduranteamadrugada,deixandoparaonarradorseucanivete
favorito.Onarrador,temendoperderalembrançadailhaedoamigo,recusa-seaseguir
emfrente,comopedesuamãe:"Mamãeralhava,diziaqueeramelhoreuirtratandode
esquecer.Ouvindotododiasempreamesmacoisaeuficavamaistristeainda.Qualera
a vantagem de esquecer? [...] Acho que tem certas coisas que a gente não deve
esquecer,écomoumaobrigação.Sedependerdemim,nuncaeuheideesqueceraIlha
dosGatosPingados".
Ador(dordesertemidopelaprópriamãe,deperderoavôeopresenteprometido,de
terapurezadeumrefúgiodestruído)écolocadaporVeigacomoetapanecessáriaà
metamorfosedomeninoemhomem,acentuadapela coexistênciada realidadeeda
magia,tidacomotípicadacosmovisãoinfantil.
77
3.3.2. Fronteirafantásticaentreavidaeamorte:OsdooutroladoeAInvernada
doSossego
Outro tema explorado por José J. Veiga com o uso da voz infantil é a dicotomia
vida/morte, aprofundada pelo autor por meio do elemento fantástico como uma
fronteira muito mais porosa do que aquela tradicionalmente estabelecida pelo
pensamentológico-racional,comovistoemOpirotécnicoZacarias,deRubião.Éocaso
doscontosOsdooutroladoeAInvernadadoSossego,queretratamamortedeforma
altamentesimbólica,comdesfechosbastantecontrastantes—refletindoasdiferentes
atitudesqueoserhumanopodeadotardiantedoinevitávelAbsurdodofim.
Os do outro lado tem início com a descrição de uma casa "grande e alta, de tijolos
vermelhos, talvez a mais alta do lugar", localizada "atrás de uma cerca de taquara
cobertademelões-de-são-caetano”(marcasdoregionalismotípicodeJ.Veiga).Apesar
desertãoaltaetãovívida,onarrador(outromenino)nuncacompreendeuporquenão
podiaservistadarua.Refere-se,assimcomoemAusinaatrásdomorro,aum"outro
lado", a região onde fica a grande casa, a qual jamais havia notado antes dos
acontecimentosquedecidenarrar:"Tambémnãomelembrodeterandadodooutro
lado,nãoseiquemmoravalá,aquelapartenãoestavanomeucaminhonemnaminha
curiosidade;sómerecordo,comocoisanormaleaceita,queosentesquemoravamlá
nãoeramparaservistos,muitomenosfrequentadosourecebidos".
Onarradorrelata,então,comoreparounaexistênciadacasavermelhapelaprimeira
vez:aolevarseucavalobebernoriacho,percebe"umenxamedeborboletasamarelas".
Umadasborboletassedestacadasdemaiseseaproximadonarrador,queéatingido
por uma súbita compreensão: "A borboleta tinha umamensagemparamim, estava
escritaemsuasasas,chegueiaverumaououtrapalavra,quenoentantonãoconsegui
entender".Persegueaborboletaatéqueelapassa"paraooutrolado"atravésdeuma
cerca. A partir de então, o narrador se depara com uma série de acontecimentos
extraordinários,comoasúbitainvasãodamansãopor“grandenúmerodesoldadose
civis, todosarmados,correndopela rua, saltandoporcimadacerca,derrubando-ae
invadindoo jardim”.Escapadamultidão,compostadeestranhaspersonagensqueo
78
abordamcompropostasenigmáticas.Oselementosmágicossemultiplicamàmedida
queanarrativaprogride,tomandoporcompletoomicrocosmopessoaldonarrador.
A conclusão do conto ocorre com o encontro entre o narrador e uma personagem
descritacomo“irmãdeBenigno”,colegadeescoladoprotagonista.Apósum"clarão
muitoforte,brancocomoluzdemagnésio",ospersonagensavistam"umaquantidade
de objetos comoenormes bolhas de sabão cruzando lentamente o céu no rumodo
barrancodooutrolado".
Percebemquehásereshumanosnointeriordosobjetos,pessoasqueonarrador"não
viahámuitotempo",comoopróprioBenigno.Onarradorsentepenadasfiguras,que
parecemestarmortas(ou,nostermosdeJ.Veiga,pertencemagoraao“outrolado”).
Questiona-se:"Porquenãoiamtristes?Porquenãoreclamavam?Porqueesfregavam
asmãos,comosetivessempressadechegar?"AirmãdeBenigno,aoverosorrisodo
irmão, pergunta: "Você viu? Não dói!" Praticamente em uníssono, encantados pela
descoberta,exclamam:"Quantomedosemmotivo!Quantomedosemmotivo!"
Frente à imagem absoluta da morte, de natureza absolutamente sobrenatural, o
narradoreairmãdeBenignoparecemchegaràmesmaconclusãosobreaprópriavida:
que não há motivo para ter medo, pois a vida e a morte são e sempre serão
essencialmenteincompreensíveisparaoserhumano.
Porsuavez,odesfechodeAInvernadadoSossegoéconsideravelmentemaistenebroso
doqueoconfortoencontradopelonarradordeOsdooutro lado.Onarrador,outro
menino,entristece-seprofundamentecomanotíciadequeseucavalofavorito,Balão,
desapareceudocurral.Aesperançadeencontrá-loseesvaiquandoumamigodafamília
encontra o cadáver do animal. O encontro com o corpo do cavalo é brutal e afeta
fortementeonarradoreseuirmão:"Tombadonoaçude,comocorpodentrodaágua,
o rabo boiando como ninho desmanchado, o pescoço entortado no barranco [...] a
barriga esticada como bolha que vai estourar, nem parecia o nosso cavalo". Para o
narrador, a dormaior vemdo confronto coma realidadebiológica e inescapável da
morte:"Nãopodiaeletermorridocomoera,bonitoelimpo?"
79
Osmeninosapelamparaafantasiaparacombateroluto,passandoa"fazertudocomo
seoBalãoaindaestivessevivo".Essejogodefaz-de-contaéaportapelaqualadentrao
insólitonouniversodonarrador,estabelecendonovamentearelaçãoentreolúdicoeo
mágico,doisladosdamesmamoedanarrativacomaqualtrabalhaJoséJ.Veiga.Certa
noite,onarradorédespertadopeloirmão,queoconvidaaparticiparda“cavalhada”
comofalecidocavaloBalão.Extraordinariamente,Balãofazseuretornodosmortose
os conduz a um local extraordinário, localizado novamente em um indeterminado
“outrolado”:"Malpassamosoaramenaporteiraedescemosabaixadadocórrego,já
íamoslonge,emterrasmuitodiferentesdasnossas,umavárzeadeburitisaperderde
vista".
Onarradorserecordadeumaterra fantásticachamada InvernadadoSossego,onde
animaisfalecidosvivemlivreseemfelicidade,longedossofrimentosterrenos:"Eraum
lugarondenãohaviacobranemervanemmutuca,avidadeleserasópastarecomer
quantotinhamvontade,quandodavasonosaíamedormiamondeestivessem,nema
chuvaosincomodava,seduvidaraténemchovia".Percebe,agora,queaInvernadado
Sossegorealmenteexiste,eque"qualquerpessoapodiairlásenãoficasseaflitapara
chegar".
Porém,apacíficailusãodaInvernadacomoespéciedeParaísoinfantilérapidamente
estilhaçadaquandoosgarotosdescobremqueláexistemforçasmalignas,umexército
debárbaroscapadóciosque“aparecemderepentearmadosdegarruchaefazemum
estragomedonho",comosádicohábitodematarcavalos.Omedodeperderocavalo
novamente,emmeioàsúbitainvasãodoscapadócios,fazcomquecavemumburaco
(comamórbidaformadeumacova)paraesconderBalão.Todavia,onarradorperdeo
cavaloeoirmãodevistaemmeioaocaoseacabapordespencarnoburacoquehavia
cavado,ondeficapresopelopesodeumcorpoquenãoédeumcavalo:"Oscapadócios
pesammaisdoquechumbo,erainútiltentarescapar".
Contrastando com a lúdica premissa apresentada no início, a narrativa subverte a
expectativa estabelecida emumdesfecho violentoe cruel.Aprisionadono fundoda
cova,naagorainfernalInvernadadoSossego,onarradorobserva"asnuvenspassarem
nocéualto,tãolivresetãoremotas,ospássaroscumprindooseudeverdevoar,sem
80
seimportaremquenofundodeumburacoummeninomorriademortehumilhante,
morriacomobarata,esmagadocomobarata"esozinhonoescuro.
AInvernadadoSossegoconverteolúdicodeumsonhoinfantil—oparaísopós-vidaem
que animais de estimação convivem alegremente para sempre — em um terrível
pesadelo:umaterraemqueoscavalinhossãoassassinadosporbárbarosfétidos,em
queaviolênciaestraçalhaqualquertentativadeestabelecersentido.Oprópriotítulo
remeteaessadupla identidadedomundoalternativo“atrásdomorro”:ocontraste
entreosossegoeacrueldadedo inverno.Apesarda reversãode tomemrelaçãoàs
exaltaçõesquefechamocontoanterior,omeninoquemorre“demortehumilhante”
na Invernada do Sossego encontra-se diante da mesma impossibilidade de decifrar
sentidoentreavidaeamorte,emumaexistênciacegaeincompreensível.
3.3.3. OinsólitoeoOprimido:Ausinaatrásdomorro,Erasóbrincadeira,Quando
aTerraeraredonda,AHoradosRuminanteseSombrasdeReisBarbudos
TalvezoprincipalpontoemquealiteraturadeJoséJ.Veigadivergedaquelaproduzida
por Murilo Rubião seja, além do regionalismo que cimenta suas narrativas mais
claramente em certas regiões do Brasil, o uso do insólito para análise de relações
sociopolíticasdepoder,dominaçãoeopressão.
Apesar de, conforme discutimos no capítulo 2, o Brasil não ser considerado pelos
estudospós-coloniaiscomoumanaçãopós-colonial,esimcomoumaex-colôniacujo
desenvolvimento após a colonização já é extenso, osmecanismos empregados pelo
autor remetem para aqueles propostos por Slemon como centrais à literatura de
realismomágicopós-colonial:emsuma,arepresentaçãodessasrelaçõessociaisocorre
em três níveis: a transformação regional do espaço narrativo como metonímia da
culturapós-colonialnumtodo;otemponarrativoquecontémmetaforicamenteolongo
processo de dominação; e os silêncios produzidos por essa relação de dominação e
submissãonalinguagemnarrativadisjuntivadorealismomágico.Orealismomágicoque
seocupadessasquestõesfrequentementefazusodeimagensdefronteirasecentros,
deumEu/NóseumOutro/Eles,dereflexoseopostosemconflito.
81
Narrado,comoétípicoemJ.Veiga,porummeninodeidadeindefinida,Ausinaatrás
domorroteminíciocomachegadadoOutro,definidovagamentecomo"eles",umpar
de estrangeiros que chega à cidade interiorana com "uma infinidade de malas,
instrumentos,fogareiroselampiões".
Emborasejaminicialmenteobservadospelapopulaçãocomcautelosacuriosidade,os
estrangeirosnãorevelamseupropósito:"Nãosabendooquefaziamoutramavamno
sigilodeseuquartoounomistériodesuasexcursões,tínhamosmedoqueoresultado,
quandoviesse,pudessenãoserbom.Vivíamosempermanentesobressalto".Aangústia
causadapelaintromissãodesseOutronarotinadacidadeéumelementorecorrenteem
J.Veiga,comconotaçõespolíticas(devidoàépocaemqueescreveugrandepartedesua
obra)maisseverasqueasdeRubião.
A cidadepassa a ver os estrangeiros comgrandedesconfiança. Porém, em segredo,
diversoshabitantesfazemnegócioscomaduplaepassamapertencerao“outrolado”
(emJ.Veiga,o“outrolado”éamarcadoOutroqueagecomooagentedisruptorda
ordemestabelecida).Outros companheiros começamaenvolver-senosafazeresdos
estrangeirosebarulhosprovenientesdetrásdomorropassamaserouvidosporquem
searriscaaaproximar-sedapropriedade,agoravigiadaporsentinelasarmadas.Osque
agorasão"dooutrolado"nãocomentamoqueocorreatrásdomorro,maspassama
tratarseusvizinhoscomsoberba.
Oelementoinsólito,atéentãopoucovisível,começaapenetraraospoucosnanarrativa,
comomesmoimplacávelritmodaocupação.Achegadadeuminfindávelnúmerode
caminhões traz estrondos incessantes atrás do morro. Os ex-companheiros trazem
novos forasteiros à cidade a bordo dos caminhões: "uns homens muito altos e
vermelhos,osbraçosmuitocabeludosaparecendoporforadamangacurtadacamisa",
queobservamacidadeatentamenteeesvaziamaslojasdemercadorias.
Um dos ex-companheiros, nomeado "gerente da Companhia" (como em Rubião, as
instituições antagonísticas das obras de J. Veiga são referidas por termos
propositadamente vagos, a Companhia que opera como a arquetípica corporação),
oferece a tentação final aos que permanecem em dúvida quanto ao outro lado: a
82
possibilidadede trabalhocomaCompanhia.Diversoshomens seapresentamparaa
seleçãodaCompanhiaesãolevadospeloscaminhões,completandoatransiçãoparao
outrolado("foiaúltimavezqueosvimoscomoamigos:quandocomeçaramaaparecer
novamentenacidade,ninguémosreconheciamais”).ACompanhiaéumexemplodo
quediscuteTurchi:“AburocraciaéoprincipaltemaemmuitasobrasdeVeigaqueé
elevadaàesferade fatoseacontecimentos insólitos criandoo fantástico comouma
consciênciagritantedafaltadesentidonasaçõesprovenientesdoantropocentrismo”
(Turchi2005:4).
Agora,sãoasmotocicletasquesemultiplicamemincontávelquantidade,tornando-se
umapraga:"Ninguémmaispodiasairàruasemapreocupaçãodelevarumavarabem
forte comum ferrão na ponta para se defender dosmotociclistas, que pareciam se
divertir atropelandopessoasdistraídas".Aviolênciaatingeníveisabsurdos: "Nemos
cachorrosandavammaisemsossego,quasetodososdiasaIntendênciarecolhiacorpos
decachorrosestraçalhados.Equantagentemorreuembaixoderodademotocicleta!"
Osmotociclistasatropelamosprópriosconterrâneossobrisosecomentárioscruéis:"A
impressãoquesetinhaeraadehaverpessoasocupadasunicamenteemperturbaro
nosso sossego". A dominação progressiva, pela força invasora e pelo elemento
extraordinário,fazcomqueoshabitantessesintamintrusosemsuaprópriaterra.De
súbito, suas casas começam a pegar fogo sem motivo aparente: "Primeiro era um
aquecimentorepentino,osmoradorescomeçavamasuar,todososobjetosdemetal
queimavamquemostocasse,edochãoiaminandoumfumaceirocomumchiadotão
fortequeatéassobiava".
O desfecho de Os do outro lado é desesperançoso, culminando com a completa
ocupaçãodoespaçonarrativoporumaforçaopressoraassociadaaumincompreensível
elementoquasesobrenatural.Umaúltimatentativaderebelião,encabeçadapelopai
donarrador,acabaemfracasso,comopaicapturadoeoprotagonistaesuamãeem
fugadacidade.
OcontoErasóbrincadeiranarraoutroepisódiodeopressãoviolentaeseocupadas
reaçõesàrepressãoporpartedosespectadoresdessesatosdeviolência.Onarrador,
83
quepareceserumhomemdemeia-idade,contaosestranhosacontecimentosemsua
cidadeinteriorana.Contaonarradorque,certodia,oescrivãoValtrudesretornadeuma
pescariacom"umameiadúziademiuçalhaseumcanodegarrucha".Esteúltimo,um
cano "comido de ferrugem", é o objeto aparentemente banal pelo qual o elemento
extraordináriopenetraanarrativa.
Maistarde,onarradoréabordadoporumestranhoinquisidor, identificadocomo“o
Major”, que o questiona a respeito de sua amizade com Valtrudes, dando especial
atençãoaosobjetosencontradosnapescaria.Concluídaainvestigação,oMajorprende
Valtrudeseosentenciaàmorte.Contudo,ocondenadosemantémcalmoebrincalhão
atéofim,oquefazcomqueonarradorseconvençadequetudosetratadeumagrande
farsa,mesmoapóstestemunharoato:"ViumcacodacabeçadeValtrudesvoaralto,
comococoquebradoamachado,eircairpertodeumbarrilvelho,enquantoacadeira
tombavaparatráscomeleaindasentado.Volteiparacasaintrigadocomoquetinha
acabadode ver. Pormais quepensasse, eunãopodia atinar como iriameles soldar
novamenteacabeçadeValtrudes,quandoabrincadeiraacabasse".
Nesteconto,J.Veigaesmiúçaacomplacênciadooprimidofrenteàviolência,suarecusa
emaceitaraevidenteescaladadaopressãomesmoquandodispõedetodasasprovas,
dotestemunhodosprópriosolhos,atéquejáétardedemais.Oabsurdomotivopelo
qualfoicondenadoValtrudes––adescobertadoinofensivoobjetonorio––émaisum
reflexo da irracionalidade do opressor, que age sob propósitos aparentemente sem
sentido.
EmQuandoaTerraeraredonda,partedacoletâneaDejogosefestas(2016),háuma
poderosainversão:emummundoemquetodospercebemaTerracomochata,etodos
osobjetoseseresquenelahabitamigualmentechatos,háquemsugiraqueomundo
nemsemprefoiassim,tendooutroraassumidoformasarredondadas.Oextraordinário
nãoestáemimaginaraTerraplana,masemimaginá-laredonda:"Difícilimaginarque
estapartedaTerra já foi redonda,masos indíciosestãoaí,eaumentamacadadia.
Verdadequenemtodomundoospercebe,paraissoéprecisoumacuriosidademaníaca
eumfaromuitoespecial."
84
Estudiososencontramevidênciasdeummundoquejáfoiredondo,comoestátuasque
retratam figuras humanas arredondadas. Diversas hipóteses para o achatamento da
Terra sãopropostas.Umacadêmicoescreve: "Éevidentequeoachatamento foium
processolento,demorado,feitoumpoucohoje,umpoucoamanhã,dessascoisasque
opúbliconãonotaquandoestãoacontecendo,comooapagardasluzesnumcinema
antesdecomeçarasessão".Oextraordinárioprojeto,supõemosacadêmicos,deveter
incluído, além de imensas obras e destruição organizada de objetos, o expurgo da
próprialiteratura:"Osfarejadoresdesinaisderedondezadesenvolveramumfarotão
sutilquechegaramacondenarpoemascujoritmosugerissemovimentocircular".
Surge, então, umahipótese alternativa, aindamais escandalosa: umespecialista em
psicobiologiapropõe"atesearrojadadequeaTerranuncadeixoudeserredonda".De
acordocomoprofessor,"aspessoas,geraçãoapósgeração,foramcondicionadasdesde
pequenasaaceitarodogmadequevivemnumaTerrachata;ecomosóviamformas
chatasportodaparte,acabaramseconvencendo".Para isso,opesquisadorsugerea
existência de um esdrúxulo procedimento: o Toque de Ay-Sing, que consiste "numa
pressão sobreonervoóptico, aplicadaem toda criança aonascer", que "bloqueia a
capacidade de ver formas redondas e de percebê-las pelo tato, com a consequente
atrofiadazonacerebralcorrespondente".
Suahipóteseparecesercomprovadapelocuriosocasodo"moçopeludodeAnápolis",
umselvagemquecresceusemcontatocomoutrossereshumanosnamatadaCanastra;
apósexamespsicológicos,comprova-seque"opacientetinhaumavisãoredondado
mundoedascoisas".Ateoriadoprofessorévistacomorevolucionária:
"Severdadeira,abreperspectivastambémrevolucionárias.Supondoqueoquefoifeito
artificialmentepodeserdesfeito,podemossonharcomodiaemquepessoasdecorpo
roliçohabitarãoumaTerraredonda[...]vendocoisasredondasousobasformasreais
que tiverem, e talvez também pensando ideias redondas. É uma perspectiva tão
alucinantequechegaacausarvertigem".(Veiga2015:80).
Porfim,onarradorpropõeumaterceirahipótese:adeque,naverdade,ninguémestá
vendoaTerrachata:"Todomundofingeestaracreditandonachaticegeralapenaspor
cansaçoetambémporpreguiçadecontestaroquefoidecretado".
85
Astrêshipótesessugeremdiferentesformasdeopressãoquefazemcomqueaspessoas
nãosejamcapazesdeveras coisas comorealmente são:aprimeira,umassassinato
deliberado do passado, uma manipulação deliberada da história; a segunda, uma
imensaconspiraçãoquecertamentecontacomaconivênciadediversosagentes(por
exemplo, os médicos que aplicam o Toque de Ay-Sing) a mando de alguma ordem
superior, demotivações inefáveis; e a terceira, uma complacência generalizada, um
medodedesafiaramentalidadecoletiva,dediscordardagrandemassa.
Ousodoelementosobrenatural,mágicoe/ouextraordinárioparadarvozaoOprimido
nos contos aqui analisados é consolidado e desenvolvido nos romancesAHora dos
RuminanteseSombrasdeReisBarbudosEmambososromances,ofantásticoirrompe
lentamente,erefletediretamenteasufocanteopressãoqueseinstalaaospoucosna
comunidade,privandooshabitantesdeseuscostumes,suastradiçõesesualiberdade.
Em A Hora dos Ruminantes, o Outro, a força invasora, é um grupo de homens
enigmáticosdescritos como“oshomensda tapera”, forasteiros rudesque criamum
assentamento nos arredores da vila de Manarairema e, sem dar explicações à
população,passamadominarolocalcomsuamerapresença.Contam,comoemAusina
atrásdomorro,comacolaboraçãodehabitanteslocaisconvertidosaseuspropósitos,
“traidores”doprópriopovo.Nanarrativa,hádoiseventosfantásticosprincipais:odia
doscachorroseodiadosbois.
Noprimeiro,centenasdecãesinvademacidadedeManarairema,tomandoasruase
causandograndecaoseviolência:"Fechadasemcasa,abanando-secontraafumaça,
enervadascomoslatidos,aspessoastapavamosouvidos,pensavamenãoconseguiam
compreender aquela inversãodaordem, a cidadeentregue aos cachorros e a gente
encolhidanoescuro,semsaberoqueaconteciaaseguir".Acertaaltura,semexplicação,
"comoobedecendoumcomandosecreto,todososcachorroscessaramoqueestavam
fazendo,farejaramoar,limparamospésedispararamnorumodatapera,atropelando
genteeseatropelando".
Odiadosboisocorredeformasimilar.Chegamaospoucos,maslogosãomilhares:"A
ocupação foi rápida e sem atropelo; e quando o povo percebeu o que estava
86
acontecendo,jánãoerapossívelfazernada:boisdeitadosnoscaminhos,atrapalhando
apassagem,assustandosenhoras".Amassadeanimaiscausagrandesestragosàcidade
emuitossãomortossoboscascosdosbois:"Ànoiteninguémconseguiadormir,não
tantopelodesesperodosberrosdetodoaquelegadoencurralado,maspeloreceiode
umestouro[...]Nanoitecomprida,sufocantedeberros,aspessoaspassavamotempo
sentadas nas varandas bebendo chás e pensando no que teriam feito paramerecer
aquele castigo". As crianças desenvolvem ummétodo de caminhar sobre os bois e
passamamanteracidadeemfuncionamento.
Manarairema cai em ruína e todos aguardam o fim, até que o silêncio preenche a
madrugada:"Derepente,adescoberta[...]Oespanto,aincredulidade—aalegria.O
céuclaro,asruaslimpas,oluarpurificandoolamaçaldeestercoeurina".Assimcomo
os cães, os bois partiram subitamente, deixando para trás apenas rastros de sua
inconcebível ocupação. Em breve, descobrem que "os homens da tapera" foram
embora,eaocupaçãodeManarairemafinalmentetemfim.
Sombras de Reis Barbudos, romance frequentemente analisado como alegoria da
ditadura militar brasileira, segue uma narrativa similar. Os problemas da cidade
interiorana de Taitara têm início quando o tio do narrador, um menino de idade
indefinida, traz ao local a Companhia de Melhoramentos, entidade que sai de seu
controleeestrangulatodasasliberdadesdoscidadãosdeTaitara.Opaidonarradoréo
“traidor”danarrativa,assumindoopapeldeFiscaldaCompanhia,delatandoospróprios
companheiros; arrepende-se, mas já é tarde, e acaba levado pela Companhia, seu
destinodesconhecido.
OepisódiodopaidonarradorémaisumarepresentaçãodaideiaqueJ.Veigaparece
tersobreasimbioseOprimido-Opressor,tidacomonecessáriaparaaconsolidaçãoda
opressão:“Pormaisqueopoderinstituídopelasforçasderepressãoeviolência,naobra
deVeiga,lembreaconstituiçãolegítimadeumaparelhodoestado(metaforizadapela
máquina,pelacompanhia),éprecisoevidenciarqueacumplicidadevoluntáriaquese
estabelece entre o indivíduo e o poder sugere um pacto mais complexo, um
entrelaçamentomaissutilentreasduaspartes”(Nepomuceno2007:108).
87
Oselementosmágicossãodiversose,comonasdemaisobrasanalisadasnestaseção,
sãoutilizadospararealçaraopressãosofridapeloshabitantesdeTaitara:aCompanhia
ergueimpossíveismurosportodaacidade,aprisionandooscidadãosemumlabirinto
deenormesparedesbrancas;o surgimentodemilharesdeurubusqueobservamos
habitantesatentamenteeaeventualproibiçãodaCompanhiadetratarosanimaiscom
afetoquandoopovoseacostumacomeles;e,porfim,emumaimagemqueremete
paraamagiaemCemAnosdeSolidão,osurgimentodepessoasvoadorasquetomam
oscéus("Hojeninguémestranha,todomundoestávoandoapesardaproibição,sónão
voaquemnãoquerounãopodeoutemmedo.Masnaquelesprimeirosdiasfoiumdeus
nosacuda,pareciao fimdomundo").O romancenãoofereceumdesfechootimista
comooanterior:TaitaracontinuaocupadapelaCompanhiadeMelhoramentos, sem
perspectivadedesocupação.
Osdois romancestrazemsucintamenteas trêsmanifestaçõespropostasporSlemon.
Pode-seargumentarqueasnarrativasdeAHoradosRuminanteseSombrasdeReis
Barbudos, que detalham o encontro de duas comunidades rurais fictícias com uma
súbitaocupaçãoporumOutroenigmático,sintetizatemporaleespacialmenteoperíodo
daditaduramilitarbrasileira.DeformasimilaràaldeiadeMacondodeGarcíaMárquez,
Manarairema e Taitara representam o espaço da opressão histórica a partir da
perspectiva do oprimido, fornecendo um relato polifônico de vozes silenciadas de
representaçãonahistóriadefinidapelocentrodepoder.
3.3.4. Consideraçõesadicionais
Assim como em Rubião, as obras de José J. Veiga oferecem diversas
possibilidadesde interpretaçãoeabordagensteóricas.Háespaço,porexemplo,para
umaexploraçãomaisaprofundadadas relaçõesdepoder; conformesugereSantiago
(2015) no prefácio aOs cavalinhos de Platiplanto, é possível estudar determinadas
narrativas de Veiga como metáforas da catequização de povos nativos ou para a
escravidãodepovosafricanos,bemcomoaprofundararelaçãohistóricadaprodução
literária do autor com os atos de censura estabelecidos durante a ditadura militar.
88
Também é possível traçar paralelos, como o faz Dantas (2002), entre a recorrente
imagemdo“outrolado”eoterritórioeuropeu,comtodoseuhistóricocolonialista.A
visão de uma infância predominantemente masculina, o papel do meio rural na
resistênciasociopolíticaeoutrostemaspodemtambémserexploradossobdiferentes
óticas teóricas, cabendo a este trabalho apenas um recorte do amplo leque de
interpretaçõespossibilitadopelaobradoautor.
89
4. Conclusão: Haveria um realismo mágico verdadeiramente
brasileiro?
Ocapítuloprecedentevisou,pormeiodasleiturasdaobradeMuriloRubiãoeJoséJ.
Veiga,destacaralgumasdasprincipaiscaracterísticasealgunsdostemasrecorrentes
nos contos de cada um destes escritores. Espera-se, desta forma, ter demonstrado
algumasdassemelhançasedivergênciasentrealiteraturadecadaautor,comênfaseà
formacomoempregamoelementoinsólitoeorealismoemsuaconstruçãodoefeito
mágico-realista.
Embora ambospriorizemoolharmasculino, oherói/narradordeRubião (ohomem-
uroboroouoSísifocontemporâneo)éohomemadulto,enquantoJ.Veigaempregaa
figuradomeninooudorapaz,utilizandoainfânciacomomecanismodeexpressãodo
fantástico.Ouniversoficcionaldecadaautortambémdivergeemtermosdeespaço:
enquanto os contos de J. Veiga são marcados pelo regionalismo (de léxico, de
personagens,deespaçoedecostumes),asnarrativasdeMuriloRubiãotranscorremem
umespaçoque,emboracarregadodetraçosbrasileiros,émaisdifusoeindefinido.
Nesteespaço,Rubiãonarraosconflitos,temoresedesejosdeindivíduos;seusheróis
operamdestacadosdeumcoletivo,enfrentandodilemasinteiramentepessoais,apesar
deuniversaisàcondiçãohumana.EmJoséJ.Veiga,porsuavez,emboraoindivíduoseja
ofocodediversasnarrativas,háumapresençamaiordocoletivo,especialmentenas
narrativasquelidamcomatemáticadarepressãocomunitária.Nestesentido,aobrade
J.Veigapossuiumaconotaçãohistóricamaispronunciada,possibilitandoanálisesque
consideram livros como Sombras de Reis Barbudos enquanto analogias da ditadura
militarbrasileira.OsconflitospresentesnoscontosdeRubiãotêmumanaturezamais
atemporal,trasncendente,destacadadeprocessoshistóricosespecificados.OAbsurdo
inerenteaumaexistência semsentidopré-determinadoestápresenteemambosos
autores,masmanifesta-seemRubiãocomoAbsurdodaexperiênciapessoal,eemJ.
Veigademodoorapessoal,orafrutodeumaexperiênciacoletivadeintensoconflito
social.Apesardasdistinções,RubiãoeJ.Veigafrequentementefazemusoderecursos
90
dorealismomágico(conformedefinidoaolongodapesquisa)deformaaexportemas
similaresesãoescritoresigualmenteinovadoresdentrodatradiçãoliteráriabrasileira.
Apesardocaráterinovadordesuasobras,ambosnãosãoalheiosaessatradição,mas
situam-sedentrodela,tendocontatodiretocomfigurasinfluentesdesuaépoca,como
atestamascorrespondências trocadasentreRubiãoeopoetaMáriodeAndradeea
longaamizadedeJoséJ.VeigacomocélebreescritornacionalJoãoGuimarãesRosa.
Cientedequeaspropostasdestecapítulopodemserdiscutidasdevidoàpluralidadede
definições de realismo mágico e de possibilidades de classificação dos autores
trabalhados, os apontamentos aqui propostos não têm como objetivo afirmar a
existênciaabsolutadeumrealismomágicobrasileirocentradonessesdoisautores,mas
examinaraexistênciadeconstelaçõesde temaspresentesnesses textosquepodem
aludir a alguns aspectos desse potencial movimento. Por meio de combinações do
insólito, domaravilhoso e do fantástico, os autoresmesclam práticas existentes na
literaturaocidentalenaliteraturalatinoamericana,configurandoumapráticaliterária
quepodeser,emdiversospontosemomentos,indicadoradoquepoderiacaracterizar
orealismomágiconoBrasil.
Com base nas definições discutidas no capítulo 1 e no contexto da modernidade
brasileiramaissucintamenteabordadonocapítulo2,bemcomonadiscussãoindividual
de cada um dos autores, buscar-se-á agora destacar os pontos de conjunção que
permitam aludir a uma certa identidade do realismo mágico brasileiro, destacando
algunsdosaspectos identificadosao longodestetrabalho:nomeadamente,ousodo
elemento insólito para análise da alteridade; o emprego do realismo mágico como
continuidadedeumamplolegadoliterárioecultural;aexperiênciados“DoisBrasis”e
outrasdicotomiasrealçadaspelomecanismoinsólito;ousodeumadeterminada“voz”
narrativa,particularmentefértilparaexploraçãodofantásticonabuscabrasileirapor
umaidentidadenacional;orealismomágicobrasileirocomoespéciedepontehistórica
entre dois períodos distintos da literatura latino-americana; e a formação desse
movimento como processo antropofágico de aglutinação de valores e referências
ocidentaisaumaexperiênciadevidagenuinamentebrasileira.
91
4.1.OEueoOutronorealismomágicobrasileiro
Conformeapontadonocapítuloanterior,MuriloRubiãoe José J.Veigaempregamo
realismo mágico de maneira particular ao estilo de cada um, mas o fazem com
frequênciaparaexplorarumtemaparticularmentefértilparaestemodonarrativo:a
relaçãoentreoEueoOutro.Essadicotomiacentralànoçãodealteridadesurgeem
textos mágico-realistas de nações pós-coloniais, conforme explica Slemon (1988),
analisandoasrelaçõesentrecolonizadorecolonizado,entremetrópoleecolônia.No
Brasil,devidoaoestatutoparticulardopaíscomoex-colôniaquenãopossuiasmarcas
deuma sociedadepós-colonial nosmoldesdeoutrasnações, o contextoemqueos
autores exploram essa alteridade é um contexto propriamente latino-americano e
definitivamentebrasileiro.
EmJoséJ.Veiga,expressõescomo“ooutrolado”(quepodesereferirtantoaumaforça
antagônicaestrangeiraquantoao“outrolado”daprópriavida)surgempararealçar,de
formageográfica,adiferençaentreoEu/NóseoOutro/Eles.Aimagemdomorro,de
naturezaregionalista,é tambémempregadaparatraçaressa fronteiraespacialentre
ambos,bemcomoaimagemdeponteserios(comoorioqueseparaaIlhadosGatos
Pingadosdacomunidadecomaqualosprotagonistasjánãoseidentificammais).Nas
narrativasemqueaopressãoétemáticacentral,oOutrotomaformadeumainstituição
estatal ou corporativa de propósitos obscuros e natureza nebulosa, identificado por
substantivoscomunscomo“aCompanhia”ou“oshomensdatapera”.
Nos contos de Murilo Rubião, figuras de caráter altamente irreal (absurdo/mágico)
encarnamesseOutro.EmOsdragões,estascriaturasdeextensatradiçãonamitologia
mundialsãointroduzidasemumcontextoatípico––ocenáriodeumapequenacidade
presumidamente brasileira de “costumes atrasados" –– no qual não conseguem se
encaixar;forçadosaadotarnomesbrasileiroseadeixaremparatrássuaidentidadede
dragões, sucumbemaosvíciosdacidadee sofrem (tantoosdragõescomoaprópria
cidade)asconsequênciasdessadefectível tentativadeaculturação.Omesmoocorre
comTeleco,ocoelhinhometamorfoseantequetentaemvãotornar-sehomemeacaba
92
convertidoem“criançamorta”,ecomohomemdobonécinzento,cujaintromissãono
espaçodonarradoréapontadacomoculpadadetudoquetranscorrenanarrativa.
Emambososautores,oOutroestáassociadodiretamenteaoelemento insólito.No
primeiro capítulo, foi discutido comoo realismomágico emnaçõespós-coloniais ou
mesmoemoutrospaíseslatino-americanosassociaamagiaeoextraordinárioaculturas
indígenas, amitos e tradições orais locais, enquanto o aspecto realista da narrativa
remete a uma tradição lógica europeia, de base iluminista. No realismomágico de
RubiãoeJ.Veiga,o insólitoéoquevemdefora,amagiaéoelementoqueirrompe
súbita ou lentamente e desvirtua as leis da lógica que vigoravam naquele tempo e
naqueleespaçoatéentão.
4.2.OsDoisBrasis:Exploraçãodedicotomiasnacionais
No contexto da modernidade brasileira, o conceito de “Dois Brasis” proposto por
JacquesLambert(aideiadequeoterritóriobrasileiroestevetradicionalmentedividido
em eixos bipolares, como o eixo urbano-rural, o eixo litorâneo-interior e, mais
recentemente, o eixo Norte-Sul) é explorado nas artes, na literatura e na política
nacional.Resultadodolentoprocessodeocupaçãoetransformaçãodointeriordopaís,
essadivisãoentreointerioreocentrourbano,entreastradiçõesdocampoeoritmo
desenfreadodametrópole,éumaideiacentralàidentidadedoBrasilcomopaís.
Aqui, são diversas as narrativas de José J. Veiga eMurilo Rubião que empregam o
realismo mágico para enfatizar essa dicotomia entre o espaço interiorano e a
experiênciadametrópole.AscidadesdeMuriloRubião(àsquaiséraramentefornecido
umnome)sãopalcoparaaexperiênciadoAbsurdoporpartedeseusprotagonistas,
especialmente os estrangeiros ao espaço urbano. EmA fila, o protagonista Pererico
encontra-se incapaz de navegar no labiríntico processo burocrático da obscura
“Companhia”,esóécapazdeescaparaocíclicosofrimentoaoembarcaremumtrem
deretornoaointerior.EmOedifício,oengenheiroJoséGasparentrega-seaoinfindável
projetodo“ConselhoSuperiordaFundação”,quevisaconstruir“umprédiodeinfinitos
andares”,símbolomáximodocrescimentourbanodesenfreado,dahúbrisdosanciões
93
que projetam essa espécie de Torre de Babel contemporânea. Em O bloqueio, o
protagonistaencurraladopelaimplacávelmáquina,queserevelaapenasporruídose
vislumbres, termina o conto encerrado no local que sintetiza a vida urbana: o
apartamentoondevivesolitário,emfugadopassadoedosdilemaspessoais.
EmJoséJ.Veiga,oBrasilinterioranoéamplamenteexploradopormeiodautilizaçãodo
regionalismoedaescolhadesituaramaiorpartedesuasnarrativasemvilasepequenas
cidadesfictíciasdointerior.Manarairema(AHoradosRuminantes)eTaitara(Sombras
de Reis Barbudos) representam o arquetípico município brasileiro, país ainda
maioritariamente rural. Ao explorar relações familiares, classes sociais, ofícios e
conexões comunitárias, J. Veiga constrói nessas duas cidades o palco que Slemon
propõe como síntese temporal e espacial de experiências históricas de opressão e
submissão.ForçasantagônicascomoaCompanhiaMelhoramentosdeTaitara(Sombras
deReisBarbudos)eausinaatrásdomorro(docontodemesmonome)sãoagentesdo
desenvolvimentourbanoquecruzamafronteiraentremetrópoleeinterior,trazendo
grandesmudançasaoritmodaexistêncialocaleàprópriadestruiçãodessemeio.
Em suma, tanto J. Veiga quanto Rubião retratam diferenças essenciais entre a
experiênciaurbanaeavivência interiorana,enfatizandoaexistênciademecanismos
dicotômicosdedivisãosociogeográficanoBrasilpormeiodorealismomágico.
4.3Aidentidadebrasileiranorealismomágico
EmboraasdiferençasestilísticasentreasvozesnarrativasdeMuriloRubiãoe José J.
Veiga sejam patentes, há certas convergências que aproximam os autores dessa
determinada “voz” narrativa característica do realismo mágico latino-americano de
escritorescomoGabrielGarcíaMárquezeJulioCortázar.
Ambos fazemuso de um léxico de fácil apreensão, por vezes recorrendo ao cômico
(Rubião)ouaolúdico(J.Veiga)paraestabeleceressa“duplacodificação”(Thiem1995:
243)característicadaliteraturapós-moderna,naqualestáinseridaorealismomágico;
ambos utilizam esses recursos para destacar a natureza contraditória do próprio
94
realismomágico(quepodeservisto,afinal,comocômicooulúdicoporcertosleitores,
mastambémirônicoetrágicoeporoutros).
Essaconvergência,somadaaofatodequeambososescritoresfavorecemopontode
vistadaexperiênciadevidamasculina (epresumidamentebranca),permitequenos
aproximemosdeumaespéciede“olhar”específicosobreorealismomágicotrabalhado
pelosautores.Utilizandoesserecursolinguísticodaprosainicialmenteacessível,soba
qualparecemseescondercamadascadavezmaisprofundasdeinterpretação,J.Veiga
eRubiãofazemusodorealismomágicoparaexplorarumdosmaisrecorrentestemas
noimagináriobrasileiro:asupostafaltadeidentidadeunitáriadoBrasilcomonaçãoe
de seu povo. Em Rubião, essa busca identitária ocorre nos conflitos pessoais
enfrentadosporprotagonistasque frequentementeencontram-se sós eperdidosno
mundo, incapazes de conectar-se coma realidadequeos cerca; em José J. Veiga, o
confrontoentreoruraleourbanoenfatizaessabuscaporumequilíbrioquepermita
aosprotagonistaseàssuascomunidadesmanteraidentidadefaceaodesenvolvimento
externamente imposto, bem como o uso de narradores-crianças, que ressalta a
complexabuscadomeninopelamaioridadecomohomem.Àluzdosestudosdegênero,
ambos os autores podem ser criticados pela prevalência exclusiva da experiência
masculina,mas retratam inquestionavelmente uma experiência de serbrasileiro, de
estar em busca de uma auto-afirmação identitária, que pode ser vista como
universalmentebrasileira.
4.4Orealismomágicobrasileironocontextolatino-americano
AnaturezadaAméricaLatinaenquantoterritóriopolifônicodecaráterextremamente
particular,distintodequalqueroutroterritóriogeopolíticodoplaneta,é,paraautores
como Carpentier, essencial à ascensão do realismo mágico nessa região
supracontinental. Nesse contexto, o escritor latino-americano, que tende a produzir
literaturaemidiomasdeorigemeuropeia,dácontinuidadeaumextensolegadocultural
introduzidonoterritóriolatino-americanopeloprocessodecolonização.
95
Essa continuidade encontra-se refletida também no realismomágico brasileiro, que
surgenãocomomovimentoliterárioautônomoealheioàtradiçãoliteráriaprecedente,
masdácontinuidadeacorrentesprecedentes,resultantesdesselongolegadocultural.
Embora tanto Murilo Rubião quanto José J. Veiga tenham rejeitado, em vida,
associaçõesdiretasaautorescomoKafkaouaorealismomágicoproduzidoemoutras
nações,écertoqueasrelaçõesestabelecidasporteóricosdedicadosàanálisedesuas
obras com esses autores e correntes não é infundada. Em Rubião, por exemplo, a
constante aparição de reinterpretações de mitos clássicos ocidentais apontada por
Cánovas (Sísifo, Hermes, Proteu, medusa, o uroboro e o labirinto) dá uma clara
demonstração da continuidade desse processo. As epígrafes bíblicas refletem a
influênciadiretadeumdospilaresdaculturaeurocêntrica,ocristianismo,encontrado
tambémnostemasdepecado,culpaeredençãoexploradosrepetidamentepeloautor.
Emboranãofaçausodosmesmosmitosereferências,orealismomágicodeJoséJ.Veiga
também se distingue daquele produzido por outros autores latino-americanos ao
prescindirdemitosetradiçõesdeorigemindígenaoudeoutrasculturaspertencentes
aomiscigenadocaldopopulacionalbrasileiro,optandoporretratarconflitosexistenciais
equestões sociopolíticasamplamentepresentesna literaturaena filosofiaeuropeia
moderna.
Com base nesse legado e no contexto histórico em que surge, precedendo oboom
latino-americano de divulgação internacional de autoresmágico-realistas, é possível
proporqueorealismomágicobrasileirooperacomoespéciedepontehistóricaqueo
aproxima, do lado de Rubião (o primeiro a estrear na literatura nacional) ao
experimentalismopós-modernodeescritorescomoBorgeseàficçãoinsólitadeKafka,
edo ladode J.Veigaao realismomágicopropriamente latino-americanodeautores
comoGabrielGarcíaMárquez(essadiferençasedá,talvez,pelointervalodequaseuma
década entre a estreia literária dos autores). Portanto, temporal, estilistica e
tematicamente,seháumrealismomágicoverdadeiramentebrasileiro,estepoderiaser
vistocomorepresentaçãodesseinstantetransitórionaevoluçãodestemodonarrativo
nosubcontinentesul-americano.
96
4.5Antropofagiamágico-realista
Ainda,umaspectoprimordialdorealismomágicobrasileiro––edorealismomágico
latino-americanocomoumtodo–podesercompreendidosobaluzdaantropofagia,
segundodiscutidonocapítulo2.ConformeressaltouCostaLima(2017),aantropofagia
forneceumacontrapartidaàarqueologiaestática“formadapelaherançadobranco”,
estabelecendoa ideiadeuma“capacidadederesistência”queseria“antesumtraço
cultural do que o produto de algum estoque étnico”, identificada por seumodus
operandicaracterístico,o“canibalismosimbólico”.
ParaNetto (2004), a teoriaoswaldiana lida comduasquestõesatéhoje centraisno
debateculturalbrasileiro:“comoconstruirumatradiçãoculturallegítimanopaísecomo
se relacionar com a tradição estrangeira” (Netto 2004:16). Inserida no contexto
analisadoatéaqui,aproduçãoliteráriadeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga,aglutinando
influênciasestrangeirasàssuasexperiênciasnacionais,nãoestá isentadessedilema.
Ainda,Nettoapontaalgumasdessasinfluênciassobreasvanguardasbrasileiras:
AAntropofagiaconstituiu-se,assim,apartirdeumduploolhar:umparadentrodopaís,
outropara fora––umpreocupava-seemresgataro folclore,as comidas típicaseas
varianteslinguísticas,alémdeevidenciarasquestõesdeordemestruturaldanação,tais
comoamiscigenação,osincretismoeasdoençasqueassolavamoBrasilnoiníciodo
século; o outro, instigado com as discussões estéticas divulgadas pelas vanguardas
europeias,observavaaousadiados impressionistas,dadaístas,cubistasesurrealistas
para,posteriormente,reelaborá-lasdentrodeumprojetonacional.(Netto2004:16)
Como“umaexperiênciacujoopostosignificariaacrençaemumlimpoemíticoconjunto
detraços,doqualavidapresentedeumpovohaveriadeserconstruída”(CostaLima
2017:2),aantropofagia forneceumapoderosaperspectivaacercadaprevalênciado
realismo mágico no território latino-americano, e explica como ocorre a mescla de
valorese referências literáriasocidentaiseexperiênciasdevidagenuinamente locais
encontradasnorealismomágicodeMuriloRubiãoeJoséJ.Veiga.
Asdicotomias trabalhadaspelosautores tambémpodemservistascomoexpressões
desse processo antropofágico. Schwartz, emUm Brasil em tommenor: Pau-Brasil e
97
Antropofagia(1998),escreve:"Aclássicaoscilaçãoentreonacionaleocosmopolitatem
sidoumaconstantequedefiniuosrumosdaidentidadedaliteraturalatino-americana
desde a sua própria formação. A vanguarda não escapou desta constante, pelo
contrário, a aguçou" (Schwartz1998:53). Oautor ressaltaa contínua relevânciado
Modernismoedaantropofagianaproduçãoculturalbrasileiracontemporânea:“[...]em
nenhumoutropaísencontramosaatualidadequeatéomomentotêmasexpressõesde
rupturaquecaracterizaramosanosvinte.Defato,atéhojeomodernismobrasileiroé
assuntocandente”(idem).Ométodoantropofágicodescritopeloautorparecesimilarà
formacomooperamRubiãoeJ.Veiga:
Nomomentoemquejánãofazsentidoretrocedernahistóriaparaproduzirmodelosde
superação,umavezqueelesexistemefuncionamemoutrospaíses,aideiaprimordial
seráincorporá-lospeloatoantropofágico.Aocontráriodoquepossapareceràprimeira
vista,oprimitivonãocomeparasaciarafome;pelocontrário,ofazcomoatoritualizado
coma finalidadedeassimilarosatributosdo inimigo.Neste contexto, a consignada
alteridadeéaincorporaçãodooutroparafazerumasíntesecapazdegerarasuperação
eliberaçãodojugoexterior.(Schwartz1998:62)
Propõe-se aqui que em ambos os autores, a aglutinação de valores e referências
ocidentais/eurocêntricas––referênciasaocristianismo,ousodoidiomaportuguês,os
nomes das personagens, o espaço ficcional, as referências históricas, a repetição de
mitosefigurasdafilosofiaeda literaturaocidentais,otratamentodetemascomoo
Absurdoeoexistencialismoenoçõesmarxistasdelutadeclasses––podeserentendida
comoasíntesedoprocessoantropofágico.
Emboraomesmopossaserditosobrepraticamentetodomovimentoliteráriobrasileiro
contemporâneo, em que o legado cultural resultante do processo de colonização e
posteriorindependênciaéfortementeintercaladonaexperiêncianacional,orealismo
mágicopareceserummovimentoliteráriodeteorantropofágico,emqueacoexistência
natural entre realidade emagia reflete a simultaneidade da presença de influências
estrangeirasedeumaricaeextensaculturapropriamentebrasileira.
98
4.6(In)conclusão
A discussão proposta no presente projeto de pesquisa buscou elucidar alguns dos
principais pontos de divergência em relação ao realismo mágico na literatura, em
especial no que se refere à possível existência de um realismo mágico brasileiro,
movimentosobreoqualaindanãoháextensabibliografiaqueocaracterizecomotal.
Aolongodestapesquisa,buscou-sedemonstrarcomooscontosdeMuriloRubiãoeas
obrasdeJoséJ.Veiga(contoseromances)fazemusoderecursosdoinsólitoedoreal
paratecernarrativasde imensacomplexidade,passíveisdasmaisvariadasanálisese
abordagensteóricas,aomesmotempoemquesemostramacessíveisaleitoresdetodas
as idades e nacionalidades. Argumentou-se que certos elementos apontam para a
existênciadeumacoesãotemáticaenarrativaentreosautores,capazdeoferecerum
vislumbredosprincipaisaspectosquepoderiamseratribuídosaumrealismomágico
verdadeiramentebrasileiro,distintodesuasvariaçõescontemporâneaseposteriores
emoutrasnaçõeslatino-americanas.
Combasenasleituraspropostasenasconclusõesextraídasdessadiscussão,buscou-se
principalmente demonstrar que, embora menos reconhecidos em círculos críticos
internacionaisdoqueautorescomoGarcíaMárquez,CortázareIsabelAllende,Murilo
RubiãoeJoséJ.Veigapodemestarentreospioneirosnousodorealismomágicono
território latino-americano, visto terem produzido uma literatura de grande
complexidade,quepermitiriasuscitarumamaiordiscussãoeapreciaçãonocânonedo
realismomágicointernacional.
99
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